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Television Style Jeremy G. Butler New York and Londen:Routledge, Taylor & Francis Group © 2010 Jeremy Butler Library of Congress Cataloging in Publication Data Butler, Jeremy G., 1954- Television Style/ Jeremy G. Butler. p.cm. Includes bibliographical references and index. 1. Television-Aesthetics. I. Title. PN1992.55.B88 2009 791.45-dc22

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Television Style

Jeremy G. Butler

New York and Londen:Routledge, Taylor & Francis Group © 2010 Jeremy Butler Library of Congress Cataloging in Publication Data Butler, Jeremy G., 1954- Television Style/ Jeremy G. Butler. p.cm. Includes bibliographical references and index. 1. Television-Aesthetics. I. Title. PN1992.55.B88 2009 791.45-dc22

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Introdução Ousamos olhar atentamente para a televisão?

A televisão é um parente do automóvel e do avião: é um meio de transporte cultural. Sem dúvida, é um mero instrumento de transmissão, que não oferece novos meios para a interpretação artística da realidade - como o rádio e o cinema fizeram.

(Rudolf Arnheim, 1935). Vários fatores militaram contra o estudo do estilo na televisão. Rudolf Arnheim rejeitou e descartou o potencial artístico da televisão dez anos antes dela existir como um meio de massa viável. Dentro de sua rejeição está implícita uma negação do estilo televisivo. Para Arnheim e outros teóricos do cinema – notadamente, Lev Kuleshov e Sergei Eisenstein – foi através de uma aplicação padronizada de técnicas do meio que verdadeiros artistas interpretaram a realidade. O filme como arte foi assim estabelecido em termos de como os artistas do cinema transformaram a realidade através do estilo, como as imagens cinematográficas eram diferenciadas da realidade. O estilo era supremo; ele transformava o cinema em arte. Esses teóricos sentiram que essa transformação era essencial para elevar um dispositivo de gravação mecânica o qual que Alexandre Astruc mais tarde chamou de “la caméra stylo”, a câmara como estilo, um dispositivo capaz de traduzir a realidade em forma estética. A câmera cinematográfica não era um implemento artístico até ela ser elevada para além de sua função básica de gravação. Do mesmo modo, a câmera televisiva nunca poderia ser um instrumento artístico porque, para Arnheim, era impossível para ela ir além de sua função de transmissão. Um livro inteiro dedicado ao estilo televisivo seria incompreensível para ele. Nós poderíamos hoje zombar da presunção míope de Arnheim segundo a qual a televisão nunca poderia tornar-se artística como o cinema (ou rádio!), mas sua caracterização da televisão como transmissão persiste nos estudos contemporâneos do meio e

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contribui para a escassez de análises do estilo televisivo. Quando os autores discutem o caráter essencial do “ao vivo” ou a imediaticidade da televisão e sua carência do “photo effect” de Roland Barthes, eles partem da mesma presunção de Arnheim, de que a televisão é definida fundamentalmente pela sua capacidade de transmitir os eventos que ocorrem em simultâneo ao tempo de assistência. A mesma presunção alimentou a crítica jornalística do início da televisão na década de 1950, quando o expoente máximo da televisão de arte era visto como sendo a transmissão ao vivo de peças respeitadas. A “arte” dessas produções não está no meio televisivo em si, mas na peça que estava sendo transmitida. O único aspecto do estilo televisivo que era enfatizado tinha uma dimensão negativa – apontavam-se os atributos da imagem pequena, de alto contraste em preto e branco, além de monofônica. Na teoria fílmica clássica, as diferenças entre a percepção humana da realidade e a representação da realidade na tela são interpretadas como oportunidades artísticas. Diz-se, por exemplo, que cinematografia em preto-e-branco é para permitir ao artista enfatizar os elementos composicionais, eliminando a tonalidade da cor. Reivindicações semelhantes não foram feitas para limitações da televisão na década de 1950. O conceito de televisão como transmissão teve outros impactos no estudo do estilo. De fato, ele definiu várias abordagens empíricas do meio. Os etnógrafos dos estudos culturais preferem examinar o receptáculo de transmissão e não a transmissão em si. Eu estou super-simplificando, mas a ênfase empírica no receptáculo, e não nos textos, significa que os aspectos estilísticos do texto são de menor interesse do que o uso do receptáculo. Os pesquisadores dos estudos culturais, por exemplo, examinaram as respostas dos telespectadores às soap operas através das falas dos fãs do gênero e dos materiais que eles (os telespectadores) escreveram sobre os programas. O que mais interessa aos pesquisadores é saber como os telespectadores entendem os personagens e os relacionam às suas próprias vidas e não como eles se sentem em relação aos atributos estilísticos tais como a edição em plano contra-plano ou um zoom-in na conclusão de uma cena. Contudo, nem todos os impedimentos para a análise estilística podem ser atribuídos à origem da transmissão em som-imagem da televisão. A autoria, tomada como noções românticas do artista, vê

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o estilo como uma manifestação da "visão" do indivíduo singular. Quando François Truffaut e seus colegas dos Cahiers du Cinéma lançaram a teoria do autor em meados dos anos de 1950, eles nunca pensaram em revelar autores dentro da indústria da televisão, porque o meio era visto como esteticamente atrofiado e um produto industrial – mais ainda do que os produtos do sistema estúdio do cinema de Hollywood. Em 1953, o ano anterior ao do manifesto da autoria de Truffaut, André Bazin previu que “a imagem da televisão irá sempre manter a sua legibilidade medíocre”. Como é possível aspirar a arte do cinema? Além disso, Truffaut et al. eram eles mesmos aspirantes a diretores e por isso olharam para a assinatura do autor no aspecto cinematográfico que os diretores controlam: principalmente elementos dos estilo visual. Em televisão, antes como agora, raramente um diretor controla o estilo visual de um programa. No curso de uma temporada de um programa 10 ou 20 diretores podem responder por ele. É mais provável que o autor de um programa televisivo seja um produtor e é mais provável que o produtor seja um roteirista do que um diretor. Assim, os diretores autorais (auteurists) têm sido frustrados em suas tentativas limitadas de encontrar autores na televisão e, em sua visão, não pode haver um estilo sem um autor.

Juntos esses fatores explicam porque não houve uma compreensão da estilística ou da poética televisiva em pé de igualdade com o Poetics of cinema de David Bordwell nem uma história da poética do mesmo escopo de The Classical Hollywood Cinema: film style and mode of production to 1960. Esses fatores sugerem também o porquê de as recentes safras de antologias de estudos de televisão, e demais textos introdutórios, darem pouca atenção ao estilo. O presente volume contribui para uma poética da televisão, embora num nível muito mais modesto do que o do trabalho de Bordwell. Ele reúne capítulos que contribuem para uma tendência crítica que foi negligenciada dentro dos estudos de televisão. Eu não tenho, contudo, a intenção de superestimar sua singularidade. Apesar do preconceito de longa data contra o estilo televisivo, apesar de alguns setores negarem que ele exista ou acreditarem que a sua análise é frívola, tem havido algumas análises substantivas do estilo televisivo sobre o qual este livro se baseia fortemente. Algumas das mais úteis têm sido influenciadas pelos trabalhos pertinentes em estudos de cinema, tais como os de Bordwell. Para começar uma

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consideração da estilística televisiva, portanto, nós devemos, primeiro, examinar alguns proeminentes esforços antecedentes.

Estilo e estudos de mídia

Estilo em cinema importa porque o que as pessoas chamam de conteúdo vêm até nós através da utilização padronizada de técnicas do meio ... Estilo é a textura tangível de um filme, a superfície perceptual que nós encontramos enquanto vemos e ouvimos, e esta superfície é o nosso ponto de partida na movimentação da trama, do tema e do sentimento – tudo o que importa para nós.

