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TODOS OS CASOS JURÍDICOS SÃO DIFÍCEIS?
Sobre as relações entre efetividade, estabilidade e teorias da decisão constitucional
Fernando Leal*
1. Introdução
Os vinte anos de vigência da Constituição de 1988, completados no ano passado,
poderiam certamente ser celebrados por meio de balanços e reflexões. Nesse sentido, diversas
conquistas poderiam ser festejadas, problemas apontados, propostas apresentadas e, por trás
de todas as tentativas de dar sentido à trajetória constitucional brasileira após a promulgação
da atual Constituição, diferentes objetivos visados ou efeitos produzidos poderiam ser
destacados. Os motes podem ser variados. Com efeito, os vinte anos da Constituição
poderiam ser resumidos em função do avanço do poder dos tribunais, dos casos mais
importantes apreciados pelo Supremo Tribunal Federal, do número elevado de emendas – e
da conseqüente constatação de que, no país, a alteração da Constituição passou a ser um
braço da política ordinária –, do quanto avançamos no processo de consolidação do projeto
de transição para um autêntico Estado democrático de direito, do grau de ativismo judicial
em temas como efetividade de certos direitos sociais, da constitucionalização de diversos
ramos do ordenamento, das promessas contidas no texto eventualmente não cumpridas e
tantos outros.
Na mesma empreitada de busca por um fio condutor a partir do qual as duas primeiras
décadas de vivência de nossa Constituição podem ser compreendidas e de realização de
análises retrospectivas de eventos importantes, este trabalho pretende debruçar-se sobre os
problemas decorrentes da pluralidade de métodos de decisão atualmente disponibilizados
pela dogmática constitucional e incorporados pelos tribunais para justificar os procedimentos
de interpretação e aplicação de normas constitucionais. Indo mais além, o texto pretende
apresentar alguns efeitos decorrentes da institucionalização de teorias hermenêuticas
* Doutorando em Direito na Christian-Albrechts Universität zu Kiel, Alemanha. Uma versão preliminar do presente artigo foi apresentada no Seminário de Pesquisa da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas em novembro de 2008. Gostaria de agradecer a todos os professores e pesquisadores participantes pelas críticas e comentários. Diego Werneck Arguelhes, Pedro Aleixo, Noel Struchiner, Pedro Adamy e Ana Paula de Barcellos também leram versões anteriores deste texto e, por suas observações, também agradeço.
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marcadas pela dificuldade de operacionalização, seja porque exigem a consideração de
muitos elementos normativos, seja porque se sustentam sobre elevados ônus de argumentação
para que uma determinada decisão possa ser considerada constitucionalmente justificada,
para não falar em propostas que prescrevem as duas coisas.
A análise será direcionada à problematização teórica de duas crenças recorrentes que
amparariam as buscas por métodos orientadores de decisões cada vez mais complexos. A
primeira refere-se à associação feita entre a necessidade de consideração de um conjunto
amplo de elementos normativos no processo de tomada de decisão – geralmente formado por
regras infraconstitucionais, precedentes e normas (regras e princípios) constitucionais – e a
promoção de efetividade da Constituição que decorreria, na mesma proporção, das
redundâncias argumentativas1 produzidas pelo uso recorrente de normas constitucionais
(especialmente de princípios) na fundamentação dos julgados. A segunda está ligada à tese
de acordo com a qual o investimento na criação de elevadas cargas de justificação para os
aplicadores do direito é a maneira mais adequada de promover estabilidade para ordens
constitucionais marcadas pela pluralidade e polissemia de objetivos. Neste último nível,
pretende-se essencialmente (i) questionar se a adoção generalizada de modelos teóricos
complexos como a ponderação, a concepção de “direito como integridade” de Ronald
Dworkin ou mesmo a busca pela satisfação dos elementos de justificação sugeridos por
teorias da argumentação jurídica realmente contribuem para o aumento de certeza jurídica e
(ii) colocar em xeque a crença de que o reconhecimento das limitações do raciocínio jurídico
para orientar tomadores de decisão sempre na direção de respostas claras e inequívocas é uma
espécie de “conquista” para a teoria da decisão jurídica na segunda metade do século XX2, de
1 Sobre o conceito cf. LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1995, p. 352ss, para quem redundâncias são fundamentais para a domesticação de complexidades, na medida em que elas evitariam erros relacionados à não consideração de informações relevantes ou a ocorrência de inconsistências reconhecíveis na operacionalização do sistema jurídico. Assim, quanto mais informações tem um sistema para processar, mais ele é direcionado a redundâncias suficientes (p. 353). Como será visto, contudo, a criação de incentivos para a consideração de mais elementos normativos para a tomada de decisão jurídica sem uma dogmática capaz de criar as condições para a sua operacionalização (ou seja, a manipulação adequada da informação preexistente para o trabalho de novas informações) só contribui para o aumento de complexidade, o que faz com que o uso recorrente de princípios constitucionais na fundamentação de julgados não produza as referidas redundâncias no sentido luhmanniano. Ao contrário, o aumento da pluralidade de métodos de decisão só contribuiria para o aumento da variedade no sistema jurídico (sobre o conceito p. 358s). 2 São emblemáticas as seguintes passagens dessa afirmação: “[p]recisou o neoconstitucionalismo trazer a luz e as águas reparadoras ao mundo do direito. Agora, fala-se do pós-positivismo, da inevitável intervenção da moral na solução dos casos difíceis, da técnica da ponderação na aplicação do direito, no ingresso dos fatos e da realidade na própria estrutura da norma jurídica, reconhece-se certa liberdade interpretativa criativa aos magistrados, a intervenção de sua esfera de pré-compreensão no processo decisório, a união lingüística entre sujeito e objeto e, dentre outras conquistas, a afirmação especial da normatividade dos princípios” (SCHIER, Paulo Ricardo. Novos Desafios da Filtragem Constitucional no Momento do Neoconstitucionalismo, in
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sorte que seria – mais do que inevitável – natural tratar quase todos os casos jurídicos como
difíceis.
A definição dos pontos de partida deste trabalho não foi aleatória. Mesmo que se
reconheçam todos os problemas atrelados a generalizações, parece possível resumir, do ponto
de vista do discurso teórico predominante entre constitucionalistas, nossa recente história
constitucional em torno de duas idéias: busca, em primeiro lugar, por efetividade, que
compreende o período imediatamente posterior ao da promulgação da Constituição até a
recepção da “teoria dos princípios”, com a decorrente afirmação da normatividade dessas
normas; e, em um segundo momento, que se estende até hoje, de desenvolvimento e
divulgação de teorias hermenêuticas destinadas a fornecer, ao menos em princípio, o
instrumental necessário para explicar e orientar a tomada de decisões seguras com base em
uma Constituição com as características antes enunciadas3, algo que, também em tese,
contribuiria tanto para a promoção de estabilidade, como para a continuidade crescente da
curva de efetividade4. Mostrar que essas apostas não são, sozinhas, suficientes para a
efetivação dos estados de coisas desejados pelos membros da comunidade jurídica que
investiram nelas os seus recursos é o objetivo principal deste texto.
As reflexões serão apenas conceitual e teoricamente desenvolvidas, deixando-se as
análises empíricas – reconhecidamente importantes – de lado. No fundo, pretende-se, mais do
que buscar as causas ou criticar diretamente certas posturas endossadas por tomadores de
decisão com a anuência acrítica ou mesmo o estímulo deliberado de parte da dogmática
SARMENTO, Daniel e PEREIRA NETO, Cláudio de Souza (Org.). A Constitucionalização do Direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 254, grifo acrescido). “O juiz não pode ignorar o ordenamento jurídico. Mas, com base em princípios constitucionais superiores, poderá paralisar a incidência da norma no caso concreto, ou buscar-lhe novo sentido, sempre que se possa motivadamente demonstrar sua incompatibilidade com as exigências de razoabilidade e justiça que estão sempre subjacentes ao ordenamento. Jamais deverá o magistrado se conformar com a aplicação mecânica da norma, eximindo-se de sua responsabilidade em nome da lei – não do direito! – supondo estar no estrito e estreito cumprimento do dever” (BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 291). 3 No mesmo sentido, SCHIER, Paulo Ricardo, op cit p. 251, para quem “[f]oi necessário, portanto, num primeiro instante, bradar o discurso da força normativa da Constituição e deixá-la protegida contra certos ataques. Foi ainda preciso, num segundo momento, tentar criar instrumentos dogmáticos que permitissem tecnicamente uma adequada compreensão e realização da Constituição”. 4 Nesse sentido cf. BARROSO, Luis Roberto e BARCELOS, Ana Paula de. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. in SILVA, Virgílio Afonso da (Org.) Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 273-274: “[e] a efetividade da Constituição, rito de passagem para o início da maturidade institucional brasileira, tornou-se uma idéia vitoriosa e incontestada (....). A efetividade da Constituição é a base sobre a qual se desenvolveu, no Brasil, a nova interpretação constitucional”.
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constitucional, sugerir uma nova agenda de discussões para os próximos períodos de vivência
constitucional a partir da consideração dos possíveis efeitos que a manutenção de certas
convicções e práticas poderia trazer para os referidos valores constitucionais. Nesse sentido,
mais do que se preocupar com a fixação de novas bandeiras ou a importação de métodos de
decisão, o que se sugere é a análise crítica e metodologicamente orientada para as
conseqüências das relações entre modelos de decisão constitucional, desenho institucional e o
modo mais apropriado para promover as principais aspirações normativas da Constituição de
1988.
2. Sobre as relações entre efetividade e estabilidade
Pode-se dizer que, atualmente, efetividade e estabilidade são, do ponto de vista
interno a uma certa ordem política, aspirações permanentes de qualquer Constituição. Por um
lado, a normatividade constitucional associada àquela pretende fundamentalmente orientar e
constranger comportamentos e os processos reais de produção e de tomada de decisão com
base no direito vigente, definindo critérios formais e materiais de validade e correção,
respectivamente, das leis e das decisões judiciais e criando expectativas para os seus
destinatários. Mas só a referência textual não é suficiente para que se possa falar em uma
influência efetiva da Constituição sobre a realidade social. Como um conjunto de normas, ela
não reproduz a realidade social, mas dirige expectativas cuja satisfação não é evidente e
justamente por isso depende de (contínuo) apoio jurídico.5 Nesse sentido, uma Constituição
pode ser dita efetiva quando existe dentro da comunidade na qual ela vige o reconhecimento
pelos poderes constituídos6, operadores do direito, cidadãos e pela dogmática jurídica de duas
necessidades básicas: a primeira refere-se à relação de compatibilidade permanente que deve
existir entre o material jurídico infraconstitucional e as normas da Constituição, ainda que de
forma indireta; a segunda, de deferência às preferências do constituinte originário relativas a
determinados estados de coisas (fundamentalmente as que se encontram no texto), seja por
meio do reforço da dimensão simbólica de algumas opções, seja pelo engajamento amplo no
sentido de buscar realizar efetivamente os programas constitucionais. Em termos mais gerais,
segundo a fórmula tradicional de Hesse, uma Constituição efetiva é aquela que determina e
5 GRIMM, Dieter. Die Zukunft der Verfassung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 15. 6 Grimm fala, no mesmo sentido, em uma base consensual como precondição para a validade fática de uma Constituição. Por meio dessa base é que se reduzem os dissensos, fazendo com que os conteúdos de uma Constituição “não sejam mais tema, mas premissas para decisões políticas”. GRIMM, Dieter. Die Zukunft der Verfassung. op. cit., p. 15-16.
