sorel

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Alguns pontos sobre o mito em Sorel, trechos interessantes: Reflexões sobre a Violência, Introdução: Carta a Daniel Halévy. “Ao longo desses estudos constatei algo que me parecia tão simples que eu acreditara não dever insistir muito: os homens que participam dos grandes movimentos sociais representam sua ação imediata sob a forma de imagens de batalhas que asseguram o triunfo de uma causa. Propus chamar de mitos essas construções, cujo conhecimento é tão importante para o historiador: a greve geral dos sindicatos e a revolução catastrófica de Marx são mitos. Dei como exemplos notáveis de mitos os que foram construídos pelo cristianismo primitivo, pela Reforma, pela Revolução francesa, pelos mazzianos; procurei mostrar que não se deve analisar tais sistemas de imagens como se decompõe uma coisa em seus elementos, que é preciso toma-los em bloco como forças históricas e, sobretudo, não comparar os fatos consumados com as representações aceitas antes da ação.” “Eu poderia ter dado outro exemplo que é, talvez, ainda mais marcante: os católicos jamais se desencorajaram em meios às provas mais duras, porque concebiam a história da Igreja como uma série de batalhas travadas entre Satanás e a hierarquia sustentada por Cristo; toda dificuldade nova que surge é um episódio dessa guerra e deve levar, finalmente, à vitória do catolicismo.” (p. 41, Reflexões sobre a violência) “Ao empregar o termo mito, eu pensava ter feito um feliz achado, porque recusava assim toda discussão com as pessoas que querem submeter a greve geral a uma crítica de detalhe e que acumulam objeções contra sua possibilidade prática. Parece que tive, ao contrário, uma ideia bastante ruim, já que uns me dizem que os mitos convêm apenas às sociedades Primitivas, enquanto outros imaginam que eu quero dar como motores do mundo moderno sonhos análogos aos que Renan julgava úteis para substituir a religião. Foram ainda mais longe e afirmaram que minha teoria dos mitos serviriam um argumento de advogado, uma falsa tradução das verdadeiras opiniões dos revolucionários, um sofisma intelectual.” (p. 42) Questão da greve geral:

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Alguns pontos sobre o mito em Sorel, trechos interessantes:Reflexes sobre a Violncia, Introduo: Carta a Daniel Halvy.Ao longo desses estudos constatei algo que me parecia to simples que eu acreditara no dever insistir muito: os homens que participam dos grandes movimentos sociais representam sua ao imediata sob a forma de imagens de batalhas que asseguram o triunfo de uma causa. Propus chamar de mitos essas construes, cujo conhecimento to importante para o historiador: a greve geral dos sindicatos e a revoluo catastrfica de Marx so mitos. Dei como exemplos notveis de mitos os que foram construdos pelo cristianismo primitivo, pela Reforma, pela Revoluo francesa, pelos mazzianos; procurei mostrar que no se deve analisar tais sistemas de imagens como se decompe uma coisa em seus elementos, que preciso toma-los em bloco como foras histricas e, sobretudo, no comparar os fatos consumados com as representaes aceitas antes da ao.

Eu poderia ter dado outro exemplo que , talvez, ainda mais marcante: os catlicos jamais se desencorajaram em meios s provas mais duras, porque concebiam a histria da Igreja como uma srie de batalhas travadas entre Satans e a hierarquia sustentada por Cristo; toda dificuldade nova que surge um episdio dessa guerra e deve levar, finalmente, vitria do catolicismo. (p. 41, Reflexes sobre a violncia)

Ao empregar o termo mito, eu pensava ter feito um feliz achado, porque recusava assim toda discusso com as pessoas que querem submeter a greve geral a uma crtica de detalhe e que acumulam objees contra sua possibilidade prtica. Parece que tive, ao contrrio, uma ideia bastante ruim, j que uns me dizem que os mitos convm apenas s sociedades Primitivas, enquanto outros imaginam que eu quero dar como motores do mundo moderno sonhos anlogos aos que Renan julgava teis para substituir a religio. Foram ainda mais longe e afirmaram que minha teoria dos mitos serviriam um argumento de advogado, uma falsa traduo das verdadeiras opinies dos revolucionrios, um sofisma intelectual. (p. 42)

Questo da greve geral:

Pode-se falar indefinidamente de revoltas sem provocar jamais um movimento revolucionrio, enquanto no houver mitos aceitos pelas massas. isso que d uma importncia to grande greve geral e o que a torna to odiosa aos socialistas que tm medo de uma revoluo. Para consegui-lo, procuram ridicularizar a ideia de greve geral, a nica capaz de ter um valor motor. Um dos grandes recursos que empregam consiste em apresent-la como uma utopia, o que lhes bastante fcil, pois raramente existiram mitos perfeitamente puros de toda mistura utpica.

