transversalidade e complexidade no trabalho … · saudável, como define araújo, e que permitam a...

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Universidade Estadual de Maringá 07 a 09 de Maio de 2012 1 TRANSVERSALIDADE E COMPLEXIDADE NO TRABALHO COM PROJETOS NA ESCOLA PÁTARO, Ricardo Fernandes (UEM) CALSA, Geiva Carolina (UEM) Agência Financiadora: Fundação Araucária Introdução A apresentação desse trabalho insere-se no Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicopedagogia, Aprendizagem e Cultura – GEPAC, da UEM. A pesquisa 1 tem origem em uma dissertação de mestrado que acompanhou, ao longo de um ano, a prática pedagógica pautada na estratégia de projetos em uma classe de 5º ano do Ensino Fundamental de 9 anos. Partiu-se do princípio de que o conteúdo curricular trabalhado na escola deve ser visto como uma rede de relações (MACHADO, 1995), assumindo um caráter interdisciplinar e transversal (MORENO, 1998; 1999), com o objetivo de formar alunos(as) para o exercício da cidadania e para a construção de valores como justiça, democracia e solidariedade (ARAÚJO, 2001; 2002; 2003; 2007). A proposta é buscar alternativas para a forma fragmentada e descontextualizada a partir da qual o conhecimento vem sendo trabalhado na escola e que pouco contribuem para a democratização do ensino e das relações escolares. Dessa forma, para a construção do presente trabalho, assumimos como pressuposto teórico os princípios de complexidade de Edgar Morin (1990; 1999; 2002), articulados à proposta de re-organização escolar apresentada por Araújo (2002; 2003; 2007), da qual faz parte o trabalho com projetos que desejamos assinalar. Diante disso, o presente texto tem como objetivo apresentar algumas possibilidades que a estratégia de projetos oferece para que o conhecimento possa 1 Uma versão do presente texto foi apresentada no V Colóquio Luso Brasileiro sobre questões curriculares / IX Colóquio sobre Questões Curriculares, realizado na Universidade do Porto – FPCEUP, em Portugal, no ano de 2010.

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Universidade Estadual de Maringá 07 a 09 de Maio de 2012

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TRANSVERSALIDADE E COMPLEXIDADE NO TRABALHO

COM PROJETOS NA ESCOLA

PÁTARO, Ricardo Fernandes (UEM)

CALSA, Geiva Carolina (UEM)

Agência Financiadora: Fundação Araucária

Introdução

A apresentação desse trabalho insere-se no Grupo de Estudos e Pesquisa em

Psicopedagogia, Aprendizagem e Cultura – GEPAC, da UEM. A pesquisa1 tem origem

em uma dissertação de mestrado que acompanhou, ao longo de um ano, a prática

pedagógica pautada na estratégia de projetos em uma classe de 5º ano do Ensino

Fundamental de 9 anos. Partiu-se do princípio de que o conteúdo curricular trabalhado

na escola deve ser visto como uma rede de relações (MACHADO, 1995), assumindo

um caráter interdisciplinar e transversal (MORENO, 1998; 1999), com o objetivo de

formar alunos(as) para o exercício da cidadania e para a construção de valores como

justiça, democracia e solidariedade (ARAÚJO, 2001; 2002; 2003; 2007). A proposta é

buscar alternativas para a forma fragmentada e descontextualizada a partir da qual o

conhecimento vem sendo trabalhado na escola e que pouco contribuem para a

democratização do ensino e das relações escolares. Dessa forma, para a construção do

presente trabalho, assumimos como pressuposto teórico os princípios de complexidade

de Edgar Morin (1990; 1999; 2002), articulados à proposta de re-organização escolar

apresentada por Araújo (2002; 2003; 2007), da qual faz parte o trabalho com projetos

que desejamos assinalar.

Diante disso, o presente texto tem como objetivo apresentar algumas

possibilidades que a estratégia de projetos oferece para que o conhecimento possa

1 Uma versão do presente texto foi apresentada no V Colóquio Luso Brasileiro sobre questões curriculares / IX Colóquio sobre Questões Curriculares, realizado na Universidade do Porto – FPCEUP, em Portugal, no ano de 2010.

