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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Formação de Professores Programa de Pós-Graduação em História Social Curso de Mestrado Acadêmico
São Gonçalo 2008
Iamara da Silva Viana
Morte escrava e relações de poder em Vassouras (1840-1880): hierarquias raciais, sociais e simbolismos.
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Iamara da Silva Viana
Morte escrava e relações de poder em Vassouras (1840-1880): hierarquias raciais, sociais e simbolismos.
Dissertação apresentada, como requisito para a obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração: História Social do Território.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Salles
São Gonçalo 2008
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Iamara da Silva Viana Morte Escrava e Relações de Poder em Vassouras (1840-1880): hierarquias
raciais, sociais e simbolismos.
Dissertação apresentada, como requisito para a obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração: História Social do Território.
Aprovado em: _______________________________________________________________ Banca Examinadora: __________________________________________________________ ______________________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Salles (Orientador) Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Faculdade de Formação de Professores (UERJ/FFP) Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro / UNIRio ______________________________________________________________________ Prof. Dra. Márcia Gonçalves Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ Faculdade de Formação de Professores (UERJ/FFP) ______________________________________________________________________ Prof. Dra. Keila Grinberg Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRio)
São Gonçalo 2008
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DEDICATÓRIA
Para meus pais:
Dimas Martins Viana (in memorian) e Benedita da Silva Viana.
E a Rogério Soares Sampaio.
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AGRADECIMENTOS
O término de um trabalho, ao mesmo tempo que transmite a sensação de dever
cumprido, deixa saudades. Também nos remete ao início do processo e de pessoas que nos
ajudaram a torná-lo realidade. Especificamente a prova de ingresso e a construção de um
projeto. Momentos de imensa tensão, pois, alcançar objetivos importantes dependiam da
aprovação. Para a elaboração do projeto pude contar com Márcia Cristina Pires, amiga de
longa data e agora comadre que muito ajudou com sua leitura crítica, seu olhar atento e
ouvidos pacientes.
Companheiros de trabalho estão cotidianamente compartilhando angústias, desesperos
e choros por vezes incontidos. Eles fizeram parte desse processo e ajudaram a amenizar
sofrimentos. Aos colegas do Colégio Estadual Norma Toop Uruguay, pelas palavras
animadoras e o incentivo: Neuza Maria Julio, Sônia C. Tiemonis e Ângela. Pela amizade e
generosidade da leitura e correção do capítulo IV, agradeço a Gisele Leal Alves. Aos
companheiros do Ser Cidadão Universitário, Jorge, Michelle, Cátia, Henrique e alunos. Vocês
foram demais!
Para que a pesquisa intensa dos documentos no Centro de Documentação Histórica em
Vassouras se tornasse menos exaustiva, pude contar com o apoio e atenção de Magno
Fonseca, Ângelo Monteiro, D. Isabel e Angélica. À Thiago Reis pelas excelentes dicas e troca
de conhecimentos, livros digitalizados e início do banco de dados. Da mesma forma, pude
contar com a generosidade de Ângela Porto que me recebeu tão carinhosamente, cedendo
fontes importantes sobre doenças de escravos. Sou muito grata ao seu gesto, pois o mesmo
tornou possível iniciar um trabalho sobre as moléstias de cativos no século XIX.
Escrever nos torna solitários e para uma melhor escrita necessitamos de outros que
possam apontar o que não ficou tão claro, os erros da língua e para esse papel fundamental
pude contar com Elen Barbosa dos Santos, amiga, companheira e irmã que sempre responde
aos meus apelos.
Aos amigos do mestrado, pelo companheirismo e participação. À Rosane pela
solicitude prestada que viabilizou a utilização de uma fonte importante. À Juçara pela
presença incondicional nos momentos de “desespero”. À Érika Mendes pela leitura dos textos
apresentados nos seminários, sempre enviados “na última hora”. À Daniele Oliveira
companheira incentivadora de todas as horas. Ao Murilo e Everton a agradável companhia
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nas viagens e a troca intelectual. Sem vocês e suas amizades este processo não seria o mesmo.
Obrigada!
Não poderia deixar de mencionar amigos de graduação que não me abandonaram,
mesmo estando eu completamente isolada e não participando dos encontros ocasionais. A
todos sem exceção: obrigada “ifcsianos”. Em particular à Lucimar Felisberto pelas
observações importantes já no fim, mas que foram providenciais. Também ao querido
Rogério José pelas conversas sempre tranqüilizadoras. Os amigos são muitos e todos, mesmo
a distância colaboraram com seu apoio: Cláudio e Bianca, Diniz e Luciane, Mônica, Franklin
e Ana Paula, Anderson e Sandra.
Parte efetiva deste trabalho foi amadurecida durantes as aulas. Nelas pude trocar
informações, adquirir conhecimentos e discutir idéias e pensamentos. Os professores do
programa de Mestrado da UERJ / FFP foram essenciais para a conclusão. Agradeço ao
professor Marcelo Magalhães pelo incentivo na profissão e a oportunidade de trabalho que em
muito colabora para o meu aperfeiçoamento. Talvez não consiga expressar o quão grata sou
pela confiança em mim depositada. À professora Márcia Gonçalves pelas dicas, informações
e críticas pontuais no exame de qualificação e também em suas aulas. Ao professor Gelson
pelas considerações ao projeto e ao empréstimo de livros, os quais foram de extrema
importância para o desenvolvimento de alguns pontos de argumentação. Agradeço também ao
professor José Roberto Góis pelas correções e dicas valiosas quando do exame de
qualificação. Não poderia deixar de mencionar a ajuda na minha formação acadêmica de Leila
Rodrigues da Silva, primeira orientadora ainda na Graduação da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Sua crítica me possibilitou construir uma melhor escrita.
Aos meus pais, Dimas (in memorian) e Benedita a quem dedico este trabalho,
agradeço pelo exemplo de vida e a dedicação, que tornou possível continuar. Aos meus
irmãos Gilcemara, Erica, Patricia e Eduardo pelo carinho e atenção. Também agradeço a
compreensão pela ausência dos últimos dois anos. Da mesma forma, agradeço a chegada de
Yasmin, primeira sobrinha e neta, que nos tem proporcionado muitas alegrias.
Ao crescimento acadêmico, a paciência, o incentivo e palavras sempre otimistas que
foram fundamentais para que este trabalho fosse realizado, agradeço imensamente ao meu
orientador Ricardo Salles. Pelas dicas fundamentais para que eu pudesse prosseguir na
pesquisa e aumentar as possibilidades de análise. Pela cessão de seu banco de dados e o
empréstimo do livro fundamental para questões da morte. Para isso não tenho termos
suficientes para agradecer. Suas palavras de incentivo nos momentos mais difíceis me
ajudaram a superar quando não acreditei poder reiniciar. E claro, as dicas fundamentais para
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a produção de tabelas, aquelas, que não “consigo explicar matematicamente”. Obrigada
Ricardo!
À Rogério Soares Sampaio, também homenageado neste trabalho, amigo, ouvinte,
crítico e companheiro paciente. Sua presença e incentivo quando quase enlouqueci ao perder
2 capítulos quase terminados, não me deixaram perder a esperança. E durante todo o curso,
acreditou em meu trabalho. Sem o seu apoio nada disso teria sido possível.
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RESUMO
VIANA, Iamara da Silva. Morte escrava e relação de poder em Vassouras (1840-1880):
hierarquias raciais, sociais e simbolismos. 2008. 167 f.
Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Formação de professores, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
O presente trabalho analisa a morte de escravos, seu lugar social e simbólico na
sociedade de Vassouras e as relações de poder nela presente, no período de 1840 a 1880. Para
tanto, foram utilizados os registros de óbitos de pessoas escravas e livres dos livros paroquiais
da Freguesia de Nossa Senhora de Vassouras como corpus documental principal. Os
Inventários post mortem complementaram a análise, viabilizando a comparação das
informações sobre doenças e expectativa de vida. Os dados foram quantificados, analisados e
cotejados entre os diferentes grupos sociais: escravos, libertos e livres. As transformações que
ocorreram após a implementação da produção cafeeira e da propriedade escrava, tornaram
aquela sociedade complexa a partir da miscigenação. Esta proporcionou uma intricada rede de
relações de poder, manifestadas no “bem morrer”. As hierarquias raciais e sociais existentes
na vida, também são notadas na morte. As primeiras estão presentes nas informações sobre a
cor, origem, condição jurídica do morto de seus pais e cônjuges. As segundas, no local de
sepultamento, número de padres nos acompanhamentos ao cemitério, sacramentos recebidos e
vestimentas fúnebres.
Palavras-chaves: Escravos. Morte. Relações de poder.
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ABSTRACT
This study examines the lives of slaves, their social and symbolic place in society for
Brooms power relations and present it in the period 1840 to 1880. For this, we used the
records of deaths of slaves and free people of the parish books of the Parish of Our Lady of
Brooms documentary corpus as principal. The post-mortem inventories complemented the
analysis, allowing comparison of information about disease and life expectancy. The data
were quantified, analyzed and collate between different social groups: slaves, freed and free.
The changes that occurred after the implementation of the coffee production and ownership
slave, became one company from the complex mixture. This provided an intricate network of
power relations, expressed in "dying well." The existing social and racial hierarchies in life,
are also noted in death. The former are present in about the color, origin, condition of the
legal death of their parents and spouses. The second, in the place of burial, the number of
priests in accompaniment to the cemetery, received sacraments and funeral clothes.
Keywords: Slaves. Death. Power relations.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
CAPÍTULO 1: Vassouras Município do café: construção de um território . 19
1.1 - Vassouras: questões internas e externas relacionadas ao café. 19
1.2 - Transformação e Construção de um território. 23
1.3 – População. 27
1.4 – Cotidiano nas fazendas de Vassouras. 31
1.5 – Processo de produção 38
1.6 – O Escravo. 40
1.7 – Ocupações e grupos sociais. 41
1.8 - A rotina de trabalho nas fazendas. 48
1.9 – Resistências escravas e mortes. 54
CAPÍTULO 2: Considerações sobre a morte: construção social, política 58
e religiosa.
2.1 - Morte: o longo trajeto até o século XIX. 59
2.2 – Ritos e Rituais Fúnebres. 66
2.3 – Resistências. 70
2.4 – Crianças e Rituais e relações familiares. 73
2.5 - Número dos Mortos. 74
2.6 – Expectativa de vida. 79
CAPÍTULO 3: Doenças de escravos e principais curas. 87
3.1 – Doenças, Causas Mortis e possíveis tratamentos. 87
3.2 – Doenças e Manuais. 105
3.3 – Cura: O fim principal. 112
CAPÍTULO 4: Relações de poder e morte de escravos em Vassouras. 118
análise comparativa entre libertos, forros e livres.
4.1 – Cemitérios e Hierarquias. 119
4.2 – Hierarquias raciais e Origem étnica. 132
4.3 – Nações. 146
11
4.4 – Hierarquias e Diferenças sociais. 148
4.5 – Vestimentas. 153
4.6 – Sacerdotes 156
Considerações Finais 159
Bibliografia 162
12
Introdução
O presente trabalho objetiva compreender sob o ponto de vista simbólico as relações
de poder existentes na morte de escravos e libertos, suas principais moléstias, expectativa de
vida e maneiras de sepultamento entre os anos de 1840 a 1880 na Freguesia de Nossa Senhora
da Conceição de Vassouras. Para tanto, utilizamos uma análise quantitativa e qualitativa no
cruzamento de duas principais fontes: os livros de óbitos das pessoas escravas e das livres e os
inventários post mortem de proprietários. Analisamos cativos, libertos e livres que estavam
inseridos no cotidiano da sociedade escravista no Império do Brasil. O recorte temporal,
embora amplo, foi utilizado na tentativa de observarmos as possíveis diferenças nos
tratamentos dispensados aos cativos doentes antes e após o fim do tráfico negreiro, bem como
as chances reais de mobilidade escrava. No contato com as fontes surgiram novas questões: de
que forma o poder da igreja e dos homens ricos influenciavam nas relações de poder?
Existiam diferenças pontuais nos registros religiosos entre ex-escravos e livres? E de que
maneira elas poderiam ser notadas?
A participação no I Seminário de Pós-Graduandos do CEO/PRONEX marcou a
ampliação do trabalho. As observações feitas por Keila Grinberg incentivaram-nos a
comparar as informações dos dois primeiros grupos sociais com as dos livres, o que fomentou
as possibilidades de análise. Desta forma, percebemos que as diferenças existentes nos óbitos
poderiam suplantar a questão racial.
A partir da análise adotada para este trabalho, tentamos entender se é possível perceber
relações de poder na morte nas fontes analisadas. A morte nos possibilita conhecer alguns
fatores da vida diretamente a ela associados. Tentamos examinar se as mudanças políticas e
econômicas influenciaram as condições de vida, contribuindo para uma maior expectativa de
vida e melhores condições de trabalho. E em que medida o poder simbólico atuava na
sociedade de Vassouras e em seus hábitos de bem morrer nas diferentes escalas daquela
sociedade.
Os diferentes grupos sociais que se formaram a partir da expansão da cultura cafeeira
(1836-1850), tornaram a sociedade de Vassouras complexa. Posição política, condição
jurídica e econômica tendiam a demarcar os diversos espaços materiais de domínio. Aliados a
eles, o poder simbólico viabilizava outras formas de hierarquização, principalmente com o
auxílio da religião dominante e oficial do Império do Brasil. Desta forma, utilizamos o
conceito de Bourdieu na tentativa de alcançar as nuances daquelas relações:
13
As diferentes classes e fracções de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais. Elas podem conduzir esta luta quer directamente, nos conflitos simbólicos da vida quotidiana, quer por procuração, por meio da luta travada pelos especialistas da produção simbólica (produtores a tempo inteiro) e na qual está em jogo o monopólio da violência simbólica legítima [...] quer dizer, do poder de impor – e mesmo inculcar – instrumentos de conhecimento e de expressão (taxinomas) arbitrários – embora ignorados como tais – da realidade social. O campo de produção simbólica é um microcosmos da luta simbólica entre as classes: é ao servirem os seus interesses na luta interna do campo de produção (e só nesta medida) que os produtores servem os interesses dos grupos exteriores ao campo de produção. 1
Alguns trabalhos importantes nos auxiliaram na composição e visualização do amplo
percurso histórico em Vassouras e das doenças, os quais destacamos a seguir.
O clássico trabalho de Stanley Stein, Vassouras um município brasileiro do café,
1850-1900,2 apresenta a formação do território, sua população, demografia escrava e a
importância desta para a economia do Império do Brasil; aprecia os diferentes grupos sociais
e sua participação naquela sociedade; influências econômicas, religiosas e culturais ajudaram
a compor sua análise. O capítulo VII, “Padrões de Vida”, tratou especificamente sobre as
doenças, suas causas, diagnósticos e cura.
Ricardo Salles, em E o Vale era o escravo,3 publicado em 2008, amplia o debate em
torno da importância da mão de obra escrava para a construção do território, a partir da
história das relações sociais entre senhores e escravos. Salles demonstra os diferentes grupos
de fazendeiros e a concentração da riqueza apenas entre poucos deles. Analisa o impacto da
Lei do Ventre Livre e de que forma ela incidiu sobre as taxas de reprodução natural positiva
de escravos, que haviam demonstrado crescimento a partir da segunda metade do século XIX.
As informações demográficas e sociais daquela sociedade foram fundamentais para nosso
trabalho.
Philippe Áries, em seu clássico História da morte no Ocidente, 4 apresenta as
variações sofridas pela morte e as atitudes do homem diante dela. Denominando a morte do
período medieval até inícios do século XIX de domesticada, este autor aponta fatores muito
1 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. trad. Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 322. 2 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. 3 SALLES, Ricardo Henrique. E o Vale era o Escravo : Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 4 ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977.
14
próximos dos encontrados nos espaços físico e temporal aqui tratados. Demonstra como o
simbolismo e os ritos mortuários se transformaram em diferentes recortes temporais.
A questão da morte escrava, embora necessite de mais estudos, já foi contemplada por
alguns trabalhos importantes. Mary Karasch no livro A vida dos escravos no Rio de Janeiro,5
cuja primeira edição americana é de 1987, analisa a vida de escravizados urbanos na primeira
metade do século XIX. Sobre a morte de cativos, a autora explicita que a maior incidência de
mortes era por doenças infecto-parasitárias. Apresenta os quantitativos de mortes e taxas de
mortalidade para as diferentes faixas etárias e grupos sociais no espaço urbano.
João José Reis, partindo de um episódio conhecido por Cemiterada, que ocorreu na
Bahia do século XIX, especificamente em 1836, analisa a morte. Este episódio demarca um
processo de transformação das percepções e atitudes relativas à morte na Bahia, apontando a
importância dos enterros ad sanctus para aquela população. No seu livro A morte é uma festa 6 de 1991, identifica diferenças e semelhanças entre libertos, escravos e livres quanto à idade
na morte, moléstias, sepultamento, ritos e rituais e vestes fúnebres.
Também preocupada com a questão de doenças escravas no século XIX, Ângela
Porto7 traz uma grande contribuição com sua pesquisa. Organizou Doenças e escravidão:
sistema de saúde e práticas terapêuticas, em 2007, com artigos que priorizam este tema por
diferentes vertentes. Seus escritos são de grande importância para a compreensão e o diálogo
com a área médica.
Júlio César Pereira centraliza seus estudos no chamado Cemitério dos pretos novos,
localizado no Valongo do século XIX. Em À flor da terra: cemitério dos pretos novos no Rio
de Janeiro,8 publicado em 2007, analisa a violência cultural presente naquele campo santo, a
relação dele com a cidade do Rio de Janeiro e seus moradores, bem como as condições de
saúde dos cativos recém-chegados que logo sucumbem devido às doenças adquiridas ou
trazidas da África.
5 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro(1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 6 REIS, João José Reis. A Morte é uma Festa. ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 7 PORTO, Ângela. (org.) Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. 8 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007.
15
O trabalho de Cláudia Rodrigues, Lugares dos mortos na cidade dos vivos9, foi
fundamental para pensarmos as questões de construções e reconstruções do simbolismo da
morte. A autora faz uma excelente discussão sobre a cultura portuguesa e a africana e como
ambas percebiam a vida além-túmulo. Demonstra do mesmo modo “a familiaridade entre os
vivos e os mortos na corte”.
Sobre a região de Vassouras, podemos contar com o trabalho de Ana Maria Leal e
Miridan Britto e Magno Fonseca10 que, ao estudar a escravidão de Vassouras no período de
1821 a 1850, contemplam a morte de cativos. Entretanto, ambos os autores não utilizam dados
sobre a população livre e liberta.
Considerações acerca da morte escrava em Vassouras em novos trabalhos tem também
apresentado bons resultados, utilizando fontes diversas. Os Livros de óbitos da Freguesia de
Nossa Senhora da Conceição de Vassouras correspondem ao corpus documental de nossa
pesquisa e encontram-se no Centro de Documentação Histórica de Vassouras / CDH da
Universidade Severino Sombra.
A análise qualitativa e quantitativa desses documentos tornou possível a identificação
dos escravos que morriam, bem como o cotejar de tais dados com o dos livres. Os livros de
óbitos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras são separados entre
escravos e livres, e nestes estavam inseridos os libertos e forros (assim são descritos nos
documentos), diferentemente da província do Rio Grande de São Pedro, onde a população, em
seus registros de óbito, não era separada pela condição jurídica, estando livres, libertos e
escravos, relacionados num mesmo documento.11
Utilizamos para este trabalho o banco de dados de Ricardo Salles com informações
sobre a morte de cativos. Nele estão computadas informações contidas nos primeiro e
segundo livros de óbitos de escravos da paróquia de Nossa Senhora da Conceição de
Vassouras. Esta fonte apresenta informações sobre causa mortis, sacramentos, nome, cônjuge,
idade, origem e cor. Da mesma forma, aplicamos o banco de dados de inventários post
mortem de proprietários, que contém listas nominais de escravos colhidas em cerca de 700
inventários da região de Vassouras para o período entre 1820 e 1880. São aproximadamente
9 RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. 10 BORGES, Magno Fonseca. Protagonismo e sociabilidade escrava na implantação e ampliação da cultura cafeeira – Vassouras – 1821-1850. Dissertação de mestrado. Vassouras: Universidade Severino Sombra. 11 PETIZ, Silmei de Sant’Ana. Enfermidades de escravos: contribuições metodológicas para estimativas da mortalidade (Rio Grande de São Pedro, 1790-1835). In: PORTO, Ângela. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. p. 8.
16
28.500 indivíduos, sobre os quais constam informações de: nome, sexo, origem, valor,
relações familiares, etc. Ele ainda consta de duas tabelas (inventários e escravos) interligadas
por um campo comum referente ao número do inventário, que é único, o que permite o
cruzamento de informações existentes nas duas tabelas.
Os Inventários post mortem dos proprietários nos auxiliaram a preencher algumas
lacunas, como profissões e provisões, em caso de doenças nas fazendas. Eles são importantes
documentos para auxiliar na análise dos martírios dos escravos e sua morte. Esses
documentos nos apresentam uma outra perspectiva de análise, ao inventariar e relacionar
escravos, doenças e valor. De forma geral, mencionam nome do escravo, idade, ofício, nome
do cônjuge, número de filhos, origem, cor e preço. É importante notar que a doença faz
diminuir o preço do cativo, diminuindo efetivamente o valor da propriedade de um senhor.
Os registros de morte dos livres e libertos foram analisados e, a partir deles, montamos
um novo banco de dados com informações sobre este grupo social: nome, data do óbito,
idade, estado civil, nome do cônjuge, local de sepultamento, causa mortis, nome dos pais,
sacramentos, vestimentas fúnebres, condição jurídica e social – dados importantes para a
avaliação das relações de poder presentes na morte. Os assentos de livres são mais complexos,
por listarem também libertos e forros. Além dos dados acima, podemos citar testamento, a
utilização de caixão fechado, cor e origem.
Os Manuais que surgem a partir da década de 1830, embora tenham como objetivo
central a administração de escravos, viabilizam o conhecimento sobre as possíveis doenças
dos cativos, bem como seus tratamentos e curas. Da mesma forma, auxiliam no conhecimento
sobre como era visto o escravo pelo proprietário, como deveria ser tratado e quais as maneiras
de melhor manter a propriedade escrava.
Carlos Augusto Taunay em seu Manual do agricultor brasileiro, 12 apresentou seu
olhar sobre a questão da administração escrava. Sua formação ficou refletida em seu trabalho
no modo como abordou questões sobre como tratar e conduzir escravos. Fora major
napoleônico e veio para o Brasil em 1816. Em 1822 e 1823, participou dos embates pela
independência do Brasil, na então província da Bahia, como parte das forças militares.
Assumiu a gestão do sítio da família localizado no Maciço da Tijuca, onde fora produtor de
café. Seu manual, mencionado acima, foi produzido durante a década de 1820, publicado em
12 TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia Imperial, 1839.
17
janeiro de 1839 e indicado para a SAIN e, sendo distribuído por todo o Império do Brasil, teve
sua segunda publicação autorizada pela SAIN em março 1839.13
Entre a primeira e a segunda publicação houve um curto prazo de tempo, o que pode
sugerir o quanto foi útil tal manual para fazendeiros que administravam grandes fazendas
longe das cidades e de cuidados médicos. Apesar de tratar da administração de fazendas, boa
parte do manual foi dedicada à questão escrava. O escravo, para este autor, era um ser
desprovido de inteligência e inferior fisicamente, sendo um escravo adulto comparado a um
adolescente branco. E atendendo à nossa preocupação neste trabalho, um espaço foi também
reservado para tratar das principais doenças que acometiam os escravos, bem como as
possíveis maneiras de tratá-las.
Francisco Peixoto de Lacerda Werneck escreveu Memória sobre a fundação de uma
fazenda na província do Rio de Janeiro.14 Ele era um fazendeiro no vale do Paraíba
Fluminense e na bagagem trazia duas décadas de experiência no cultivo do café. Werneck era
considerado um líder de sua classe na região de Vassouras. Sua Memória fora redigida no ano
de 1846, com o objetivo de deixar registrada para seu filho a melhor maneira de administrar
uma fazenda cafeeira. Logo no início de seu trabalho, Werneck sublinha o cuidado que
deveria ser observado com relação à saúde dos escravos, bem como a vigilância sobre os
mesmos. A senzala simboliza uma de suas preocupações. A sua localização dentro da fazenda
fora mencionada por Werneck, e deveria ficar em local propício ao controle senhorial.
O doutor Imbert, francês e ex-cirurgião da marinha francesa em seu Manual do
Fazendeiro ou Tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros, 15 apresenta, sob a
perspectiva médica, as principais doenças e possibilidades de cura. Descreve cuidadosamente
a anatomia humana para facilitar a compreensão de fazendeiros que teriam que lidar em seu
cotidiano com múltiplas enfermidades. Utilizamos a segunda edição de 1839. Esta tese foi
fundamental para iniciarmos este estudo e entendermos o pensamento médico do século XIX
a respeito das moléstias de escravos. Não poderíamos deixar de mencioná-las ao estudarmos a
morte e seus simbolismos.
13 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004. p. 270. 14 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. 15 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839.
18
No capítulo I analisamos a construção do território de Vassouras como parte
fundamental para a formação da complexa sociedade do século XIX e de seus distintos grupos
sociais. Consideramos a importância do mercado mundial do café, que fomentou a construção
de fazendas e de sua extensa mão-de-obra escrava. Essas fazendas e seu modo de produção
propiciaram um grande número de moléstias que ceifaram a vida de muitos cativos.
Condições precárias de higiene, horas excessivas de trabalho, alimentação inadequada, roupas
que não os protegiam das mudanças de tempo, foram alguns dos motivos que podemos
associar ao grande número de óbitos.
No capítulo II, tratamos especificamente da construção material e simbólica da morte
de escravos, cotejando esses dados com os de libertos e livres. Nesse processo, verificamos os
rituais e ritos importantes e a maneira que eram utilizados para legitimar o poder da igreja
católica. As culturas, portuguesa e africana, foram fundamentais no processo de construção e
reconstrução dos simbolismos da morte e da vida além-túmulo. Da mesma forma, tentamos
verificar o discurso da Igreja como manutenção de seu poder naquela sociedade.
O capítulo III nos permite visualizar quais as moléstias que mais mataram escravos,
libertos e livres. Procuramos examinar as possíveis diferenças na forma de retratar os doentes
entre os documentos religiosos e os políticos, tendo por base os manuais de fazendeiros e a
tese do doutor Imbert.
Finalmente, no capítulo IV, tentamos demonstrar de que maneiras as diferenças sociais
podem ser percebidas e comparadas com o modo de vida: as hierarquias étnicas e sociais, as
possibilidades reais de ascensão, mobilidade e limites impostos pela sociedade. Objetivamos
identificar a forma pela qual o discurso oficial da Igreja reproduz essas estratificações.
19
Capítulo 1: Vassouras Município do café: construção de um
território.
A sociedade escravista de Vassouras no século XIX é, de modo específico, parte da
História do Império do Brasil, e, de modo geral, da expansão atlântica do mercado capitalista.
Não podemos, portanto, dissociá-la de acontecimentos amplos da história do mundo
capitalista, estando diretamente ligada aos fatos ocorridos no final do século XVIII. Não é
nossa pretensão retomar exaustivamente fatores econômicos e políticos amplos, para
viabilizar a análise social e de construção do território em questão. No entanto, tais fatores
não podem ser dissociados por completo desta análise. Sendo assim, mencionaremos alguns
deles que propiciaram a inserção de um grande número de escravos africanos no curto período
entre 1830 e 1850 na sociedade escravista de Vassouras.
O Estado Imperial, como centro das referências e de poder político, é o ponto de
mediação entre a região de Vassouras e o cenário nacional e internacional.16 Além disso, o
aumento da produção cafeeira está intrinsecamente ligado à demanda externa, fator que
estabeleceu a maior necessidade de mão-de-obra escrava para atender a um mercado
crescente, bem como o aumento da produção interna. Desta forma, as relações de poder
tornaram-se extremamente complexas a partir do desenvolvimento desse município,
viabilizando a construção e reconstrução de valores políticos, simbólicos e religiosos, como
forma de distinção entre os seus indivíduos, livres ou escravos. Tais fatos são de fundamental
importância para entendermos as questões que vislumbraremos nos capítulos posteriores.
1.1 – Vassouras: questões internas e externas relacionadas ao café.
Os produtos coloniais, no final do século XVIII, sofreram uma mudança significativa
no mercado mundial. O açúcar, que se transformou em um produto de necessidade nutricional
básica das diferentes camadas da população europeia e não mais um produto de luxo, ganha
um impulso com base no crescimento do consumo. Estabelecendo uma correspondência com
16 SALLES, Ricardo Henrique. E o Vale era o Escravo : Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 21.
20
esse crescimento, estava o consumo de bebidas estimulantes, dentre as quais, o café. 17
Também intimamente ligado ao aumento da produção cafeeira do Império do Brasil, está a
revolução de São Domingos, que teve início em 1791. Até então, a principal colônia francesa
fora responsável pela maior produção. 18 O açúcar e o algodão também faziam parte dessa
cultura, mas a capacidade produtora de café nos interessa mais de perto, tendo em vista que
ele foi o produto que possibilitou a formação da sociedade escravista em Vassouras.
Segundo Rafael de Bivar Marquese, “os senhores de escravos luso-brasileiros
responderam à conjuntura favorável, ampliando a produção das propriedades rurais já
existentes, mas, principalmente, estabelecendo novas unidades produtivas”.19 Mais tarde,
quando se inicia a exportação de café no porto do Rio de Janeiro, os cafeicultores de
Vassouras utilizavam-no para escoar parte significativa de sua produção. O aumento da
produção agroexportadora foi implementado pela vinda da família real em 1808, o que
permitiu, não somente o contato dos produtores brasileiros com o mercado mundial, mas
também tornou possível a expansão da escravidão nacional, segundo Ricardo Salles, uma
escravidão nacional. O movimento iniciado na Corte, “centro político, cultural e moralmente
dirigente do Império que nascia”,20 fez surgir sua classe senhorial. A base de sustentação
desse movimento, do ponto de vista econômico-produtivo, bem como do social, foi o Rio de
Janeiro, constituindo-se a partir dos grandes proprietários rurais escravistas, primeiro na
Baixada Litorânea e Fluminense, depois culminando no Vale do Paraíba. Da Província do Rio
de Janeiro, segundo Ricardo Salles, procedia a principal base produtiva, comercial e
financeira do Império do Brasil para a época analisada.21
A possibilidade de grandes lucros com a produção do café não atendeu prontamente ao
fim do tráfico negreiro transatlântico, aprovado em 1831. A Inglaterra tomou a iniciativa para
a extinção do tráfico e, Portugal, no início do século XIX, precisamente no Congresso de
Viena em 1815, resolveu atender aos desejos de “Sua Majestade Britânica na Causa de
Humanidade e Justiça, adotando meios mais eficientes para motivar uma gradativa abolição
17 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004. p. 259. 18 Idem. Ibidem.p. 261. 19 Idem. Ibidem.p. 261. 20 SALLES, Ricardo Henrique. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 33. 21 Idem, Ibidem. p. 33-34.
21
do Tráfico de Escravos”.22 Postura útil ao reconhecimento pela Inglaterra do Império do
Brasil. Todavia, tais medidas não foram imediatamente adotadas. Ao contrário, o tráfico fora
implementado, aumentando a entrada de escravos nos portos brasileiros. Certamente, numa
tentativa de garantir farta mão-de-obra aos proprietários e fazendeiros.
O café, produto que no século XIX tornou-se o mais importante do Império do Brasil,
contribuiu para tornar o tráfico uma atividade lucrativa, mesmo após 1830, com a sua
ilegalidade. Continuará assim após 1850, momento ainda de expansão da cultura cafeeira, e o
fim definitivo das operações atlânticas. 23 Após este marco, o comércio de escravos
continuava sendo rentável, embora com maior risco, agora não apenas causado pelo alto
índice de mortalidade, mas também pela intervenção inglesa.
As finanças do Império na metade da década de 1830 tinham por base a expansão dos
cafeicultores, e essa dependência foi mais forte do que a pressão da Inglaterra para o fim da
escravidão. Podemos, assim, associar o aumento do tráfico de escravos africanos na década de
1840 ao acúmulo de capital de fazendeiros, bem como ao aumento de capital dos cofres do
governo. Vassouras, em 1848, teve aproximadamente 60% de seus impostos pagos à
Província do Rio de Janeiro, provenientes da venda de escravos. 24 Logo, podemos verificar o
quão economicamente vantajoso era o tráfico para o Império do Brasil, da mesma forma que
podia garantir o status desejado por proprietários de terras. Isso porque, quanto mais terras e
escravos, maior o prestígio pessoal. Essa realidade sofre alterações a partir da consolidação da
cultura no pós 1850, o que, em certa medida, contribuiu para o fim definitivo do tráfico, por
ser numerosa a mão-de-obra.
Embora tenha sido introduzido no Rio de Janeiro em 1770, “o café fora produzido
inicialmente na região amazônica”, 25 tornou-se significativo na década de 1820, e teve, na
reafirmação do escravismo, um dos elementos que permitiram a sua expansão no vale do
Paraíba Fluminense. Especificamente nos primeiros anos do século XIX, ele era um produto
exótico, segundo Stanley Stein: “um arbusto crescido em jardins e encostas de montanhas ao
redor da capital e preparado principalmente para o consumo local”. 26 O solo e o clima foram
aliados para a sua expansão. Algumas famílias, nesse período, se estabeleceram no Vale
22 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 91. 23 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. Tradução James Amado. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 23. 24 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 93. 25 GRAHAM. Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasiliera. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras. 2005. p. 28. 26 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 28.
22
médio do Paraíba, dando início à exportação do café pelo porto do Rio de Janeiro. A partir de
1830, pode ser considerado o sustentáculo econômico do distrito.27 Havia fazendeiros que
cultivavam outros produtos tais como milho, feijão, arroz e tabaco, mas eram voltados para o
consumo familiar e de escravos, sendo o excedente vendido no pequeno mercado local.
A produção brasileira de café suplantou as regiões cafeicultoras mundiais a partir da
terceira década do século XIX, estando diretamente associada à conjuntura mundial – como já
mencionado acima, a partir de 1820 – e internamente, pelas condições favoráveis à sua
expansão na província do Rio de Janeiro. Mundialmente, mudanças nos padrões de seu
consumo nesse mesmo século foram importantes para a produção brasileira. No princípio, o
maior consumidor era a Europa continental sendo suplantada pelos Estados Unidos. Cabe
mencionar que a Inglaterra, embora tendo laços comerciais pretéritos com o Império do
Brasil, consumia em grande escala o chá indiano, atendendo aos interesses da Companhia das
Índias Orientais. 28
Afastando-se da condição de produto de luxo e adentrando no cotidiano das grandes
massas, principalmente nas classes operárias dos países em processo de industrialização, o
café tornou-se alvo de uma grande demanda. Os Estados Unidos, nesse contexto, assumem o
lugar dos maiores compradores do produto, em termos mundiais. Fato extremamente
importante para que o Rio de Janeiro implementasse sua produção e principalmente a mão-de-
obra escrava, para atender à necessidade internacional. A oferta do produto sofreu
transformações importantes, e Java, ao priorizar a economia do chá em detrimento da
economia cafeeira, confirma esse fato. Cuba não teve possibilidade de ocupar o espaço
deixado por Java, abrindo espaço comercial para o Estado Imperial. O mercado crescente
norte-americano, desta forma, passa a ter no Brasil seu maior fornecedor.
Questões internas e externas corroboraram para a implementação da sociedade
cafeeira escravista na Vassouras oitocentista. A partir do seu desenvolvimento, as divisões
sociais tornaram-se maiores, mormente entre os livres – fossem estes homens brancos livres,
negros libertos, pardos libertos, negros livres e pardos livres. Cada qual formava os diferentes
graus hierárquicos presentes na vida – e também na morte - dos indivíduos daquela sociedade.
Complexidade percebida nas questões econômicas, no número de escravos e fazendas, bem
como nas questões políticas e simbólicas.
27 GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 29. 28 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004. p. 263.
23
A soma dos conhecimentos acerca da produção e beneficiamento que ocorreram a
partir dos últimos 30 anos do século XVIII, no Rio de Janeiro, viabilizou a produção voltada
para o mercado externo. Marquese informa que os custos para a implementação da cultura
cafeeira no centro-sul eram baixos, devido ao valor da terra que não era tão alto, isto porque,
até a segunda metade do século XIX, o território era relativamente desocupado. Para além
desse fato, a terra da região do vale do rio Paraíba do Sul era considerada ideal para o plantio
do café e próxima do mercado do Rio de Janeiro.29 A economia teve por base “as práticas
mercantis empregadas pela elite de negociantes residentes na praça comercial do Rio de
Janeiro, tornando possível o acúmulo de capital”30. A região, desta forma, atendia às suas
principais necessidades, tais como: terra, escoamento da produção e fácil acesso à mão-de-
obra escrava. Essa era a base para o desenvolvimento econômico, político e social da
sociedade de Vassouras no século XIX.
A urgência de atender a demanda dos Estados Unidos foi um fator importante para a
implementação da produção cafeeira, associada aos interesses agro-exportadores do Estado
Imperial, bem como aos de fazendeiros. A partir das questões econômicas, políticas e do
crescimento populacional, surge a necessidade de diferenças cada vez maiores, tendo em vista
a miscigenação e mobilidade social, ainda que muito ínfima, de cativos. Ex-escravos e seus
descendentes, em alguns poucos casos, se tornaram pequenos proprietários de terras e de
escravos, viabilizando, assim, uma maior complexidade social.
1.2 – Transformação e Construção de um território.
Vassouras, como um território construído pela forma de uso, 31 no século XIX -
especificamente nos trinta anos que antecederam 1850 -, foi transformada de uma vasta
29 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004. p. 264. 30 FRAGOSO, João, FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto – mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c. 1790-1840. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993 apud MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004. p. 264. 31 Conceito utilizado por Milton Santos ao definir Território. O autor trabalha com a perspectiva de que o território adquire valor pela forma como é utilizado. Somando a ele o espaço físico e geográfico e as ações do homem. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo / razão e emoção, capítulo 2. O Espaço: sistemas de objeto, sistemas de ação e capítulo 3 O espaço geográfico, um híbrido. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 50-88.
24
floresta primitiva em uma grande área de cultivo do café, inicialmente, cultivado de forma
precária nas estradas que eram utilizadas pelos comboios de mulas que se deslocavam devido
ao comércio entre a região das Minas Gerais e a capital do Império.32 Alterando sua estrutura
inicial, ocupou novos espaços, acima e abaixo do Vale do Paraíba, estendendo-se não apenas
no território ocupado, mas tornando-se o principal produtor de café no Império do Brasil.
Ricardo Salles define quatro períodos para o estudo de Vassouras no século XIX: 1821 a
1835, implantação; 1836 a 1850, expansão da produção de café e da plantantion escravista;
1851 a 1865, o período de apogeu; e finalmente, de 1866 a 1880, o que ele denominou
período de grandeza. Adotaremos a referida divisão em nosso trabalho.
Vassouras atendeu aos padrões de uma cidade típica do século XIX brasileira.
Estabeleceu-se em torno de “um conjunto formado pela praça com seu monumental chafariz e
palmeiras imperiais e pelo arruamento que contorna a igreja matriz”, situada no topo de uma
elevação que dominava o conjunto.33 Essa Igreja, que ocupa um lugar de destaque, terá nos
próximos capítulos uma posição ímpar para entendermos as formas de “bem morrer”, tendo
na sua construção o simbolismo que garantirá a manutenção de poder de fazendeiros e
párocos. Abaixo da praça, tinham destaque os solares residenciais e grandes construções feitas
por fazendeiros e comerciantes que serviam de residências urbanas. Tais construções tiveram
início em 1850, como a Santa Casa (1848-53), a Câmara e a Cadeia (1850-74).34
O rio Paraíba do Sul, causa de algumas mortes de escravos, era o principal da região.
A ele também estava associada a boa terra, onde se alojaram as fazendas mais produtivas. O
clima do Vale do Paraíba era considerado moderado durante todo o ano. A avaliação
topográfica apresentada por Stanley Stein descreve um terreno cheio de morros de forma
arredondada, “sendo enfileirados em cadeias desconexas paralelas ao eixo sudeste-nordeste da
serra do Mar e do rio Paraíba”. 35 Uma marca registrada do local, estudado e descrito por
outros autores.
O “Caminho Novo”, estrada que deixava a cidade de Paraíba do Sul em direção ao que
hoje é o município de Vassouras, era utilizado para o transporte do ouro da região das Minas
32 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 28. 33 TELLES, Augusto da Silva. Vassouras. Estudo da construção residencial urbana, tese de docência da cadeira de Arquitetura no Brasil. Faculdade Nacional de Arquitetura, 1961. p. 42-43. apud. SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 148. 34 Idem, apud. SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 148. 35 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 29.
25
Gerais. O esgotamento das minas do norte e a expansão do cultivo do café, nos terrenos
elevados do Vale do Paraíba no último quartel do século XVIII, e primeiro do século XIX,
propiciaram novos rumos a esse cotidiano, contribuindo para completar o povoamento de
Vassouras. Aliado a esse processo, um grupo de índios coroados foi eliminado na região da
atual Valença. Analisando os livros de óbitos de Vassouras, percebemos que os indígenas
representavam um grupo muito pequeno dentre os mortos no século XIX, os quais não eram
registrados junto com os escravos, mas entre os livres.
Alguns dos indivíduos que enriqueceram ao fazer o caminho de ida e volta, se
lançaram à vida sedentária, criando raízes locais em Vassouras, garantindo não apenas a
sobrevivência da família, mas em alguns casos, tornaram-se figuras econômica, social e
politicamente importantes daquela sociedade. A ocupação da terra se deu de duas maneiras
distintas: a primeira, e mais tradicional, foi a concessão de sesmaria ou concessões de terras
da coroa portuguesa devido a ajuda prestada pelo requerente, na abertura de estradas ou
devido a benefícios que seriam recebidos pelo adquirente da terra, neste caso, pertencer ao
serviço público; a segunda forma de ocupação foi a que se desenvolveu com as trilhas de
mula. O comércio que surge, devido aos trens de carga, atraiu posseiros que construíam
ranchos na tentativa de aumentar seus lucros. Os ranchos eram o local de parada para
tropeiros e seus animais de carga e onde também se tinha outra fonte de renda, a partir da
produção de pequenas roças de milho, feijão, cana e pasto, produtos incentivados por uma
demanda crescente. O direito a esse pedaço de terra estava condicionado a algumas
disposições portuguesas que protegiam aqueles que cultivavam o solo. 36 Entrementes, a
expansão do café por todo o território provocou um aumento da luta pela posse da terra, que
simbolizava poder.
A utilização da mão-de-obra escrava remonta ao século XVIII e ao cultivo da cana de
açúcar. “A vinculação de terra e escravos, os pilares da sociedade agrícola, não era apenas
fortuita”, como bem descreve Stanley Stein.37 Isso porque, para além do uso de escravos no
cultivo da terra, um bom quantitativo deles poderia ser a garantia de aquisição de sesmaria da
Coroa portuguesa. Essa prática, já presente nos primórdios da colonização de Vassouras, pode
ser pensada como a origem da necessidade crescente de escravos como mão-de-obra no
cultivo do café e ocupação do território. Um grande número de escravos e de extensão de
terras era a possibilidade de enriquecimento e de status social.
36 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 36-37. 37 Idem. Ibidem. p. 83.
