sons do sul - dissertação mestrado ppgas ufsc

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Vinícius Teixeira Pinto SONS DO SUL Performances e poéticas do rap em Porto Alegre Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Antropologia Social. Orientadora: Profª. Drª. María Eugenia Domínguez Florianópolis 2015

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Dissertação de Mestrado- PPGAS UFSCDescreve performances musicais e elabora análises sobre a poética do rap em Porto Alegre (RS).

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  • Vincius Teixeira Pinto

    SONS DO SULPerformances e poticas do rap em Porto Alegre

    Dissertao de Mestrado apresentadaao Programa de Ps-Graduao emAntropologia Social da UniversidadeFederal de Santa Catarina comorequisito parcial para obteno do graude Mestre em Antropologia Social.

    Orientadora: Prof. Dr. Mara EugeniaDomnguez

    Florianpolis2015

  • AGRADECIMENTOS

    Antes de tudo, preciso manifestar minha profunda gratido atodos os msicos e demais artistas que tive a sorte conhecer e entrevistardurante o perodo de pesquisa em Porto Alegre: peo-lhes licena parafalar sobre suas msicas. Meus guias durante estes meses foram os MC'sndio e Sandro que dispensaram muito tempo contando um pouco desuas histrias e respondendo s minhas curiosidades. No possoesquecer do Rafa, em Esteio, que tambm no poupou gentileza eateno comigo. Os caminhos pelos quais o texto desta dissertaoenveredou no so obra do acaso, mas resultado da participao destesprofessores.

    Agradeo ao apoio do Programa de Ps-Graduao emAntropologia Social da UFSC, e da CAPES, atravs de uma bolsa demestrado, que possibilitou a realizao desta pesquisa.

    Agradeo orientao da prof. Mara Eugenia Domnguez, aolongo destes dois anos. Sou grato por sua confiana neste trabalho desdeo dia em que enviei o primeiro esboo de projeto por e-mail; por suaspalavras de tranquilidade e alento quando qualquer esforo parecia vo;por sua leitura atenta a cada linha deste texto; e por seus ensinamentossobre escrita e antropologia.

    Agradeo ainda aos colegas do Ncleo de Estudos Arte, Culturae Sociedade na Amrica Latina e Caribe o MUSA por cada tardecompartilhada, trocando relatos de pesquisa e sugestes.

    Em Florianpolis tive o prazer de ser aluno de Rafael Jos deMenezes Bastos quanta sutileza e elegncia -; de Vnia Zikn Cardosoe Evelyn Schuler Zea, que enriqueceram demais a qualificao doprojeto desta pesquisa; e de Scott Head e Theophilos Rifiotis. Soudevedor de tantas contribuies que certamente sero percebidas naspginas seguintes. Alm dos professores, conheci na cidade, uma turmaque me far recordar principalmente as discusses durante a elaboraodo projeto de pesquisa. Agradeo especialmente a Marcello Malgarin eFabiana Stringini Severo, que tambm vieram de Santa Maria comigo namesma barca.

  • Foram muitos os amigos que de perto ou de longeacompanharam este perodo passado na Ilha de Santa Catarina. Queroagradecer aos santa-marienses Julio Souto, Guilherme Passamani,Martn Rimondino, Iuri Muller, e Sebastin Ferrigno; aos santiguensesPedro Mesquita Fonseca, Bianca Villanova, Thiago Lima, FernandoFurquim, Francisco Nunes, Filipe Manzoni, Rodrigo Silva, LeonardoFabrin e Gerson Oliveira; aos santafesinos Dieisson Pivoto, AndrsPrato e Francesco Palmeri.

    Sou infinitamente grato a meus pais Paulo e Vera e a meu irmoRodrigo por toda a compreenso e pelo apoio incondicional, apesar dehaver tanto continente entre Santiago e o mar.

    Finalmente, a Magali Canton, minha companheira para asalegrias e os infortnios. Agradeo pelo amor, pelo bom humor, pelocarinho e pelo riso. Agradeo tambm por toda a participao nestapesquisa, sempre que me incentivou, sempre que descobriu todas asfestas e shows de rap pela cidade, acompanhando-me de uma parte aoutra. Agradeo pela parceria intelectual, fazendo o exerccio deaprender sobre hip hop e duelos de rima junto comigo. Sou grato pelacasualidade, pelo Vamp, por cada surpresa e cada passeio por estas ruasde Quintana.

  • (...)Vo invadir o seu barraco, a polcia!

    Vieram pra arregaar, cheios de dio e malcia.Filhos da puta, comedores de carnia!

    J deram minha sentena e eu nem tava na treta.

    No so poucos e j vieram muito loucosMatar na crocodilagem - no vo perder viagem:

    Quinze caras l fora, diversos calibres, e eu apenascom uma treze tiros automtica.

    Sou eu mesmo e eu, meu Deus e o meu orix,no primeiro barulho, eu vou atirar.

    O homem na estrada, Mano Brown.

    ***

    (...)Senti o calor do ao e o calor do ao arde.

    Me levantei - sem alarde, por causa do desaforoe soltei meu marca touro num medonho buenas-tarde!

    (...)Balanceei a situao, - j quase sem munio,todos atirando em mim. qual ia ser o meu fim:

    (...)E dali ganhei o mato, abaixo de tiroteio

    e ainda escutava o floreio da cordeona do mulato.E, pra encurtar o relato, me bandeei pra o outro lado,

    cruzei o Uruguai, a nado, que o meu zaino era um capincho;E a histria desse bochincho faz parte do meu passado!

    O bochincho, Jayme Caetano Braun

  • RESUMO

    Partindo das contribuies de debates originados em torno daAntropologia da msica, esta etnografia procura apresentar como o rap ealguns conceitos relativos a ele atualizam-se em diferentes performancesmusicais. Para tanto, amparou-se em pesquisa de campo, realizada emPorto Alegre e regio metropolitana, durante a primeira metade do anode 2014. Os esforos que este texto faz objetivam reportar asexperincias de dilogo com alguns msicos locais, com o intuito derecriar as festas, os shows e demais momentos relativos audio demsicas do gnero em questo. Os eventos escolhidos para as descriesdetalhadas foram: duelos de rima, rodas de improviso, shows, gravaesde cds e gravaes de videoclipes. Todos eles foram abordados comoatos comunicativos nos quais prevalece a funo potica. A relevnciadeste tipo de proposta se d ao considerar a msica enquanto uma obraaberta, no sentido dado por Eco, isto , algo que construdo entre umemissor e, ao mesmo tempo, um receptor. Assim, as msicas no podemexistir de modo atemporal, mas apenas quando atualizadas emperformances. Portanto, buscou-se relatar estas experincias musicaiscom a maior riqueza de detalhes possveis, considerando o pesquisadortambm um participante destes eventos. Concomitantemente, discute-seos conceitos elaborados por msicos e apreciadores do gnero musicalpara classificar tais performances. A respeito deste ponto, foi percebidauma distino crucial para os artistas entre msicas improvisadas emsicas memorizadas. Neste sentido, o texto procura salientar asexpectativas que cada categoria de eventos proporciona aos performers,abordando as variedades de linguagens (verbal, musical, visual, etc.) etemas nas msicas. Alm disso, discute-se com ateno especial o modocomo a categoria rap gacho usada para definir msicas do hip hopfeitas em Porto Alegre. Finalmente, esta etnografia procura oferecercontribuies para analisar as poticas do hip hop, chamando atenopara sua caracterstica geral enquanto poesia oral, mas, tambmapontando de que maneira outras sensorialidades alm da auditiva so fundamentais para construo destas narrativas musicais.

    Palavras-chave: 1. Hip hop 2. Rap 3. Antropologia da msica 4.Performance 5. Oralidade

  • RESUMEN

    Partiendo de las contribuciones de debates originados en torno a laAntropologa de la msica, esta etnografa busca presentar como el rap yalgunos conceptos relativos al mismo se actualizan en diferentesperformances musicales. Para ello, se ampar en investigacin decampo, realizada en Porto Alegre y regin metropolitana, durante laprimera mitad de 2014. Este texto realiza esfuerzos para relatar lasexperiencias de dilogo con algunos msicos locales, con la intencin derecrear las fiestas, los shows y dems momentos relativos a la audicinde msica del gnero en cuestin. Los eventos escogidos para lasdescripciones detalladas fueron: duelos de rima, ruedas deimprovisacin, shows, grabaciones de cds y grabaciones de videoclips.Todos ellos fueron abordados como actos comunicativos en los cualesprevalece la funcin potica. La relevancia de este tipo de propuesta seda al considerar la msica como obra abierta, en el sentido dado porEco, esto es, algo construdo entre un emisor y, al mismo tiempo, unreceptor. As, las msicas no pueden existir de modo atemporal, sinonicamente cuando actualizadas en performances. Por tanto, se buscrelatar estas experiencias musicales con la mayor riqueza de detallesposibles, considerando, naturalmente, al investigador como unparticipante de estos eventos. Al mismo tiempo, se discuten losconceptos elaborados por msicos o aficionados del gnero musical paraclasificar tales performances. Respecto a este punto, fue percibida unadistincin crucial para los artistas entre msicas improvisadas ymsicas memorizadas. En este sentido, el texto busca resaltar lasexpectativas que cada categora de eventos proporciona alos performers, abordando las variedades de lenguajes (verbal, musical,visual, etc) y temas en las msicas. Adems de eso, se discute conatencin especial el modo como la categora rap gaucho se usa paradefinir msicas hip hop hechas en Porto Alegre. Finalmente, estaetnografa busca ofrecer contribuciones para analizar las poticas del hiphop, llamando la atencin sobre su caracterstica general como poesaoral, pero tambin apuntando la manera en que otras sensorialidades adems de la auditiva son fundamentales para la construccin de estasnarrativas musicales.