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adquirir maior significado ao constituir-se por meio da contribuição mútua entre os

diferentes conteúdos curriculares e as temáticas transversais que objetivam a educação

em valores. Para tanto, será analisado um projeto desenvolvido com crianças do 5º ano

do Ensino Fundamental.

Para iniciar, destacaremos quais são, em nossa opinião, os objetivos da educação

hoje, por acreditarmos serem esses objetivos os elementos essenciais que a estratégia de

projetos ajuda a articular – sob a ótica do pensamento complexo – em torno de um

ensino que almeje a construção da cidadania e a formação ética das futuras gerações.

Escola e Complexidade

Segundo Araújo (2003, p.30), a função central da escola atualmente deveria

girar em torno de dois eixos básicos: a instrução e a formação ética dos futuros cidadãos

e cidadãs. O eixo da instrução escolar refere-se à construção dos conhecimentos

historicamente construídos pela humanidade. De forma breve, portanto, acreditamos que

uma das funções da escola hoje é trabalhar com os conhecimentos delimitados pelas

matérias curriculares, como matemática, língua portuguesa, história, geografia, artes,

etc. Já o eixo da formação ética diz respeito ao desenvolvimento de condições físicas,

psíquicas, cognitivas e culturais necessárias para o desenvolvimento de uma vida

saudável, como define Araújo, e que permitam a participação, de forma crítica e

autônoma, na vida política e pública da sociedade (idem).

Contudo, o que acontece atualmente em muitas escolas é que, apesar de

incluírem em seus projetos político-pedagógicos a preocupação com a formação ética, o

ensino continua girando em torno apenas do eixo da instrução. Isso acontece porque

alunos e alunas vão à escola em muitos momentos somente para aprenderem, de

maneira fragmentada, os conteúdos historicamente acumulados pela humanidade. De

acordo com Araújo, o trabalho com a instrução é importante, mas sozinho não atende à

formação ética e construção da cidadania.

É a partir dessa inquietação em formar os futuros cidadãos e cidadãs que

adotamos uma prática pedagógica pautada em três princípios: a transversalidade, o

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conhecimento como uma rede de relações e a estratégia de projetos como metodologia

de trabalho em sala de aula.

Tais princípios têm como base o paradigma da complexidade, proposto por

Edgar Morin (1990; 1999) em oposição ao pensamento simplificante, que começou a

ser formulado no século XVII por René Descartes (1596-1650), considerado o “pai da

filosofia moderna”.

Enquanto o paradigma da simplificação preconiza os princípios de disjunção,

redução e abstração, que tendem a fragmentar o tecido do real (compreendendo a

natureza unicamente a partir do funcionamento de suas partes), o paradigma da

complexidade, proposto por Morin, supõe considerar a realidade formada por “uma

extrema quantidade de interacções e de interferências entre um número muito grande de

unidades.” (MORIN, 1990, p.51-52). Isso faz com que a simplificação preconizada pela

ciência moderna conceda lugar também aos fenômenos aleatórios, que não podem ser

previstos e que agregam contradição e incerteza.

Para o presente trabalho, não é nosso objetivo aprofundarmos nas ideias do

filósofo francês Edgar Morin, mas apenas assinalar que, sob a ótica da complexidade, é

preciso compreender que as várias dimensões da realidade estão ligadas umas às outras

e entendê-las de maneira fragmentada pode empobrecê-las (1999; 2002).

Logo, sob a ótica do pensamento complexo, a simplificação não é censurada,

mas torna-se insuficiente para explicar a realidade. Nas palavras de Morin, “Creio ter

demonstrado que este tipo de redução, absolutamente necessária, torna-se cretinizante

assim que se torna suficiente, ou seja, pretende explicar tudo.” (2002, p.456).

Vemos então que a fragmentação é um processo necessário para a constituição

do conhecimento, só não pode se transformar na única via pela qual se conhecerá a

realidade.

No âmbito educativo, adotar o paradigma da complexidade significa admitir que

é possível conciliar o saber historicamente construído pela humanidade – que encontra-

se fragmentado nas diferentes disciplinas do currículo escolar – com o estudo das

temáticas transversais, cujo objetivo é a formação de sujeitos capazes de apreenderem

uma realidade global, indignarem-se com as injustiças cotidianas e desejarem o bem

individual e coletivo.