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motiva o comportamento humano até o ponto em que as suas normas são válidas não apenas
hipotetica, mas também faticamente7.
Por outro lado, uma das principais pretensões de uma Constituição é tornar-se uma
estrutura estável tanto de organização e exercício do poder, como de satisfação das
expectativas normativas que sua promulgação e continuidade criam nos cidadãos. Assim, a
estabilidade constitucional exige, em uma dimensão política, que a Constituição esteja, em
alguma medida, entrincheirada contra as tentativas de alteração formal de seu texto,
especialmente nos momentos de divergência política ou tensão interinstitucional.8 Mas, não
só isso, um grau mínimo de estabilidade – aqui em sentido jurídico, como exigência da idéia
de Estado de Direito – também não pode ser reconhecido sem que os destinatários do
conteúdo constitucional tenham condições de coordenar suas ações em função do
conhecimento do sentido de suas principais normas9, independentemente da erupção de
tensões políticas pontuais. Freqüentes e distintas redefinições de sentido de suas normas,
desvinculação aos precedentes formulados por seus intérpretes autorizados e falta de clareza
na definição de um método de aplicação são barreiras comuns à estabilização do conteúdo
jurídico de uma Constituição.
Existe, no fundo, uma relação de mútua implicação entre essas dimensões política e
jurídico-normativa da estabilidade constitucional. De fato, o desenvolvimento da vida de uma
certa sociedade dentro das regras e condições materiais do jogo político fixadas pela ordem
constitucional depende da possibilidade de o próprio poder organizado pela Constituição (em
modelos como o nosso, o Estado, em cada um de seus três poderes) conhecer e atuar de
acordo com aquelas mesmas regras e condições. Para tanto, é indispensável que o órgão
estatal responsável pela fixação do sentido do que está ou não em conformidade com a
Constituição tenha as suas decisões respeitadas e reforçadas pelos órgãos responsáveis pelo
exercício do poder político, algo que, no entanto, não ocorre sem que o Tribunal
Constitucional – ou a corte que lhe faças as vezes – desenvolva o grau desejável de segurança
na definição do que prescreve a Constituição para que Executivo e Legislativo possam
coordenar suas ações nos limites do jurídico. Em outras palavras, em ordens constitucionais 7 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20a. Edição. Heidelberg: Müller, 1995, p. 16. 8 Entenda-se por “em alguma medida entrincheirada” a necessidade de existência de mecanismos que tornem mais custosos os processos de barganha para a mudança do texto, e não a impossibilidade de qualquer alteração. 9 HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992, p. 166s.
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como a brasileira, em que o Judiciário é “o guardião da Constituição”, quanto mais o
Judiciário cria as condições para o desenvolvimento da estabilidade constitucional jurídica,
definindo e solidificando as expectativas normativas com base na Constituição criadas na
comunidade jurídica, mais Executivo, Legislativo e demais instituições recebem incentivos
para agir de modo a promover a estabilidade constitucional política, mantendo a integridade
constitucional10. E vice-versa.
Sem embargo do exposto, ao contrário do que associações mais imediatas possam
sugerir, a estabilidade constitucional não exige (a) a cristalização do texto original, (b) o
endosso da ideologia predominante no momento de promulgação da Constituição e (c)
tampouco sugere, per se e a priori, estratégias formalistas de interpretação como as mais
adequadas para a decisão constitucional. Ao contrário, como virtude formal dinâmica, a
estabilidade constitucional se expressa exatamente na continuidade dos pré-compromissos
materiais e no respeito às regras procedimentais fundamentais de uma certa Constituição,
ainda que, no tempo, o texto seja alterado, novas ideologias se imponham e estratégias mais
flexíveis de decisão com base na Constituição sejam adotadas por seus intérpretes.
Estabilidade, pode-se dizer, existe quando a vivência constitucional ocorre no âmbito das
instituições desenhadas e o conjunto de restrições formais e materiais (essencialmente os
direitos fundamentais) às deliberações dos poderes constituídos mantém sua integridade e é
capaz de orientar prospectivamente as ações dos destinatários de suas normas.11
10 É certo que se pressupõe uma série de condições para a correção da relação, que não é necessária. Assim, para que a definição do conteúdo da Constituição não implique rupturas políticas drásticas ou a “ordinarização” da política constitucional, é preciso que haja relativa consolidação democrática e incentivos para que os atores políticos atuem, desde o início, dentro das regras do jogo e não alterem o texto. Nesse quadro, características da arquitetura constitucional também influenciam decisivamente a definição daqueles incentivos. O caráter mais ou menos analítico da Constituição, o quórum exigido para emendá-la ou o nível de ativismo judicial sugerido por esquemas como os de distribuição de competências – e, posteriormente, o grau de ativismo decorrente do modo como a corte compreende o seu papel – são apenas alguns fatores capazes de contribuir para a atrofia do processo político, algo que, em democracias mais maduras, pode gerar embates mais drásticos entre Parlamentos e Tribunais. Sobre o assunto cf. a análise proposta por HIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy. The origins and consequences of the new constitucionalism. Cambridge: HUP, 2004. Agradeço a Diego Werneck por me fazer atentar para este ponto. 11 Aqui há certamente um problema, na medida em que a identificação de quais são os pré-compromissos fundamentais de uma Constituição pode variar contingentemente e pelo fato de ser amplamente discutível quais são os elementos que definem conceitualmente uma Constituição e quais direitos podem ser realmente carcaterizados como fundamentais. Para evitar que se entre nesse tipo de discussão, que não está diretamente relacionada aos objetivos centrais deste texto, parte-se de uma concepção estritamente formal de estabilidade constitucional, que pode ser resumida no grau de satisfação das expectativas criadas por suas normas e na potencialidade de as leituras desenvolvidas do texto constitucional pelo(s) tribunal(is) que a aplica(m) e pela dogmática constitucional orientarem o comportamento dos cidadãos e instituições a ela subordinados. Agradeço a Ana Paula de Barcellos por me fazer atentar para este ponto.
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Efetividade e estabilidade são, assim, condições formais de possibilidade de qualquer
grau de fidelidade constitucional. Sem algum grau da primeira, o texto da Constituição tende
a se tornar letra morta12; sem a segunda, seus pré-compromissos sucumbem às contingências,
fomentando incerteza.
É igualmente em torno dessas duas pretensões que se pode explicar uma série de
traços considerados consensualmente cruciais para um desenho constitucional adequado.
Rigidez, jurisdição constitucional, consagração de liberdades negativas e separação e
independência entre poderes compõem atualmente um núcleo de condições consideradas
cruciais (Nova Zelândia e Inglaterra seriam, para os primeiros traços, exemplos de
exceções13) para a criação de um ambiente no qual possam estar garantidos (i) a supremacia
da Constituição, (ii) a presença de incentivos para que os agentes públicos e atores
constitucionais “respeitem as regras” do jogo político ordinário e (iii) mecanismos de
correção contra eventuais distorções que possam afetar a estrutura político-jurídica protegida
por uma ordem constitucional14.
À luz desses pontos, efetividade normativa e estabilidade jurídico-institucional
parecem – ao menos no âmbito da teoria da Constituição – andar lado a lado15. Afinal, se as
normas constitucionais não são efetivas, pouco espaço parece haver para que exista algum
grau de estabilidade criada normativamente pela própria Constituição em relação à atuação
dos poderes constituídos16. Da mesma forma, se as instituições não se reconhecem
constrangidas pela normatividade constitucional, tornando o jogo político e o respeito às
garantias constitucionais instáveis, não há condições para a afirmação de qualquer grau de
efetividade. Não é por outra razão que, como dito, o modo como o sistema constitucional é
12 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, op. cit p. 16. 13 Para uma descrição do funcionamento do “Westminster system of government” com ênfase no modelo neozelandês e das mudanças recentes que contribuíram para a expansão do poder do Judiciário no país, o que relativiza o caráter de exceção do exemplo apresentado, cf. HIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy. The origins and consequences of the new constitucionalism, op. cit. p. 24-27, 82-89. A referida mitigação valeria, em certo sentido, também para o modelo inglês após a implementação do Human Rights Act de 1998. 14 Cf. VERMEULE, Adrian. Selection effects in constitutional law. In Virginia Law Review, vol. 91, nº 4, jun. 2005, pp. 953-998. COOTER, Robert D. The strategic constitution. Princeton: Princeton University Press, 2002. 15 Adiante tentar-se-á defender que, a longo prazo, um trade-off entre efetividade e estabilidade é praticamente inevitável. 16 Reitere-se que a análise feita neste momento é meramente conceitual, o que significa que se pressupõe que as Constituições sobre as quais se fala não contêm em seus textos previsões que não valham a pena ser efetivadas. Nesses casos excepcionais, em que a Constituição contém regras problemáticas, a equação de equilíbrio entre estabilidade e efetividade depende do amplo consenso de que o conteúdo negligenciado não afeta a integridade da Constituição.
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desenhado é capaz de catalisar, em maior ou menor medida, as condições para que a
operacionalização da Constituição não se afaste daqueles dois objetivos. A presença de
restrições formais e materiais acompanhada da instituição de mecanismos de controle
blindados contra as forças majoritárias sugere, de uma forma geral, o arcabouço necessário
para a consagração de uma ordem constitucional efetiva e estável.
Nada obstante, é preciso considerar que, ao lado de efetividade e estabilidade,
concorrem diversas outras finalidades incorporadas em sistemas constitucionais específicos.
Nos modelos constitucionais dos principais Estados democráticos de direito contemporâneos,
além das duas referidas aspirações formais, as Constituições tornaram-se redutos de múltiplos
direitos de diversas gerações e, especialmente em regimes políticos de transição democrática,
de programas políticos, sociais e mesmo econômicos17. Como unidades que tendem a agregar
múltiplos e amplos objetivos, essas Constituições tendem, por conseguinte, a ser centros de
tensões normativas permanentes, que se revelam estaticamente em casos concretos e
dinamicamente quando se avaliam os efeitos sobre certos valores constitucionais atrelados ao
modo como as situações singulares são decididas.
Essa constatação eleva fundamentalmente a importância dos trabalhos de delimitação
do constitucionalmente adequado levados adiante pelas instituições judiciais e/ou do
Tribunal Constitucional encarregado de fixar o sentido das disposições constitucionais e
pela dogmática constitucional18. Isso porque a inclusão de comandos normativos vagos e o
aumento da quantidade de objetivos visados aumentam sensivelmente a indeterminação do
que efetivamente prescreve uma determinada Constituição e a fortiori o próprio direito. Não
há, em outras palavras, mecanismos seguros o suficiente para identificar em abstrato (i) quais
17 Nova tarefa constitucional pode ser identificada na necessidade de garantia de segurança pelo Estado em uma sociedade marcada pelo risco decorrente de progressos técnicos e científicos, como manipulações genéticas e desenvolvimento de novos produtos químicos. Uma precaução orientada para o futuro nesse contexto passa a ser uma recente tarefa estatal cuja realização é também incorporada pelo debate constitucional. Cf. GRIMM, Dieter. Die Zukunft der Verfassung, op. cit. p. 417-420. 18 Por “dogmática constitucional” entendo neste texto a delimitação ao âmbito do direito constitucional da definição (mais geral) de dogmática jurídica. Sem adentrar em maiores discussões a respeito do conceito de dogmática jurídica, parte-se da definição proposta por Robert Alexy, segundo a qual “uma dogmática jurídica é (i) uma classe de enunciados (ii) relacionados às normas postas e à jurisprudência dos tribunais, mas que com a descrição dessas não se identifica, (iii) mutuamente conectados, (iv) colocados e discutidos no âmbito de uma ciência jurídica institucionalmente empreendida e (v) que possuem conteúdo normativo” (Cf. ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation. 3ª. Ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, p. 314). Entre as suas funções está a de construção de parâmetros preparatórios para a decisão jurídica. Sobre a importância da produção da dogmática jurídica para a orientação do processo de decisão jurídica visando à redução da insegurança na aplicação do direito, cf. LUHMANN, Niklas. Rechtssystem und Rechtsdogmatik. Stuttgart/Berlin/Köln: Kohlammer, 1974, cap. II, especialmente item 3 e, neste, pp. 17-18.