(David Bordwell)

Certos elementos são comuns a todo trabalho estilístico em estudos de mídia. Todos os estudos de mídia que se dedicam ao estilo devem desenvolver um método de descrição, nos termos de Bordwell, da “superfície de percepção” de um programa de televisão ou de um filme. Eles devem também apresentar uma razão do por que o fenômeno que eles descreveram é significante, que resulta em alguma forma de análise, interpretação e/ou avaliação do que eles descreveram. Um passo final pode ser descrever como o estilo tem mudado ao longo do tempo e também sugerir causas para estas mudanças, embora alguns estudiosos de estilo sejam a favor de uma abordagem sincrônica sobre a diacrônica. Em minha revisão do trabalho nesta área – limitando-me predominantemente aos estudos do cinema e da televisão – eu percebi que os estudos de estilo podem ser divididos em quatro traços/dimensões:

• A descritiva • A analítica (interpretação) • A avaliativa (estética) • A histórica

Mais comumente, as dimensões analítica e a avaliativa são construídas sobre a descritiva e a abordagem histórica pode envolver as outras três, mas eu considerei metodologicamente

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iluminador separar esses quatro aspectos para examinar suas concepções fundamentais sobre estilo televisivo e seu funcionamento. Eu também acredito fortemente no embasamento de toda teoria em sua aplicação prática em textos específicos. Para este fim, eu selecionei uma amostra bastante aleatória de CSI: Crime Scene Investigation – um programa conhecido por seu estilo de som-imagem – e discutirei como os métodos descritivo, analítico e avaliativo o abordariam. Tendo em vista que uma análise histórica do estilo se estenderia bem além dos domínios de um programa individual, eu a deixarei para outra ocasião.

A abordagem descritiva

Para discutir estilo, deve-se primeiro ser capaz de descrevê-lo. Este pareceria ser um passo óbvio, mas ele é um dos que tem causado muitas falhas analíticas e teóricas. A descrição do estilo exige que o analista opte por uma compreensão bem definida do que seja estilo e como ele funciona em televisão. A semiótica oferece o conjunto mais abrangente de ferramentas para se realizar uma descrição detalhada do estilo televisivo. A implementação inicial formal da semiótica nos estudos de mídia, nos anos de 1960, estava preocupada com as questões mais amplas da forma narrativa ao invés da enunciação desta forma em som e imagem – como pode ser visto na categorização das cenas do filme, ou dos sintagmas, dentro de “la grande syntagmatique” e sua análise sintagma por sintagma do filme Adieu Philippine. No entanto, semioticistas do cinema logo zeraram a organização de tomadas individuais dentro de sintagmas. Estas leituras fechadas foram muitas vezes realizadas por colocar uma cópia impressa do filme em um editor para facilitar a análise quadro-a-quadro e elas geralmente incluíam ampliações dos quadros quando eles eram publicados em revistas como a Screen. Raymond Bellour e Stephen Heath ainda ilustraram suas descrições de estilo com tabelas e diagramas de ângulos de câmera e escalas de plano. Assim, a estreita análise semiótica do cinema na década de 1970 incorporou descrições verbais de séries individuais de planos, tabelas que dispunham planos dentro de colunas e linhas, diagramas de posições de câmera e blocking, e "descrições" visuais de composição de planos (ou seja, ainda quadros que representam a imagem em movimento).

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A descrição semiótica da televisão encontrou sua primeira aplicação em Reading Television de John Fiske e John Hartley, em 1978. Eles se dedicaram a uma breve “análise de um sintagma da TV” – cinco tomadas de um segmento do documentário Cathy Come Home (1966). Sem diagramas ou ilustrações de imagens fixas, eles se basearam numa lista verbal de tomadas. Claramente influenciados por Christian Metz, eles articularam a estrutura sintagmática e paradigmática do sistema de signos do programa e tentaram dar conta de seus “códigos estéticos” – ou seja, seu conjunto de elementos estilísticos convencionalizados. Fiske continuou este trabalho nove anos depois em Television Culture. Suas análises detalhadas de textos televisivos tais como os vídeos clips de Madonna e Miami Vice (1984-9) não incluem a captura de quadros, mas elas descrevem enquadramento, movimento de câmera, edição, entre outros, em detalhes. Como antes, Fiske promove o estudo dessas técnicas dentro de códigos específicos, que ele define como “um sistema de signos governado por regras, cujas regras e convenções são compartilhadas entre os membros de uma cultura, e o qual é usado para gerar e circular sentidos em e para essa cultura”. A descrição estilística, desse modo, não é uma mera descrição de técnicas em tomadas individuais. É sempre uma questão de localizar essas técnicas em contextos mais amplos. Para fazer isso, Fiske divide os códigos estilísticos da televisão em “códigos técnicos” que governam as imagens e as técnicas de som e “códigos sociais”, conjunto de convenções de vestir, de se pentear tal qual aquelas da cultura que os acolhe. Fiske não quer ser associado com um formalismo vazio que ignora valores culturais e quando ele descreve códigos estilísticos ele está sempre alerta às suas significações culturais. Ele afirma que,

Um estudo textual da televisão, então, envolve três focos: as qualidades formais dos programas televisivos [ou seja, seu estilo] e seu fluxo; as relações intertextuais dentro da própria televisão, com outros meios e com a conversação social; e o estudo dos leitores situados socialmente e o processo de leitura.

O último foco de Fiske claramente revela a influência dos estudos culturais, mas os dois primeiros ficam mais bem acomodados dentro do domínio da semiótica.

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Originalmente publicado em 1987, o mesmo ano de Television Culture, a antologia Channels of Discourse: television and contemporary criticism foi um importante marco do desenvolvimento dos estudos de televisão como uma disciplina dos estudos críticos – distinguindo-se de uma abordagem empírica, quantitava e massiva do meio. Cada capítulo resume um método ou teoria crítica e explica sua abordagem da televisão. Em sua contribuição Ellen Seiter argumenta como a semiótica pode beneficiar os estudos de televisão e o faz através de uma análise detalhada da sequência de abertura de um desenho animado e da cobertura televisiva do desastre do ônibus espacial Challenger, entre outros exemplos. Suas análises começam com uma descrição plano por plano e daí busca descrever as estruturas paradigmáticas e sintagmáticas do texto televisivo, e os códigos que as governam. Seiter se baseia no método de Fiske e Hartley bem como em outro estudo que também foi inspirado por Fiske e Hartley: o de Robert Hodge e David Tripp chamado Children and Television: A semiotic approach, publicado um ano antes da primeira edição de Channels of Discourse. Hodge e Tripp "resolvem" o problema da descrição com inúmeras listas de tomadas e transcrições de diálogos de Frangface, programa infantil que analisam em profundidade. Eles incluem apenas a captura de dois quadros de baixa qualidade, mas temos a impressão de que poderiam ter tido muito mais longe se a lei da tecnologia do vídeo e do copyright de meados dos anos de 1980 os tivesse apoiado. Na discussão que Seiter faz sobre Children and Television, ela comenta sobre a análise das primeiras nove tomadas da análise de Hodge e Tripp,

É o gesto típico de fundação semioticista (contemporâneo) de reunir um texto ou conjunto de textos pequeno, gerenciável e sincrônico para análise e, usando o texto como base, tentar estabelecer as convenções que regem o sistema maior (neste caso a série Fangface série e o sistema televisivo mais amplo de desenho animado para crianças).

A semiótica aspira a um sistema objetivo de descrição (e interpretação) de sistema de signos, embora ela raramente alcance este objetivo. O desejo por precisão, se não necessariamente por objetividade, tem levado alguns estudiosos de estilo a empregar métodos quantitativos. Antecedentes desta abordagem incluem stylometry na crítica literária e na linguística quantitativa. Nesses

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campos, de acordo com Katie Gales "stylometry utiliza análises estatísticas para investigar padrões estilísticos, a fim de determinar a autoria de textos. Características linguísticas comumente examinadas em stylometry incluem comprimento da palavra; comprimento da sentença, conectivos; colocações. Sylometry pode ser atribuída ao trabalho do lógico Augusto D. Morgan, em 1851, mas como um método de análise de televisão e cinema tornou-se viável apenas recentemente. Barry Salt foi pioneiro de um método estatístico e tem sido seu defensor (por vezes controverso) sob a bandeira da "teoria do cinema prático". O trabalho que ele fez tenta medir elementos estilísticos cinematográficos, contando-os para depois analisá-los através de testes estatísticos. Este processo baseia-se em "estatísticas descritivas", onde a medição de um fenômeno é feita para descrever esse fenômeno. Salt, por exemplo, observou os seguintes parâmetros em centenas de filmes e algumas dúzias de tomadas de programas de televisão: comprimento médio dos planos (ASL), ângulos reversos, tomadas de ponto-de-vista, inserções, escala de planos, e movimento de câmera. E ele tem feito isso através do processo lento e trabalhoso de assistir a filmes e programas em máquinas de edição registrando esses parâmetros. O trabalho mais recente em stylometry baseia-se em software de computador para gerar estas estatísticas descritivas. Em estudos de tela de cinema este esforço tem sido facilitado pelo CineMetrics e Shot Logger. No primeiro, Yuri Tsivian e Civijans Gunars construíram um sistema de entrada e de exibição de dados contendo o comprimento e escala de planos de centenas de filmes e de poucos programas de televisão. Para o Shot Logger foi construído um software de entrada de dados que usa código do tempo do vídeo embutido na captura de quadros para medir automaticamente o comprimento do plano e assim esboçar algumas análises estatísticas rudimentares (comprimento médio dos planos, comprimento mínimo/máximo dos planos, variação entre comprimentos mínimo e máximo dos planos e desvio padrão). Tanto CineMetrics quanto Shot Logger são esforços online que recorrem a ajuda de estudiosos voluntários do estilo para acumular uma grande quantidade de dados.

