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UMA BREVE ARQUEOLOGIA DO OLHAR BAIANO SOBRE AS ARTES VISUAIS A PARTIR DAS RELAÇÕES DO PÚBLICO COM A “SALA ESPECIAL YÊDAMARIA DO CIRCUITO DAS ARTES BAHIA 2014SALGADO, GUSTAVO. (1) 1. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Comunicação Rua Barão de Geremoabo, s/n, Ondina. CEP 40170-115. Salvador - BA - Brasil [email protected] RESUMO Não ousando definir ou estabelecer uma relação sucessiva de causa e efeito, este trabalho lança olhares sobre esse fenômeno aqui problematizado: a busca pela figuratividade humana em uma exposição contemporânea de arte ainda mais se tratando de uma mostra de gênero natureza-morta na Bahia. Uma perspectiva preconceituosa e reducionista poderia simplesmente atribuir o rótulo de ignorantes àqueles que não atenderam às expectativas de recepção estética enquanto público. Em postura completamente oposta, proponho uma análise a fim de valorizar essa manifestação espontânea que acaba por denunciar muito da cultura de um público e de uma sociedade. Optou-se por realizar uma breve arqueologia do olhar baiano sobre as artes visuais a partir das relações do público com a “Sala Especial Yêdamaria do Circuito das Artes Bahia 2014”. É de fundamental importância na compreensão da sociedade baiana e brasileira entender a construção social do Brasil como oriunda de um projeto português de dominação econômica, política e cultural. E o movimento artístico e cultural predominantemente vigente durante o princípio da América Portuguesa fora o Barroco. Longe de querer supor que a Bahia contemporânea limita-se aos desdobramentos dos gostos dos primórdios da colônia, defendo a ideia de que o olhar socialmente compartilhado sobre as composições e narrativas visuais que sucederam foi intensamente influenciado pelos costumes e discursos historicamente hegemônicos. Afinal, é importante ressaltar que para além de gostos e motivos decorativos de uma época, as manifestações artísticas refletem profundamente a filosofia de seu contexto espaço-temporal, o que inclui estruturas e sistemas de poder como a organização política (enquanto regime) e religiosa. Palavras-chave: História Social da Arte; Colonização Brasileira; Cultura Baiana.

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UMA BREVE ARQUEOLOGIA DO OLHAR BAIANO SOBRE AS ARTES VISUAIS A PARTIR DAS RELAÇÕES DO PÚBLICO COM

A “SALA ESPECIAL YÊDAMARIA DO CIRCUITO DAS ARTES BAHIA 2014”

SALGADO, GUSTAVO. (1)

1. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Comunicação Rua Barão de Geremoabo, s/n, Ondina. CEP 40170-115. Salvador - BA - Brasil

[email protected]

RESUMO

Não ousando definir ou estabelecer uma relação sucessiva de causa e efeito, este trabalho lança olhares sobre esse fenômeno aqui problematizado: a busca pela figuratividade humana em uma exposição contemporânea de arte – ainda mais se tratando de uma mostra de gênero natureza-morta – na Bahia. Uma perspectiva preconceituosa e reducionista poderia simplesmente atribuir o rótulo de ignorantes àqueles que não atenderam às expectativas de recepção estética enquanto público. Em postura completamente oposta, proponho uma análise a fim de valorizar essa manifestação espontânea que acaba por denunciar muito da cultura de um público e de uma sociedade. Optou-se por realizar uma breve arqueologia do olhar baiano sobre as artes visuais a partir das relações do público com a “Sala Especial Yêdamaria do Circuito das Artes Bahia 2014”. É de fundamental importância na compreensão da sociedade baiana e brasileira entender a construção social do Brasil como oriunda de um projeto português de dominação econômica, política e cultural. E o movimento artístico e cultural predominantemente vigente durante o princípio da América Portuguesa fora o Barroco. Longe de querer supor que a Bahia contemporânea limita-se aos desdobramentos dos gostos dos primórdios da colônia, defendo a ideia de que o olhar socialmente compartilhado sobre as composições e narrativas visuais que sucederam foi intensamente influenciado pelos costumes e discursos historicamente hegemônicos. Afinal, é importante ressaltar que para além de gostos e motivos decorativos de uma época, as manifestações artísticas refletem profundamente a filosofia de seu contexto espaço-temporal, o que inclui estruturas e sistemas de poder como a organização política (enquanto regime) e religiosa.