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são os estados de coisas efetivamente visados pelas principais normas da Constituição, (ii)
quais são as medidas necessárias para promover certos princípios constitucionais, (iii) como
resolver as colisões entre objetivos constitucionais e (iv) quais são as margens legítimas de
atuação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário no que se refere à promoção e tutela
desses objetivos. Por conseguinte, se não é possível resolver essas questões antes da
ocorrência de casos concretos, as dificuldades anteriormente apontadas acabam por se tornar
preliminares permanentes em qualquer contexto de decisão constitucional. Não é por outro
motivo que se assume que, na complexidade típica dos atuais Estados democráticos de
direito, os problemas tradicionais da teoria constitucional acabam se tornando problemas de
decisão com base na Constituição, já que é nos casos concretos que eles particularmente se
revelam.
Por isso, torna-se crucial a definição de uma metodologia de decisão suficientemente
segura para reduzir a incerteza na solução daquelas questões e, ao mesmo tempo, garantir a
promoção dinâmica das virtudes formais visadas pela mesma ordem constitucional. A
domesticação dessa complexidade, que, como se verá, torna-se condição necessária para a
afirmação de qualquer nível de efetividade e de estabilidade constitucionais, depende
essencialmente da superação de três ordens de questões no contexto de aplicação. A primeira
refere-se à determinação do sentido normativo das formulações textuais mais amplas contidas
nas Constituições, como dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade. A segunda
reconduz-se ao modo como os conflitos de finalidades constitucionais (políticas ou morais)
devem ser solucionados. A terceira, como impedir que muitos conflitos constitucionais
apenas latentes em alguns casos sejam efetivamente encarados pelos tomadores de decisão,
como ocorre em situações em que se constata a incidência de regras, mas, a partir de um
modelo particularista de decisão, o aplicador opta por buscar a “leitura constitucional” da
regra a partir de um princípio constitucional e termina por localizar uma possível colisão com
outro princípio de mesma hierarquia.
Se a solução desses problemas não parece simples, a dificuldade se acirra se
pensarmos que o grande locus de composição dos objetivos – formais e materiais, imediatos
e mediatos – de qualquer Constituição com pretensões de onipresença, o da hermenêutica
constitucional, não encontra, em princípio, constrições nos textos constitucionais. Em outras
palavras, pelo simples fato de o texto de qualquer Constituição não sugerir metodologias de
interpretação e de decisão consideradas apropriadas para resolver os problemas de
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delimitação de sentido e imbricação entre as suas normas (como se o texto contivesse um
“manual de decisão” claro e explícito, o que sequer é possível, já que este manual estaria, ele
mesmo, sujeito a interpretações posteriores), não há como garantir com segurança se e como
as preferências e objetivos considerados constitucionalmente relevantes serão realizados.
Essa conclusão traz três complicadores decisivos para a definição do conceito de
fidelidade constitucional nos modelos complexos típicos dos Estados democráticos de direito
contemporâneos. Se é certo que o texto constitucional não é condição suficiente para a
extração direta de elementos importantes para o procedimento decisório, como a definição da
natureza das normas constitucionais e do modo de aplicação de cada espécie normativa, a
produção da dogmática constitucional relativa ao estabelecimento de parâmetros que
preparam a decisão com base em normas constitucionais passa a ser um importante elemento
na difícil equação que compõe as aspirações de efetividade e estabilidade. No mesmo
sentido, a mediação entre as realidades textual e normativa da Constituição não pode ser
adequadamente feita sem que o Poder Judiciário, o Tribunal Constitucional ou qualquer outro
órgão responsável, em uma dada realidade institucional, pela interpretação definitiva da
Constituição (i) deixe claros os padrões hermenêuticos com base nos quais as decisões
fundadas sobre normas constitucionais são tomadas e (ii) siga uma racionalidade decisória
que garanta aos jurisdicionados um grau de previsibilidade – pelo menos metodológica – no
enfrentamento de casos futuros. Finalmente, é preciso que haja um diálogo permanente entre
o resultado da produção da dogmática constitucional e as práticas dos tribunais, cada qual
influenciando e sendo influenciado pelo outro. Quando pelo menos essas condições são
satisfeitas, o procedimento de decisão constitucional torna-se mais controlável e são criadas
as condições para a estabilização jurídica e o reconhecimento da efetividade da Constituição.
Se o raciocínio desenvolvido até aqui pode ser considerado correto, o fato é que as
características estruturais de uma Constituição no momento zero em que é promulgada são
muito menos decisivas para a promoção de efetividade e estabilidade do que o modo pelo
qual os atores responsáveis pelo desenvolvimento político e jurídico da sociedade lidam com
o texto nos momentos subseqüentes. Exemplo disso poderia ser percebido no reconhecimento
relativamente amplo, por doutrina e jurisprudência, de que a Constituição brasileira de 1988 é
uma Constituição “principiológica”, ainda que seu caráter analítico sugira que o constituinte
originário a tenha desenhado para que a grande parte de suas normas funcionasse como
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regras19. O texto, nesse caso, parece não ter sido capaz de encaminhar as discussões a
respeito da definição de sentido e da estrutura predominante das normas da Constituição, na
medida em que doutrina e jurisprudência privilegiaram o desenvolvimento de conexões
axiológicas sugeridas por idéias como dignidade humana e outros direitos fundamentais,
federalismo, democracia e Estado de Direito, em detrimento das referências textuais mais
imediatas.
Nesse cenário de busca pela composição necessária entre as finalidades materiais da
Constituição e as aspirações formais de efetividade e estabilidade, a disputa entre os métodos
de interpretação e decisão com base em normas constitucionais considerados mais adequados
pode ser resumida a uma disputa entre teorias diferentes da Constituição e do papel da
Jurisdição Constitucional. Sendo assim, as diferentes perspectivas a respeito de qual é o papel
da Constituição e de seus intérpretes e de como deve se desenvolver e ser justificado o
raciocínio jurídico com normas constitucionais acabam por protagonizar as discussões a
respeito do ambiente próprio para a garantia (ou não) da normatividade da Constituição e
para a satisfação possível das expectativas normativas criadas a partir dos sentidos mais
imediatos do texto.
A partir desse pressuposto, parece crucial comparar, a partir de certos traços típicos de
teorias decisórias, os diferentes modos a partir dos quais cada proposta pretende contribuir
para a construção de um estado de coisas marcado pela efetividade e estabilidade
constitucionais. Os altos custos vinculados às tentativas de fazê-lo individualmente em
ambientes marcados pela concorrência de numerosas propostas teóricas podem encaminhar o
desenvolvimento da análise na direção da construção de critérios úteis para o agrupamento de
diferentes modelos de decisão. Nesse sentido, será proposto um caminho de solução para as
disputas entre teorias hermenêuticas sem que se caia em apresentações particularistas ou em
qualquer tipo de armadilha de seleção enviesada20.
19 ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “Ciência do Direito” e o “Direito da Ciência” . Artigo mimeografado gentilmente cedido pelo autor, p. 3-9. 20 O objetivo da classificação proposta é meramente organizatório. O que se visa é tentar reunir diferentes concepções teóricas a partir de traços comuns apenas para facilitar a apresentação dos argumentos centrais deste trabalho, que não se resumem à exposição detalhada do modo de funcionamento dessas teorias. Por tal razão é em princípio possível para o leitor passar diretamente para o próximo tópico do trabalho. Sem embargo disso, mantém-se a classificação sugerida especialmente pelo seu pretenso caráter simplificador.
12
3. Amplas/Restritas, Profundas/Superficiais: uma proposta de classificação de
estratégias de decisão com normas constitucionais
Na arena de disputa entre métodos de tomada de decisão e justificação, diversas
soluções se apresentam como as mais adequadas à manutenção do maior grau possível de
fidelidade constitucional, cujo conteúdo, como visto, pode ser estipulado em função do nível
de promoção, de forma estática (i.e., caso a caso ou na produção da legislação, aqui
considerada em sentido amplo), dos princípios materiais da Constituição e, dinamicamente,
dos seus objetivos formais (notadamente efetividade e estabilidade).
As sugestões passam pelos métodos tradicionais de interpretação de Savigny e se
estendem por incorporações, versões ou adaptações de teorias desenvolvidas por
constitucionalistas, teóricos ou filósofos do direito mais recentes, como Konrad Hesse,
Robert Alexy e Ronald Dworkin, para mencionar apenas os nomes mais comumente citados
entre nós.
Uma possível explicação para a entrada freqüente e a correspondente influência de
teorias abrangentes do direito21 no modo de compreensão e na construção de propostas de
interpretação e aplicação da Constituição está na posição hierárquica desta dentro do sistema
jurídico. Sendo ela o fundamento positivo de validade último do sistema, as discussões a
respeito da definição de sentido ou de realização das normas constitucionais não encontram
suporte normativo em outro nível da ordem escalonada que representa o sistema jurídico22.
Em outras palavras, não há nenhuma outra norma posta acima ou ao lado da Constituição
capaz de orientar as escolhas daqueles que devem tomar decisões com base em suas normas
ou construir os parâmetros preparatórios para a decisão constitucional23. Não é por outra
razão que o direito constitucional serve-se – e acaba se tornando refém – dos
21 Aqui entendo por “teoria abrangente do direito” toda a teoria que vincula um modelo de aplicação do direito a um conceito de direito ou a uma concepção específica de justiça. Essa associação, ressalte-se, não é necessária e o ônus de realizá-la compete ao autor que visa a defendê-la. Este, por exemplo, é o argumento teórico fundamental em BIX, Brian. Robert Alexy Radbruch’s Formula and the Nature of Legal Theory, in Rechtstheorie, n. 37 (2006), pp. 139-149. 22 Para uma concepção diferente e reformulada da estrutura hierárquica do sistema jurídico, assim como da compreensão tradicional de supremacia constitucional a partir da compreensão do sistema jurídico como uma ordem também composta por princípios (formais e materiais) e na qual normas definitivas são explicadas em termos de ponderações cf. SIECKMANN, Jan. Recht als normatives System. Die Prinzipientheorie des Rechts. Bande-Baden: Nomos, 2009, p. 20-21, 120ss, 140-141. 23 Exceções poderiam ser feitas ao modo como os processos de integração regional lidam com certos documentos supranacionais, como a Convenção Européia de Direitos Humanos e outros atos no âmbito da União Européia.
13
empreendimentos teóricos de autores e da prática do Tribunal Constitucional24, que, na busca
por aceitação pela comunidade jurídica e conseqüente institucionalização (i.e. endosso
generalizado pelos tomadores institucionais de decisão), acabam por servir-se de teses típicas
de outros campos do saber, como história, economia, ciência política, religião ou filosofia25.