Os capítulos seguintes se dedicam a textos televisivos da mesma maneira como o fazem os semióticos – buscando encontrar a essência do estilo nos detalhes da transmissão de som e imagem da televisão. Naturalmente é possível que eles se percam nos inúmeros

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detalhes da transmissão de som e imagem da televisão, mas eu estou de acordo com autores tais como Bordwell, Thompson e Salt que afirmam que é preciso uma "engenharia invertida" dos textos da mídia, para que possamos compreender plenamente o seu estilo. Assim a mesma atenção ao detalhe que roteiristas, diretores, cinematógrafos, editores, e demais profissionais dedicam à construção de um texto televisivo deve ser empregada na desconstrução deste texto.

Esta é uma lição da análise de cinema e televisão que eu aprendi há muito tempo, quando, ainda estudante, eu era obrigado a realizar decupagens cena por cena num curso do cinema francês. Inicialmente, eu odiava a atribuição, mas esses encontros semanais com os blocos de construção do cinema logo me ensinaram uma nova forma de ver cinema, um entendimento de como ele funciona enquanto um sistema de signos, e uma valorização das habilidades de Jean Renoir, René Clair, François Truffaut, e muitos outros. Eu "inflijo" com regularidade (quando eu pensei nisso depois) esta obrigação em meus próprios estudos de televisão atualmente. E ela raramente deixa de proporcionar-lhes (aos estudos de televisão) momentos de insight, quando de repente percebemos que a televisão é um meio construído, até as menores minúcias de sua mise-en-scène.

Exercícios pedagógicos muitas vezes exigem descrições precisas de televisão e nos livros didáticos de televisão e cinema encontramos a atenção útil para os detalhes de estilo de som e imagem. Bordwell e Thompson lideraram o caminho com a publicação em 1979, da primeira edição de Art Film: An Introduction, que teve um enorme impacto nos currículos de estudos de mídia e atualmente está em sua oitava edição. Um manifesto virtual para o estudo do estilo em mídias visuais, que inspirou a minha introdução mais modesta para os estudos de televisão, Television: Critical Methods and Applications, que foi publicado pela primeira vez em 1994. A partir da perspectiva da estilística de televisão, é decepcionante que o número de livros sobre televisão bem ilustrados e lançados desde meados dos anos 1990 permaneça relativamente pequeno, especialmente quando contrastado com os numerosos livros em estudos de cinema. No entanto, não está claro se isto é devido a dificuldades inerentes à pedagogia da estilística televisiva, ou o simples fato de que o mercado de livros de estudos de televisão é

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muito menor do que o de estudos de cinema. Uma exceção à escassez geral de livros didáticos de televisão sofisticados visualmente é Sight Sound Motion: Applied Media Aesthetics, de Hebert Zettl, que tem sido publicada desde 1973. Zettl foi repreendido por sua terminologia, por vezes idiossincrática, mas não há como negar a precisão com a qual ele descreveu o estilo de som-imagem e a eficácia pedagógica das centenas de ilustrações em Sight Sound Motion.

A descrição estilística, de uma forma ou de outra, muitas vezes é o primeiro passo de uma análise de CSI: Crime Scene Investigation. De fato, vários dos ensaios em Reading CSI: Crime TV Under the Microscope fazem exatamente isso. Geralmente presume-se que o programa seja altamente "estilizado", para evitar o estilo transparente do filme clássico em favor de uma articulação agressiva de som e imagem, que confronta o espectador. Mas, como minha própria marca de estilística semioticamente-flexionada, descreveria uma cena aleatoriamente selecionada do episódio de CSI dirigido por Nathan Hope, "Kill Me If You Can” (26 de fevereiro de 2009). O primeiro passo é "descrever" o texto de televisão com uma série de imagens fixas, silenciosas (Figuras 0.1-0.8). Pode ser tentador afirmar que ele foi feito a partir de um vídeo de 30 quadros fixos por segundo (no sistema de difusão dos EUA), que um único desses quadros descreve com precisão a tomada, mas a verdade óbvia é que experimentamos a televisão como imagens em movimento, ao longo do tempo, e uma imagem fixa, um fragmento de televisão, sempre vai ser uma aproximação disto. Na moda metonímica, estamos descrevendo um fenômeno com um elemento desse fenômeno em si, mas o fragmento (um quadro) e o todo (uma tomada de imagem em movimento, com som) oferecem duas experiências muito diferentes. Para os estudiosos de televisão dos anos 1970, antes do advento do vídeo em computadores pessoais e até mesmo antes da existência do consumo dos videocassetes, esta descrição visual era muito difícil de obter. Como Penelope Houston, uma crítica de cinema de uma geração anterior, admitiu: "A verdade pouco atraente, é claro, é... que o filme, porque não pode ser levado para casa e estudado como um romance ou uma peça, convida reações e impressões em vez de uma análise embasada". Até a década de 1990, os estudiosos do estilo televisivo tiveram de contar com fotografias das imagens de vídeo para criar quadros fixos - resultando em distorções visuais, linhas de varredura

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cena em movimento x storyboard estáticoexperiências diferentes
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evidentes, e imagens de baixa resolução, que não se reproduziam bem em publicações impressas. A introdução de unidades de DVD em computadores pessoais – e a liberação de centenas de programas de televisão neste formato - tem facilitado uma "análise sustentada" da televisão e fez a aquisição de quadros de televisão bastante triviais, resultado de umas poucas pinceladas chaves. A imagem capturada é ainda de resolução bastante baixa para os padrões de publicações impressas, mas o vídeo de alta definição está melhorando isso. As figuras 0.1-0.8 foram capturadas em 1280 x 720 pixels de um vídeo em HD de um episódio de CSI, comprado através do iTunes, vistas no meu computador, e capturadas pressionando a tecla "PrtScn" (print screen).

A logística de captura de imagem não fora o único impedimento para a publicação de captura de quadros nos anos de 1970 e 1980. Nos Estados Unidos e em outros países com leis restritivas de propriedade intelectual, a publicação de captura de quadro estava em uma área legal cinzenta. Foi violação de direitos autorais ou foi um "uso justo"? Mais uma vez, foi Thompson, que assumiu um papel de liderança que foi além do uso de ampliações de quadros do cinema em Film Art. Em 1993, ela presidiu uma comissão da Sociedade de Estudos de Cinema (desde então renomeada da Sociedade de Estudos de Cinema e Mídia) que estudou a "publicação do uso justo de imagens do filme" e publicou um relatório em Cinema Journal que defendeu que os autores afirmam um uso justo de imagens em livros, e, além disso, até mesmo pedem permissão dos detentores de direitos autorais. Seu relatório encorajou muitos autores e editores a contar com o uso justo em suas publicações de análises estilísticas de televisão e cinema. Qualquer autor que publicou análises estilísticas de televisão antes da década de 1990 teve a sua própria história de horror com os direitos autorais e ainda há problemas pontuais que surgem, mas o uso justo e seus defensores em grande parte os eliminaram, abrindo assim o caminho para descrições estilísticas visuais. Obviamente, Television Style beneficia-se do uso frequente de captura de quadros.

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Figura 0.3 ...Wendy, Técnica do laboratório, trabalhando na reconstrução do pote e refletindo sobre a peça que falta.

Figura 0.4 Com a continuação da tomada, Dr. Raymond Langston entra em quadro com a peça que falta. A câmera foca na peça...

Figura 0.1 CSI: começa com um plano detalhe de um livro com um pote e a câmera se move...

Figura 0.2 CSI: para o pote reconstruído, que contém pistas para o assassinato. O foco muda do livro para o pote, e então muda para...

Figura 0.5 ...e depois volta para Wendy.

Figura 0.6 Ela se move ao redor dele e o foco à acompanha...

Figura 0.7 ... então ela encaixa a peça em seu lugar. A Câmera e o foco acomapnham sua mão.

Figura 0.8 A tomada termina com Wendy em foco e Dr. Langston fora de foco.