26
O governo português, situado no Rio de Janeiro, na tentativa de impedir a ação de
posseiros, “ordenou que nenhuma terra não reclamada fosse deixada entre concessões durante
sua mediação”38, ato feito em 1809. Em 1817, foi solicitado pelo governo, a medição e o
registro das propriedades (sesmaria, herança, aquisição ou grilagem). As concessões de
sesmarias foram encerradas em 1822, sendo instituído o reconhecimento da propriedade que
pudesse comprovar cultivo eficaz, o que provavelmente contribuiu para atrair muitos
posseiros.39 Stanley Stein informa, a partir de um registro de imóveis, que aproximadamente
28 fazendas controlavam as terras mais produtivas dos 1400 Km2 do município de Vassouras.
Algumas famílias ligadas por laços de parentesco eram detentoras da maioria destas fazendas.
Stein organizou os núcleos familiares de modo que “na região oeste havia as famílias
ramificadas Paes Leme, Corrêa e Castro e Araújo Padilha; a região central estava sob a
influência dos Santos Wernek, Avellar e Almeida, e na região leste havia as famílias Lacerda
Werneck, Souza Werneck e Ribeiro Avellar”. 40 O poder econômico e político de tais famílias
podem ser percebidos pela posse da terra, de escravos e das relações com o governo imperial.
Como veremos no capítulo IV, elas detinham, da mesma forma, o poder simbólico, presente
por exemplo, em ostentosos enterros.41
Vassouras, fundada como vila em 183342, na metade do século XIX, já havia se
tornado município, sendo considerada uma importante região exportadora de café. Sua
população somava 35 mil pessoas, composta por livres e escravos. Aliado às grandes
extensões de terra, o cultivo do café fomentou novas fontes de capital e crédito. Os laços de
parentescos, que definiam casamentos, também auxiliavam na necessidade de empréstimos.
Na região, existiam os chamados capitalistas, presentes entre os membros da família Teixeira
Leite, que durante quarenta anos teve um papel significativo nas questões financeiras do
município. A garantia dos empréstimos era a hipoteca. Também se utilizavam comissários,
38 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 37. 39 Idem. Ibidem. p. 37. 40 Idem. Ibidem. p. 41. 41 Sobre as relações de parentesco e uniões por meio do casamento como uma das formas possíveis de manutenção de poder em Vassouras, ver Ricardo Salles, E o vale era o escravo, 2008. 42 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 111.
27
que podiam ser membros da própria família, para a cobrança de dívidas. 43 Eles eram uma
outra possibilidade de crédito.
A partir da segunda metade do século XIX, surgem os bancos, uma nova instituição de
cunho impessoal, que substituiria os empréstimos por laços familiares. Com o fim do tráfico
internacional de escravos, o capital fora recolocado, ampliando os recursos de fazendeiros e
garantindo aquisições em um momento em que o preço dos escravos aumentava de forma
exacerbada. Em 1859, Vassouras teve a inauguração do “Banco Commercial e Agrícola”, 44 o
que alterou as relações pessoais e financeiras.
A construção de um território que abrigaria fazendas marcadas pela opulência e grande
quantitativo de escravos ocorreu ao longo de duas décadas, transformando-se de uma “terra
inculta atravessada por duas trilhas de mulas”, 45 em um município de fazendas. Se
inicialmente havia poucos habitantes, em 1850 sua demografia era de 35 mil indivíduos. A
partir dessa década, houve uma significativa mudança quanto ao número de moradores, de
propriedades, de escravos, derivando, assim, a reforma dos prédios das fazendas. Muitos
fazendeiros mudaram seus prédios, mas continuaram seguindo o curso do riacho que os atraiu
nas primeiras construções. Tais mudanças foram viáveis devido à expansão da agricultura e
aquisição de escravos na década anterior. 46 Essa mão-de-obra, elemento constante neste
estudo, será o eixo em torno do qual será construído, marcando um espaço importante não
apenas no que tange ao fator econômico, mas também ao poder simbólico e hierárquico da
sociedade em questão.
1.3 – População.
A fazenda, que segundo Stanley Stein era uma unidade social e produtiva, oferecia
contato entre as diferentes classes sociais de Vassouras, de forma que fazendeiros, escravos,
atacadistas, varejistas, advogados, médicos e pobres livres, formavam a complexa rede de
sociabilidade. O censo de 1872 contabiliza na sociedade de Vassouras 39.253 habitantes.
43 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 43. 44 Idem. Ibidem. p. 46. 45 Idem. Ibidem. p. 27. 46 Idem. Ibidem. p. 66-67.
28
Destes, 20.158 (51.35%) eram escravos e 19.085 livres (etnias e origens diferentes). Esses
números são importantes para analisarmos as questões relativas à morte. Ao cotejarmos o
número de habitantes e o número dos que recebiam um assento no livro de óbito da paróquia
de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, fossem escravos ou livres, percebemos uma
desproporção numérica. A população que estava dividida entre escravos e livres, tanto no
censo quanto nos registros de óbito, não podia ser pensada tão simploriamente. Dentre os
livres, não havia uma uniformidade entre os diferentes atores históricos, sendo composta de
brancos, brancos livres, negros livres, negros libertos ou forros, pardos livres, pardos libertos
ou forros.
Das cinco paróquias existentes, duas somavam o maior quantitativo de escravos do
município: Nossa Senhora da Conceição e Pati do Alferes. Estas eram consideradas os
distritos mais importantes, no que tange às fazendas e ao comércio. Somavam, pois, 64% da
população total do município e os escravos, 71% do total de indivíduos. A paróquia de Sacra
família, a título de comparação, tinha um maior quantitativo de pessoas livres, que
correspondiam 75% do total e muitos deles eram ex-escravos.
Tabela 1 - População de Vassouras, 1872.
Livres Escravos Paróquia
Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total Total
Conceição 2.474 1.987 4.461 3.632 2.571 6.203 10.664
Mendes 965 682 1.647 961 732 1.693 3.340
Pati 3.361 2.992 6.353 4.567 3.520 8.087 14.440
Ferreiros 1.223 900 2.123 1.428 1.115 2.543 4.666
S. Família 2.341 2.160 4.501 891 751 1.642 6.143
Total 10.364 8.721 19.085 11.479 8.689 20.168 39.253
Fonte: Recenseamento, 1872. Apud: STEIN, Stanley. Vassouras um município do café. p. 152.
Como nos demonstra a tabela acima, o número de escravos na década de 1870 supera
o de livres. Se considerarmos os descendentes de escravos que compunham essa camada,
teremos um número considerável da população formada por negros e seus descentes – pardos
e mulatos: especificamente, ¾ da população era “de cor”. Em nenhuma das paróquias, a
população branca supera em número a população negra e mestiça, números que corroboram
29
para a tensão apontada pela historiografia, presente entre os brancos em relação a possíveis
rebeliões e revoltas negras.
Tabela 2 - Composição Étnica de Vassouras, 1872.
Paróquia Brancos Mulatos Negros Índios ou Mestiços
Conceição 2.764 1.789 6.103 8
Mendes 756 929 1.623 32
Pati 3.288 3.812 7.328 12
Ferreiros 1.239 1.338 2.079 10
S. Família 1.947 2.292 1.489 55
Total 9.994 10.160 18.622 117
Fonte: Recenseamento, 1872. Apud STEIN, Stanley. p. 152.
As informações sobre a composição étnica, apesar de referir-se ao ano de 1872, nos
servem de apoio para pensarmos a complexidade em torno dessa questão, que aumentou na
medida em que a população fora desenvolvida, bem como o aumento do número de alforrias e
relações interétnicas. Suposição com base no número de mulatos – filhos de europeus e
africanos -, que existiam em cada uma das paróquias, como demonstra a tabela acima. Se
somarmos mulatos e negros, a diferença se torna esmagadora. A única paróquia em que os
mulatos são numericamente inferiores aos brancos é Conceição e seria necessária uma
pesquisa minuciosa, para tentar saber a razão disso.
Tabela 3 - Evolução da população escrava – 1840-1884.
Anos 1840 % 1850 % 1872 % 1884
Vassouras 14.333 69.61 19.210 67.09 20.168 51.38 18.891
Fonte: Relatórios de presidentes da província do Rio de Janeiro, anos de 1884 e 1885. Há pequenas discrepâncias, insignificantes, nos dados devido à dificuldade de leitura dos documentos. Apud. Ricardo Salles. p. 213.
Neste gráfico, Ricardo Salles aponta como o número de escravos na região de
Vassouras foi gradativamente aumentando a partir da estabilização e crescimento econômico
com base no cultivo do café. Os percentuais acima, referem-se à proporção da população
total, o que nos possibilita visualizar o grande número de escravos em comparação com a
população livre. Embora tenha sofrido um decréscimo, após o ano de 1880 - fato justificado
30
pela campanha abolicionista em voga a partir da década anterior -, os números não se
aproximam do quantitativo dos anos de 1840, fixando um aumento significativo. É importante
perceber que um número tão grande de escravos no município de Vassouras não é
representado nos óbitos, sugerindo a utilização de cemitérios clandestinos ou os particulares
em fazendas, não sendo os falecimentos informados à paróquia para o devido registro em
livro próprio.
Tabela 4 - Evolução da população de Vassouras – 1840-1884.
1840 % 1850 % 1872 % 1884 1884ª
Livres 6.285 30,48 9.496 33,08 18.608 47,99 - -
Escravos 14.333 69,52 19.210 66,92 20.168 52,01 17.891 23.073
Total 20.618 100 28.706 100 38.776 100 - -
Crescimento da população Livre 51,09% 95.96% - -
Crescimento da população Escrava 34,03% 4,99% -11,29% 14,4%
Crescimento geral da população 39,23% 35,08% - -
Nota 1: os dados sobre a população escrava em 1884 são da Matrícula de Escravos de 1884. Nota 2: a cifra de 1884ª para a população escrava é o resultado da soma do número de cativos com o número de libertos, de acordo com os dados da Matrícula de 1884. Fonte: Relatórios dos Presidentes de Província do Rio de Janeiro, 1840 e 1850, Relatório do Ministério da Agricultura, 1884. apud. Ricardo Salles. E o Vale era o escravo. p. 159.
Neste gráfico, nas palavras de Ricardo Salles, podemos perceber que:
[...] a acumulação da propriedade escrava ocorreu com o crescimento bruto da população cativa da ordem de 34% entre 1840 e 1850, quando passou de 14.333 para 19.210 indivíduos. Tal crescimento, uma vez extinto o tráfico internacional de escravos em 1850, diminuiu significativamente para cerca de 5% num período de 22 anos, entre 1850 e 1872, vindo a se tornar negativo, em -11,29%, entre este marco e 1884. Esta diminuição ocorreu basicamente sob o efeito da libertação dos nascituros devida à lei de 28 de setembro de 1871. Se, no entanto, somarmos o número de filhos de escravas, então tornados ingênuos, à população cativa neste mesmo período, veremos que, não fosse a lei do Ventre Livre, teria havido um crescimento de 14,4% nesta população no período. 47
Para além da possibilidade de alterar os números do crescimento vegetativo, a Lei Rio
Branco de 1871 teve um pequeno impacto na vida cotidiana de escravos, em se tratando dos
47 SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 159.
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Registros de Óbito. As crianças que faleciam a partir desta lei, tinham seu assento feito em
livro separado. Outrossim, nos inventários post mortem de seus proprietários, era feita menção
a sua condição de livre.
1.4 – Fazendas: centro administrativo e de poder senhorial. O Cotidiano nas fazendas de
Vassouras.
As primeiras fazendas foram construídas formando um quadrado funcional. Muitas
foram denominadas “Cachoeira” ou “Ribeirão”, devido a sua localização, preferencialmente
próximas a quedas d’água, como já destacava Francisco Werneck, Barão de Pati do Alferes,
ao descrever fatores fundamentais para a fundação da fazenda:
A agricultura, tendo de manipular os produtos que da terra percebe, e praticar serviços que entendem com a indústria manufatureira, não prescinde do auxílio das máquinas. Ora, de todos os motores conhecidos, é sem dúvida a água o mais econômico e maleável. Por isso o primeiro cuidado do fazendeiro, que de novo vai fundar um estabelecimento rural, deve ser procurar aguada, e, encontrando-a, tirar o nível dessa, com a direção à mais vantajosa localidade. 48
A água é, pois, o “motor” mais “econômico e maleável”, garantindo a sobrevivência
sem muito esforço para o seu deslocamento na utilização pessoal e na lavoura. *Durante a
pesquisa, pudemos observar que nos registros de óbito são mencionados cemitérios
construídos em fazendas com a mesma designação. Os cemitérios de fazenda, como veremos
mais detidamente no capítulo IV, provavelmente existiram na maioria das propriedades de
Vassouras, utilizado para a inumação de cativos e, também, provavelmente, de alguns livres.
Muitas recebiam o nome de um Santo, demarcando a importância da religião no cotidiano da
sociedade. 49 Conforme se acumulava mais riqueza a partir do cultivo do café, as fazendas e
48 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 92. 49 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 47.
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suas sedes se tornavam centros dos impérios familiares, ficando, com o passar do tempo, mais
suntuosas. 50
A acumulação de capitais que ocorrera até a década de 1840, possibilitou essas
mudanças na estrutura das grandes fazendas. Desta forma, a década de 1850 foi palco para o
surgimento de pretensiosas residências da aristocracia rural na região do café. Muitos foram
os melhoramentos na edificação principal, ou casa de vivenda, e geralmente eram construídos
dois prédios. Um grande número das antigas propriedades foi substituído por outras, mais
novas e “modernas”. As antigas, em alguns casos, foram utilizadas como depósitos ou
enfermaria de escravos, onde estes eram subtraídos ao trabalho cotidiano para a reabilitação
de seus males.51 A necessidade de enfermaria demonstra a possibilidade de um grande
número de escravos doentes e afastados de seus serviços. Mas nem todas as fazendas
dispunham de um espaço específico para o tratamento de cativos.
Todavia, as senzalas, que ficavam em último na escala das obras, logo após os
chiqueiros, não sofreram mudanças significativas. Possuíam “um telhado feito com telhas, às
vezes um corredor externo para refrescar, fechado por sólidas barras de madeira, nunca
assoalhado”. Muitos telhados eram feitos de palha, alternativa mais econômica. Francisco
Peixoto de Lacerda Werneck, ao descrever como deveria ser construída a senzala, informa:
[...] as senzalas dos pretos, que devem ser voltadas para o nascente ou o poente, e em uma só linha, se for possível, com quartos de 24 palmos em quadro, e uma varanda, de oito de largo em todo o cumprimento. Cada quarto destes deve acomodar quatro pretos solteiros, e se forem casados, marido e mulher com os filhos unicamente. As varandas nas senzalas são de muita utilidade porque o preto, na visita que faz ao seu parceiro, não molha os pés se está a chover, quase sempre estão eles ao pé do fogo, saem quentes para o ar frio e chuva, constipam, e adoecem.52
A preocupação de Francisco Werneck não era fortuita. Senzalas construídas em
terrenos úmidos facilitavam o surgimento de doenças e a propagação de muitas moléstias. Na
sua descrição minuciosa, informa o tamanho ideal da construção e de sua divisão entre
escravos solteiros e casados. Aqueles deveriam ser acomodados em número de quatro por
50 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo : Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 145. 51 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 68. 52 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 57-58.
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quarto. Os casados com seus cônjuges e filhos. Um fator interessante é a preocupação com a
construção de varandas que segundo o seu julgamento, eram “de muita utilidade” pois
ajudavam a diminuir o número de escravos doentes.
Entretanto, a maioria de escravos viviam em estreitos cubículos sem ventilação.
Poucas senzalas dispunham de janelas, a maioria possuía uma abertura gradeada em madeira
junto ao teto. A mobília era composta de “uma cama ou tarimba de tábuas apoiada sobre dois
cavaletes de serraria, coberta com uma esteira de capim trançado, talvez um pequeno baú de
madeira, e na parede alguns prendedores e diversas cuias para guardar feijão, arroz ou gordura
de porco”. 53
A segregação de casados e solteiros demonstra uma das formas de hierarquia daquela
sociedade. Provavelmente estava inserida na complexa rede construída com base no poder
simbólico, de forma que escravos casados e com raízes seriam menos vulneráveis a rebeliões.
A vida de indivíduos aglomerados colaborava para a propagação de doenças infecto-
contagiosas. Somada a essas precárias condições, estava a sujeira derivada do pouco ou
nenhum cuidado com a higiene. E mesmo com a expansão da produção cafeeira este quadro
não sofreu grandes alterações, ao menos para este grupo social. Para os seus senhores,
entretanto, surge um novo modelo de vida, ostentoso, vinculado a modernidade.
Nesta primeira fase de expansão do café, Vassouras se firmou como principal centro
urbano que difundia a cultura e o modo de vida senhorial. Os grandes proprietários de
Vassouras tinham casas, propriedade e interesses comerciais na Corte: uma forma de
afirmação do seu estilo de vida. Costumavam ostentar seu poder econômico quando lá
estavam, bem como ter acesso aos “modelos de civilidade”. Ainda assim, mantinham seu
endereço residencial em Vassouras, o que tornou possível o desenvolvimento e sofisticação da
mesma. 54 A casa de fazenda, entretanto, representa o principal símbolo do estilo de vida
daqueles fazendeiros. Era o centro da administração de seu patrimônio: de lá conduziam
agregados, feitores e escravos; visitavam os cafezais e outras culturas utilizadas na fazenda e
na alimentação de seus cativos. As propriedades que se desenvolveram então, tiveram
diferentes formações no relativo ao tamanho das fazendas e ao número de escravos que
compunham a necessária mão-de-obra.
53 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 70-71. 54 SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 119.
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Gráfico 1
Perfil de plantéis - 1821-1880 - Total
3%16%
39%22%
12%9%
Sem escravos Mini-proprietários Pequenos proprietários
Médios proprietários Grandes proprietários Mega-proprietários
Fonte: Ricardo Salles, E o Vale era o escravo. op cit., p. 156.
Os donos de terra e de escravos não formavam um grupo homogêneo. Ricardo Salles,
ao analisar as diferenças existentes nos plantéis, verifica o quanto estavam segregados esses
proprietários no que se refere à extensão de terras e ao quantitativo de escravos. Salles
conseguiu, por meio de sua pesquisa, sistematizar tais diferenças, classificando os fazendeiros
em cinco subgrupos distintos: “micro-proprietários (de 1 a 4 escravos), pequenos (de 5 a 19),
médios (de 20 a 49), grandes (de 50 a 99) e mega-proprietários (100 ou mais)”.55 As
diferenças também podem ser percebidas entre os micro e pequenos proprietários, pois alguns
não eram donos de terra, mas poderiam ser parceiros de algum grande ou mega-proprietário.
Da mesma forma, seus escravos eram utilizados em empreendimentos urbanos ou domésticos.
Grandes e mega-proprietários podiam ser, e no caso dos últimos, normalmente eram, donos de
mais de uma propriedade rural. 56
Os mega-proprietários representavam apenas 9% de todos os proprietários de escravos
no período em questão e possuíam 48% do total de cativos. Mega e grande juntos, detinham
70% dos escravos e representavam 21% dos proprietários. Esses dados reafirmam o controle
de um grupo distinto de proprietários de terras e de escravos que possuíam o domínio
econômico, social e político. Os mini e os pequenos eram proprietários de 12% dos cativos,
sendo, pois, pouco mais da metade dos proprietários. Médios proprietários possuíam 18% dos
55 SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 25. 56 Idem. Ibidem. p. 155-156.
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escravos da região. A situação de domínio dos mega proprietários passou a prevalecer a partir
da expansão da economia cafeeira em Vassouras, ou seja, no período compreendido entre
1836 e 1850. 57
Essas diferenças possibilitaram a formação de uma hierarquia entre os proprietários,
de forma que alguns se destacavam pelo poder econômico, político e simbólico, enquanto
outros, ainda que proprietários de escravos, utilizavam as terras daqueles para produzirem,
ocupando uma posição inferior na escala hierárquica social. Em certa medida, podemos
caracterizá-los, com todas as peculiaridades existentes, como classe dominante e, como tal, o
lugar que ocupavam pode ser pensado como o da “luta pela hierarquia”, 58 de forma que,
permanecer no topo da pirâmide requer o domínio dos diferentes campos de poder.
As alforrias que ocorreram com mais intensidade até a década de 1860 produziram
mudanças sociais que devem ser consideradas. Elas foram um dos fatores que propiciaram a
complexidade social, ou a inserção de ex-cativos no grupo de micro-proprietários. Eles se
inserem no grupo dos que possuíam entre 1 e 4 escravos e utilizavam terra alheia para o
cultivo. A diminuição dos indivíduos que conseguiam a sua emancipação, provavelmente
devido ao fim do tráfico que levara ao aumento do preço e diminuição da mão-de-obra,
influenciou nas relações de poder daquela sociedade. Segundo Ricardo Salles, “nesta
sociedade escravista madura, as novas condições demográficas e sociais incidiram
diretamente sobre o principal ponto de disputa nas relações sociais entre senhores e escravos:
a liberdade”.59
Os ex-escravos e seus descendentes que se tornaram pequenos ou micro-proprietários,
implementaram as divergências sociais e suas divisões hierárquicas. Liberdade concedida ou
conquistada não garantia a posse de terra e de cativos. Alguns poucos escravos os receberam
por herança. 60 Representavam uma parcela pequena dentre os possuidores desses bens.
Embora fossem poucos, marcaram as divergências sociais, antes divididas entre escravos e
57 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 156-158. 58 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. trad. Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 12. 59 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 255. 60 Ricardo Salles analisa o fato ocorrido com alguns escravos em Vassouras. Eles herdaram terras, dinheiro e escravos. Vide: SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 275-286. Também GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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livres. Essas diferenças estavam presentes no cotidiano social nos diversos fatores que
segregavam os indivíduos, fossem materiais ou simbólicos.
Um pequeno grupo de fazendeiros detinha grande influência e se destacava dentro de
seu segmento social. O domínio se efetivava por meio de eleições, atividades relacionadas à
justiça e altos cargos na Guarda Nacional. Algumas famílias eram dominantes nas atividades
do município, e possuíam hegemonia social, econômica e política na Vassouras no século
XIX. A gênese de tal poder remonta ao século XVIII. Seus antepassados vieram, em alguns
casos, da região das minas; muitos trabalhavam com comércio, alguns eram proprietários de
pequenas lavouras, outros, militares. No século XIX, ganharam destaque as famílias Werneck
e Ribeiro Avellar, sendo considerados por Stein “donos da rica paróquia de produção de café
de Pati do Alferes, fundada às margens da Estrada de Minas”.61 Ocupando uma posição de
igualdade com a aristocracia rural, a família Teixeira Leite, como destacada acima, teve na
atividade financeira a origem de seu patrimônio. Poucos fazendeiros de Vassouras possuíam
origem aristocrática. A riqueza foi acumulada a partir do cultivo do café. O status, ou o poder
simbólico de tais fazendeiros, podia ser medido pela quantidade de escravos, terra e café. 62
A concessão de títulos aos cafeicultores de Vassouras foi um dos símbolos de poder
dessa classe. Ser barão era um dos sonhos de consumo dos chefes das boas famílias. Eles
foram concedidos por Pedro II, uma vez que não eram hereditários como na Europa, do
primeiro ano de seu reinado ao último. Os fazendeiros de café representaram 14% dos
adquirentes. O direito a recebê-los estava associado às contribuições financeiras dos
pretendentes na Guerra do Paraguai, apoio ao regime imperial ou ações filantrópicas. 63 Poder
econômico e político não eram suficientes para aumentar o status e aproximar-se dos nobres
europeus. Os fazendeiros de Vassouras desejavam o poder simbólico dos títulos de nobreza,
os quais garantiriam, ainda que não fosse pela hereditariedade, o lugar mais alto na hierarquia
social. Eles estavam associados ao tamanho de suas propriedades que, consequentemente,
influenciavam no total do patrimônio em número de escravos, como veremos a seguir.
61 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 154. 62 Idem. Ibidem.p. 155. 63 Idem. Ibidem. p. 156.
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Gráfico 2
Percentual de escravos por perfil de plantéis - 1821-1880 - Total
1% 11%
18%
22%
48%
Mini-proprietários Pequenos proprietários Médios proprietários
Grandes proprietários Mega-proprietários
Fonte: Ricardo Salles. E o Vale era o escravo. op. cit., p. 157.
O tamanho da propriedade incidia diretamente sobre o número de escravos que seriam
necessários para mantê-la funcionando, o que é evidenciado pelo gráfico 2. As necessidades
do cultivo do café, a manutenção da sede e das senzalas, o beneficiamento do produto e de
gêneros alimentícios, norteavam a compra de novos cativos para suprir a necessidade de mão-
de-obra. De acordo com os diferentes tamanhos dos plantéis dos fazendeiros de Vassouras, os
números de escravos que estavam condicionados à necessidade da mesma variavam; ou seja,
temos a formação de diversos tamanhos de plantéis inseridos nas condições descritas acima.
Sendo assim, a exigência dos mega proprietários era muito superior a dos outros, os quais
detinham juntos a posse de 48 % dos cativos registrados na sociedade de Vassouras do século
XIX.
As grandes fazendas que se estabeleceram a partir de então tiveram no trabalho
escravo a base da sua produção e enriquecimento. Este propiciou a formação de uma nova
aristocracia, os barões do café do Vale do Paraíba. 64 Vassouras foi um território, no
oitocentos, de fundamental importância, pois econômica e politicamente auxiliou na
manutenção e expansão da ordem imperial brasileira. 65
64 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. 65 SALLES, Ricardo Henrique. E o Vale era o Escravo: Vassouras século XIX – Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro, 2007.
38
1.5 – Processo de produção
Havendo a possibilidade do encerramento do comércio transatlântico, provavelmente
os grandes fazendeiros trataram de garantir a manutenção de sua produção. Nessa conjuntura,
a negociação da abolição do tráfico atlântico entre o governo brasileiro e os emissários
ingleses, provocou um crescimento no número de escravos que chegavam aos portos do Rio
de Janeiro. Entre 1821 e 1825 em média, 24 mil escravos foram introduzidos nesses portos,
entre 1826 e 1830 os números subiram para 35 mil. O quantitativo de escravos aumenta ainda
durante o período de implantação da cultura cafeeira. Esses números, num primeiro momento,
podem apenas significar uma demanda crescente pela mão-de-obra escrava. Entretanto, se
considerarmos o alto índice de mortalidade, chegar aos portos passa a ser uma questão
pontual. Os escravos que sobreviviam à longa viagem, depois de sua chegada, permaneciam
em quarentena. Os que estavam em melhores condições de saúde, eram enviados ao interior,
viagem feita a pé pelas serras da região, até chegarem ao vale do Paraíba Fluminense. 66
Desses africanos que adentraram no porto do Rio de Janeiros e suas mediações, a maior parte
foi destinada às fazendas cafeicultoras que estavam em processo de formação, instaladas há
pouco tempo no vale do Paraíba, incluindo-se aí as de Vassouras. 67
O período de auge do café foi a década de 1850, e Vassouras pode ser considerada a
base da produção, decorrendo daí a necessária utilização de um alto número de escravos. O
fim do tráfico, que coincide com esse tempo, viabilizou o comércio interprovincial como
garantia da continuidade do profícuo comércio, para atender ao crescimento da procura
internacional. Da mesma forma, elevou o preço do escravo levando pequenos proprietários à
bancarrota e tantos outros a modificarem seu olhar sobre a propriedade cativa.
O aprendizado pela prática do plantio, fez com que muito café fosse plantado após a
queimada do solo. As árvores começavam a frutificar após três anos, atingindo aos seis, uma
produção total e desejada. Os fazendeiros tinham o costume de plantar entre as fileiras de
café, milho, feijão e mandioca. Esse hábito protegia os pés novos do sol quente, bem como
mantinha a alimentação dos escravos. O trabalho era realizado da base para o topo do morro e
vários cativos utilizavam enxadas de aproximadamente 1,8kg a 2,3kg; as mulheres usavam
66 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de Quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 67 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 294.
39
enxadas mais leves. O preparo do solo para a colheita necessitava anualmente de duas
capinas; a primeira geralmente ocorria pouco depois das chuvas de setembro e outubro; a
segunda acontecia de março a abril. O café era plantado verticalmente em fileiras, fato que
gerava vantagens e desvantagens. As chuvas ao descerem o morro, deixavam as raízes à
mostra, expostas ao tempo, danificando as árvores. 68
O processo de plantio culminava com a colheita. O que descrevemos de forma simples
certamente não o era. O trabalho praticamente manual necessitava de muitas mãos para ser
realizado em menor tempo. Quando a fazenda não possuía uma grande quantidade de
escravos, os grãos eram enviados ao Rio de Janeiro para serem beneficiados. As fazendas com
melhores recursos tinham o compacto engenho de pilões, como descreve Stanley Stein. O
termo “engenho”, nas plantações de café, podia ser atribuído a uma máquina específica ou à
construção que guardava toda a maquinaria. O socamento do café inicialmente era feito à mão
com rodos de madeira, sendo substituídos pelos pilões movidos à água. Os grãos secos eram,
nesse processo, socados e depois jogados ao alto numa peneira para separar o grão de sua
casca externa. A interna era removida após novo processo realizado. Depois de socados
novamente e polidos tinham um valor mais elevado no mercado. 69
A divisão de trabalho consistia nos escravos masculinos, atuando em maior quantidade
na capina, plantio, colheita, beneficiamento e transporte para os terraços. Em média, um
escravo deveria colher entre 5 e 7 alqueires diariamente. Para conseguir um bom desempenho
dos escravos em número de alqueires colhidos, o Barão de Pati do Alferes ensina:
Um dos melhores expedientes que (em princípio quando os meus escravos não sabiam apanhar o café) estabeleci, e de que tirei muito bom resultado, foi o dos prêmios, verbi gr., marcava cinco alqueires como tarefa, e dizia-lhes: todo aquele que exceder terá por cada quarta 40 réis de gratificação; com este engodo, que era facilmente observado, consegui que, esforçando-se, habituassem a apanhar sete alqueires, que ficou depois estabelecido como regra geral. 70
As escravas, crianças e idosos eram preferidos para a seleção dos grãos. Nesta tarefa o
café era selecionado em mesas ou em assoalhos lisos dos engenhos. Espalhava-se uma
68 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 60-61. 69 Idem. Ibidem. p. 61-63. 70 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 107.
40
camada fina de grãos e os que seriam vendidos a um preço menor separados à mão, o
chamado refugo, composto pelos quebrados, manchados e pouco desenvolvidos. Cada escravo
que desenvolvia essa tarefa deveria selecionar até 4 arrobas diariamente. Depois de
selecionados, saíam da fazenda para as mãos do intermediário, seguiam para a estação
ferroviária e daí para o Rio de Janeiro.71
1.6 – O Escravo:
Manolo Florentino e José Roberto Góes, analisando o período de 1790 a 1850,
definem o escravo como “uma mercadoria, objeto das mais variadas transações mercantis:
venda, compra, empréstimo, doação, transmissão por herança, penhor, seqüestro, embargo,
depósito, arremate e adjudicação”. 72 O escravo era considerado, pela sociedade escravista,
uma propriedade, um bem que deveria ser controlado para melhor exercer sua função, o que
significava em muitos dos casos, o uso da violência física. Até meados do século XIX, as
doenças e mortes consecutivas não abalaram a estrutura do patrimônio escravo pela facilidade
de reposição dessa mão-de-obra, situação que sofrerá uma sensível mudança após o fim do
tráfico negreiro em 1850.
Seguindo a mesma perspectiva, os fazendeiros de Vassouras não se afastavam da
concepção de seus pares de outras províncias, de modo que não percebiam em seus escravos
“a natureza e dignidade dos homens. O escravo era pouco mais do que um objeto vivo, uma
ferramenta, um instrumento, uma máquina”73. Essas palavras mencionadas num jornal local
de Vassouras demonstram a visão de alguns fazendeiros sobre a sua mão-de-obra e a maneira
ideal de lhes tirar uma melhor produtividade. Entrementes, não podemos considerá-la como
uma visão generalizada, tendo em vista que alguns, embora fossem perseguidos por seus
pares, demonstravam um pensamento diferenciado. 74 Tal como demonstra Stanley Stein, ao
71 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 63-64. 72 FLORENTINO, Manolo e GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1997. p. 31. 73 A. E. Zaluar. O Vassourense, 19 de novembro de 1881. apud STEIN, Stanley J. Vassouras: um município do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 169. 74 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 169.
41
citar Caetano da Fonseca: “Muitos fazendeiros desumanos, [...] forçam seus escravos, com o
chicote, a trabalharem além de sua capacidade física. Esses pobres homens, esgotadas suas
últimas energias, morriam em pouco tempo, com grande dano financeiro para seus bárbaros
senhores”. 75
A perda da propriedade era um ponto crucial na fala de Caetano da Fonseca e
demonstra possivelmente o motivo de suas preocupações. Os castigos físicos exacerbados
eram certamente uma das principais causas de mortes, nem sempre relatadas nos registros de
óbitos, como veremos no capítulo seguinte. E como bem salientou este autor, levava a um
prejuízo no patrimônio senhorial, fato que não os fazia amenizar o trato com seus cativos, ao
menos enquanto o tráfico garantia farta reposição da mão-de-obra. Todavia, o uso da
violência não pode ser lido como unanimidade entre os senhores de escravos. Provavelmente,
o receio de não ter a máxima produtividade os levava a compactuar com o pensamento da
época. A pena do açoite para os crimes de escravos foi abolida em 1886, 76 mas,
provavelmente havia diminuído quando do fim do tráfico atlântico.
1.7 – Ocupações e grupos sociais.
As diferentes ocupações e o reduzido número de cativos entre os indivíduos livres que
compunham a sociedade de Vassouras apontam o quão escassos eram os recursos em caso de
doenças, não apenas para eles, mas também muito provavelmente para os livres. Os
fazendeiros ocupavam o lugar de destaque na sociedade, faziam parte do grupo de
agricultores ou lavradores. Eram assim considerados os que possuíam fazendas com mais de
30 alqueires. Os sitiantes, lavradores, colonos ou trabalhadores contratados, compunham o
grupo de lavradores, mas estavam longe do status do fazendeiro, bem como do poder político,
econômico e simbólico que alguns poucos detinham. Destarte, podemos perceber a
heterogeneidade dos agricultores, sendo viável ter em sua composição homens abastados e
também os que beiravam a pobreza.
75 Caetano da Fonseca. Manual, p. 103. apud. STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 171. 76 MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. p. 65.
42
Tabela 5 - Distribuição Ocupacional dos livres em Vassouras, 1872.
Paróquia Agricultores Negociantes Capitalistas
Proprietários
Servidores
Civis
Médicos Advogados
Juízes
Conceição 685 239 55 36 22 18
Mendes 717 44 7
Pati 1.945 81 1 7 10 2
Ferreiros 720 17 1 1 4
S. Família 1.202 93 3 3 4 2
Total 5.269 474 67 47 40 22
Fonte: adaptado de recenseamento, 1872. Apud. Stanley Stein. op. cit. p. 153
O quadro acima demonstra a importância social dos agricultores, formada pelo maior
número de representantes entre os indivíduos. O pequeno número de médicos, quarenta no
total, não poderia atender de modo proficiente uma população numerosa e em crescente
desenvolvimento, que somava 39.253 habitantes, em 1872. Negociantes, capitalistas
proprietários, servidores civis, advogados e juízes formavam outros grupos profissionais entre
os livres.
Os portugueses eram os imigrantes em maior número, assim também sugerem os
registros de óbito de livres. Exerciam diferentes funções e atividades profissionais como
negociantes, médicos, advogados e professores. Os menos afortunados eram vendedores,
feitores de fazendas e trabalhadores habilitados ou não. Muitos eram pobres e procuravam
alguma atividade em Vassouras tão logo chegassem em solo brasileiro. Geralmente viviam ao
redor da cidade, local que recebeu a alcova de “O Valão do português”. Em vida, estavam
fadados a serem reconhecidos pelo local de moradia, e na morte, pela inscrição pobre ou
pobríssimo de seu registro, bem como pela falta de pompa nos rituais de inumação. Mas nem
todos os portugueses pobres permaneciam nessa condição, muitos enriqueciam e retornavam à
terra natal. 77
Os homens livres e pobres formavam uma classe heterogênea, pertencendo a um plano
intermediário entre os grandes fazendeiros e o grupo de escravos. “Alguns desse grupo eram
descendentes de posseiros livres e sem terra, provenientes de várias raças; outros eram
colonizadores sem posses, aos quais se juntaram escravos fugidos e alforriados e portugueses
77 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 160-162.
43
indigentes”. 78 Estes homens não eram parte efetiva da vida de fazenda e tinham reservados
para si os trabalhos servis e muitas vezes os mais perigosos. Artesãos, “agregados”,
trabalhadores rurais e urbanos, sem-teto e indigentes formavam esse grupo; nele estavam
inseridos também os escravos alforriados. A pobreza era percebida pelo ato de mendigar, o
que acontecia geralmente aos sábados, dia escolhido pelos moradores do campo para vender
sua produção e fazer compras. 79
As diversas funções que seriam desempenhadas por escravos deveriam ser ensinadas
ao cativo, ainda criança:
Tende o cuidado logo, em princípio, de pôr alguns moleques a aprender ofícios, como sejam carpinteiros, ferreiros e pedreiros: em pouco tempo estão oficiais e tende de casa operários, tendo-vos aproveitado ao lucro da aprendizagem [...] Não vos esqueçais de pôr também algum a oleiro para fazer a telha e tijolo para o gasto da casa .80.
A aprendizagem de ofícios deveria atender, como o Barão de Pati do Alferes adverte,
às necessidades do proprietário de fazenda. Outros ofícios tiveram espaço nas grandes
propriedades e eram fundamentais para o seu funcionamento. Além dos mencionados na
citação acima, os homens eram tropeiros, falqueijadores, feitores, capatazes, sapateiros,
alfaiates, coveiros. As mulheres: lavadeiras, cozinheiras, costureiras, engomadeiras, mucamas,
cesteiras. Eles compunham um grupo de escravos especializados em funções que poderiam
aumentar o seu preço e logo, o patrimônio de seu senhor. Existiam ofícios desempenhados por
homens e também por mulheres: como cozinheiros, no trabalho de roça, nos serviços
domésticos.
Na análise dos inventários post mortem no período de 1840 a 1880, identificamos um
pequeno número de escravos voltados para o tratamento de doenças. As ocupações destes são
muitas e geralmente citadas como forma de garantir um bom preço ao cativo. Tais funções
atendiam às exigências da fazenda e alguns escravos dominavam mais de um ofício. Para a
construção das tabelas abaixo, optamos por selecionar os ofícios que mais se destacavam ou
tiveram maior representatividade.
78 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 163. 79 Idem. Ibidem. p. 163-164. 80 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 66.
44
Tabela 6 - Ofícios de escravos por gênero e faixa etária, 1840-49.
Faixa Etária Total Gênero Profissão 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 s/idade Total %
Tropeiro 0 1 51 3 0 31 86 27.74
Carreiro 0 0 14 7 0 12 33 10.64
Carpinteiro 0 0 40 3 0 21 64 20.65
Marceneiro 0 0 1 0 0 2 3 0.97
Oleiro 0 0 3 0 0 0 3 0.97
Telheiro 0 0 3 0 0 0 3 0.97
Falqueijador 0 0 15 3 0 1 19 6.13
Ferreiro 0 0 11 4 0 6 21 6.77
Feitor 0 0 0 0 0 2 2 0.64
Capataz 0 0 4 0 0 2 6 1.94
Pedreiro 0 0 12 4 1 3 20 6.45
De Roça 0 1 1 0 0 0 2 0.64
Alfaiate 0 1 8 3 0 3 15 4.84
Sapateiro 0 0 3 5 0 1 9 2.90
Cozinheiro 0 0 7 0 0 1 8 2.58
Pagem 0 0 5 0 0 5 10 3.22
Domestico 0 0 1 0 0 0 1 0.33
Homens
Barbeiro 0 0 1 1 0 3 5 1.62
Total por Gênero: 310 – 75.1%
Faixa Etária Total Gênero Profissão
0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 s/idade Qtde % Cozinheira 0 0 14 5 0 0 19 18.44
Costureira 0 7 52 3 0 4 62 60.19
Engomadeira 0 0 7 0 0 0 7 6.80
Lavadeira 0 0 3 3 0 0 6 5.82
Rendeira 0 0 2 0 0 0 2 1.95
Mucama 0 0 2 0 0 0 2 1.95
Mulheres
De Roça 0 0 4 1 0 0 5 4.85
Total por Gênero: 103 – 24.1%
Total Geral: 413 Fonte: Inventários Post mortem de proprietários, 1840-1849. CDH.
Na década de 1840, encontramos cinco escravos barbeiros e nenhuma escrava com
ofício relacionado ao tratamento de doenças ou à saúde. Os escravos barbeiros correspondem
a 0,33% do total de escravos selecionados para esta análise e que tiveram um ou mais ofícios
relacionados ao seu nome no inventário de seu proprietário.
Os tropeiros estão no topo da lista e somam 27.74%, carpinteiros totalizam 20.65%,
seguidos pelos carreiros, 10.64% dos escravos com ocupação especificada: ofícios
importantes para a economia e manutenção da fazenda. Ferreiros, falqueijadores81 e pedreiros,
respectivamente, simbolizam 6.77%, 6.13% e 6.45%. Embora em menor quantidade dos que
81 Segundo a informação de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, essa ocupação era responsável por abrir caminhos na densa vegetação de Vassouras e cortar madeira.
45
os anteriormente mencionados, esses escravos eram também fundamentais para a manutenção
das propriedades cafeiculturas. Competindo com eles, no ofício de pedreiro, existiam homens
brancos portugueses, como Francisco Jose de Siqueira, 38 anos, filho de Antonio Jose de
Siqueira e Maxianna Barbosa de Siqueira, viúvo e falecido na Santa Casa de Misericórdia no
dia 26 de março de 1871.82 Esses dados demonstram a competição entre pobres e escravos na
prática de alguns ofícios.
Mulheres escravas, no que tange aos ofícios atribuídos, maciçamente exerciam
atividades domésticas, na década de 1840. As costureiras, boas ou “sofríveis”, representam
60.19% do total de cativas aqui selecionadas, mais da metade, provavelmente devido às
poucas possibilidades antes da expansão cafeeira e do aumento dos lucros. Cozinheiras ficam
em segundo lugar, com 18.44%. Nenhum ofício foi relacionado à faixa etária 0-7 anos.
Da década de 1850 ao ano de 1880, conforme os dados da tabela 7, mulheres escravas
“de roça” eram as mais significativas, com 34.95% (223) do total selecionado. As costureiras
agora ficam em segundo lugar, somando 17.40% (111). As influências da moda estrangeira,
facilitadas pela ferrovia, certamente contribuíram para a diminuição dos números. Utilizando
a mesma tabela, percebemos a mesma alteração entre os escravos, pois os “de roça”
ultrapassam em quantidade os tropeiros.
A realidade econômica se transformara, devido à lei de 1850, podendo ter influenciado
na utilização do maior número possível de cativos na produção cafeeira. Se antes dela os
roceiros eram 0.64% (2) dos relacionados nos inventários, após esse marco, são 27.96%
(415). Devemos considerar que muitos escravos, no período anterior ao fim do tráfico, não
tiveram um ofício indicado, o que levaria ao baixo índice. Entretanto, os números são
sugestivos e corroboram para acreditarmos no uso do maior número possível da mão-de-obra
no campo, independente do gênero, para garantir a produção.