A impossibilidade normativa de se fechar as portas para a entrada de razões extrajurídicas
cada vez mais densas na argumentação constitucional nos contextos de justificação e de
aplicação é que permite afirmações como a de que “o problema do direito constitucional é
que ninguém sabe o que conta como argumento”26, especialmente quando, por esses
caminhos, o direito acaba jurisdicizando debates que se desenvolvem em outras arenas, como
as que se dão entre filósofos morais, economistas e cientistas políticos.27 A quantidade e a
amplitude de objetivos visados por uma Constituição, a quantidade de programas albergados
e o caráter mais ou menos analítico de um texto constitucional apenas contribuem para
facilitar ou dificultar esse processo.
Não se escapa à conclusão de que o desenvolvimento ou a importação de teorias
podem contribuir para o aumento da complexidade, em princípio, característica da teoria e da
decisão constitucional nos Estados Democráticos de Direito contemporâneos. No âmbito
deste trabalho, em que se procura muito mais identificar os problemas atrelados ao endosso
de certas propostas teóricas e os seus efeitos sobre os valores efetividade e estabilidade,
parece pouco útil a descrição minuciosa das inúmeras propostas que lutam pela primazia da
determinação dos métodos de decisão constitucional. Por tal motivo, embora se reconheça
que as teorias constitucionais de decisão mais difundidas se fundam sobre pressupostos de
justificação e modelos de aplicação normativa diferentes, partir-se-á da possibilidade de
agrupá-las em função de dois critérios: a quantidade de elementos normativos a serem
considerados (especialmente normas constitucionais) nos processos de decisão e os ônus de
justificação pressupostos que devem ser superados para a aplicação adequada dos modelos. A
partir desses parâmetros, será possível carcaterizá-las, respectivamente, como mais ou menos
amplas ou restritas, profundas ou superficiais.
24 Nesse sentido, não é errada a famosa frase do Chief Justice Charles Evan Hughes: “a Constituição é o que os juízes dizem o que ela é”. 25 COOTER, Robert D. The Strategic Constitution. Princeton: Princeton University Press, 2002, p. 1. 26 GERHARDT, Michael J. ROWE, Thomas D. Constitutional Theory: Arguments and Perspectives. Charlottesville: Michie Company, 1993, p. 3. 27 Para uma discussão a respeito dos problemas da interdisciplinaridade nos processos de tomada de decisão jurídica, cf. SCHUARTZ, Luis Fernando. Interdisciplinaridade e Adjudicação: caminhos e descaminhos da ciência do direito. Texto disponível em http://virtualbib.fgv.br/dspace/handle/10438/2174?show=full.
14
De um lado, teorias jurídicas de decisão podem exigir que o aplicador do direito
considere uma ou mais normas definidoras de comportamento para que a sua decisão possa
ser considerada justificada. Assim, as teorias podem exigir a consideração de conjuntos de
elementos normativos mais amplos (por exemplo, muitos princípios) ou mais restritos (por
exemplo, uma única regra) a partir dos quais uma decisão deve ser tomada. Além disso,
teorias decisórias podem sugerir, além daqueles conjuntos, a consideração de elementos
normativos de segundo grau (meta-regras de parada em processos argumentativos ou meta-
razões que entrincheiram regras, por exemplo) para impedir ou incluir outras razões
normativas no processo decisório, afetando o grau de amplitude ou restrição da teoria. Dessa
forma, as estratégias de decisão com base em normas constitucionais poderiam ser,
primeiramente, caracterizadas como amplas ou restritas em função da quantidade de
elementos normativos de primeiro e de segundo graus que devem ser considerados,
respectivamente, para a formulação de um juízo normativo singular e para autorizar ou
excluir a apreciação de outras razões incidentes em um caso concreto.
Nesse campo qualquer versão de um autêntico formalismo de regras28, que exige do
aplicador do direito a consideração de apenas uma e somente uma norma para a tomada de
decisão, a partir da qual se extrairá lógico-dedutivamente a única solução correta para um
dado problema jurídico, poderia ser definida como uma estratégia de decisão restrita. A
consideração de outras razões para o processo decisório, na hipótese, é simplesmente
inadmissível, já que se pressupõe que o sistema jurídico não é capaz de fornecer mais de uma
resposta normativa para uma mesma situação de fato. Assim, a simples constatação de
incidência de uma norma de primeiro grau em um determinado caso revela-se razão
suficiente para a enunciação de um juízo normativo singular. A correção deste último seria
apreciada apenas a partir da relação de compatibilidade lógica que se pode extrair entre
premissas e conclusões29.
Ao contrário, estratégias de decisão que exigem do aplicador um esforço de coerência
global, demandam a consideração de um conjunto maior de elementos normativos, na medida
em que prescrevem a compatibilização da decisão enunciada com todas as normas do sistema 28 Sobre o assunto cf. TAMANAHA, Brian. Law as means to an end: threat to the rule of law. Nova Iorque: CUP, 2006, p. 144ss e STRUCHINER, Noel. Indeterminação e Objetividade: Quando o Direito diz o que não queremos ouvir, in: MACEDO, Ronaldo Porto (Org.) Direito e Interpretação: Racionalidades e Instituições, 2010 (no prelo. Texto cedido gentilmente pelo autor). 29 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. Trad. Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 31ss.
15
como parâmetro de correção. Nisso estaria a sua amplitude. Uma leitura possível da teoria de
justificação proposta por Dworkin em “O Império do Direito” seria um típico caso desse
segundo grupo de estratégias, pois exige do aplicador o compromisso, a partir do presente,
com o desenvolvimento da prática jurídica e política da comunidade considerando tudo o que
já se construiu na busca pela manutenção de uma continuidade horizontal do direito30. Daí a
adequação da metáfora do “romance em cadeia” para descrever como deve se desenvolver o
processo decisório para o autor: cada intérprete deve considerar o momento de tomada de
decisão como o de elaboração do próximo capítulo de um longo livro; seu dever fundamental
é continuar contando a história da melhor maneira possível, sem perder a linha narrativa já
desenvolvida por seus antecessores31. Na aplicação do direito, o sistema de princípios,
direitos e deveres dos membros da comunidade é a principal fonte de justificação das
interpretações realizadas pela prática jurídica. A melhor interpretação para um problema
complexo, sugere Dworkin, está no melhor enquadramento possível que o aplicador pode dar
às respostas plausíveis dentro de algum sistema coerente de princípios vigentes, devendo ele
escolher a resposta que apresente sob a melhor luz possível as instituições e a prática jurídica
da comunidade. Como se percebe, a quantidade de elementos normativos de primeiro grau a
serem harmonizados exigidos pela teoria para a tomada de uma decisão não é pequeno (um
largo número de princípios e precedentes), o que lhe garante um elevado grau de amplitude.
Em um mesmo sentido, embora com argumentos completamente diferentes, o modelo
de tomada de decisão baseado em regras sugerido pelo positivismo presumido de Frederick
Schauer também poderia ser chamado de amplo. Em rápidos meios, o entrincheiramento das
30 Em favor dessa leitura cf. MARMOR, Andrei. Interpretation and Legal Theory. Oxford: Clarendon Press, p. 79. Pela possibilidade de defesa de que Dworkin endossa um modelo de coerência monística (coerência em sentido forte ou simplesmente coerência global), embora seu ambíguo texto permita crer que a teoria do direito como integridade não pressupõe necessariamente qualquer grau de coerência entre uma decisão e demais elementos normativos do sistema jurídico para que aquela possa ser considerada correta, cf. RAZ, Joseph. Speaking with one voice: on Dworkinian Integrity and Coherence, in Burley, Justine (Ed.). Dworkin and his Critics . Malden/Oxford/Carlton: Blackwell, 2004, pp. 285-290. 31 Nas palavras do autor: “Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade. (...) em nosso exemplo, contudo, espera-se que os romancistas levem mais a sério suas responsabilidades de continuidade; devem criar em conjunto, até onde for possível, um só romance unificado que seja da melhor qualidade possível. Cada romancista pretende criar um só romance a partir do material que recebeu, daquilo que ele próprio acrescentou e (até onde lhe seja possível controlar esse aspecto do projeto) daquilo que seus antecessores vão querer ou ser capazes de acrescentar. Deve tentar criar o melhor romance possível como se fosse obra de um único autor, e não, como na verdade é o caso, como o produto de muitas mãos diferentes”. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito . Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 276-277.
16
razões suportadas por regras jurídicas justificado normativamente pelo fato de elas
promoverem confiança, eqüidade, eficiência ao processo decisório, estabilidade para o
sistema e serem ferramentas adequadas para a alocação do poder, reduz a possibilidade de
derrotabilidade quando se constata a incidência de qualquer norma daquela espécie. Embora
para a imensa maioria dos casos o resultado prático (a aplicação das regras incidentes) seja o
mesmo do formalismo inicialmente indicado, a amplitude da teoria reside no fato de as cinco
razões normativas apresentadas (que também poderiam ser caracterizadas como princípios
formais32) aparecerem permanentemente sobrepairando qualquer regra, independentemente
dos objetivos visados por elas. Nisso está a garantia, no âmbito normativo-estrutural, de
entrincheiramento de suas razões. Dessa forma, eventual derrotabilidade de uma regra
incidente se justificaria na hipótese de a não aplicação da conseqüência por ela prevista ser
particularmente imperativa, como ocorre em situações de flagrante injustiça33. Nos limites de
um modelo como esse, contudo, para os casos em que a exigência de superação da regra não
é clara, poder-se-ia tanto admitir que a presença de dúvida é razão suficiente para que a regra
seja aplicada, como assumir que esses casos legitimam o desenvolvimento de longas cadeias
de argumentação para que o tomador de decisão tome a decisão mais adequada à luz das
circunstâncias. Ao que parece, o modelo de tomada de decisão baseado em regras sugerido
por Schauer se aproxima mais do primeiro desenho. Nessa leitura, os elementos normativos
indicados funcionariam como efetivas barreiras à consideração das razões favoráveis à
derrotabilidade no caso de dúvida, motivo pelo qual o positivismo presumido será aqui
também considerado um modelo que pouco admite justificações profundas tanto para a
aplicação de uma regra incidente, como para a sua superação, já que, neste último caso, ele
exige que as razões para a não aplicação da conseqüência prevista pela norma sejam
32 A descrição do funcionamento das razões apresentadas por Schauer como “princípios formais” visa apenas a compatibilizar a sua proposta com o modelo de Alexy de decisão com base em regras. De acordo com este “quanto maior é o peso dado em uma ordem jurídica aos princípios formais, tanto mais forte é o caráter prima-facie de suas regras” (ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2006, p. 89). Na concepção de Sieckmann, seria a principal função dos princípios formais estatuir a vinculação aos resultados de procedimentos prévios. Cf. SIECKMANN, Jan-Reinard. Regelmodelle und Prinzipienmodelle des Rechtssystems. Baden-Baden: Nomos, 1990, S. 147. A impossibilidade de se defender a leitura proposta passa pela crítica direta à eficiência com que os princípios formais poderiam realmente evitar ponderações. Para uma crítica geral a respeito do papel desempenhado por essas normas no raciocínio jurídico cf. Hwang, Shu-Perng. Verfassungsgerichtliche Abwägung: Gefährdung der gesetzgeberischen Spielräume, in: AöR, vol. 133, 2008, pp. 607-628. 33 SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. A philosophical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, especialmente cap. 7. Em sentido próximo ao apresentado – já que tratamos do positivismo presumido de Schauer – poder-se-ia citar a concepção de Joseph Raz sobre as regras como normas que, ao prescreverem comportamentos, encerrariam tanto razões favoráveis à sua conclusão (razões de primeira ordem) como razões excludentes, que previnem outros fatos de funcionarem como razões. Cf. RAZ, Joseph. Practical Reasons and Norms. New York: Oxford University Press, 2002. Um conseqüencialismo de regras se justificaria no mesmo sentido.