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Se eu fosse fazer uma análise estilística de CSI, a minha descrição destas cenas (shot1) dependeria do contexto da minha análise e da interpretação que eu estava buscando. Eu poderia descrever a profundidade de campo curta da tomada e os cinco rack focus 2. Ou eu poderia enfatizar o uso de um quadro móvel e espaço on/off-screen na Figura 0.4, feito por Hope, que esconde a entrada do Dr. Raymond Langston (Laurence Fishburne), assim como sua entrada é inicialmente despercebida pelo técnico de laboratório Wendy Glenn (Darcy Farrell ). Em relação à mise-en-scène, eu comentaria sobre os pequenos pedaços de provas os quais estão sendo examinados visualmente. O comprimento do plano também é um aspecto do estilo, do ritmo visual do programa, e eu poderia basear-me em dados estatísticos para contextualizar o comprimento de 24 segundos do plano. A tabela 0.1 reúne dados sobre a média do comprimento dos planos de episódios de CSI. O segmento principal, e os demais do pós-créditos de abertura de “Kill Me If You Can” contados em 3.3 (média dos comprimentos dos planos – ASL). Os outros oito episódios na tabela 0.1 são da primeira temporada do programa e nenhum deles contém ASL de 3.5. O plano mais longo neste episódio é de 39 segundos e o mais longo de todos os episódios é de 44 segundos. O comprimento dos planos pode ser representado graficamente através do sistema CineMetric que, no caso deste episódio de CSI, resulta no gráfico encontrado na FIGURA 0.9. No gráfico, cada plano é representado por uma linha vertical. O eixo x da legenda representa o momento (horário) no qual o plano começou e o eixo y indica o comprimento de cada plano, com o zero na parte superior e 20 segundos na parte inferior (que permite algumas tomadas mais longas que se estendem para além deste limite). A sequência analisada aqui ocorre entre 5:19 e 7:24 do eixo x. Ela se destaca porque é a única com mais de 20 segundos nos primeiros 28 minutos do episódio. A linha de tendência é automaticamente a atração horizontal do gráfico, conduzindo para baixo em direção ao final do episódio quando os planos ficam mais longos. Assim o gráfico descreve visualmente os

1 Shot: Tomada, cena ou sequências de um filme. Nesta tradução esses termos são mencionados de forma mais ou menos intercambiável (nota do tradutor). 2 O efeito rack focus consiste em mudar rapidamente o foco de um elemento da cena para outro, para chamar a atenção do público, como em uma sala com pessoas conversando ao fundo (local onde está inicialmente o foco) e um telefone em primeiro plano (desfocado). Quanto o telefone toca, o foco muda das pessoas para ele (nota do tradutor).

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ritmos da edição do episódio, permitindo ao pesquisador observar os padrões de edição. É claro, a dimensão descritiva do estilo não deve limitar-se aos componentes visuais. Ela também deve dar conta do design de som. Neste plano (e na maioria desta cena/sequência), o som é relativamente estéril – apenas um diálogo sincronizado e nenhuma música, diegética ou não-diegética. Tais cenas silenciosas contrastam com o efeito de som distinto que sinaliza os flashbacks nos quais são mostrados os raciocínios de CSI. Minha descrição deste estilo de filmagem de CSI lida com termos emprestados das práticas de produção televisiva. Profundidade de

campo, foco rack, e iluminação baixa não foram inventados pelos semioticistas para descrever as características do estilo – como o termo “sintagma,”, por exemplo, foi cunhado para se referir à menor unidade narrativa. Ao invés disso, estes são termos que dependem de um conhecimento de como essas cenas foram criadas. É aqui que o aspecto de engenharia invertida da análise estilística torna-se óbvio. O estudioso do estilo deve tocar na cultura de produção de um determinado tempo a fim de compreender suas convenções

Figura 0.9 O gráfico CineMetrics em que a duração de cada tomada é representada por uma linha. A duração no gráfico vai de 0 a 20 segundos.

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estilísticas e, portanto, é razoável que nós, como estudiosos do estilo, empreguemos termos enraizados naquela cultura. Contudo, nós não devemos permitir que a cultura de produção dite nosso vocabulário. Só porque a maioria dos produtores de televisão não usa o termo mise-en-scène, não quer dizer que ele seja um conceito analítico improdutivo. A descrição estilística incorpora uma terminologia híbrida, parte do jargão da indústria parte dos neologismos acadêmicos.

Como deveria ser óbvio, a partir de minha tentativa de me limitar à descrição estilística, eu não posso realmente fazê-lo sem me desviar para interpretação. Características formais tornam-se salientes baseadas no objetivo final de uma análise. A descrição inicia a interpretação. Se não, as descrições teriam que dar conta de cada pixel de cada quadro – obviamente uma tarefa impossível e que geraria uma exegese ilegível. Uma descrição de um programa não deveria replicar este programa. Ela deve, obviamente, servir apenas para promover a análise. Análise estilística Análise do estilo em televisão depende de suposições explícitas ou implícitas sobre os propósitos do estilo e suas funções no texto. O trabalho do estudioso do estilo, assim, constitui-se na desconstrução de como o estilo cumpre esta função. Ao fazê-lo, o analista examina o funcionamento do estilo dentro do sistema textual – buscando padrões de elementos estilísticos e, em um nível mais elevado, as relações entre os próprios padrões. A forma completa de um programa de televisão depende de como os planos se relacionam uns com os outros, de como o estilo de iluminação da tomada A se relaciona com o da tomada B, da justaposição de um tema musical com uma imagem particular, de como planos curtos são contrastados com planos longos, e assim por diante. Em minha ênfase sobre a função, faço eco à “teoria funcional do estilo” no cinema de Noel Carrol. Usando estilo e forma de maneira intercambiável, ele afirma,

De acordo com a abordagem funcional da forma fílmica, a forma [ou estilo] de um filme individual é a reunião das escolhas cuja intenção é concretizar o propósito do filme. Esta abordagem da forma fílmica é diferente da abordagem descritiva. A descritiva diz

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que a forma fílmica é o montante total de todas as relações entre os elementos do filme. A funcional diz que a forma fílmica inclui apenas os elementos e relações intencionados para servir como o meio para o fim do filme.

De maneira proveitosa Carroll distingue sua abordagem da descritiva e identifica um modo útil para pensarmos sobre o estilo televisivo. A maioria dos analistas do estilo televisivo presume que o estilo serve a uma ou mais funções (meios) do objetivo de um programa televisivo. Todos os capítulos desse volume certamente fazem isso. Assim, para o melhor entendimento da análise do estilo nós devemos definir as funções do estilo na televisão. Em Figures Traced in Light: On cinematic Staging, Bordwell esboça “quatro funções mais amplas” do estilo no cinema. Eu começarei com suas quatro funções, mas o estilo televisivo tem funções adicionais únicas deste meio que devem ser apontadas. Os estudiosos do estilo televisivo afirmam que este estilo pode:

1- Denotar 2- Expressar 3- Simbolizar 4- Decorar 5- Persuadir 6- Saudar ou interpelar 7- Diferenciar 8- Significar “ao vivo”

Cada capítulo de Television Style investiga aspectos da função do estilo com mais detalhe, mas um pequeno comentário sumário é apresentado aqui. Primeiro, Bordwell sugere que a função denotativa do estilo no cinema controla a “descrição dos cenários e personagens, a narração de suas motivações, a apresentação dos diálogos e o movimento”. Este é o estilo em seu nível mais fundamental, nível no qual a análise semiótica começa. Se eu discuto como minha amostra de planos de CSI usa o foco rack para revelar e esconder objetos narrativamente significativos, então eu estou quebrando uma função denotativa do elemento estilístico. Livros didáticos tais como Sight

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Sound Motion, muitas vezes chamam a atenção para esta função básica de estilo.