Tabela 7 - Profissões escravos por faixa etária e gênero 1850-1880. Faixa Etária Total
Gênero Profissão 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 s/idade Qtde %
Tropeiro 0 0 69 37 1 109 216 14.55 Carreiro 0 1 54 22 0 42 119 8.02 Carpinteiro 0 0 62 44 1 58 165 11.12 Marceneiro 0 0 3 2 0 6 11 0.74
Oleiro 0 0 2 2 0 3 7 0.47 Telheiro 0 0 3 4 0 9 16 1.08
Homens
Falqueijador 0 0 5 0 0 6 11 0.74
82 2º. Livro de óbitos das pessoas livres fls. 13. CDH.
46
Ferreiro / Ferrador 0 0 48 11 0 28 87 5.86
Feitor 0 0 0 8 0 5 13 0.88 Capataz 0 0 11 12 2 15 40 2.69
Pedreiro 0 2 30 21 4 29 86 5.79 De Roça 1 31 200 142 1 40 415 27.96
Do Café 0 0 0 0 0 1 1 0.07 Sacador de Café 0 0 0 0 0 1 1 0.07
Formigueiros 0 0 2 4 0 5 11 0.74 Alfaiate 0 0 9 9 0 21 39 2.63
Sapateiro 0 1 4 2 0 16 23 1.55 Cozinheiro 0 0 22 17 1 31 71 4.78 Padeiro 0 0 0 1 0 1 2 0.13
Pagem 0 0 23 4 1 25 53 3.57 Domestico 0 2 1 1 0 0 4 0.26
Copeiro 0 3 9 1 0 1 14 0.94 Engomador 0 0 1 0 0 0 1 0.07
Barbeiro 0 0 0 2 0 9 11 0.74 Enfermeiro 0 0 2 3 0 3 8 0.54 Servente de Enfermaria 0 0 0 1 0 0 1 0.07 Os serviços 54 0 1 0 0 3 58 3.91
Total por Gênero: 1.484
Faixa Etária Total Gênero Profissão
0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 s/idade Qtde % Cozinheira 0 0 19 14 0 11 44 6.90
Padeira 0 0 1 0 0 1 2 0.31
Costureira 0 3 48 6 0 54 111 17.40
Engomadeira 0 0 11 2 0 3 16 2.51
Lavadeira 0 0 8 9 0 7 24 3.76
Rendeira 0 0 4 0 0 0 4 0.63
Doméstica 0 7 29 9 0 1 46 7.21
Serviço de Casa 0 1 1 0 0 0 2 0.31
Serviço dom vários 0 1 27 5 0 12 45 7.06
Mucama 0 2 47 5 0 11 65 10.19
De Roça 1 9 126 80 0 7 223 34.95
Enfermeira 0 0 1 2 0 0 3 0.47
Parteira 0 0 0 1 0 1 2 0.31
Mulheres
Os Serviços 49 0 0 0 0 2 51 7.99
Total por Gênero: 638
Total Geral: 2122 Fonte: Inventários post mortem de proprietários, 1850-1880. CDH.
Chama a atenção que crianças de 0 a 7 anos recebem a classificação “os serviços” a
partir da segunda metade do século XIX, especificamente na década de 1870. Nas anteriores,
nenhum ofício foi relacionado a crianças nessa faixa etária. Outras categorias são descritas na
década de 1870: “de roça”, um menino e uma menina, e duas meninas como “serventes”. Na
década de 1880, encontramos 3 crianças para “os serviços”: 1 menino e 2 meninas.
Acreditamos que não por acaso um grande número de crianças inocentes foram registradas
47
nos inventários com um ofício especificado. A este fato associamos a lei de 28 de setembro de
1871, que declarava livres os filhos de mulheres escravas que nascessem após essa data.
Filhos livres, mães escravas, uma combinação problemática. De fato, do nascimento
até os oito anos de idade eles poderiam ficar com suas mães e seus respectivos senhores. E
após essa idade? O que fazer com esses indivíduos que ainda continuariam sem condições de
se autogerir? A opção estava nas mãos dos proprietários de “mantê-los sob seus serviços até
os 21 anos ou de entregá-los aos cuidados do Estado”. 83 A lei do ventre livre, desta forma,
afetou as relações entre senhores e escravos inocentes. Ela passa a ser utilizada como mão-de-
obra potencial em um período em que sua oferta havia diminuído. Segundo Ricardo Salles, a
partir da década de 1860, desenvolveu-se uma estabilização das condições sociais de
reprodução natural das chamadas comunidades de senzala, o que em certa medida pode ter
aliviado a tensão em torno da diminuição da oferta de mão-de-obra. Sendo assim, inocentes
que não tinham ofício relacionado a si, passam a fazer parte do “rol” de possibilidades de
mão-de-obra, mesmo tendo condição livre. Afinal, todo o custo pela manutenção da criança
até a sua maioridade era do senhor e proprietário de sua mãe.
A partir da Lei do Ventre Livre, os filhos de escravos tiveram a anotação “liberto por
lei” nos inventários post mortem. A intervenção do Estado em um documento particular fica
evidente. A menção também sugere preocupação em demonstrar que a criança não mais
poderia ser considerada pela condição jurídica de seus pais. Nascida nessas condições, ela não
fazia parte teoricamente dos bens a serem inventariados. Esses novos indivíduos passam a ter
um livro de óbito específico para sua condição jurídica: ingênuos. Os mesmos não serão
tratados neste trabalho. A lei do Ventre Livre garantia, assim, que filhos de escravas
nascessem livres, mas poderia ser e, em grande maioria provavelmente era, utilizada como
mão-de-obra. O benefício para seus pais foi o direito ao pecúlio e à compra da alforria.
Segundo Hebe Mattos, essa lei ajudou a desarticulação da economia moral da grande fazenda,
pois a capacidade de concessão de privilégios, que eram associados à figura do senhor, se
tornaram direitos dos cativos. 84
83 SALLES, Rcardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 79. 84 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 163.
48
1.8 - A rotina de trabalho nas fazendas.
O trabalho diário de um escravo iniciava-se muito cedo, antes do nascer do sol,
terminando horas depois de se pôr. A jornada de trabalho nas fazendas podia durar até 16
horas. O tempo dispensado para o sono era de cinco a oito horas sob os “catres cobertos por
esteiras de fibra tecida”. 85 Próximo às senzalas existiam “bicas” utilizadas pelos cativos para
uma rápida higiene matinal e depois dela, tinham eles acesso aos seus instrumentos de
trabalho, as enxadas e as podadeiras. 86 A precária higiene dos escravos era um dos fatores de
muitas doenças e da possibilidade de não curá-las. Dessa forma, a higiene foi descrita como
fundamental no tratamento de algumas moléstias e recomendada pelo doutor Imbert em seu
manual.
Retomando o cotidiano dos escravos, após a higiene, eles se agrupavam no pátio da
fazenda e, após a “reza da manhã” iniciada pelo senhor, o feitor fazia uma “chamada” para
verificar se todos os escravos estavam presentes para o início das atividades. Caso ficasse sem
alguma resposta, verificava a senzala. As tarefas que seriam feitas no dia eram distribuídas e a
primeira refeição geralmente composta de café e broa de milho. Este era o alimento mais
necessário ao lavrador de serra acima. Nutria os escravos, a tropa, os cavalos, os porcos, os
carneiros. Tão importante, que deveria ter o fazendeiro a maior cautela na sua sementeira, em
terras da melhor qualidade. 87
No caminho para o trabalho nos cafezais, as mulheres levavam seus filhos. Quando o
trabalho a ser realizado era em colinas distantes, costumava-se levar as refeições que fariam
no decorrer do dia. Num local próximo, uma cozinha improvisada era erguida e abrigava o
material transportado em carroças ou em caldeirões de ferro, quando em quantidade
significativa. Por vezes, alguns escravos carregavam sua alimentação em sacos de pano.
Homens e mulheres se dividiam entre as diferentes tarefas, formando grupos mais ou menos
organizados em fileiras. O ritmo do trabalho geralmente era dado por quatro homens que
compunham a fileira da frente, estes costumavam ser os mais rápidos e serviam de exemplo
85 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 197. 86 Idem. Ibidem. p. 197-198. 87 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 75.
49
para os mais vagarosos. O trabalho seguia o ritmo dos mais ligeiros e do canto, iniciado pelo
mestre cantor com um desafio de jongo, que deveria ser respondido pelo mestre cantor do
outro grupo. Se o Jongo hoje é uma manifestação cultural dos descendentes dos negros
africanos, no século XIX, era associado ao trabalho no eito: uma maneira de tornar o
cotidiano menos pungente. Ao jongo, os escravos associavam um mal ou bom dia de trabalho.
Quizumba era o nome dado aos Jongos cantados em língua africana e visaria aos cantados em
português, que se tornavam mais comuns à medida que os escravos africanos idosos iam
morrendo. 88
Esses escravos mais velhos tinham status entre os mais jovens, eram mais lentos,
naturalmente devido à força do tempo. Os mais jovens, para evitar as possíveis chicotadas,
não ultrapassavam o ritmo deles, ainda que fossem responsáveis pela maior velocidade do
trabalho. A religião estava associada a essa atitude: a crença de que o mais novo que não
seguisse tal preceito seria mordido por cobra, caso o escravo mais velho jogasse seu cinto e
este o pegasse. O receio de ser vítima de mordida de cobra não estava apenas no imaginário
desses cativos, tendo em vista que trabalhavam e passavam a maior parte do seu tempo entre
os cafezais. Reiterando esse medo, temos o fato de que alguns cativos que tiveram mortes
violentas foram mordidos por cobra. Imaginário e fatos cotidianos estabeleciam algum tipo de
relação. 89
O almoço poderia ocorrer por volta das 10 horas e tinha a duração aproximada de
trinta minutos. A hierarquia também prevalecia nesse espaço, onde capatazes e talvez algum
escravo protegido ou respeitado, almoçavam separados dos demais. As mulheres que tinham
filhos de colo aproveitavam para amamentá-los. Às 13 horas, uma pausa era feita para um
café, que poderia ter o restante do angu do almoço como acompanhamento. Nos dias mais
frios, o café era substituído por uma caneca de cachaça destilada da cana-de-açúcar. Por
vezes, para não atrapalhar o ritmo do trabalho, a caneca era servida pelos capatazes a mando
do senhor, nos cafezais. A janta ocorria às 16 horas e geralmente o cardápio era o mesmo do
almoço. 90 Não havia homogeneidade quanto aos horários das refeições diárias. Elas podiam
variar entre as diferentes fazendas. Na concepção do Barão de Pati do Alferes, o “preto de
88 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,,1990. p. 199-200. 89 Idem. Ibidem. p. 200. 90 Idem. Ibidem. p 201.
50
roça deve comer três vezes ao dia”, “almoçar às oito horas, jantar à uma hora e cear às oito até
nove”. 91
O fim do dia de trabalho ocorria ao anoitecer, quando os escravos formavam em frente
à casa grande para a chamada no terreiro. Entretanto, isso não significava que teriam a partir
daí uma noite de descanso. A chamada noturna ocorria sempre que havia necessidade de
algum trabalho a ser feito. Nela os escravos eram inspecionados e era iniciado o serão que
poderia se estender até 20 ou 23 horas. No inverno, a seleção de grãos de café secos era a
principal tarefa, efetuada à luz de lamparinas de óleo de mamona ou tochas de taquara
entrelaçada. A segunda tarefa mais importante era a preparação de alimentos para pessoas e
animais. Consistia na preparação da mandioca, que era descascada manualmente, moída em
pedra, seca e torrada, se tornando farinha, como era utilizada. 92 O fubá também era preparado
durante os serões, o arroz socado, o café a ser servido no dia seguinte torrado e moído, a lenha
era separada, sendo então encerrados com uma ceia leve. 93 Os escravos, homens e mulheres,
que detinham o ofício de cozinheiro declarado nos inventários post mortem, representavam
5.60 % (tabela 6 e 7) do total de cativos e traziam consigo a importância da função dentro e
fora da Casa Grande.
Um fator presente na rotina de trabalho, como descrito acima, era a dieta alimentar. A
população escrava e a livre nas fazendas de Vassouras tinham suas dietas adaptadas aos
hábitos alimentares coloniais e portugueses, aos que eram reproduzidos no local, bem como às
necessidades exigidas pelo grupo de escravos que formavam a mão-de-obra. Geralmente, as
fazendas produziam seus alimentos, algumas obtinham o que precisavam em locais próximos.
Fubá, feijão, mandioca, toucinho de fumeiro e açúcar eram a base das refeições servidas
diariamente, existindo pouca distinção entre o que era servido a escravos e a livres, 94 pelo
menos até a chegada dos prósperos anos da segunda metade do século XIX. 95 Alguns
alimentos, entretanto, compunham a mesa dos senhores e não a dos cativos. A mandioca,
citada acima, era um “acessório indispensavelmente necessário”, presente nas mesas de luxo
91 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 64. 92 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,,1990. p. 204. 93 Idem. Ibidem. p. 204-205. 94 Idem. Ibidem. p. 210-211. 95 Idem. Ibidem. p 214.
51
em forma de pirão, bolos de sua tapioca, mingaus e biscoitos de sua goma, também utilizada
nas roupas. 96
O almoço e o jantar, que na maioria das vezes possuíam o mesmo cardápio para
escravos, tinham no angu a base da alimentação. O suplemento era feijão-preto ou mulatinho,
e recebiam o tempero de toucinho de fumeiro e gordura de porco, a farinha de mandioca era
colocada por cima. Em alguns casos, também eram servidos legumes como batata-doce,
abóbora, nabo, dentre outros. Uma parca ceia era servida quando da necessidade do serão,
geralmente composta por algumas tiras de carne-seca, esta preferida pelos fazendeiros pela
durabilidade e conservação em comparação com a carne fresca, podendo ser armazenada de
oito a dez meses sem deteriorar. Em época de colheita ou datas festivas, recebiam os cativos
xícaras de aguardente ou marafo, termo africano. As refeições eram feitas pelos escravos de
pé, agachados ou sentados; utilizavam cuias e dedos para transportar a comida à boca – em
raros casos a colher era utilizada. Pratos diferenciados dos acima descritos, como paçoca,
canjica, leitão – este somente para os escravos que ultrapassavam sua cota de grãos colhidos,
outra estratégia de controle -, churrasco de porco, frutas, dentre ouros, consistiam numa
premiação e apenas eram servidos em ocasiões festivas. 97 A dieta, que nem sempre fora tão
farta, oferecia riscos à saúde dos indivíduos que trabalhavam durante muitas horas, descalços
e sem descanso, viabilizando o enfraquecimento do organismo, bem como causando doenças,
que muitas vezes se tornavam irreversíveis devido à debilidade física.
Outro fator importante na propagação de doenças e de distinção social era a
localização da cozinha, existindo uma para a família senhorial e outra para o uso dos escravos.
A cozinha externa era destinada aos escravos e a interna para o senhor e sua família. Em
ambas faltava higiene. Segundo descreve Stanley Stein, “as moscas rondavam a comida
empilhada, as panelas fumegantes e o lixo jogado pelo chão”, 98 facilitando provavelmente a
proliferação de moléstias.
Mudanças nos hábitos alimentares, ao menos no que concerne ao senhor e a sua
família, foram percebidas a partir da chegada da linha férrea entre o Rio e as áreas rurais.
Diminuída a distância, a comunicação teve uma melhora e, com isso, os fazendeiros tiveram
contato com a cozinha da “moda” ou “civilizada”, como descreve Stein. O contato com tais
96 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 77. 97 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 212-213. 98 Idem. Ibidem. p. 214.
52
novidades não significou, contudo, uma mudança efetiva nos hábitos alimentares desses
indivíduos, pois continuaram a se alimentar de forma simples. A variedade de produtos
derivados do trigo, macarrão e biscoitos diminuiu o consumo de fubá entre os fazendeiros.
Padarias surgiram na última metade do século XIX, a manteiga, queijos mineiros, portugueses
e leite passaram a fazer parte mais assiduamente da mesa dos senhores, pelo menos dos mais
abastados. 99 Alguns contavam com escravos padeiros, como Antonio, Angola. O doutor
Imbert, em seu manual, descreve a importância da dieta alimentar associada à higiene, como
forma de garantir uma boa saúde e cura para algumas doenças no século XIX. Dieta alimentar
e saúde caminhavam lado a lado, tendo uma colocação acentuada por Imbert, como uma das
formas de recuperação de determinadas moléstias. Não apenas para diversificar a dieta
alimentar e ampliar a comunicação e comércio, serviu a ferrovia aos fazendeiros de café de
Vassouras. Ela também apresentou novas possibilidades para os doentes. Dispondo de
dinheiro necessário, poderia solicitar-se um médico do Rio de Janeiro para o atendimento nas
fazendas. 100
A vestimenta precária também incidia na saúde de escravos. Na primeira metade do
século XIX, as vestes de senhores e escravos eram simples no cotidiano; entretanto, senhores
mais abastados costumavam se vestir à moda européia. No que concerne aos escravos, a
maneira como eram vestidos está intimamente associada ao fluxo do tráfico. Entre as décadas
de 1830 e 1840, quando a afluência de escravos vindos da África era grande, não havia muita
preocupação dos senhores com esse item. As mudanças foram notadas após 1850, quando o
afluxo de escravos diminuíra com o fim do tráfico atlântico. Geralmente, o fazendeiro
adquiria por encomenda quantidades consideráveis de um tecido de algodão grosseiro, que era
feito à mão na província de Minas. Em período posterior, passaram a consumir o
manufaturado, que era produzido em Petrópolis ou perto de Magé, Província do Rio. Para as
noites mais frias, era utilizada a flanela de algodão, (chamada baeta) e a lã. Os escravos
geralmente recebiam roupas em dois períodos do ano, no Natal e no período das festas
juninas.101 As costureiras escravas, como as muitas que aparecem mencionadas nos
inventários post mortem analisados neste trabalho, tinham a função de confeccionar essas
roupas, mas os tecidos eram cortados pelas senhoras.
99 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 215. 100 Idem. Ibidem. p. 232. 101 Idem. Ibidem.p. 216-218.
53
Mulheres escravas usavam saia longa, blusa e lenço nos cabelos; os homens escravos,
calça, camisa branca e chapéu, que podia ser confeccionado de casca de milho ou palha. Nos
dias frios, usava-se uma jaqueta que era fornecida uma vez a cada dois anos. As crianças
menores faziam uso de camisas compridas até a altura da coxa. Sapatos eram adereços que
não faziam parte do vestuário escravo, uma forma de distinção social, como já mencionado
em diversos trabalhos historiográficos. Alguns escravos mais afortunados podiam aumentar o
número de suas vestimentas recebendo roupas usadas de seu senhor ou por meio de doações.
Pouca vestimenta em dias frios ou chuvosos podia aumentar as chances de uma gripe ou
pneumonia, esta muito presente nos registros de óbitos.
Os fazendeiros tinham a opção por vestimentas mais simples e cômodas para o uso
doméstico, entre os seus pares ou, para garantir o status, um vestuário mais informal e não tão
confortável, seguindo os moldes europeus. O guarda-roupa dos fazendeiros era diferente dos
seus escravos, obedecendo a padrões que seu status social permitia. Destarte, em seu
cotidiano, utilizavam “calças de brim de linho branco e camisas de algodão ou de linho. Suas
roupas eram talhadas com mais cuidado.”102 As botas surgiam quando eles iam fiscalizar seus
escravos e feitores no campo, e eram trocadas por chinelos de pano quando os observavam de
sua varanda. Um chapéu de palha de aba larga era utilizado para proteger do sol quente
durante as inspeções. Em situações informais usavam “lãs inglesas, colarinho alto engomado,
punhos e peitilho postiços e um chapéu-coco preto”103, trajes geralmente utilizados nas visitas
à capital, mesmo durante o verão. As mulheres pertencentes a famílias de fazendeiros,
também utilizavam roupas diferentes, de acordo com a situação. Se na primeira metade do
século XIX, as mulheres da sociedade de Vassouras utilizavam roupas costuradas por
escravas, a partir da segunda metade e do crescimento econômico das fazendas, procuram na
capital modelos e matérias-primas, influenciadas pela moda francesa.
102 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 219. 103Idem. Ibidem. p. 220.
54
1.9 – Resistências escravas e mortes.
O bom funcionamento da fazenda dependia em certa medida do bom trabalho
desempenhado pelos escravos. Era comum, entretanto, perdas econômicas devido a doenças,
mortes, rebeliões e fugas. A igreja, como instituição presente naquela sociedade, apresentava
um discurso, ao menos na área rural, na tentativa de amenizar as tensões existentes. Os
clérigos produziam uma fala, na qual o que estava em jogo não era exclusivamente temporal.
Produziam “estratégias adequadas a assegurar as condições econômicas e sociais da sua
própria reprodução social”. 104 E a partir de sua retórica, atendiam às necessidades de
senhores que desejavam uma escravaria obediente e produtiva, o que nem sempre ocorria.
Ainda assim, tal discurso trazendo bons resultados, poderia diminuir os castigos físicos, que
em muitos casos levavam a prejuízos, fossem por fugas, deficiências físicas ou morte.
Em grande medida, o escravo era visto como um ser inferior física e intelectualmente,
sendo, por isso, conduzido a praticar as tarefas mais simples. Mas devemos considerar as
estratégias utilizadas por escravos para melhor viver dentro dessa sociedade. Muitos
historiadores sublinham a maneira mais prática que se conduzia ou se tentava manter a ordem:
a ideologia da violência. A chibata e os castigos funcionavam de forma imediata para o
cumprimento de ordens e bom funcionamento da economia. A questão do paternalismo,
apontado por Gilberto Freyre105, como uma forma de manutenção da ordem que aproximava a
Casa-Grande da Senzala, também fora lida como não significando “relações escravistas
harmoniosas” nem mesmo como “ausência de contradição; era estratégia de controle, meio de
dominar de forma sutil e eficiente” 106. Seguindo essa estratégia de análise, Hebe Mattos
aponta que o código paternalista representava uma forma de dominação pessoalizada.
O cativo é considerado nesta análise um bem “semovente”, contraposto às raízes e
bens imóveis. Trata-se de categoria jurídica que remontava ao direito romano e tinha grande
segmento nas ordenações Filipinas, bem como na legislação e no direito brasileiros do século
XIX. Qualificado desta forma, num conjunto de bens onde o gado era também mencionado,
não pode ser considerado “coisa”. A aproximação entre escravo e gado está condicionada ao
104 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 10ª. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 76. 105 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 43ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2001. 106 REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a Resistência negra no Brasil Escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 45.
55
valor de uso de ambos ao trabalho, que era percebido pelos proprietários atendendo as suas
necessidades nas fazendas de café.107
Mas o escravo não fora sempre, durante todo o tempo, vítima ou herói; possivelmente,
na maior parte do tempo, oscilava entre um e outro. 108 Refutando a historiografia que
descrevia o escravo em um dos dois extremos, Eduardo Silva e João José Reis, propõem uma
análise onde ele é tido como um ser inconstante, se tornando acomodado num dia ou rebelde
no outro. Isto porque o cativo ainda considerado “coisa” estava inserido numa sociedade
complexa, onde valores impostos perpassavam pela sua compreensão do cotidiano. Essa
compreensão poderia afetar os laços amalgamados no interior da sociedade escravista, pois
como parte ativa da sociedade, eles manipulavam para conquistar o que desejavam. Mas os
cativos que rompiam os laços da escravidão e se tornavam libertos traziam outras questões
importantes. Nesse contexto, não eram mais vistos como propriedade de alguém, mas também
não eram considerados cidadãos livres, conquistavam, por meio da alforria, nas suas variadas
formas, uma condição associada à liberdade e a determinados direitos, a outros, não. Livre era
a condição associada ao nascimento.
Reis e Silva, ao tratarem do escravo, demonstram “a sua resistência permanente a ser
um mero objeto nas malhas do sistema”.109 A partir dessa tese, defendem a idéia de ser o
escravo capaz de negociações que poderiam ser bem, ou mal sucedidas. Essa percepção do
escravo sobre si mesmo é algo novo na historiografia, mas acreditamos que os argumentos
demonstrados pelos autores são consistentes. Afinal, sua visão a respeito de si mesmos e de
sua condição não poderia ser a mesma dos proprietários ou a do Estado. No caso do escravo, a
força de trabalho não o impedira de perceber as nuances do sistema, fato que poderia levar
alguns, como a história nos tem mostrado, a conflitos que chegaram ao rompimento. Este,
nem sempre deve ser pensado como apenas fuga. No campo simbólico,110 o romper é
percebido na forma dos enterros similares ao dos livres.
As resistências escravas em Vassouras se faziam notar pelos suicídios, homicídios e
fugas. Existiam quilombos, comunidades organizadas que podiam produzir seu próprio
107 Diccionario da Lingua Portugueza recopilado dos vocabularios impressos até agora, e nesta segunda edição emendado, e muito accrescentado por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813. 108SILVA, Eduardo, REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 7. 109 Idem. Ibidem. p. 8. 110 BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 27, 64-73.
56
alimento, os mais comuns: milho e feijão; ou, em alguns casos, roubar o necessário para a
alimentação nas fazendas próximas. Se os saques se tornavam freqüentes, as autoridades
locais eram chamadas para resolver o problema. A maior insurreição que acontecera em
Vassouras foi a de 1838, quando um grupo de cativos, organizado e munido de ferramentas
suficientes para montar uma fazenda, fugiu das senzalas para formar uma comunidade nas
matas vizinhas.111
O levante de 1838 foi iniciado por escravos que pertenciam ao capitão-mor Manuel
Francisco Xavier. Fugiram levando consigo provisões para iniciarem uma comunidade como
a descrita acima. Outros cativos que também se uniram a eles pertenciam a Paulo Gomes
Ribeiro de Avelar, um fazendeiro. O capitão-mor notificou o juiz de paz da freguesia do Pati
do Alferes, José Pinheiro de Souza Werneck, que oficiou o coronel chefe da Guarda Nacional,
Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, - Barão de Pati de Alferes-, desejoso de providências
urgentes. A força repressora reuniu 150 guardas nacionais, vários outros pedestres, lavradores
locais, agregados e feitores de fazendas próximas. A fuga de cativos, que poderiam ter
somado 400 homens e mulheres escravos, resultou numa perseguição e o principal líder foi
condenado à forca. Esta era uma forma de impor a autoridade senhorial e demonstrar a sanção
devida em casos semelhantes. 112
O levante escravo que mobilizou forças militares locais em grande quantidade de
homens, com a liderança de um grande fazendeiro e chefe da Guarda Nacional, foi derrotado,
mas não sem resistência. A desproporção bélica era evidente, mas os escravos, munidos de
algumas poucas espingardas e armas cortantes, enfrentaram a tropa bem armada. Sendo o
grupo derrotado, deixou a marca da possibilidade de fuga organizada, na qual os escravos
eram capazes de formar “uma fazenda” no meio da mata virgem. Entrementes, tal ação
repressora do Estado não colocou um ponto final nas insurreições escravas que continuaram a
ocorrer durante todo o século XIX.
A sociedade fazendeira de Vassouras no século XIX pode ser definida como dividida
entre escravos e livres, “em níveis bem demarcados de classe e hierarquia. A elite política,
social e econômica formava a liderança que as outras classes seguiam”.113 Essa sociedade
respeitava a riqueza e a origem social de seus indivíduos, a elite em sua maior parte, possuía
111 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 177-180. 112 GOMES, Flavio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, séculos XIX. Ed. rev. e. ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 146-147. 113 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 196.
57
as duas. Entretanto, o poder simbólico era utilizado para legitimar sua riqueza econômica e
domínio político, sendo manifesto nas formas de se vestir em vida bem como na morte, nos
rituais fúnebres, nas doações aos pobres e à igreja. A miscigenação pode ser percebida como
um dos fatores que levaram à maior complexidade da hierarquia social, donde surgiram
designações e qualificações múltiplas entre os livres. Tais demarcações sociais serão vistas
com mais detalhes no capítulo póstumo.
Os fatores destacados neste capítulo nos inserem no cotidiano da vida de escravos e
suas possíveis consequências relativas à morte, de forma que condição de vida está
intrinsecamente ligada à morte. O processo de produção, com muitas horas destinadas ao
trabalho no eito e no beneficiamento do café, os serões, má alimentação, higiene precária,
vestimentas impróprias para alguns períodos do ano e até mesmo as resistências em suas
diversas formas, foram cruciais para um elevado número de mortes. Contudo, ela não pode ser
vista como um fim: estava permeada de valores simbólicos que poderiam ajudar no controle
de cativos e homens pobres. Um simbolismo presente na cultura ibérica e na africana. Os
valores simbólicos associados à morte também eram utilizados por sacerdotes na manutenção
do poder. A morte no século XIX tem significados materiais e imateriais que fomentavam os
valores religiosos da complexa sociedade escravista.
58
Capítulo 2 - Considerações sobre a morte: construção social,
política e religiosa.
O ser humano nas diversas formas de pensar em cada período histórico desenvolveu
uma maneira singular de viabilizar conceitos e atitudes relativos à morte. O longo caminho
que se teceu até a sociedade do século XIX, demonstra a importância deste fato na vida de
indivíduos diferentes, segregados pela hierarquização social. A morte tomava grande espaço
entre os escravos, especialmente pelas precariedades de higiene, alimentação, vestimentas e
medicamentos como vimos no capítulo anterior. Esses fatores diferem muito das condições
atuais que elevam a expectativa de vida dos indivíduos em nossa sociedade. Desta forma,
pensar a morte de escravos no oitocentos é pensar a complexidade na qual viviam e que
perpassam questões econômicas, políticas, sociais e religiosas. Existe uma conexão entre o
modo de viver e o modo de morrer. 114 E partindo desse pressuposto, acreditamos ser possível
verificarmos alguns pontos fundamentais na vida dos escravos da região de Vassouras no
período analisado.
Tão antiga quanto a humanidade, a morte no mundo ocidental sofreu modificações
quanto ao modo de ser pensada pelos indivíduos e suas sociedades. As antigas civilizações
pré-cristãs temiam a proximidade dos mortos e procuravam mantê-los à distância. Um dos
objetivos de seus cultos funerários era impedir que os defuntos voltassem para perturbar os
vivos. Os dois mundos, dos vivos e dos mortos, deviam ser separados. “É por isso que em
Roma a Lei das Doze Tábuas proibia o enterro in urbe, no interior da cidade”.115 Eles
ocorriam fora das cidades, à beira das estradas. No período posterior essa relação foi
modificada.
A morte teve diversos significados nas diferentes regiões do mundo, influenciados
pela cultura religiosa, pelo poder econômico e político predominante em cada uma delas. Se
na antiguidade romana vida e morte estavam segregadas, no século XIII, estavam próximas.
No cotidiano, o cemitério era o local de encontro da sociedade. No período medieval a
extinção da vida significava libertar a alma, que estivera aprisionada ao corpo, considerado
114 ELIAS, Norbert. A solidão do moribundos, seguido de, Envelhecer e morrer.Tradução, Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2001. p. 71. 115 ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. p. 22.
59
pecaminoso e o motivo pelo qual o homem se distanciava de Deus. Este período histórico é
marcado por peculiaridades, no qual predominava o pensamento religioso, tendo por base a
Igreja Católica de Roma.
2.1 – Morte: o longo trajeto até o século XIX.
Entre a Idade Média e meados do século XVIII, houve uma predominância no
Ocidente católico de uma relação de proximidade entre vivos e mortos, que em certa medida,
permanecera até a primeira metade do século XIX. 116 Philippe Áries qualifica a morte deste
período de “domesticada”, onde vivos e moribundos estavam próximos, com seus rituais
aguardando o momento da “passagem”. A morte era esperada no leito por parentes, amigos e
vizinhos, figuras importantes na cerimônia pública preparada pelo próprio moribundo. As
crianças também participavam, tamanha era a familiaridade com a morte. 117
Nesse sentido, analisaremos a realidade francesa, predominantemente católica e
próxima da visão portuguesa, a qual nos permitirá cotejar as práticas relativas ao bem morrer
existentes na Vassouras Oitocentista. Do mesmo modo, avaliaremos a cultura religiosa
lusitana, que nos interessa de forma direta. Ela influenciara nas construções sobre a morte,
principalmente por ter sido durante o período imperial brasileiro a religião oficial. A visão
sobre a morte dos povos africanos que aqui desembarcaram estava presente no cotidiano não
apenas de escravos e libertos, mas também de alguns livres a partir do contato e troca entre os
diferentes atores históricos. E como parcela importante na construção do território, a cultura
africana incidiu nas reconstruções simbólicas em torno da morte na sociedade de Vassouras.
Nesse contexto, tentaremos na medida do possível, aferir as semelhanças e diferenças nas
culturas de bem morrer.
Mesmo tendo uma complexa relação entre vida e morte, a sociedade francesa medieval
temia a morte sem aviso prévio. Morrer repentinamente significava não estar devidamente
preparado, o que significava não ter recebido o perdão dos pecados. Temia-se também a
morte trágica, sem funeral e sepultura adequados. O Iluminismo trouxe à França a partir do
116 REIS, João José Reis. A Morte é uma Festa. ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 73. 117 ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. p. 21-22.
60
século XVIII uma nova atitude diante da morte e dos mortos, diminuindo a religiosidade em
seus ritos. Foram mudanças lentas no decurso do tempo histórico.118 O século XVIII trouxe
para a realidade francesa uma redefinição do espaço físico que deveria ser ocupado pelo
cemitério. Surge desta forma, tendo por base questões médicas e de saúde pública, a
necessidade de o cemitério ocupar um local fora das cidades, das igrejas e vilas119. No Rio de
Janeiro a questão médica surge no século seguinte e encontrou na religião e Irmandades um
obstáculo a ser derrubado. A concepção católica na França permanece no século XIX, apesar
dos discursos científicos sobre os males causados pelos miasmas à saúde dos indivíduos.
Portugal, antiga metrópole do Império do Brasil, era católico, religião que por herança
adquirimos. Os rituais de bem morrer se fizeram presentes, embora com transformações
devido às trocas culturais do mosaico que se formara a partir da colonização de novos
territórios. Portugal teve em 1835, uma lei que proibia enterros nas igrejas e indicava a
construção de cemitérios fora dos limites urbanos, estipulando um prazo de quatro anos para
que esta ordem fosse seguida. Também indicava que os cadáveres deveriam ser enterrados em
covas individuais. O que nos viabiliza pensar a existência de covas comuns ainda no século
XIX. Em se tratando de um país católico e mesmo existindo a possibilidade dos padres serem
destituídos de seus cargos, este fato promoveu uma tensão e o não cumprimento da lei. Sendo
assim, a população continuou enterrando seus mortos nas igrejas e cemitérios paroquiais. 120
O ocorrido demonstra a importância do cemitério alojado nos limites sagrados das igrejas, e o
vínculo simbólico entre igreja e bem morrer. A importância do cemitério para a realidade da
população portuguesa do século XIX está associada a sua cultura religiosa que suplanta até
mesmo noções sanitárias.
As autoridades portuguesas investiram na questão da necessidade sanitária, e em 1844
lançaram a lei de Saúde Pública. Esta lei criou uma rede de autoridades sanitárias que seriam
responsáveis por “vigiar as práticas de sepultamento, passar certidões de óbito e cobrar o
tributo de covato”.121 Houve resistência da população, especialmente da rural. Mulheres
foram presas e as tensões sociais, numerosas. Os enterros nas igrejas continuaram na segunda
metade do século XIX, ainda que de forma decadente. Na Bahia em 1836, houve uma revolta
118 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991. p. 74. 119 Idem, Ibidem. p. 75. 120 Idem, Ibidem.p. 85. 121 Idem, Ibidem. p. 85.
61
contra um cemitério conhecido como “Cemiterada,” analisada por João José Reis a qual
faremos menção no capítulo IV.
No século XIX, a morte no Brasil estava agregada a valores diversos devido à
formação social que se iniciara com a colonização, como suposto acima. A junção de vários
povos permitiu uma complexidade cultural que influenciava direta ou indiretamente a cultura
da sociedade brasileira oitocentista. As tradições africanas e portuguesas, ambas presentes em
Vassouras, defendiam a preparação para a morte e para tanto, necessitava-se de tempo. Assim
como na França, morrer repentinamente para estas culturas era um problema. Devido a este
pensamento, “em ambas as tradições aconteciam cerimônias de despedida, vigílias durante as
quais se comia e bebia, com a presença de sacerdotes, familiares e membros da comunidade”. 122
Os contatos religiosos entre Portugal e territórios africanos são anteriores ao processo
da criação da sociedade escravista na América portuguesa. Houve uma tentativa do governo
português em cristianizar povos africanos, convertendo o rei do estado Congo ao cristianismo.
Tal prática fora abandonada a partir do ano de 1575 devido ao incremento e o sucesso da
atividade do tráfico de escravos africanos, mormente a grande demanda dessa mão-de-obra
para atender aos desafios de produção na colônia americana. Desta forma, houve um
desinteresse de Portugal em formar um estado cristão na África. 123 Acreditamos ser um fato
contraditório, tendo em vista que os escravos deveriam ser batizados antes de saírem dos
portos africanos. Provavelmente para atender a necessidade dos proprietários na manutenção
da ordem.
Na África e também em Portugal, o número de vivos era importante nos rituais de
passagem, tornando este momento de transição para o além, segura, definitiva, funcionando
como um tipo de prevenção para não serem atormentados por almas insatisfeitas.
Considerando que havia uma proximidade entre as duas culturas, não podemos deixar de levar
em conta que a nova condição jurídica de africanos poderia romper inicialmente com práticas
e costumes funerários antigos. Contudo, algumas questões surgem. Os indivíduos tornados
escravos, teriam direito a um enterro no modelo de seus costumes trazidos da África? Ou por
meio do diálogo com a religião católica, que em alguns casos ocorria ainda em território
africano, desejavam um enterro nos padrões católicos? Os escravos que rompiam os laços da
escravidão, seguiam os padrões sociais religiosos de bem morrer do Império do Brasil? As
122 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 90. 123 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. Tradução James Amado. São Paulo: Brasilienese, 2003. p. 29.
62
fontes oficiais não mencionariam tais fatos diretamente. Por isso devemos ter uma atenção às
entrelinhas. Estas são questões que norteiam o capítulo quatro na tentativa de entendermos as
relações de poder presentes em tais atitudes.
A tradição africana dava maior importância ao culto dos mortos do que a portuguesa.
João José Reis nos informa que, “entre os angolanos os espíritos ancestrais chegavam mesmo
a influir mais no dia-a-dia do que as próprias divindades” 124 ; ou seja, na África, os mortos
não estavam dissociados dos vivos.125 Os africanos apresentavam meios rituais mais
complexos de comunicação com os mortos se comparados aos portugueses. A tradição
católica se preocupava na salvação de seus mortos, sendo este um dos motivos de apreensão
com o número de missas e orações a ser rezado após a morte. Estas encomendadas em
testamentos, muito antes do indivíduo estar perto do seu momento final.
As diferentes atitudes diante da morte e da vida além-túmulo entre africanos e
portugueses podia ser notada no controle sobre os mortos. Os africanos conseguiam o melhor
desempenho nesta questão. As semelhanças se estendiam na crença de que homens bons e
maus teriam destinos diferentes após o fenecer. Na cultura religiosa portuguesa católica,
existia o Inferno, o Purgatório e o Céu. O destino da alma estava condicionado ao Juízo Final,
onde dois grupos eram formados: os eleitos e os condenados. 126 O purgatório era a opção
intermediária e temporária e foi construído aproximadamente entre os séculos XII e XIII. Este
espaço e tempo foram formulados como alternativa para os que tinham pecados veniais.
Consistia em uma possibilidade de reabilitação, caso não fosse possível reverter a situação de
pecador em vida. A purgação dos pecados pode ser pensada como probabilidade de resgate
dos que fossem beneficiados pelo Purgatório. Para isso a atenção dos vivos aos seus entes
falecidos era fundamental, uma vez que a intercessão daqueles ajudava no fim da pena do
condenado, que alcançaria então o Paraíso.
Esta atenção dos vivos se convertia em missas e orações que se estendiam num
dilatado espaço temporal. As missas tinham um papel importante nas cerimônias fúnebres e
por isso foram regulamentadas pelas Constituições primeiras em 1707. Serviam para diminuir
o tempo no Purgatório, ou como menciona João Reis, “acrescentar à glória dos que já se
124 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 90. 125 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. Tradição James Amado. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 28. 126RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p. 151.
63
encontravam no Paraíso”.127 Como eram pagas, compunham a economia material e simbólica
da Igreja. Até a primeira metade do século XIX, as inumações eram realizadas no interior de
seus prédios, local onde as missas eram cumpridas, viabilizando a proximidade entre mortos e
vivos.
Os mortos mais abastados deixavam em testamento uma quantia significativa que
pudesse garantir por mais tempo a devida atenção a sua alma. A igreja, ao menos em
Vassouras, também registrava se o morto deixava testamento, como no caso de José Thomas
falecido em 9 de setembro de 1850, viúvo e natural de Minas. O medo do que os esperaria do
“outro lado”, permitia um controle dessa instituição sobre as questões do bem morrer.
Garantindo para si um lugar de destaque no controle social por meio do poder simbólico
representado nos ritos, rituais, adereços e local de sepultamento, que aproximava vivos e
mortos. Na concepção cristã-ocidental, o medo está relacionado à possibilidade de viver
eternamente no Inferno, representação da punição além-túmulo.
Essa proximidade permitia a manutenção das relações de poder da instituição
responsável pelo culto de bem morrer, a Igreja. A contigüidade entre os dois mundos era
articulada por ela em seus espaços, considerados sagrados. Segundo Claudia Rodrigues, a
doutrina Católica estaria “mais preocupada com a salvação do que com o culto dos mortos”. 128 E para viver entre Deus, os anjos e santos, deveria o homem seguir o que ela ordenava em
vida e também na morte.
A diversidade étnica existente no continente africano, bem como os diferentes
costumes e tradições, compunham um mosaico denso que foram transplantados em certa
medida a partir do comércio transatlântico. O encontro de diferentes culturas permitiu a
construção e reconstrução das concepções religiosas e de bem morrer pelos negros, africanos
ou crioulos. A maioria dos africanos trazidos para a região do Rio de Janeiro e daí para a
região do Vale Paraíba Fluminense entre os séculos XVII e XIX, era de língua banto,
especificamente indivíduos da região Congo / Angola.
A viagem de um continente a outro por meio do oceano, era simbolicamente
representado como a passagem da vida para a morte pelos indivíduos que compartilhavam o
mesmo conjunto simbólico e cultural banto. A água tinha um simbolismo forte para esses
povos de forma que a água dos mares, dos rios ou uma superfície refletiva era a representação
127 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 205. 128 RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p. 154-155.
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simbólica da travessia da Kalunga. Esta denotava a passagem da vida para a morte e o
renascer após o fim da vida.129 Para os bantos, morrer era uma passagem, mas só fazia sentido
se fosse na velhice. Morrer jovem, sem filhos ou de forma brutal (suicídio, assassinato, ações
diretas da natureza) tinha um significado negativo, era considerado má sorte. 130
Entre os bantos, a morte prematura era associada à ações mágicas, de forma que
quando um ente falecia, a família procurava um adivinho para saber a origem do mal, este
geralmente associado a um feiticeiro. O culpado era indicado pelo próprio defunto que
apontava com um gesto brusco seu assassino, por intermédio de um adivinho solicitado para
ajudar no caso. Aquele que responderia pelo infortúnio, na maioria das vezes era um inimigo
da tribo.131 Tal preocupação em saber a causa ou quem a causou, demonstra a não aceitação
de uma morte antecipada. Os culpados eram condenados a perda da vida ou a escravidão. Se a
sanção fosse se tornar escravo, o indivíduo seria vendido.