17
particularmente muito fortes, i.e. evidentemente capazes de sobrepujar a trincheira criada
pelas cinco razões enunciadas.34
Sob uma segunda perspectiva, as teorias de interpretação e aplicação de normas
constitucionais poderiam ser classificadas a partir dos ônus de justificação que devem ser
superados para a enunciação de um juízo normativo racionalmente aceitável em cada caso.
Assim, quanto maior for a dificuldade prima facie para a tomada de uma decisão justificável
nos limites da teoria, mais ela poderá ser considerada, na tipologia proposta, profunda. Ao
revés, quanto menor for o esforço de justificação de uma decisão específica nos limites da
proposta, mais ela poderá ser considerada superficial. Como se nota, a distinção entre teorias
profundas e superficiais não é do tipo lógica ou estrutural, mas meramente gradual.
O modelo da ponderação de princípios entendidos como “mandamentos de
otimização”, nesse quadro, pode ser considerado profundo, na medida em que a composição
das normas imbricadas em um caso concreto exige do tomador de decisão um esforço
elevado de justificação, expressado na necessidade de análise profunda das possibilidades
fáticas e jurídicas de promoção, na maior medida possível, dos princípios considerados35.
34 Sem embargo, ainda que se procure reconstruir a proposta do autor como um modelo de tomada de decisão com base em regras que admite ponderações em situações de incerteza a respeito da amplitude dos efeitos negativos relacionados à aplicação de uma regra específica, a fidelidade ao modelo exigiria que, nessa ponderação, fossem considerados aqueles cinco elementos normativos. Nessa versão, contudo, o modelo de decisão perderia em superficialidade – no sentido definido neste trabalho – e ganharia em profundidade. Nesse contexto, a consideração de que o positivismo presumido é uma proposta falha porque desconsidera as relações que o direito deve manter com as idéias de justiça e ação correta e porque exige do tomador de decisão uma deferência nos casos de dúvida que o obrigaria a simplesmente ignorar conhecimentos que ele possui e que naturalmente deveriam entrar em jogo para que ele possa decidir se uma regra deve ou não ser aplicada (nesse sentido o positivismo presumido poderia ser considerado contra-intuitivo do ponto de vista psicológico) são críticas dirigidas ao modelo de decisão com base em regras de Schauer. Cf. CONSTABLE, Marianne. Laying Aside the Law: the Silences of Presumptive Positivism, in Meyer, Linda (Ed.) Rules and Reasoning: Essays in Honour of Fred Schauer. Oxford/Portland: Hart Publishing, 1999, pp. 61-78. 35 ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte, op. cit. p. 79ss. A dificuldade metodológica permanece elevada ainda que se diga que, nos termos da lei de colisão, a análise de um futuro caso que envolva a colisão dos mesmos elementos normativos só exige a consideração das circunstâncias de fato, especialmente se considerarmos que a lógica típica do direito poderia ser considerada não-monotônica. De acordo com ela, o resultado da ponderação entre princípios colidentes in concreto é uma regra que tem a pretensão de aplicação em todos os casos em que se fizerem presentes as mesmas propriedades relevantes do caso que a originou. A solução da colisão cria, para os princípios, uma relação de preferência condicionada, i.e., que só determina o resultado da imbricação horizontal entre as normas quando as mesmas condições se fizerem presentes, o que não exprime outra coisa senão uma deferência à idéia de universalização. Mas, novo caso, nova ponderação. Dessa forma, o resultado definitivo de colisões entre princípios nunca poderá ser abstratamente determinado. Só nos casos concretos se fixará uma ordem de prioridade tal qual “sob as circunstâncias C, o princípio P1 prevalece sobre o princípio P2”, o que não implica a impossibilidade de inversão da relação. Basta uma mudança nas circunstâncias. Todo o raciocínio pode ser logicamente expressado da seguinte maneira:
18
No mesmo sentido, pode ser considerada elevada a carga de argumentação associada
à busca por coerência global em um caso concreto, o que torna as teorias que exigem a
superação desse ônus para a aferição do grau de aceitabilidade racional de uma decisão
igualmente “profundas”, especialmente se confrontadas, por exemplo, com o modelo
formalista anteriormente apresentado. Neste último caso, como os esforços de justificação de
qualquer decisão – dado que a proposição normativa da qual parte o raciocínio é sempre
única e unívoca – resumem-se à demonstração de compatibilidade entre conclusões e
premissas (i.e. resume-se à justificação interna do raciocínio), os ônus a serem superados
pelo tomador de decisão que se serve desse modelo são sempre menores.
Estabelecidos os dois códigos de classificação de teorias de decisão com base na
Constituição (amplitude/restrição, profundidade/superficialidade) parece igualmente possível
criar associações entre os mesmos, o que possibilitaria o encaixe das diversas propostas, de
acordo com a predominância das propriedades enunciadas, em quatro grandes grupos: (i)
teorias que exigem a consideração de poucos elementos normativos no processo de tomada
de decisão e baixos ônus de justificação; (ii) teorias que exigem a consideração de um
número maior de elementos normativos no processo de tomada de decisão e baixos ônus de
justificação; (iii) teorias que exigem a consideração de poucos elementos normativos no
processo de tomada de decisão e elevados ônus de justificação; e (iv) teorias que exigem a
consideração de um número maior de elementos normativos no processo de tomada de
decisão e elevados ônus de justificação. Com base nas análises particulares feitas
anteriormente, poder-se-ia preencher da seguinte forma o quadro de relações fixado:
(1) P1 P P2 (2) P2 P P1 (3) (P1 P P2) C (4) (P2 P P1) C (5) (P1 P P2) C → R (6) C → R
Sendo (1) e (2) relações de preferência incondicionada; (3) e (4) relações de preferência condicionada e (5) e (6) a aplicação da própria lei de colisão: se das circunstâncias C, em que P1 prevalece sobre P2, a conseqüência é R, então toda a vez que se der C, segue-se R.
19
O preenchimento dos quadrantes, é importante que se esclareça, pressupõe a sensível
redução da importância de alguns pressupostos dos modelos de ponderação e do direito como
integridade, notadamente as relações, em cada um deles, entre (i) casos simples e difíceis e
(ii) regras e princípios no processo de aplicação isolada de cada espécie normativa e nas
interações entre elas.
Na verdade, não se desconsidera a relevância que as duas clivagens apresentadas
exercem no desenvolvimento das estratégias decisórias nos modelos de Alexy e Dworkin. No
entanto, a crença no fato de que a institucionalização dessas teorias geralmente não é
acompanhada da necessidade de se levar em conta aquelas distinções relativiza o papel
desempenhado por certos constrangimentos decisórios, tais quais a importância de considerar
todas as circunstâncias fáticas e normativas apenas em um caso difícil ou de aplicar regras
incidentes em um modelo “tudo ou nada”. Se aquelas distinções fossem levadas a sério, o
quadro desenhado provavelmente só seria correto se aplicável ao universo dos casos difíceis
e ao correspondente modo como eles são tratados por cada teoria.
Superficial
Profundo
Amplo Restrito
Formalismo de regras
Teoria dos princípios
Positivismo Presumido e
Consequencialismo de regras
Exigências de coerência global
(ex: possíveis leituras da interpretação sistemática e
da concepção de direito como Integridade)
20
No entanto, se se considera a dificuldade de identificação ex ante ao momento de
decisão de uma norma como regra ou princípio36 e/ou de um caso como simples ou difícil,
assim como o fato de que fora das próprias teorias não há impedimento normativo para a
ocorrência do que Dworkin chamou de escalada de justificação (justificatory ascent37), não
há qualquer razão maior para se ampliar os métodos decisórios propostos por cada teoria
como, em princípio, aplicáveis à decisão de qualquer tipo de caso e independentemente da
espécie normativa sob consideração. Afinal, parece pouco controlável a tendência, ao menos
à luz daquelas teorias, de que os membros da comunidade jurídica, notadamente os
participantes institucionais, envidem esforços no sentido de tentar justificar as suas práticas
nos elementos fundacionais do sistema jurídico ou em conceitos muito gerais38 – o que tende
a encaminhar toda e qualquer decisão ao desenvolvimento de uma argumentação
constitucional. No limite, a possibilidade de ascensão nos procedimentos de justificação
confere sentido apenas contingente à busca pelo desenvolvimento de teorias hermenêuticas
especificamente aplicáveis a problemas imediatamente constitucionais. Afinal, considerando
que a multiplicidade de objetivos e princípios constitucionais é capaz de produzir conflitos
entre eles em cada problema jurídico concreto, a elevação do processo de justificação até o
último grau do escalonamento normativo, passando pelo enfrentamento daquelas tensões,
significa reconhecer que, nos Estados constitucionais contemporâneos, todos os casos são
potencialmente difíceis.
4. Elementos de um modelo conseqüencialista de seleção de estratégias de decisão
Levar a sério a possibilidade de escalada de justificação e do particularismo decisório
a ela correlato é algo importante para a análise dos efeitos associados à adoção de qualquer
teoria de decisão constitucional. Nesse sentido, se existe uma predisposição aparentemente
inescapável para que a solução de qualquer problema em um dado sistema jurídico seja
justificada à luz de princípios fundacionais (como dignidade da pessoa humana, moralidade,
democracia ou devido processo legal), conceitos vagos ou teorias que apelam para
36 GÜNTHER, Klaus. The Sense of Appropriateness: Aplication Discourses in Morality and Law , Trad. John Farrell. Nova Iorque: State University of New York Press, 1993, p. 207ss. Mesmo Dworkin já indicou que “às vezes, regras ou princípios podem desempenhar papéis bastante semelhantes e a diferença entre eles reduz-se quase a uma questão de forma”. Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 44. 37 DWORKIN, Ronald. In Praise of Theory, in Justice in Robes. Cambridge: Belknap/Harvard, 2006, p. 53. 38 Para uma crítica ao conceitualismo, entendido como a disposição de justificar decisões em teorias muito abrangentes ou conceitos vagos, cf. VERMEULE, Adrian. Judging under uncertainty. An institutional theory of legal interpretation. Cambridge/London: Harvard University Press, 2006.
21
conhecimentos extrajurídicos para a promoção de racionalidade dos julgados, parece
importante que dois pontos sejam considerados na análise das diferentes estratégias de
decisão constitucional que se apresentam como as mais apropriadas para a promoção dos
objetivos normativos e ideológicos do constitucionalismo.
De um lado, é preciso destacar que muitas teorias da decisão jurídica incorporadas ou
desenvolvidas especificamente para a interpretação e aplicação de normas (ainda que não
sejam especificamente constitucionais) pressupõem condições ideais de funcionamento,
sejam elas vinculadas (i) ao tomador de decisão – como capacidades ilimitadas de
conhecimento e de processamento de informações –, (ii) ao número de elementos factuais e
normativos que devem ser considerados para a tomada de decisão ou (iii) ao próprio processo
de deliberação das partes. Isso quer dizer que a operacionalização capaz de trazer resultados
maximadores à luz dessas teorias depende igualmente da satisfação plena dos seus
pressupostos de desenvolvimento. No entanto, dado que a realidade não é capaz de preencher
as hipóteses de aplicação das teorias, a necessidade de trabalho com resultados sub-ideais é
inevitável, o que reduz a utilidade das soluções obtidas pela aplicação ideal dos modelos
decisórios, no máximo, a mecanismos de correção ex post de decisões tomadas
concretamente. Em outras palavras, teorias complexas podem até ser úteis do ponto de vista
descritivo, embora tenham pouco a dizer no plano normativo. São teorias que podem explicar
tudo, mas são incapazes de orientar39. Pelo exposto, as potencialidades de qualquer estratégia
decisória devem ser apreciadas não com base em suas condições ideais de funcionamento,
mas em razão dos seus limites de efetivação em ambientes específicos. A comparação entre
modelos que se servem de componentes contrafactuais deve, em outras palavras, orientar-se
pelos possíveis resultados de primeira-ordem – ou caso a caso – que seriam obtidos pela
institucionalização da teoria em um determinado contexto, e não em um cenário hipotético40.