    Palabras clave: 1. Hip hop 2. Rap 3.Antropologa de la msica 4.Performance 5. Oralidad

  • LISTA DE FIGURAS

    Pgina Nao Hip Hop Gaudria............................................................19Foto de satlite da Regio Metropolitana de Porto Alegre.....................39Foto de uma Batalha do Mercado...........................................................43Mapa do centro de Porto Alegre.............................................................60Introduo a um Flow Diagram de Paul Edwards.................................88Anlise de Loose Yourself atravs de Flow Diagram.............................89MC's em duelo na Batalha do Mercado................................................106Flyer de divulgao da festa no Clube Silncio...................................129MC ndio apresenta a festa...................................................................130Material de divulgao da banda D'Lamotta........................................134Material de divulgao de Flow MC....................................................135Capa de ra ra...................................................................................143Capa de O preto do bairro II................................................................148Frame do videoclipe Velas ao vento.....................................................153Frame do videoclipe Resta 1................................................................155Frame do videoclipe Cartas do meu passado.......................................158Frame do videoclipe Cartas do meu passado.......................................160Frame do videoclipe Se o tempo permitir.............................................161

  • SUMRIO

    INTRODUO....................................................................................17i. Descobrindo hip hop pela cidade........................................................28ii. Rap e hip hop enquanto problemticas acadmicas...........................32iii. Resumo do que h por vir..................................................................36

    Cap. 1 PEDAOS DE HIP HOP EM PORTO ALEGRE.................39i. Batalha do Mercado.............................................................................43ii. Banca Clandestina..............................................................................48iii. Ponto Favela......................................................................................54iv. Na cena musical: situando a pesquisa................................................58

    Cap. 2 DISCUTINDO O RAP A PARTIR DA ETNOGRAFIA DAMSICA................................................................................................61i. Msica enquanto ato comunicativo.....................................................62ii. Traficando informao: indefinies sobre o rap...............................66iii. Performances e poticas da oralidade para o estudo do rap..............72

    Cap. 3 SE LIGA, IMPROVISADO!................................................83i. Sangue!: O duelo entre G.R. e Abu.....................................................89ii. Rodas de freestyle.............................................................................107

    Cap. 4 RAP O SOM: CONSERVANDO CANES...................123i. O palco: anlise de uma sequncia de shows....................................125ii. Gravando cds....................................................................................136iii. As narrativas de ra ra e O preto do bairro II.............................142iv. Filmes musicais: uma sequncia de videoclipes da bandaRafuagi.................................................................................................152

    CONSIDERAES FINAIS.............................................................163

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................171

    SITES CONSULTADOS....................................................................181

    REFERNCIAS DISCOGRFICAS...............................................183

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    INTRODUO

    H quem diga que nenhum grupo de rap do Rio Grande do Sulconsegue fazer que suas msicas sejam tocadas no restante do pasdesde Da Guedes. Essa uma opinio generalizada que cheguei a ouvirmais de uma vez durante os meses em que estive em Porto Alegre para apesquisa de campo que originou esta dissertao. De acordo com estesinterlocutores, a banda foi a ltima de uma gerao que despontou nocomeo da dcada de 90 e conseguiu levar seus shows e suas msicaspara uma audincia maior e mais heterognea que aquela restrita aosapreciadores de rap da regio.

    Na poca, o grupo Da Guedes formou-se no bairro Partenon eteve como integrantes ao longo de sua existncia Baze, Nitro Di, NegroX, Gibbs, Spaw e DJ Deeley. Em 1999, lanou o cd Cinco Elementos,com a produo de DJ Hum, um dos precursores do rap no Brasil,tambm reconhecido pela produo da coletnea Hip Hop: Cultura derua1 de 1988. Da Guedes conseguiu difundir algumas msicas comoMinha cultura e Isso Brasil. Depois disso, vieram os cds Morro secomas no me entrego e DG vs. A luz falsa que hipnotiza o bobo, de 2002e 2004, respectivamente. dessa poca o ilustre refro J tomei soroantiofdico/ dei tchau pros cobras e pros traras/ S ando com meusamigos: Z.N., Z.S., Z.L./ pode chegar!/ Chega, respeita, chega erepresenta/ Sente os back, s, firmeza/ Sente os back, s, firmeza/Chega, respeita, chega e representa/ Tudo que o rap fez/ Tudo que o rapfaz/ a diferena.

    Entre 1999 e 2005, foram diversas indicaes a premiaesartsticas, com destaque para o Prmio Aorianos, institudo pelaPrefeitura Municipal de Porto Alegre2 e o Prmio Hutz, desenvolvidono Rio de Janeiro pela Central nica de Favela (CUFA)3 e voltado

    1 Muitos reconhecem esta obra como o primeiro cd de rap lanado no pas. Olbum tinha msicas dos grupos Cdigo 13, Mc Jack, Credo e Thade e DJHum.

    2 O Aorianos se divide nas seguintes categorias: teatro e dana, literatura,msica e artes plsticas.

    3 O Hutz distribui premiaes a artistas em dezenas de categorias. Algumasdelas so: lbum do ano; msica do ano; produtor musical; gravadora;personalidade do ano; grupo ou artista solo; e tantos outros. Maisinformaes sobre ele podem ser obtidas atravs de sua pgina online:http://www.hutuz.com.br/10anos/in.php?id=home (Acessado em21/02/2015).

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    especialmente ao hip hop.A tese defendida por muitos a de que existe um hiato que j

    dura ao menos uma dcada. Um silncio do rap gacho no mesmomomento em que MC's de Curitiba, Rio de Janeiro, Fortaleza e Brasliaatravessam o Brasil ao lado dos grupos paulistanos. Essa narrativaassume contornos picos, descrevendo apogeu e queda do rap gachopersonificado no grupo Da Guedes; e, recriando os dias de outrora emcomparao com os dias de hoje. Mas isso no tudo: o rap em PortoAlegre tratado como uma cena musical perifrica e dependente deoutros centros musicais. No toa que a frase o objetivo fortalecera cena outro termo repetido sempre por organizadores de eventosrelativos ao hip hop.

    No entanto, seria equvoco entender que estas afirmaes sobreo Rio Grande do Sul e Porto Alegre descrevem um tempo de silncio,ausncia, falta ou vazio. Pelo contrrio. Se por um lado a afirmao deque ningum consegue sair das fronteiras do estado fala sobre o queseria e quem seriam os artistas do rap nacional, por outro, cria umconceito de rap gacho. A alegao de que os artistas locais no temxito em outras praas informa, ao mesmo tempo, que eles fazem partede um grupo delimitado e esto em plena atividade.

    Mas este senso de existncia de uma coletividade no surgeapenas em conversas cotidianas. So muitas as msicas em que os MC'sfazem questo de cantar versos que enfatizem sua gauchidade, como,por exemplo, Chama criola de Madyer Fraga: Faa tua trilha, insista navida/ sem mistrio, rima ao jeito gaudrio/ No tendo medo de cara feia/e jamais eu fujo da peleia. Em outros casos, frases prontas que serepetem em festas e shows, por exemplo: rap gacho! Rap gacho!;jornalistas especializados no gnero musical, como o jornal Rap Sul epessoas que se renem em pginas de Facebook, como a Nao HipHop Gaudria (Figura 1).

    Definir o que afinal o rap gacho talvez no seja a questomais interessante para os fins propostos para este trabalho. Estadissertao ser uma narrativa sobre a diversidade de performancesmusicais que os artistas tm proporcionado consolidao do gneromusical na cidade. Esta perspectiva inverte a lgica que pressupe quetodos os msicos da cidade fazem parte do chamado rap gacho e soportanto representantes dele. Em lugar desta postura universalizadora, prefervel ponderar obra por obra com o intuito de entender quaisnarrativas esto sendo construdas nas diferentes performances e, porconsequncia, quais raps esto sendo criados.

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    Afirmar que o rap produzido em Porto Alegre e arredores orap gacho ou o rap de Porto Alegre indica uma naturalizao da relaoentre msica e espao geogrfico, ignorando a criatividade culturaldestas prticas musicais, isto , a capacidade que msicas e tambmoutras artes tm para construir esta relao entre lugares e sonoridades(Domnguez, 2009: 17). Como apontado por Wade (2002: 32-3) muitasdestas associaes partem da ideia de que as identidades sociais so algopreviamente dado e representvel atravs da msica. De acordo comesta linha de raciocnio, o rap cantado por gachos no poderia ser outracoisa seno rap gacho.

    Embora este no seja o caso da apropriao de gneros musicaisenquanto tpicos representantes da identidade nacional (Menezes Bastos,2014; Vianna, 1995), a discusso pode tomar a direo de debater comoestes msicos e apreciadores do rap criam nas prticas musicais aassociao entre o gnero musical e o gauchismo, inventando, nostermos wagnerianos, o rap gacho.

    Por rejeio a esta postura que considera a msica um reflexodas identidades sociais, a preocupao central da pesquisa esteve sempre

    Figura 1: Criao do grupo "Nao Hip Hop Gaudria" na internet

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    em dissecar as to diversificadas performances musicais acompanhadasna cidade com nfase sobre a funo potica destes atos comunicativos.Em outras palavras, tratando de realar o que h de belo, engraado,triste ou divertido nestas msicas, o que h de artstico nestas mensagensafinal (Jakobson, 2010: 118-9).

    Para inferir o predomnio da funo potica sobre outrasfunes comunicativas4, basta atentar para um detalhe. Todo processo decomunicao arranja mensagens selecionando e combinandosignificantes, de modo que sejam satisfeitos dois eixos fundamentais:sinonmia/antonmia e contiguidade. Isto , a seleo de significantesescolhe equivalentes, semelhantes ou dessemelhantes, enquanto que acombinao com outros significantes constri sequncias. O que afuno potica faz projetar o princpio de equivalncia do eixo deseleo sbre o eixo de combinao. A equivalncia promovida condio de recurso constitutivo da sequncia (idem: 130).

    Desta forma, a sequncia de significantes, fundamental para aconstruo da mensagem, passa pelo processo de seleo para que ossignificantes combinem entre si formando novos sentidos. Pensandoespecificamente no rap, possvel perceber melhor a relevncia dissotudo, como exemplo, um trecho da msica Mun-R de Sobotage:

    Menina Leblon, vermelho batom,Foi vista com o Joe, malhando na praa,

    Sabot Cano, convoca no soma paz dos irmos de toda quebrada

    Sabotage, mano AnsioEu vejo diablico: confiro, analiso

    Um branco e um preto unido:respostas que calam o ridculo.

    Trata-se de uma msica muito conhecida, referncia obrigatriapara qualquer MC ou DJ. Um poema oral, como este, tem como suaqualidade principal a escolha de palavras e fonemas que combinam entre

    4 Com isso, quero recordar que a funo potica da comunicao uma entreoutras, a ver: referencial, emotiva, conativa, ftica e metalingustica. Ummesmo ato comunicativo pode apresentar mais de uma das funes, noentanto, possvel destacar as que se destacam encontrando o ponto dacomunicao enfatizado. Poder ser o remetente, o contexto, o receptor, ocdigo ou o contato entre remetente e receptor.. No caso da funo potica,o que se destaca no ato comunicativo a nfase sobre a mensagem(Jakobson, 2010).

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    si e o ritmo como recitado. Mesmo o leitor/ouvinte que no saibaquem so Menina Leblon, Joe, mano Ansio ou ainda desconheaa que se refere por Sabot Cano ficar impressionado com aquantidade de rimas rpidas e com o efeito provocado pela sobreposiode um verso a outro. As palavras Leblon, batom, Joe, somganham destaque em meio s outras, graas ao mesmo fonema querepetem combinados a outros, que mesmo diferindo, so pronunciadosem um ritmo homogneo. Portanto, uma das grandes preocupaes destadissertao est em recusar o pensamento de que a msica apenasexpressa ou reflete identidades culturais, sejam elas nacionais, tnicas,de classe ou de gnero. A msica e as demais artes so muito mais doque isso.