Palavras-chave: História Social da Arte; Colonização Brasileira; Cultura Baiana.

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IX Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte em homenagem aos 200 anos da morte de Antônio Francisco Lisboa - o Aleijadinho De 02 a 05 de Novembro em Belo Horizonte/MG

À mesa com Yêda: a morte e a morte da natureza

Este trabalho é fruto de inquietação. Primeiramente, a inquietação do outro: o incômodo

do público baiano perante uma estética não antropocêntrica em obras e mostras de

artes visuais. Consequente à percepção disso, a minha inquietação em tentar

compreender e refletir sobre possíveis origens desse comportamento. Não ouso definir

ou estabelecer uma relação sucessiva de causa e efeito, desejo, no entanto, lançar

olhares sobre esse fenômeno aqui problematizado.

Enquanto mediador cultural do Circuito das Artes Bahia 2014, pude ter contato

diretamente com as manifestações do público em relação à “Sala Especial Yêdamaria”,

por quase um mês, entre os dias 12 de abril a 11 de maio, período da mostra dedicada à

artista soteropolitana Yêdamaria.

De acordo com a curadoria, o acervo exposto da artista remeteu ao gênero

natureza-morta, tradicionalmente uma das vertentes mais recorrentes nas artes

plásticas. Dentre gravuras das mais variadas técnicas e óleos sobre tela, a antologia

poética de Yêdamaria olha para a simplicidade – sem ser simplória – de uma mesa

posta, por exemplo, e, contrariando a aparente estagnação dos objetos, apresenta uma

dinâmica da luz que se refrata e se reflete nos cristais e metais imagéticos.

Entretanto, tais atributos técnicos e estéticos não pareciam ser os elementos que mais

despertavam a curiosidade dos visitantes. O que inúmeras vezes intrigava, fascinava,

ou, simplesmente, despertava o interesse de parte do público que compareceu à Sala

Especial era a ausência de uma figuratividade humana nas obras de arte.

As obras selecionadas para a exposição de Yêdamaria apresentam, muitas vezes em

comum, uma atmosfera visual relativa a mesas. O que possibilitou uma repetição

constante de comentários, por parte do público: como “Yêda gosta de comer, né? Gosta

de uma mesa” (sic). E proporcionou outras análises, também verbalizadas pelos

frequentadores, como se as imagens expostas fossem o registro de um momento

decisivo: a mesa fora posta, mas nem a comida fora servida, nem as pessoas já

estavam à mesa.

Afinal, onde estavam essas pessoas pelas quais Yêdamaria tanto aguardava? Se a

artista realmente esperava por alguém, não é possível saber apenas pela análise da

formatividade de suas obras. Porém, é possível inferir que o público ansiava por

imagens que fizessem alusão a figuras humanas, leitura realizada a partir das

externalizações daqueles que frequentaram a mostra.

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Habemus público?

No âmbito artístico parece aceitável o emprego do termo “público” ao se referir a um

grupo humano que participa de um processo comunicativo. Talvez pareça que se falar

de um público seja uma homogeneização demasiado simplista, primeiramente pelo

simples fato de, ao se tratar de públicos, haver segmentos e setores heterogêneos que

compõem essa invenção condensada que é o público. Mas, ao se agrupar os sujeitos

sob o signo “público” não há por objetivo ignorar as particularidades individuais; se é

almejado ressaltar as características que constituem uma coesão.