Relao entre mito e utopia: Os mitos revolucionrios atuais ou quase puros; permitem compreender a atividade, os sentimentos e as ideias das massas populares que se preparam para entrar numa luta decisiva; no so descries de coisas, mas expresses de vontades. A utopia, ao contrrio, o produto de um trabalho intelectual; obra de tericos que, aps terem observado e discutidos os fatos, buscam estabelecer um modelo a que se possam comparar as sociedades existentes para avaliar o bem e o mal que encerram; uma composio de instituies imaginrias, mas que mantm com as instituies reais analogias bastante grandes para que o jurista possa pensar sobre elas; uma construo demonstrvel, de que alguns pedaos foram talhados de maneira a poderem passar (mediante certos ajustamentos) numa legislao futura. Enquanto nossos mitos atuais conduzem os homens a se preparem para um combate destinado a destru o que existe, a utopia sempre teve por efeito dirigir os espritos para reformas que podero ser efetuadas fragmentando o sistema. No de surpreender, portanto, que tantos utopistas puderam tornar-se homens de Estado hbeis quando adquiriram uma maior experincia da vida poltica. Um mito no poderia ser refutado, pois no fundo idntico s convices de um grupo, expresso dessas convices em linguagem de movimento, sendo portanto indecomponvel em partes que possam ser aplicadas num plano de descries histricas. A utopia, ao contrrio, pode ser discutida, como toda constituio social. Podem-se comparar os movimentos automticos que ela supe com aqueles constatados ao longo da histria e, assim, apreciar sua verossimilhana. Pode-se refut-la demonstrando que a economia sobre a qual fazem repousar incompatvel com as necessidades da produo atual. (p. 50)

A Greve Proletria 137 173.

No entanto no saberamos agir sem sair do presente, sem pensar nesse futuro que parece condenado a escapar sempre nossa razo. A experincia nos mostra que construes de um futuro indeterminado no tempo podem ter uma grande eficcia e muito poucos inconvenientes, quando so de uma certa natureza. Isso ocorre quando se trata de mitos nos quais se encontram as tendncias mais fortes de um povo, de um partido ou de uma classe, tendncias que se apresentam ao esprito com a insistncia de instintos de todas as circunstncias da vida, e que do um aspecto de plena realidade a esperana de ao prxima sobre as quais se funda a reforma da vontade. Sabemos, alis, que esses mitos sociais no impedem em absoluto o homem de saber tirar proveito de todas as observaes que faz ao longo de sua vida e que no so obstculos a que ele cumpra suas obrigaes normais. (p. 143)

Importa muito pouco, portanto, saber o que os mitos contm em termos de detalhes destinados a aparecer realmente no plano da histria futura. Eles no so almanaques astrolgicos. Pode inclusive acontecer que nada do que eles contenham de produza como aconteceu em relao catstrofe esperada pelos primeiros cristos. Na vida corrente, acaso no estamos habituados a reconhecer que a realidade difere muito das ideias que dela fizramos antes de agir? E isso no nos impede de continuar a tomar decises. Os psiclogos dizem que h heterogeneidade entre os fins realizados e os fins dados. A menor experincia da vida nos revela essa lei, que Spencer transportou para a natureza, para da tirar sua teoria da multiplicao dos efeitos. (p. 145)

Devemos julgar os mitos como meios de agir sobre o pensamento. Toda discusso sobre a maneira de aplica-los materialmente no curso da histria desprovida de sentido. apenas o conjunto do mito que importa; suas partes no oferecem interesse seno pelo relevo que do ideia contida na construo. Portanto no convm pensar nos incidentes que podem se produzir ao longo da guerra social e nos conflitos decisivos capazes de dar a vitria ao proletariado. Ainda que os revolucionrios se enganem completamente, pintando um quadro fantasia da greve geral, esse quadro pode ser, ao longo da preparao para a revoluo, um elemento de fora de primeira ordem, se admitir, de maneira perfeita, todas as aspiraes do socialismo e se der ao conjunto dos pensamentos revolucionrios uma preciso e uma rigidez que outras maneiras de pensar no poderiam lhes ter fornecido. (p. 145)

Por intermdio deles, sabemos que a greve geral exatamente o que afirmei: o mito no qual o socialismo est contido por inteiro, ou seja, uma organizao de imagens capazes de evocar instintivamente todos os sentimentos que correspondem s diversas manifestaes da guerra travada pelo socialismo contra a sociedade moderna. As greves engendraram no proletariado os sentimentos mais nobres, profundos e motivadores que ele possui. A greve geral agrupa todos esses sentimentos numa imagem de conjunto e, por sua aproximao, confere a cada um deles seu mximo de intensidade. Recorrendo a lembranas pungentes de conflitos particulares, d um colorido intenso a todos os detalhes da composio apresentada conscincia. Obtemos, assim, essa intuio do socialismo que a linguagem no podia oferecer de maneira perfeitamente clara e a obtemos num conjunto percebido instantaneamente. (p. 146)