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Olhar para os objetivos da escola a partir da complexidade não é negar seus

aspectos parciais – representados pela instrução – e nem tampouco considerar apenas a

educação em valores. Como alerta Araújo, “O grande avanço do pensamento complexo

é coordenar, em uma mesma perspectiva, os aspectos parciais e de totalidade da

realidade.” (2002, p.23).

Pautados no paradigma da complexidade e buscando uma educação que articule

a instrução e a formação ética, apresentaremos a seguir os três princípios que embasam

a prática pedagógica destacada no presente trabalho: a transversalidade, o conhecimento

como uma rede de relações e a estratégia de projetos.

Transversalidade e formação ética

Assim como Araújo (2003), a psicóloga espanhola Montserrat Moreno (1998,

p.45) acredita que os elementos necessários para que a formação ética ocorra não estão

todos presentes no estudo disciplinar. Ao pautar-se apenas nos princípios do paradigma

da simplificação, o estudo das matérias disciplinares é frequentemente tomado como a

própria finalidade do ensino e, quando isto ocorre, tais matérias afastam-se ainda mais

da realidade de alunos e alunas, transformando-se “[...] em algo absolutamente carente

de interesse ou totalmente incompreensível.” (MORENO, 1998, p.38).

Assim, a autora destaca a importância de que alunos e alunas atribuam

significado às aprendizagens propostas pela escola. Partindo do pressuposto de que

aprender requer sempre um esforço por parte do(a) estudante, a autora afirma que “Nada

desanima mais que realizar um trabalho que requer esforço sem que se saiba para que

serve.” (idem, p.45). Dessa maneira, Moreno defende a ideia de que, quando um

determinado conhecimento se relaciona à curiosidade própria de todo ser humano ou é

percebido como alguma coisa útil para sua vida, pode transformar-se em algo que será

vivido com maior satisfação.

É nesse aspecto que a ideia de transversalidade propõe uma articulação entre o

científico e o cotidiano, no sentido de aproximar as matérias curriculares aos temas

transversais (assuntos da realidade social vivida por alunos e alunas, a exemplo das

questões ambientais, saúde, orientação sexual, educação para a paz). A partir disso, as

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aprendizagens escolares assumem como ponto de partida os temas transversais,

baseados em “[...] contextos reais nos quais as noções a ensinar adquiram um

significado” (MORENO, 1998, p.48).

Em resumo, ao trabalhar com questões relacionadas à realidade dos(as)

estudantes a escola deixa de se ocupar apenas com os saberes culturalmente herdados e

passa a se preocupar também com a formação ética, promovendo a construção de uma

sociedade mais justa e igualitária. É diante desses ideais que entendemos a proposta da

transversalidade como uma alternativa à concepção disjuntiva de ensino presente no

paradigma da simplificação.

Consideramos importante ressaltar, no entanto, que apenas a presença de tais

temáticas na escola não garante a existência de um trabalho transversal. Apesar da

importância de levarmos em consideração as articulações entre um tema transversal, sua

relevância social e os conteúdos escolares, acreditamos que, mais do que a inserção de

novos temas no âmbito pedagógico, o ensino transversal deve contemplar uma forma

diferente de pensar as relações e o trabalho dentro de sala de aula. A partir disso,

assumimos a pedagogia de projetos como uma via possível para promover essa

mudança, que pressupõe considerar o conhecimento não apenas como um caminho

linear e hierarquizado, mas também aberto à incerteza e indeterminação presentes no

conhecimento humano, como veremos a seguir.

O conhecimento como uma rede de relações

Pautado na metáfora do hipertexto proposta por Pierre Lévy (1993, p.25),

Machado (1995) considera que a educação pode ser caracterizada como uma tarefa de

construção de redes de significados, o que conduz a mudanças de perspectivas de base

na educação, principalmente com relação ao planejamento de atividades didáticas.