Então, que público foi esse que frequentou a “Sala Especial Yêdamaria do Circuito das

Artes Bahia 2014”? Como a consulta ao livro de registro de visitas bem pôde constatar,

o evento contou com uma enorme presença de visitantes relacionados ao sistema de

arte – artistas, estudantes universitários, professores acadêmicos, profissionais de

áreas afins etc. Houve também uma grande visitação de turistas, especialmente

brasileiros, que se destinavam ao acervo permanente do Museu Carlos Costa Pinto

(MCCP) e aproveitaram para conhecer a exposição temporária em homenagem a

Yêdamaria. O MCCP não apresenta uma política excludente, entretanto, por estar

localizado em uma vizinhança que concentra um altíssimo capital financeiro, e se tratar

de um espaço de compartilhamento de um repertório cultural que fora negado

historicamente à maior parcela da população soteropolitana – menos abastada –,

intimida prováveis públicos via um discurso implícito de personas non gratas.

Assim, mesmo que não voltado estritamente a um público das artes, a “Sala Especial

Yêdamaria do Circuito das Artes Bahia 2014” acabou por contemplar mais

especificamente grupos sociais habituados a aparelhos culturais, como museus e

galerias de arte – não implicando o domínio de códigos compartilhados ou discursos

artísticos.

Entretanto, não podemos em hipótese alguma restringir o conceito de público somente

aos detentores do dito capital cultural ou aos frequentadores, assíduos ou ocasionais,

dos aparelhos culturais burgueses – tão difundidos a partir da Renascença – como as

casas de ópera, os teatros e os museus, por exemplo.

Segundo Malraux (1978), no mundo contemporâneo é possível, graças à

difusão das técnicas de reprodução, que as pessoas montem

mentalmente seu Museu Imaginário, abolindo dessa forma as fronteiras

espaços-temporais. O Museu passa a funcionar como um espaço

imaginário que habita nosso inconsciente (Lombardi, 2008, p. 46 - 47).

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Isso sugere que mesmo as pessoas (indivíduos, grupos sociais ou públicos) que não

adentrem direta ou deliberadamente o âmbito físico de um museu podem ser afetadas

pela produção imagética e discursiva ali inserida, apresentada e construída. Portanto,

numa sociedade o processo de formação de público desse Museu Imaginário pode se

confundir com o próprio processo de identidade cultural: à medida que a produção

imagética difundida se entranha intrinsecamente para além do modo de se retratar a

realidade, e se converte em uma maneira própria de se perceber, interpretar e construir

a realidade. Nessa condição, o conceito de público cambia para uma noção de

identidade cultural.

Nascimento no Renascimento

É de fundamental importância na compreensão do público baiano – e, para além disso,

da própria sociedade baiana – entender a construção social do Brasil como oriunda de

um projeto português de dominação econômica, política e cultural.

Dois estilos de colonização se inauguram no norte e no sul do Novo

Mundo. Lá, o gótico altivo de frias gentes nórdicas [...]. Cá, o barroco

das gentes ibéricas, mestiçadas [...]. Ao apartheid dos nórdicos,

opunham o assimilacionismo dos caldeadores. [...] Um é a tolerância

soberba e orgulhosa dos que se sabem diferentes e assim querem

permanecer. Outro é a tolerância opressiva, de quem quer conviver

reinando sobre as almas e os corpos dos cativos, índios e pretos [...]. É

certo que a colonização do Brasil se fez como esforço persistente,

teimoso, de implantar aqui uma europeidade adaptada nesses trópicos

e encarnada nessas mestiçagens (RIBEIRO, 2013, P. 63).

A colonização não se deu simplesmente no plano físico da geografia – que, por

definição e excelência é também uma ciência política. A colonização redesenhava o

espaço, dominava os corpos e domesticava as almas. Herdeiro legítimo do sentimento

judaico-cristão (portanto, ocidental) de culpa, o católico Barroco executava a conversão

doutrinária do espírito e praticava a naturalização do controle social sobre os corpos:

[...] Porque se trata com hereges a catequizar, livrando-os da danação

eterna. Nada mais natural do que pensar assim para um ibero que

acabava de expulsar os hereges sarracenos e judeus, que os haviam

dominado por séculos. Ainda com o fervor das gloriosas cruzadas

contra os mouros, eles se assanharam, aqui, contra o gentio

americano. O próprio Estado assume funções sacerdotais [...]

(RIBEIRO, 2013, p. 64).