Destarte estes rituais podem ser associados à preocupação em garantir que o morto
fizesse a passagem, cessando o vínculo entre este e a sociedade. Os mesmos são importantes
para assegurar a continuidade da sociedade, pois se bem feitos, garantiriam boa colheita, um
futuro melhor e a preservação da ancestralidade. A morte nesse sentido, mais que uma
passagem, assegurava a sobrevivência do grupo, fosse pelo reencontro com os antepassados,
fosse pela certeza do alimento em abundância. 132 Entrementes, só recebiam os rituais
fúnebres, os indivíduos livres e com um bom comportamento social, uma maneira
possivelmente de manutenção de hábitos e costumes desejáveis.
O culto ioruba mencionado por José Reis é destacado como o mais complexo, embora
o autor sublinhe que a escatologia africana variava de um povo para outro. Na cultura ioruba,
existia dois além-mundos ou Orun. O Orun Rere, Orun Funfun ou Orun Baba Eni, seria o
Bom Orun, Orun Branco ou Orun dos Nossos Pais. O mundo conhecido por Orun ruim e
Orun de Cacos de Vasos de Barro era chamado de Orun Burubu ou Buruku e Orun Apadi.
Além dessas duas possibilidades, os mortos poderiam “penar” em lugares específicos da terra,
reencarnar-se em pessoas ou ainda metamorfosear-se em animais. Diferentemente dos
129RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p. 156. 130 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 164. 131 Idem, Ibidem. p. 165. 132Idem, Ibidem. p. 166.
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portugueses, os africanos morriam para reencontrar seus ancestrais. Estes por muitas vezes
retornavam reencarnados. 133
A ancestralidade é um fator importante presente na cultura africana e está intimamente
relacionada às questões do “bem morrer”. Se falecer significa reencontrar um ancestral, não
existiria inicialmente um temor, decorrendo daí o ritual festivo nos cortejos fúnebres. Para os
africanos que foram trazidos de sua terra e que detinham alguma memória em relação à vida
livre de tempos pretéritos, a morte significava um retorno, ainda que em outro plano de
existência. Representando uma “passagem”, ela é assim simbolizada por bantos e iorubas.
Essa proximidade pode ser identificada em meio a grande diversidade étnica dos povos
africanos.
No Brasil o contato entre as duas culturas, permitiu aos africanos - apesar de manterem
algumas de suas atitudes diante do fenecer -, incluir algumas e recriar outras formas de “bem
morrer”. Reis sublinha que embora houvesse contato entre a cultura da morte africana e a
portuguesa, o que prevaleceu entre os “brasileiros natos”, fossem crioulos, brancos ou
mestiços, foi o modelo funerário ibérico, presente nos assentos dos livros de óbitos de livres e
de escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. João José Reis
destaca que era a “morte marcada por uma extraordinária mobilização ritual, coerente com um
catolicismo que enfatizava as manifestações exteriores de religiosidade: a pompa, as
procissões festivas, a decoração elaborada dos templos”. 134 Tal mobilização permitia uma
outra vida confortável, a vida além túmulo presente entre livres, libertos e escravos. Entre
estes, em menor proporção que aqueles.
O porto do Rio de Janeiro no século XIX apresenta um cenário distinto do apresentado
até aqui. O tratamento dispensado aos cativos mortos antes de serem vendidos para fazendas
de diversas capitanias, era enterrá-los no chamado cemitério dos pretos novos, onde seus
corpos eram colocados em covas rasas, à flor da terra, o que causava infortúnios aos
moradores vizinhos e aos transeuntes do Valongo135. O enterro de muitos corpos em uma
única cova, nos remete aos costumes franceses para os pobres, que neste caso, tinham seus
ossos transformados em ornamentação dos ossuários. Percebemos uma vez mais a
hierarquização social presente. Os escravos de acordo com sua inserção na sociedade
133 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 90 e 91. 134 Idem, Ibidem. p. 91. 135 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007.
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escravista brasileira, poderiam não ter acesso a um funeral nos moldes da religião dominante,
mesmo os que haviam sido batizados no continente africano. A diferenciação existente entre
os cativos já inseridos naquela sociedade se mostrava mais acentuada junto aos que mal
chegavam ao porto.
A crença de que rituais funerários são importantes para bem conduzir a alma do morto
e garantir o afastamento dele do mundo dos vivos, poderia garantir que escravos fossem
enterrados em solo sagrado. Ela também permitia acreditar que ao morrer, o indivíduo “passa
para o outro mundo feliz”136 podendo interceder pelos que ficam vivos, facilitando sua
incorporação, quando chegar o momento, na comunidade dos mortos. Nesse sentido, zelar
pelo bem morrer de um indivíduo, mesmo que este fosse escravo em vida, pode significar
alguns pontos positivos na hora de sua própria morte. Portanto, o local onde jazem os mortos
tem um significado importante, exercendo um poder simbólico com base na religião. Em
Vassouras, o cemitério era um local de disputas silenciosas, demarcando como já foi
mencionado, a hierarquização social na disposição das inumações.
2.2 – Ritos e Rituais Fúnebres
A morte é uma questão social, conceitos e rituais sobre a mesma, fazem parte de um
dos aspectos da socialização. As idéias e ritos comuns podem unir pessoas, mas se
divergentes, segregam grupos. 137 Em Vassouras percebe-se essa socialização na forma como
escravos e livres tentam assegurar para si, as formas de bem morrer. Entre os descendentes de
escravos, mesmo os mais pobres, nota-se uma aproximação com os brancos e grandes
proprietários, tal como vestes específicas para crianças e adultos, sacramentos e
acompanhamentos no caso das inumações em cemitérios.
A realidade de Vassouras no século XIX nos apresenta uma preocupação religiosa
com a morte, mesmo para os cativos, ainda que grande parte deles tivesse sido enterrada nos
cemitérios existentes em fazendas ou em cemitérios públicos na primeira metade do século.
Na maioria dos Registros de óbito de escravos entre os anos 1840 e 1880, os sacramentos são
136REIS. João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 90. 137 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de, Envelhecer e morrer. Tradução, Plínio Dentzlen. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 12.
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recorrentes. Este fato, não nos informa a religião dos escravos, sequer se ele tinha alguma.
Entretanto, o ritual católico de boa morte era exercido pelo seu proprietário ou pelo pároco.
As relações de poder existentes na sociedade escravistas, tensas e estratificadas, permitiriam
em certa medida ao cativo, o direito a uma morte nos moldes católicos.
O Batismo para a Igreja era o sacramento que abria ao indivíduo a possibilidade do
Paraíso, uma vez que o mesmo passava a ser “filho de Deus”. Era o primeiro, o que dava
início a vida religiosa. A Extrema-Unção era ministrada nos momentos finais. Os “ritos de
incorporação”, principalmente este, eram fornecidos no fim da vida de um indivíduo. Eles
podem ser definidos como dirigidos a propiciar a reunião do morto com aqueles que seguiram
antes. Existiam da mesma forma, os “ritos de separação”, rituais de segregação entre vivos e
mortos, sendo representados pela lavagem do cadáver ou queima de objetos pessoais.
Em muitas sociedades, na perspectiva de João José Reis, prevaleceu a noção de que a
realização de rituais funerários adequados é fundamental para a segurança de mortos e vivos. 138 Desta forma, não podemos pensar a morte como ato instantâneo, ela é um momento de
transição, de passagem como mencionado acima. Sendo um período de mudança, o senhor do
cativo morto deveria pensar em um bom enterro dentro de seus rituais, de suas crenças para
seus escravos. Afinal, em caso contrário poderia ser vítima daquele que talvez pudesse ter
sofrido em vida, castigos físicos por suas mãos ou ordens. Os senhores, na concepção da
Igreja, deveriam dispor de tempo e dinheiro para atender as almas de seus escravos.
Recomendava ela:
E porque hé allheyo da razão, e piedade Cristã, que os Senhores, que se servirão de seus escravos em vida, se esqueção delles em sua morte, lhes encomendamos muyto, que pelas almas de seus defuntos escravos mandem dizer missas, e pelo menos sejão obrigados a mandar dizer por cada um escravo, ou escrava que lhe morrer, sendo de quatorze annos para cima, a Missa de corpo presente, pela qual se dará a esmola costumada (c. 837). 139
A hora da morte do cativo em Vassouras poderia ser amenizada dentro dos preceitos
religiosos. As almas mais desamparadas recebiam a “encomendação” de seu cadáver e como
vimos acima, deveriam também ter Missa de corpo presente com a devida esmola. Desta
forma, tinha-se o cuidado com a alma e os recursos materiais necessários para sua
138 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 89. 139 Idem, Ibidem. p. 205-206.
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manutenção. As regras da Igreja garantiam ao enfermo batizado receber a comunhão e a
Extrema-Unção, esta podendo ser lida como um empurrão para fora do ciclo da vida.140 Se em
vida o escravo tivera pouco cuidado com o corpo ou alma, este poderia acontecer momentos
antes de sua morte, ao menos em relação ao seu espírito. Para a Igreja, o sacramento da
comunhão deveria ser ministrado ao doente somente se sua condição física fosse boa,
juntamente com a Extrema-Unção. Esta tinha um importante significado para a Igreja, pois
era o auxílio necessário na hora da morte devido às tentações do “inimigo” serem mais fortes
neste momento. Receber o sacramento da Unção antes da morte poderia significar o perdão
dos pecados cometidos em vida ou resultar na recuperação do moribundo, associada à vontade
de Deus nas mãos da igreja. 141
A Igreja, representada pelo pároco era a responsável por administrar tal sacramento,
demarcando desta forma, o poder sobre uma boa morte na concepção católica. Para tornar tal
momento imprescindível para todos aqueles que desejavam “descansar em paz”, tal rito
deveria ser acompanhado por uma procissão aos moldes da cultura religiosa ibérica. Ela é
chamada de procissão do Viático ou Nosso Pai, por conduzir a comunhão que seria dada ao
moribundo, antes da viagem para a eternidade e respeitava a condição econômica daquele que
morria. No Rio de Janeiro, a morte e seus rituais, era acompanhada de muito barulho, com
bandas de música, alamandas e lundus, pois aquele e não o silêncio representa o facilitador da
comunicação entre o homem e o sobrenatural. Entre os africanos o silêncio na hora da morte
significava má sorte.142
A Extrema-Unção, desta forma, tinha um papel fundamental no momento da passagem
e foi citada nas Constituições do arcebispado da Bahia (c. 200), tendo o seu ritual e a maneira
como deveria ser feita, minuciosamente descritas. Para receber este sacramento o doente
deveria avisar ao padre responsável da sua paróquia por meio de familiares ou irmandade. 143 .
Mesmo os que morriam na Santa Casa de Misericórdia recebiam pelas mãos do capelão o
sacramento final:
Aos dez do mez de Junho de mil oito centos e setenta e cinco, na Santa Casa de Misericordia d’esta Cidade, falleceu da vida presente, em idade de quarenta e oito annos, o Chim Catholico = Antonio Sabá, natural de Cantão, solteiro, branco; falleceu de Cyrrhose do fígado Ascite:
140 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.. p. 103. 141Idem . Ibidem. p. 103. 142 Idem, Ibidem. p. 105. 143 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 44.
69
falleceu depois de ter recebido o Sacramento da Extremaunção, foi encommendado pelo Capellão da mesma Casa e sepultado no Cemitério d’esta Cidade. E para constar mandei fazer este assento por mim assignado. 144
Existia um diferencial neste rito caso o enfermo fosse escravo. Ele deveria memorizar
uma fórmula afirmando crer em Deus, não deixando dúvidas de que seu coração amava
somente a Ele. Para o cativo receber o sacramento da Extrema-Unção estava condicionado à
obediência que poderia garantir ao proprietário, melhor atitude dos mesmos, uma estratégia de
manutenção de poder. A existência de um ritual diferenciado para estes indivíduos, deveria
garantir a sua fé na igreja. A complexidade religiosa que se formara como mencionamos
acima, pode ter garantido a permanência de cultos africanos, uma vez que alguns proprietários
permitiam a realização de seus credos aos domingos. Pressupondo assim, a permanência de
rituais de origem africana na vida e morte de escravos e seus descendentes.
Receber o sacramento no momento da morte poderia garantir uma eternidade
tranqüila, ou até mesmo reverter o quadro de saúde, permitindo que o moribundo tivesse mais
alguns anos de vida. No caso do escravo, era responsabilidade do senhor ou do padre prepará-
lo para a morte. Como descrito acima, ele deveria “decorar uma fórmula”, para precaver-se
contra os “ídolos” africanos. O quinto sacramento da santa Igreja, era fundamental pela ajuda
que prestava aos fiéis na hora da morte:
He o Sacramento da Extrema Unçaõ o quinto dos da Santa Madre Igreja, de grande utilidade para os fieis, iftituido por Chifto Senhor noffo, como definio Sagrado Concilio Tridentino, para nos dar efpecial ajuda, conforto, & auxilio na hora da morte, em que as tentaçoes no noffo commum inimigo coftumaõ fer mais fortes, & perigofas, fabendo que tem pouco tempo para nos tentar.145
O proprietário de escravos era responsável pela vida e morte de seu cativo. Assim,
supomos a necessidade do sacramento final para alguns cativos como forma de salvação. Nem
todos os óbitos apresentam referências sacramentais, mas os que o fazem citam a “Extrema-
Unção”, penitência, confissão, “todos”, ungido, batismo, “pelo seu dono”. A morte tinha não
só no senhor a marca da dominação, mas principalmente na Igreja, isso porque, o doente que
144 2º. Livro de Óbito das pessoas livres. f. 45. CDH. 145 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 46.
70
negasse receber a Extrema-Unção, não poderia ser enterrado em solo sagrado.146 Nos registros
analisados, poucos cativos foram sepultados de acordo com este costume.
O domínio senhorial facilmente percebido durante a vida do escravo, fica evidente nas
entrelinhas dos assentos de óbito. Se para o cativo a vida no eito, nas fazendas de café de
Vassouras era um martírio, a morte não apresenta nada dessemelhante. A chibata, a má
alimentação, as doenças, o tronco e as constantes ameaças eram os infortúnios mais comuns
para os cativos e estavam sensivelmente relacionadas às causas mortis. Morrer poderia ou não
significar liberdade, nesse caso, isso seria definido pela sua escolha na hora da morte em
aceitar ou rejeitar o sacramento da Igreja Católica, o que não afastava a existência de rituais
da cultura africana.
Neste contexto, percebemos o desejo dos proprietário em fazer ministrar os rituais de
sua religião e não a do cativo. Poderia também representar a tentativa do próprio senhor,
dentro das prerrogativas de sua crença, a sua própria absolvição, dos seus possíveis “pecados”
cometidos em vida. De forma que alguns proprietários alforriavam escravos em Testamentos,
este simbolicamente poderia representar uma preparação para a morte. A igreja desta maneira
pode ser pensada como articuladora nesse mecanismo de controle social, legitimando o poder
senhorial.
2.3 - Resistências:
Aos doze dias do mez de Novembro do anno de mil oito centos setenta e oito, n’esta Freguesia de N. Senhora da Conceição de Vassouras, falleceu da vida presente, de quebradura, Antonio Alves de Moura, branco, solteiro, de cincoenta e nove annos de idade, natural de Portugal; não recebeu os Sacramentos por não procurarem, foi encommendado e sepultado no Cemitério d’esta Cidade e para constar, mande fazer este assento que assigno. 147
Em 1868, data do assento citado acima, não havia mais enterros ad sanctus, entretanto,
a prática de receber os sacramentos finais ainda exercia forte poder simbólico. Instituído por
Cristo, servia para confortar e auxiliar na hora da morte. O discurso da igreja sobre a sua
importância, tentava garantir seu poder após mudanças significativas, principalmente quanto
ao fim das inumações em solo sagrado nos anos posteriores a 1850.
146 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 107. 147 2º Livro de Óbito de Livres. fls. 86v e 87. CDH.
71
Contudo, havia os que provavelmente não aceitavam a idéia dominante e preferiam
não receber os sacramentos da Igreja. Os motivos, infelizmente não sabemos. Não apenas
negros e seus descendentes faziam essa escolha como também brancos portugueses. As
resistências no campo religioso estavam presentes nas diversas etnias. Receber os
sacramentos era algo que a igreja ordenava para garantir uma boa morte e a certeza de poder
fazer parte do Paraíso. Quando esta prática não ocorria, o pároco responsável o registrava no
assento, se eximindo da culpa de não proceder segundo ordens superiores. A resistência em
relação à religião do “outro”, pode ser vista entre os descendentes dos africanos, como no
caso da parda Joanna Francisca Ribeiro:
Ao primeiro do mez Dezembro do anno de mil oito centos setenta e oito, nesta Freguesia de N. Senhora da Conceição de Vassouras, falleceu da vida presente, de Phthysica, sem Sacramentos por não procurarem, Joanna Francisca Ribeiro, parda, de dezenove annos de idade, solteira, foi encommendada e sepultada no Cemiterio d’esta Cidade: e, para constar, mandei fazer este assento por mim assignado. 148
Tal atitude poderia mais facilmente ser associada aos africanos, pela íntima relação
com a sua cultura, ou aos seus filhos, como o caso de Caêtana, preta liberta:
Aos vinte e sete dias do mez de Agosto do anno de mil oito centos setenta e oito, nesta Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, falleceu da vida presente, de Phthysica Pulmonar, sem Sacramentos por não procurarem, Caêtana, liberta, preta, de dez annos de idade, filha natural de Arminda escrava do Capitão Antonio Caetano da Rocha Braga; natural do Campo dos Goytacases, foi vestida de virgem, encommendada e sepultada no Cemiterio d’esta Cidade: e, para constar, mandei fazer este assento que assigno. 149
Falecida aos 10 anos de idade em 1878, foi vestida de virgem. Nascida provavelmente
3 anos antes da Lei do Ventre Livre, teve acesso a sua liberdade. Contudo, sua mãe Arminda,
não tivera a mesma sorte até a data de seu óbito. Sua condição escrava e o nome de seu
proprietário, o Capitão Antonio Caetano da Rocha Braga, ficaram registrados no documento
paroquial. Caêtana não recebeu os sacramentos e segundo nos informa a fonte, “por não
procurarem”. Este gesto pode significar resistência, no sentido de que apenas os recebiam
148 2º. Livro de Óbitos das pessoas Livres. fl. 87. CDH. 149 Idem . Ibidem fl. 85.
72
aqueles que notificavam a Igreja. Considerando todas as possíveis dificuldades de
mobilidade, muitos ex-escravos e escravos tiveram acesso aos últimos sacramentos.
Mas a complexidade que se forma a partir da intensificação do tráfico e da entrada de
muitos africanos em Vassouras com a demanda pelo café brasileiro, permite uma reconstrução
cultural e religiosa para descendentes de africanos e portugueses. Não receber os sacramentos
católicos é uma forma de resistir a religião oficial, não evidenciada em todos os óbitos. O que
chama a atenção é o fato de ainda assim, eles terem recebido um registro no Livro de Óbitos
da Paróquia. Não procurar os últimos sacramentos representa um forte significado. A maioria
dos descendentes de africanos que tiveram um assento de óbito da Igreja buscava o modelo
católico de bem morrer, com mortuários, missas e sacramentos. Sabemos que muitos
africanos e seus descendentes, não abandonavam suas práticas religiosas, ministradas antes do
enterro católico. A importância dos sacramentos para a igreja tinha um simbolismo muito
grande, uma vez que não apenas os que não recorriam a eles eram marcados, mas também os
que não os recebiam devido a uma morte rápida como no caso a seguir:
Aos doze dias do mez de Março do anno de mil oito centos setenta e seis, nêsta Freguesia de N Senhora da Conceição de Vassouras, falleceu da vida presente, de um ataque, sem Sacramentos por falta de tempo, Maria Teixeira Lopes, parda, de cincoenta e tres annos de idade, viúva de Francisco das Chagas de Assis, natural da Conceição da Barra, em Minas: foi vestida de preto encommendada e sepultada no Cemitério d’esta Cidade: e para constar, mandei fazer este assento por mim assignado. 150
O caso mencionado acima se distancia dos exemplos anteriores. Na verdade, ratifica o
fato de que havia indivíduos que não desejavam receber os sacramentos como mandava a
Santa Igreja, percebida na diferença da descrição do padre. Nesta última citação, os ritos
finais não foram possíveis porque a morte ocorrera repentinamente, não havendo tempo
necessário para se chamar o padre. Provavelmente, aqui temos um modelo do medo da não
preparação para a morte como ocorria no século XVIII. Os Sacramentos podiam garantir uma
passagem para o Paraíso, pois perdoava os pecados leves pendentes do moribundo, sem eles o
morto poderia permanecer no Purgatório.
Alguns escravos têm no óbito a descrição “todos em vida” para tratar dos sacramentos.
O que nos faz pressupor uma vida de acordo com os preceitos católicos. É arriscado pensar
150 2º. Livro de Óbitos das pessoas livres. fl. 59v. CDH.
73
desta forma, principalmente não tendo fontes seguras para garantir tal fato, mas estes dados
não podem deixar de ser mencionados. Também existiram os que recebiam a “missa” na hora
da morte, como foi o caso de Ignácio falecido em 1870 com 26 anos,151 demonstrando mais
uma vez a cultura católica dentre os escravos.
2.4 – Crianças, rituais e relações familiares.
Da mesma forma ficou registrado, a preocupação com a alma das crianças. Em alguns
casos ela é “encomendada”, talvez fosse necessário tal rito, mesmo ela sendo inocente para
garantir um lugar no “paraíso”. Elas não recebiam o sacramento da Extrema-Unção por ordem
da Igreja, assim como os excomungados, doentes mentais e os que entraram em batalha em
alto mar. 152 Nos assentos de crianças escravas, como encontrado nos adultos, consta o nome
de seu proprietário.
Em alguns casos, a criança é enterrada sem um nome, como no caso da filha de Isabel,
escrava de Jeremias Lemos de Miranda, que morreu com um ano e meio.153 A mortalidade
infantil era recorrente e em alguns casos para além da questão da perda de um filho ainda
considerado ingênuo, uma mãe escrava poderia enterrar dois ao mesmo tempo, como no caso
de Constância, pertencente a Francisco da Silveira Dutra. Ela enterrou seus filhos gêmeos,
Manoel e Maria, 154 ambos declarados pardos de apenas dois dias em maio de 1858. Polucena 155 é um dos poucos casos encontrados, em que uma cativa morre aos 14 anos e tem o nome
de sua mãe, Josefa, em seu registro. Era propriedade de Lodovina Maria da Conceição e
faleceu em 30 de março de 1860. Não recebeu sacramento e foi enterrada no Cemitério da
Cidade. Infelizmente, não sabemos qual foi a causa mortis. Outro caso que foge a regra é o de
Cândida crioula156 que faleceu em 20 de novembro de 1860 com trinta anos de idade e teve o
151 2º. Livro de Óbito de pessoas escravas. fl. 8. CDH. 152 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 49. 153 1º. Livro de Óbito das pessoas escravas. fl. 250. CDH. 154Idem . Ibidem. fl. 246. 155 Idem . Ibidem. fl. 271. 156 Idem . Ibidem. fl. 278.
74
nome de sua mãe, Odete, declarado e não recebeu sacramento. Nos dois casos citados, não
foi feita menção ao nome do pai.
2.5 - Número dos Mortos
Na primeira metade do século XIX no Rio de Janeiro, em média, quase dois mil e
oitocentos escravos eram enterrados por ano entre 1840 e 1849. 157 No caso de Vassouras, os
números nos apontam menor quantitativo de escravos para a região do Vale em comparação
com a capital do império tendo em vista as devidas proporções. Em 1840 os indivíduos
escravos totalizavam 14.333 e apenas 14 tiveram um assento no livro de óbito da paróquia.
Devemos considerar que poucos escravos puderam ter um registro de morte.
A primeira distinção social na morte era entre pessoas livres e escravas. Baseados
nessa observação, produzimos a tabela 8, quantificando todos os indivíduos por ano e por
gênero. Com ela visualizamos o número de mortos a cada ano e sua incidência na população
em geral. O registro oficial nos permite uma amostra dos 6.722 indivíduos mortos para o
período estudado. Analisando mais atentamente percebemos algumas diversidades. Os dados
do livro paroquial demonstram que os homens eram a maioria dos mortos: 4.070 (60.55%).
As mulheres um pouco mais que a metade: 2.647 (39.38%), apenas 5 (0.07%) pessoas não
tiveram o gênero identificado. Contudo, analisando os diferentes grupos sociais percebemos
as diferenças que foram implementadas com o aumento da produção cafeeira e
conseqüentemente do número de escravos e seus descendentes em Vassouras.
Tabela 8 - Número total de mortes na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, 1840-1880. Conforme a
divisão constante nos livros.
Pessoas Livres Pessoas Escravas Ano Homem Mulher Total Homem Mulher Total
Soma Geral
Qtde %* Qtde %* Qtde %* Qtde %* Qtde %* Qtde %* Qtde %* 1840 12 0.34 13 0.36 25 0.37 8 0.25 6 0.19 14 0.20 39 0.58 1841 30 0.84 20 0.56 50 0.74 44 1.39 28 0.88 72 1.07 122 1.81 1842 20 0.56 19 0.53 39 0.58 26 0.82 17 0.54 43 0.64 82 1.22 1843 19 0.53 25 0.70 44 0.65 35 1.10 17 0.54 52 0.77 96 1.43 1844 25 0.70 28 0.79 53 0.79 28 0.88 20 0.63 48 0.71 101 1.50 1845 24 0.67 7 0.20 31 0.46 27 0.85 6 0.19 33 0.49 64 0.95 1846 27 0.76 23 064 50 0.74 28 0.88 16 0.50 44 0.65 94 1.40 1847 19 0.53 22 0.62 41 0.60 36 1.13 19 0.60 55 0.82 96 1.43
157 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro(1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 144.
75
1848 34 0.95 26 0.73 60 0.90 61 1.93 25 0.79 86 1.28 146 2.17 1849 22 0.62 17 0.47 39 0.58 63 1.99 31 0.98 94 1.40 133 1.98 1850 39 1.09 33 0.92 72 1.07 76 2.40 26 0.82 102 1.52 174 2.59 1851 36 1.01 21 0.59 57 0.85 66 2.09 27 0.85 93 1.38 150 2.23 1852 56 1.57 39 1.09 95 1.41 61 1.93 44 1.39 105 1.56 200 2.97 1853 35 0.98 32 0.90 67 0.99 50 1.58 46 1.45 96 1.43 163 2.42 1854 53 1.49 47 1.32 100 1.49 51 1.61 26 0.82 77 1.14 177 2.63 1855 66 1.85 32 0.89 98 1.46 63 1.99 32 1.01 95 1.41 193 2.87 1856 49 1.37 29 0.81 78 1.16 54 1.71 28 0.88 82 1.22 160 2.38 1857 71 1.99 45 1.26 116 1.72 55 1.74 40 1.26 95 1.41 211 3.14 1858 64 1.80 39 1.09 103 1.53 58 1.84 33 1.04 91 1.35 194 2.89 1859 73 2.05 58 1.63 131 1.94 70 2.21 42 1.33 112 1.67 243 3.61 1860 71 1.99 46 1.29 117 1.74 71 2.25 48 1.52 119 1.77 236 3.51 1861 55 1.54 38 1.07 93 1.38 40 1.26 26 0.82 66 0.98 159 2.36 1862 53 1.49 38 1.07 91 1.35 46 1.45 31 0.98 77 1.14 168 2.50 1863 55 1.54 24 0.67 79 1.17 47 1.49 23 0.73 70 1.04 149 2.22 1864 49 1.37 28 0.79 77 1.14 40 1.26 27 0.85 67 0.99 144 2.14 1865 72 2.02 49 1.37 121 1.80 57 1.80 29 0.92 86 1.28 207 3.08 1866 72 2.02 56 1.57 128 1.90 77 2.44 35 1.11 112 1.67 240 3.57 1867 63 1.77 40 1.12 103 1.53 88 2.78 41 1.30 129 1.92 232 3.45 1868 50 1.40 36 1.01 86 1.28 73 2.31 48 1.52 121 1.80 207 3.08 1869 36 1.01 21 0.59 57 0.85 79 2.50 55 1.74 134 1.99 191 2.84 1870 37 1.04 27 0.75 64 0.95 69 2.18 45 1.42 114 1.69 178 2.65 1871 44 1.24 38 1.07 82 1.22 19 0.60 24 ,76 43 0.64 125 1.85 1872 25 0.70 42 1.17 67 0.99 69 2.18 45 1.42 114 1.69 181 2.69 1873 55 1.54 37 1.04 92 1.36 45 1.42 29 0.92 74 1.10 166 2.47 1874 42 1.18 29 0.81 71 1.06 40 1.27 23 0.73 63 0.94 134 1.99 1875 66 1.82 63 1.77 129 1.92 33 1.04 17 0.53 50 0.74 179 2.66 1876 111 3.12 62 1.74 173 2.57 39 1.23 12 0.38 51 0.76 224 3.33 1877 74 2.08 52 1.46 126 1.87 22 0.70 14 0.44 36 0.53 162 2.41 1878 81 2.27 67 1.88 148 2.20 30 0.95 18 0.56 48 0.71 196 2.91 1879 70 1.96 72 2.02 142 2.11 32 1.01 17 0.54 49 0.73 191 2.84 1880 101 2.83 61 1.71 162 2.41 38 1.20 10 0.32 48 0.71 210 3.12 s/sexo - - - - 5 - - - - - - - - - Total Livres: 3.562 - 52.99% T. Escravos: 3.160 - 47.01% Total Geral: 6.722 – 100% Fonte: Registro de Óbito de escravos e livres, 1840-1880. CDH.
O grupo dos livres, composto também por ex-escravos e seus descendentes, é mais
complexo. Homens continuam a ser maioria nos registros, mas a diferença entre estes e as
mulheres é menor em relação a compreendida na análise de mortes de escravos (gráfico 4).
Entre os anos 1840 e 1880, 3.562 livres foram registrados no livro de Óbitos da Freguesia de
Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. Destes, 3.412 (95.78%) indivíduos receberam
assento no livro de Óbitos de Vassouras. Libertos e forros são representados por 150 (4.22%)
indivíduos. Nesta segunda divisão, somente indivíduos com a designação liberto ou forro
foram computados.
76
Tabela 9 - Quantidade de óbitos por décadas, gênero e condição. 1840-1880.
Livres Libertos e forros Homem Mulher Homem Mulher
Soma Décadas
Nr %* Nr %* Nr %* Nr %* TG % 1840 – 1849 221 6.21 192 5.40 11 0.31 8 0.22 432 12.15 1850 – 1859 520 14.62 353 9.92 22 0.62 22 0.62 917 25.78 1860 – 1969 565 15.88 363 10.21 11 0.31 13 0.36 952 26.76 1870 – 1879 583 16.39 460 12.93 22 0.62 29 0.82 1094 30.76
1880 99 2.79 51 1.43 2 0.06 10 0.28 162 4.55 Total Livres: 3.407 - 95.78%* Total Liberto e Forros: 150 - 4.22%* TG:3.557 – 100% Fonte: CDH. 1º e 2º Livros de Óbito de pessoas livres da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras.
Gráfico 3 – Quantitativo de óbitos por gênero entre os livres nas diferentes décadas.
Registro de Livres, Libertos e Forros de 1840 a 1889
233
531 549599
101
199
370 372
477
58
0
100
200
300
400
500
600
700
1840 -1849 1850 - 1859 1860 - 1869 1870 - 1879 1880
HOMEM MULHER
Fonte: Registro de Óbito das pessoas livres. CDH.
O gráfico acima demonstra a divisão por gênero do grupo de pessoas livres. Homens e
mulheres morriam de forma proporcional, principalmente na década de 1840 quando o
número de libertos era bem menor. Analisando os percentuais de mortes por gêneros entre os
livres, percebemos não haver uma diferença quantitativa entre os sexos, como a existente
entre os escravos. O que pode sugerir um equilíbrio na população livre no referente à questão
de gênero.
Se somarmos aos libertos os indivíduos pretos e pardos, teremos um outro quadro de
análise. Para a construção da tabela 10 utilizamos essas divisões (cor e condição jurídica).
Estes diferentes grupos podem ser pensados como originários da escravidão e como tal se
77
aproximam dos quantitativos das populações mestiças que aumentam a partir do sucesso da
cultura cafeeira. As informações são mais consistentes a partir da década de 1850.
Tabela 10 - Pessoas livres: composição por cor. 1840-1880.
Homens Ano Preto %* Pardo %* Branco %* Liberto %* S/C %*
1840-9 2 0.06 1 0.03 4 0.11 11 0.31 216 6.15 1850-9 24 0.68 88 2.50 297 8.46 22 0.62 100 2.85 1860-9 36 1.02 80 2.28 370 10.54 13 0.37 63 1.79 1870-9 22 0.63 72 2.05 284 8.09 21 0.60 201 5.72 1880 1 0.03 15 0.43 47 1.34 2 0.06 36 1.03 Total 85 2.42 256 7.29 1.002 28.54 69 1.96 616 17.54 Total Homens: 2.028 – 57.76%*
Mulheres Ano Preta %* Parda %* Branca %* Liberta %* S/C %*
1840-9 1 0.03 1 0.03 1 0.03 9 0.26 188 5.35 1850-9 28 0.80 64 1.82 178 5.07 22 0.62 74 2.10 1860-9 30 0.85 79 2.25 212 6.04 13 0.37 38 1.08 1870-9 35 1.00 72 2.05 212 6.04 30 0.85 135 3.84 1880 6 0.17 8 0.23 23 0.65 10 0.29 14 0.40 Total 100 2.85 224 6.38 626 17.83 84 2.39 449 12.79 Total Mulheres: 1.483 – 42.24%* Total Geral: 3.511 – 100%* * os percentuais foram calculados sobre o total geral.
Fonte: 1º. e 2º. Livros de Óbitos das pessoas livres. CDH.
Nesta tabela, pardos, negros e brancos livres foram somados na categoria “cor”
correspondente. Os indivíduos que não tiveram cor ou condição mencionada não foram
computados. O documento histórico utilizado era relativo às pessoas livres e portanto fica
evidente o maior quantitativo de brancos, exatamente 46.37% (1.628) do total dos indivíduos
analisados para os anos de 1840 a 1880. Relativo ao mesmo período, o grupo originado dos
escravos - libertos, forros, pretos e pardos - totalizavam 23.30% (818), portanto,
aproximadamente 50% do total dos brancos.
É interessante notar que os pretos estavam em minoria, 85 (2.42%) homens e 100
(2.85%) mulheres. Este grupo, formado por pretos e pardos, é muito complexo e demonstra as
pequenas, mas reais possibilidades de mobilidade social. Os pardos que numa escala
hierárquica estavam acima dos negros e mulatos, representavam 13.67% (480), sendo 256
(7.29%) homens e 224 (6.38%) mulheres.
Informações parcimoniosas relativas à cor na década de 1840 nos remete aos dados
encontrados sobre os escravos. Houve um decréscimo do número de indivíduos mortos sem
uma cor declarada da década de 1840 à 1860. Em 1870 ela voltou a não ser mencionada,
78
decaindo novamente em 1880. Provavelmente, este fato indique que a complexidade social
aumentada a partir da década de 1850 provocou esta mudança. Se antes deste marco, ser
branco era ser livre e negro escravo, posteriormente o quadro social sofreu modificações que
implicaram na necessidade de informar a cor e origem do indivíduo que estaria recebendo um
assento.
Escravos correspondem a 3.160 registros de óbito no livro paroquial, sendo 2.014
homens e 1.146 mulheres (tabela 8). Homens são a maioria, com exceção do ano 1871 o único
em que o maior quantitativo de mortes é de mulheres. Entre os escravos mortos que
receberam assento no livro da paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, os
homens representam 63.73% e as mulheres 36.27%. Os números reiteram a maior proporção
de homens nos plantéis escravistas não apenas em Vassouras, mas nas demais Províncias do
Império do Brasil. Se utilizarmos o marco de 1850 para nortear a análise, não teremos
nenhuma mudança significativa, apenas a diminuição de 1 ponto percentual entre os homens.
Todavia, estes continuavam a ser maioria entre os que morriam. Eles se tornavam vulneráveis
à condição do tempo, a pouca vestimenta, alimentação inadequada e provavelmente à pouca
higiene. As mulheres também estavam sujeitas aos mesmos tratamentos, mas uma maioria
delas era utilizada para os trabalhos e ofícios domésticos, como destacaremos adiante.
Um conjunto de fatores certamente levavam ao túmulo mais cedo, homens, mulheres e
crianças, que nem sempre tinham a possibilidade de serem tratados por um cirurgião ou
médico. As diferentes classificações e informações sobre os mortos, principalmente nos livros
dedicado às pessoas livres, demonstram a distribuição diferenciada da mortalidade, refletida
na desigualdade social de Vassouras. Entre estes, uma pequena parcela pertencia às famílias
abastadas. A grande maioria vivia na pobreza. Entretanto, a escravidão trazia consigo a marca
da divisão social, política e econômica. Homens e mulheres, africanos e seus descendentes
eram utilizados para produzir riquezas. Seu trabalho era utilizado à exaustão e sua vida útil,
muito efêmera.
79
2.6 – Expectativa de vida
A preocupação de alguns fazendeiros com a saúde de seus escravos fica evidenciada
nos manuais utilizados nesta pesquisa. Estes foram escritos na década de 1830, quando o
tráfico se tornou ilegal e a possibilidade de diminuição da mão-de-obra era claramente
percebida. Os homens que dependiam desta mão-de-obra para sua produção, certamente,
tornaram-se mais apreensivos com a Lei Eusébio de Queiroz de 1850, quando o governo
imperial decreta o fim do comércio escravo transatlântico. A apreensão presente nas palavras
utilizadas nos manuais para descrever os cuidados com a propriedade escrava pode ter
conseguido efeito a partir desta última data. Daí decorre o volume muito elevado de entrada
de escravos nos portos brasileiros entre os anos de 1830 e 1840.158 Stanley Stein, aponta que a
máxima produtividade do escravo era dos 18 aos 30 anos. Do mesmo modo, este autor sugere
que após 1850 o motivo de desprazer para os fazendeiros de Vassouras era a falta de mão-de-
obra para o trabalho no campo. 159 Uma das possibilidades existentes seria a manutenção dos
números de cativos pelo maior tempo possível.
A necessidade em manter o patrimônio escravo pode ser percebida nas propostas dos
autores dos manuais, no referente às melhorias para a vida dos cativos. Elas poderiam
manifestar-se na cessão de espaço para cultivo de roças, estímulo à formação de família,
melhor alimentação, cuidado com os doentes, dentre outros fatores. Para Rafael de Bivar
Marquese, não houve mudança no discurso de fazendeiros após 1850.160 Na verdade,
acreditamos que a fala utilizada nas décadas anteriores somente foi efetivada e posta em
prática com o fim efetivo do comércio transatlântico. Esta preleção pode ter sido utilizada no
controle e cuidado com a saúde, para manter os escravos obedientes e sãos para o trabalho.
Da mesma forma, notamos o aumento do preço do cativo como um grande incentivo
em preservar a mão-de-obra escrava. Tendo o preço após o fim do tráfico quase duplicado
num curto espaço de tempo (1852 à 1854), não incidiu sobre a produção de café, passando a
ser o Nordeste a nova fonte de cativos para o trabalho nas fazendas. A prática do comércio
158 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 284. 159 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 74. 160 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 284-285.
80
interprovincial fez surgir na região do Vale Paraíba Fluminense um maior número de escravos
velhos e moribundos. 161
Escravos “velhos” podem constituir diferentes grupos de idades. A faixa etária mais
produtiva era a dos 15 aos 40 anos. Um escravo com aproximadamente 40 anos poderia ser
qualificado como velho, dependendo de sua condição física e de sua saúde. Em alguns óbitos
encontramos a designação “muito velho”, provavelmente fazia referência a escravos com
mais de 40 anos e poderia do mesmo modo descrever um cativo com idade superior a 80 anos.
O fator idade nem sempre fora mencionado nos óbitos, principalmente na década de 1840.
Senhores deduziam a idade de seus cativos antes de 1850, como nos informam os inventários
e alguns óbitos, indicando que as mesmas não correspondem à informações fidedignas. Mas,
se observarmos a faixa de idade conforme a produção de cativos, teremos algo aproximado às
possibilidades de sobrevivência de escravos e de sua possível expectativa de vida.
A designação “adulto” possivelmente era a referência utilizada para indivíduos de
idade entre os 15 e 40 anos, por ser esta faixa etária de maior produtividade entre os escravos.
Consideramos idosos os que ultrapassavam a idade julgada como produtiva, ou seja, os acima
de 40 anos, ficando essa faixa etária entre os 41 e 70 anos. Os muito velhos eram os que
possuíam entre 71 e 100 anos de vida. Pessoas livres ou escravas com mais de 100 anos foram
encontradas, mas em quantidade muito pequena, eles compõe a última divisão da
classificação etária.
Existe a citação buço,162 para os adolescentes, que definimos os que tinham entre 8 e
14 anos, ficando entre os inocentes e os adultos. Silmei 163 identifica os mesmos como
infantes, alterando apenas a qualificação presente nesta análise. Designações imprecisas
também foram encontradas, como “menor” e “novo” referindo-se as crianças. Magno Fonseca
identificou para o período de 1821 a 1850, referências à buço, “de menor”, “de menor idade”
e “párvulo”. Para demonstrar o enriquecimento de dados a partir da segunda metade do século
XIX, diferenciamos cada uma das designações encontradas.
161 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p.94. 162 Magno Fonseca na sua dissertação, Protagonismo e sociabilidade escrava na implantação e ampliação da cultura cafeeira: Vassouras -1821-1850, encontra as mesmas designações para o período de 1821-1850. Para os jovens com idade entre 10 e 13 anos identificou o termo “buça”, associado ao aparecimento dos primeiros pelos. “Menor”, “de menor idade”, “de menor ainda” e “párvulos”, também foram percebidas pelo autor. 163 PETIZ, Silmei de Sant’Ana. Enfermidades de escravos: contribuições metodológicas para estimativas da mortalidade (Rio Grande de São Pedro, 1790-1835). In: Ângela Porto (Org.). Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007.
81
O agrupamento por idade será a mesma para analisar os dados de escravos, livres e
libertos. Comecemos pelos livres. Este grupo por ser mais complexo, agregando indivíduos
que nasceram livres e os que conquistaram sua liberdade (ex-escravos e seus descendentes),
foi dividido por década e o ano de 1880, de forma que possamos analisar melhor os dados
encontrados e percebermos como etnicamente a morte hierarquizava. Os dados na década de
1840 são precários, não tendo informações precisas sobre idade e cor. A tabela abaixo
apresenta uma amostra de 3.233 pessoas registradas nos livros de óbito da Freguesia de Nossa
Senhora de Vassouras com idade indicada, nos anos de 1840 a 1880.
Os dados indicam uma alta taxa de mortalidade infantil, compreendendo as idades
entre 0 e 7 anos. Em alguns casos são descritos como “inocentes”. Na década de 1840, 81%
(209) dos que morreram eram crianças. Destas, 2 (0.77%) eram pretas, 2 (0.77%) brancas e
205 (79.46%) sem cor. Na faixa etária de 8 a 14 anos, seguindo a proposta de análise
apresentada acima, 13 (5.04%) foram computados e sem a menção cor. Dos 15 aos 40
somados os adultos, encontramos 18 (6.98%). Os representantes da faixa 41-70, 7 (2.72%).
Indivíduos com idade entre 71 e 100 somam 8 (3.10%) e pessoas acima de 100 anos 3
(1.16%).
Tabela 11 – Composição faixa etária de óbitos do grupo de livres e libertos.