Essa observação é crucial para desfazer dois tipos de erro muito comuns entre
intérpretes da Constituição. O primeiro está na recomendação de adoção de teorias decisórias
a partir de simples análises acontextuais, ou seja, levando em conta apenas as
39 Essa, por exemplo, é uma das críticas centrais dirigidas às potencialidades normativas da teoria dos princípios. Cf. nesse sentido KLEMENT, Jan Henrik. Vom Nutzen einer Theorie, die alles erklärt. Robert Alexys Prinzipientheorie aus der Sicht der Grundrechtsdogmatik, JZ, 15/16/2008, p. 762s. JESTAEDT, Matthias. Die Abwägungslehre – ihre Stärken und ihre Schwächen, in: Depenheuer, Otto et al. (Orgs.) Staat im Wort. Festschrift für Josef Isensee. Heidelberg: C.F. Müller, 2007, p. 268-269. 40 SUNSTEIN, Cass R. Second-Order Perfectionism, in Chicago Working Papers in Law & Economics, 2nd. Series. Dezembro, 2006, pp. 1-20.
22
potencialidades das propostas em ambientes ideais e, por conseguinte, desconsiderando (i) as
características reais do contexto de sua aplicação e (ii) as capacidades institucionais dos seus
aplicadores41. O segundo pode ser explicado como uma falácia comparativa, que se exprime
na avaliação de diferentes teorias de interpretação e aplicação de normas jurídicas
desenvolvidas ou trazidas para o âmbito do direito constitucional em razão dos resultados
ótimos vinculados à que se quer fazer prevalecer e dos resultados sub-ótimos associados à
que se pretende descartar42.
De outro lado, não se pode esquecer que a seleção de estratégias decisórias com base
na Constituição deveria orientar-se não só pelos possíveis resultados que a sua
institucionalização poderia trazer para o enfrentamento de casos concretos. Na verdade, são
também decisivos para a avaliação de propostas decisórias os efeitos dinâmicos produzidos
pela tentativa de aplicação permanente de uma certa teoria sobre certos valores formais caros
à Constituição, notadamente efetividade e estabilidade. O problema, neste nível, coloca-se no
âmbito normativo, na medida em que se relaciona com os critérios com base nos quais são
ordenados os estados do mundo associados à possível institucionalização de cada modelo em
certos contextos. Em suma, sugere-se que a seleção de estratégias de decisão deve
necessariamente envolver análises de segunda-ordem, ou seja, meta-decisões que devem ser
tomadas antes do momento das decisões de primeira ordem para a adequada definição de
como se deve proceder para resolver casos concretos (i.e. problemas de primeira-ordem)43.
Pelo exposto, sugere-se que a eleição de uma estratégia decisória como mais
adequada para a decisão constitucional deve fundamentalmente considerar as potencialidades
das diversas propostas em razão dos seus limites em ambientes não-ideais e do grau de
promoção ou restrição de objetivos e princípios formais. Fazê-lo requer certamente análises
41 Para uma análise da importância das capacidades institucionais na seleção de estratégias decisórias cf. SUNSTEIN, Cass R. e VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions, in Michigan Law Review, vol. 101, fev. 2003, pp. 885-951. 42 A defesa de que o formalismo não é preferível a um modelo particularista fundado sobre ponderações de princípios em cada caso porque, ao contrário deste, aquele traz resultados injustos, é, nesses termos, um típico exemplo do que se pretende dizer. A falácia no caso está simplesmente no pressuposto de que os tomadores de decisão sempre ponderarão corretamente. 43 Sobre o tema cf. SUNSTEIN, Cass e ULMANN-MARGALIT, Edna. “Second-Order Decisions”, in SUNSTEIN, Cass (ed.). Behavioral law and Economics. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 2004, pp. 187-209. ARGUELHES, Diego Werneck e LEAL, Fernando. Pragmatismo Jurídico como [Meta]Teoria da Decisão Judicial: Caracterização, Estratégias e Implicações. In: SARMENTO, Daniel Antonio de Moraes (Org.). Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 171-211.
23
empíricas e normativas que extrapolam os limites deste texto44. Sem embargo, ainda que no
plano abstrato e a partir de algumas variáveis, parece possível desenvolver conclusões a
respeito do processo de seleção de alternativas de modelos decisórios a partir de alguns
critérios de valoração de conseqüências.
Nesse sentido, como antecipado, propõe-se uma análise mais detida em torno de duas
crenças atreladas ao endosso de certas estratégias de decisão jurídica: (i) a de que a repetição
freqüente de normas constitucionais nos procedimentos de justificação de decisões para casos
simples promove efetividade constitucional e (ii) a de que o aumento da sofisticação do
instrumental teórico-metodológico contribui para o aumento de racionalidade das decisões.
As duas teses serão enfrentadas em função das relações diretamente proporcionais
pressupostas, para a primeira, entre amplitude e efetividade e, para a segunda, entre
profundidade e estabilidade.
5. Amplitude e efetividade: uma relação a ser apreciada a longo prazo
Como visto, as teorias de decisão podem ser consideradas mais ou menos amplas em
função da quantidade de elementos que o tomador de decisão deve considerar para emitir um
juízo normativo singular. Ao mesmo tempo, uma Constituição pode ser considerada mais ou
menos efetiva na medida em que sua normatividade é reconhecida por seus destinatários a tal
ponto que os leva a atuar de modo deferente e fomentador, respectivamente, dos
compromissos e programas nela instituídos. Dados esses elementos, uma associação imediata
que se pode fazer entre ambos é a seguinte: uma teoria da decisão jurídica que prescreva a
necessidade de recondução de qualquer decisão a pelo menos uma norma constitucional pode
ser valorada positivamente na medida em que promove o sentimento indispensável para que a
comunidade jurídica e os cidadãos se sintam vinculados aos compromissos da Constituição.
Assim, teorias de decisão jurídica que, (i) quando aplicadas a problemas
imediatamente constitucionais, prescrevem a harmonização de um número elevado de
normas constitucionais e/ou precedentes da corte constitucional e (ii) não impedem ou
simplesmente fomentam escaladas de justificação ao topo do sistema jurídico em casos
44 Além disso, as próprias limitações com que essas análises podem realmente ser feitas revelam os limites descritvo e normativo do método proposto. Sobre essas limitações cf. SCHUARTZ, Luis Fernando. Conseqüencialismo, Racionalidade decisória e Malandragem. Artigo disponível em http://virtualbib.fgv.br/dspace/handle/10438/1724, especialmente p. 8ss.
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capazes de serem solucionados a partir da aplicação de regras infraconstitucionais seriam
consideradas estritamente preferíveis a alternativas mais restritivas. Nesta segunda hipótese, a
preferência se justificaria porque incentivariam duplas justificações para cada caso, que se
dariam sempre nos níveis constitucional e infraconstitucional; no que concerne ao primeiro
caso, teorias amplas tornar-se-iam preferíveis na medida em que implicariam o
reconhecimento de que não existem relações rígidas de prioridade entre as normas da
Constituição, já que obrigariam o intérprete a levar sempre em consideração diversos
objetivos consagrados no texto para que a decisão mais adequada ao caso sob consideração
fosse enunciada.
A associação explicitada tem especial aceitação no momento imediatamente posterior
à promulgação de Constituições em cenários de recomeço, i.e. de transição de realidades
autoritárias para regimes democráticos, quando a falta de uma, para dizer com Hesse,
“vontade de Constituição45” é um dos obstáculos para a consolidação da normatividade
constitucional. De fato, a citação de normas da Constituição nas fundamentações das decisões
judiciais pode ser, em alguma medida, considerado elemento contributivo para a realização
de um estado de coisas marcado pela efetividade de suas normas em contextos marcados pela
inefetividade de Constituições anteriores. No entanto, ainda que se possa considerar correta
esta afirmação, os efeitos atrelados ao uso recorrente de conteúdos constitucionais,
especialmente de seus princípios estruturantes, não parece algo que deva ser apreciado
apenas no curto prazo.
Os incentivos criados pelo endosso de teorias amplas acompanhados de
predisposições para escaladas de justificação devem ser considerados em análises de longo
prazo por conta do efeito de autonegação associado à sua implementação. Esse tipo de efeito
pode ser percebido quando práticas (ou regras) criadas para trazer certos benefícios no curto
prazo acabam por, no longo prazo, gerando o efeito contrário ao visado, impondo novos
custos aos atores que pretendem promover objetivos específicos. Quando são pensados
conscientemente, os efeitos indesejáveis a longo prazo vinculados à adoção de padrões
decisórios (ou regras de desenho institucional) podem servir como novos incentivos para a
manutenção da prática ou regra apenas por um curto período e a promoção, o quanto antes,
de mudanças mais profundas. As ações afirmativas, segundo algumas análises, poderiam ter
45 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, p. 19
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esse tipo de efeito. Pensadas a curto prazo, políticas inclusivas permitiriam a superação de
desequiparações que tenderiam a se aprofundar, produzindo efeitos positivos em relação à
tutela da igualdade. No entanto, mantidas por diversas gerações, tenderiam a criar um
resultado perverso e restritivo ao objetivo visado (igualdade), na medida em que, superada a
situação justificadora das políticas, a continuidade da prática serviria apenas para excluir
novos grupos46.
A análise dos efeitos sobre a efetividade da Constituição associados a modelos
decisórios que não fecham as portas para a consideração, pelo tomador de decisão, de normas
constitucionais no julgamento de cada caso poderia, assim, ser desenvolvida em função (i)
dos benefícios trazidos no curto prazo para aquele valor e (ii) dos custos que a manutenção
daqueles modelos trariam no longo prazo. Essa análise mais ampla impede a aceitação como
necessária de uma possível relação existente entre, de um lado, o uso de teorias amplas
acompanhado de escaladas de justificação e, de outro, a promoção de efetividade,
precisamente porque ela depende da apreciação de um possível efeito de autonegação que
possa ser involuntariamente produzido. No caso das normas constitucionais, a repetição
meramente retórica de alguns compromissos fundamentais na tentativa de reforço da
fundamentação de decisões pode contribuir apenas para que a sua força normativa seja, no
tempo, colocada em xeque, como tem ocorrido com a “dignidade da pessoa humana” em
sistemas jurídicos como o alemão e o brasileiro47. O uso recorrente da norma como
fundamento para qualquer tipo de resultado jurídico apenas tem se prestado para que, cada
vez mais, reduza-se a importância com que ela é encarada pela comunidade como geradora
de argumentos suficientemente capazes de justificar decisões, restando a ela outras funções
no contexto de justificação, como a de ser critério para a identificação da fundamentalidade
material de certos direitos.