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Sob a égide do catolicismo, a fatia portuguesa do Novo Mundo começou a ser

engendrada e esculpida e a sua população “brasileira” – contingente situado na colonial

América Portuguesa, que começou a ser forjado no seicentos – foi sendo doutrinada à

imagem e à semelhança da idolatria cristã lusitana (Fig. 1).

Figura 1 – Victor Meireles: A Primeira Missa no Brasil, 1859. Óleo sobre tela, 268 x 356 cm

Assim, enquanto o movimento reformista protestante reclamava a fidelidade à palavra

da Bíblia, a Igreja Católica Apostólica Romana seguia investindo na canonização pela

imagem (Fig. 2):

O mundo católico descobrira que a arte podia servir à religião de um

modo que superava a simples tarefa que lhe fora atribuída nos

começos da Idade Média – a de ensinar a Doutrina a pessoas que não

sabiam ler. Agora poderia ajudar a persuadir e converter mesmo

aqueles que talvez tivessem lido demais. Arquitetos, pintores e

escultores foram convocados para transformar igrejas em exibições

grandiosas cujo esplendor e glória quase nos cortam a respiração. O

que importa nesses interiores são menos os detalhes do que o efeito

de conjunto (GOMBRICH, 2012, p. 437).

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Figura 2 – José Joaquim da Rocha: Alegoria do ingresso de São Domingos no céu (detalhe do forro da nave, Igreja da Ordem Terceira de São Domingos. Salvador, BA), 1781. Pintura sobre

madeira

Para dar continuidade a esse modelo de controle, aos motivos decorativos e às artes

visuais desenvolvidas sob o Império Português, foram incorporados elementos

pictóricos referentes à fauna e à flora e signos culturais dos ambientes dominados. Um

exemplo disso é a notável presença em mobiliários e utensílios (quanto a esses últimos,

principalmente vidros e cristais) de uma textura conhecida como bico de jaca, que faz

alusão à textura do fruto da jaqueira, planta tipicamente indiana. Isso demonstra,

portanto, que o Estado Português demarcou o seu território, para além do limite

espaço-temporal, e que a colonização do olhar é uma herança que ainda persiste.

Aqui, a Europa se defronta com multidões de povos exóticos [...]. Cá,

em nosso universo católico e barroco, mais do que lá, no seu mundo

reformista e gótico, as classes dirigentes tendem a definir-se como

agentes da civilização ocidental e cristã, que se considerando mais

perfeitos, prudentes e pios, se avantajavam tanto sobre a selvageria

que seu destino era impor-se a ela como o domínio natural dos bons

sobre os maus, dos sábios sobre os ignaros. Essa dominação se

alcança pela ação da guerra, pela inteligência nos negócios, pela

conscrição para o trabalho e pelo refúgio na missão (RIBEIRO, 2013,

p. 64).

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À imagem e semelhança

“Então Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança’” (Fig. 3).

Gênesis 1:26

Segundo Jung (2008, p. 142), o “mito do herói é o mais comum e o mais conhecido em

todo o mundo [...]. Tem um flagrante poder de sedução dramática e, apesar de menos

aparente, uma importância psicológica profunda”. Em virtude disso, pode-se

compreender que um contexto cultural em que a referência ao humano se mistura à

reverência ao sagrado potencializa uma idolatria. E o próprio personagem principal da

mitologia católica representa a figura arquetípica do herói:

Ouvimos repetidamente a mesma história do herói de nascimento

humilde mas milagroso, provas de sua força sobre-humana precoce,

sua ascensão rápida ao poder e à notoriedade, sua luta triunfante

contra as forças do mal, sua falibilidade ante a tentação do orgulho

(hybris) e seu declínio, por motivo de traição ou por um ato de sacrifício

“heroico”, no qual sempre morre (idem).

Os mitos, como o mito do herói, surgem dos anseios da condição humana de tentar

compreender a realidade. E nesse processo de busca pela compreensão, as

interpretações desenvolvidas são mais do que meras impressões apreendidas: são, ao

mesmo tempo, produtos e construtores sociais. São a criação da – e, portanto, a própria

– realidade. Nessa perspectiva, a arte desdobra-se para além do artifício de

“representar” o real e torna-se elemento de invenção do mundo (Fig. 3).