Homem Mulher 1840-49 Pret % Par % Bran % S/C % Pret % Pard % Bran % S/C %
0-7 - - - - - - 17 0.52 - - 1 0.03 - - 20 0.62 8-14 - - - - - - 3 0.09 - - - - - - 1 0.03 15-40 1 0.03 - - - - 9 0.29 1 0.03 - - 1 0.03 4 0.12 41-70 - - - - 1 0.03 4 0.12 - - - - - - 2 0.06 71-100 1 0.03 - - 1 0.03 4 0.12 1 0.03 - - - - 1 0.03 + 100 - - - - - - 1 0.03 - - - - - - 2 0.06 Inocente 1 0.03 - - 2 0.06 93 2.88 - - - - - - 75 2.32 Menor - - - - - - 2 0.06 - - - - - - 7 0.22 Adulto - - - - - - 1 0.03 - - - - - - 1 0.03 Total 3 0.09 0 0 4 0.12 134 4.14 2 0.06 1 0.03 1 0.03 113 3.49 Total na Decada: 258 – 7.98%*
Homem Mulher 1850-59 Pret % Par % Bran % S/C % Pret % Pard % Bran % S/C %
0-7 10 0.31 40 1.24 120 3.71 21 0.65 11 0.34 31 0.96 98 3.03 24 0.74 8-14 - - 2 0.06 8 0.25 1 0.03 - - - - 3 0.09 2 0.06 15-40 13 0.40 26 0.80 106 3.28 22 0.68 17 0.52 17 0.52 35 1.08 13 0.40 41-70 13 0.40 12 0.37 39 1.21 11 0.34 11 0.34 7 0.22 29 0.90 6 0.19 71-100 5 0.15 - - 8 0.25 1 0.03 4 0.12 - - 6 0.19 3 0.09 + 100 - - 1 0.03 1 0.03 - - - - - - - - - - Inocente - - - - 3 0.09 25 0.77 - - 1 0.03 1 0.03 11 0.34 Menor - - - - - - - - - - - - - - 1 0.03 Adulto - - - - - - - - - - - - - - 1 0.03 Total 41 1.27 81 2.50 285 8.82 81 2.50 43 1.32 56 1.73 172 5.32 61 1.88 Total na Decada: 820 - 25.36%
Homem Mulher 1860-69 Pret % Par % Bran % S/C % Pret % Pard % Bran % S/C %
0-7 3 0.09 22 0.68 121 3.74 12 0.37 4 0.12 31 0.96 105 3.25 13 0.40 8-14 1 0.03 3 0.09 14 0.43 3 0.09 2 0.06 - - 2 0.06 - -
82
15-40 20 0.62 29 0.90 154 4.76 25 0.77 15 0.47 33 1.02 66 2.04 12 0.37 41-70 12 0.37 18 0.56 65 2.01 17 0.53 14 0.43 17 0.53 26 0.80 8 0.25 71-100 9 0.29 3 0.09 14 0.43 2 0.06 3 0.09 - - 8 0.25 2 0.06 + 100 - - - - - - - - - - - - 1 0.03 - - Inocente - - 1 0.03 1 0.03 1 0.03 - - - - - - - - Menor - - - - - - - - - - - - - - - - Adulto - - - - - - - - - - - - - - 1 0.03 Total 45 1.40 76 2.35 369 11.40 60 1.85 38 1.17 81 2.51 208 6.43 36 1.11 Total na Decada: 913 - 28.24%
Homem Mulher 1870-79 Pret % Par % Bran % S/C % Pret % Pard % Bran % S/C %
0-7 3 0.09 28 0.86 106 3.28 7 0.22 8 0.25 29 0.90 106 3.28 8 0.25 8-14 1 0.03 1 0.03 12 0.37 3 0.09 2 0.06 3 0.09 8 0.25 3 0.09 15-40 8 0.25 25 0.77 83 2.57 77 2.38 11 0.34 34 1.05 54 1.67 69 2.13 41-70 20 0.62 15 0.46 71 2.19 99 3.06 25 0.77 5 0.15 35 1.08 43 1.33 71-100 8 0.25 2 0.06 10 0.31 15 0.46 9 0.29 2 0.06 15 0.46 10 0.31 + 100 - - - - - - - - - - - - - - - - Inocente - - - - 3 0.09 1 0.03 - - 1 0.03 3 0.09 3 0.09 Menor - - - - - - - - - - - - - - - - Adulto - - - - - - - - - - - - - - - - Total 40 1.24 71 2.19 285 8.81 202 6.25? 55 1.71 74 2.28 221 6.83 136 4.20 Total na Decada: 1.084 - 33.53%
Homem Mulher 1880 Pret % Par % Bran % S/C % Pret % Pard % Bran % S/C %
0-7 - - 3 0.09 19 0.58 2 0.06 - - - - 6 0.19 2 0.06 8-14 - - 1 0.03 4 0.12 2 0.06 1 0.03 - - 1 0.03 - - 15-40 1 0.03 9 0.29 14 0.43 13 0.40 3 0.09 7 0.22 7 0.22 7 0.22 41-70 - - 2 0.06 7 0.22 18 0.55 6 0.19 2 0.06 9 0.29 7 0.22 71-100 - - - - 1 0.03 2 0.06 1 0.03 - - - - 1 0.03 + 100 - - - - - - - - - - - - - - - - Inocente - - - - - - - - - - - - - - - - Menor - - - - - - - - - - - - - - - - Adulto - - - - - - - - - - - - - - - - Total 1 0.03 15 0.46 45 1.39 37 1.14 11 0.34 9 0.29 23 0.71 17 0.53 Total na Decada: 158 - 4.89% Total Geral: 3.233 Fonte: 1º. e 2º. Livros de Óbitos das pessoas Livres. CDH.
Crianças continuaram nas décadas seguintes com um alto índice de mortes. Os
mesmos parecem ter diminuído com o passar do tempo: 48.21% (396) em 1850, 34.39% (314)
em 1860, 27.21% (295) para 1870 e 20.25% (32) no ano de 1880. Os percentuais foram
calculados sobre o total de indivíduos mortos para cada período. Para o total geral dos anos
1850 a 1880, elas são 1.037 (32.07%). Os adolescentes (8-14), 84 (2.60%). Os adultos da
faixa etária produtiva (15-40) para todo o período da tabela 11, representam 1.025 (31.70%),
625 (19.33%) homens e 400 (12.37%) mulheres. Na seguinte, 41 aos 70, os indivíduos mortos
foram 670 (20.72%). Pessoas com idades entre 71 e 100 anos 144 (4.45%) e finalmente os
com mais de 100 anos somam 3 (0.09%).
Segundo os dados da tabela 11 – que objetiva demonstrar as diferenças relativas a
idade dos óbitos pela classificação cor e gênero -, podemos perceber que a partir da década de
1850 o número de crianças mortas diminuiu gradativamente na mesma proporção em que
83
aumentou o número de adultos a partir dos 15 anos. A maior incidência de óbitos entre estes
últimos é na faixa etária de 15 a 40 anos. Num primeiro momento podemos supor que na
primeira década analisada não havia muita preocupação em mencionar a idade correta nos
assentos. A medida que a sociedade vai se tornando mais complexa, as informações tendem a
ser melhor elaboradas, existindo menção até para o número de dias do falecimento para os
recém-nascidos.
A separação por faixa etária e designações nem sempre precisas, nos ajudam a
compreender qual a atenção dispensada a cativos e ex-cativos. Não havia uma preocupação
em registrar dados de escravos e livres nos anos de 1840, como nos demonstram as tabelas 11,
12 e 13. Informações mais precisas sobre a idade em que morriam os indivíduos, surgem a
partir da segunda metade do século XIX, coincidindo com o fim do tráfico negreiro.
Tabela 12 – Composição faixa etária dos escravos. 1840-1849.
Homem Mulher 1840-49 Total %* Total %*
0-7 - - 4 1.02 8-14 - - - - 15-40 - - - - 41-70 - - - - 71-100 - - - - Inocentes 98 24.87 81 20.56 Menor 2 0.50 4 1.02 Novo 1 0.25 0 0 Adulto 148 37.56 46 11.67 Total 259 65.73 135 34.27 Total: 394* - 100% Fonte: Livro de Óbitos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. CDH.
Os inocentes tinham um elevado número de mortes, tanto entre escravos quanto entre
os livres. A infância para o doutor Imbert é vista como período crítico da vida do homem. Os
números obtidos nos registros de óbito de livres e escravos demonstram o quanto essa faixa
etária era suscetível às doenças. As crianças eram vulneráveis às condições de vida numa
sociedade escravista. Se os inocentes livres morriam em grande número, os filhos de escravos,
nem sempre atingiam alguns meses de vida. Devemos considerar que uma grande maioria não
recebia o batismo, nem mesmo o registro de óbito, o que provavelmente dificulta uma análise
verossímil sobre os números encontrados. Mary Karasch aponta que para os inocentes, a
84
causa mortis que mais os acometiam era o mal de sete dias, identificado apenas entre as
crianças livres em nossa pesquisa.
Na década de 1840, analisando os dados da tabela 12, apenas 4 (1.02%) crianças do
sexo feminino tiveram a idade informada. A maioria das crianças nesse período era
mencionada como inocente (0-7 anos). Destes, 20.56% do total são meninas escravas
registradas no livro de óbitos. Os meninos com a mesma qualificação são 24.87%. Juntos
somavam 179 (45.43%). Também encontramos a designação menor para 2 (0.50%) meninos e
4 (1.02%) meninas. Apenas 1 (0.25%) menino foi descrito como novo. Adultos cativos
somam 194 (49.24%), 148 (37.56%) homens e 46 (11.67%) mulheres.
Tabela 13 – Composição faixa etária por gênero de escravos. 1850-1880.
Homem Mulher 1850-80 Total %* Total %*
0-7 455 18.76 358 14.76 8-14 44 1.81 41 1.69 15-40 539 22.22 288 11.87 41-70 377 15.54 146 6.02 71-100 40 1.65 15 0.62 Inocentes 42 1.73 26 1.07 Menor - - 1 0.04 Novo - - - - Adulto 41 1.69 10 0.41 Idade Avançada 2 0.08 - - Muito velho - - 1 0.04 Total 1.540 63.48 886 36.52 Total: 2.426* - 100% Fonte: Livro de Óbitos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. CDH.
Os anos 1850 a 1880 demonstram que 881 (36.31%) crianças faleceram. Os indivíduos
entre 8 e 14 anos respondem por 86 (3.55%)mortes. Escravos que compunham a faixa etária
de 15 a 40 anos são 878 (36.19%). Os que faleciam entre os 41 e 79 anos são 523 (21.56%) e
os que superaram a mesma correspondem à 58 (2.39%), a estes foram somados os muito
velhos e com idade avançada. Nenhum cativo neste período morreu em idade maior que 100
anos.
85
Idades superiores aos 50 anos são identificadas a partir da década de 1850 para os
escravos. Julio César164 e Mary Karasch165 informam que para a corte os escravos raramente
chegavam aos 50 anos nos primeiros anos do século XIX. Magno Fonseca166 localiza apenas
uma cativa com esta idade para o mesmo período, corroborando com a nossa investigação.
Aqui cabe uma observação: a lei que põe fim definitivo ao tráfico transatlântico de escravos
no Brasil, pode ser considerada como o auge de um processo iniciado em 1830, como já
mencionamos. Nesta conjuntura, a população de escravos pode ter tido uma maior expectativa
de vida devido as pressões que antecederam a lei Eusébio de Queiroz. O processo que
incentivou a produção de alguns manuais sobre administração de escravos, tenha tido efeito a
partir de 1850. Para alguns proprietários de escravos provavelmente o fim do tráfico não
passava de uma especulação política, tendo em vista o poder econômico e político dos
mesmos.
Se observarmos a tabela 6 e 7(ofício e idade), perceberemos que exercendo algumas
ocupações o escravo poderia ter sua expectativa de vida aumentada. Os anos 1840,
demonstram que a maioria dos cativos inventariados com um ofício, não tiveram menção à
idade. A faixa etária dos 15 aos 40 anos é a mais significativa. Sendo ela a de maior
produtividade teve um maior número de mulheres e homens mencionados, totalizando 180
indivíduos. Entre os homens dos 41 aos 70, apenas 33 foram listados. Tropeiros (51),
carpinteiros (40), falqueijadores (15) e carreiros (14) são os que se destacam. Os
numericamente superiores são os carreiros (7) e os sapateiros (5). Acima desta idade 1
pedreiro foi encontrado. As mulheres não ultrapassaram os 70 anos. As que possuíam entre 15
e 40 anos, eram as mais representadas: costureiras (52), cozinheiras (14) e engomadeiras (7).
Na faixa dos 41 aos 70 as cozinheiras (5) suplantam as demais.
A partir da segunda metade do século XIX, o número de cativos de ambos os sexos
que foram designados como “de roça” e “roceiro” superaram os demais ofícios. Tendo um
grande representatividade na faixa etária dos 41 aos 70 anos entre homens (142) e mulheres
(80). Entretanto os que conseguiram superar esta idade foram os pedreiros (4).
Diante do exposto, pudemos verificar que a formação cultural que se deu a partir da
colonização criou e recriou as maneiras de bem morrer na sociedade escravista de Vassouras,
164 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 114. 165 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro(1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 166 BORGES, Magno Fonseca. Protagonismo e sociabilidade escrava na implantação e ampliação da cultura cafeeira – Vassouras – 1821-1850. Dissertação de mestrado. Vassouras: Universidade Severino Sombra. p. 68.
86
destacando-se as culturas portuguesa e africana em tal processo de reconstruções simbólicas.
Assim como na França, Portugal e em alguns países da África, no Brasil também se temia a
morte sem a devida preparação, como vemos refletidos em Vassouras. Havia preocupação
com os rituais fúnebres, uma preparação para a vida além túmulo, que não se limitava apenas
aos livres; escravos – embora em menores proporções – também tiveram acesso aos costumes
católicos. Entretanto, de acordo com sua inserção na sociedade escravista brasileira, poderiam
não ter acesso a um funeral no modelo da religião oficial do Império do Brasil.
Em vida, ao romperem os laços da escravidão, libertos e seus descendentes buscavam
inserção social. Na morte, esses indícios estão presentes na solicitação de sacramentos, nos
enterros ad sanctus, nas vestimentas fúnebres, nas missas de corpo presente – rituais cobrados
pela Igreja e que formavam a sua economia material. Escravos, assim como os livres pobres,
tentavam assegurar para si e seus familiares as formas de bem morrer. A Igreja assegurava aos
cativos um bom enterro, ao ordenar que o senhor se preocupasse com a morte dos mesmos,
tendo em vista o uso que fizeram deles em vida.
Vimos também que a forma da utilização dessa mão de obra sofreu modificação
significativa após 1850. O fim do tráfico transatlântico elevou o preço do cativo, dificultando
o acesso de pequenos proprietários. A análise dos manuais propõe-nos que existia certa
preocupação com a forma de cuidados dispensados aos escravos desde a década de 1830,
quando foram escritos. Embora a preocupação fosse com a vida útil da propriedade escrava,
ela significou, após a segunda metade do século XIX, uma melhoria na condição de vida
daqueles indivíduos, alterando sua expectativa de vida, condições de trabalho, alimentação,
tratamento e atendimento médico. Os dados registrados nas fontes consultadas sofreram
significativa melhora, demonstrando maior atenção aos cativos após este marco temporal. A
morte passou a ser observada com mais atenção, devido às dificuldades que surgiram com a
Lei Eusébio de Queiroz.
Assim, para que se pudesse aumentar a forma de uso da mão de obra escrava, alguns
manuais para fazendeiros escritos na década de 1830, informam sobre as principais doenças
que acometiam os escravos. Eles tentavam instruir proprietários sobre como comprar
indivíduos que não desenvolvessem algumas moléstias e cuidar de um cativo doente,
relacionando a necessidade de se manter a propriedade com as instruções da Igreja de amor ao
próximo. O capítulo que se segue analisará as principais causas mortis e suas diferentes
implicações sociais.
87
Capítulo 3: Doenças de escravos e principais curas.
A morte, seu lugar social e simbólico apresenta outro problema do qual não podemos
nos abster. O presente trabalho tem por objetivo entender a construção e reconstrução da
morte e sua importância nas relações de poder da Vassouras no século XIX. Estes símbolos de
poder foram descritos em certa medida no capítulo anterior. Contudo, não podemos falar de
morte sem falar de suas causas. As doenças aqui tratadas serão vislumbradas na tentativa de
cotejar a maneira pela qual são mencionadas em um documento religioso, o livro de óbitos da
paróquia e nos inventários post mortem, um documento político. Para auxiliar na descrição
das moléstias e entender sobre esta questão, utilizaremos manuais escritos para fazendeiros
que objetivavam auxiliá-los em caso de doenças. Da mesma forma, a tese do doutor Imbert,
escrita no século XIX, sobre as principais doenças que acometiam os cativos.
Nosso limitado conhecimento a respeito nos restringe a acompanhar e perceber quais
as doenças que mais foram fatais aos escravos em Vassouras e se as mesmas eram
mencionadas nos inventários. Afinal a morte estava inserida em seu cotidiano, não apenas
entre os escravos, mas também entre livres e libertos.
3.1 – Doenças, Causas Mortis e possíveis tratamentos.
A preocupação com a saúde dos indivíduos que seriam vendidos como escravos para o
território americano, garantia alguma cautela como uma boa alimentação e óleo de palmeira
para lubrificar a pele. O que poderia permitir uma leva de cativos de “boa aparência”. As
doenças parecem ter tido atenção ainda no continente africano, de forma que, ao serem
colocados nos entrepostos para aguardar a longa viagem à América, os africanos doentes eram
tratados e isolados. 167 Em 1840, uma observação médica concluiu que a vacinação contra a
Varíola - ou Bexigas como aparece na maioria desses casos em Vassouras - na costa africana,
havia contribuído na diminuição da taxa de “mortalidade no tráfico negreiro e no Rio de
167 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. Tradução James Amado. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 41.
88
Janeiro”.168 Sabemos que havia alguma preocupação com a saúde dos que se tornariam
escravos na sociedade do Império do Brasil, mas acreditamos haver a necessidade de estudos
mais complexos sobre esta questão.
Ao chegar nos portos brasileiros os que apresentassem sinais de doença eram
separados e deveriam permanecer em quarentena, recebendo nesse período alguns cuidados:
Cada navio que chegava ao porto do Rio carregado de escravos deveria primeiro ser vistoriado pelo médico da Saúde; caso se constatasse haver doentes, estes deveriam ser enviados para a quarentena em uma das ilhas da baía de Guanabara; após a sua liberação, deviam desembarcar na Alfândega, a fim de serem registrados, pagarem as taxas etc., e imediatamente depois serem enviados para o Valongo. Assim se deu até o fim do tráfico negreiro. 169
Os devidamente aprovados seriam levados para os postos de venda, onde passariam
pelo olhar atento de seus futuros proprietários. Imbert, médico no século XIX, define em seu
manual a maneira pelo qual um proprietário deveria escolher seus cativos, na tentativa de
evitar futuros infortúnios, fossem relativos ao trabalho no eito ou em relação à facilidade em
contrair enfermidades. Enfatiza características desejáveis aos negros, estas associadas as
melhores condições e a indivíduos mais saudáveis, tendo em vista os serviços árduos que
deles se esperava. O escravo não deveria apresentar alguns “defeitos”. Associava doença
física à questão moral, ou seja, sua perspectiva de doença incluía também, conduta e hábitos
julgados válidos por aquela sociedade, relacionada a um tipo de moléstia. Desta forma, seria
prudente “escolher” um negro que:
[...] seja o pé redondo, a barriga da perna grossa, e o tornozelo fino, o que a torna firme; que a pelle seja lisa, não oleosa, de huma bella cor preta, isenta de manchas, de cicatrizes, e de odor demasiado forte; que as partes genitaes sejão convenientemente desenvolvidas, isto he, que nem pequem por excesso, nem por cainheza, que o baixo ventre não seja saliente, nem o embigo mui volumoso, circunstancias em que se originão sempre as hernias; que o peito seja comprido, profundo, sonoro, as espaduas desempenadas, sem todavia estarem mui desviadas do tronco, signal de não estarem os pulmões bem collocados; que o pescoço esteja em justa proporção com a altura do individuo, e que não offereça aqui e alli, mormente sob a queixada tumores glandulosos, sinal evidente de afecção escrofulosa, que conduz cedo ou tarde a uma tísica, que os músculos dos membros, do peito e das costas, sejão bem salientes; que as carnes não sejão molles, e sim rijas, e compactas; e que o negro em fim deixe entrever no seu semblante o aspecto, ardor e vivacidade: reunidas todas estas condições, ter-se-ha hum
168 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro, 1808 – 1850. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 215. 169 CAVALCANTI, Nireu, apud PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 75.
89
escravo, que apresentará a seu Senhor, todas as garantias desejaveis de saude, força e intelligencia. 170
Se observarmos mais atentamente tais indicações, veremos que Imbert define o
escravo africano como propriedade e também como indivíduo. Em sua fala falta-lhes
capacidade intelectual, mas no final da citação mencionada apriori, ele afirma que se
lembradas todas as suas indicações, o proprietário será feliz por adquirir um indivíduo dotado
de saúde, força e inteligência. Os fatores físicos, sempre associados à doenças, são garantias
de boa compra, que poderiam proporcionar muito trabalho dos negros sem muitos gastos com
saúde, o que provavelmente demandava um bom investimento do senhor.
Uma das doenças que mais geravam óbito, a tuberculose, também é mencionada por
Imbert. A maneira inicial de se precaver contra o mal seria comprar cativos “que o pescoço
esteja em justa proporção com a altura do individuo, e que não ofereça aqui e ali, mormente
sob a queixada tumores glandulosos”, estes associados diretamente a aquisição de tísica.
Comprar escravos fortes e saudáveis não significava uma vida útil extensa. O trabalho forçado
sob condições precárias, ocasionava outros problemas que afastavam o cativo de suas tarefas:
defeitos físicos de naturezas diversas. Estes facilmente identificados nos inventários post
mortem, onde deformidades físicas e doenças estavam associadas ao preço do cativo.
As moléstias que acometiam os escravos na visão de especialistas do século XIX,
eram legado do seu território de origem, essas doenças atravessaram o oceano Atlântico e se
propagaram, atingindo brancos e indígenas. Estudos mais recentes demonstram que “muitos
parasitas intestinais, só se tornam visíveis como causa de doença em populações sedentárias,
agrícolas”. A epidemiologia histórica tem por objetivo estudar como “mudanças na forma de
ocupação do território, na organização social, podem ter como resultado uma nova equação
nosológica 171, a partir de elementos pré-existentes”.172 Esse estudo desqualifica algumas
questões em torno da interpretação de que ameríndios tiveram sua boa saúde transformada
quando da chegada de europeus.
Segundo Diana Maul, no caso dos africanos, a epidemiologia histórica, contribui para
a análise das possibilidades de se conhecer quais as doenças que existiam no território
170 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. p. 3. 171 A expressão trata das enfermidades em geral e as classifica do ponto de vista explicativo. 172 CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: PORTO, Ângela (org). Doenças e escravidão:sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. p. 6.
90
africano no século XIX e se elas foram capazes de cruzar o oceano a partir do século XVI e
chegar em outro continente. Da mesma forma, estudar as doenças que tinham agentes
etiolóticos173existentes, as quais só foram viabilizadas a partir do tráfico de escravizados.
As doenças relacionadas nos registros de óbitos podem ser consideradas como fatais
para escravos, libertos e livres. As que constam nos inventários, geralmente estavam
associadas ao preço do cativo, a uma parte dos bens do proprietário. De forma que Rita,
crioula, não teve valor mencionado, provavelmente por estar muito doente. Organizamos as
doenças que mais promoviam o óbito de escravos e livres, como: doenças infecto-parasitárias,
sistema respiratório, sistema digestivo, sistema nervoso, primeira infância, causas violentas,
sistema circulatório, osteomuscular, gravidez e parto, idade avançada e causas mal definidas.
Estas, devido a nossas restrições científicas, foram assim organizadas por não serem
identificadas nos documentos pesquisados.
Tabela 14 - Classificação de Doenças de Escravos por Tipos e gênero. 1840-1870.
Tipos Homem Mulher Doenças Infecto-Parasitárias Bexigas 1 6 Tuberculose 16 12 Coqueluche 1 2 Desinteria 7 1 Ethica 0 2 Erisipela 1 0 Vermes 1 0 Febre Perniciosa 2 0 Tétano 2 0 Tifóide 0 1 Moléstia do Peito 1 0 Opilação 3 0 Ataque de Bichas 1 0 Total: 60 - 21.50% Doenças Sistema Digestivo Moléstia do Estomago 1 1 Diarréia 1 0 Enterite 0 1 Gastrite 1 0 Inflamação do Fígado 0 2 Inflamação do Intestino 1 0 Moléstia do Fígado 2 0 Hepatite 1 0 Hérnia Estrangulada 1 0 Total: 12 – 4.30 % Sistema Respiratório Pneumonia 10 1 Asma 1 1 Bronquite 2 0 Distúrbios pulmonares 0 2
173 Etiógicos: causas das doenças.
91
Hemoptise 0 1 Congestão pulmonar 2 0 Pulmões 3 0 Broncomonia dupla 1 0 Total: 24 – 8.60 % Sistema Nervoso e Neuro psiquiátrico Apoplexia 0 4 Paralisia 1 1 Amolecimento cerebral 2 1 Congestão cerebral 7 0 Cerebral 1 0 Ataque cerebral 2 0 Ataque de cabeça 1 0 Apoplexia cerebral 1 0 Convulsões 0 1 Total: 22 - 7.88 % Primeira Infância Dentição 0 1 Total: 1 - 0.36 % Morte Violenta e Acidental Afogamento 1 1 Arma de Fogo 1 0 Desastre 1 1 Espingarda 1 0 Picada de Cobra 3 1 Queimadura 1 0 Quebradura 1 0 Raio 1 0 Suicídio 1 0 Total: 14 - 5.01 % Sistema Circulatório Coração 13 18 Total: 31 - 11.11 % Sistema Osteomuscular e Reumáticas Gota 1 1 Reumatismo 1 1 Total: 4 - 1.44 % Gravidez e Parto Cancro no Útero - 1 Moléstia no útero - 1 Parto - 2 Total: 4 - 1.44 % Causas mal definidas Acesso Pernicioso 1 0 Anasarca 1 0 Anemia geral 1 0 Catarro 1 0 Cólicas 2 0 Congestão 1 0 Crepitude 1 0 Diarréia de Sangue 1 0 Dupla Croudal 1 0 Febres 4 3 Ferida no pé 1 0 Hemorragia 0 1 Hidropezia 6 2 Inflamação 2 0 Lesão Orgânica 1 0 Moléstia interna 40 27 Moléstia na Garganta 1 0
92
Moléstia Moraca 0 1 Pleumonia 1 0 Polmonia Aguda 1 0 Postoma Arrebentada 1 0 Remonção e Perniciosa 1 0 Suspensão 0 2 Tétano Espontâneo 2 0 Total: 107 - 38.35 % Total Geral: 279 Fonte: CDH. Livro de Óbito de Escravos.
Os dados da tabela 14 nos apontam que a tuberculose era uma das causas mortis mais
presentes entre escravos e livres. Concerne ao grupo de doenças Infecto-parasitárias, tendo
causado 10.03 % (28) de óbitos de cativos para todo o período analisado. Entre os livres e
libertos, o mesmo gerou 16.10% (124) de mortes neste grupo de moléstias. Cotejando sua
manifestação entre os dois grupos, ela foi mais fatal para o segundo. Doença antiga em todos
os continentes, inclusive na América, não pode ser pensada como uma doença que atingia
especialmente escravos, como aponta Mary Karasch.174 Nas cidades européias ou americanas,
durante a primeira metade do século XIX, a tuberculose pode ser considerada epidêmica,
apontada como a principal causa de morte nestas cidades. Atingia todas as classes sociais, as
populações rurais deslocadas para as cidades eram as mais suscetíveis, fossem africanos ou
não. 175
Nos óbitos analisados percebemos ao comparar as informações com outras doenças
que geraram morte em Vassouras, uma quantidade significativa de escravos, libertos e de
livres que morreram devido à tuberculose. Do total de mulheres do Livro de Óbito de livres da
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras atingidas por esta moléstia, 6
(0.78%) eram pretas, 20 (2.60%) brancas, 12 (1.56%) pardas e 11 (1.43%) sem cor atribuída.
O total de descendentes de escravas é próximo ao de brancas, se considerarmos
conjuntamente pretas e pardas. Para os homens: 49 (6.36%) brancos, 6 (0.78%) pretos, 8
(1.04%) pardos e 12 (1.56%) sem cor mencionada. Entre os escravos, 12 (4.30%) mulheres e
16 (5.73%) homens foram atingidos pela doença. Em outras palavras, a tuberculose, atingia
diferentes classes sociais e diferentes etnias existentes na sociedade da Vassouras oitocentista.
174 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro, 1808 – 1850. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 209-212. 175 CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: PORTO, Ângela (org). Doenças e escravidão:sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. p. 7.
93
Para Diana Maul, “na situação epidêmica, a probabilidade de infecção, e mesmo de
doença, devia ser semelhante para africanos ou não, ricos ou pobres”. 176 Mas a autora não
descarta, no que concordamos, que os desnutridos e explorados, eram as maiores vítimas.
Acreditamos que os escravizados por serem classificados dentre os explorados como mão-de-
obra e desnutridos, devido a má alimentação em muitos dos casos, eram especialmente
atingidos pela tuberculose.
Bexiga ou varíola é a segunda doença do grupo infecto-parasitária que mais gerou
óbito entre escravos. Se a vacinação, ainda em território africano, diminuiu a incidência de
casos desta doença entre os escravos de Vassouras, não tivemos condições nesse momento de
confirmar. Todavia, 7 (2.50%) escravos sucumbiram à ela, 1 (0.36%) homem e 6 (2.15%)
mulheres. Entre os livres esta enfermidade foi fatal para 11 (1.43%) indivíduos, 4 (0.52%)
homens e 7 (0.90%) mulheres. O que nos parece evidente, é que entre os gêneros, o feminino
foi o mais atingido pela doença; entre os grupos, os escravos.
Tabela 15 - Doenças listadas no livro de óbito das pessoas Livres por espécie. 1840-1880.
Homem Mulher Tipo Branco Preto Pardo S/C Branca Preta Parda S/C
Doenças Infecto-Parasitárias Ataque de Bichas 2 - - - - - - - Bexigas 3 - - 1 - - - 7 Câmara de Sangue - - 1 - - - - 1 Cólera 1 - - - - - - - Coqueluche 1 - 1 - 2 1 - - Desinteria 1 - - - 1 - 1 2 Erisipela - - - - 1 - - - Febre Amarela 12 - - 1 1 - - 1 Febre Biliosa 7 - 1 4 3 - 2 1 Febre intermitente 2 - - - 1 - - - Febre Perniciosa 8 - 1 1 - - 1 2 Meningite - - - - 2 - - - Moléstia do Peito 1 1 2 - 1 2 1 1 Opilação - - - 1 - - - - Sarampo - - - - - - 1 - Tétano 1 - - - - - - - Tifóide 4 - - 3 3 1 - 3 Tuberculose 49 6 8 12 20 6 12 11 Vermes 1 - - - 1 - - - Total 93 7 14 23 36 10 18 29 Total Homens: 137 - Total Mulheres: 93 - Total Geral: 230 - 29.87 % Doenças Sistema Respiratório Asma - - - - 1 - - - Apoplexia pulmonar 1 - - - - - - - Bronquite 2 - 1 1 - - 1 -
176 CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: PORTO, Ângela (org). Doenças e escravidão:sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. p. 8.
94
Distúrbios pulmonares - - - - - - - 2 Gripe - - - - 1 - - - Hemopetize - - - 1 - - - - “Hepatiração” do pulmão - - - 1 - - - - Pneumonia 2 - - - - 1 - 1 Pleuris - - - 1 - - - - Tosse - 1 - - - - - - Tosse Convulsa - - - - 2 - - - Total 5 1 1 4 4 1 1 3 Total Homens: 11 - Total Mulheres: 9 - Total Geral: 20 - 2.60 % Doenças Sistema Digestivo Aneurisma da Horta Abdominal - - - 1 - - - - Cirrose do Fígado 4 - 1 - - - - 2 Congestão - - 1 1 - - 1 - Congestão do Bucho - - - - - - 1 - Diarréia 3 - - - - - - - Enterite 1 - - - - - - - Febre Gástrica - - - - 1 - - - Fígado (várias moléstias) 3 - - 2 - - - - Gastrite 1 - - - - - - - Hepatite 1 - - 1 - - - 1 Hérnia Estrangulada 2 - - - - - - - Indigestão - - 1 - - - - - Inflamação do Intestino 1 - - - - - - - Moléstia do estomago - - - 2 - - - - Moléstia Peritonite - - - - 1 - - - Tubérculos Menetéricos - - - - - - - 2 Vermes Intestinais 1 - 1 - 1 - - - Volvo intestino 1 1 - - - - - - Total 18 1 4 7 3 - 2 5 Total Homens:30 - Total Mulheres: 10 - Total Geral: 40 - 5.19 % Sistema Nervoso e Neuro-psiquiatrico Apoplexia 2 - - - - - - - Apoplexia Fulminante 1 - - - - - - - Alienação mental - 1 - - - - - - Amolecimento cerebral 2 - - 2 - - - 1 Ataque cerebral 1 - - - - - - 2 Ataque de cabeça - - 1 - - - - - Cerebral 1 - - - 1 - - - Congestão cerebral 9 - 1 2 1 - 1 2 Convulções 3 - - - 2 - 1 - Demência 3 - - - - - - - Derramamento cerebral - - - - 1 - - - Enfermidade do cérebro - - - - - - - - Epilepsia - - - 1 - - - - “Hemilegia” cerebral - - - - - 1 - - Hemorragia cerebral - - - - - 1 - - Moléstia da cabeça 1 1 - 2 - - - 1 Paralisia 2 - 1 - 1 - - - Paralisia mental - - - - - - 1 - Total 25 2 3 7 6 2 3 6 Total Homens: 37 - Total Mulheres: 17 - Total Geral: 54 - 7.01 % Doenças Primeira Infância Catarro Sufocante 6 - - 1 1 - 1 - Dentição 8 - - - 5 - 2 - Espasmos 4 - 4 1 2 - - 2 Mal dos sete dias 2 - - - - - - - Total 20 - 4 2 8 - 3 2 Total Homens: 26 - Total Mulheres: 13 - Total Geral: 39 - 5.06 % Mortes Violentas ou Acidental
95
Afogado 2 - 1 1 - - - - Assassinado 2 - 2 1 - - - - Degolado 1 - - - - - - - Desastre 3 - 1 1 - - - - Envenenamento - - - - - - - 1 Facada - - - 1 - - - - Fratura espinha - 1 - - - - - - Picada de Cobra - - - - 1 - - - Queda 1 - - - - - - - Queimadura - - - - 1 - 1 - Quebradura 1 1 - - - - - - Suicídio 1 1 - 2 - - - - Tiro - - - 2 1 - - - Total 11 3 4 8 3 - 1 1 Total Homens: 26 - Total Mulheres: 5 - Total Geral: 31 - 4.03 % Doença Sistema Circulatório Angina - - - 1 - - - - Aneurisma - - - 1 - - 1 - Aneurisma da Aorta 1 - - - - - - - Coração 20 4 - 9 2 5 1 7 Delatação Aortica - - - - - 1 - - Ectasia da Aorta 1 - - - - - - - Total 22 4 - 11 2 6 2 7 Total Homens: 37 - Total Mulheres: 17 - Total Geral: 54 - 7.01 % Doenças do Sistema Osteomuscular e Reumáticas Fratura - - - - - - - - Gota - - 1 - - 1 - - Moléstia espinha dorsal - - - - 1 - - - Reumatismo 1 - - - - - - - Total 1 - 1 - 1 1 - - Total Homens: 2 - Total Mulheres: 2 - Total Geral: 4 - 0.52 % Gravidez e Parto Cancro no útero - - - - 1 1 - 1 Parto - - - - 1 1 2 6 Tumor no útero - - - - - 1 - - Total - - - - 2 3 2 7 Total Geral: 14 - 1.82 % Doenças Geniturinárias Bexiga 1 - - - - - - - Moléstia órgãos urinários - - - 1 - - - - Ulceras venéreas - - - - - - - - Total 1 - - 1 - - - - Total Homens: 2 - Total Mulheres: 0 - Total Geral: 2 - 0.26 % Doenças de Pele Elefantíase - 1 - - - - - - Total - 1 - - - - - - Total Homens: 1 - Total Mulheres: 0 - Total Geral: 1 - 0.13 % Idade Avançada Catarro Senil 1 1 - - 1 1 - - Catarro Sufocante - 1 - - - - - - Gangrena Senil - - - - - 1 - - Marasmo - - 1 1 - 1 - - Velhice - 1 - - 1 1 - - Total 1 3 1 1 2 4 - - Total Homens: 6 - Total Mulheres: 6 - Total Geral:12 - 1.56 % Doenças Conhecidas Alcoolismo - - - - - - - 1 Cancro - 1 - - - - - - Laringite - - - - 1 - - - Nevralgia - - - - - - 1 -
96
Total - 1 - - 1 - 1 1 Total Homens: 1 - Total Mulheres: 3 - Total Geral: 4 - 0.52 % Doenças mal Definidas Anasarca 2 2 - - - - - - Anemia / Anemia geral - - - - 1 - - - Acesso Pernicioso - - 1 - - - - - Ataque 2 - 2 1 2 - 1 1 Ataque Epeletiformes - - - - - - 1 - Ataque de Estencos - - - - - - 1 - “Cachesia” 2 - 2 2 - - - - “Cachesia Sifilica” 1 - - 1 - - - 1 Congestão - - - - 1 - - - Despelsia Petalosa - - - - - - - 1 Diarréia de Sangue - - - - - 1 - - Diathese Lactosa - - - 1 - - - - Eachtismo e Ostro 1 - - - - - - - Entras na nuca 1 - - - - - - - Epigem 1 - - - - - - - Efrigem - - - - 1 - - - Febre 24 - 2 3 10 5 3 1 Febres - - - 1 - - - - Febre Adynamica 1 - - - - - - - Febre Álgida 1 - - - 1 - - - Febre Paludosa 1 - 1 1 1 1 - - Fogo Bravo - - - - - - 1 - Hemiplagia 1 - - - - 1 - - Hidropezia - - - 2 1 1 - 1 Hymplesia - - - - - 1 - - Hypigite 1 - - - - - - - Inflamação 2 - 2 - 2 1 - - Lesão orgânica 2 - - - 1 - - - Lepticemia - - 1 - - - - - Longa enfermidade - - - 1 - - - - Moléstia interna 45 3 8 4 37 11 9 5 Marasmo - - - 1 - - - - Moléstia orinas 1 1 - - - - - - Moléstia de peucomonia - - - - - - - - Mephasia ou Hepais - 1 - - - - - - Plenepomonia 1 - - - 1 - - - Repentinamente 9 2 1 5 1 1 1 2 Ulcera Crônica - - - - - 1 - - Ulceras Nasais - - - - - 1 - - Total 99 9 20 23 60 25 17 12 Total Homens: 151 - Total Mulheres: 114 - Total Geral: 265 - 34.42 % Total Geral: 770 - 100% Fonte: Livro de Óbitos das pessoas Livres da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. CDH.
No caso da Febre Amarela, o indivíduo estaria imunizado por alguns anos se fosse
infeccionado em tempos pretéritos. Em outras palavras, a falta de contato anterior com a
infecção, levou muitos estrangeiros livres a morte, conforme nos informa Mary Karasch. Na
análise do livro de óbitos de escravos, ainda seguindo as tabelas 14 e 15, nenhum caso da
doença causou morte neste grupo. Mas entre os livres e libertos, significou a morte de 13
(1.69%) homens, sendo 12 brancos e 1 sem cor mencionada; e 2 (0.26%) mulheres, 1 branca e
97
1 sem cor, representando 6.52 % das causas mortis do grupo de doenças infecto-parasitárias.
A febre biliosa e a malária fizeram um número de mortes nos navios que aportaram na ilha de
Moçambique. O número de mortes provavelmente foi grande, devido ao descumprimento da
recomendação portuguesa para não se aportar na costa da África no retorno das Índias. 177
As doenças respiratórias acometiam muitos escravos na sociedade escravista de
Vassouras. Vários são os fatores que corroboraram para a existência dos males pulmonares.
Algumas fazendas, na década de 1860, adotaram ventiladores movidos a força, que segundo
Stanley Stein, aumentou a poeira dos engenhos, elevando o grau de insalubridade nos
escravos, “percebido pelo hábito de tossir e cuspir acompanhado de complicações
respiratórias”.178 Os escravos tiveram 8.60 % (24) de mortes relativas a esta causa. Os
indivíduos livres e libertos apenas 2.60% (20). Se compararmos todos os grupos de doenças
relacionados, podemos verificar que neste, se encontra a maior diferença. Nos períodos mais
frios do ano uma simples gripe poderia ser tornar uma pneumonia.
Os africanos, segundo Mary Karasch, eram mais suscetíveis a estas doenças e
“aparentemente tinham uma mortalidade mais alta e maior probabilidade de morrer delas que
os brancos”. 179 Neste grupo de moléstias, a pneumonia foi a mais expressiva para os
escravos: 3.94% do total das doenças registradas: 10 (3.58%) homens e 1 (0.36) mulher
tiveram como causa mortis a pneumonia. Para o mesmo grupo, a Bronquite (0.71%) foi mais
representada entre os indivíduos do segundo grupo: 4 (0.52%) homens, 2 brancos, 1 pardo e 1
sem cor informada. Entre as mulheres apenas 1 (0.13%) parda.
O Sistema Digestivo, como observamos nas tabelas 13 e 14, foi responsável pela
morte de 4.30% dos escravos e 5.19% de livres e libertos. Se no Rio de Janeiro era o segundo
grupo mais letal das moléstias, em Vassouras ocupou o sexto lugar. Provavelmente, como
assinala Mary Karasch, os médicos do século XIX utilizavam a diarréia para justificar a morte
de um escravo. Pouca higiene, precário saneamento, má manuseio de alimentos e a
proximidade dos mesmos com lixo como descrito no capítulo I, são fatores que podem estar
intimamente relacionados à estas doenças.
Moléstias do Sistema Nervoso afetaram e levaram a morte 7.89% de escravos e 7.01%
de livres e libertos, segundo as informações dos Livros de óbito da paróquia. Entre os cativos
177 CARVALHO, Diana Maul de. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: PORTO, Ângela (org). Doenças e escravidão:sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. p. 15. 178 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 65. 179 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro, 1808 – 1850. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 242.
98
ocupavam o quarto lugar dos problemas de saúde que mais ocasionaram mortes, sendo a
“Congestão Cerebral” a mais evidente. Dela faleceram 7 (2.51%) homens escravos. Ela
também foi significativamente importante entre libertos e livres, 12 (1.56%) homens e 4
(0.52%) mulheres. A segunda mais mencionada foi a Apoplexia: 4 (1.43%) mulheres
escravas. Somente 2 (0.26%) homens do segundo grupo foram vítimas da doença.
“Amolecimento Cerebral” e “convulções” foram as enfermidades mais comuns do sistema
nervoso entre os indivíduos livres.
Doenças relativas ao Sistema circulatório somam 31 (11.11%) entre os escravos: 13
(4.66%) homens e 18 (6.45%) mulheres. Os livres e libertos somam 54 (7.01%): 37 (4.80%)
homens, sendo 22 brancos, 4 pretos e 11 sem cor. Mulheres foram17 (2.21%), 2 brancas, 6
pretas, 2 pardas e 7 sem cor. Escravos morriam em maior número que os livres de causas
cardíacas. Se no Rio de Janeiro poucos escravos morreram de problemas do coração na
primeira metade do século XIX, em Vassouras a partir da segunda metade do mesmo século,
foi o segundo maior grupo de mortes identificadas entre os escravos. Entre os livres e libertos
as descrições são mais específicas: angina e aneurisma. Nos inventários apenas 12 (0.58%)
escravos traziam alguma doença cardíaca mencionada.