No caso específico do conhecimento escolar, tais mudanças conduzem a uma

prática docente que não concebe um único e possível caminho a ser percorrido no

estudo de um tema, por exemplo. Nesse sentido, na concepção de conhecimento em

rede, a hierarquização curricular perde sua força e as disciplinas escolares começam a

assumir um novo papel no ensino. O ato de conhecer, que muitas vezes associava-se

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apenas a uma organização curricular rígida, agora pode ultrapassar os limites das

disciplinas e começar a ser considerado a partir das relações que se estabelecem entre

essas várias disciplinas e também com o que o autor denomina “feixes externos”,

assuntos que não fazem parte dos conteúdos tradicionais.

Em outras palavras, a concepção de conhecimento em rede pressupõe uma

transformação no ensino escolar, que deixa de ter no estudo das disciplinas o próprio

fim da educação e passa a abranger também o estudo de temas “externos”, como é o

caso das temáticas transversais destacadas por Moreno (1998; 1999).

Isso não significa, no entanto, que as disciplinas tornam-se dispensáveis perante

a concepção de conhecimento em rede. Ao contrário, Machado também destaca sua

importância na orientação e articulação dos caminhos a seguir diante das inúmeras

possibilidades e vias de interligação entre os múltiplos nós de uma rede de significados

(MACHADO, 1995, p.155).

Encarar o conhecimento como uma rede de relações na escola é, portanto,

enxergar as relações interdisciplinares existentes entre as diferentes áreas do saber, mas

também ampliá-las, na tentativa de evidenciar sua articulação com temáticas externas, o

que abre inúmeras possibilidades de contribuição mútua para a constituição do

conhecimento.

Diante disso, consideramos que a concepção de conhecimento como uma rede

de relações está pautada nos ideais de complexidade e transversalidade que assinalamos.

A partir do exposto, abordaremos a seguir o terceiro eixo da prática pedagógica que

propomos.

O trabalho com projetos como estratégia pedagógica

Ainda segundo Machado (2006, p.59), no âmbito educativo a palavra projeto

envolve a busca por determinados objetivos, o que não necessariamente pressupõe

percorrer um único caminho para alcançá-los. A ideia de ter um projeto implica também

uma referência ao futuro, que está em aberto e depende das ações dos envolvidos no

projeto. Assim, um projeto pressupõe o engajamento em algo ainda em construção, que

envolve riscos e incertezas.

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De acordo com o que afirma Araújo, tomar essa ideia de projeto em um contexto

escolar ajuda ainda a ampliar a noção de “programas” curriculares, caracterizados por

serem previamente definidos e rígidos, pois “[...] não dão abertura para as novidades

que surgem durante seu desenvolvimento, engessam as ações docentes e não permitem

uma participação mais ativa dos estudantes na construção do conhecimento.”

(ARAÚJO, 2003, p.68).

Como alternativa aos programas curriculares tradicionais – que implicam em

uma visão de conhecimento linear e hierarquizado – Araújo apresenta a ideia de

estratégia, a qual “[...] pressupõe decisões, escolhas, apostas e, logo, riscos e

incertezas.” (idem). Fundamentada no pensamento complexo e na metáfora da rede, a

estratégia não apresenta a rigidez do programa e permite ampliar a ideia de

compartimentalização disciplinar, tendo em vista que pode organizar o currículo escolar

também a partir dos imprevistos que surgem durante o processo de construção do

conhecimento.

Diante do que foi exposto até o momento no presente texto, vemos que as

transformações promovidas pelos princípios da transversalidade e pela ideia do

conhecimento como rede de relações apontam para novas perspectivas de trabalho com

o conhecimento no âmbito da educação básica. A partir disso, consideramos que a

estratégia de projetos configura-se como um dos possíveis caminhos para concretizar

tais perspectivas no cotidiano escolar.

Objetivos da investigação e metodologia

A partir dos referenciais expostos anteriormente, a pesquisa que aqui

apresentamos teve por objetivo investigar as possibilidades que a estratégia de projetos

oferece para que ocorram articulações entre temas transversais e conteúdos curriculares,

ajudando alunos e alunas a atribuir maior significado às aprendizagens escolares.