Figura 3 – Michelangelo Buonarroti: A Criação de Adão (Capela Sistina, Vaticano), 1508 - 1512.

Afresco, 280 cm × 570 cm

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Como aponta Ribeiro (2013, 53 – 64), após o achamento, a descoberta ou a invasão do

Brasil, aos portugueses “Roma lhes sacramenta a possessão dos novos mundos com a

condição de que prossigam sobre eles a guerra dos mouros, na guerra e na conversão

dos novos infiéis recém-descobertos”. Numa guerra pela dita salvação das almas,

Portugal a serviço da Igreja cria os homens à sua imagem e semelhança. Dominadores

ou dominados, as pessoas que compunham o que posteriormente veio a ser o Brasil

foram moldadas do barro aos moldes barrocos. E nesse aspecto as Américas lusitana e

hispânica não diferem tanto entre si, posto que “o império ibérico, sagrando-se sobre o

novo mundo, se tingia com as tintas de Roma”.

Para Nonell (1977, p. 63), “a Roma da Contrarreforma foi o campo de prova dos artistas

barrocos. O mundo é considerado como um imenso espetáculo, e a arte [...] como uma

bem montada cenografia teatral”. Financiados pelo Vaticano, alguns artistas, como

Bernini e Caravaggio (Fig. 4), foram responsáveis por humanizar as figuras das imagens

santas, assim como apresentá-las com vícios e virtudes – aproximando os planos do

divino com o mundano.

Figura 4 – Michelangelo Caravaggio: A Incredulidade de São Tomé, 1601 - 1602. Óleo sobre tela, 107 cm × 146 cm

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Ainda de acordo com Nonell (1977, p. 65), “as características especiais do sentimento

artístico espanhol e português, composto de cultura latina, substrato ibérico e tradição

muçulmana, criaram um ambiente propício à chegada do barroco”.

Gombrich (2012) problematiza com maestria as dificuldades e as contradições de se

classificar e rotular movimentos, estilos, escolas, vanguardas ou tendências artísticas,

principalmente com os conceitos ocidentais de uma história linear e eurocêntrica.

Entretanto, peço licença a Gombrich e evoco uma simples – mas não simplória –

definição do Barroco, apresentada por Rego e Braga (1999), em publicação portadora

do selo “Altamente recomendável”, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil:

No Brasil o Barroco aconteceu [...] durante dois ciclos econômicos: o

da cana-de-açúcar, no Nordeste, e o do ouro, em Minas Gerais. [...] O

ouro aparecia em bordados de roupas e tapeçarias e cobria os

entalhes. Era usado também como forma de pagamento e,

principalmente, alimentava a vaidade da realeza portuguesa. As

pessoas eram ambiciosas e queriam ficar ricas e poderosas.

Gostavam de mostrar como eram importantes frequentando e

construindo igrejas grandes e suntuosas (REGO; BRAGA, 1999, p.

10-13).

Esse conceito acerca do Barroco parece confrontar a sacra propaganda católica cuja

missão seria a salvação e libertação das almas. O Barroco enquanto âmbito de

predomínio do cheio e do exagero como cartilha de evangelização pela imagem

converte-se em um mecanismo de manifestação pública de opulência e ostentação dos

setores mais abastados da sociedade colonial. Nessa dialética entre o culto espiritual

versus material, “a utopia jesuítica esboroou e os inacianos foram expulsos das

Américas [...]. O mesmo aconteceu com o sonho mirífico dos franciscanos, reduzido à

visão do que era a boçalidade do mundo colonial, ínvio, ímpio e bruto”, avalia Ribeiro

(2013, p. 56). E o autor ainda sinaliza que:

Vendo a incompatibilidade insanável entre eles [jesuítas e

franciscanos] e os colonos e, por extensão, entre o projeto missionário

e o real, se afastaram [...]. As Coroas optaram, ambas, pelo projeto

colonial. [...] Em lugar de sacros reinos pios, sob reis missionários a

serviço da Igreja e de Deus, os reis de Espanha e de Portugal queriam

é o reino deste mundo (RIBEIRO, 2013, p. 57).