Crianças ainda na primeira infância somavam um grande número de mortos, entre
escravos, libertos e livres. Contudo, a causa mortis não foi informada na maioria dos casos.
As que tiveram alguma doença mencionada representam 0.36% e as livres e libertas 5.06% do
total de moléstias no seu grupo específico. Crianças escravas e livres eram vulneráveis às
doenças nos séculos XIX. Muitas não ultrapassavam os sete anos de idade. As livres morriam
de dentição, mal-dos-sete dias – doenças específicas da primeira infância -, as escravas não
tinham a causa mortis informada na maior parte dos assentos de óbitos. Além dessas causas
mortis, houveram outras que também levavam ao óbito indivíduos adultos.
Seguindo os indícios dos Livros de Óbitos, doenças associadas a gravidez pouco
matavam. Mulheres escravas correspondem a 1.44% das que morreram de algum mal
relacionado a este, enquanto as livres e libertas à 1.82%. As cativas que tiveram alguma
moléstia do gênero e foram contabilizadas nos inventários, são 0.58% do total quantificado.
Devemos considerar da mesma forma, que muitos registros não traziam a verdadeira
causa mortis, como nos demonstra Stanley Stein, pois, “tão difundido era o uso do chicote
que termos como apoplexia fulminante e congestão cerebral eram empregados como
esclarecimento médico para mortes induzidas pelas chicotadas”. 180Os castigos físicos eram
180STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 173.
99
certamente um dos motivos que levavam ao sepultamento precocemente escravos nas
fazendas de Vassouras. E provavelmente daí decorra termos utilizados como causa mortis que
não encontram explicações científicas hoje. Mas se a prática de castigos era usual na
sociedade escravista, porque camuflá-la nos registros?
Sabemos que a proposta de Ambrozio de Souza Coutinho, um dos fundadores de
Vassouras, nos regulamentos municipais de 1829 sobre possíveis punições para senhores que
maltratassem seus escravos com pancadas, chicotadas ou práticas desumanas comprovadas
por testemunhas, fora recusada.181 Então, porque escamotear os fatos verdadeiros que levara a
morte um escravo? Na percepção de alguns fazendeiros, o escravo era uma propriedade.
Talvez aí se encontre uma solução para as muitas questões que surgiram com esse trabalho. A
preocupação com a visão da sociedade da época pode ter sido uma das causas para tal fato,
tendo em vista que o status social era algo importante; ou seja, o fazendeiro poderia não ser
bem visto pela opinião pública ao tratar seu escravo de forma “desumana”. Outra
possibilidade de análise seria porque muitos assentos eram feitos pela igreja, que tinha o
domínio simbólico sobre a ideologia da época.
O escravo de Geraldo de Souza Correia foi encontrado açoitado até a morte nos cafezais da fazenda vizinha de Felix do Nascimento Costa. Diziam que o capataz de Costa, Manoel da Ilha, recebeu ordens para chicotear todos os escravos que usassem um caminho próximo para retornar às suas fazendas vindos de uma venda no campo. O magistrado municipal registrou que o escravo havia morrido de congestão cerebral – exatamente os termos usados quando outro médico examinou o cadáver de Constança, uma escrava surrada até a morte por sua senhora, esposa de um Oliveira Barcellar. 182
Mortes violentas foram pouco representadas nos registros oficiais da igreja para livres,
libertos e escravos. Suicídio, afogamento, tiro, mordida de cobra são os mais comuns. Estas
respondem pela morte de 5.01 % escravos e de 4.03 % livres e libertos, sendo 14 brancos, 3
pretos, 5 pardos e 9 sem cor entre homens e mulheres. Os suicídios que aparecem em poucos
registros, podem ser lidos como uma forma de resistência escrava à sua condição jurídica. As
resistências podiam ser pacíficas, no caso das fugas ou da negação ao trabalho. Mas também
podiam ser violentas, como assassinato de senhores ou feitores. Alguns escravos utilizavam a
força para fugir de castigos já declarados, outros por meio de uma faca ou qualquer objeto
181 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 170-171. 182Idem . Ibidem. p. 171.
100
cortante, tiravam a própria vida, como sugerem os registros de óbito.183 O maior percentual de
doenças são as que não ficam bem definidas para escravos, livres e também nos inventários.
Respectivamente são 38.35%, 34.42% e 34.58%.
Nos inventários, as doenças são informadas condicionadas ao valor que deveria ser
atribuído ao escravo. Portanto, de forma diferente da apresentada nos assentos de óbitos. O
que interessava neste tipo de documento, é se a doença impossibilitaria o cativo para o
trabalho, diminuindo o valor do patrimônio a ser considerado.
Tabela 16 - Doenças e Defeitos de Escravos listados nos Inventários post mortem: 1840-1880. Doenças infecto-parasitárias 1840-49 1850-59 1860-69 1870-79 1880 Bexiga 0 0 1 0 0 Bouba 5 5 3 0 0 Eerisipela 1 1 4 0 1 Opilação 2 7 12 5 0 Tuberculose 0 0 2 1 0 Total 50 – 2.44% Sistema Digestivo Barriga 0 0 3 0 0 Fígado 0 1 0 1 0 Estomago 0 2 1 0 0 Intestinos 0 1 0 0 0 Total 9 – 0.44% Sistema Respiratório Asma 0 3 10 11 1 Doente do Peito 2 7 7 0 0 Sofre do Peito 0 0 1 1 0 Total 43 – 2.10% Sistema Nervoso Ataque de Nervos 0 0 1 0 0 Eplepsia 0 0 1 0 0 Total 2 – 0.10% Doenças Mentais Apatetado 0 2 0 0 0 Apatetado sem Valor 0 1 0 0 0 Ataque da Cabeça 0 1 0 0 0 Demente 0 2 1 0 0 Demente sem Valor 0 0 1 0 0 Doença Mental 2 0 2 2 0 Doido 0 1 0 1 0 Doido sem Valor 0 1 1 1 0 Histérica 1 0 1 0 0 Idiota 0 0 0 1 0 Idiota sem Valor 0 1 1 2 0 Louco sem Valor 0 0 1 0 0 Maníaco 0 0 1 0 0 Maluco 0 1 3 0 0 Maluco sem Valor 0 2 0 1 0 Sofre da Cabeça 0 0 1 0 0 Total 36 – 1.76% Sistema Circulatório Coração 0 1 6 3 0 Coração sem Valor 0 0 2 0 0
183 Idem . Ibidem. p. 176.
101
Total 12 – 0.58% Doenças do Sistema Osteomolecular Gota 2 9 7 12 0 Gota sem Valor 0 1 0 0 0 Reumatismo 0 3 8 9 0 Total 51 – 2.48% Sistema Geniturinário Doente dos Rins 0 0 0 1 0 Defeituoso nos Escrotos 1 0 0 0 0 Total 2 – 0.10% Perda/Deficiência de um dos Sentidos Cego 3 6 2 1 0 Cego de um olho 5 8 14 7 1 Caolho 0 1 0 1 0 Quase cego 1 1 4 0 0 Cego sem Valor 1 1 9 7 0 Ferida no Olho 2 1 0 0 0 Sofre das Vistas 0 1 3 2 0 Torto de um olho 0 1 0 0 0 Belide 1 3 1 1 0 Mudo 0 1 1 0 0 Surdo 0 1 4 0 0 Surda Muda 0 1 0 0 0 Rouquidão 0 1 0 0 0 Zarolho 0 0 0 1 0 Doente dos olhos 0 8 1 0 0 Doente dos olhos sem Valor 0 1 0 0 0 Doente dos ouvidos 0 1 0 0 0 Doente do ouvido e olhos 1 0 0 0 0 Doente e surda 0 0 1 0 0 Total 112 – 5.46% Defeitos Físicos Defeituosos 16 11 26 31 1 Defeito Natural 0 0 0 1 0 Defeito nas pernas 1 0 2 3 0 Defeito nos Pés 1 1 7 4 0 Defeito pés e pernas 1 0 0 0 0 Defeito no braço 1 2 3 2 0 Defeito na mão 0 0 1 1 0 Defeito nos olhos 1 0 1 1 0 Defeito nas costas 1 0 1 0 0 Defeito no peito 0 1 0 0 0 Defeituoso sem valor 0 0 0 1 0 Corcunda 0 0 0 2 0 Pequeno defeito 0 0 1 0 0 Total 126 – 6.15% Aleijados Diversos Aleijado (a) 11 38 36 37 1 Aleijado brado 0 1 2 0 0 Aleijado mão (s) 0 4 2 4 0 Aleijado Perna (s) 1 4 0 3 0 Aleijado perna sem valor 0 0 1 0 0 Aleijado pé 0 2 2 1 0 Aleijado sem valor 0 1 3 1 0 Aleijado por ser gordo 0 0 1 0 0 Total 157 – 7.66% Doenças mal Definidas Doente 57 125 197 197 6 Doente sem valor 2 6 8 2 0 Doente de Cravos 0 1 0 0 0
102
Doente Crônico 0 0 1 0 0 Doente das Cadeiras 0 2 1 0 0 Doente “escrophuloso” 0 1 0 0 0 Dor no peito 1 0 1 0 0 Sempre Doente 0 9 0 0 0 Meio Lerdo 0 0 0 1 0 Muito Doente 8 11 15 5 0 Muito Doente sem Valor 0 4 3 0 0 Preguiça 0 0 1 0 0 Adoentado 0 3 2 0 0 Achacoso 2 0 0 0 0 Feridas 0 0 5 0 0 Ferida Crônica 2 4 0 0 0 Com Feridas 3 10 3 1 0 Quartado 0 4 1 0 0 Queixa de Dor 0 1 0 0 0 Sofre de Lesão 0 0 0 1 0 Sofre de Ataques 0 0 1 0 0 Sofre da Junta 0 0 1 0 0 Total 709 – 34.58% Doenças ligadas ao trabalho/Acidentes Quebrado 20 67 89 113 4 Quebrado a virilha (s) 4 3 3 0 0 Muito Quebrado 0 0 0 1 0 Descadeirado 0 1 0 0 0 Rendido 2 3 0 11 0 Rendido de uma virilha 1 1 1 0 0 Torto 1 0 3 0 0 Entrevado 0 1 0 0 0 Paralítico 0 1 3 4 0 Paralítico sem valor 0 1 1 1 0 Inutilizado 0 0 0 3 0 Inutilizado sem valor 0 0 1 3 0 Inválido 1 3 9 24 0 Inválido sem valor 0 1 14 16 1 Moléstia sem valor 0 0 0 1 0 Moléstia incurável sem valor 0 0 0 0 1 Quase inutilizado por moléstias 0 0 0 1 0 Quase paralítico braço e perna esq. 0 0 1 0 0 Total 419 – 20.44% Defeitos que prejudicavam o trabalho: pés e pernas Cambaio 0 1 0 0 0 Cambeta 0 0 4 1 0 Cambeta das pernas 0 2 0 0 0 Capenga 0 0 1 0 0 Chaga antiga em uma perna 1 0 0 0 0 Chaga incurável em uma perna 2 0 0 0 0 Coxo (a) 0 1 1 0 0 Doente dos pés 2 1 1 0 0 Doente da (s) perna (s) 1 0 1 0 0 Dores nas pernas 0 2 0 0 0 Ferida na perna 2 1 4 0 0 Mal das pernas 0 0 0 1 0 Manco (a) 0 2 1 2 0 Maneta 0 1 0 0 0 Pés inchados 1 1 4 0 2 Perna de pau 0 1 4 1 0 Perna inchada 0 0 0 3 0 Perna cortada 0 0 0 1 0 Pernas Sambas 0 1 0 0 0
103
Perna Fraturada 0 0 1 0 0 Sofre das pernas 0 0 1 0 0 Torto das pernas 7 8 14 3 1 Ulcera Crônica na perna 1 0 0 0 0 Zambra das pernas 0 1 1 0 0 Total 93 – 4.54% Doenças prejudiciais ao trabalho: mãos e braços Doente das mãos 0 0 2 0 0 Fistula embaixo do braço 1 0 0 0 0 Paralítico do braço 0 0 1 0 0 Sem uma mão 0 0 1 0 0 Total 5 - 0.24% Doenças e Defeitos conhecidos ou identificados Cancro 0 0 0 1 0 Cancro no Nariz 0 0 0 1 0 Elefantíase 1 2 2 4 0 Embriaga-se 0 0 0 1 0 Espinha (sofre) 0 0 0 1 0 Gordo 0 1 0 0 0 Hérnia (todos os tipos) 2 4 0 1 0 Hidropezia 0 1 0 0 0 Rutura no umbigo 1 0 0 0 0 Moléstia crônica no nariz 0 1 0 0 0 Ferida no umbigo 0 1 0 0 0 Morfético (lepra) 0 2 1 2 0 Principio de Cólera 0 1 0 0 0 “Phistuloso” 0 0 0 1 0 Lazaro (doença de chagas) 0 2 0 0 0 Beiçudo sem valor 0 1 0 0 0 Elefantíase sem Valor 0 1 0 0 0 Hidropezia sem Valor 0 0 1 0 0 Morfético sem Valor 0 0 4 3 0 Lazaro sem valor 1 0 0 0 0 Total 41 – 2% Doenças da Pele e Sistema Celular Subcutâneo Ferida Cancrosa face e corpo 0 1 0 0 0 Hidrópica tumor espalhado pelo corpo 0 1 0 0 0 Mancha branca 0 1 0 0 0 Total 3 – 0.15% Idade Avançada Idoso 0 5 1 0 0 Velho (a) 2 35 81 3 0 Velho doente 0 1 2 0 0 Velho quebrado 0 3 1 0 0 Velho aleijado das mãos 0 1 0 0 0 Muito velho 1 5 7 4 0 Velho sem valor 0 3 2 0 0 Muito velho sem valor 0 4 4 0 0 Total 165 – 8.05% Mais de uma moléstia Barriga d’água e congestão do fígado 0 0 1 0 0 Hérnia e Reumatismo 0 1 0 0 0 Moléstia coração e morfética 0 0 1 0 0 Doente mental e opilado 0 0 1 0 0 Rouquidão e manchas no corpo 0 1 0 0 0 Total 5 – 0.24% Doenças ligadas a gravidez Útero 0 2 0 4 0 Metrite crônica 0 0 1 0 0 Parto 0 0 1 0 0
104
Total 7 – 0.34% Desnutrição Caquético 1 0 1 0 0 Raquítico 0 0 1 0 0 Total 3 – 0.15% Total Geral: 2.050 – 100% Fonte: CDH. Banco de dados, Inventários post mortem, 1840-1880. Neste corpus documental, são catalogadas doenças ou imperfeições de cativos por
décadas. Comparando com as que causavam óbitos temos uma inversão dos valores atribuídos
a cada um dos grupos. Se entre eles nos livros paroquiais as infecto-parasitárias eram as
responsáveis pelo maior número de óbitos, nos inventários elas significam apenas 2.44%. As
relacionadas ao sistema respiratório são 2.10% e entre os escravos representam 8.60% do
total. As de maior vulto são as moléstias que geravam defeitos e deficiências de um modo
geral. Se levarmos em conta as relacionadas à visão, audição, invalidez, obesidade, defeitos
nos membros inferiores e superiores, teremos um total de 46.97%. Consideramos que a
relação existente entre imperfeições, moléstias e patrimônio, norteavam as anotações feitas
nos inventários post mortem.
Algumas moléstias não afastavam, ao menos inicialmente, o escravo de suas
atividades, não significando perda de mão-de-obra e de capital. Gonçalo crioulo, embora
doente, foi avaliado em 1.400.000 réis. Da mesma forma, José Pinto de Nação 42 anos, perna
de pau que teve seu preço estimado em 1.200.000 réis. Mesmo sem um membro alguns
cativos tinham um custo, como Sabino 5 anos sem um braço, 400.000 réis. Outras, entretanto,
constituíam perda no total do patrimônio, pois o cativo não teve nenhum valor a ele atribuído.
Este é o caso de Eva, Nação com 50 anos de idade, doente; Maria casange diagnosticada
como demente; Delfino aleijado e Floriano, inválido. Muitos são os impossibilitados para o
trabalho por doenças congênitas ou adquiridas que representam uma perda de patrimônio.
Os idosos correspondem um grupo específico. O fator idade já incidia no preço deste
cativo e se doente o tornava inválido. No ano de 1860, Pedro nação Moçambique, foi
considerado muito velho e sem valor. Algumas doenças eram peculiares da senilidade
causando a morte de 1.56% dos livres e libertos. Entre os escravos faleceu em 18 de agosto de
1880 de moléstia interna e velhice, Manoel preto africano com 70 anos. Nos inventários
8.05% dos cativos tiveram anotações relativas a idade avançada.
105
3.2 – Doenças e Manuais.
Imbert em seu Manual do Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as enfermidades
dos negros com segunda edição em 1839 (a primeira havia sido publicada cinco anos antes),
aumentado e ampliado em mais um volume, demonstra a importância do mesmo para os
proprietários de escravos que não tinham fácil acesso a um cirurgião ou médico em suas
fazendas cotidianamente. Ele o dedica a todas as classes.
Logo no início do seu manual, deixa pistas da importância de um trabalho nestas
proporções para o cotidiano nas fazendas de café, no referente aos cuidados com os cativos.
Agradecendo o “acolhimento tão favorável” da primeira obra, indica o incentivo para a nova
edição. Embora a data da segunda publicação seja anterior a lei Euzébio de Queiros em 1850,
devemos ter em conta que fatores internos e externos geravam preocupação em torno da mão-
de-obra cativa. A pressão inglesa para o fim do tráfico transatlântico já existia desde 1830.
Rebeliões e quilombos levavam fazendeiros a rever seus métodos de controle sobre seus
escravos. Destarte, manter a propriedade escrava existente poderia garantir a sobrevivência da
fazenda quando o acesso à mão-de-obra não fosse tão ostensivo. O autor se predispunha a
atender às necessidades urgentes da falta da medicina e de independência dos senhores
fazendeiros, que se encontravam “isolado, bem que no meio de huma [sic] rica e vasta
propriedade povoada de grande número de escravos”.184
A introdução faz menção aos povos civilizados e a tentativa destes em por fim ao
tráfico de escravos, “designada pelo nome de commercio de escravatura”.185 O comércio de
sangue descrito por Imbert é questionado, demonstrando já antes de 1850, existir uma
preocupação com o seu fim. Ele menciona Inglaterra, França, América do Norte, colocando o
Brasil dentre eles, como países que tinham representantes contra o comércio de cativos.
Quanto ao fim da escravidão ele afirma:
Ella só tem fallado ao futuro; nem podia sem injustiça endereçar-se ao passado: fôra defender direitos adquiridos, e causar perturbação e desarranjo nas fortunas. A escravidão subsiste pois ainda em grande parte nas Ilhas e no Continente Americano, particularmente no Brasil; mas aqui será incontestavelmente mais doce e mais humana, pois que a difficuldade de dar
184 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. p. 12. 185Idem . Ibidem. p. 11.
106
substituição ao que se possue fará recorrer os meios os mais convenientes de conservar o que já se tem. 186
Pensando justamente em conservar sua propriedade, deveriam os senhores atentar para
a condição de vida de seus cativos, indispensáveis para o trabalho nas terras de fazendeiros
que se encontravam isolados no amplo território do Império. “Lhes [é] forçoso exercer a
medicina” 187 em socorro de seus familiares e dos negros, que segundo Imbert, eram mais
susceptíveis de contrair doenças. Nesta conjuntura, decorrem as menções ao modo de vida de
escravos, que muito contribuía para a ocorrência de enfermidades.
Diferenças físicas e intelectuais entre negros e brancos são destacadas, onde aquele é
inferior a este, devido a isso mais propenso às corrupções morais. Taunay defende esta tese,
identificando-as por “doenças fingidas” e as mesmas deveriam ser combatidas com o devido
rigor. O negro na concepção do doutor Imbert, nasceu para o trabalho forçado e para residir
em climas quentes. O clima no Brasil, embora muito quente, é úmido devido às intensas
chuvas, o que torna os escravos mais susceptíveis há algumas doenças.
No capítulo I de seu manual, o doutor Imbert aponta as características que devem ser
consideradas ao se comprar um escravo, recorrendo a um cirurgião ou médico, que emite um
juízo considerando o preço no mercado. Demonstra as diferenças entre os negros do Alto
Guiné ou da Costa do Ouro, com o do Baixo Guiné, ou do Reino do Congo. E a partir de
traços físicos define e segrega o bom do mal escravo, o que serviria aos propósitos dos
fazendeiros ou não. 188 O capítulo II apresenta os cuidados gerais que se deveria ter com os
doentes. No seguinte, trata dos temperamentos, esse sempre associados a doenças.
A cirurgia popular ocupa o capítulo IV indicando métodos de primeiros socorros. O
Título II trata da “physiologia”, incluindo noções de anatomia humana. Esta necessária para
se aplicar alguns medicamentos e no diagnóstico de doenças. Cirurgia popular, febre,
“morphea”, elefantíase, tétano, opilação, escorbuto, impingens, erisipela, tísica pulmonar,
bobas, Hydrophobia, Bexigas, Sarampo, tosse convulsa, Hemopthise, Apoplexia, Desynteria,
gastrite, inflamação do fígado, moléstias verminosas, Hydropesia, moléstias principais dos
órgãos da respiração, moléstia do cérebro, moléstias das mulheres, doenças das crianças, têm
um capítulo específico. Da mesma forma, tratamento das moléstias, substâncias medicinais
186 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. p. 12. 187 Idem . Ibidem. p. 13. 188Idem . Ibidem. capitulo I. p 4.
107
são devidamente incluídos no manual, bem como o nome que recebem em cada local do vasto
território do Império do Brasil.
O Manual do Agricultor Brazileiro ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos
negros, de 1839 de Taunay é um compendio da obra do doutor Imbert. Nele, o autor lista as
principais doenças que acometiam os negros: Bicho dos pés, Bobas, Cabeça de prego e
Entraz, Constirpação, Contusões, Convulsões, Coquelucha, Doença dos olhos, Doenças
Fingidas, Dysenteria, Erysipelas, Febres Intermittentes, Perniciosas, Terçans e Quartans,
Impingem, Lombrigas, Mal Venéreo ou Syphillis, Retenção de Ourinas, Sarna e Tétanos.
Neste “pequeno tratado”, assim Taunay o qualifica, detém-se em explicar alguns
sintomas, características das doenças, como tratá-las, principais alimentos que poderiam
ajudar na recuperação, como extrair alguns tipos de mazelas e principais cuidados. Entretanto,
não menciona as doenças que mais matavam escravos como tuberculose e pneumonia,
segundo a análise dos registros de óbito de Vassouras. Supomos que tais doenças não
mereciam gastos, tendo em vista que levavam à morte. Nos ateremos aqui nas doenças que
mais aparecem tanto nos registros de óbitos, quanto nos inventários post mortem.
Bobas é classificada como endêmica, se dividindo em boba secca e boba humida,
ambas são mais recorrentes nas partes genitais, mas podem ocorrer em outras partes do corpo.
Sendo mencionada tanto nos Registros de óbitos, quanto nos inventários. O tratamento é o
mesmo para as duas. Note-se a especificação para cada passo a ser dado:
banhos trepidos pela manhã e de noite, ou mesmo loções locaes da mesma agoa tépida tres vezes ao dia; depois da loção enxuga-se com hum pano secco, mas sem esgregar, e salpica-se em cima mercúrio doce. O resguardo mais restrico he de rigor, e a bebida, deve ser decocção de salsa, de 8 a 10 chicaras por dia; a cura se fecha por algumas purgas salinas. 189
A preocupação com a higiene é inconteste, o que sugere que banhos não eram tão
comuns entre os cativos, sendo necessário ficar registrado por escrito, como uma medida a ser
tomada para a cura da doença. Entre os proprietários, parece não ter havido uma higiene
muito melhor, tendo em vista a importância dada aos banheiros na construção de fazendas.
Segundo Stanley Stein, “os banheiros não eram partes essenciais na maioria das fazendas;
bacias para banhos, como tinas, e inúmeros urinóis com ou sem tampas, sugeriram a riqueza
189 TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia Imperial, 1839. p. 258.
108
de uma determinada família”.190 Desta forma, justifica-se o recorrente incentivo à prática de
banhos descritos no manual de Taunay.
Havia também, ainda se tratando da doença de Bobas, uma individualização para o
tratamento no campo. O que propõe pensarmos em formas diferentes de uma mesma
enfermidade se manifestar em espaços distintos. Para o campo, embora houvesse uma
aproximação quanto à higiene, distingue-se o uso de precipitado vermelho de mercúrio ou
como conhecido vulgarmente, segundo o próprio Taunay, “pós de Joannes”. Menciona
ingredientes da cura presente entre frutas, que provavelmente eram de fácil acesso para a área
rural, como “polpa de banana” e “limão”, este deveria ser utilizado para a limpeza das chagas.
O medo da contaminação ocorre por ser contagiosa não apenas pelo contato, mas por vias
desconhecidas naquele momento.
A “Dysenteria” é mencionada tendo como principal característica as evacuações
sanguinolentas, muitas vezes aparece como “diarrea de sangue”. Sendo geralmente
acompanhadas de “dores vivas e comichões”, não parecendo nenhum mistério para Taunay,
que a afirma “bem caracterizada”. Até mesmo o aspecto do excremento fecal é explicitado
neste tratado. Para o auxílio do tratamento com banhos trepidos e ventosas sobre os pontos
doídos do baixo-ventre, alia-se uma dieta com base no consumo de arroz e “huma lisana de
gomma”.
O período que segue a provável cura, demanda outro gasto para o proprietário. Afirma
Taunay que “acontece não raras vezes que, sarada a dysenteria, os negros se entregarão a hum
appetite voraz, e comem desesperadamente”191. Manifestação que será percebida nos
primeiros dias, evitando assim qualquer gasto a mais, pois os negros após a cura poderiam se
aproveitar da condição de doentes em tratamento e continuar a dar despesas alimentícias ao
seu senhor. A intensidade em afirmar que as refeições deveriam ser em número de três pelo
próprio Taunay, sugere haver uma preocupação com este tipo de gasto. Frequentemente, pela
falta de uma dieta mais apropriada, os escravos ficavam mais suscetíveis à algumas moléstias.
Nos casos de recaídas, que poderiam ser fatais, aconselha-se um tratamento mais
ofensivo e uma dieta que não deveria ser modificada, sendo a única possibilidade de reverter
o caso do doente e sua possível morte e perda de propriedade para o senhor. O que
provavelmente era uma grande preocupação, tendo em vista o custo da propriedade escrava.
190 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 71. 191 TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia Imperial, 1839. p. 200.
109
As febres ganham um espaço significativo dentre as doenças selecionadas por Taunay.
Mencionadas nos registros de óbitos de escravos e livres, não são citadas nos inventários post
mortem. Geralmente, estão associadas ao local de trabalho, pois as mesmas ocorrem “em
certas circunstâncias de localidade (sobretudo a “humidade” do solo e as “aguas
enchercadas”), bem como as estações chuvosas podem promover estas febres”. Apresentam
como características a “completa desapparição dos accidentes fora das horas dos acessos,
porque os doentes até sentem appetite e somente se queixão de fraqueza”.192 Ele divide o
acesso em quatro períodos, primeiro abatimento ou má disposição física e moral, segundo
calafrios, terceiro calor e por último suor. Estes seriam os principais sintomas para as
chamadas febres.
O tratamento recomendado nos casos em que não se apresentam grandes dores de
cabeça e do corpo, seria o descanso, bebidas quentes e emolientes, sobretudo uma dieta
severa, e poucos dias depois estaria curado o dito escravo portador deste mal. Assim são
mencionados os cuidados necessários com febres intermitentes, do quinto ao sétimo acesso
não podiam ser interrompidas.
As febres perniciosas são identificadas quando “o calefrio se prolonga em demasia,
sendo acompanhado de desfallecimentos, syncopas, convulsões, alteração profunda das
feições, etc.”193 Em se tratando deste caso deve-se interrompê-la antes do terceiro acesso. O
tratamento adequado para as chamadas febres terçãs com intervalo de dois dias entre cada
acesso, deve-se primar por uma dieta à base de sopa leve ou mingau, se abstendo do uso de
purgantes no tratamento das intermitentes. Se o indivíduo fosse “jovem e robusto”, o
tratamento também indicado seria a sangria, uma prática bem utilizada na cidade do Rio de
Janeiro, onde a maioria dos sangradores era escravo ou ex-escravo. Este tratamento é
informado como tendo conseguido algumas curas.
As febres quartãs, com intervalos de três dias entre os acessos, seriam as mais
persistentes. Uma vez mais é mencionada a dieta, esta contendo arroz, tapioca, araruta, aletria,
total abstinência de vinho, de carne, de manjares apimentados e de bebidas alcoólicas.
Também faz parte do tratamento exercícios moderados, mas assíduos e uma “vida mais
distraída”. O que demonstra a diminuição de mão-de-obra nestes casos. Entretanto, o que
inicialmente poderia ser vista como perda, com a cura do escravo, mantinha-se o patrimônio.
192 TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia Imperial, 1839. p. 201-202. 193Idem . Ibidem. p. 201.
110
As lombrigas intestinais, nos registros de Vassouras são descritas também como
‘vermes intestinais’, apresentam como sintomas inflamação nos “órgãos da digestão, taes
como dôres de barriga, calor, febre, coloração e augmento ou diminuição do volume da
língua”. A dieta recomendada deveria ser “mui benigno”, dando “a beber huma tisana de
arroz gommada, e huma alimentação mui leve”. Neste caso, Taunay, informa um receituário
para combater tal mal:
1º., em meio copo d’agua fria lançar ao principio 6 ou 8 gotas de ether, que se dá imediatamente ao doente, isso de manhã e de noite, e, passados alguns dias, reforças a dose até 12 a 15 gotas; 2º., hum purgante composto de 2 colheradas de azeite de rícino ou mamono, 2 colheradas de assucar, e outras 2 d’agua para diluir, e na occasião de engulir addiconão-se 12 a 15 gotas de ether. Facilitão-se as evacuações com algumas chicaras de chá de folhas de larangeiras, ou qualquer outro. 194
Não havendo inflamação, muda-se o receituário, sendo o leite de mamão o mais
eficiente para a cura, a medida adequada no tratamento era uma dose de duas colheradas.
Taunay ensina a maneira correta de retirar o leite da árvore, utilizando equipamentos de uso
diário do senhor e de sua família, para possivelmente facilitar o entendimento e manuseio dos
medicamentos.
O mal venéreo ou “Siphiles”,195 também apresenta um certo prestígio ao ser
mencionado por Taunay. Página e meia, detalhada sobre sintomas e curas é dedicada a este
tema. Para os casos menos preocupantes, ou seja, os que não apresentam a complicação de
úlceras, é aconselhado o descanso. Esta doença combinada com o clima do Império do Brasil
poderia ter uma longa duração. O tratamento prescrevia uma dieta vegetal e meio banho de
água morna à noite, alimentação específica e higiene associado a estas indicações. Alguns
cuidados mereciam atenção e o autor informa, o que não fazer em alguns casos. Nestes, evitar
injeções ou remédios violentos que causavam irritação nas vias urinárias. O mais adequado
para o tratamento do mal venéreo, mas somente se a purgação continuasse sem a dor que
acompanha o ato de urinar, seria o uso de água de alcatrão em quatro copos ao dia, que levaria
ao resultado desejado em quatro ou cinco dias, sendo mais eficiente no inverno.
Nos casos dos tumores serem dolorosos, indicava-se o uso de “cataplasmas de farinha
de mandioca, mudadas três vezes ao dia, até que a inchação esteja resolvida, ou tenha
suppurado”. As úlceras mais resistentes, deveriam ser salpicadas com mercúrio doce em pó
194 TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia Imperial, 1839. p. 202. 195 Idem. Ibidem. p. 203.
111
sutil de três a quatro vezes ao dia, banhando-se cada vez a parte doente com água morna todas
as noites. Estando associada a esta indicação a dieta vegetal e a tisana de salsa, evitando
preparações ácidas, especialmente o vinagre. O tratamento era longo e demandava descanso,
fato que “alivia” os temores de perda da mão-de-obra, pois no fim “o doente já está apto para
o serviço”.
Tétanos,196 ou rigidez de todos os músculos dos membros e do tronco era muito
comum entre os escravos. O procedimento mais eficaz seria a sangria, ventosa e “bixas” de
todos os pontos da cabeça, peito, ventre etc. Minuciosamente, Taunay explica o modo pelo
qual ela deveria ser feita: “sempre ao comprido do músculo e nunca de través”. Associado a
este, deveria ser ingerido ao mesmo tempo de doze a quinze gotas de “laudanum” liquido,
sendo a dose aumentada de vinte a trinta gotas, ministrada em qualquer chá quente e
adocicado. Mas o veredicto final é alarmante, pois, para este autor, “he quasi milagre quando
o “tétanos” confirmado não termina fatalmente.” Indicando que o mal maior, a perda da
propriedade, era certa em alguns casos.
A especificidade dos cuidados necessários para doenças, sublinha a preocupação com
a eficácia do manual para fazendeiros. Estes nem sempre tinham a presença de um médico ou
de uma farmácia em suas propriedades. Além dos métodos e medicamentos indicados, o clima
interferia na cura dos pacientes e deveria ser aproveitado para um melhor resultado dos
tratamentos.
O Barão de Pati do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, ao escrever um
manual em 1847 sobre como construir e organizar a produção de uma fazenda para seu filho,
não reserva um item específico às doenças de escravos. Contudo, destaca a importância de se
preservar a saúde de cativos para se manter a propriedade senhorial, pois segundo ele a
“...imensa mortandade a que estão sujeitos e que devora fortunas colossais, e traz a infalível
ruína de honrados e laboriosos lavradores”. 197 Associando patrimônio e morte de cativos, ele
destaca o tratamento ideal a ser ministrado aos doentes: “nas moléstias devem ser tratados
com todo o cuidado e humanidade. Embora haja cirurgião assistente, o Sr do escravo deve
fazer a sua revista à enfermaria para animar os doentes dar-lhes alívio, acautelando alguma
falta que porventura possa haver”. 198 A questão humanitária também será mencionada por
196 TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brazileiro. Rio de Janeiro: Typografia Imperial, 1839. p. 204. 197 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 63. 198 Idem . Ibidem p. 64.
112
Imbert em seu manual, conforme destacamos abaixo, como forma de olhar para um doente,
principalmente se for escravo. Escravas no período de gestação deveriam receber algum
cuidado. Transferi-las para ocupações domésticas ou mais leves que o trabalho no eito, como,
por exemplo, escolher café, seriam aconselháveis para não se perder a mão-de-obra e a
criança:
Não mandeis a preta que estiver criando à roça por espaço de um ano, ocupai-a em serviço de casa, como lavar roupa, escolher café, e outros objetos. Quando ela tiver seu filho criado há então, deixando o pequeno entregue a uma outra que deve se r a ama-seca de todos, para os lavar, mudar a roupa, e dar-lhe a sua comida. 199
3.3 – Cura: O fim principal.
hum doente, he durante sua enfermidade, hum ente apartado da sociedade de que elle he membro, e esta rigorosamente deve, directa ou indirectamente, interessar-se por elle, e prestar-lhe cuidados tão assíduos, como illustrados: faltar pois a hum dever tão sagrado he, a nosso ver, hum crime de lesa humanidade, e todo o individuo, que soportasse frio, silencioso, e insensivel diante de hum ente, que padece, ainda sendo seu mais cruel inimigo, mereceria ser taxado certamente de ter abjurado o mais nobre dos sentimentos, com que a natureza nos tem dotado, o amor do próximo [...] 200
Talvez com o objetivo de tocar os corações mais irredutíveis, Imbert defina de tal
forma o doente. Entretecendo questões religiosas e sociais, destaca a importância de se cuidar
bem de um doente por ser sua condição incerta e delicada. Tendo em vista que os escravos
eram facilmente substituídos até pelo menos meados do século XIX, os que ficavam doentes
não eram vistos como um problema neste período. A questão apresentada, provavelmente
tenta precaver a falta de mão-de-obra que estaria por vir caso o fim do tráfico ocorresse. Para
tanto, utiliza os valores cristãos como argumento na recuperação de escravos doentes: era “um
dever sagrado e um crime de lesa humanidade” não tratá-los.
Nota-se aqui menção somente ao doente, desvinculando o indivíduo do fato de ser
escravo. Esta condição o colocava em situação atípica, necessitando de plenos cuidados para a
recuperação. Sendo o amor ao próximo um dos mandamentos da Santa Igreja, o senhor é o
199 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1847). In WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. (barão de Pati do Alferes). Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Eduardo Silva (org.) Rio de Janeiro - Brasília, 1985. p. 64. 200 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. cap. II. p. 4.
113
mais próximo do cativo doente e desta forma, aquele que deveria lhe prestar os cuidados
necessários. Em caso contrário, perderia parte de sua propriedade. Pequenos e micro
proprietários poderiam ter prejuízo ainda maior ao perder 1 cativo, em alguns casos, o único
bem.
Atenuando um discurso econômico, a religião é utilizada por Imbert para reiterar o
apelo a possibilidade da perda do patrimônio. Os gastos com um escravo iam além do valor
pago no ato da compra. Alimentação, vestimenta e moradia, eram responsabilidades do
proprietário. No caso de uma doença, para além da questão da diminuição da mão-de-obra
cotidiana, as despesas aumentariam com medicamentos específicos, alimentação adequada e
mão-de-obra própria para atender às necessidades do paciente. Como mencionado no capítulo
I, existiam proprietários que garantiam apenas o mínimo em alimentação para seus cativos.
Poucos iam além das três refeições diárias e cachaça nos dias frios. Para estes casos ele faz a
seguinte observação:
A primeira necessidade para utilidade de hum doente attenuado de uma affecção aguda, he a dieta a mais rigorosa, e absoluta, os prejuizos, como temos dito, não o querem assim, mas os preceitos, e a experiencia prescrevem o mais imperioso dever a este respeito. 201
O número de médicos na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras era
irrisório, e provavelmente, não poderiam atender prontamente todos os fazendeiros. Imbert
tendo conhecimento das dificuldades impostas pela distância que se encontravam algumas
fazendas, descreve minuciosamente como colocado acima, sintomas e tratamentos para
fazendeiros, seus familiares e escravos, justificando a prática da medicina por leigos devido à
necessidade:
Privados de todo o soccorro, ou pelos menos, só podendo mui difficilmente have-lo, por causa da distancia em que estão das Cidades e Villas, e da falta de communicações commodas, elles têm de acudir a si mesmos, e lhes he forçoso exercer a Medicina, não só em benficio seu e de suas famílias, como tambem não se podem dispensar de tratar dos negros, muito mais susceptíveis de contrahir as molestias, que affligem a especie humana. 202
201 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. p. 11. 202 Idem . Ibidem. cap. XIV. p. 12.
114
Segundo Jorge Prata, a transferência da Corte Portuguesa em 1808, foi um marco para
a saúde da antiga colônia, tendo início uma política pública voltada para a higiene, tão bem
mencionada por Taunay e Imbert. Questão que particularizou a atenção para cemitérios,
hospitais e intervenção no meio urbano.203 A preocupação com os cemitérios teve início em
1798, reiterada em 1801 com a carta Régia, dos quais trataremos no capítulo IV. No referente
à saúde e hospitais, pode ter tido grande impacto.
As formas de curas e medicamentos utilizados podiam ser notados nas Santas Casas,
nas próprias fazendas e exercidos por negros curandeiros (feiticeiros, sangradores ou
barbeiros). As variantes são muitas, entretanto, não seguem a um padrão específico.
Provavelmente, nem todas as fazendas tinham uma botica ou farmácia, sequer podiam contar
com a presença de um cirurgião sempre que fosse necessário. Estes são citados por Imbert
quando todos os meios de cura não funcionavam. Como no caso de Retenção de ourinas,
quando ele deveria ser solicitado para esvaziar a bexiga. Destarte, o uso de sangradores era o
mais viável. O mais usual provavelmente, era a utilização de cativos para exercer esta função.
Os escravos sangradores, que dividiam seu espaço profissional com brancos pobres,
eram mais comuns em espaços urbanos, nos inventários encontramos menção a cativos que
tinham como ocupação: “barbeiro”, enfermeiro e parteira. O escravo barbeiro crioulo
pertencente a um mega-proprietário em 1840, faz parte desse pequeno número de escravos
que atendiam as necessidades de cura e cuidados médicos. Enfermeiros, geralmente ex-
estudantes de farmácia, 204 concorriam com escravos como auxiliares na prática e tratamentos
e curas. Um grande proprietário tinha incluído no rol de seu patrimônio, um escravo Congo de
trinta anos de idade no ano de 1850, que exercia esta função. Esses exemplos demonstram a
existência de enfermarias ou locais próprios para a recuperação de escravos como demonstra
Mariosa,205 mas certamente não era privilégio de todas as fazendas. Analisando os inventários
de 1840 a 1880 não encontramos menção à curandeiros ou feiticeiros.
No século XVIII, na região das minas, alguns negros que dominavam as técnicas de
cura de algumas doenças, receberam a aprovação para a prática do ofício de forma legítima.
Excrementos e ossos de defunto, eram utilizados por negros e seus descentes que eram tidos
203 SOUSA, Jorge Prata. Anotações a respeito de uma fonte: os registros de óbitos da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, século XIX. In: Ângela Porto, org. Doenças e Escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007. 204 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 230. 205 MARIOSA, Rosilene Maria. Tratamento e doenças dos escravos da fazenda Santo Antonio do Paiol (1850-1888). In: PORTO, Ângela (org). Doenças e escravidão:sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, 2007.
115
como feiticeiros e também por brancos, mas estes eram designados curandeiros. 206 Desta
forma, podemos perceber que a arte de curar por negros é parte do pretérito colonial, onde os
escravos tentavam sobreviver em tensões que envolviam padres exorcistas e cirurgiões
brancos. Contudo, estes últimos com o domínio e o desenvolvimento das faculdades de
medicina, tiveram garantido o saber e o pleno domínio do conhecimento médico. 207
Embora algumas fazendas tinham em seus domínios uma farmácia, não podemos
associá-las apenas ao tratamento de escravos, em muitos casos atendiam aos proprietários e
seus descendentes. Rosilene Mariosa ao estudar tratamento e doenças de cativos na Fazenda
Santo Antonio do Paiol, da região do Vale do Paraíba Fluminense, cidade de Valença, percebe
que a preocupação com a saúde de escravos ocorreu após 1850, com a criação de uma
farmácia. Nela foi encontrado indícios dos gastos com as moléstias em vários frascos
importados da França, Londres e Holanda. Doenças de pele ocorreram em maior número
naquela fazenda.208 Nos óbitos, as maiores incidências foram principalmente as infecto-
parasitárias e pulmonares. Cotejando com os dados de Mary Karasch, também o eram na
corte. Nos inventários as osteomusculares ganham destaque. Mariosa supõe ter havido
diferenças nas moléstias que se manifestaram no espaço rural e no urbano. As divergências
que percebemos se apresentam nos diferentes documentos analisados e seus principais
objetivos em descrevê-las.