46 Sobre os efeitos de autonegação e a adequação ao conceito de políticas de ação afirmativa, cf. VERMEULE, Adrian, Selection effects in constitutional law, op. cit. p. 984ss. 47 A respeito dos problemas relacionados à aplicação recorrente e sem rigor metodológico da dignidade humana, cf., na Alemanha, NEUMANN, Ulfrid. Die Tyrannei der Würde. Argumentationstheoretische Erwägungen zum Menschenwürdeprinzip. In Archiv für Rechts und Sozialphilosophie, nº 84, pp. 153-166, 1998 e FRANKENBERG, Günther. Tirania da Dignidade? Paradoxos e paródias de um valor supremo. In ___ A Gramática da Constituição e do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, pp. 305-320. No Brasil cf. LEAL, Fernando. Argumentando com o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana, in Arquivos de Direitos Humanos, v. 7, pp. 41-67, 2007.
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Teorias amplas, então, ao contrário do que sugerem associações mais imediatas, não
são estratégias que sempre promovem efetividade. O exemplo da dignidade humana parece,
inclusive, ser capaz de inverter a presunção: no geral, a institucionalização de modelos que
exigem a consideração de muitos elementos normativos tende a produzir efeitos negativos
sobre a promoção da efetividade constitucional. A uma, porque, em discussões
especificamente constitucionais, eles criam um ônus constante de justificação sistêmica ao
tomador de decisão (i.e. exige que este sempre considere princípios constitucionais incidentes
e, quando constatada qualquer colisão, harmonize-os), ainda que o caso possa ser apreciado a
partir de um conjunto menor de elementos; a duas, porque, em questões cujas respostas
poderiam ser facilmente encontradas no material infraconstitucional, aqueles modelos
contribuem, direta ou indiretamente, para a ocorrência constante de escaladas de justificação.
Tais considerações, associadas à necessidade de levar a sério o fato de que as teorias não são
aplicadas em mundos ideais, mas por juízes cercados por diversas limitações em cenários
reais (tempo, capacidade de processamento de informações, infra-estrutura institucional etc),
contribuem para que o uso de muitas normas constitucionais nas fundamentações de julgados
seja meramente retórico e venha desacompanhado de uma metodologia rigorosa e previsível
de decisão. Neste ponto, os efeitos negativos gerados sobre a aspiração constitucional por
efetividade sofrem a influência do modo como certas características de teorias contribuem
para a tutela da estabilidade. Como se verá, os efeitos perversos sobre efetividade e
estabilidade são tanto maiores quanto mais amplas e profundas são as propostas teóricas que
lutam pela institucionalização.
6. Profundidade, estabilidade e a importância dos parâmetros decisórios
Se, como afirmado, o raciocínio jurídico acaba refletindo a complexidade decorrente
de modelos constitucionais cujas pretensões de onipresença se expressam na multiplicidade
de objetivos e direitos fundamentais e na previsão de mecanismos de revisão judicial, o
controle da racionalidade das decisões nos casos de tensão passa a ser uma preocupação
fundamental para a manutenção das funções institucionais dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário e para a aceitabilidade das justificações de órgãos não eleitos em um
Estado democrático de direito.
De fato, a combinação entre (i) expansão dos temas que a Constituição pretende
regular ou influenciar (“constitucionalização do direito”), (ii) protagonismo judicial e (iii)
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reconhecimento da normatividade dos princípios – traços típicos do constitucionalismo
recente – tende a gerar problemas não só para o desenho constitucional de distribuição de
competências entre os poderes, como para os processos de tomada de decisão nos Estados
constitucionais contemporâneos. Por um lado, a possibilidade de controle e revisão judicial
das escolhas legislativas e administrativas torna cada vez mais difícil identificar quais são as
competências das principais instituições e em que medida o Judiciário deve ser mais
deferente ou ativista. Por outro, a pluralidade de razões incidentes em qualquer caso levado
ao Judiciário (especialmente se se considera como efetiva a possibilidade de escalada de
justificação e a amplitude semântica dos princípios constitucionais) implica um aumento na
dificuldade de controle das escolhas judiciais. Dessa forma, é possível, à primeira vista,
indicar como principais preocupações trazidas pelos desenhos constitucionais e pelos
modelos de teoria e hermenêutica constitucionais mais difundidos a indefinição das margens
de atuação legítimas dos três poderes e o desnorteamento metodológico nos processos de
tomada de decisão com base na Constituição. No limite, a estabilidade constitucional é a
aspiração formal imediatamente afetada por esses dois efeitos.
Superar a natural tendência à instabilidade é, como visto, tarefa para a dogmática
constitucional e para o Poder Judiciário, especialmente seus órgãos superiores48. Nesse
cenário, em que a definição de uma metodologia de decisão revela-se essencial, pretende-se
analisar a associação defendida entre a institucionalização de teorias de decisão marcadas
pela profundidade e o controle da instabilidade.
A tese que se coloca em xeque neste momento é a de que o investimento em teorias
que elevam substancialmente os ônus de justificação dos tomadores de decisão é condição
per se suficiente para a criação de estabilidade constitucional. Em outras palavras, o que se
problematiza é a crença de que, dada a complexidade de certos problemas jurídicos, a melhor
48 Para uma análise crítica das potencialidades da produção da ciência jurídica e da sua permeabilidade a influências sobretudo político-econômicas, cf. REICH, Norbert. Intervenção do Estado na Economia (Reflexões sobre a pós-modernidade na teoria jurídica). Trad. Fernando Herren Aguillar, in Cadernos de Direito Econômico e Empresarial, RDP 94, pp. 265-282, em especial o seguinte trecho contido na p. 275: “A ‘Ciência Jurídica Reflexiva’ não é tanto, como Teubner pensa, uma resposta a uma ‘supercomplexidade’ dos arranjos sociais e jurídicos, mas uma manipulação do direito por interesses pessoais e, numa menor extensão sobre a qual falaremos adiante, por ‘interesses difusos’. A ciência jurídica, devendo seu prestígio ao próprio processo de juridificação, é ao mesmo tempo sujeita à desestabilização e deslegitimação. O resultado de uma questão jurídica também dependerá das forças do mercado que ‘dão como entrada’ argumentos jurídicos. O discurso jurídico do qual se esperava oferecer um foro racional, iluminado, para o debate político, enquanto ao mesmo tempo garantindo certos direitos básicos a seus participantes, tornou-se (sob o impulso de sua reflexividade – e portanto dependência – em relação aos atores sociais), apenas mais um meio para promover interesses próprios de alguém.” (grifos no original).
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forma de reduzir a inevitável margem de subjetividade do tomador de decisão é, em vez de
tentar reduzir a ocorrência de casos complexos, investir em teorias (pouco
operacionalizáveis) que obrigariam o aplicador a expor as suas razões e, assim, enunciar
respostas racionalmente aceitáveis. O pressuposto da afirmação está na aceitação de que a
arbitrariedade na fundamentação das escolhas dos poderes constituídos (especificamente o
Judiciário) pode ser reduzida pelo amplo reconhecimento da necessidade de desenvolvimento
de argumentações custosas e não triviais na solução de casos difíceis, como prescrito por
teorias que impõem relações de coerência entre a decisão tomada e todos os elementos
normativos do sistema, ou que exigem a otimização de princípios em colisão mediante a
aplicação do dever de proporcionalidade para se aferir a legitimidade das restrições a direitos
fundamentais.
Os problemas subjacentes à relação suposta entre profundidade e estabilidade podem
ser identificados a partir das condições que devem ser preenchidas por uma dada teoria de
decisão para que se possa caracterizar a ordem constitucional no âmbito da qual ela se
institucionaliza como estável. Nesse sentido, uma metodologia decisória só pode ser
considerada como apta a criar estabilidade quando é capaz de promover certeza jurídica49 e
contribuir para a definição precisa de competências interinstitucionais50.
O grau de certeza jurídica associado às práticas de uma corte que adota uma
metodologia de decisão é medido em função da clareza dos critérios com base nos quais seus
juízos são justificados e da previsibilidade criada nos jurisdicionados no que concerne à
possibilidade de antecipação de resultados. Já a definição de competências interinstitucionais
pode ser apreciada, para o Poder Judiciário, em função dos incentivos criados pelas teorias
adotadas para a adoção de posturas mais ou menos invasivas dos seus membros em regimes
constitucionais que dificultam a definição em abstrato das margens de atuação legítimas dos
poderes.
Em ambos os casos, considerar as chances de erro resultantes da adoção de estratégias
decisórias no julgamento de cada caso é fator crucial para, no primeiro (busca por certeza
49 Sobre o conceito vide PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. Dordrecht/Boston/Londres: Kluwer Academic Publishers, 1989, p. 31. AARNIO, Aulius. Introduction. In On Law and Reason. PECZENIK, Aleksander, op. cit. p. 4. 50 Sobre o tema cf. ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoría de Los Derechos Fundamentales, in Revista Española de Derecho Constitucional, ano 22, nº 66. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, setembro/dezembro 2002, p. 13-65.
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jurídica), impedir malabarismos teóricos nos processos de fundamentação de decisões,
posturas pouco deferentes aos precedentes de cortes superiores ou, para cada órgão
jurisdicional, a revisão freqüente de seus próprios julgados, além de, na segunda hipótese
(definição das margens de atuação), evitar a tentativa de substituição dos juízos de outros
poderes pelos formulados por órgãos jurisdicionais em temas que seriam tipicamente
entendidos como deixados à margem dos juízos políticos, econômicos ou morais de outros
poderes.
Nessa pouco simples equação, a hipótese que se apresenta neste momento é: teorias
profundas contribuem, prima facie, para a redução de clareza e previsibilidade e para o
incremento da indefinição de competências e das chances de erro. Isso porque o aumento de
ônus de justificação implica maior complexidade para o procedimento de tomada de decisões
racionalmente aceitáveis, já que exige do aplicador do direito o desenvolvimento de diversas
cadeias de argumentação, seja – dentro dos exemplos selecionados – para demonstrar
coerência entre a decisão enunciada e o sistema jurídico, seja para harmonizar princípios em
colisão de acordo com a proporcionalidade. Tais ônus, embora possam ser satisfeitos sob
condições ideais, geralmente não são satisfeitos suficientemente em ambientes decisórios
específicos. Mais uma vez, as capacidades institucionais dos aplicadores dos modelos
decisórios não pode ser desconsiderada.
Pelo exposto até agora, metodologias que investem na superação de ônus muito
elevados de justificação, ao contrário do que se pode imediatamente pensar, não contribuem
necessariamente para a promoção de estabilidade. Ao contrário, como tornam mais custosos
os procedimentos decisórios, só tendem a aumentar os níveis de incerteza e de
imprevisibilidade, as chances de ocorrerem decisões erradas à luz dos próprios métodos que
se pretende aplicar e tornam mais nebulosas as fronteiras que marcam o exercício legítimo
das competências de cada Poder. A exceção a essa conclusão só pode ser justificada se são
oferecidas pela própria teoria ou desenvolvidas em complemento da mesma regras ou
standards que preparam a decisão nos limites das propostas teóricas. Enfim, quando são
criados parâmetros decisórios que, em vez de aumentarem a complexidade, simplificam os
procedimentos de justificação. E essa tarefa, parece claro, não está invariavelmente vinculada
à complexidade do modelo. Em outras palavras, não seria necessariamente um problema, por
exemplo, se o Supremo Tribunal Federal adotasse como suporte teórico para a construção de
30
suas decisões a mais complexa teoria filosófica disponível, desde que a mesma viesse
acompanhada de uma previsível metodologia de decisão51.