    A outra preocupao importante consiste em afastar-se do queSahlins definiu, de forma bem-humorada, como a nova encarnao dofuncionalismo na antropologia: a obsesso desenfreada por definirprticas como hegemnicas ou anti-hegemnicas (2013: 35-8).

    Seria o caminho mais simplista abordar o rap em Porto Alegrecom uma frmula deste tipo. Evidentemente, isso no significa que asrelaes com outros gneros musicais e mesmo entre os msicos nosejam atravessadas por poderes. Deve-se lembrar que no campo da arteexistem distines e hierarquias de gosto fundadas no somente emcapital econmico, como tambm em capitais simblicos (Bourdieu,1996). Com relao a isso, possvel afirmar que o rap no ocupa comregularidade a maior parte das casas de shows de Porto Alegre,tampouco est presente em currculos escolares ou acadmicos. Aquantidade de msicos que conseguem se profissionalizar pequena etalvez insignificante se comparada com outros gneros musicais. Eleest longe de ser considerado a msica que representa tipicamente aidentidade brasileira ou a identidade gacha.

    Sem dvidas, estes fatores so constituintes do campo damsica na cidade de Porto Alegre. O rap pode ser considerado umgnero perifrico e at mesmo reprimido pelo estado. A Batalha doMercado, principal evento acompanhado durante a pesquisa de campo,chegou a ser vtima de constrangedora abordagem policial. Segundorelato da Revista Bastio no Facebook, Batalha do Mercado () sofreuontem (28/07) sua primeira interveno policial. Sob a alegao de'estarem fazendo o trabalho deles', os policiais militares interromperamos duelos de rima e colocaram todos os presentes junto parede. Aps ocontratempo, a Batalha continuou5.

    5 https://www.facebook.com/revistabastiao/photos/a.537854212919269.1073741828.236406283064065/428438453860846/?type=1&permPage=1

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    Sendo assim, msicos e organizadores de eventos musicaisprecisam se utilizar de estratgias que permitam a ocupao do espaourbano. De modo geral, so negociaes. comum que aconteam emtroca de espaos em rdio e televiso tambm. Isso pode aconteceratravs da incorporao de elementos musicais de outros gneros ouainda atravs de acordos com partidos polticos. A fundao de umprograma de televiso, na emissora estatal local, voltado ao hip hop foi,por exemplo, resultado de um acordo obtido com a campanha polticaque veio a eleger o governador do estado em 1998 (Maffioletti, 2013:28-9).

    A preocupao desmedida em aplicar termos que definam asprticas enquanto atos de resistncia ou dominao diz pouco sobre asprticas em si, que deveriam ser o centro da discusso. O rap e tambmoutras formas artsticas, como a break dance e o grafite, tm aparecidode tantas maneiras e atravs de tantos msicos, danarinos e desenhistasem Porto Alegre que seria intil generaliz-lo dentro de um esquematerico deste tipo.

    Em vez disso, o que pertinente para o desenvolvimento destadissertao problematizar como reverberam as trocas lingusticas nocampo pesquisado, enfatizando, claro, que identidades e lnguasnacionais no so compartilhadas universalmente. Estas trocas articulamrelaes de poder, resistncia, dominao e negociao (Bourdieu, 2008:23-4). Por esta perspectiva, cada campo lingustico exige uma srie decompetncias comunicativas que autorizam ou censuram os locutores.

    A luz destas consideraes sobre as desigualdades lingusticas, possvel contextualizar o lugar do rap dentro da cidade de Porto Alegree as relaes que os msicos do gnero estabelecem com outrosmsicos, com a fora repressiva do estado, atravs de sua BrigadaMilitar, com os moradores dos bairros centrais e demais agentes quepossam contrastar (linguisticamente) com eles.

    No seria adequado ignorar a existncia destas desigualdadespolticas de um gnero discursivo para outro. Pelo contrrio, deve-seconsiderar que produzem prticas classificveis e sistemas declassificao de prticas, isto , meios que possam garantir distines degosto; e que so oriundas do contraste (Bourdieu, 2007: 162). Em outraspalavras, Lvi-Strauss (1980: 49-51) atribuiu a diversidade de culturas aproximao entre elas que provoca aumento ou diminuio dasdiferenas a partir do contato. No caso, os diacrticos que garantem aorganizao das diferenas no so somente musicais. Podem serlingusticos, visuais, principalmente pelo uso de determinadas

    (Acessado em 26/01/2015)

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    vestimentas, etc. possvel aprofundar mais ainda as relaes desiguais

    mediadas pelo acmulo de diferentes capitais. No interior de cadagnero musical, seguem existindo distines elaboradas a partir declassificaes objetivas. Decorre da a proposta geral desta dissertao:abordar o rap em sua pluralidade de performances em uma cidade comoPorto Alegre.

    Esta justificativa encontra suporte em uma onda de reportagenssobre o rap no Brasil em que o tema a sua transformao nos anosrecentes6. O principal argumento utilizado foi a existncia de umaclivagem que garante uma diviso entre os antigos MC's e os jovensMC's. A maior ressalva a ser feita a este tipo de anlise que elageneraliza duas geraes em torno de alguns artistas mais reconhecidos.Por fora da necessidade de separ-los em apenas duas categorias eestabiliz-los dentro delas, ignora a complexidade de quase 30 anos derap no pas. Segundo um destes textos, os novos artistas do rap no estopreocupados com militncia poltica, temtica nica para os maisantigos.

    Assim, o esforo realizado por esta pesquisa foi o de negardefinies simplistas e monofnicas. Em vez disso, proponho-me arealizar uma busca pelas diferenas e pelas diferentes narrativas. Paratanto, a pesquisa de campo precisava primeiramente fazer umlevantamento sobre os tipos de eventos musicais que existiam ouaconteceriam na cidade durante o ano de 2014. Naturalmente, seriaimpossvel que esse levantamento fosse onisciente em funo dotamanho da cidade, da arbitrariedade resultante das escolhas dopesquisador, da enorme quantidade de artistas de hip hop e do carterdialgico que possui este tipo de pesquisa. Por consequncia disso, spoderia se tornar uma espcie de recorte realizado em conjunto comalguns interlocutores que estiveram mais prximos a mim durante esteperodo.

    Em todo caso, foi possvel obter uma diversidade considervelcontando com uma riqueza de produes musicais. Os artistas que tive asorte de acompanhar durante este perodo possuem trajetrias variadas etm em comum o gosto pelo gnero musical em questo. As histrias,biografias, autobiografias, relatos e anedotas que me foram narradas sode todo tipo. Pude conhecer MC's quarentes, verdadeiros veteranos

    6 O principal exemplo deste debate o texto O rap saiu do gueto publicadopela Revista poca em abril de 2011. possvel acess-lo emhttp://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI224532-15220,00-O+RAP+SAIU+DO+GUETO.html (acessado em 27/01/2015)

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    do rap na cidade, e outros que ainda engatinham, participando doprimeiro duelo de rimas, preparando a gravao da primeira msica emestdio. A variedade tambm se apresentou em termos estticos: MC'sque flertam com outros gneros, como o rock, o reggae ou o samba.

    Por conta dessa preocupao terica, na anlise do rap, tive ocuidado de evitar generalizaes e definies estanques. Isto , em lugarde classificar artistas no interior de categorias procurei abordarespecificamente suas performances e os efeitos provocados por elas. Poroutro lado, interessei-me por compreender quais categorias soutilizadas por msicos e ouvintes para classificar as msicas e oseventos musicais. Dito de outro modo: sem desmascar-las enquantoalguma espcie de ideologia sobre o mundo, mas tomando-as a srio, emuma proposta que busque perceber atravs de que maneiras soconstrudas (Viveiros de Castro, 2002)7. No possvel esquecer queperformances no so expresses de identidades preexistentes, masprticas generativas e relacionais, ou seja, atos comunicativosdialgicos. O foco da pesquisa no pode estar no falseamento dacategoria rap gacho, por exemplo; mas sim nas performancesacompanhadas em campo e na potica do rap.

    Porm, antes de apresentar o modo como a pesquisa foirealizada e o contedo desta dissertao, farei algumas pontuaes quedevem ser consideradas em torno do conceito de potica para a leiturado restante do texto. Inicialmente, possvel afirm-lo como tilenquanto recusa ao modelo que ope real e ideal e faz do segundo termodesta relao refm do primeiro. Em outras palavras, um modeloanaltico que considera que s pode haver uma realidade e muitasformas de idealiz-la. O grande problema disso a reiterao dehierarquias entre o conhecimento ocidental, notadamente as cinciasmodernas, e os chamados conhecimentos nativos. A partir destaseparao entre real e ideal, caberia ao antroplogo ocupar uma posioprivilegiada para comparar pontos de vista sobre a mesma realidade. Jo estudo da prpria realidade ficaria a cargo de qumicos, fsicos,bilogos, entre outros (Ingold, 2000: 15). Assim se resolve a equao darazo universal, com cincias voltadas ao estudo da natureza e outrasvoltadas ao estudo da cultura. O importante manter a separao entre

    7 Levar a srio uma afirmao como 'os pecaris so humanos', nesse caso,consistiria em mostrar como certos humanos podem lev-la a srio, emesmo acreditar nela, sem que se mostrem, com isso, irracionais e,naturalmente, sem que os pecaris se mostrem, por isso, humanos. Salva-seo mundo: salvam-se os pecaris, salvam-se os nativos, e salva-se, sobretudo,o antroplogo (Viveiros de Castro, 2002: 134).

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    real e imaginado e afirmar a existncia de um nico conhecimento capazde descrever as coisas como elas realmente so. Nas palavras de Ingold:

    Whereas the biologist claims to study organicnature as it really is, the anthropologist studiesthe diverse ways in which the constituents of thenatural world figure in the imagined, or so-calledcognised worlds of cultural subjects (Ingold,2000: 14).

    Afirmar a separao entre real e ideal implica considerarpossvel que algum conhecimento seja capaz de apartar-se da realidadecom o fim de perceb-la sem interferncias culturais. Por outro lado,poderia ser mais enriquecedor aceitar a qualidade fabricvel da cultura,a criatividade, a improvisao e a experimentao sobre categorias jexistentes (Conquergood, 1989), alm da generatividade da realidadepresente nas prticas comunicativas (Bauman, 2010).