A segunda função do estilo, sua qualidade expressiva, se refere às emoções que um estilo de cinema revela e aquelas que ele provoca no espectador. “Nós podemos distinguir entre estilo que apresenta qualidades repletas de sentimento (a sequencia/o plano transmite tristeza) ou causa sentimentos no espectador (a sequencia me deixa triste)”. A primeira, a qual ele se limita na maior parte de seu trabalho, “podem ser transmitidas pela iluminação, pela cor, pela interpretação, pela trilha musical e por certos movimentos de câmera”. Os estudiosos do estilo televisivo podem ocasionalmente discutir “qualidades repletas”, mas a interpretação mais sistemática deste sentido de expressão é encontrada na pesquisa empírica quantitativa dentro dos sentimentos causados pelas “características formais” da televisão, como comumente refere-se ao estilo neste contexto. Numerosos estudos empíricos do estilo vêem-nas principalmente como um estímulo, um fator que provoca emoções ou ações, aumenta/diminui a atenção, tem um impacto sobre a cognição ou afeta seus “sujeitos”. Um estudo empírico, por exemplo, examina o efeito que a narração voiceover tem sobre a compreensão dos noticiários televisivos. Mostrou-se para um grupo de indivíduos uma notícia com uma narração que explicava as imagens de modo redundante. Mostrou-se a mesma história para outro grupo na qual o som foi mantido, mas as cenas foram reordenadas – eliminando, assim, a redundância entre som e imagem e alterando o estilo ou as características formais do vídeo. Em seguida ambos os grupos foram submetidos a um teste para avaliar sua resposta às informações de video e outros fatores e os resultados foram quantificados. As hipóteses deste estudo giram em torno do efeito desta alteração estilística sobre o processamento cognitivo do sujeito. Outra pesquisa nesta mesma linha encontra métodos psicofisiológicos para quantificar o impacto emocional das características formais - frequência cardíaca de rastreamento, condutância da pele, eletromiografia facial (EMG), e assim por diante.

Na terceira função do estilo Bordwell explica que está a sua habilidade para “produzir significados mais conceituais e abstratos”. O design do cenário de nossa sequencia de CSI é típico do programa: a técnica trabalha numa sala envidraçada, revelando

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outros funcionários ao redor dela. No de CSI feito por Karen Lury, ela elaborou um estudo de caso (case study) para temas específicos associados a esta mise-en-scène: “esse sentido tanto de transparência quanto de profundidade num nível visual ecoa de modo impecável no impulso para a ‘transparência’ e a verdade na narrativa de solução do crime”. A transparência no estilo torna-se, assim, uma metáfora para a clareza de raciocínio.

A última função de estilo de Bordwell, decoração, merece uma exploração mais extensa do que as três primeiras, porque, no estilo televisivo, algumas grandes afirmações foram feitas sobre o estilo decorativo. “Decoração”, Bordwell escreve, “exige-nos a apreensão das potencialidades da linguagem enquanto pura produção de padrões”3. Em outras palavras, é estilo pelo estilo. Ela não denota, expressa ou simboliza qualquer outra coisa a não ser o próprio estilo. A função decorativa do estilo passou por muitos nomes: paramétrica, narração, maneirismo, o efeito de imagem, estilo excessivo, e assim por diante. Os estudiosos do estilo televisivo muitas vezes afirmaram o efeito radical ou pós-moderno do estilo da televisão como sendo o que não trabalha em nome da narrativa ou do tema. No efeito de imagem, John Caldwell encontra a base essencial da "televisuality" da televisão dos anos 1980. Ele declara, em um itálico entusiasmado, "A nova televisão não depende do efeito de realidade ou do efeito de ficção, mas do efeito da imagem". Em prosa igualmente fervorosa, Fiske proclama,

as imagens não são nem as portadoras da ideologia, nem as representações do real, mas o que (Jean Baudrillard) chama de "hiper-real": a imagem da televisão, a publicidade, a música pop se tornam mais "reais" do que a "realidade", o seu imperativo sensual é tão forte que elas são a nossa experiência, elas são o nosso prazer.

3 O próprio David Bordwell assim esclarece em seu livro Figuras traçadas na luz

– a encenação no cinema (2008, p. 60): “pensamos a decoração como ornamento, como algo aplicado em algum suporte. Decoramos as paredes de um apartamento ou decoramos nossos corpos com tatuagens. Em filmes narrativos, o estilo pode ser decorativo apenas nesse sentido: a produção de padrões opera por meio de justaposição ou sobreposição às outras funções estilísticas. Em filmes não-narrativos, o estilo é pura decoração, criando padrões inteiramente abstratos. Mas, já que a maior parte do cinema é narrativa, as qualidades decorativas aparecem por acréscimo, como quando o cineasta cria padrões puros, ao mesmo tempo em que denota um mundo ou comunica estados expressivos (nota do tradutor).

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Ele faz essa afirmação em um capítulo sobre Miami Vice e tem palavras ainda mais fortes para o estilo dos videoclipes de Madonna:

Estilo é uma reciclagem de imagens que as arranca de seu contexto original, que lhes permitiu fazer sentido, e as reduz à livre flutuação dos significantes cujo único significado é que eles são livres, fora do controle do sentido normal e do senso de decisões, e, assim, capazes de entrar no mundo de prazer, onde sua materialidade pode trabalhar diretamente no olho sensual, correndo a fronteira entre cultura e natureza, entre a ideologia e a sua ausência.

A abordagem do estilo feita por Fiske baseia-se na noção de carnaval de Mikhail Bakhtin: "No mundo pós-moderno, o estilo realiza muitas das funções do carnaval. É essencialmente libertadora, agindo como uma linguagem de empoderamente para o subordinado”. Assistindo a Miami Vice e aos vídeos de Madonna hoje, pode ser difícil ver sua liberação, seu empoderamento, a livre flutuação de significantes. Esses textos de televisão se tornaram praticamente únicos em contraste com o exibicionismo estilístico de programas como CSI, cujo "imperativo sensual" é muito mais extremo. Ainda assim os esforços de Caldwell e de Fiske foram alguns dos poucos a abordar estilo televisivo num momento (década de 1980) em que se presumia que o meio não tinha nenhum. Eles abriram caminho para estudos de programas com estilos muito distintos. Na verdade, é muito fácil se perder na "ornamentação" visual e sonora que CSI oferta e que é evidente mesmo nas Figuras 0.1-0.8.

As quatro funções do estilo apontadas por Bordewll são bem adequadas para grande parte da análise de televisão, mas seu foco na narrativa do cinema significa que ele está menos interessado em filme documentário ou em propaganda. Televisão, no entanto, é vinculada à propaganda, ao material persuasivo na forma de editoriais, comentários esportivos e, é claro, comerciais. O estilo é uma parte essencial do trabalho de persuasão de comerciais e anúncios publicitários e os quais têm, devido ao seu comprimento curto, trabalhado mais cuidadosamente o estilo de som-imagem do que qualquer programa de 30 ou 60 minutos. Surpreendentemente, pouco tem sido investido na análise da função persuasiva do estilo em comerciais de televisão - se você descontar a enorme

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quantidade de pesquisa de marketing (grupos focais e outros) feita pelos anunciantes a respeito de seus próprios produtos. O capítulo 3, sobre estilo e o comercial de televisão, tenta corrigir esta negligência a partir de uma consideração de como o estilo de televisivo convence. Neste esforço, eu recorri a uma abordagem do estilo visual em publicidade impressa de Paul Messaris que identifica muitos dos métodos estilísticos que uma imagem pode usar para nos convencer a comprar um produto.

Também discutida no capítulo 3 é a função de chamamento do estilo, mas essa função virtualmente serve de base para todos os capítulos. O conceito mais amplo de chamamento encontra sua gênese na teoria da ideologia e do sujeito de Louis Althusser. “Toda ideologia chama ou interpela indivíduos concretos como sujeitos concretos”. Chamamento é o processo pelo qual uma ideologia chama alguém, “ei, você!” e motiva você a se tornar um desses sujeitos. Durante a era da radiodifusão a televisão claramente era um instrumento hegemônico da ideologia dominante, interpelando os sujeitos da televisão – embora quebras e fissuras fossem sempre possíveis nesse edifício. O estilo participava nesta interpelação como o recurso através do qual o chamamento era realizado, mas ele também chamava os telespectadores num sentido mais estreito – chamando-os a assistir o fluxo televisivo (parando outras atividades domésticas) e solicitando-os a não interromper o fluxo mudando de um para os outros dos três ou quatro canais. Essa função específica do chamamento é discutível no cinema, onde os espectadores compraram um bilhete e já decidiram investir sua atenção na tela iluminada mostrada na sala escura. Além disso, mesmo que a televisão já não seja dominada por três redes, ela ainda depende fortemente do chamamento, particularmente porque a atenção do espectador está sendo chamada em várias outras direções. A era da convergência é também da divergência e da distração. A capacidade de distinção exercida pelo estilo distintivo é uma arma importante utilizada por realizadores de televisão para combater o fator de distração da paisagem midiática moderna.