Para se atingir aos objetivos propostos, foi analisado um projeto fundamentado

nos princípios de complexidade e transversalidade, desenvolvido pelo professor-

pesquisador com uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental. A partir dos projetos

desenvolvidos ao longo de todo o ano letivo foram coletados dados sob a forma de um

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diário de campo contendo as ocorrências do cotidiano escolar (decisões dos sujeitos

envolvidos, planejamentos, reflexões, avaliações e imprevistos), além de registros em

portfólios e todas as atividades dos projetos.

A análise dos dados foi realizada a partir da transcrição de um portfólio

contendo as atividades desenvolvidas ao longo de um projeto. Para o presente texto,

optamos por apresentar a análise de algumas atividades relacionadas a uma das questões

do projeto.

A seguir, iniciamos a apresentação dos resultados da investigação com uma

breve descrição do projeto escolar analisado para em seguida passarmos à discussão dos

dados.

O projeto “Trabalho Infantil e Educação no Brasil”

O projeto que tomamos para análise em nossa investigação pode ser brevemente

descrito a partir dos procedimentos a seguir.

a. Proposição do tema transversal

O planejamento se iniciou com a escolha de uma temática transversal. No caso

do projeto que analisamos, tendo em vista tanto a formação para a cidadania quanto os

conteúdos escolares a serem trabalhados, foi apresentado o artigo XXVI da DUDH2 –

que é conhecido como Direito à Educação – para promover uma discussão inicial em

torno do assunto. Esses momentos de estudo e discussão que antecedem a escolha de

um tema para o projeto podem levar algumas aulas e são chamados de estudos de

aproximação à temática transversal.

Depois da discussão, as crianças deram várias sugestões de temas, chegando-se à

escolha de “Trabalho Infantil e Educação no Brasil”.

2 O assunto de um projeto geralmente se relaciona a alguma temática transversal e à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esse documento oferece uma série de questões relacionadas à vida coletiva, bem como direitos e deveres, tanto sociais quanto individuais, que podem ajudar na educação em valores e construção da cidadania. (ARAÚJO, 2003, p. 81)

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b. Elaboração de questões, partindo dos interesses das crianças

Nessa etapa, alunos e alunas decidiram em grupos o que gostariam de saber

sobre o tema escolhido, elaborando perguntas que passaram a compor a rede do projeto.

É importante ressaltar que, embora tenha ocorrido uma definição intencional do

professor – que indicou a temática transversal que seria trabalhada – quando o tema e as

perguntas do projeto são escolhidos pelos alunos e alunas, busca-se uma articulação,

dentro da perspectiva de complexidade, entre interesses e preocupações docentes e

discentes.

c. Planejamento das estratégias e metodologias, articulando as perguntas aos

conteúdos

No passo seguinte, ocorreu o planejamento docente dos conteúdos e métodos

que envolveriam a busca pelas respostas às perguntas do projeto. Nessa etapa, o

professor acrescenta à rede as disciplinas e conteúdos específicos a serem trabalhados,

articulando a temática transversal aos conteúdos curriculares.

d. Início do projeto

O projeto teve início a partir da busca por respostas às perguntas das crianças. É

importante destacar que cada atividade desenvolvida articula os conteúdos curriculares

aos transversais, previstos ou não, em um trabalho que ressalta a autoria de estudantes

no desenvolvimento e registro das atividades. Ao longo do projeto, o trabalho foi

registrado em portfólios contendo as produções das crianças, comentários docentes e as

reflexões de ambos. Além disso, cada atividade realizada também é registrada na rede,

por intermédio de uma ligação entre a pergunta respondida e os conteúdos trabalhados.

Ao trabalhar com o conhecimento como uma rede de relações, o exercício que fazemos

é o de considerar, ao mesmo tempo, a existência e necessidade da linearidade para a

sistematização do conhecimento, e também a importância da aleatoriedade e incerteza

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que pressupõe percorrer os caminhos do conhecimento. Na imagem 1 abaixo podemos

ver a rede do projeto.

Rede do projeto contendo a temática, questões e conteúdos a serem estudados.

A seguir, partiremos para a análise de algumas atividades na tentativa de

evidenciar a articulação entre os conteúdos curriculares e as temáticas transversais no

projeto.