Nesse sentido, retorna-se ao papel decisivo desempenhado pela dogmática
constitucional e pela corte constitucional na definição e institucionalização de regras
simplificadoras capazes de engendrarem níveis satisfatórios de certeza, previsibilidade,
ativismo judicial e erro. É preciso não olvidar que as principais alternativas oferecidas pela
hermenêutica constitucional são, no geral, criações ou importações de modelos desenvolvidos
a partir de teorias que se servem de elementos de outros campos do saber, como filosofia
moral e economia, e que não se preocupam com a indicação de padrões decisórios
específicos a serem aplicados em realidades não ideais. O uso simples e direto de modelos
marcados pela vagueza de suas prescrições e completamente desprovidos de regras
preparatórias de decisão – tal qual o “direito como integridade” de Dworkin – ou o endosso
de modelos profundos sem o respeito aos parâmetros decisórios que os acompanham – como
ocorre no uso generalizado da técnica da “ponderação de princípios” sem o recurso ao dever
de proporcionalidade, que se segue logicamente da definição de princípios como
mandamentos de otimização52 – em vez de, no tempo, contribuírem para a satisfação das
expectativas criadas pela normatividade constitucional, podem produzir o efeito contrário,
ainda que alguns juízes em alguns casos tomem decisões consistentes. O esforço de
institucionalização de uma teoria, no que se refere ao respeito à aspiração constitucional por
estabilidade, depende igualmente da institucionalização de padrões claros de decisão. Isso
porque não há como o processo de aplicação confirmar expectativas normativas se os
próprios aplicadores do direito contribuem para frustrá-las no momento em que absorvem
para dentro das fronteiras do jurídico a complexidade que deveriam controlar53. A dificuldade
operacional de uma teoria deve, na verdade, interferir apenas nos custos necessários para a
criação de regras seguras de decisão: em regra, quanto maiores são os ônus de justificação
pressupostos para o funcionamento ideal da teoria, maiores devem ser os empreendimentos
51 Agradeço a Luis Schuartz por me fazer atentar para este ponto. No entanto, apesar da aparente irrelevância em si do modelo de decisão selecionado, a dificuldade atrelada ao desenvolvimento dos padrões de operacionalização de uma determinada teoria justifica uma preferência – mesmo que se diga prima facie – por propostas normativas mais simples, já que elas tendem a reduzir os custos de criação das condições para o seu funcionamento estável. 52 ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte, op. cit. p. 100. 53 Cf. GONÇALVES, Guilherme Leite. Incerteza Social e dogmática jurídica: limites da abordagem luhmanniana. Artigo mimeografado gentilmente cedido pelo autor.
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teóricos para a criação do maior número possível de regras ou parâmetros capazes de tornar
mais simples o procedimento de decisão com base em normas constitucionais54.
O que se pretende dizer com isso não é que os juízes não devem investir na
fundamentação adequada das suas decisões ou que, ao contrário, devem “escrever pouco”
para justificar as suas conclusões. Na verdade, o que se quer é que a dogmática constitucional
e a própria prática dos tribunais pavimentem as longas distâncias existentes entre os juízos
normativos singulares e as exigências abstratas e amplas das teorias a partir das quais se
chega até aqueles. Não é, para citar um exemplo, um problema relacionado à dignidade
humana ou à sua estrutura normativa, mas à falta de trajetos que definam o que ela significa,
quando ela é violada, quais são as conseqüências jurídicas para certos tipos de casos atrelados
à comprovação de sua violação, quais são as suas eficácias, como ela se relaciona com outros
direitos fundamentais e tantos outros passos considerados condições essenciais para a
estabilidade constitucional e, no tempo, para a própria efetividade da norma, que, repetida
retoricamente, apenas contribui para a erosão de sua força normativa.
Dessa forma, a definição dos aludidos padrões decisórios pode, ainda, contribuir para
lidar com os problemas de amplitude, na medida em que ofereçam um método adequado de
trabalho com um número elevado de elementos normativos. A presença de condições de
possibilidade para a criação de uma ordem constitucional estável pode, dessa forma, também
fomentar a efetividade da Constituição. Na verdade, o desenvolvimento dessas regras é a
chave para que a curva de efetividade não se torne decrescente após o momento em que o uso
de normas constitucionais passa a ser meramente retórico e a comunidade jurídica começa a
questionar sua força. Em outros meios, sem o preenchimento das condições que implicam
estabilidade, não há como impedir os efeitos perversos no longo prazo decorrentes de uma
autonegação involuntária associada à institucionalização de teorias amplas de decisão.
7. Conclusão
Se as análises apresentadas neste texto podem ser consideradas corretas, a promoção
de estabilidade e efetividade para as Constituições marcadas por pluralidade de objetivos,
54 Para exceções ao padrão apresentado cf. SUNSTEIN, Cass e ULMANN-MARGALIT, Edna. “Second-Order Decisions”, in SUNSTEIN, Cass (ed.). Behavioral law and Economics. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 2004, pp. 187-209.
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metas amplas e compromissos fundamentais vagos depende essencialmente da atuação da
dogmática constitucional e dos intérpretes institucionais autorizados das suas disposições.
Nesse sentido, mais que o desenvolvimento de teorias decisórias muito abrangentes e
metodologias “frouxas” de decisão, que implicam esvaziamento de normas que servem como
fundamento de justificação para qualquer caso e o aumento de incerteza jurídica, revela-se
crucial a criação e a institucionalização de critérios previsíveis de decisão e um uso mais
parcimonioso das normas constitucionais na apreciação de casos para os quais a legislação
fornece diretamente os resultados. No fundo, que se criem as condições suficientes para
impedir a tendência de se tratar qualquer caso como difícil, que se revela na imposição ao
tomador de decisão do ônus de sempre efetuar juízos all things considered, de enfrentar todo
e qualquer conflito entre razões para a solução de um caso concreto ou, ainda, de mostrar que
as suas conclusões realizam na maior medida possível princípios constitucionais importantes
ou que se encaixam perfeitamente no sistema, independentemente dos contornos do problema
e da consideração de soluções jurídicas preexistentes55.
55 Nesse sentido, poder-se-ia pensar fundamentalmente na (i) institucionalização de uma metodologia definida de aplicação e de solução de tensões entre normas da Constituição, (ii) controlabilidade e previsibilidade dos seus resultados, (iii) aceitação pelos atores envolvidos, (iv) respeito aos precedentes, (v) entrincheiramento das regras à possibilidade de consideração de outras razões, (vi) busca pela definição das margens de atuação de cada poder, (vii) predisposição de deferência às escolhas que competem a órgãos diferentes daqueles responsáveis pela interpretação e aplicação da Constituição e, ainda, (viii) criação de parâmetros decisórios relativos a problemas tais quais (a) como lidar com argumentos extra-jurídicos, (b) como definir um caso como difícil, (c) como definir o sentido e decidir com base nos compromissos fundamentais e mais vagos da Constituição (igualdade, liberdade, dignidade da pessoa humana, democracia, devido processo legal, moralidade, eficiência etc) e (d) quando podem ser consideradas legítimas escaladas de justificação. Esses elementos, destaque-se, são apenas um caminho possível para a promoção de efetividade e estabilidade constitucionais. Não necessariamente tudo o que foi exposto até o presente momento pode ser caracterizado como um conjunto de condições sem as quais não é possível caracterizar-se uma Constituição como efetiva ou estável, pois nem sempre a tentativa de criá-las impedirá frustrações normativas ou evitará incertezas. A dificuldade de se antecipar resultados baseados em análises consequencialistas, como a preconizada neste texto, não permite afirmar que a alternativa de decisão indicada como a mais adequada produza incondicionalmente os melhores efeitos. No entanto, é preciso reconhecer também que essa mesma limitação vale para qualquer outra proposta normativa, o que relativiza substancialmente a correção das propostas decisórias disponíveis para lidar com questões jurídicas. De forma simples, o que se quer dizer é que não necessariamente, por exemplo, um formalismo de regras, como proposto por Vermeule, é melhor do que a teoria da decisão judicial pressuposta pela concepção de direito como integridade de Dworkin. A consciência dessa limitação cria uma contradição com as principais teses deste texto? Não necessariamente. Em cenários de incerteza a respeito dos efeitos atrelados à adoção de certas visões, a defesa de teorias – especialmente quando baseadas em argumentos de segunda-ordem – pode, em alguma medida, ser considerada uma aposta ou “mais uma questão de fé do que de ciência” (SCHUARTZ, Luis Fernando. Conseqüencialismo, Racionalidade decisória e Malandragem, op. cit. p. 14). Mas não uma aposta livre ou uma pura questão de fé. Ao contrário, o que este texto pretende, ainda que um cético possa criticá-lo como meramente estipulativo, é mostrar que em um Estado democrático de direito alguns constrangimentos normativos sugerem caminhos mais fáceis (e, por isso, mais apropriados) para se chegar a um estado de coisas marcado pela efetividade e pela estabilidade constitucionais.
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Concretizar essas aspirações significa fundamentalmente não deixar de lado o fato de
que o direito se concebe também como um redutor de complexidade, algo aparentemente
minimizado pela dogmática constitucional. Se os traços do constitucionalismo
contemporâneo trouxeram condições para a flexibilização capaz de atender alguns interesses
injustamente afetados pela generalização normativa ou simplesmente pela impossibilidade de
o Legislador compor abstratamente os interesses típicos de sociedades plurais, é preciso
marcar que eles também permitem o aumento da contingência, da incerteza jurídica e da
arbitrariedade no processo de tomada de decisão. Por isso, o paradoxo que o direito cristaliza
ao, “por um lado, servir como modelo de experiências e, de outro, flexibilizar esse modelo
para evitar se expor demasiadamente às frustrações fáticas56” atreladas à aplicação de regras
gerais, é esgarçado ao limite em ordens jurídicas dotadas da porosidade suficiente para
impedir que os mecanismos sistêmicos de controlabilidade dos debates e de seletividade de
argumentos funcionem adequadamente. Em outras palavras, porque as Constituições
contemporâneas não fecham normativamente as portas para que os procedimentos de
justificação de julgados se ampliem consideravelmente, passa a ser tão importante, mais uma
vez, a concretização dos objetivos apontados no parágrafo anterior para que o direito não
acabe reduzido a um catalisador – e não um domesticador – da complexidade. Sem isso,
corre-se o risco, via adoção de teorias da decisão constitucional marcadas pela amplitude e
pela profundidade, de se reduzir a efetividade e se aumentar a instabilidade constitucionais.
Enfim, muito por que se lutou nesses pouco mais de vinte anos de vivência da atual
Constituição.
Além disso, reconhece-se que chegar superar todas as exigências definidas no início desta nota não é algo simples. Mas tal reconhecimento não implica, ao contrário do que este trabalho parece defender, o endosso de um modelo profundo de justificação. O feitiço, aqui, não vira contra o feiticeiro. Ainda que o tribunal constitucional seja também responsável pela definição dos aludidos parâmetros fundamentais para a promoção da estabilidade constitucional, a proposta enunciada exige que os elevados ônus de justificação sugeridos sejam apenas superados em casos difíceis. Nessas situações parece não ser possível evitar discussões jurídicas mais profundas. No entanto, dado que o próprio tribunal também é o principal responsável pela definição do que seja um caso difícil, o que se defende não é mais do que a criação de um sistema de decisão coerente, no qual os seus elementos se suportem mutuamente e as relações entre estes sejam definidas a partir do maior número possível de enunciados analíticos e normativos. A exigência maior, nesse sentido, é essencialmente formal e, assim, independe dos pressupostos materiais da teoria da qual se parte, embora, como se tenha dito (n. 51), seja justificável uma preferência por propostas mais simples em função dos custos (menores) relacionados ao desenvolvimento dos parâmetros para uma operacionalização segura da teoria. Pelas críticas formuladas, agradeço especificamente a Luis Schuartz e Guilherme Gonçalves. 56 GONÇALVES, Guilherme Leite, op. cit. p. 5.