    Os usos mais banalizados dos termos criatividade, inovaoe inveno referem a prticas extraordinrias capazes de substituiralgo antigo e obsoleto por uma novidade; referem ainda ao ineditismo e originalidade. No entanto, Wagner (2010) faz a seguinte ressalva:mesmo os cenrios mais comuns e ordinrios so compostos por umentrelaamento de contextos. Estes contextos so, segundo o autor, detoda e qualquer espcie e, alm disso, produtos da experincia, atravsdo ato de relacionar diferentes elementos simblicos (idem: 77-8) Estascaractersticas fazem com que o contexto seja sempre uma espcie denovidade, ou melhor, que cada rearranjamento de contextos seja umaexperincia minimamente indita.

    A consequncia disso o carter de improviso cultural que asprticas comunicativas assumem. O mesmo valer para os termoscpia, imitao e repetio, considerando os aspectos citadosacima referentes aos contextos. Quanto a isso, Ingold e Hallam afirmamque

    Copying or imitation, we argue, is not the simple,mechanical process of replication that it is oftentaken to be, of running off duplicates from atemplate, but entails a complex and ongoingalignment of observation of the model with actionin the world. In this alignment lies the workof improvisation. The formal resemblancebetween the copy and the model is an

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    outcome of this process, not given in advance. Itis a horizon of attainment, to be judged inretrospect (Hallam & Ingold, 2007: 5).

    A repetio do ordinrio , neste sentido, a criao de umacpia sob um novo arranjo contextual, e, portanto, tambm possui certasingularidade, ao seu modo. Pensando no hip hop, esta dissertaoapresentar mais adiante alguns eventos musicais, entre eles a Batalhado Mercado. A realizao deste encontro, que um campeonato derimadores, acontece mensalmente ao ltimo sbado de cada ms. Quasetodas as edies do torneio so realizadas no mesmo local da cidade,com o mesmo regulamento e os mesmos organizadores. Os participantesse conhecem de longa data, em sua maioria, bem como pblico. Essa uma situao em que quase todos sabem a sequncia dosacontecimentos. Mesmo assim, toda vez que algum da plateia decidefazer uma piada em um intervalo entre um duelo e outro, sobre um MC,sobre um verso especfico, ou o que seja, est sujeito ao riscocomunicativo. Mesmo que essa pessoa do exemplo hipottico conhea aquase todos os outros presentes e saiba que o duelo est se encerrando,ainda assim caminha sobre um terreno parcialmente desconhecido, emfuno dos rearranjamentos, e se arrisca; podendo soar, aos demais,engraado ou inoportuno.

    preciso, portanto, refusar posturas que consideram quecomunicar o mesmo que transmitir mensagens sem perdas outransformaes de significados. As agruras do processo comunicativoso originadas pelos aspectos perceptivos e sensoriais que formam aexperincia. Aspectos que no podem ser transportados de um paraoutro, mas em vez disso, elicitados atravs de meios icnicos (Wagner,1991: 37). Wagner detalha esse processo:

    [Pain, pleasure, ecstasy, orgasm, melancholy] areperceptions locked into one's personal microcosm,never to be directly communicated. At best (butalso at worst), such subjective perceptions canonly be elicited in others through iconic means by bodying them forth in the form of verbal ornonverbal imagery, substituting a felt-meaning fora feeling, witch becomes an intended meaning inthe process. But the type of synthetic meaningelicited by a trope is likewise hermetically sealedwithin the personal microcosm, in that there cannever be any certaint as to the individualconstruing of it. It is the perenial uncertaint of

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    whether my green is the same as yours, 'or forthat matter, my Prince Hamlet (Wagner, 1991: 37-8).

    O importante salientar que o processo na verdade o deconstruo de imagens verbais e no-verbais que sero remontadas nasua recepo, de forma individual. a valorizao da experincia portoda a singularidade que a envolve, tomando a potica enquanto umaforma pela qual a percepo interna se projeta a si mesma (images itself)para si e para outros (Brady, 1991: 33).

    H dois planos distintos: as experincias sensoriais e asdiferentes formas de linguagem. Entre eles est uma espcie defaculdade mimtica, nos termos de Benjamin, uma habilidade imitativacapaz de colar um plano ao outro. O carter onomatopeico da linguagemfaz com que sons e imagens ambos sensveis produzam semelhanasextrassensveis, sempre originais e inditas (Benjamin, 1994: 110-1).

    No que diz respeito a esta pesquisa, as prticas musicais estarono centro do debate e sero abordadas a partir dos postuladosconsiderados acima. Isto significa dizer que no sero tratadas comoreflexo de identidades preexistentes, nem enquanto idealizaes darealidade e tampouco como cdigos a serem decodificados. Se, aoprincpio, reportei a existncia de uma categoria chamada rap gacho,interessa to somente tentar perceber e narrar como ela aparece e seatualiza nas performances musicais. O perodo de interlocuo com osmsicos foi exitoso para evidenciar a existncia de modalidadesdiferentes de rap que sero apresentadas durante o decorrer do texto. Porhora, antecipo que as descries se orientam a partir da distino entre orap improvisado e o rap memorizado. Mesmo que seja possvel contestaro conceito de improvisao, bem como o de cpia e repetio como fizquesto acima so categorias criadas por msicos e ouvintes do rap.

    Teoricamente, este um dos pontos basilares para estadissertao, isto , pensar as msicas no como as representaes deuma realidade anteriormente dada, mas como as prprias criadoras dasrealidades. Ao mesmo tempo, abordando as maneiras pelas quais soatualizadas em diferentes performances contextualizadas espacial etemporalmente.

    Voltando ao hip hop, significa dizer tambm que no h frmulaque garanta o sucesso de um MC perante uma audincia. Toda vez queestiver sobre um palco repetindo as mesmas msicas que se acostumou acantar por anos, ou em uma roda de freestyle, improvisando versos apartir de uma caracterstica fsica engraada de algum outro rimador,estar invariavelmente diante do risco que rimar.

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    I. DESCOBRINDO HIP HOP PELA CIDADEDizer que, h anos, nenhum grupo de rap gacho deixa as

    fronteiras do estado no significa ausncia. A afirmao impactante eeficaz ao distinguir duas pocas a partir de um divisor de guas. Emtodo caso, no quer dizer que haja pouca quantidade, qualidade evariedade de msicos do gnero.

    Pelo contrrio, j que basta uma rpida busca na internet paraobter informaes sobre festas e shows. ainda muito provvel quequalquer um, mesmo desavisado sobre estes eventos, esbarreeventualmente com algum deles, j que costumam ocupar locaispblicos com grande circulao de pessoas. Alm disso, eles possuemuma periodicidade irregular, podendo acontecer noite, tarde, durantefins de semana ou no.

    Mesmo antes de iniciar a pesquisa de campo, j tinha algumaideia sobre isso. Sendo assim, tracei como primeira meta conhecer deforma exploratria o ritmo destes eventos na parte da cidade que vim amorar, a regio central e seus arredores. Este processo foi realizado entreos meses de dezembro de 2013 e janeiro de 2014 e teve como maiorcontribuio estabelecer os primeiros dilogos com os msicos quemotivaram a escolha deste tema j que cheguei cidade como umcompleto desconhecido para eles. Os primeiros contatos foramrealizados pela internet e foram pouco frutferos. Foi somente nas visitasaos eventos que conheci os interlocutores que passaram a fazer parte dapesquisa.

    A incurso pela cidade de Porto Alegre se estendeu at o ms dejulho de 2014 e possibilitou a produo de materiais de pesquisa dediferentes tipos: registros audiovisuais de performances musicais; coletade diversos documentos como fotografias, entrevistas, cds, videoclipesmusicais, materiais de divulgao de shows, entre outros; e,principalmente, entrevistas informais registradas atravs de dirios decampo.

    A maior parte do tempo decorrido em pesquisa foi dispensado aparticipaes enquanto plateia de apresentaes musicais. Foram aomenos oito presenas em Batalhas de rima e mais uma dzia de showsem diferentes circunstncias (em palcos improvisados na rua, em praapblica, em clubes noturnos). Esses eventos sempre foram longos, tendouma durao varivel entre quatro e at mesmo doze horas. Alm destatarefa, empenhei-me em visitar alguns msicos em seus locais detrabalho ou moradia, conseguindo momentos mais adequados para

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    conversas longas e detalhadas. Foi assim que mantive dilogopermanente com ndio e Sandro, os personagens que mais participaramda elaborao desta narrativa antropolgica. Adiante, no primeirocaptulo, os dois sero melhor apresentados. Por fim, a terceira parte dotrabalho foi a pesquisa de documentos e performances musicaisdisponveis atravs de gravaes. Essa etapa exigiu a tarefa literal debusc-los em diferentes partes da cidade, e, tambm, em endereosonline, acessados via internet.

    O mapa de Porto Alegre que aparece no decorrer desta narrativa fruto de decises pessoais e tambm de um pouco de casualidade. Fazparte da pessoalidade inevitvel da etnografia, seja nas escolhas que fiz,preferindo conhecer um determinado evento em vez de outro, ou, namaior empatia desenvolvida com algum interlocutor especfico quetenha passado a exercer uma influncia grande sobre os caminhos que apesquisa tomou.

    Tendo atravessado a etapa exploratria que descrevi acima,estabeleci uma rotina que previa a presena recorrente em trs pontos dacidade: a Batalha do Mercado, um duelo de MC's de periodicidademensal, no centro da cidade; e as lojas Banca Clandestina e PontoFavela. O duelo de rima me permitia acompanhar este tipo de disputaentre rimadores, alm de me familiarizar com artistas locais. Por setratar de um evento rotineiro, havia a garantia de voltar a assisti-la. L,ainda podia conversar com os msicos e obter seus contatos, tendo achance de ouvir um pouco sobre suas trajetrias. Por sua vez, as lojasabriam diariamente e eram garantia de encontro com seus proprietrios os MC's ndio e Sandro, respectivamente e outros artistas.

    No obstante, tanto a Banca Clandestina quanto a Ponto Favela,alm de venderem roupas e cds, ainda tinham papel fundamental naproduo e organizao de festas e shows de rap. A participao nesteseventos poderia ser atravs de um mero apoio com a venda de ingressos,com o fornecimento de prmios e brindes ao evento, e, at mesmo, coma produo, escolha do lugar e dos msicos, etc. Assim, a importncia dendio e Sandro enorme, visto que orientaram de forma geral osalcances que a pesquisa pde alcanar, apresentando-me o trabalho deoutros cantores, narrando-me suas trajetrias e introduzindo-me maioria dos eventos que acompanhei.

    De modo geral, nada dessa pessoalidade chegou a alterar oobjetivo principal descrito na elaborao do projeto desta pesquisa:

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    realizar etnografia das performances do rap8 em Porto Alegre (RS)9.Pelo contrrio, estas parcerias intelectuais foram indispensveis, afinalmeu conhecimento preliminar sobre o rap na cidade era muito incipientee no havia nenhuma definio inicial sobre quais performances seriamobservadas. Portanto, a pesquisa de campo foi um processo constante dedescobertas musicais.