Se no século XVIII, a aguardente e o vinho eram considerados substâncias terapêuticas 209, no XIX, serão indesejadas e atribuídas a um problema de moléstias morais, sendo, pois, a
água considera a melhor bebida. Dieta, banhos gerais ou particulares (atentando se frios ou
quentes de acordo com a doença a ser tratada), cataplasmas, fricções, sangrias, ventosas,
sanguessugas, eram os procedimentos médicos mais comuns e recomendados nos manuais de
fazendeiros. Para Imbert, as considerações acerca do temperamento do indivíduo eram
importantes no tratamento que lhe seria dado. Desta forma, era indispensável um
206 NOGUEIRA, André. Doenças, feitiços e curas: africanos e seus descendentes em ação nas Minas do século XVIII. In: Ângela Porto. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2007. 207 PIRES, Ana Flávia Cicchelli. Viagens atlânticas: a participação dos sangradores no comércio de escravos, 1808-1828. In: Ângela Porto. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2007. p. 21. 208 MARIOSA, Rosilene Maria. Tratamento e doenças dos escravos da Fazenda Santo Antonio do Paiol, 1850-1888. In: Ângela Porto. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2007. 209 NOGUEIRA, André. Doenças, feitiços e curas: africanos e seus descendentes em ação nas Minas do século XVIII. In: Ângela Porto. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2007. p. 12.
116
conhecimento prévio das características pessoais do doente, que permitiriam um diagnóstico
mais preciso. Estar doente é um fato intrinsecamente ligado ao comportamento moral e
psicológico do escravo para Imbert.210
A questão comportamental recebia tamanha atenção que o capítulo III da obra do
doutor Imbert é todo dedicado aos temperamentos como parte do tratamento adequado para a
cura. A associação de temperamentos e doenças pode ser um indício de manipulação ao tipo
adequado de escravo que se desejava obter. Um indivíduo, de acordo com a sua constituição
moral, poderia ou não desenvolver determinadas doenças. É evidente que os piores
comportamentos estavam associados às moléstias mais graves. Provavelmente manutenção da
ordem utilizando os manuais para fazendeiros para alcançar os fins desejáveis.
A cirurgia popular, que recebe um capítulo específico, poderia ser comparada aos
primeiros socorros que atualmente utilizamos. A simples prática de estancar um sangramento
com os dedos e a lavagem da ferida com água corrente é ensinada no manual. Esta prática que
pode causar estranhamento era um elemento eficaz para salvar vidas. Os médicos de
Vassouras paradoxalmente aos barbeiros e curandeiros, eram recrutados entre os graduados
em escolas européias. Eles não atendiam apenas as necessidades médicas da comunidade,
formavam as fileiras da burocracia administrativa, eram professores e editores de jornais
locais. O que diminuía consideravelmente os números de atendimentos e da mão-de-obra
especializada.211
Tendo em conta que alguns registros de óbito de escravos tenham a causa mortis
informada principalmente a partir da década de 1870, pressupomos um investimento mínimo
no tratar do cativo doente. Para se diagnosticar alguma moléstia, era necessário um
conhecimento prévio dos sintomas, feito facilmente em alguns casos por fazendeiros que
tivessem acesso a algum manual disponível. Entrementes, moléstias mais graves precisariam
de um especialista.
Os dados analisados neste capítulo demonstram as preocupações existentes quanto
adquirir bons escravos já no ato da compra. A atenção às características físicas poderia
garantir uma boa leva de cativos para o árduo trabalho no eito por um longo período de
tempo. Entretanto, os próprios costumes sociais poderiam interferir diretamente na saúde
física ou mental daqueles indivíduos. Os castigos aplicados podem vir a ser a causa do grande
210 IMBERT J. B. A. Manual do Fazendeiro. Ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1839. p. 21. 211 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 159, 160.
117
quantitativo de escravos listados nos inventários como “incapazes” ou “aleijados”, bem como
dos que demonstravam problemas mentais.
Os manuais escritos na década de 1830 recomendam maior cuidado com a propriedade
escrava. Para tanto, os senhores deveriam ter muita atenção em caso de doenças, fornecendo
uma alimentação mais saudável e pleno repouso, ou seja, o afastamento do trabalho.
Provavelmente, seria melhor sofrer uma diminuição da produção durante alguns dias, do que
ter efetivamente um menor quantitativo de escravos no eito e no total de seus bens a serem
inventariados. Se os livros paroquiais demonstram pouca preocupação com a causa mortis de
escravos, libertos e livres, os inventários nos apresentam uma rica fonte de análise. Neles,
doenças de cativos estavam atreladas à perda de patrimônio e diminuição de mão de obra,
principalmente a partir de 1850, quando o preço do escravo sofreu um aumento significativo.
Assim, o tratamento dado a cativos moldara a forma de viver, as relações de poder e o
bem morrer. As péssimas condições de higiene, vestimentas, alimentação e trabalho foram
fatores propiciadores e propagadores de doenças, como já destacado. Assim, a morte esteve
presente de forma recorrente na sociedade vassourense do século XIX, demarcando a
importância da Igreja e a sua relação com muitos proprietários de cativos; da mesma forma,
demonstra o poder dos proprietários sobre seus escravos e a hierarquia social entre livres e
cativos. O Hospital da Santa Casa de Misericórdia configurava-se como outra possibilidade
de procedimento médico para escravos e pobres em Vassouras, diferentemente das famílias
mais abastadas que podiam requerer uma visita médica após a chegada da ferrovia; os pobres
contavam com os barbeiros e assistentes de cirurgião, ou, provavelmente, com os
conhecimentos medicinais com base na flora local, ou curandeiros e feiticeiros. Muito embora
a Santa Casa fosse vista como “o local para a morte”, muitos recebiam ali o tratamento
adequado.
118
Capítulo 4: Relações de poder e morte de escravos em Vassouras: análise
comparativa entre libertos, forros e livres.
As relações de poder estavam presentes na sociedade de Vassouras de diferentes
maneiras e nos distintos grupos como mencionado no capítulo I: no número de cativos de um
proprietário, na extensão de suas fazendas, nos prédios construídos nestas, nas casas urbanas,
na alimentação e nas vestimentas. Da mesma forma, o poder estava presente na morte, sendo
reconhecido ainda que indiretamente. Como diria Bourdieu, “o poder simbólico”, é um poder
não visto, mas que só pode ser exercido com a cumplicidade dos que compõem uma mesma
sociedade.212
Supomos esse simbolismo presente nos ritos e rituais de passagem, no local de
inumação, na condição jurídica do indivíduo de seus pais e cônjuges, na origem étnica, nas
diferentes qualificações por cor, entre os gêneros e idades, na classe econômica e nas vestes
fúnebres. Todos fatores presentes e desejáveis para o “bem morrer”, um acontecimento social
importante no século XIX. 213
A primeira divisão hierárquica entre os mortos era a de “pessoas livres” e “pessoas
escravas”. Esta separação foi somente praticada no 2º. Livro de Óbitos iniciado em 1868. No
primeiro, os cativos são descritos apenas como escravos. Estes se subdividiam em crioulos e
africanos e em alguns casos foi mencionado o local de origem, segundo o porto de embarque
para o Brasil. Da mesma forma, eram qualificados pela cor: pretos, pardos, negros ou cabras.
O estado civil e progenitores são pouco citados. Não havia a necessidade de maiores
diferenciações, eram escravos.
Os livres formavam um grupo mais complexo. Estrangeiros e Brasileiros demarcavam
a origem de nascimento. Homens brasileiros brancos foram encontrados 19, 15 pardos, 13
sem cor definida e 3 pretos. As mulheres: 12 brancas, 6 pardas, 4 pretas e 4 sem cor definida.
Os que vinham de outras nações e lá faleciam eram na maioria portugueses, seguidos por
alemães, chineses, espanhóis, franceses, italianos, prussianos e uruguaios. A África era a
nação dos libertos. Brancos, pretos, pardos, caboclos subdividiam as etnias e cores. A
condição jurídica se aquinhoava entre livres, libertos e forros. Economicamente percebemos a
212 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 7-8. 213 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 129.
119
segregação de ricos e pobres direta e indiretamente. Cônjuges e pais eram informados em
maior número se comparados com os escravos. Estas divisões e subdivisões demarcam as
diferenças raciais, sociais e econômicas na Vassouras do Oitocentos. Interessa-nos entender
como elas são citadas nos registros de óbito de escravos e livres, como forma de reproduzir as
relações de poder existentes e suas estratificações. Nos registros de óbitos essas diferenças
podem ser percebidas direta ou indiretamente, nos indícios camuflados nos assentos feitos
pelo pároco, representante da administração imperial.
As reconstruções em torno da morte e do além túmulo a partir do encontro de culturas
diversas possibilitou uma adaptação, principalmente entre os negros que foram batizados e
seguiram, em certa medida, os padrões da religião dominante. Contudo, não podemos afirmar
que houvessem abandonado sua cultura religiosa anterior. Alguns senhores permitiam a
prática de batuques em suas fazendas, ainda que fosse após os seus rituais. O dia ideal para
que a religião do senhor fosse propagada, atendendo aos seus interesses, era o domingo, dia
do descanso semanal. Este dia era também utilizado para a higiene de roupas e senzalas. A
missa, que deveria ter toda a pompa possível, era utilizada para “arrebatar o espírito dos
negros” supersticiosos e crédulos por natureza.214
Entretanto, os negros poderiam festejar seus folguedos com a permissão senhorial,
uma tentativa de amenizar possíveis rebeliões. A ambigüidade nessa concessão senhorial
possivelmente tornou viável, a reconstrução cultural religiosa dos escravos, que deveriam
participar da cerimônia católica de seus proprietários. Após cumprirem a obrigação, poderiam
fazer as suas próprias cerimônias. Note-se que muitos cativos adotaram a religião de seu
senhor, desejando, na morte, receber os sacramentos finais, bem como missas de corpo
presente.
4.1 – Cemitérios e Hierarquias:
As negociações em torno da religiosidade permitiram uma continuidade cultural
africana dentro das possibilidades existentes na sociedade escravista. Uma das formas de
prestar culto ao ancestral é visitar o seu túmulo, local onde foram depositados seus restos
214 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 275-276.
120
mortais. Nesse sentido, cemitério e sepultura ganham destaque. As sepulturas criadas no
século XVII são individuais e não mais comuns, e no século XIX são utilizadas para livres e
alguns poucos escravos.
“He coftume pio, antigo & louvavel na Igreja Catholica, enterraremfe os corpos dos
fieis Christaõs defuntos nas Igrejas, & cemiterios dellas.”215 O costume “antigo e louvável” de
enterrar os corpos dos cristãos nos recintos religiosos estava presente na Vassouras do século
XIX, onde o local do sepultamento, mormente o realizado dentro da igreja, designava a
importância que tivera em vida o defunto ali inumado. Essa instituição religiosa sofreu
modificações ao longo dos tempos e “na língua medieval, a palavra igreja não designava
apenas o edifício da igreja, mas todo o espaço que o cercava”, como a nave, o campanário e o
cemitério. Neste período histórico, ele era um espaço para pregação, distribuição dos
sacramentos em festas, procissões no pátio ou atrium, espaço considerado abençoado. Os
cadáveres enterrados no seu interior podiam ser encontrados “contra suas paredes e nas
imediações”. 216
Os cemitérios exerciam várias funções além da acima mencionada. Eram feitos, às
vezes, de local para pastagem de animais, feiras, bailes, jogos, atalhos, depósito de lixo,
sanitários públicos, namoros clandestinos e morada de mendigos.217 Sublinhamos que tais atos
eram contra as leis municipais, a decência religiosa e questões morais impostas pela Igreja.
Em outras palavras, divergindo do pensamento atual, não havia na França medieval separação
entre vida e morte, entre o sagrado e o profano.218
A palavra cemitério, atrium ou aître (átrio) era referente ao espaço externo da igreja e
até o século XV, ela pertencia ao latim dos clérigos. Cemiterium tinha origem grega e erudita,
sendo utilizada pela igreja e similar a charnier, que significa carneiro ou ossuário, no francês
contemporâneo. 219 Philippe Ariès, ao analisar os carneiros, preocupou-se com a origem dos
ossos utilizados para a prática de tal arte, informando que os mesmos vinham das grandes
215 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 49. 216 ARIÉS, Philippe. A História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. p. 23. 217 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.p. 73. Apud ARIÈS, Philippe. A História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias; tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1977. 218 Idem, Ibidem. p. 74. 219 ARIÈS, Philippe. A História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. p. 23-24.
121
fossas comuns, ou fossas dos pobres, “largas e com vários metros de profundidade, onde os
cadáveres eram amontoados, simplesmente cosidos em seus sudários sem caixão”. 220 Talvez
esse fato possa nos interessar mais de perto, tendo em vista que em alguns assentos de óbito
em Vassouras, é mencionado o enterro em caixão fechado. Uma grande maioria de cadáveres
foi registrada sem essa menção, o que nos leva a supor que muitos corpos foram enterrados
sem ele. Segundo João José Reis, o caixão contava como elemento de pompa fúnebre, e
apenas ricos tiveram acesso a um no momento da morte. 221 Este provavelmente era outro
fator de estratificação na morte.
O espaço da igreja e seu entorno era motivo de disputa, devido ao seu valor simbólico.
Segundo Ariès, “os defuntos mais ricos eram enterrados no interior da igreja, não em jazigos
abobadados, mas diretamente na terra, sob as lajes do chão; seus despojos tomavam também
um dia o caminho dos ossuários”. 222 Essa menção pode nos dar uma pista sobre as
hierarquias sociais e raciais em torno da morte na Vassouras oitocentista. A prática percebida
no período medieval na França é também encontrada na Freguesia de Nossa Senhora de
Vassouras até meados da década de 1850, não obstante, as várias tentativas do Estado em
abolir essa prática.
Assim como em Portugal e em outros países da Europa, afastar os sepultamentos do
espaço urbano era pretensão do Império do Brasil desde o século XVIII. O processo foi
iniciado em 1798 por um conde que propôs à Câmara Municipal um parecer médico sobre a
origem da insalubridade da cidade. Vários problemas foram apontados pelos médicos, dentre
eles os cemitérios. Em 1801, foi implementada uma nova tentativa de afastá-los da urbe, por
meio de uma Carta Régia. 223 Esta proibia os enterros dentro das Igrejas e ordenava a
construção dos mesmos pelos governadores das Províncias. A questão da saúde pública foi
mencionada. Em 1825, o imperador ordenou por meio de uma portaria ao provedor-mor de
Saúde, a construção de um campo santo, mas não afastou o poder eclesiástico das discussões.
O Decreto Imperial de 1828 criou regulamento sobre o estabelecimento deles fora dos
templos, e a competência da administração foi dada às Câmaras Municipais. O Código de
Posturas, elaborado em 1832 pela Câmara do Rio de Janeiro, fornecia informações sobre
220 ARIÈS, Philippe. A História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. p. 24. 221 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 150. 222 ARIÉS, Philippe. A História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. p. 25. 223 Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 2, n. 16. Rio de Janeiro: [s.e.]. 2007. p. 92
122
necrópoles, enterros e o estabelecimento do atestado de óbito com parecer médico. Mesmo
após sua organização, a maioria dos registros analisados até meados da década de 1860 não
teve a causa mortis informada. 224
As tentativas foram muitas, e as inumações continuavam sendo praticadas dentro das
Igrejas e suas extensões. Em 1841 uma nova proposta chega à Câmara na tentativa de por fim
aos enterros no interior dos prédios religiosos, e, mais uma vez caiu no esquecimento. Novas
discussões surgem em 1843 devido à epidemia de escarlatina no Rio de Janeiro e propõe-se a
construção de um cemitério extra-muros. Alguns homens importantes se mostraram contrários
a essas construções por particulares, defendendo a permanência do domínio religioso. Este era
o pensamento defendido pelo Visconde de Baependi. Como argumento, ele utilizou a
possibilidade de rebeliões populares contrárias que poderiam abalar a estrutura social. 225
Provavelmente, sua argumentação tomou por base a “Cemiterada” da Bahia, que
ocorreu em 1836.226 Nessa manifestação, houve participação de irmandades, homens,
mulheres e párocos, que reivindicavam o direito de sepultar seus mortos em solo sagrado. As
proporções alcançadas por esse episódio, da população contra um cemitério, demonstram a
importância dos enterros ad sanctos no imaginário daquelas pessoas. Em Vassouras não há
indícios de uma manifestação deste vulto, mas houve resistência às várias leis que tentavam
interromper este costume, percebida nos enterros que ocorriam dentro da Matriz.
O projeto sobre o estabelecimento de necrópoles foi levado ao Senado apenas em 1843
e discutido em 1844. Várias emendas foram feitas e enviadas às Comissões de Fazenda e
Eclesiástica, que deram seu parecer em 1845. Todavia, tal projeto ficou esquecido. Matéria
semelhante retornou à Câmara dos Deputados em 1850, havendo uma proposta de criação de
um cemitério municipal. Mas no Rio de Janeiro, a prática de enterros ad sanctos só terminou
com a epidemia de febre amarela em 1850. Essa prática que se estendeu à Vassouras, segundo
as fontes consultadas.
O discurso da Igreja possivelmente colaborou para que os enterros ad sanctos
continuassem até meados do século XIX na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de
Vassouras, da mesma forma que na Corte e outras províncias do Império do Brasil. Isto
porque “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou
224RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p. 89-91. 225 Idem . Ibidem. p. 96-100. 226 REIS, João José. . A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
123
de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença
cuja produção não é da competência das palavras”. 227 Estas levaram políticos a defenderem a
continuação do domínio sobre as inumações pela Instituição religiosa. Ela mesma não fora
afastada das discussões, atuando num parecer em 1845 como mencionamos acima. Sendo a
religião oficial, tinha sua oratória legitimada pelo poder político e pelos diferentes grupos que
compunham a sociedade.
Considerado território santo, o cemitério e o interior da Matriz foram palco de
disputas. Pressupomos uma hierarquização nas inumações ad sanctos por representarem a
possibilidade de maior proximidade com o sagrado e da lembrança dos vivos que visitavam as
igrejas e seus entes falecidos. Desta forma, havia uma permanência dos mortos no mundo dos
vivos. A igreja estava presente em momentos importantes da vida como o nascimento, o
casamento e também na morte. Solo sagrado, como menciona Julio César Pereira, era todo
templo construído por ela ou com sua permissão, bem como os mosteiros e os conventos. Era
a única instituição qualificada para realizar os sepultamentos, até pelo menos meados da
década de 1850, tendo, pois, o controle sobre a morte. Em seu discurso, garantia a todos os
indivíduos batizados, um enterro:
Mandamos sobe pena de excomunhão mayor ipfo facto incurrenda, & de cincuenta cruzados pagos do aljube, applicados para o accuador, & fuffragios do efcravo defunto, que peffoa de qualquer aftado, condiçaõ & qualidade que seja, enterrado, ou mãde enterrar fóra do fagrado defunto algum, fendo criftaõ bautizado, ao qual fe deve sepultura eccllefiaftica” 228
A pena da excomunhão demonstra a importância de um enterro em solo sagrado para a
Igreja. Contudo, esta não garantia o enterro de todos os indivíduos que compunham a
sociedade de Vassouras no século XIX. Escravos e livres que viviam em fazendas distantes,
provavelmente, nelas foram sepultados. Em alguns casos, anos após a morte, o assento no
Livro da paróquia era feito por meio de um processo, pelo pároco responsável, na presença de
testemunhas, como no caso de Severina Maria da Silva:
Aos trinta de Outubro de mil oito centos quarenta e oito nesta Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras compareceo perante mim Custodio Correia da Silva para o fim de
227 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 15. 228PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 50.
124
justificar o falecimento de sua mulher Severina Maria da Silva, por não se achar assento da mesma nos livros desta Freguesia aonde faleceo, para o que appresentou duas testemunhas Jose Antonio Correia da Costa, e João de Medeiros de mim reconhecidos, e sendo perguntados disserão, que a dita Severina Maria da Silva, casada com Custodio Correia da Silva faleceo no dia dezenove de Janeiro de mil oito centos quarenta e seis, e que no dia vinte fora sepultada no Recinto desta Matriz, que tivera acompanhamento solemne, sendo nesse tempo Vigário desta Freguesia o Reverendo Antonio da Costa Guimarães, e estando xxx( ilegível) em seos óbitos lavrei este assento por me achar auctorizado por Sua Excellencia Reverendo e xxx(ilegível), e para a todo tempo constar, que assigno no com as mesmas testemunhas. 229
Nesse assento, temos a informação de que o enterro de Severina Maria havia sido
realizado dentro do “Recinto da Matriz”. Como a Igreja não tinha esse registro em seus
documentos? A importância dada ao sepultamento em solo sagrado deveria garantir o registro
em documento oficial. Neste caso, como não encontrado, providenciou-se um novo registro,
contendo todas as informações necessárias e a presença de duas testemunhas. O domínio
exercido por essa instituição fora legitimado e propagado pela sociedade, ainda que não
reconhecido hegemonicamente. “As ideologias devem a sua estrutura e as funções mais
específicas às condições sociais da sua produção e da sua circulação”.230
Após várias tentativas, o Estado conquista maior autoridade nos assuntos relativos à
morte, e o que era antes do domínio da Igreja, passa a também ser da Santa Casa de
Misericórdia, por meio de seus cemitérios. Provavelmente, houve um desconforto por parte da
Igreja Católica quanto ao predomínio exercido até então por ela. 231 Parece ter havido um
conflito entre a Igreja e a Santa Casa de Misericórdia. Tal fato pode ser sugerido, devido ao
extenso controle de óbitos feitos pela Igreja durante a primeira metade do século XIX, que
remonta ao período colonial. Esse controle garantia o poder da Igreja sobre os rituais, ritos e
principalmente os discursos de verdade que ela produzia. Tendo a autoridade do discurso
legítimo e oficial, provavelmente não o queria perder.
O controle da Santa Casa por cemitérios públicos gera tensão sobre a morte e seus
rituais, entrando em conflito com o poder religioso exercido pela Igreja. Afinal, ela era uma
das instituições do Império do Brasil, que tivera durante muitos anos o domínio do sagrado,
incluindo questões de bem morrer. A atividade que os párocos controlaram por séculos, como
funcionários do Estado, ao lhe ser retirada, poderia atingir não apenas questões religiosas e
políticas, mas também econômicas. A prática dos rituais de inumação lhes garantia alguma
229 2º. Livro de Óbito das pessoas livres. f. 123-123v. CDH. 230 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 13. 231 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 50-51.
125
renda, principalmente com o dinheiro deixado pelo morto, que em alguns casos ficava
registrado no óbito.
O local de enterro, a partir de construções simbólicas, representava as diferenças
hierárquicas contidas na sociedade escravista de Vassouras e os múltiplos espaços criados
para as distintas qualificações sociais. Nelas, percebemos a importância do campo santo,
significando estratificação social, pois logo após a Matriz, situava-se o cemitério da boa
sociedade, seguido pelo lugar de sepultamento dos pobres e somente depois o local onde
deveriam ser enterrados os escravos. Os sepultamentos, na primeira metade do século XIX,
estavam marcados por alguns traços da cultura medieval e sua religiosidade. Desta forma, as
igrejas realizavam sepultamentos em seu espaço interno desde que o morto tivesse sido em
vida bom cristão e pessoa de certa posição social. Simultaneamente, seus familiares deveriam
demonstrar poder arcar com os custos do sepultamento. 232
Se a igreja mantinha costumes tão antigos para garantir ao morto uma “morada”
próxima de Deus, o mesmo não era válido para todos os indivíduos, ainda que fossem
batizados. Nem mesmo o documento que garantia o sepultamento em solo sagrado a todos os
fiéis, permitia um tratamento igualitário entre eles. A distinção na hora da morte, presente nos
diferentes locais para o enterro, como “interior da Igreja”, “cemitério da Igreja”, da cidade e
das fazendas, também estava associado à posição social do morto e de sua família. Como
território santo, a primeira distinção era entre o corpo, interior do edifício, e o Adro, todo
espaço a sua volta. Este era um local desprestigiado, geralmente utilizado para escravos e
pessoas pobres. Muitos escravos não tiveram provavelmente o direito a uma sepultura
eclesiástica, sendo enterrados nos cemitérios das fazendas, como demonstram os dados da
tabela 17.
Tabela 17 - Escravos e Local de Sepultamento por décadas e gênero.
Homens Mulheres 40-49 50-59 60-69 70-79 1880 40-49 50-59 60-69 70-79 1880
Adro da Igreja 1 0 0 0 0 1 0 0 0 0 Cemitério Igreja Matriz 8 0 0 0 0 0 0 0 0 0 Cemitério Matriz 9 0 0 0 0 2 0 0 0 0 Cemitério 269 522 417 248 28 149 307 260 140 5 Cemitério Freguesia 10 0 0 0 0 5 0 0 0 0 Cemitério do Senhor 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 Cemitério Fazenda 0 0 30 62 0 0 0 14 41 0 Cemitério particular 15 59 121 87 9 3 32 74 55 6
232 PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 36.
126
Recinto da Igreja 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 Total 314 160 Total Geral: 2.991
Fonte: Livro de Óbitos de Escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. CDH, Universidade Severino Sombra.
A tabela acima foi confeccionada a partir das designações de enterros mencionados
nos livros de óbitos de escravos, divididas por gênero e décadas. Todos os cemitérios que
continham a palavra “fazenda” foram agrupados. Outro grupo foi composto pelos que tiveram
o nome do proprietário descrito. Os pertencentes à administração da Igreja, agregam o Adro,
Recinto e todos os que identificam a mesma. Os livres (tabela 18) devido a complexidade das
descrições, foram respeitadas como as mesmas apareceram nos textos dos registros para
ilustrar as segregações por cor e condição social.
Os cativos foram enterrados majoritariamente em cemitérios, especificamente 99.26%
do total dos sepultamentos com o local registrado no Livro de Óbitos de Escravos da
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. Destes, 63.28% são de homens e
36.72% de mulheres. Em solo sagrado, são exceções, citados somente na década de 1840.
Apenas 2 homens receberam sepultamento no interior da Igreja. No Adro, 2 e no cemitério da
Matriz, 15. Neste, 5 mulheres foram enterradas, e nenhuma no interior da Igreja,
representando respectivamente, 4.01 % e 1.05 % das inumações em terreno santo. Os homens
são maioria, assim como o são no total de escravos que eram comprados para a região de
Vassouras. Dos enterrados no Cemitério da Matriz, 9 pertenciam a Luis Barbosa Werneck,
representante de uma das famílias mais importantes daquela sociedade. Ele provavelmente
atendia às especificações religiosas para garantir bom enterro aos cristãos e batizados, mesmo
que fossem não livres. Seu prestígio como proprietário poderia se refletir entre seus cativos e
também entre seus pares na sociedade. Afinal, estava exercendo a piedade cristã.
O proprietário José Correa e Castro enterrou dois de seus escravos em junho de 1841.
Anacleta recebeu sepultamento no Cemitério da Matriz no dia 25 e Ignácio no Cemitério da
Freguesia no dia 14. Ambos tiveram direito a uma sepultura, contudo, o tratamento foi
diferenciado, apenas um foi enterrado em solo considerado sagrado. O que nos sugere pensar
a possibilidade de manutenção da ordem entre este grupo social. Nas décadas subseqüentes
não houve registro destes em território santo. Na Bahia, a maioria dos escravos batizados
foram sepultados na igreja ou no seu adro, diferentemente de Vassouras, onde a maioria dos
127
escravos foram enterrados em cemitérios. Lá existia um cemitério, o campo da Pólvora,
destinado a “negros pagãos”, suicidas, rebeldes e “interditado ao enterro de cristãos”.233
Tabela 18 - Local de sepultamento de Livres, 1840-1849.
Local Brc Brc livre Pto Pto
livre Pto
forro Prd Prd L ivre
Prd Lbt
Prd forro
Crioula Pt Crioula Crioula
liberta Indígena Livre S/C Total
Adro - - - - - - - - - - - - - - 3 3 Adro da Igreja
1 - 1 - 1 - - - - - - - - - 46 46
Adro da Matriz
- - 1 - - 1 - - - - - - - - 58 60
Adro da Nova Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 2 2
Ao Lado da Torre Esquerda
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Ao Pe da Porta Lateral do Lado direito da Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Arco do Cruzeiro da Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Atrás da Capela
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Atrás da Sacristia da Igreja Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Cemitério da Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 2 2
Cemitério da Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 5 5
Centro da Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 3 3
Consistório da Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Consistório da Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 3 3
Corpo da Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Cova dentro da Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Dentro da Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 4 4
Em “hum” carneiro subterrâneo sob “huma” XXX no corredor.
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Em Sagrado - - - - - - - - - - - - - - 2 2 Fundo da Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
“Hum” Lado da
- - - - - - - - - - - - - - 2 2
233 REIS, João José. . A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 196.
128
Igreja Igreja Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 2 5
Junto a Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 2 2
Junto a Portão Principal da Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Junto da Torre
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Lado da Matriz
1 - - - - - - - - - - - - - - 1
Lado do Consistório
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Lado Externo da Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Lado Inferior da Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Lado Interior da parte do Evangelho fora do Recinto
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Na Igreja - - - - - - - - - - - - - - 3 3 Na porta da Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
No Fundo da Igreja Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Pe da Torre da Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Plano do Consistório Direito da Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Recinto da Freguesia
- - - - - - - - - - - - - - 6 6
Recinto da Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 5 5
Recinto da Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 15 15
Recinto da Nova Igreja
- - - - - - - - - - - - - - 10 10
Recinto do corpo da Igreja Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Seleiro do Batistério dentro da Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Telheiro da Matriz
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Casa de Antonio Francisco de Aguiar
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Cemitério da Cidade
- - - - - 1 - - - - - - - - - 1
Cemitério da Estiva
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Cemitério - - - - - - - - - - - - - - 1 1
129
da Fazenda de Joze Cardoso Leal Cemitério da Fazenda
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Cemitério da Freguesia
2 - 2 - 1 - - - - - - - - - 69 74
Cemitério da Vila
4 - 5 - 5 - - - - 1 - - - - 91 106
Cemitério de D. Isabel
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Cemitério de D. Izabel Maria de Jesus
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Cemitério de S Isabel
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Cemitério Novo
- - - - - - - - - - - - - - 8 8
Cemitério - - - - - - - - - - - - - - 13 13 Cova por baixo do cemitério
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Debaixo do Alpendre da Sacristia
- - - - - - - - - - - - - - 1 1
Nota 1: Os indivíduos sem a cor mencionada foram descritos na tabela por “S/C”. Dados: Livro de Óbitos de Livres da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. CDH.
Entre os livres, notamos algumas diferenças. As especificações quanto ao local
sagrado da inumação são muito mais densas. Na década de 1840, encontramos descrições
peculiares como: lado inferior da parte do Evangelho fora do Recinto; atrás da capela; ao lado
da torre esquerda; junto à porta principal da Igreja; debaixo do alpendre da sacristia, dentre
outros. Não por acaso tais informações são inseridas nas anotações do pároco. Nestas estão os
registros de indivíduos com grande destaque social, como Barões, comendadores e Bispos. Da
mesma forma, estão presentes ex-escravos, pretos africanos, pardos crioulos e brancos pobres.
Do total de homens e mulheres que receberam um assento, 192 foram enterrados em solo
sagrado. Os brancos representam 1.04% (2), pardos 0.52% (1) e pretos 1.56 % (3). O maior
número de enterros em solo sagrado são de indivíduos que não tiveram sua cor mencionada
nos registros, correspondendo a 96.87% (186).
Em relação ao total dos dados sobre o local de enterramento de livres relativo à cor do
indivíduo ou sua condição jurídica, os enterros em solo sagrado são 46.49% contra 5.06% de
escravos. Os dados são da década de 1840. Na década seguinte, apenas 4 brancos tiveram
acesso a esse tipo de sepultamento. As divergências não se restringem à longa lista de locais
130
de sepultamentos ad sanctos. O número de pessoas livres supera em quase 10 vezes o de
escravos que puderam ter acesso a um funeral mais próximo da Igreja, ou em seu interior. Os
anos subseqüentes foram marcados por enterros em Cemitérios de Fazenda, da Cidade,
Freguesia ou particulares.
Não podemos deixar de mencionar a importância que exerceram as irmandades nos
costumes relativos à boa morte. Elas são mencionadas em vários registros de óbitos de
escravos e livres. Contudo, não serão parte efetiva de nossa análise, mas certamente é um
fator que necessita de maior investigação. Stanley Stein informa que as organizações locais
em Vassouras que uniram muitos fazendeiros foram as irmandades, ligadas à igreja local.
“Através dos anos, essa associação religiosa de leigos católicos acompanhou de perto os
assuntos da igreja e supervisionou tanto a administração do cemitério (sua principal fonte de
receita) quanto a manutenção do hospital local de caridade ou Santa Casa de Misericórdia”. 234
Tendo em vista que o poder simbólico é “um poder de construção da realidade que
tende a estabelecer uma ordem gnoseológica”,235 podemos pensar de que forma tais
construções estavam presentes no discurso da igreja, do estado e dos proprietários, para
viabilizar o domínio nos rituais de bem morrer.
Os escravos foram, evidentemente, os menos agraciados pelos enterros em território
santo. Embora em menor número, alguns cativos foram enterrados dentro da Igreja matriz, em
seu entorno ou em seu cemitério. Privilégio de poucos, que poderia garantir ao senhor melhor
controle. Se haviam maneiras de garantir um comportamento desejável dos cativos,
conseguido pela concessão de algumas alforrias, pela brecha camponesa236 e cultos religiosos
de origem africana, os rituais de um bom enterro, também podem ser analisados como um
desses fatores na tentativa de controle.
Os livres, ricos ou pobres, tiveram um maior quantitativo de enterros em territórios
sagrados, fossem eles no interior ou no entorno da igreja, do que decorre a importância que a
sociedade de Vassouras atribuía aos territórios tidos como sagrados. Nesse sentido, os
registros de óbito das paróquias são fundamentais para entendermos as disputas no âmbito da
morte. Também mencionamos que, nos registros da Santa Casa do Rio de Janeiro analisados
234 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 157. 235 BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 9. 236SILVA, Eduardo, REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
131
por Jorge Prata,237 foi verificado um maior número de escravos. Este autor sugere que a
maioria dos livres tendia a ser enterrado na paróquia de seu santo favorito. Os enterros feitos
pela Santa Casa, podiam ser gratuitos para os que fizessem atestado de pobreza, e para
senhores com apenas um escravo que comprovassem da mesma forma sua condição
econômica.
A ideologia religiosa era utilizada pelos proprietários na manutenção da ordem
escravista. Inculcar nos cativos a doutrina católica era um dos métodos que poderiam ser
utilizados para atenuar as tensões entre eles e seus proprietários. Na doutrina do catolicismo,
o senhor deixava de ser visto como um tirano, passando a ser relacionado à figura de um pai.
O que se esperava do escravo era amar e servir da melhor maneira possível ao seu proprietário
para alcançar o Paraíso após a morte. 238 Muitos, ao romper os laços do cativeiro, tinham os
mesmos rituais de bem morrer que os livres. Nem sempre com a mesma ostentação.
Os escravos recém chegados ao porto do Rio de Janeiro, ainda que tivessem sido
batizados no antigo continente, não tinham um enterro nos moldes católicos. Eram sepultados
no Cemitério dos pretos novos que ficava próximo ao Valongo. Não recebiam sacramentos e
seus corpos ficavam expostos em covas rasas e comuns. A proximidade com o porto permitia
aos cativos que chegavam uma visão pouco amistosa. Na crença da maioria dos africanos, o
enterro poderia garantir o reencontro com seus antepassados, como mencionado no capítulo
II. A visão desse cenário certamente assustava os africanos recém-chegados.
Escravos que já viviam no Brasil tinham, em tese, o direito a um sepultamento em solo
sagrado. João José Reis, ao analisar a importância da extrema-unção, associa-a ao
sepultamento. Na sua perspectiva, o doente que negasse recebê-lo, fosse por “desprezo” ou
“contumácia”, a ele deveria ser negado a sepultura em solo consagrado, o que demonstra o
poder do discurso religioso. 239
Os símbolos são os instrumentos por excelência da ‘integração social’: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação, eles tornam possível o consensus acerca do sentido do
237 SOUSA, Jorge Prata. Anotações a respeito de uma fonte: os registros de óbitos da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, século XIX. In: Ângela Porto. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2007. 238 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo : Companhia das Letras, 2004. p. 275. 239 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
132
mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração ‘lógica’ é a condição da integração ‘moral’.240
Esses símbolos percebidos em vida e também na morte davam sentido à sociedade de
Vassouras, na medida em que a tornava única e complexa. Local do sepultamento, últimos
sacramentos, vestimentas, missas, música e irmandades são alguns exemplos, que forneciam
condições para as reproduções da ordem social, às suas hierarquias formadas em vida e
presentes nas formas de bem morrer. A igreja católica, nesse sentido, legitimava por meio de
seu poder, vinculado ao estado, o seu discurso, seus ritos e rituais, reproduzidos por diferentes
indivíduos que formavam a sociedade escravista de Vassouras no século XIX.
4.2 – Hierarquias raciais e Origem étnica:
A questão da cor não foi homogênea em todas as províncias do Império do Brasil. A
Lei de 1846, sobre os censos e a sua regularidade, incentivou no nordeste, revoltas contrárias
a essa questão. Isto porque a existência dessa qualificação fora entendida por alguns setores
da sociedade como lei do cativeiro, pois tinha “por fim escravizar a gente de cor”. O registro
civil passou a ser visto por alguns indivíduos de forma negativa, uma maneira de
escravização. 241 A informação sobre ser “ex-escravo”, que aparece em muitos óbitos no livro
de livres, gerou conflitos em Pernambuco, demonstrando a tentativa de rompimento com a
classe que alguns negros pertenciam, antes de alcançarem a liberdade. Como demonstra Ivana
Stolze, a linguagem oficial sobre a população não foi unitária em todo o Estado.242
Embora já existisse a prática de registrar nascimentos, casamentos e óbitos, em 18 de
junho de 1851 foi implementado o Decreto número 798. O mesmo estipulava a existência de
um livro para o registro de nascimentos e outro para o de óbitos em cada distrito e deveriam
ser feitos pelo juiz de paz. Ele alterou o controle exercido até então pela instituição religiosa.
A cor deveria constar apenas para os escravos. O poder político assume o que antes era tarefa
240 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 10. 241 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 105-106. 242 Idem. Ibidem. p. 119.
133
da Igreja. Ainda que fosse um dos instrumentos de poder do Estado, ela exercia por meio de
seu discurso um controle com base na religião. A cor, nos registros, pode simbolizar a relação
existente na sociedade escravista da primeira metade do século XIX entre ser escravo e negro
ou descendente desse grupo, decorrendo desse fato, a sua exigência apenas para os escravos,
tanto nos registros de nascimento quanto nos de óbito. 243 A Igreja como instituição de poder
reafirmava a hierarquização social, separando os indivíduos em pretos, brancos e pardos. 244
As diversas maneiras de designar um indivíduo e suas variáveis carregam consigo “um
conjunto de objetivos, de interesses, de usos e finalidades, que obedecem tanto à lógicas
variáveis segundo o sujeito que profere o discurso – uma conversa informal e privada, as
diversas instâncias da justiça, o censo populacional, o exercício da disciplina etc. – como ao
próprio contexto histórico vivenciado”. 245 Nesse sentido, podemos acrescentar como discurso
o próprio registro de óbitos, bem como os inventários post mortem, que criam signos diversos
de designações. Estas e as qualificações serão tratadas como parte dos jogos políticos e de
representação de poder, não podendo ser pensado como signos neutros, sem significados para
o contexto histórico analisado.
A tabela 18 apresenta as marcas sociais e as “variáveis” em torno do ex-escravo e seus
descendentes. O indivíduo que não pudesse ter o registro junto com os cativos teria descrito
nos documentos oficiais sua antiga condição jurídica. Os significados que envolvem essa
questão são muitos. Primeiro, porque as divisões entre esse grupo tendem a se tornar mais
evidentes nos diferentes estratos ali informados. Segundo, os sujeitos de origem africana e
provavelmente descendentes de escravos, formavam a camada social inferior.
Tabela 19 - Condição dos pais e cônjuges. 1840-1880.
Total por Gênero Condição dos Pais Homem Mulher
Nr % Mãe escrava 9 5 14 22.6 Mãe ex escrava 0 1 1 1.6 Mãe de nação 1 1 2 3.2 Pais pretos forros 2 1 3 4.8 Pais escravos 1 0 1 1.6 Mãe preta forra 1 4 5 8.1 Escravo(a) que foi 11 13 24 38.7 Cônjuge Também Forro 2 1 3 4.8 Cônjuge Ex escravo 0 1 1 1.6 Cônjuge escravo 0 1 1 1.6
243 Idem. Ibidem. p. 106. 244 MATTOS, Hebe M. Das Cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 29. 245 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 32.
134
Escravo 2 0 2 3.2 Total: 62
Fonte: Registro de Óbito de Livres Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. CDH.
Se entre os escravos as distinções se fazem presentes na origem e na cor, entre os
livres, novos mecanismos de diferenciação são criados. Uma das formas de diferenciar esses
indivíduos era mencionar a condição de seus pais ou a sua antiga condição: mãe escrava, mãe
ex-escrava, escravo que foi, cônjuge também forro, pais escravos. Essas considerações
retratam a necessidade da sociedade escravista em demarcar espaços sociais e raciais
distintos. Ex-escravos não são homens livres e, portanto devem ser designados segundo sua
posição social. Ainda que nascesse livre, seus descendentes tinham a marca dos antepassados
em sua pele ou na de seus genitores. Na morte, tal marca seria aparente no assento de óbito,
que garantiria o não esquecimento da origem daquele indivíduo. Foram encontrados 62
indivíduos que tiveram em seus assentos algumas dessas referências. Segundo os dados da
tabela 18, 52.58% (14) destes indivíduos tinham mãe escrava. Os pais cativos foram
apresentados em apenas 1.61% (1). Pais pretos forros são 4.84% (3). Devemos considerar que
a figura materna é mais freqüente entre escravos e seus descendentes. A cor dos pais é mais
um signo de distinção entre libertos e livres e descrever a condição ou cor dos mesmos
demonstra a preocupação vigente em manter na morte a hierarquização existente em vida.
Da mesma forma, os indivíduos que haviam sido cativos têm esta informação inserida
no seu assento e somam 38.71%. Para além desse fato, era informado o nome do antigo
proprietário e se o mesmo havia conferido a liberdade. Essa informação era fundamental para
escravos, substituindo em alguns casos o nome do próprio cativo morto.
As qualificações por cor e origem, ficam evidentes nos Livros de Óbitos de escravos e
de Livres. Consistiam num fato recorrente na sociedade escravista, utilizada como uma das
estratégias de hierarquização. Analisando principalmente relatos de viajantes, Mary Karasch
apresenta uma perspectiva cultural onde o escravo – especificamente o escravo carioca - fora
analisado dentro do seu contexto urbano, sublinhando a “vontade” existente neles, não apenas
de alcançarem sua liberdade, mas também de poderem um dia retornar à África246. Deste
modo, podemos pensar que o processo de ressocialização do cativo africano, não “apaga” da
memória sua cultura e seu lugar de origem. Então, mesmo sendo propriedade de outrem, o
246 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
135
escravo não estava privado de sentimentos referentes ao que vivera antes de adentrar num
navio negreiro. Contudo, o grupo de escravos não era homogêneo, vinham de diferentes
lugares do Continente Negro, falavam dialetos múltiplos e traziam consigo diferenças
culturais.
Karasch apresenta a distinção e as divisões impostas ao escravo: inicialmente separado
por ser “brasileiro ou africano”, e, posteriormente, pelo local de nascimento, que passava a ser
o fator de diferenciação, que, segundo a autora, seria a primeira distinção a ser feita.