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Culpa e perdão, luz e sombras, vícios e virtudes... O jogo dialógico tão característico do

Barroco é destituído de seu teórico caráter religioso e convergem tão simplesmente a

uma ferramenta política, econômica e social de detenção e manutenção de poder e

status quo. É de fundamental importância ressaltar que o contexto histórico do Barroco

está diretamente relacionado a um momento em que monarquias absolutistas se

consolidam, Estados se centralizam e a burguesia começa a reclamar para si uma maior

visibilidade sociopolítica através do acúmulo de capital.

Em relação ao Barroco e seus exageros dramáticos, Koch (2004, p. 50) aponta que

“somente a simetria [...] parece rigorosa. Apesar da alegre exuberância, estão sempre

presentes figuras e alegorias da ordem divina e da ordem absolutista”, reforçando a

concepção desse movimento artístico e cultural enquanto um mecanismo estrutural de

manutenção do sistema de poder de sua época. O mesmo autor (idem) sinaliza que

“quando essa ordem se desfaz, durante o Rococó, a assimetria se torna

significativamente a característica do novo estilo [...]. A França oferecerá ao mundo o

ato final e sangrento da época barroca: a Revolução”.

No contexto europeu – principalmente francês –, a leveza rococó frente aos excessos

barrocos veio a atender os anseios estéticos de uma burguesia iluminista e cada vez

mais racionalista que não mais estava subordinada à Igreja Católica. No Brasil,

consequentemente também na Bahia, o importado Rococó aportou em um panorama

cultural profundamente religioso e conservador, e suas principais manifestações se

desenvolveram através da arquitetura e em temáticas religiosas.

Olhar colonizado: herança cultural

O modernismo demorou a aparecer na Bahia. Terra de profundas e

fundadas tradições, a Bahia resistiu longo tempo à modernidade

cultural. [...] Orgulhosa de sua cultura, a Bahia se mantinha contrária à

modernidade. Só no final dos anos 40, o modernismo vai acontecer na

Bahia [...] (RUBIM, 2013 in CRAVO Jr., 2013, p. 15).

Esse pensamento acerca do modernismo na Bahia denuncia estar visceralmente

condicionado à própria lógica modernista ocidental: o visado progresso é uma grandeza

positivista que cresce linearmente, atrelada a um conceito de tempo igualmente linear

tendo como parâmetro o eixo Europa - Estados Unidos da América. Essa concepção

acerca do Modernismo Baiano parece ignorar as características particulares que cada

contexto cultural em seu espaço-temporalidade apresenta. Mas, o parágrafo

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supracitado salienta uma característica importantíssima para se buscar compreender a

Bahia: “Terra de profundas e fundadas tradições”.

Através da abordagem de Mariano (2009) acerca da importância da tradição na

sociedade baiana, podemos lançar olhares sobre a cultura contemporânea da Bahia:

Caracterizar certas práticas ou modos de perceber o mundo como

tradicionais equivale a defender a sua manutenção, pois a ideia de

tradição é inseparável da de transmissão: o conceito dicionarizado é o

de conhecimentos, praticas e valores transmitidos de geração em

geração, oralmente ou pelo hábito. [...] Está se nomeando aqui como

“tradição” tudo o que remete à continuidade, manutenção,

sobrevivência [...]. O dever de obedecer aos costumes e repetir a

tradição é tão vigoroso que quase não é percebido como um dever,

absorvido como uma forma de ser e pensar, algo natural. (MARIANO,

2009, p. 143 - 153).

E, então, qual seria o possível papel da religiosidade nessa terra de tão conservadas

tradições?

[...] É creditada à Bahia uma característica poderosa: a intimidade com

o sagrado. A religiosidade é um tema muito presente, configurando a

Bahia como uma espécie de berço da fé. [...] Como práticas culturais

que são, os ritos e crenças religiosas precisam ser cultivadas para

sobreviver. [...] A questão envolvida aí é a disposição para repetir, para

desempenhar um papel estabelecido coletivamente. Para alguns não

se trata de uma opção, mas de uma necessidade [...] (MARIANO,

2009, p. 154).