Um exemplo de articulação entre temas transversais e conteúdos curriculares no

trabalho com projetos

O projeto brevemente descrito anteriormente possibilitou vários momentos de

articulação entre a temática transversal abordada (Direito à Educação) e os conteúdos

das matérias curriculares previstos para o 5º ano do Ensino Fundamental.

Nessa parte de nosso trabalho, analisaremos apenas um desses momentos de

articulação, na tentativa de indicar como o conhecimento trabalhado na perspectiva da

estratégia de projetos pode adquirir maior significado ao constituir-se por meio da

contribuição mútua entre as diferentes áreas do saber científico (tomadas na escola

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como conteúdos curriculares) e as temáticas transversais (que objetivam a educação em

valores).

A atividade analisada a seguir insere-se nos estudos desenvolvidos em torno das

seguintes perguntas da rede:

- Por que existe exploração no trabalho de crianças? Por que elas trabalham em serviços pesados se quem tem que trabalhar são os pais? - O que o governo e nós podemos fazer para ajudar as pessoas que estão sem estudar?

Ao analisar uma das atividades com as questões citadas anteriormente,

verificaremos como conteúdos específicos de algumas matérias curriculares foram

trabalhados, não como finalidades em si mesmos, mas como instrumentos para

compreender a realidade e promover a educação em valores. Com isso, acreditamos que

será possível aproximarmos a estratégia de projetos à perspectiva de complexidade e

transversalidade com a qual trabalhamos.

Narrando uma relação de trabalho exploratória

Em uma das etapas do projeto, alunos e alunas foram convidados a imaginar um

diálogo e produzir uma narrativa entre uma criança que trabalha e seu “patrão”. Um dos

objetivos desta atividade era o de registrarmos o aprendizado construído até aquele

momento e trabalharmos com conteúdos de português, mais especificamente com o

texto narrativo em discurso direto (conteúdo curricular da 4ª série em questão). Para

tanto, foram preparadas aulas abordando o conteúdo destacado a fim de que as crianças

pudessem produzir suas histórias.

Na proposta de produção textual, as crianças foram solicitadas a criar um

personagem infantil vivendo uma situação de exploração no trabalho. Também

precisavam evidenciar (utilizando-se dos recursos do texto narrativo que aprendiam) os

sentimentos, experiências e relações do personagem com seu trabalho, patrão, família e

planos para o futuro – parâmetros que foram levantados a partir dos estudos realizados

no projeto até aquele momento.

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O texto narrativo também foi considerado como uma avaliação, tanto dos

conteúdos trabalhados (construção de personagens, diálogos, travessão, pontuação,

parágrafo, narrador, escrita ortográfica), quanto da temática transversal (exploração do

trabalho infantil).

Para dar suporte à análise desta etapa do projeto, transcreveremos alguns trechos

da narrativa produzida por uma das crianças da 4ª série. Acreditamos que tais trechos

podem nos ajudar a entender como os conteúdos de português ganharam significado ao

serem utilizados para expressar o conhecimento trabalhado de forma transversal no

projeto.

Tomando o começo da narrativa deste aluno, vemos que ele usa o narrador para

evidenciar elementos do cenário que explicitam um trabalho realizado em condições

difíceis:

Um dia, Genivaldo trabalhando na cana de açúcar com um tempo frio e de chuva, ao ver seu patrão vendo o trabalho dele e de sua família, Genivaldo foi tentar convencê-lo a assinar a carteira de trabalho da família, ele estava com medo de ser demitido.

Para compor o cenário de sua história o aluno utilizou-se dos estudos sobre o

conteúdo de português, o que podemos notar quando observamos o uso do narrador.

Além disso, o aluno também demonstra entendimento inicial de alguns dos elementos

que compõem uma situação de exploração, já que descreveu não só as condições

climáticas e de trabalho (“com um tempo frio e de chuva”) como também os

sentimentos do personagem (“estava com medo de ser demitido.”).