    O maior interesse foi encontrar diversidade no desenvolvimentode narrativas e talvez a principal contribuio desta dissertao esteja napossibilidade de compar-las, problematizando suas contextualizaes.A pesquisa foi conduzida de tal modo que pode ser enquadrada sob achamada etnografia da msica, visto que se preocupa com as relaesmusicais que so produzidas entre msicos e audincias em contextosespecficos (Seeger, 2008).

    A efetivao da relao entre msicos e ouvintes serconsiderada enquanto performances. Entre as implicaes do uso desteconceito, considero fundamental salientar que ele obriga que a anliseabandone o significado de uma determinada msica e passe para osignificado performatizado por ela (Cook, 2008; Finnegan, 2008;Madrid, 2009). Dissolve-se ainda outro dilema dos estudos sobremsica: o que priorizar, texto ou msica? A melhor resposta seriaafirmar que os dois no podem ser separados, e precisam ser tratados damaneira como se apresentam: indissociveis, enquanto elementosconstituintes da performance musical (Finnegan: 2008).

    As anlises das diferentes performances contidas neste trabalhoforam elaboradas a partir de descries detalhadas. Nelas, procureielencar a maioria dos estmulos sensoriais que me foram provocadosenquanto participante das performances, considerando a posio deespectador, ouvinte, assistente, que ocupei durante a pesquisa de campo.

    Estes eventos esto divididos no texto em duas categorias queos MC's usam para diferenciar tipos de canto do rap. Seriam os versosimprovisados e os versos memorizados. O primeiro tipo, pressupe queo pblico entenda que o rimador est cantando versos inditos, enquantoque a segunda alegoria compreende versos que passaram por algum

    8 quela poca, ainda escrevia o termo rap em itlico, como qualquerpalavra estrangeira lngua portuguesa. Tal escolha implica uma posio dedistncia e exterioridade. A pesquisa, no entanto, aproximou-me tanto destegnero musical, antes pouco familiar, que atualmente o que me causachoque e estranheza ver e escrever sua grafia em itlico. O mesmo valepara a palavra hip hop.

    9 O projeto foi apresentado banca de qualificao no dia 02/12/2013, sob ottulo Cs quer mesmo ser mais rua que nis?: Uma etnografia sobre asperformances no rap em Porto Alegre (RS).

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    processo de conservao (gravao, escritura ou memorizao) e sotambm chamados como msicas.

    At seria possvel questionar a pertinncia da separao, vistoque toda performance original, no sentido que sua contextualizao sempre indita de alguma maneira. No entanto, a contribuioantropolgica reside em experimentar o uso das categorias que osmsicos aplicam para ter clareza sobre as modalidades musicais no rap.

    Entre o rap improvisado, acompanhei duelos de rimadores erodas de freestyle10. Shows e gravao de cds e videoclipes so tratadosenquanto msicas memorizadas. Normalmente os msicos tm transitolivre entre essas diferentes modalidades, ainda que a maioria deles senotabilize ou desenvolva preferncia por apenas uma delas. Por setratarem de eventos diferentes que, em muitas oportunidades, acontecemem dias e locais diferentes, h tambm diferenas quanto ao tipo depblico e msicos que os frequentam.

    A relao entre pblico e msicos , por sinal, bastante relativade acordo com os diferentes tipos de performances. Em shows, h umademarcao mais clara, com o palco como um divisor. Alm disso, ovolume do som dos microfones e da msica abafam em boa parte osoutros sons provocados pela audincia. Os duelos de rimadores, por suavez, tm uma maior proximidade, visto que os cantores esto cercadosem uma roda formada pelo pblico. So as reaes sonoras na maiorparte das vezes que definem vencedor e derrotado, conformando umaparticipao imprescindvel para o resultado da disputa. J em rodas deimproviso talvez no haja pertinncia nesta distino, dado que h umnmero reduzido de participantes, que em geral so todos cantores. Cadarimador escuta os versos dos outros e espera por uma oportunidade paracomear a cantar logo em seguida. Por ltimo, pode-se dizer que aaudio de msicas atravs de cds e videoclipes um novo tipo deperformance, que tambm altera a relao entre msico e audincia,provocando um deslocamento espaotemporal entre um e outro.

    grande a quantidade de MC's e tambm de tipos deperformance. No foi difcil encontr-los ao longo da pesquisa. O textoexplorar as diferentes contextualizaes descobertas durante esteperodo inserido em campo, atravs de um trabalho de descriesdetalhadas. Pretende-se comparar estes tipos de performances para que

    10 Em traduo literal: estilo livre. Os msicos tambm usam o nome roda deimproviso e so os momentos em que dois ou mais MC's brincam deimprovisar versos. No h uma disputa explcita e o tema das letrasnormalmente livre, alm disso no h juzes, nem limites de tempo eparticipantes.

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    se vislumbre quais sentidos so colocados em jogo. O momento de umarinha, o momento do show, ou ainda o de uma composio exigem dosmsicos competncias e qualidades especficas para a satisfao dasexpectativas que eles carregam.

    II. RAP E HIP HOP ENQUANTO PROBLEMTICASACADMICAS

    A pertinncia das descries das performances musicais podeser enfatizada talvez pela pouca ateno dada a esse aspecto pelaliteratura existente sobre rap e hip hop no Brasil. Tal literatura abrangevrias pesquisas que comearam a aparecer nos anos 1990 e sededicaram a problemticas diversificadas. Tambm verdade que elasadvm de reas diferentes da academia: antropologia, sociologia,educao, comunicao, entre outras. Em poucos casos, o foco principalesteve nas msicas. A seguir, comento alguns dos textos que dialogamde formas diversas com esta dissertao.

    A coletnea, organizada por Micael Herschmann, Abalando osanos 90: Funk, Hip-Hop, globalizao, violncia e estilo cultural trouxeao pblico brasileiro um artigo de Tricia Rose que fundamentou umasrie de estudos sobre o gnero musical. Apresentando a histria daconstituio do rap nos Estados Unidos, a pesquisadora norte-americanaargumenta em favor do potencial de engajamento poltico latente namsica em situaes de pobreza e decadncia urbana atravs daconverso de tecnologias em prazer e poder (Rose, 1997: 192).

    H um certo alinhamento desta perspectiva com as pesquisasem antropologia urbana que voltavam seus interesses a temas comoviolncia e pobreza a partir do estudo de festas e bailes, como no casodo funk (Vianna, 1988; Herschmann, 1997, 2005). A proposta tericadecorrente destes trabalhos sugere questionar a noo de consumocultural alienado, ou, em outras palavras, pensar os participantes destasfestas como sujeitos ativos na construo de sentidos prprios em vez demeros consumidores passivos. Alm disso, considera a relao entreestilos de vida e poltica nos processos de produo e consumosimblico.

    Outras pesquisas aportaram outros referenciais tericos para adiscusso. Joo Batista Felix (2005) props o dilogo entre cultura epoltica em sua tese de doutorado Hip Hop: Cultura e poltica nocontexto paulistano. Neste trabalho, o pesquisador apresenta o quedefine como histria do hip hop nos Estados Unidos e no Brasil,conceituando-os; a importncia da msica rap para o hip hop; as posses,

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    ou ncleos de militncia e organizao do hip hop em So Paulo; asfestas, bailes e clubes black; e, principalmente, trajetrias polticas demilitantes, momentos onde houve a participao na polticainstitucional, alm de discutir o que seria poltica para estes grupos.

    Em Porto Alegre, Cssio Maffioletti (2013) apresentou adissertao de mestrado Retomando a nossa esquina: O movimentoHip Hop e suas formas de fazer poltica em Porto Alegre. Seu foco foidirecionado s atuaes de lideranas polticas do Movimento Hip Hopem determinados momentos histricos. O pesquisador descreve o quechama de sistema poltico do hip hop, apresentando a existncia dedistines fundadas em marcadores como gerao, espao e trajetriasocial. O texto tambm apresenta instncias de participao polticacomo as posses e fruns, alm dos processos eleitorais na militncia decampanhas, negociaes com partidos ou mesmo candidaturas de MC's.

    Adjair Alves (2009; 2011) preferiu uma abordagem a partir decategorias como linguagem, cotidiano e reconhecimento. Sua pesquisaO Rap uma guerra e eu sou gladiador: um estudo etnogrfico sobre asprticas sociais dos jovens hoppers e suas representaes sobreviolncia e criminalidade analisa linguagens sociais que insistem emdenunciar e acusar o hip hop por apologia criminalidade. Consideraque nestas situaes a historicidade negada aos jovens MC's. Seuesforo consiste em contextualiz-los nas posies que ocupam emdeterminada estrutura social (2009: 13) para ento problematizar suasconcepes sobre juventude e relaes de solidariedade. Ele aindaconsidera o inevitvel dissenso lingustico, afinal

    As linguagens com as quais cada um trata seumundo, ou como cada um ritualiza o cotidiano dafavela, so reveladores de caractersticassignificativas, que nos conduz a pensar,primeiramente, no ser possvel se falar doshoppers como uma homogeneidade e, em seguida,afirmar que se trata de realidades plurais, cadauma delas referenciando a percepo de umcontexto determinado (Alves, 2011: 34-5).

    Rose Satiko Hikiji e Carolina Caff (2009; 2010; 2011; 2013;2014) foram responsveis por um projeto que combinou o mapeamentode produes artsticas da Cidade Tiradentes (2009) e a produo edireo de uma etnografia audiovisual compartilhada. Os filmes L doLeste (2010) e A arte e a Rua (2011)11 so textos sobre a experincia de

    11 O livro L do Leste (2013) composto por um compilado de treze cenas,

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    periferia urbana no maior complexo de conjuntos de habitaespopulares da Amrica Latina. Os atores so MC's, grafiteiros e b-boysque falam e pensam suas vidas. Nos documentrios, eles apresentamseus dilemas, narram histrias e conversam sobre as transformaes naCidade Tiradentes. Em artigos posteriores, as pesquisadorasproblematizam estas produes artsticas como meios de mobilizaopoltica e as relaes entre arte e espao pblico (2014), alm defazerem a discusso sobre o uso de recursos audiovisuais em etnografias(2012).

    Com outras preocupaes acadmicas, Jaison Hinkel (2013)teve como proposta abordar as relaes entre apropriao musical dorap, cidade e reinveno do sujeito. A sua tese de doutorado Msica(s),Sujeito(s) e Cidade(s)... Dilogos: O rap em Blumenau consideroudados de sua pesquisa de campo no interior de Santa Catarina parapensar a mediao do rap na constituio de subjetividades dissonantesem relao ao discurso homogeneizador teuto-brasileiro.