O estilo do som, particularmente, é um estímulo valioso para atrair atenção dos telespectadores para o fluxo televisivo. CSI, por exemplo, usa uma pista de som distinta para sinalizar um flashback quando os investigadores teorizam sobre como o crime aconteceu. A cena que eu selecionei acima é relativamente calma (apenas o

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mestrado!
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diálogo, sem música não-diegética), como é típico de boa parte do programa. O estilo visual da cena – com o seu movimento de câmera complicado e focus rack – serve, também, como uma sutil função de chamamento. Ela exige um olhar sustentado na imagem. A informação narrativa desta cena (a falta de uma peça de cerâmica) é transmitida através dessa articulação dos componentes visuais. Para obter essa informação, você deve estar prestando atenção – sem olhar para e-mail ou estar jogando World of Warcraft, enquanto você está assistindo CSI. O programa recompensa a manutenção do olhar, quando faz programas sofisticados visualmente, como Miami Vice, ER, e as sitcoms de câmera única – assuntos dos capítulos 2, 4 e 5, respectivamente.

Uma vez que um espectador foi chamado, atraído para ver um programa em particular, o estilo é então usado para ajudar a diferenciar marcas de identidade. Como discutido no Capítulo 4, quando ER estreou, o programa precisava de uma forma de distinguir-se dos outros dramas de hospitais, especialmente Chicago Hope, que estreou na mesma época e foi programado na mesma faixa de horário. A solução de ER para diferenciação da marca foi a forma da narrativa e a atuação dos atores em parte, é claro, mas também a dependência de um uso agressivo do Steadicam (um dos primeiros programas de televisão a fazê-lo) e de cenários com a quarta parede a conseguir um estilo vertiginoso e espiral de movimento de câmera que efetivamente ecoou a vida agitada na sala de emergência. Assim, a mesma premissa necessária para diferenciar Coca Cola de Pepsi também é obtida em programas de televisão. CSI ilustra claramente o poder da marca enquanto seu produtor, Jerry Bruckheimer, tem sido capaz de usar o estilo do programa para destacá-lo de outros crime dramas contemporâneos e de desenvolver uma franquia CSI rentável: três programas televisivos (CSI: Crime Scene Investigation [2000] , CSI Miami [2002 -], e CSI: NY [2004 -], romance gráficos4, e diversos jogos de vídeo, entre outros produtos.

A função final do estilo, significar imediaticidade (ao vivo) nos leva de volta ao começo desta introdução. Se nós aceitamos a afirmação de Stephen Heath, Gilliam Skirrow, e de outros segundo a qual os 4 É uma espécie de livro, normalmente contando uma longa história através de arte sequencial e é frequentemente usada para definir as distinções subjetivas entre um livro e outros tipos de histórias em quadrinhos.

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boa expressão
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telespectadores percebem a televisão como ao vivo, então nós devemos olhar no estilo televisivo para os significantes desta imediaticidade. Para além das declarações ocasionais do ao vivo (“Ao vivo de New York” É o Saturday Night!), são os elementos estilísticos tais como o enquadramento aleatório e a gravação/captação precária do áudio que expressam um forte sentido de ao vivo. Isto pode ser observado mais claramente nos gêneros que foram ao vivo uma vez e poderiam sê-lo novamente, tal como o estudo de caso da soap opera no capítulo 1. Como eu observei no começo deste capítulo, alguns críticos interpretam esta articulação de técnicas de som e imagem “mal feita” como emblemática de uma falta de “estilo”, ou como o grau zero do estilo. Eu prefiro pensar nisto como um conjunto ou código de técnicas convencionalizadas que representam o ao vivo, mas que poderiam ser usadas em transmissões que não são ao vivo de fato. Soap operas são gravadas “ao vivo em fita” e vêem esse código naturalmente, mas mockumentaries como The Office podem ser codificados como "espontâneos", sem de fato empregarem modos de produção que são "ao vivo" ou "live-on-tape". Os significantes estilísticos da espontaneidade e do ao vivo tornaram-se tão familiar aos espectadores que eles leêm o texto como ao vivo, mesmo quando ele não o é. Este código de ao vivo é tão significativo do estilo quanto da tradução/versão de Nathan Hope de um roteiro de CSI. Ao longo de Televison Style, eu defenderei um entendimento de estilo como qualquer padrão técnico de som-imagem que serve uma função dentro do texto televisivo. Sendo assim, eu rejeito a definição de estilo como a marca da genialidade individual de um texto (embora certamente gênios criem elementos da televisão) ou como um florescer de alguma forma em camadas acima da narrativa (embora alguns estilos sejam decorativos). Um programa não precisa de gênios ou florescimentos para possuir estilo. Deste modo, um axioma de todos os capítulos deste livro é que todos os textos televisivos contêm estilo. Estilo é a sua estrutura, a sua superfície, a rede que mantém juntos seus significantes e através do qual os seus significados são comunicados.

Avaliação estilística

Como pode ser percebida a partir a minha paixão pelo grau zero do estilo, estou mais ansioso para descrever e analisar o estilo do que em avaliá-lo. E os estudos de televisão, em geral, não

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desenvolveram um método coerente para avaliar a televisão como um meio ou o estilo como uma parte dele. Os esforços que têm sido feitos nesta área têm envolvido com uma estética avaliativa, com o julgamento estético. É claro que a “estética” tem uma longa e complicada história dento de várias tradições de história da arte e da filosofia. É preciso, portanto, ser muito claro sobre seu significado. Dentro dos estudos de televisão o termo pode ser usado sem conotar julgamento, como nós já vimos na investigação dos “códigos estéticos” de Fiske e Hartley. Nesse sentido, “estética” significa elementos do estilo de imagem e som e “códigos” se referem ao conjunto das convenções de imagem e som. Fiske e Hartley não estavam avaliando ou julgando esses códigos. Eles estavam apenas descrevendo-os e analisando-os. Recentemente, contudo, alguns autores começaram a propor uma avaliação estética do meio. Christine Geraghty é uma pesquisadora que advoga pelo julgamento estético na televisão, mas ela reconhece que é uma batalha difícil. Ela enumera várias razões da negligência do julgamento estético dentro dos estudos de televisão:

o impacto da semiótica na gênese dos estudos de mídia com suas afirmações pseudo-científicas sobre objetividade; o impacto do pós-modernismo com sua ênfase na diversidade, descentramento e jogo; a necessidade de estabelecer a cultura popular e a televisiva, em particular, como digna de estudo que envolveu recusar os modos tradicionais de julgamento; o impacto do trabalho feminista, com suas demandas de que certos tipos de ficções que denigrem deveriam ser seriamente tratadas; a noção, vinda de modos bastante diferentes de Foucault e Bourdieu, de que fazer julgamento estético era impor normas culturais dos poderosos.

A estas razões nós poderíamos acrescentar a observação de Jason Jacob que considera um prejuízo injustificado contra o estilo televisivo:

O sentido persistente de que o texto televisivo é geralmente inferior ao texto fílmico e não pode suportar a pressão crítica concentrada em virtude de sua carência de ‘densidade simbólica’, riqueza de mise-en-scène, e da promoção de identificação como meio de assegurar a proximidade da audiência, tem de ser revisado à luz da televisão contemporânea.

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Jacob esclarece que a televisão pode de fato ter sido “textualmente anêmica” nas décadas anteriores aos anos 1980, mas que programas abundantes estilisticamente, até mesmo excessivos, vêm sendo desenvolvidos desde então. Ele afirma que tais programas recompensam a análise textual estrita. Eu certamente concordo e argumento no capítulo 2, que Miami Vice liderou a direção luxuosa do estilo e foi seguido por vários gêneros e redes de TV em programas como Homicide: Life on the Street (1993-9), Ally McBeal (1997-2002), The Sopranos (1999-2007), Arrested Development (2003-6), Deadwood (2004-6), e, claro, o caso teste para esta introdução, CSI (2000 - ). Outra voz dentro dos estudos de televisão que tem defendido a avaliação estética é a de Greg Smith. Em Beautiful TV: The Art and Argument de Ally McBeal, ele pondera porque "é aceitável fazer uma análise estética de um filme do tamanho de um livro, mas analisar uma série de televisão em termos estéticos e principalmente narrativos é uma noção radical".