Logo a seguir, temos um outro trecho que pode nos ajudar a entender como a

educação em valores está apoiada na utilização do conteúdo e na construção de relações

entre a temática transversal e o currículo escolar:

– Amaro [patrão], porque você não assina as carteiras [de trabalho] de minha família? – Amaro responde com tanta firmeza que Genivaldo assusta: – O senhor é pobre e não precisa de carteira sua lei é trabalhar (...) Genivaldo retruca, com medo, mas iria tentar ter a carteira: – Você nos explora! Não assina nossa carteira, nos paga muito pouco!

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No trecho transcrito acima, o aluno utiliza, mais uma vez, os recursos do texto

narrativo para evidenciar a situação de opressão vivida pelo personagem. Ao tentar

conversar com seu patrão, o personagem criado pelo aluno demonstra medo

(“Genivaldo assusta”; “Genivaldo retruca, com medo”), mas também manifesta sua

consciência sobre a situação de exploração a que é submetido (“Você nos explora!”),

bem como sua convicção de que a carteira de trabalho é um direito do trabalhador

(“Não assina nossa carteira, nos paga muito pouco!”). Mesmo com medo, diz a história,

o menino Genivaldo tentaria reivindicar seu direito de ter carteira assinada.

Importante ressaltar também que o aluno lançou mão das reflexões e

informações que vinham sendo discutidas nas aulas até aquele momento, o que pode ser

constatado pela verossimilhança das elaborações que compõem a narrativa do aluno,

fruto do trabalho anteriormente descrito que contemplou o vídeo-documentário, aulas,

pesquisas e atividades para compreensão da temática transversal.

Em nosso modo de ver a educação, este trabalho é fundamental para a formação

ética de sujeitos capazes de identificarem, indignarem-se com as injustiças do mundo

em que vivem e lutarem por sua transformação em busca da felicidade individual e

coletiva.

Em nossa opinião, esta característica do trabalho com temas transversais – que

vai além do estudo das matérias curriculares por si só, na tentativa de ligação dos

conteúdos científicos com a vida cotidiana das pessoas – é que confere ao projeto a

preocupação com a educação em valores e com a busca de soluções para os problemas

sociais.

Tomaremos agora o final da narrativa do aluno, quando o patrão de Genivaldo

recebe uma ligação do governo solicitando a regularização da carteira de trabalho de

seus funcionários:

– Bom dia senhor, aqui é o governo, queremos que o senhor assine a carteira de seus funcionários, caso contrário você será processado. (...) O chefe sem escolha disse: – Assine a carteira dos funcionários. As crianças ficaram felizes começaram a estudar, passaram na faculdade e foram ser o que quiserem para trabalhar.

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Neste último trecho, vemos o papel de destaque que é atribuído ao governo na

resolução do problema (“Bom dia senhor, aqui é o governo, queremos que o senhor

assine a carteira de seus funcionários”), o que pode nos apontar, em uma análise inicial,

que este aluno começa a desenvolver uma percepção social e política a respeito das

desigualdades no Brasil, tanto na análise de suas causas quanto na sugestão de soluções

para o problema.

Além disso, ao final de sua narrativa, o aluno ressalta a importância da

escolarização para as crianças, bem como a necessidade de que a escolha do trabalho

não seja norteada apenas pela necessidade de sobrevivência, mas também pelo desejo de

cada um (“As crianças ficaram felizes começaram a estudar, passaram na faculdade e

foram ser o que quiserem para trabalhar.”).

Sabemos que este aluno finaliza sua narrativa de maneira “ingênua”; resolvendo

todos os problemas do personagem da história (“O chefe sem escolha disse: – Assine a

carteira dos funcionários.”; “As crianças ficaram felizes.”), mas sabemos também que

esta é uma reflexão inicial de uma criança que começa a se deparar com situações reais

complexas. Por isso, acreditamos que estes dados indicam a contribuição da prática

pedagógica de projetos para a educação em valores que almejamos.