A autora também defende a ideia de que “a mesma disposição para a repetição –

obediência – que se encontra nos rituais religiosos pode ser aplicada também em

relação a outras práticas sociais [...]”, Mariano (2009, p. 155).

O que torna plausível concluir que o modus operandi de se conceber o mundo – e

interagir sobre ele criando realidades – desenvolvido no Bahia a partir da Colonização

Portuguesa (essa enquanto um sistema social: político, econômico e cultural) tem

reflexos até os dias atuais na sociedade baiana. E, se a Bahia ainda hoje demonstra

certa rejeição ao não antropocêntrico nas artes visuais, talvez seja por uma situação

unheimliche; por se tratar de uma manifestação artística não tão familiar:

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Em 1919, Freud escreve um ensaio sobre o inquietante ou

estranhamente familiar (Unheimliche). [...] Em 1906, Ernst Jentsch

escreveu o seu Psycholigie des Unheimliche, definindo-o como alguma

coisa de inusitado, que provoca ‘incerteza intelectual’ e diante da qual

‘não se entende mais nada’. Freud discorria a respeito da etimologia do

termo, examinando um campo semântico que compreende, em várias

línguas, noções como estranho ou estrangeiro [...] (ECO, 2008, p. 311).

Conclusões

Uma das primeiras ideias apresentadas neste trabalho foi que não se tem por intensão

ou pretensão traçar uma relação sucessiva de causa e efeito. O principal objetivo é a

problematização de um comportamento social observado que se repetiu: a busca pela

figuratividade humana em uma exposição contemporânea de arte – ainda mais se

tratando de uma mostra de gênero natureza-morta.

Uma perspectiva preconceituosa e reducionista poderia simplesmente atribuir o rótulo

de ignorantes àqueles que não atenderam às expectativas de recepção estética

enquanto público. Mas, uma análise totalmente oposta pode valorizar essa

manifestação espontânea que acaba por denunciar muito da cultura de um público, um

grupo, um povo. Optou-se por realizar uma breve arqueologia do olhar baiano sobre as

artes visuais a partir das relações do público com a “Sala Especial Yêdamaria do

Circuito das Artes Bahia 2014”.

Através dessa arqueologia, consonante com a ótica materialista histórica benjaminiana

de se escovar a história a contrapelo, o que se percebe é que o olhar da sociedade

baiana se conserva historicamente acostumado a uma composição visual de grande

densidade (o horror ao vazio é uma das características principais do Barroco), de

recorrente associação humana e de narrativas visuais dramáticas, teatrais, em suas

luzes e sombras.

Longe de querer supor que a Bahia contemporânea limita-se aos desdobramentos dos

gostos dos primórdios da colônia, defendo a ideia de que o olhar socialmente

compartilhado sobre as composições e narrativas visuais que sucederam foi

intensamente influenciado pelos costumes e discursos historicamente hegemônicos.

Afinal, é importante ressaltar que para além de gostos e motivos decorativos de uma

época, as manifestações artísticas visuais refletem profundamente a filosofia de um

determinado contexto espaço-temporal, o que inclui estruturas e sistemas de poder

como a organização política (enquanto regime) e religiosa.

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IX Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte em homenagem aos 200 anos da morte de Antônio Francisco Lisboa - o Aleijadinho De 02 a 05 de Novembro em Belo Horizonte/MG

Talvez, tudo isso ajude a compreender uma procura – recorrente, ainda que

inconsciente – por imagens relacionadas à figura humana por parte do público baiano

que frequentou a “Sala Especial Yêdamaria do Circuito das Artes Bahia 2014”.

REFERÊNCIAS

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução dos originais hebraico e grego feita pelos Monges

de Maredsous (Bélgica), revisada por Frei José Pedreira de Castro, O. F. M., e pela equipe

auxiliar da Editora. 57. Ed. São Paulo: Ave-Maria, 2005.

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Companhia das Letras, 2013.

RUBIM, Antônio Albino Canela. A modernidade de Mario Cravo. In.: CRAVO Jr., Mario.

Esculturas. Salvador: Palacete das Artes, 2013.