    A mesma cidade de Blumenau ambientou a pesquisa de TatianeScoz (2011) que at construiu seus problemas de pesquisa partindo deinquietao semelhante: entender os sentidos da categoria espao paraos Mc's de uma cidade marcada pelo mito da fundao alem. Entendero que significa ter ou no ter espaos considerando seus contextos deemprego. A etnografia Blumenau tambm cidade do rap: Pensando'espao' a partir dos rappers em Blumenau prope uma cartografia dorap que perceba os usos, apropriaes, diferenciaes e identificaesdas elaboraes deste conceito por parte dos rappers.

    Em A caminhada longa... e o cho t liso: O movimento HipHop em Florianpolis e Lisboa, Angela Maria de Souza (2009)apresenta uma etnografia que reflete sobre a produo esttica e arelao com a cidade de rappers no Brasil e em Portugal. Utilizando apesquisa de campo e as msicas destes artistas, a antroploga pensa arelevncia da produo musical na determinao de fluxos destesrappers nas suas cidades; compara aspectos semelhantes e distintos nosdois pases; e problematiza as formas de representao da cidade para adefinio de estilos de rap. Em artigos, a pesquisadora discute osdeslocamentos do Movimento Hip Hop na cidade considerando fatorescomo tempo e espao para pensar nas formas de pertencimento (Souza,

    tal como uma pea de teatro. Nele consta muitas fotografias de autoriasvariadas. Ele ainda traz em dvd anexo os dois filmes junto de extras, comodebates nos lanamentos deles e videoclipes musicais de artistas locais.Todo este material foi disponibilizado em http://www.ladoleste.org/(Acessado em 15/10/2014).

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    2009). Alm disso, apresenta o estilo gospel de hip hop a partir dereflexo sobre conceitos como performance e potica (Montardo &Souza, 2011).

    Juciane Araldi (2004) apresentou ao Programa de Ps-Graduao em Msica Formao e prtica musical de DJs: Um estudomulticaso em Porto Alegre. Este texto traz um estudo sobre as tcnicasutilizados por DJ's na produo musical. Tambm aborda osprocedimentos de aprendizado destes msicos. Alm disso, apresentaentrevistas e trajetrias de DJ's que eventualmente eu cheguei aconhecer em festas ou shows durante meu trabalho de campo, sendoento mais uma fonte de informaes e dados a serem aproveitadosnesta pesquisa.

    Gustavo Marques de Souza (2013) tambm realizou pesquisasobre os aspectos musicais do rap em O som que vem das ruas: Culturahip hop e msica rap no duelo de MC's. Seu trabalho aborda a produopotica e sonora no rap fazendo uma correlao com a contextualizaosocial. Para esta etnografia ser relevante a anlise feita pelo autor sobrebatalhas de MC's e aspectos do freestyle. De maneira pontual, eledestrincha alguns duelos considerando os usos dos sons vocais, os textosproduzidos pelos MC's e as reaes do pblico. Ele ainda faz estemesmo tipo de anlise musical para alguns clssicos do rap com o fimde extrair caractersticas poticas destas composies vocais. Para isso,considera diferentes tcnicas de flow.

    Em Bohemian Rhapsody: Performance, ritual e relaes degnero no breaking, Joana Brauer Gonalves (2012) pensa a dana noHip Hop atravs dos conceitos de performance e gnero. Sua etnografiarealizada junto a b-boys e b-girls12 aborda os diferentes momentos deperformance13 da dana. A preocupao da pesquisadora est na anliseaprofundada dos aspectos comunicativos, considerando o break umalinguagem em ao do tipo no verbal:

    Assim, atravs dos gestos, dos passos, daindumentria, ou seja, da performance como umtodo do b-boy, que o danarino capaz no s de

    12 Estes termos designam os bailarinos de break dance. Esta dana associadaao hip hop e praticada muitas vezes no espao pblico como praas,caladas e esquinas. So comuns competies, no formato de batalhas,entre os danarinos. Assim como as rinhas de MC's h o componente doduelo e do desafio de responder com danas a uma provocao dooponente.

    13 Os momentos de prtica da dana podem ser em rodas de freestyle, empalcos ou em batalhas.

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    expressar o que est sentindo como de secomunicar com seu oponente. No s isso, masem um embate de bate-rebate, no qual umdanarino tem de responder ao que o outro diz,por meio dos gestos, ambos conseguem alcanarcomplexos profundos e dizer por atosperformticos o que antes era indizvel porpalavras (Gonalves, 2012: 124).

    Na base do muque da onda: Estudo etnogrfico deperformances entre Rappers da ALVO-Associao Cultural da ZonaNorte de Porto Alegre de Maria Andra Soares (2007) se detm naanlise da fala e do gestual de MC's. Sua proposta objetiva interpretar amsica e a dana enquanto projeto de agenciamento tnico e social apartir do vis da performance. Esta etnografia apresenta uma srie deanlises crticas sobre as falas e os usos da voz em diferentes contextos,como por exemplo entrevistas, momentos de ensaios e shows. H aindaum esboo das tcnicas corporais e repertrio de gestos durante asperformances de rappers. As anlises so pontuais e detalhadasdescrevendo a riqueza comunicativa destas circunstncias.

    III. RESUMO DO QUE H POR VIRAs pginas seguintes deste texto procuram dar conta de debater

    as msicas que descobri ao longo da pesquisa de campo, em face sproblemticas tericas apresentadas anteriormente. Inicialmente, noCaptulo 1, descrevo um pouco dos lugares mais centrais para apesquisa: so a Batalha do Mercado e as lojas Banca Clandestina ePonto Favela. Neste ponto, a proposta apresentar algumas pessoas queocupam estes espaos e a maneira como elas participam na produomusical. Para tanto, penso estes locais que conheci como parte de umacena musical do rap em Porto Alegre.

    A validade de pensar a partir destes conceitos est em situar aspessoas, as lojas, as festas, os shows e os demais eventos em umcontexto mais geral do hip hop. Alm disso, possibilita apresentar asformas desiguais pelas quais estas pessoas participam da cena musical.Por fim, em sua leitura possvel recriar a cidade desta narrativa, apartir da contextualizao de minha relao com os msicos e com oseventos assistidos.

    O Captulo 2 j introduz discusses mais pertinentes antropologia da msica e ao uso do conceito de performance para estetipo de pesquisa. Alm disso, procuro situar o rap enquanto um gnero

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    musical, sem a pretenso de defini-lo em um esquema simples de regras.Pelo contrrio, considerando sua flexibilidade. Ainda assim, possveldestacar a oralidade como uma de suas caractersticas bsicas. Nestesentido, ressalto a centralidade deste aspecto, considerando as propostasde Zumthor e Finnegan para uma abordagem da poesia oral.

    O Captulo 3, por sua vez, traz discusses a respeito do conceitode rap improvisado, utilizando-se de dois eventos acompanhados nacidade: a Batalha do Mercado e as rodas de freestyle. Neste trecho dotexto, as descries detalhadas dos cantos de improviso almejam trazempara a leitura a maior quantidade possvel de aspectos perceptveissensorialmente nos momentos de atualizao nas performances. vlidoressaltar que outros sentidos alm da audio dos versos soimprescindveis para a participao nestes eventos.

    Ao mesmo tempo em que a proposta do captulo procuraidentificar caractersticas dos raps improvisados, tambm objetivacompar-los entre si, abordando os modos como se relacionam asformas musicais com os contedos musicais. No caso, pensando aBatalha do Mercado enquanto uma festa que uma troca de ataquesentre rimadores em frente a um pblico, e o freestyle onde os temas doscantos so outros e a distino entre cantores e pblico pouco clara.

    Por fim, o Captulo 4 tem como mote as descries de msicasdo rap memorizado, que tem como principal trao a possibilidade de suaconservao atravs da escrita, da memria ou da gravao. Os casosanalisados so uma noite com diversos, dois cds de msicos diferentes euma sequncia de quatro videoclipes de um mesmo grupo musical. Estasperformances se notabilizam por caractersticas diferentes entre si, masqualquer uma delas se vale tambm de outros sentidos alm da audiopara a construo das narrativas musicais.

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    Captulo 1PEDAOS DE HIP HOP EM PORTO ALEGRE

    A maior parte do esforo exigido por esta etnografia foidestinado a descrever diferentes performances musicais do rap,buscando salientar suas peculiaridades formais quando comparadasentre si. Para isso, era preciso considerar toda classe de detalhes quefazem parte de suas contextualizaes. Porm, antes de lanar estasdescries, parece pertinente uma apresentao mais ampliada sobre apesquisa de campo em Porto Alegre e os interlocutores que apossibilitaram.

    Quanto ao mapeamento do rap na cidade, necessrio pontuarque no haver aqui uma espcie de catlogo musical que elenque todasas rinhas de MC's, estdios de gravao, festas e shows de rap, mesmoque este tipo de tarefa pudesse ter algum tipo de validade, ainda quefosse o da curiosidade. A questo que para o interesse especfico destapesquisa, isso seria invivel e pouco relevante. Tal abordagem

    Figura 2: Foto de satlite da regio metropolitana de Porto Alegre

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    demandaria outro tipo de uso do tempo e no permitiria a produo deuma anlise concentrada nas performances que, aqui, devem ser o focodo trabalho.

    Neste caso, a descrio desta cena musical parte do dilogodesenvolvido com inmeras pessoas a maioria delas MC's durante operodo de pesquisa de campo. Como ficar claro, este recorte se d porrazes logsticas e metodolgicas e produz efeitos sobre os resultados daetnografia. Explorar todos os cantos onde existe a produo da msicarap, em uma cidade de aproximadamente 3,5 milhes de habitantes,como o caso da regio metropolitana Porto Alegre, exigiria maistempo, alm da necessidade de uma equipe composta por maispesquisadores. Alm disso, entendo que a validade das pesquisasantropolgicas est no seu aspecto qualitativo. No haveria muitacontribuio aqui com a reunio de casos e exemplos sem o devidoacompanhamento terico.

    Para tanto, fez-se necessrio restringir o campo de pesquisa.Definir quais prticas musicais sero problematizadas mais adiante e porquais razes. Precisamente aqui, a prioridade foi para a diversidademusical, obtida atravs da participao assdua enquanto ouvinte naBatalha do Mercado e do aprendizado com os MC's e lojistas ndio eSandro.

    Este captulo que abre a dissertao se prope a descrever acena musical do rap na cidade a partir destes dilogos e situar asperformances que sero avaliadas posteriormente. Entendo que oconceito de cenas musicais vlido a partir do contexto de crtica spesquisas que cunharam termos como subculturas, culturas juvenis,tribos ou comunidades para o desenvolvimento terico do estudo damsica, das cidades ou da juventude (Bennett, 2004: 223-5).Diferentemente destas perspectivas rgidas que se constroem a partir dasdelimitaes de grupos em categorias como etnicidade, raa, gnero ouclasse, a proposta das cenas musicais inclui relaes mais abrangentes edinmicas marcadas por maior complexidade (idem: 225). Deixar dedefinir grupos como subculturas rejeita que eles sejam pensados comodesviantes em relao a uma suposta cultura estandardizada dasociedade (Bennett & Peterson, 2004: 3). Alm disso, interessante paradesnaturalizar a relao entre determinados grupos socais e gnerosmusicais, como se as msicas fossem simples expresso de suasidentidades.