Esses autores constroem casos persuasivos para o julgamento estético da televisão, mas eles são menos persuasivos na demonstração de como procedem a esse julgamento. Smith declara o princípio estético que sustenta sua análise: “o conceito de beleza que emerge deste livro é fora de moda/ antigo: um sistema coeso no qual elegância, inovação técnica e formal servem para expressar um argumento complexo, unificado e adequado para o discernimento moral e ético”. E Beautiful TV se envolve de forma inteligente com sistema da narrativa complexa de Ally McBeal e sua estrutura moral/ético temática, descrevendo-o como inovador das técnicas estilísticas que a transmite. Contudo, o volume da exegese de seu livro é descritivo e analítico, e não avaliativo ou de julgamento. Além disso, Smith reconhece que sua estética “fora de moda” intencionalmente provocativa pode ser um preocupante:

Ao chamar esse programa de “bonito”, eu não estou dizendo que elegância e complexidade sejam as únicas qualidades que constituem a beleza, mundo sem fim, amém. Eu estou dizendo que num momento em que a televisão é amplamente desaprovada como um objeto denegrido, o uso destas palavras antiquadas pode ajudar-nos a ver televisão de forma mais clara... Ao defender a arte e um argumento muito bobo (e muitas vezes irritante)de uma série de televisão, quero recuperar a nossa capacidade de falar

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sobre a televisão, como um objeto belo, de modo rigoroso, aberto, sem vergonha, sem ironia.

Em resumo, Smith está usando julgamento estético como uma justificativa para a escolha de seu objeto de estudo, mas à parte do uso de algumas palavras descritivas com conotações – tais como elegante, complexo e inovador – ele não foca na beleza de Ally McBeal na parte principal de sua análise. Do mesmo modo, as análises de Geraghty e Jacob caem predominantemente em categorias estilísticas analíticas e descritivas. Geraghty resume sua abordagem assim:

Eu não estou sugerindo que normas ou qualidade estéticas devam ser impostas sem discussão de sua procedência, mas que o trabalho textual oferece a possibilidade de engajamento com tais temas através de uma abordagem que enfatiza a descrição analítica e a discussão avaliativa através de uma série de programas (grifos nosso).

Até hoje os estudiosos da estética da televisão não têm sistematicamente definidas as normas estéticas de avaliação do meio. Em vez disso, essas normas têm sido compostas por termos problemáticos, ideologicamente carregados tais como “elegância”, “complexidade”, “unidade orgânica", "expressividade", "singularidade", "visão artística”, e assim por diante. Se for para os estudos de televisão desenvolverem um método de julgamento estético, então terá de ser um bem distinto das normas antecedentes encontradas na história da arte, na literatura, na música, e até mesmo no cinema. A busca da beleza na televisão levou alguns pesquisadores a importarem a teoria autoral degradada em estudos de televisão a partir de estudos de cinema. CSI recebe esse tratamento no ensaio de Sue Turnbull sobre “The Hook and the Look: CSI and the Aesthetics of the Television Crime Series”. Para ela, o que torna CSI um bom programa é a linhagem autoral do diretor Danny Cannon vinda de Michael Mann. Bruckheimer, o criador/produtor de CSI havia trabalhado com Mann nos filmes de longa-metragem, Thief (1981) e Manhunter (1986), durante o tempo de Miami Vice (1984-1990). Bruckheimer contratou Cannon e instruiu-o para obter esse "olhar cinematográfico", em geral, e imitar o estilo de Mann, em particular. Turnbull, assim, se baseia em critérios avaliativos

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não examinados segundo os quais, primeiro, o estilo cinematográfico é superior ao televisivo e, segundo, este estilo é bom quando é a expressão da visão de um autor. O capítulo 2 deste volume dedica-se em grande parte da sua discussão a Miami Vice para identificar o estilo cinematográfico e examinar suas interseções na televisão. Contudo, eu não compartilho com a hierarquia estética de Turnbull nem com sua ênfase no autor. Existem autores na televisão – Paul Henning e Joss Whedon me vêm à mente – mas sua “visão” não é necessária para se fazer um bom programa. Muito parecida com uma catedral medieval, a beleza na televisão pode ser produto do esforço de dúzias de profissionais. Um autor byroniano (relativo ou pertencente a Byron, poeta inglês), não precisa estar no comando. Uma última razão para evitar a estética da autoria é que ela tem um sentido amorfo do belo. Autores individuais mais descrevem ou apontam para um momento como sendo belo do que explicam porque ele o é. O resultado é misticismo. Andrew Sarris no ensaio 1962, em grande parte responsável pela importação da teoria do autor da crítica de cinema americana, argumenta que as marcas de verdadeiros autores estão em suas implementações estéticas do estilo – "perto do que Astruc define como mise-en-scène, mas não muito”. Sarris assevera que Jean Renoir se qualifica enquanto um autor e, como prova, remete o leitor para um momento diminuto de Rules of the Game:

Renoir galopa escada acima, se vira para a direita com um movimento cambaleante, para na incerteza do pulo quando seu nome é chamado por uma empregada coquete [Figura 0.10] e, em seguida, com continuidade do reflexo maravilhosa, retoma seu caminho de modo rude e seu andar cambaleante para o vestiário da heroína. Se eu pudesse descrever a nota musical de graça desta suspensão momentânea, e eu não posso, eu poderia ser capaz de oferecer uma definição mais precisa da teoria autoral. Tudo o que posso fazer é apontar as belezas específicas de sentido no interior na tela e, mais tarde, catalogar, os momentos de reconhecimento (grifos nossos).

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Muitos escritos de autoria em cinema e televisão pressupõem isso: "você reconhece ou não" a atitude em relação a beleza e estilo. É menos análise estética do que elitismo.

A avaliação estética de CSI poderia apontar para um elaborado movimento de câmera que Nathan Hope encenou em nosso caso-teste da cena e exigir que o leitor aceite o rótulo deste como beleza em televisão e Hope como um autor, embora ele tenha trabalhado principalmente como diretor de fotografia, com muito poucos créditos como diretor ao longo de CSI. Um estudioso de estética também poderia argumentar por essa elegância e complexidade da cena, como Smith o faz para o estilo em Ally McBeal. Mas, para alguns, o movimento da câmera é usado em demasia em programas "belos" como CSI, ER e The West Wing. Para um crítico assim, este momento é tudo menos bonito.

Até que estudos de televisão desenvolvam um sistema de estética que vá além do sabor e das normas culturais dominantes, devemos admitir que a semiótica, pós-modernismo, os estudos culturais, o feminismo, Foucault e Bourdieu (relembrando a lista de Geraghty) estão corretos ao nos advertir sobre os perigos da avaliação televisiva, especialmente se ela anuncia um retorno à autoria. "Podemos e queremos ter uma estética de televisão?" pergunta incisivamente Charlotte Brunsdon. Sua resposta é predominantemente negativa:

Uma estética da televisão deveria assim, em alguma medida, ser uma anti-estética para ser adequada aos objetos e práticas que a constituem. Comprometida com o popular, o doméstico e o funcional, ela [a televisão] enfraquece a constituição mesma do julgamento estético clássico.

Figura 0.10 Rules of the Game: Uma das belezas específicas do significado interior. Segundo Andrew Sarris

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Abordagem estilística histórica Vários capítulos neste livro localizam programas individuais num contexto mais amplo da história do estilo televisivo. Mais notadamente, o capítulo 4 desfaz as camadas de textos da mídia que convergiram em ER, em meados da década de 1990 e o capítulo 5 discute a ressurreição, através da inovação estilística, do seriado na década de 2000. Minha abordagem fundamental da história do estilo televisivo é a de que o estilo existe na interseção de padrões econômicos, tecnológicos, industriais e códigos semióticos/estéticos; e cada um desses elementos tem sua história própria semi-independente. Para pegar um exemplo ilustrativo: a tecnologia da tomada do zoom foi introduzida no cinema nos anos de 1930. As primeiras câmeras de televisão, no entanto, tinham turret lenses, não zooms, embora as lentes com zoom tornaram-se padrão nos estúdios de televisão na década de 1960. Consequentemente, os programas baseados em estúdio em 1940 e 1950 tiveram poucas cenas com zoom. A indústria de televisão dos anos 1960 e 1970, no entanto, passou a contar com lentes com zoom em tomadas eficientes e econômicas de soap-opera, game shows, talk shows, programas de esporte, e coisas do tipo – uma decisão econômica. Mas a escolha de terminar uma cena de novela com um zoom-in em um personagem não tem imperativo econômico, tecnológico ou industrial. Inspira-se puramente em códigos semióticos de significação narrativa.