É importante destacar também que, depois de escreverem a primeira versão das

narrativas, foram indicadas melhorias e as dificuldades da classe constituíram momento

propício e intencionalmente planejado para realizar aulas, atividades, novos estudos e

correções específicas de conteúdos linguísticos. A partir disso, podemos dizer que as

crianças da turma tiveram a oportunidade de estudar os conteúdos curriculares

tradicionais, mas o fizeram durante a confecção de um texto que explicitava uma

questão de relevância social. Assim, consideramos que esta é uma forma de articular os

conteúdos tradicionais a uma problemática atual. Para que seus textos contivessem

informações relevantes, as crianças discutiram, refletiram e estudaram a temática

transversal durante várias aulas, e para que estes mesmos textos respeitassem as regras

de nossa língua e pudessem ser bem entendidos por outras pessoas, as crianças tiveram

aulas e estudaram os conceitos do discurso direto, além de regras gramaticais para

corrigir seus textos sob intervenção do professor.

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Como já dito, o presente trabalho se propôs a analisar apenas um momento do

projeto desenvolvido. No entanto, antes de finalizarmos, consideramos importante citar

outros conteúdos que foram trabalhados em articulação com a temática transversal

desenvolvida, por acreditarmos que tais informações podem ajudar a evidenciar ainda

mais que o trabalho com projetos não abre mão dos conteúdos curriculares que precisam

ser trabalhados na escola.

Assim, além do exemplo destacado, também foram trabalhados conteúdos de

língua portuguesa (quando alunos e alunas produziram uma narrativa entre uma criança

que trabalha e seu “patrão”); conteúdos de história (que ajudaram alunos e alunas a

perceberem a existência de diferentes pontos de vista históricos envolvidos na questão

do trabalho infantil); outros conteúdos matemáticos (elaboração, leitura e resolução de

problemas relacionados a estatísticas de trabalho e educação no Brasil); produção de

histórias em quadrinhos envolvendo estudos linguísticos e artísticos; conteúdos de

ciências relacionados aos riscos do trabalho infantil para a saúde física e mental da

criança (sistemas do corpo humano, limites e capacidades), entre outros. Além disso,

alunos e alunas do 5º ano também trabalharam conjuntamente com estudantes de outra

escola, conheceram um espaço escolar e social diferente do habitual e estudaram

conteúdos de geografia (pontos cardeais, colaterais, leitura de mapas e legendas) a fim

de localizarem as regiões das duas escolas.

Por fim, os resultados apresentados demonstram que a proposta de um ensino

transversal concretizada na estratégia de projetos confere importância ao trabalho com

contextos reais, nos quais o ensino escolar adquira significado buscando a união entre os

saberes historicamente construídos pela sociedade e a formação ética das futuras

gerações.

Considerações Finais

Nesse trabalho, nosso objetivo foi demonstrar como o conhecimento visto sob a

ótica da transversalidade e trabalhado a partir da estratégia de projetos pode adquirir

maior significado para crianças e jovens na escola. Ao se constituírem por meio da

articulação entre os conteúdos curriculares e as temáticas transversais, as aprendizagens

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escolares passam a ser vistas a partir de uma perspectiva de complexidade e adquirem

sentido, ajudando a formar sujeitos que almejem por uma vida mais justa, digna e feliz

para todos os seres humanos.

Nesse sentido, a análise aqui apresentada sinaliza as potencialidades da

estratégia de projetos em ampliar os objetivos da educação para além da instrução. No

trabalho com projetos, as matérias disciplinares continuam sendo importantes, não como

um fim em si mesmas, mas como ferramentas para a educação em valores, a partir do

estudo de temas que tentam responder a problemas sociais e conectar a escola à vida das

pessoas.

Dessa maneira, alunos e alunas tomam contato com o conhecimento

historicamente construído pela humanidade por intermédio do estudo de temas de

relevância social para a formação humana, contemplando o que julgamos serem os dois

objetivos básicos da educação: a instrução e a formação em valores.

Dito de outra forma, o trabalho com projetos possibilita que as disciplinas,

representantes de um conhecimento parcial, relacionem-se entre si e ao tema transversal

na construção de um conhecimento multidimensional que não se justifica por si mesmo,

mas tem a intenção de levar alunos e alunas a conhecer e transformar o mundo em que

vivem. Esperamos que tais características de um ensino que se pretenda transversal a

partir de uma perspectiva de complexidade tenham ficado visíveis em nossa

investigação.

Referências

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Universidade Estadual de Maringá 07 a 09 de Maio de 2012

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