    A utilizao do conceito de cena musical enquanto categoriaanaltica se volta para o contexto de produo, reproduo, audio ouconsumo da msica. Aproveitando as propostas de Howard Becker em

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    Art Worlds, deve-se considerar a criao artstica como um processosocial, econmico, coletivo, colaborativo e no um simples fruto dagenialidade individual. necessrio andar em direo a umesmiuamento da obra de arte incluindo os aspectos consideradospropriamente extratextuais (Becker, 1982).

    Nesse tipo de investigao, nada pode ser ignorado ouconsiderado irrelevante na obra de arte. O trabalho artstico visto comouma atividade coletiva como as relaes do mundo do trabalho. Sendoassim, uma das etapas da pesquisa conhecer e identificar quem so aspessoas e que tarefas elas desempenham nos mundos da arte, ou, no casodesta pesquisa, na cena musical (1982: 11-3).

    No hip hop, significa dizer que a msica no fruto apenas dotrabalho de MC's e DJ's, aqueles que so considerados os artistas destetipo de msica. A construo das performances envolve outras pessoasque contribuem de vrias maneiras. Um duelo de rimas, por exemplo,tem como centro os dois rimadores que se enfrentam em uma disputa.No entanto, para que ela acontea, preciso que outras pessoasparticipem como assistncia, alm de, pelo menos, um juiz comomediador do evento.

    Sem dvidas, h pontos interessantes a serem abordadosreferentes s configuraes do contexto que pesquisei. No caso, chama aateno como a maioria destas pessoas so, ou eventualmente foram,MC's. Os participantes da cena musical possuem como caractersticauma espcie de versatilidade. Uma mesma pessoa adquire com o passardo tempo experincia no desempenho de vrias tarefas. comumtambm que os produtores, promotores e divulgadores de festas sejampor vezes os prprios msicos.

    As pessoas que aparecem na cena possuem diferentes trajetriaspessoais em funo das oportunidades e escolhas que fizeram. Porconsequncia, suas participaes e contribuies cena musical sodiferentes. possvel pensar esta cena como um campo simblico, e,portanto, entender que h, nela, uma srie de diferenas e hierarquiasentre os atores (Bourdieu, 1989: 162)

    Em decorrncia disso, preciso perguntar-se sobre quem so aspessoas inseridas no campo, o que foi que elas j fizeram e o que elasesto autorizadas para fazer. Pensando na cena musical, ainda, deve-selembrar que h diferentes espaos que so ocupados por pessoasdiferentes. Por exemplo, as expectativas que existem sobre um show aovivo, uma gravao e uma disputa de improviso so diferentes, bemcomo as diversas competncias que as pessoas podem ter para participardestes momentos.

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    Nesse sentido, h outro pressuposto que no pode ser ignorado:as convenes. A distribuio de conhecimento entre os membros de umgrupo social permite o aprendizado de padres e regularidades para aleitura de uma obra de arte (Becker, 1982: 41). Os ouvintes de umamsica reconhecem sons e criam expectativas sobre eles a partir deexperincias prvias. Se pensarmos assim a audincia de uma batalha derimas, veremos que ela precisa encontrar sentido no que est sendorimado pelos MC's que duelam. Do mesmo modo, os msicos precisamfazer uma leitura do que ou no pertinente na batalha. Eles precisamentender que tipo de argumento ser aplaudido ou que tipo de entonaocausar empolgao. Nesse ato comunicativo, todos os envolvidos,(MC's e ouvintes) fazem avaliaes a partir de suas experinciaspassadas. Essas experincias consideram quem so as pessoas que estoali, qual o carisma dos rimadores que batalharam e o que eles disseramdurante o duelo, por exemplo.

    Nas performances que o trabalho elenca audies de shows aovivo, gravaes de udio e vdeo, rodas de improvisao e duelos derima uma srie incontvel de critrios para avaliao de cantores eDJ's considerada. Esses critrios no so elencados um a um porningum. Os juzos so feitos a todo momento e de forma espontneapelas pessoas que participam da cena musical. Em cada tipo deperformance h, naturalmente, competncias diferentes que devem sercontempladas.

    Esta sorte de detalhes faz com que hajam distinesconsiderveis na cena musical, com relao a tipologias desenvolvidaspara explicar as msicas. Assim, plausvel que algumas performancessejam bem-sucedidas em determinado contexto, mas no tenham amesma eficcia em outros. Do mesmo modo, alguns MC'sdesenvolvero mais afinidade com modalidades diferentes de canto.

    Com esta descrio da cena musical do hip hop, possvelsituar ao longo do texto as relaes entre os diferentes tipos de rap emPorto Alegre. Alm disso, aproximar-se destas performances, fazer partedestes eventos, identificar quem so as pessoas que participam destasprticas musicais e tentar comparar as linguagens que esto sendoutilizadas em cada tipo de performance.

    Com relao a esta questo das diferentes linguagens que soempregadas durante os atos comunicativos que so as performances, importante notar a relevncia que ganha o aspecto visual. As roupas soparte essencial do rap, de tal forma que as lojas de msica voltadas aeste gnero costumam vender tambm peas como bons, calas,camisetas e outros acessrios.

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    Saliento este aspecto justamente porque foram nestes lugares decomrcio musical que fui levado a conhecer a maioria das festas e showsque acompanhei durante a pesquisa. As lojas Banca Clandestina e PontoFavela tinham grande importncia no gerenciamento de alguns doseventos e tambm na distribuio de msicas pela cidade. Mesmo assim,suas histrias divergiam relativamente, chegando tambm a teremformas de participao diferentes na cena musical.

    J o principal evento que acompanhei, tendo conhecido muitosmsicos, foi a Batalha do Mercado, uma rinha de rimadores. Esta festase estabeleceu de tal maneira na cidade que chegava at mesmo aorganizar outras festas que no fossem necessariamente duelos entreMC's. Estes eventos eram muitas vezes shows e feiras comapresentaes ao longo do dia. A seguir, apresento detalhadamente estasdiferentes etapas da pesquisa, abordando a interlocuo desenvolvidacom os msicos, naquilo que constituiu a maior parte do tempodispensado ao trabalho de campo.

    I. BATALHA DO MERCADO

    As regras so simples: dois MC's se enfrentam em uma batalhade rimas que pode durar at trs rounds. Antes de tudo, eles decidem emuma disputa de par ou mpar quem comea e quem termina o duelo.Ento, o primeiro MC tem 40 segundos para improvisar, depois vem aresposta do outro MC, tambm em 40 segundos. Faz-se um pequeno

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    intervalo em que o apresentador da batalha pergunta ao pblico quem o vencedor do round. Ele pede barulho para o primeiro MC e depoispede barulho para o segundo. Se h dvida sobre quem recebeu maisbarulho, ele pergunta outra vez. No raramente, ele precisa perguntartrs ou quatro vezes para definir o vencedor.

    Aps o apresentador anotar em um caderno o resultado doprimeiro round, tem incio o prximo. A ordem se inverte e quemfinalizou o round recm-disputado inicia o seguinte. Novamente so 40segundos para cada MC. Ao fim das rimas, o apresentador volta a pedirao pblico que faa barulho para quem acredita que se saiu melhordurante este ltimo enfrentamento. Caso o mesmo MC venha a venceroutra vez, est encerrado o duelo. Do contrrio, fora-se o terceiro,isto , um round de desempate. Quem inicia as rimas aquele queencerrou o round anterior. So dados mais 40 segundos para cada. Otempo se encerra e o apresentador volta a perguntar ao pblico ovencedor do ltimo round e por consequncia do duelo.

    Sem um palco ou algo semelhante, os MC's trocam versos emfrente ao apresentador. Os demais se aglutinam formando um crculo emtorno deles. O pblico no assiste de forma polida e silenciosa, pelocontrrio. Entre uma rima e outra, se manifesta com risos ou expressesde surpresa e empolgao. Os risos podem ser tmidos e discretos ouento espalhafatosos. Podem ser provocados quando algum MC malsucedido no flow14 ou quando ridicularizado pelos versos de outro.Interjeies tambm so frequentes, sendo a principal delas uoou! emvrias intensidades, desde a manifestao isolada e discreta por parte dealguns at gritos eufricos da maioria. Isso depende da qualidade dosversos.

    Em razo da grande quantidade de pessoas no local, nemsempre possvel assistir e escutar com clareza o que est sendo dito. preciso ter pacincia e procurar um bom posicionamento em meio atanta gente. Quanto mais perto dos rimadores, mais fcil se tornaentender os versos e ver seus movimentos corporais e expresses faciais.

    A participao eufrica encorajada pela organizao daBatalha do Mercado. corriqueiro que o apresentador diga que opblico est silencioso e que ele no consegue escut-lo. Ele fala hojevocs esto com preguia, hein! ou frases semelhantes. Estesmomentos acontecem principalmente quando feita a escolha dovencedor, e se espera a participao de todos para esta definio.

    14 No rap, o flow o encaixe de versos em um ritmo especfico. um fatorpreponderante para a qualidade de um MC. Durante o Captulo III, detalhomelhor o uso deste conceito entre os MC's.

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    Aps o fim de cada round, o pblico costuma gritarreiteradamente Sangue! Sangue!. Normalmente o apresentador ouqualquer pessoa em meio ao pblico comea o grito que repetido emunssono pelos demais. Nestes entreatos, muitos fazem comentrios oupiadas relativas ao desempenho dos MC's. So momentos oportunospara uma conversa rpida antes que o apresentador pea barulho para ovencedor e os duelos recomecem.

    Estes enfrentamentos fazem parte de uma espcie de torneio.Antes do comeo de cada Batalha do Mercado, Aretha, a organizadorado evento, faz as inscries dos MC's que pretendem participar. Onmero de concorrentes varivel de acordo com a quantidade deinscritos, mas, de costume, so oito candidatos. Os rimadores sodistribudos aleatoriamente em duelos eliminatrios. A cada rodada, onmero de candidatos diminui de forma exponencial at que restemapenas dois que disputaro o ltimo duelo, a grande final da Batalha.

    Durante os duelos, os MC's precisam fazer seus versos acapella, isto , sem o acompanhamento de instrumentos musicais.Tambm incomum o uso de sons para marcao de um ritmo musical,incluindo o beatbox, tcnica que imita baterias atravs do uso de soprosbucais combinados com as mos. Pode haver ou no a utilizao demicrofones. Isto depende diretamente da disponibilidade destesaparelhos.