Em estudos de mídia, o estudioso mais metódico da história do estilo é, sem dúvida, David Bordwell. Poetics of Cinema (2008) é o resultado de seu trabalho mais recente na vinha acadêmica da poética do cinema, mas, 20 anos antes, em Ozu and the Poetics of Cinema (1988), ele estabeleceu que “poética’ refere-se ao estudo de como os filmes são agrupados e como, em contextos determinados, eles provocam efeitos particulares”. Posteriormente ele esclarece que a poética vai além do estilo para incluir as temáticas e as formas em larga escala e que os estudiosos do estilo, em particular, “lidam com os materiais e a padronização do meio como componentes do processo construtivo”. A poética não é, assim, um mero formalismo. Ela aborda o estilo como a manifestação física do tema e da narrativa, no caso do filme de ficção. E esses elementos estão sempre situados culturalmente. Nas palavras de Bordwell, “uma

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narrativa fílmica, exibe uma forma total que consiste do material - assunto, temas - moldado e transformado pela composição global (ou seja, estrutura narrativa, lógica narrativa) e padrões estilísticos”. Além disso, ele acrescenta ao conjunto da análise um conhecimento da psicologia cognitiva, a qual fortalece seu entendimento do efeito do estilo sobre os espectadores.

Para compreender como a poética de Bordwell aborda a história do estilo, é importante citar em alguma medida Figuras traçadas na luz:

Eu proponho que nós possamos analisar e explicar de forma proveitosa a dinâmica histórica do estilo do cinema ao inferir, sob as bases dos filmes e o que nós sabemos sobre sua produção, algumas tradições artísticas pertinentes. As tradições preservam práticas favorecidas, práticas que são o resultado de escolhas entre alternativas. Ao escolher, os produtores exercitam seu dom (habilidade) e julgamento, portanto replicando, revisitando ou rejeitando opções fornecidas por seus antecessores e colegas.

Bordwell conceitua as práticas artísticas como rotinas padronizadas que guiam os profissionais enquanto eles fazem os filmes. Ele reúne essas rotinas em conjuntos ou esquemas, um conceito que ele empresta do trabalho do historiador da arte E.H. Gombrich. Bordwell explica “esquemas são recursos rotinizados, bare-bone5 que resolvem os problemas perenes”. Os profissionais podem seguir, modificar ou rejeitar essas rotinas, mas essas rotinas permanecem “favorecidas” ou, digamos, geralmente dominantes dentro de culturas fílmicas específicas em períodos específicos, ou dentro de gêneros, ou movimentos ou modos de produção específicos. Os esquemas englobam as regras flexíveis da produção fílmica, a gramática da significação da imagem e do som em constante mudança. Sobre seu entendimento da função dos esquemas – como o que oferece soluções aos problemas – Bordwell constrói sua teoria da história do estilo do cinema, à qual ele se refere como o “modelo problema/solução”. Os profissionais enfrentam um problema comum – por exemplo, como posicionar os atores no cenário para melhor comunicar informações narrativas.

5 Substantivo plural; o mínimo irredutível, e os componentes mais essenciais: Reduzir este relatório a seus ossos (nota do tradutor).

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Durante certo período de tempo, em certos países, usando certos modos de produção, este problema tende a ser resolvido de modo específico por certos profissionais – isto é, colocando os atores em uma linha perpendicular à câmera, como foi feito no início dos anos de 1900. Mas a solução para o problema não é mais que a norma e assim o cinepoetician deve perguntar: "Como é que as normas são alteradas ou mantidas ao longo da história? Quais os fatores que promoveram a estabilidade, bem como a mudança?". Colin Burnett resume de maneira acurada o modelo de Bordwell:

O problema-resolução é lançado como um motor de curto e longo prazo do desenvolvimento histórico - uma lógica que descreve a natureza da criatividade cinematográfica prática, vincula os problemas enfrentados por cineastas que trabalham em diferentes contextos e, finalmente, conduz a história da arte.

Eu investi detalhadamente na história cinepoética de Bordwell, porque o projeto global de Television Style é iniciar o processo de construção de uma poética da televisão, uma telepoética, se você quiser. O leitor irá notar traços de abordagem Bordwell ao longo dos capítulos seguintes. Particularmente útil ao estudo do estilo televisivo é a noção de esquema, que torna o pesquisador capaz de caracterizar corretamente os traços estilísticos de certos modos de produção (por exemplo, a produção com múltiplas câmeras em estúdio das sitcoms) e discutir suas funções e significâncias. O modelo solução/problema de Bordwell da história do estilo também sustenta certas análises de Television Style – tais como minhas considerações sobre como a câmera única das sitcoms encontra diferentes soluções para os problemas da narrativa e para a apresentação do humor daquelas da norma do uso das múltiplas câmeras. Além disso, eu não estou sozinho em minha incorporação dos métodos de Bordwell na análise da televisão. Jason Mittell condena o fato de "os estudiosos terem dado pouca atenção aos atributos formais dos textos televisivos". Ele defende a abordagem Bordwell e afirma: "Ao olhar para Dragnet através de uma análise poética histórica para examinar como os significados e premissas culturais foram codificados no programa, podemos ver como esses elementos textuais encaixam-se em categorias culturais e genéricas mais amplas".

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Artigos de Fé

Estilo não é simplesmente uma fachada coberta por um roteiro; é a própria carne da obra.

(David Bordwell)

Os capítulos seguintes foram construídos com base em dois axiomas, dois virtuais artigos de fé:

1. O estilo televisivo existe. 2. O estilo televisivo é importante.

Eu começo Television Style chamando a atenção para a existência do estilo em um gênero televisivo para o qual muitas vezes presume-se que não o tenha, a humilde soap opera. No capítulo 1 o esquema que governa a soap opera é articulado e sua significação de ao vivo, entre outros sentidos, é explicada. O capítulo 2 continua as considerações sobre os esquemas estilísticos dos gêneros na televisão ao examinar o impacto da agressividade estilizada num gênero de filme, o filme noir, sobre um programa televisivo, Miami Vice. É aqui que vamos primeiro encontrar a noção de Caldwell do "televisual", do "exibicionismo visual" do meio, que também costura o capítulo 3. O televisual é um significativo dispositivo estilístico utilizado pelos anunciantes para nos convencer a consumir ostensivamente, mas não é o único. Este capítulo documenta sete outras técnicas estilísticas em seu arsenal, os quais servem a função estilística de interpelação. Ao meu axioma, “o estilo televisivo existe”, eu devo acrescentar o corolário: a televisão existe. Como eu escrevi esta introdução na primavera de 2009, há muitos sinais para se discutir se a era das redes de televisão está chegando ao fim. Para alguns, isso sinaliza o fim da própria televisão, mas a realidade da questão é complexa. A televisão continuará a existir de uma forma ou de outra num futuro próximo. O capítulo 4 tenta produzir algum sentido da colisão da velha mídia com a nova mídia – ambas com seus esquemas estilísticos próprios – ao examinar um exemplo de convergência fracassada. Os esforços online de ER nos anos 1990 ilustram como não aproveitar uma antiga propriedade de mídia para a nova mídia, mas também dão um exemplo esclarecedor de como o estilo de televisão deve se adaptar às exigências das novas mídias. O capítulo

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final de Television Style é de outro estudo de gênero, uma imagem espelha do primeiro capítulo sobre a soap opera. Contudo, onde a soap opera foi denegrida como sendo desprovida de estilo, a câmara única do sitcom do início dos anos 2000 muitas vezes era repreendida por ter estilo demais, por usar o estilo como um truque ou um florescimento visual desnecessário. Parece apropriado, portanto, fechar com um gênero no extremo oposto da hierarquia do estilo. Desde o nenhum estilo ao estilo completo, do estilo atenuado ao televisual, estes capítulos tecem juntos as questões centrais do estilo televisivo. Eles incorporam um método que combina de perto a descrição semiótica com articulações de esquemas estilísticos que são o resultado do problemas-resolução adotado por profissionais de televisão, cujas práticas do ofício são regidas por sistemas tecnológicos, econômicos e estéticos/culturais. Meu projeto em cada capítulo é entender como o estilo funciona num texto televisivo específico – um gênero, um programa, uma versão online de um programa, um comercial, um trabalho específico de um profissional, e assim por diante. O objetivo mais amplo é começar o trabalho de uma poética da televisão e advogar por uma atenção maior ao estilo nos futuros estudos de televisão. Não podemos mais usar a desculpa de Penelope Houston que nossos textos não podem ser examinados de perto como um romance ou uma peça de teatro porque não podemos levá-los para casa para estudá-los. Não só podemos estudar o texto de televisão, a partir do conforto de nossas telas de computador, de forma extremamente detalhada, como podemos "descrever" visualmente o texto com quadros facilmente capturados a partir do fluxo de imagens. A era digital tem proporcionado todas as ferramentas necessárias para um renascimento da análise imagem-som. Precisamos apenas nos atrever a olhar atentamente para a televisão.