    A Batalha do Mercado acontece desde 2012, normalmente noltimo sbado de cada ms. marcada sempre ao lado do Largo GlnioPeres e em frente ao Terminal Parob, tendo o Mercado Pblico de PortoAlegre como a principal referncia. Nas imediaes ainda estPrefeitura, alm de outros prdios pblicos. Em direo ao outro lado,ficam locais de grande circulao de pedestres durante o dia, em razode importantes centros comerciais como o Cameldromo e os shoppingspopulares. A realizao do evento ao ar livre, independente decondies climticas como frio e chuva. Nos dias chuvosos, os duelosso levados para baixo de alguma marquise que proporcione abrigo dagua. Eventualmente, pode haver alguma edio comemorativa daBatalha em festas ou outros tipos de eventos ao ar livre.

    O horrio marcado costumeiramente s 22 horas, mas osduelos somente tm incio aproximadamente uma hora depois destehorrio. Durante esse tempo os participantes, sejam eles MC's ou apenasassistentes da Batalha, chegam ao local. Alm disso, so feitas asinscries dos cantores que devem duelar e a organizao das disputas.A durao total do evento flexvel j que depende da quantidade decompetidores, sem contar que, no raramente, acontecem competies

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    adjacentes como rinhas de break dance ou ento de beatbox sob asmesmas regras dos duelos de rima. Estes outros tipos de batalha podemser marcados com antecedncia ou no. Mais do que tudo, isso dependeda existncia destes outros artistas no momento destes eventos. Comotambm acontecem alguns intervalos, a Batalha do Mercado nuncaencerra antes da meia-noite.

    Nesse perodo que avana atravs da noite, estes jovens negrose brancos, homens e mulheres, aproveitam para escutar msica,conversar, tomar alguma bebida, namorar e, claro, assistir s rinhas.Antes do incio da Batalha, h sempre grupos conversando e fazendorodas de freestyle, que so tambm jogos de improvisao de versos, emum formato diferente das Batalhas.

    Isso costuma acontecer nos momentos anteriores e posteriores Batalha. A maioria dos jovens toma bebidas em garrafas plsticas,normalmente vinho ou misturas como cachaa e refrigerante. Elescostumam trazer as bebidas de suas casas ou de mercados, j que nesteshorrios relativamente caro conseguir comprar algo para beber nasimediaes do Mercado Pblico.

    No h dvidas de que a Batalha do Mercado tambm ummomento de encontro e que as rinhas de rima no so nico atrativo.Entretanto, algumas vezes estes outros momentos que fazem parte destafesta podem provocar algum desconforto aos MC's que cantam ou aopblico que tenta escutar os versos. Como o contingente de pessoas grande, nem todos conseguem ficar perto o bastante para ouvir osrimadores. Muitos que vo Batalha ficam no seu entorno, aproveitandoo momento com amigos. Disso decorre um barulho que por vezes chegaa atrapalhar durante os duelos. O apresentador e o pblico precisam comfrequncia pedir silncio e respeito aos MC's que batalham.

    Nas noites de Batalha do Mercado, ela , sem dvidas, aprincipal responsvel pelo fluxo de pessoas na regio. Ainda que oCentro Histrico tenha um movimento muito grande de pessoas duranteo dia, pela parte da noite praticamente deserto e a grande maioria daspessoas que chegam ao Largo Glnio Peres esto a caminho da Batalha.Mesmo que haja muitas bancas que sirvam comidas e lanches, apenasduas permanecem abertas at a madrugada. Alm disso, algumas vezescirculam por ali vendedores ambulantes de cerveja (e quento nos diasfrios), espetinhos e cachorro quente. Ainda no Largo, h um restaurantede preos altos que por volta da meia-noite fecha as portas. Nosarredores, h uma grande quantidade de casas noturnas onde o funk aprincipal msica. Estas boates so chamadas pejorativamente de

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    inferninhos por parte de alguns meios de comunicao15 e tambm depolticos16. Alm disso, so permanentes os conflitos entre estesestabelecimentos e autoridades como a Secretaria Municipal daProduo, Indstria e Comrcio (SMIC) e a Brigada Militar. Acriminalidade frequentemente alegada como motivo para fechamentodestas casas noturnas17. De todo modo, o principal motivo alegado paraa realizao da Batalha em frente ao Mercado Pblico a maiorfacilidade de mobilidade para chegar ou para ir embora. Alm de existiruma estao de nibus justamente atrs do local onde ocorre o evento, a

    15 O jornal Dirio Gacho noticia dia 17/02/2014 que em dois meses, quatropessoas j foram assassinadas nos inferninhos do Centro de Porto Alegrehttp://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2014/02/em-dois-meses-quatro-pessoas-ja-foram-assassinadas-nos-inferninhos-do-centro-de-porto-alegre-4421836.html (Acessado em 23/09/2014) A publicao afirma:Ainda no se passaram dois meses em 2014 e quatro pessoas j foramassassinadas na regio dos inferninhos, no Centro. O problema s cresceunos ltimos 20 anos. Se de um lado as boates so oficialmente regulares nopapel, de outro, autoridades de segurana denunciam o descontrole da rea.Moradores e familiares das vtimas, por enquanto, s esperam umasoluo. A reportagem ainda narra o ltimo episdio de fim trgico eprossegue Se perguntar a quem mora nas proximidades da Rua MarechalFloriano Peixoto (entre a Avenida Salgado Filho e a Rua General Vitorino)qual o problema dos inferninhos, a lista longa. Vai desde o barulho, quej forou muitos a abandonarem a regio, passando pela sujeira, presenaconstante do trfico e tiroteios. A soluo unssona: fech-los.No dia 01/07/2014, a notcia Morte na sada de inferninho reacende oproblema da insegurana no Centro de Porto Alegrehttp://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2014/07/morte-na-saida-de-inferninho-reacende-o-problema-da-inseguranca-no-centro-de-porto-alegre-4540157.html (Acessado em 23/09/2014). O texto diz queReabertos por liminares judiciais desde maro, a regio dos inferninhos noCentro voltou da ser palco de um crime violento na madrugada de ontem.De acordo com a Brigada Militar, o adolescente () reagiu a tiros a umaabordagem na Rua General Vitorino e foi morto com dois disparos dadospor um PM..O jornal insiste em ligao com as casas noturnas e afirma: Desde ofechamento de quatro inferninhos na Rua Marechal Floriano Peixoto pelaSmic () iniciou-se uma queda de brao judicial entre a prefeitura e osproprietrios dos estabelecimentos. () Conforme levantamento do DirioGacho, desde o comeo do ano passado, 11 pessoas j foram assassinadasno Centro, em crimes relacionados aos inferninhos. Para finalizar faz umlevantamento dos casos de homicdios no Centro.Nesta breve nota do dia 02/09/2014, o mesmo Dirio Gacho publica amanchete Quatro so presos armados prximos aos inferninhos no Centro

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    poucos metros h, ainda, uma estao do Trensurb, a linha frrea queliga alguns dos municpios da regio metropolitana a Porto Alegre. Defato, pouqussimos participantes dos duelos moram nos bairros centrais.Quase todos eles vm de outros bairros e mesmo municpios.

    II. BANCA CLANDESTINACriada no decorrer do ano de 2013, a Banca Clandestina se

    localiza na parte ocidental do Centro Histrico de Porto Alegre, estandoa aproximadamente 800 metros de distncia da orla do rio Guaba emdireo ao oeste. Este ponto da cidade no lembra em nada as ruasmovimentadas e aglutinadas de gente da parte comercial do centro. Lno h sequer o fluxo intenso de carros e nibus. As ruas que descem emdireo ao rio so compostas por casas e edifcios residenciais. Hpouqussimos estabelecimentos comerciais, sendo que a maioria delesso minimercados, restaurantes e padarias.

    O espao fsico da Banca Clandestina uma casa com cincopeas. O MC ndio, ou Dioin Jpa, como tambm conhecido, foi oprincipal idealizador e trabalhador deste projeto que ele mesmo definiu

    de Porto Alegrehttp://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2014/09/quatro-sao-presos-armados-proximo-aos-inferninhos-no-centro-de-porto-alegre-4589016.html (Acessado em 23/09/2014).

    16 Neste caso, a assessoria de imprensa de um vereador noticia acomemorao do fechamento de inferninho no Centrohttp://www2.camarapoa.rs.gov.br/default.php?reg=16457&p_secao=246&di=2012-02-13 (Acessado em 23/09/2014). Anota afirma que Esse, no entanto, no o nico problema nessa regio. Arua Jernimo Coelho uma verdadeira concentrao de inferninhos. Nonmero 363, de acordo com o alvar do local, deveria funcionar umbar/caf/loja de bebidas. Porm funcionava como casa noturna, com onome de Casaro Vipclass. Alm do desacordo, no havia alvar do corpode bombeiros, licena ambiental e carta de habitao.Traz ainda no corpo do texto a declarao do vereador: 'Aquilo l era umazoeira, ningum dormia mais, o local no tinha acstica, alm das brigas ebadernas que aconteciam na rua'.

    17 Este outro jornal, um pouco menos sensacionalista, traz a sugesto daBrigada Militar: Audincia pblica sugere antecipao do fechamento decasas noturnas no centro de Porto Alegre: Medida defendida pela BrigadaMilitar tem como fim diminuio da criminalidade na regiohttp://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2013/07/audiencia-publica-sugere-antecipacao-do-fechamento-de-casas-noturnas-no-centro-de-porto-alegre-4205675.html (Acessado em 23/09/2014).

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    como a primeira rap shop do Brasil. Uma loja totalmente voltada aohip hop e qualquer tipo de produto que possa ter relao com o gneromusical. Ali se comercializam vestimentas e acessrios de marcasdirecionadas ao pblico do rap, cds de rap e beats18 prontas para agravao. A loja ainda conta com estdios musical e de tatuagem e, almdisso, faz trabalhos de organizao e promoo de shows de rap.

    Alm do MC ndio, trabalham l mais trs pessoas incumbidasde tarefas mais especficas: um tatuador, um produtor musical e umprodutor cultural. Estes trs realizam suas atribuies de formaespecializada. O produtor musical, conhecido por Drow, produz as beatsa serem vendidas por diferentes valores (as mais baratas custam emtorno de cem reais) ou ento se rene com os MC's interessados nagravao de um cd. Drow concluiu recentemente um cursoprofissionalizante em produo musical. Alm dele, h o Long querealiza contatos e agenda da Banca Clandestina e de artistas quetrabalham ou que venham a trabalhar com a loja.

    Durante o perodo da pesquisa, a loja ainda buscava seconsolidar e passava por altos e baixos. O MC ndio no tinha nenhumaexperincia semelhante a esta quando decidiu iniciar o projeto. Naverdade, ele havia chegado h pouco tempo ao Rio Grande do Sul vindodo Rio de Janeiro. Na capital fluminense, ele se torn