Acreditamos que o fato de ter o escravo nascido em terras brasileiras não o colocava na
condição de brasileiro. Nos Registros de Óbito de Escravos, consta a informação “crioulo” e
não “brasileiro”. Entre os livres, descendentes de escravos e ex-escravos recebiam a
designação “brasileiro”, como o pardo João Francisco Pereira, falecido em 17 de dezembro de
1857, com 30 anos de idade, brasileiro e solteiro e Chrispim de Viterbo, preto, brasileiro,
falecido em 4 de janeiro de 1876, com 20 anos de idade e solteiro.
Por vezes, nas fontes consultadas para este trabalho, aparece “Bahia, Maranhão,
Minas”, o que evidencia o lugar de origem, principalmente com o tráfico interno, mas nunca a
designação “brasileiro” para escravos. Em outras palavras, ser brasileiro era sinônimo de ser
livre e não apenas de ter nascido em território nacional, fato que gerou disputas durante a
formação da nação e da nacionalidade. Entretanto, nem todos os brasileiros formavam um
grupo coeso, de forma que a designação branco ou mulato, recebeu um significado político,
fato que veremos com mais atenção. 247
Distinguir crioulos e africanos não seria suficiente, por eles se tornarem muitos. Surge
então a diferenciação imposta pelos senhores, onde africanos eram classificados por local de
origem e os escravos nascidos no Brasil por cor. 248 Na verdade, ela era a nação desses
cativos. Karasch sublinha que “no Rio do século XIX, as principais ‘nações brasileiras’ eram
a crioula, a parda e a cabra”249. “Crioulo” era a designação feita pelo local de nascimento,
fonte de orgulho para os mesmos aplicando-se constantemente ao negro nascido no Brasil e
de forma ocasional para africanos nascidos em colônias portuguesas da África.
As designações “Preto” e “Negro” eram mormente utilizadas para se referir a
africanos, mas também raramente utilizadas para denominar negros nascidos no Brasil A
247LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: os sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 32. 248 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 36-37. 249 Idem. Ibidem. p. 37.
136
segunda designação, “Parda”, era dada pelos senhores aos mulatos, pessoas de pais africanos
e europeus, podendo também ser filhos de brasileiros, de brasileiros pardos ou de uma
brasileira de pele preta com um brasileiro de pele branca. Os pardos se distinguiam pelas suas
irmandades religiosas, seus regimentos militares, suas assinaturas em documentos oficiais e
distinções ocupacionais.250 Tinham a pele mais clara ou menos escura, ou mais próxima do
fenótipo europeu. Era, entretanto, a forma como indivíduos mestiços eram vistos e
classificados pela linguagem oficial. 251
Hebe Mattos destaca outra distinção social presente nos processos cíveis e criminais
que apontam a designação de brancas ou pardas a todas as testemunhas nascidas livres. Neste
caso, havia uma relação entre ser pardo e ser livre, uma maneira de diferenciar socialmente
tais indivíduos na condição mais geral de não-branco. Seguindo ainda os passos dessa autora,
o termo pardo não era mencionado simplesmente em referência à questão cor, mas trazia
consigo uma maneira de registrar a hierarquia social, na qual ocupavam uma classe
intermediária, conjugando a classificação racial e social da sociedade escravista do século
XIX. O seu reconhecimento, entretanto, dependia do relevo dado pela sociedade da qual fazia
parte.252
A terceira distinção por cor era a “cabra”, que significava raça mista e tinha um cunho
pejorativo, podendo servir também como xingamento. A análise dos Registros de Óbito de
escravos demonstra que o escravo designado por “cabra” representava um número muito
pequeno de cativos que morriam em Vassouras. Este é o caso da escrava Paschoa que faleceu
em 1858 aos trinta anos de idade e de Daniel falecido no mesmo ano com 25 anos de idade.
Na década de 1860, encontramos Ignácio, falecido no ano de 1868 aos 2 anos e Carlota
falecida no ano de 1860 com 7 anos de idade. Para a década de 1870 e o ano de 1880, não
foram encontrados escravos com essa designação. Entre os livres, não a encontramos em
nenhum dos assentos analisados.
A complexidade que aumenta entre os livres corresponde aos limites impostos aos
libertos e forros. Eles sofriam restrições, que os separavam efetivamente dos brancos, pois
250 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 38. 251 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: os sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 89. 252 MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os Significados da Liberdade no Sudeste Escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 30.
137
não podiam, entre outras coisas, pertencer à Guarda Nacional. 253 Provavelmente, as
distinções existentes entre nascidos livres e os que conquistavam sua liberdade exigia tal
segregação nos registros oficiais do Império do Brasil. Os gráficos a seguir segregaram
quantitativamente os escravos por gênero e pela cor mencionada em seu registro de óbito.
Eles nos ajudam a visualizar as diferenças relativas à composição étnica.
Gráfico 4 - Designação cor de escravos por gênero 1840-1849.
46
1 1 0
308
14 0 1 0
170
0
50
100
150
200
250
300
350
Preto Negro Pardo Cabra Sem cor
Homem
Mulher
Fonte 1º Livro de Óbitos de pessoas escravas. CDH
Gráfico 5 - Designação cor de escravos por gênero, 1850-1859.
290
121
1
291
144
124
1
175
0
50
100
150
200
250
300
350
Preto Negro Pardo Cabra Sem cor
Homem
Mulher
Fonte: 1º Livro de Óbito de Pessoas escravas. CDH.
253 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 112.
138
Gráfico 6 - Designação cor de escravos por gênero. 1860- 1869.
436
034
1
147
222
044
1
101
0
50
100
150
200
250
300
350
400
450
500
Preto Negro Pardo Cabra Sem cor
Homem
Mulher
Fonte: 1º. Livro de Óbitos de pessoas escravas. CDH.
Gráfico 7 - Designação cor de escravos por gênero. 1870-1879.
271
0
32
0
95
171
021
0
52
0
50
100
150
200
250
300
Preto Negro Pardo Cabra Sem cor
Homem
Mulher
Fonte: 2º. Livro de Óbitos de pessoas escravas. CDH.
139
Gráfico 8 - Designação cor de escravos por gênero. 1880.
36
02
0 0
9
0 1 0 00
5
10
15
20
25
30
35
40
Preto Negro Pardo Cabra Sem cor
Homem
Mulher
Fonte: 2º. Livro de Óbitos de pessoas escravas. CDH.
Os dados dos gráficos 4 a 8 nos permitem verificar que a designação “preto” supera as
demais a partir da década de 1860. Os cativos que não tiveram uma cor atribuída somam um
maior quantitativo na década de 1840 e 1850. As distinções entre mulheres e homens pretos
são significativas. A qualificação parda teve nas mulheres suas maiores representantes. Os
pardos que mencionados na primeira são apenas 2, tendo seu número aumentado a partir do
ano de 1850. Na medida em que as informações sobre os mortos se tornam mais necessárias,
o número de escravos pretos sofre um grande aumento, à proporção que os que não tiveram a
cor mencionada diminui, não atingindo nenhuma representação no ano de 1880. Mas a cor
preta foi a que predominou em todos os períodos analisados para os escravos.
140
Gráfico 9 - Designação cor Livres e libertos por gênero, 1840-49.
4 10 1 0 1 1
215
1 7 1 1 1 0
188
0
50
100
150
200
250
Branco
(a)
Preto
For
ro
Preto
Livr
e
Preto
Libe
rto
Pardo
Prova
velm
ente p
reto
Sem co
r
Homem
Mulher
Fonte: 1º Livro de Óbitos das pessoas livres e libertas. CDH.
Gráfico 10 – Designação cor e gênero de livres e libertos. 1850-59.
296
124 19
1
88
1 0 0 0 1
98
178
028 18
1
64
0 1 1 3 0
74
0
50
100
150
200
250
300
350
Branco Preto Pretoex-
escravo
PardoLivre
PardoForro
Indigena
Homem
Mulher
Fonte: 1º Livro de Óbitos das pessoas livres e libertas. CDH.
141
Gráfico 11 – Designação cor e gênero de livres e libertos. 1860-69.
360
1035
1 3 8
76
4 0 1
62
212
027
3 0 10
78
1 2 138
0
50
100
150
200
250
300
350
400
Branco BrancoLivre
Preto PretoLivre
PretoLiberto
PretoForro
Pardo PardoLivre
PardoLiberto
PardoForro
SemCor
Homem
Mulher
Fonte: 1º e 2º Livro de Óbitos das pessoas livres. CDH.
Gráfico 12. Designação cor e gênero de livres e libertos. 1870-79.
282
221
118
0
71
1 0 0
201212
030
523
2
71
1 1 1
135
0
50
100
150
200
250
300
Branco BrancoLivre
Preto PretoLivre
PretoLiberto
PretoForro
Pardo PardoLivre
PardoLiberto
PardoForro
Semcor
Homem
Mulher
Fonte: 2º Livro de Óbito das pessoas livres e libertas. CDH.
142
Gráfico 13 – Designação cor e gênero de livres e libertos. 1880.
0 1 0 0
15
0 0 0
36
23
0
6 50
6
0 1 0
14
47
05
101520253035404550
Branco BrancoLivre
Preto PretoLiberto
PretoForro
Pardo PardoLivre
PardoLiberto
PardoForro
Semcor
Homem
Mulhrer
Fonte: 2º Livro de Óbitos das pessoas livres e libertas. CDH.
As denominações por cor entre os livres são mais complexas, conforme nos
demonstram os dados dos gráficos 9 a 13. Nesse grupo temos: branco, branco livre, preto e
pardo. Os indivíduos que não têm sua cor mencionada são encontrados em maioria na década
de 1840. Diminuem consideravelmente nas décadas de 1850 e 1860, voltando a concorrer
com o número de brancos nas décadas de 1870 e 1880. A designação cor oscila neste grupo
social.
A qualificação “negro” é pequena entre os escravos, representando apenas 0.09% do
total dos cativos, sendo esta mencionada até a década de 1850. A partir de 1860, nenhuma
referência ao termo foi encontrada. Entrementes, no livro de óbito de livres, a designação
“negro” não aparece em nenhum dos assentos que fizeram referência a cor. Hebe Mattos
afirma a raridade de tal referência, pois a mesma trazia consigo um “sentido ofensivo e
pejorativo” no mundo dos livres. 254 Seria, pois, tão ofensiva que nem mesmo entre os
escravos era mencionada, ao menos nos registros oficiais da Igreja. Nos inventários, menção a
esta cor apenas na década de 1840 para 1 cativo (tabela 20), nas demais décadas nenhum fora
encontrado.
Outra classificação encontrada nos inventários e que não constam nos óbitos de
escravos e livres, é a “mulata” ou “mulato”, que faziam parte de um vocabulário simbólico e
hierarquizante. “Mulato – Mullatus – derivada de mulus tem sido empregada pelos
254 MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os Significados da Liberdade no Sudeste Escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 94.
143
naturalistas para designar os indivíduos da espécie humana, gerados de uma raça branca, ou
européia, com outra dos pretos”. 255 Essa colocação, que data dos anos iniciais do século XIX,
do jornal O Sentinela, demonstra a origem da palavra mulato e sua origem na ciência dos
naturalistas, tendo sido reiterada por alguns historiadores, destacada como mais uma das
possibilidades de hierarquias étnicas entre os africanos e seus descentes. E porque ela não
aparece nos registros de óbitos de livres e escravos, se é mencionada nos inventários?
Ivana Stolze, ao estudar as diversas falas de jornais que tinham no nome a
representatividade das designações dos descendentes de negros (mulato, homem de cor, etc.),
aponta-nos uma possibilidade de análise. Ela menciona a exclusão dos mulatos da política,
“corporificada nas eleições e nos empregos públicos”. 256 Embora analise a realidade da vida
urbana, indica as segregações e hierarquias étnicas na primeira metade do século XIX
existentes no Império do Brasil. Desta forma, o que seria mencionado como extermínio na
fala dos próprios mulatos, para a autora, estava inserido em questões de poder, como forma de
garantir aos brancos a sua continuidade no topo da hierarquia. O silêncio em relação à cor, em
alguns periódicos, seguindo ainda a análise de Stolze, indicam uma estratégia e a
desqualificação do termo “mulato”. Esta pode ter influenciado diretamente o não uso do
termo nos assentos de óbitos de livres para os descendentes de negros. Escravos albinos,
carvão, ruivos e fulos surgem como outras qualificações presentes nos inventários,
demonstradas nas tabelas a seguir:
Tabela 20 - designação cor. Inventários por décadas e gênero. 1840-1880.
Homem Mulher 1840-49 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID
Cabra - - 4 - - 1 - 2 4 1 - 1 Mulato 1 - 2 - - 1 - - 1 1 - - Negro - - - 1 - - - - - - - - Pardo 13 5 8 2 - 2 12 2 5 2 - 3 Preto - - - - - - - - - - - - Albino - - 1 - - - - - - - - - Total 14 5 15 3 0 4 12 4 10 4 0 3 Total Década: 74
Homem Mulher 1850-59 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID
Cabra - 2 6 1 - 7 - 1 3 - - 11 Mulato - 1 - - - 2 - - 1 2 - - Negro - - - - - - - - - - - - Pardo 9 10 13 1 - 36 12 12 11 3 - 34 Preto - - - 1 - 2 - - - - - - Albino - - - - - - - - - - - 1 Total 9 13 19 3 0 47 12 13 15 5 0 46
255 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 59. 256 Idem. Ibidem. p. 54.
144
Total Década: 182 Homem Mulher 1860-69
0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID Cabra 4 2 7 - - 17 2 2 6 1 - 14 Caboclo - - 1 - - - - - - - - - Carvão - - - - - 1 - - - - - - Mulato 4 1 4 - - 10 - - 1 1 - 8 Negro - - - - - - - - - - - - Pardo 19 18 55 4 - 36 24 25 36 7 - 51 Preto - - - 1 - 5 - - 2 - - 4 Ruivo 3 - - - - - - - - - - - Total 30 21 67 5 0 69 26 27 45 9 0 77 Total Década: 376
Homens Mulheres 1870-79 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID
Cabra 6 - 16 3 - - 11 5 14 6 - 2 Fulo - 1 - - - - - - - - - - Mulato 1 1 3 1 - - 2 1 6 - - 1 Negro - - - - - - - - - - - - Pardo 39 32 118 23 - 27 46 38 89 12 - 20 Preto 1 1 7 6 - 3 4 8 7 6 - 2 Albino - - - - - - - - - - - - Total 47 35 144 33 0 30 63 52 116 24 0 25 Total Década: 569
Homens Mulheres 1880
0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID 0-7 8-14 15-40 41-70 71-100 S/ID Cabra - - - - - - - - - - - - Mulato - - - - - - - - - - - - Negro - - - - - - - - - - - - Pardo - 3 9 3 - 2 - 3 14 2 - 1 Preto - - - - - - - - - - - - Albino - - - - - - - - - - - - Total 0 3 9 3 0 2 0 3 14 2 0 1 Total Década: 37 TOTAL GERAL: 1238 Fonte: Inventários post mortem, 1840-1880. CDH.
“Escravos, crioulos e pardos mantinham identidades e comunidades tão separadas
umas das outras quanto das nações africanas” 257. Desta forma, podemos perceber as divisões
presentes na sociedade escravista, mesmo entre os cativos. Parece trata-se de uma Hierarquia
social e racial que demarcava os diversos “lugares” a serem ocupados pelas nações existentes.
Entre os livres também existia a estratificação, tendo em vista as distinções por cor, condição
jurídica e ocupacional entre pardos livres e negros livres, o que, de certo, demonstra o
“orgulho” de ser pardo ou crioulo, o que poderia caracterizar ser “melhor” e tratado com um
pouco mais de dignidade pela sociedade escravista.
Indígenas e caboclos representam uma minoria nos assentos de óbito de livres. Ivana
Stolze informa que índios foram transformados em caboclos e os dois termos poderiam ser
257 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 37.
145
utilizados como sinônimos. Entretanto, este termo era mais abrangente e sua utilização para
designar indígenas aponta para uma domesticação dos mesmos. Os indígenas correspondiam a
0.03% (1) do total dos mortos que receberam um registro no Livro da Igreja.
Cotejando as diferenças entre os registros dos grupos sociais, percebemos que as
qualificações de cor se tornam mais complexas, possivelmente devido ao aumento da
miscigenação entre as etnias. Temos, como fator novo, a designação “branco livre”.
Provavelmente, devido à existência de brancos não livres ou, muito provavelmente, de
descendentes de escravos não tão negros. Fato que infelizmente no presente momento não
temos como comprovar.
O “doutor”, homem treinado na universidade e dentro da tradição européia, era
geralmente respeitado por fazendeiros. Tal fato já era percebido nos tempos coloniais, de
forma que um diploma significava estar numa posição hierárquica superior, tradição reforçada
durante o século XIX. 258 Essa qualificação poderia não se referir apenas à classe médica, mas
também ao advogado ou outros profissionais de nível superior, ou até mesmo a pessoas que
tivessem um alto cargo. Mas ser doutor, numa sociedade extremamente estratificada, não
abolia a origem étnica do indivíduo, de forma que, sendo descendente de negros, tal fato
ficaria registrado em vida devido ao fenótipo impossível de não ser percebido. E na morte,
registrado no seu assento:
Aos quinze do mez de Agosto de mil oitocentos e setenta e cinco, n’esta Freguesia de Vassouras, falleceu da vida presente, em idade de trinta e seis annos, Dr. José Pereira dos Santos, pardo, casado com D. Catarina Maerbeck dos Santos, natural da Freguesia de São Sebastião de Ferreiros; foi encommendados por dous Sacerdotes, acompanhado e sepultado em caixão feixado no Cemitério d’esta Cidade. E para constar mandei fazer este assento por mim assignado. 259
Embora fosse doutor e socialmente ocupasse um lugar de destaque, não era branco e
por isso deva ter sido mencionada a sua origem, que fica clara em não ser branco. Outros
signos de diferenciação social estão presentes em seu assento. Sua encomendação foi feita por
2 sacerdotes, sendo sepultado em caixão fechado: são dois fatores de pompa fúnebre,
demonstrando a sua condição econômica. O mesmo ocorre com libertos e forros que tinham a
sua antiga condição jurídica explicitada em seus assentos; também nos pretos libertos, pardos
258 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 159. 259 2º. Livro de Óbitos das pessoas livres. f. 48. CDH.
146
livres, que tinham em seus registros a anotação sobre a condição de seus pais, ou o nome de
seus ex-proprietários. As designações dos livros de óbito representam a linguagem oficial do
Império do Brasil, pois os párocos são representantes da sua administração.
A divisão da sociedade livre por cor gerou conflitos na Corte, como demonstra Ivana
Stolze ao destacar um trecho apresentado num jornal intitulado O Homem de Cor, que
expunha claramente a guerra iniciada pelos brancos ao desejarem a distinção dos livres pela
cor da pele. 260 Segundo Ivana “a ‘guerra’ a que se refere o trecho anterior consistiu nas
disputas pela participação na sociedade política, advogando especialmente para que não
houvesse distinção de cor entre os cidadãos livres”, aqui se referindo ao contexto urbano. 261
Desta maneira, percebemos que a existência de diversas qualificações não foi apenas uma
maneira de identificar o morto, mas de hierarquizá-lo étnica e economicamente. Podemos
pensar na existência de subgrupos entre os diferentes grupos sociais que se formaram a partir
do crescimento demográfico: escravos, ex-escravos, homens pobres livres, indígenas. Quanto
mais complexa, mais difícil a organização dos subgrupos que surgem a partir da
miscigenação.
Em Vassouras, podemos perceber a resistência presente no discurso oficial da Igreja,
que em última instância atendia aos interesses dos mais poderosos. Especificamente no caso
do doutor mencionado acima, pelo fato de ser pardo, logo, descendente de negros, não era
visto como um igual. Era doutor, mas não era branco. Demonstra-se assim a resistência do
poder dominante em aceitar negros e seus descendentes como iguais. Mas por um outro viés
de análise, o fato de termos um “doutor” descendente de negro, com um sepultamento
pomposo, nos permite pensar os diversos rompimentos das fronteiras impostas social,
econômica e politicamente naquela sociedade.
4.3 - Nações:
No caso de Vassouras, Stanley Stein demonstra que os fazendeiros registravam a
procedência de escravos que vinham da África, de acordo com o porto de desembarque e não
pela sua origem tribal, prática percebida em outras províncias. Segundo Stein, cinqüenta por
260 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: os sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 91. 261 Idem. Ibidem. p. 91.
147
cento dos escravos africanos que chegavam a Vassouras eram procedentes de “Angola”,
“Benguela”, “Congo” e “Cabinda”. Existia ainda um segundo grupo formado por
“Mossanbique”262.
Objetivando conhecer qual a origem dos cativos que mais morriam, produzimos a
tabela 21, onde foram agrupados segundo a origem descrita nos assentos de morte. Os
percentuais foram calculados com base no total dos mortos para todo o período, 3.162. Os
dados quantificados demonstram que os escravos que mais morriam e que tiveram sua origem
informada eram os procedentes da África Centro-Oeste. Os Benguelas correspondiam ao
maior número de óbitos dentro deste grupo (39), seguidos por Congos (29), Angolas (24) e
Cabindas (19). Da região da África do Leste, os Moçambiques merecem menção, pois
totalizaram 23 óbitos. Os de origem africana totalizam 177 (5.60%) indivíduos. Contudo,
eram os crioulos, escravos nascidos no Brasil, que constituíam o maior número: 334
(10.57%), sendo 195 (6.17%) homens e 139 (4.40%) mulheres. Se somarmos todos os
africanos, que tiveram sua origem registrada, temos um total de 648 (20.50%) mortos no
período de 1840 a 1880, destes 78.55% são homens e 21.45%, mulheres.
Tabela 21 - Distribuição da Naturalidade (região de embarque) dos escravos africanos que morreram em Vassouras, 1840-1880.
Homens Mulheres Total Região Africana Naturalidade
No % No % No % África Ocidental Mina 12 6.8 5 2.8 17 9.6
Angola 11 6.2 13 7.3 24 13.5 Benguela 29 16.4 10 5.6 39 22.0 Cabinda 16 9.0 3 1.7 19 10.7 Cassange 7 3.9 2 1.1 9 5.0
Congo 24 13.5 5 2.8 29 16.3 Canguela 0 0 1 0.6 1 0.6 Monjolo 3 1.7 1 0.6 4 2.3 Muange 1 0.6 1 0.6 2 1.1
África Centro-Oeste
Rebolo 2 1.1 1 0.6 3 1.7 Inhambana 1 0.6 0 0 1 1.1
África do Leste Moçambique 22 12.4 1 0.6 23 13.0 Camondongo 1 0.6 0 0 1 0.6
Costa 3 1.7 1 0.6 4 2.3 Não Determinada Pilar 1 0.6 0 0 1 0.6
TOTAL 133 75.1 44 24.9 177 100 Fonte: Registro de Óbitos de escravos. CDH.
262 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução de Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 108.
148
Tabela 22. Escravos africanos com origem não especificada. 1840-1880.
Homens Mulheres Total Região Africana Origem
No % No % No % Africano 48 10.1 10 2.1 58 12.3
Não especificado Nação 328 69.6 85 18.0 413 87.9
TOTAL 376 79.8 95 20.2 471 100 Fonte: Registro de Óbito de escravos. CDH.
4.4 – Hierarquias e Diferenças sociais:
Na década de 1830 houve duas tentativas de fazer o censo no Império do Brasil, e em
nenhuma fora mencionada a categoria “liberto”, o que, segundo Ivana, pode corresponder à
existência de tensão social a respeito das segregações da condição jurídica.263 No caso dos
óbitos em Vassouras, essa categoria é mencionada para pretos e pardos, bem como a categoria
“livre”, para brancos, pretos e pardos e “forro”, para pretos e pardos. A sociedade de
Vassouras do século XIX não poderia ser vista como uma dicotomia entre livres e escravos.
As hierarquias eram complexas e existiam entre os dois grupos e no interior de cada um deles.
As segregações sociais podem ser percebidas no próprio registro ao cotejarmos
escravos e livres. Para os escravos não se gastava muita tinta, os seus assentos eram pequenos
e continham informações mínimas, ainda que fossem batizados e inseridos na religião
católica:
Aos vinte e tres de maio de mil oito centos sessenta e oito falleceo da vida prezente em idade de tres mezes Firmino preto, escravo de Felisberto Gomes da Silva, foi encomendado e sepultado no Cemeterio [sic]da Luz, filial desta freguesia de Vassouras. De que para constar fis este assento. 264
Informações necessárias para identificação, como o nome do escravo e de seu
proprietário são utilizadas. A idade, causa mortis e o ritual de encomendação, nos ajudam a
compor o quadro sobre as condições de morte de cativos em Vassouras, mas não um quadro
completo. Neste, como na maioria dos registros, não temos informações sobre a causa da
263 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: os sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 113. 264 2º. Livro de Óbitos de escravos. CDH.
149
morte. Informações familiares, como nome da mãe ou do pai constam eventualmente,
inviabilizando a possibilidade de reconstruir apenas por este documento, a vida familiar.
Entretanto, os registros de livres se apresentam de forma mais completa:
Aos vinte e oito de novembro de mil oito centos e quarenta e seis Nesta Igreja Matriz de Vassouras encomendei solenemente o cadáver do Commendador José Correia e Castro o qual falleceo com todos os sacramentos foi conduzido em caixão fexado e proprio acompanhado por todas as Irmandades desta Freguesia com assistência de todos os sacerdotes da mesma com muzica, teve missa solenne de corpo prezente e encomendação xxx (ilegível) no fim e foi sepultado em hum carneiro subterrâneo sob huma campa de cantaria no corredor do lado do Evangelho próximo da porta lateral do mesmo, tendo em sua vida legado a Nossa Senhora da Conceição padroeira desta Matriz a quantia de quarenta contos de reis por Escriptura publica e caluzulos que na mesma contem; falleceo no dia vinte e seis do corrente. E para constar fiz este termo em que assigno.265
Este assento se distancia da maioria, pois o morto era um integrante da elite, tendo por
esse motivo no assento, na sua forma escrita, a minúcia que garantia expressar e ostentar o
quão importante havia sido em vida. O Comendador José Correia e Castro teve, em 1846,
caixão fechado e próprio, o acompanhamento de todas as irmandades da cidade, a assistência
de todos os sacerdotes, música e missa solene de corpo presente. Dentre esses fatores, o que
mais chama a atenção é a descrição específica do local onde se inumaria seu corpo, ou seja,
em “um carneiro subterrâneo e no corredor do lado do Evangelho”. O Evangelho é a palavra
de Deus viva e o caminho para se alcançar a eternidade. Tal cuidado ao descrever o local da
inumação sugere a garantia do mesmo ali ser enterrado e de ser visitado por parentes, bem
como a garantia de ser sempre lembrado por estes quando das visitas para participar das
missas. Mas não é só. O pároco sublinha a contribuição em dinheiro feita pelo morto em
escritura pública no valor de quarenta contos de réis, legado em vida à padroeira da Igreja
Matriz: uma boa quantia que garantiria atenção a sua alma, bem como a manutenção da
Igreja.
A inumação do Comendador ilustra a questão econômica mencionada anteriormente
como um dos fatores que pode ter sido fundamental na tentativa da Igreja em manter para si a
responsabilidade sobre os enterros. Os indivíduos que compunham as classes mais abastadas
da sociedade tinham no registro de óbito a sua condição presente por meio dos rituais de bem
morrer, bem como a localização de sua sepultara como fatores hierárquicos.
Semelhantemente, os menos afortunados tinham apresentada sua condição econômica
265 2º. Livro de Óbitos das pessoas Livres. CDH.
150
indiretamente pela ausência de opulência e rituais de bem morrer e objetivamente, quando a
palavra “pobre” é inserida no texto do assento como demonstra a tabela 20:
Tabela 23 – Qualificação segundo a condição econômica. 1840-1880.
Homens Mulheres Pobre 11 6 Pobríssimo - 1 Não pagou fabrica 1 - Total 12 7 Fonte: CDH. Livro de Óbitos das pessoas livres e libertas. 1840-1880.
Ser pobre sublinha a escala social no qual se encaixa determinado indivíduo,
provavelmente desprovido de dinheiro suficiente para ter o que se chamaria de bom enterro. A
tabela 20 demonstra que homens e mulheres eram classificados de acordo com o seu poder
econômico. Dos números acima, 5 homens são brancos, 4 pardos e 2 não tiveram a cor
mencionada. As mulheres são representadas por 2 brancas, 1 parda, 1 cabocla e 3 sem cor
especificada. Os assim considerados, geralmente não têm o sepultamento acompanhado,
assistência de padres, não são amortalhados e não têm caixão próprio. A partir destes dados,
podemos supor uma hierarquização social, na qual os sujeitos são segregados material e
simbolicamente.
Entre os livres e proprietários vimos as diferenças claramente marcadas pelo número
de escravos e extensão de suas propriedades. No caso de grandes e mega proprietários, elas
são proporcionalmente maiores se comparadas aos pequenos. Também no campo simbólico as
distinções se faziam notar na obtenção de cargos nobiliárquicos. As segregações sociais na
morte podem ser tão complexas quanto eram em vida. Como descrito acima, alguns pobres
tinham direito a um enterro no modelo da igreja católica, mas não eram “iguais”.
Indiretamente, podem ser identificados devido à ausência dos ritos que ostentavam poder e
riqueza. Todavia, as designações “pobre”, e até mesmo “pobríssimo”, foram feitas pelo
pároco de forma direta. Os números citados acima podem parecer irrisórios, mas demonstram
a complexa rede social existente entre os livres.
As cerimônias de bem morrer presentes em muitos dos assentos sugerem que elas
tinham uma grande importância para a maioria dos indivíduos da sociedade escravista de
Vassouras no oitocentos. Por que ricos e pobres se esforçavam para garantir a seus entes
queridos os ritos e rituais funerários? Os que não podiam garantir o mínimo recebiam uma
marca e um registro indeléveis, que apresentam sua impossibilidade de atender o que
151
mandava a Santa Igreja. Qual a sua real importância? Certamente estavam presentes no
cotidiano de tais indivíduos. Todos os instrumentos religiosos, sacramentos, são símbolos de
poder, sendo utilizados pela Igreja para a legitimação de sua dominação no que tange questões
da morte, pois:
É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’ cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, [...] para a domesticação dos dominados. 266
O seu discurso atendia a outros setores. Entre estes acolhia as necessidades de
proprietários de escravos. A preleção da Igreja afirmava que o senhor deveria ser visto como
pai e não como algoz. Escravos deveriam aceitar mazelas e sofrimentos em vida para ter uma
vida eterna no Paraíso. Sua fala viabilizava a dominação e manutenção da ordem como todos
os outros fatores já mencionados, utilizados no mesmo sentido.
Ivana Stolze identifica em um mapa da área rural enviado ao ministro do império
sobre nascimentos, casamentos e óbitos, com divisão entre brancos, livres (pardos e pretos) e
escravos (pardos e pretos), onde a utilização da cor e da condição jurídica é “mesclada”. 267
Ser branco, na perspectiva da autora, dispensaria esse tipo de classificação necessária para
pardos e pretos, que poderiam ser livres ou escravos. Fato diferente ocorre em Vassouras, pois
nos óbitos temos a classificação “branco livre”, demonstrando aí a necessidade de mesclar
condição e cor em todos os segmentos. Se na primeira metade do século XIX ser livre era
condição do branco, a partir da segunda metade a complexidade étnica se intensifica. Houve
um crescimento no número de negros e mestiços livres ou forros, dificultando as pretéritas
qualificações e distinções hierárquicas relacionadas à liberdade. 268
A designação “branco livre” aparece pela primeira vez no registro do dia 3 de julho de
1864 de Carlos Ferreira, português, 23 anos de idade, solteiro, falecido na Santa Casa de
Misericórdia de Vassouras. Ter falecido na Santa Casa de Misericórdia é um indício de sua
condição econômica. No total, eles correspondem a 11 sujeitos com essa qualificação. Os
266 BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 11. 267 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 99. 268MATTOS, Hebe M. Das Cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 33.
152
fazendeiros não consideravam pares os artesãos locais e lojistas, que geralmente eram
portugueses, italianos, espanhóis, franceses e alemães, como nos aponta os livros de óbitos de
pessoas livres. Muitos poucos destes homens conseguiram mudar sua condição social e por
não fazerem parte da mais alta hierarquia eram criteriosamente diferenciados em vida e
também na morte. Provavelmente, daí decorra a qualificação “branco livre” e o lugar que
ocupavam na ordem social escravista de Vassouras no século XIX. Segundo Stanley Stein,
alguns homens livres e brancos conseguiram ascender socialmente por meio do casamento,
tornando-se mais próximos a donos de terras menos prósperos e fazendeiros modestos. 269 A
mobilidade social existia, mas era limitada.
Reiterando a questão da hierarquia social presente na morte, verificamos que algumas
designações podem ser claras e outras tantas, muito subjetivas. A própria qualificação por cor
e condição jurídica demonstra tal fato. De forma que, quando branco e proprietário,
presumimos a não necessidade de designar a cor principalmente entre os mais ricos, mas a
mesma aparece em muitos casos, principalmente a partir da década de 1850. Talvez isso
ocorresse para que não houvesse nenhuma dúvida quanto ao lugar social. Nesses casos, a
designação do país era necessária.
A designação “branco livre” causa estranhamento, tendo em vista que alguns trabalhos
historiográficos mencionam a cor negra como pressuposto para ser escravo. Outro ponto
sugestivo é o fato de que havia uma clara distinção entre os que nasciam livres e os que
adquiriam a liberdade, sendo uma das marcas da segregação social. Segundo Hebe Mattos, “a
liberdade era, a principio, um atributo do ‘branco’ que potencializava a inserção social e a
propriedade”. Apenas na segunda metade do século XIX essa representação tivera sua base
modificada. 270 “A identidade ‘branca’ entre os homens livres, como senhores de escravos de
fato ou em potencial, torna-se, assim, progressivamente fragilizada”. Da mesma forma, “a
noção de cor, herdada do período colonial, não designava, preferencialmente, matizes de
pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais, nos
quais etnia e condição estavam indissociavelmente ligadas”. 271
Especificamente em Vassouras no mesmo século, observamos que a complexidade em
relação às designações e qualificações por cor, ao menos no que se refere às mortes, surgem a
269 STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução de Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 158. 270 MATTOS, Hebe M. Das Cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 33. 271 Idem. Ibidem. p. 95-98.
153
partir da segunda metade, como sugeriu Hebe Mattos. Ela se ampliava na sociedade
escravista, devido à miscigenação, ainda que não fosse oficialmente declarada, o que
pressupõe sua diversidade étnica. Afirmar que um branco era livre pode nos remeter a uma
maneira especifica de classificar indivíduos segundo sua cor e condição jurídica
conjuntamente, em uma sociedade que se tornava cada vez mais complexa.
4.5 – Vestimentas:
As roupas fúnebres apresentam um fator de distinção social, pois nem todos podiam
pagar pelas vestimentas. Estavam relacionadas à idade, sexo e posição social daqueles que
morriam, demonstrando uma forte ligação entre vida e morte. Africanos e portugueses faziam
uso de uma roupa ou cobertura do corpo a ser inumado e seus costumes foram reproduzidos
em certa medida no Brasil. A tradicional cor funerária do candomblé é a branca. Brancos,
pretos e seus descendentes fizeram uso deste tipo de mortalha. Os iorubas associavam o
branco “ao orixá Obatalá ou Orisala, senhor da criação e zelador da vida”272 Os cristãos
também tinham no branco uma representação simbólica na morte, sendo utilizado em seus
funerais simbolizando a alegria da vida eterna. Do mesmo modo, na concepção cristã o uso da
mortalha branca poderia fazer alusão ao Santo Sudário, usado para envolver o corpo de Jesus
Cristo. 273 A utilização das mortalhas traz consigo um simbolismo fortemente presente na
vida, que se traduz na morte.
A mortalha preta para as mulheres poderia significar a perda da virgindade, pois o
branco, além de simbolizar a pureza, era a cor utilizada nos rituais de casamento. 274
Associando sexualidade e morte, podemos supor que homens escolhiam roupas de santos e
mulheres, de santas. Elas sugerem um apelo para que esses santos ajudassem o indivíduo na
hora da morte, garantindo uma passagem tranqüila para o além túmulo .
272 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 118. 273 Idem. Ibidem. p. 118. 274 Idem. Ibidem. p. 120.
154
No período de 1876 a 1880, existiam diferenças no modo de vestir o cadáver de
crianças. As crianças livres (pretas, pardas ou brancas) usavam roupas de anjo. João José Reis
destaca o costume presente no século XIX, em se acreditar que após a morte crianças se
tornavam anjos. Assim, a indumentária seria a representação de seu novo estado. 275
Entretanto, para se tornar um anjo, a criança deveria ter sido batizada. Entre as jovens, a
vestimenta era de virgem. A cor mais utilizada por adultos era a preta.
Tabela 24 - Vestimentas de livres a partir da década de 1870.
VESTIMENTAS GÊNERO/COR Vestido
de anjo Vestido de preto
Vestido de Branco
Roupa de seu uso
Hábito preto
Rosa Vestido virgem
Vestido de roxo
Vestido de justo
Vest a Conceição
Branco 47 18 1 3 3 - - 1 - -
Pardo 9 3 - 1 - - - - - -
Preto 1 2 - 1 - - - - - -
HO
ME
M
sem cor 2 9 - 1 1 - - - 1 - Branca 27 11 2 1 - - 1 - - 1 Parda 7 6 - - - 1 1 - - - Preta 4 1 - - - - - - - - preta liberta - 3 - 1 - - - - - -
MU
LH
ER
sem cor 1 4 4 - - - - - - - TOTAL 98 57 7 8 4 1 2 1 1 1 Total % 54.4 31.7 3.9 4.4 2.2 0.6 1.1 0.6 0.6 0.6
Fonte: Registro de Óbito das pessoas livres. 1870-1880. CDH.
Entre as escravas, a consulta ao banco de dados utilizado para este trabalho não
apontou nenhum inocente com vestes especiais. Mesmo para aquelas batizadas e, como
pressupomos, filhas de Deus. Entretanto, entre as livres, 98 (8.41%) foram vestidas de anjo,
fossem elas brancas ou descentes de escravos, o que demonstra uma segregação social
ultrapassando num primeiro momento a distinção étnica. Destas, 47 (4.03%) eram meninos
brancos, 9 (0.77%) pardos, 1 (0.08%) negro e 2 (0.17%) sem a cor mencionada. Entre as
meninas mortas, 27 (2.31%) brancas receberam as vestes de anjo, 7 (0.605) pardas, 4 (0.34%)
pretas e 1 (0.08%) sem a cor mencionada. O número relativamente alto de crianças brancas,
reitera o pequeno número de crianças descendentes de escravos que receberam um enterro nos
moldes católicos, tendo em vista que as crianças oriundas da escravidão representam 19.57%
do total das que tiveram a cor mencionada.
As vestimentas de anjos parecem ter sido de uso comum na década de 1870 entre
crianças brancas, especialmente entre os meninos. As pretas e pardas representam um número
muito inferior. Não tivemos acesso a documentos que pudessem informar o valor dessas 275 REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 120.
155
vestes, mas supomos ter sido de fácil acesso ao grupo economicamente dominante. Não
podemos deixar de mencionar que numa sociedade hierarquizada, os grupos menos abastados
tendiam a se aproximar dos símbolos que pudessem destacá-los dos seus pares, o que
possivelmente requeria um maior investimento financeiro.
Aos dezesete dias do mez de Outubro do anno de mil oito centos setenta e seis, n’esta Freguesia de N. Senhora da Conceição de Vassouras, falleceu da vida presente , de molestia interna, João, preto, de um mez de idade, filho legitimo de Manoel Corrêa de Figueiredo e de Maria Felisarda; foi vestido de anjo, encommendado e sepultado no Cemitério d’esta Cidade: e, para constar mandei fazer este assento que asssigno. 276 (fl. 65v)
O batismo abria a porta de entrada para o céu e tornava o indivíduo filho de Deus. 277
Embora as crianças devessem ser batizadas até oito dias após o nascimento, muitas só
recebiam o sacramento do batismo às pressas devido a doença repentina. Mesmo após serem
batizadas de acordo com as ordens da Igreja, as livres e escravas, eram segregadas na morte.
As vestes utilizadas são distintas, adultos e crianças eram trajados de forma individualizada.
Os adultos desse período selecionado geralmente utilizavam o Hábito preto, branco, rosa,
roxo, da santa padroeira, vestes militares ou roupa de seu próprio uso. Estas de uso cotidiano
poderiam significar falta de dinheiro ou falta de tempo para preparar o velório:
Aos doze dias do mez [sic] de Março de mil oito centos setenta e seis, nesta Freguesia de N. Senhora da Conceição de Vassouras, na Santa Casa de Misericórdia, falleceu da vida presente de Tubérculo Pulmonar, depois de haver recebido o Sacramento da Extrema Unção, Albino José de Almeida, preto, livre, natural do Bananal, de vinte e quatro annos de idade, casado com Ricarda de Almeida, foi vestido da roupa do seu uso encommendado e sepultado no Cemitério d’esta Cidade: e, para constar mandei fazer este assento por mim assignado. 278(fl. 59 e 59v)
As mortalhas podem ser citadas como um dos elementos simbólicos da morte. Trazem
um significado importante e não podem ser consideradas neutras neste ritual; “seu uso
exprimia a importância ritual do cadáver na integração do morto ao outro mundo e sua
ressurreição no fim deste mundo”. Os assentos dos livros de óbitos não nos informam sobre
276 1º. Livro de Óbito das pessoas livres. CDH. 277PEREIRA, Julio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond: IPHAN, 2007. p. 39. 278 1º. Livro de Óbitos das pessoas livres. fl 59 e 59v. CDH.
156
nenhum outro costume em Vassouras a respeito do uso de outros artigos, sapatos, véus, como
no caso da Bahia no século XIX. 279
4.6 - Sacerdotes:
Os párocos e sacerdotes, como representes diretos da Igreja nas diferentes províncias
do Império do Brasil, se distinguiam dos outros indivíduos sociais de tal forma, que seus
funerais eram mais opulentos que de alguns barões do café. O discurso da Igreja era o que
permitia a transmissão dos rituais do bem morrer e de sua importância, garantindo desta
forma, a continuidade do mesmo sobre a vida e a morte. Sendo representantes de Deus na
terra, os párocos deveriam ser exemplos do modelo de bem morrer, que norteava a grande
maioria dos indivíduos. Os rituais e ritos descritos em seus assentos suplantavam em número
os dos homens abastados:
Aos nove de Janeiro de mil oito centos e setenta e cinco n’esta Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cidade de Vassouras; falleceo da vida presente, depois de ter sido confessado e ter recebido todos os sacramentos que a Igreja manda, em edade de sessenta e nove annos o Monsenhor Antonio Rodrigues de Garcia Rio, Vigário encommendado desta mesma Freguesia de Vassouras; teve oito Missas de Corpo presente e officio com assistência de sete Padres, Missa cantada com musica, e foi acompanhado e sepultado em caixão fechado no Cemitério desta Cidade. De que para constar fis este assento. 280(fl. 39)
Neste assento percebemos a grande pompa: 8 missas de “corpo presente”, assistência
de 7 padres, missa cantada com música e caixão fechado. Esses símbolos aparecem em
diferentes combinações, mas raríssimas vezes todos em um único registro. Os sacerdotes
ocupavam um lugar de destaque nas representações fúnebres, eram os “especialistas em
salvação” na definição de João José Reis. Além dos enterros opulentos na forma e nos rituais
registrados, eram figuras importantes nos funerais, pois “velavam o corpo para salvar a alma
do Inferno, se possível do Purgatório”. A assistência recebida em vida por esses paroquianos
279 REIS, João José. . A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 124-128. 280 1º. Livro de Óbito das pessoas livres. f. 39. CDH.
157
deveria ser a mesma na morte, preferencialmente pelo mesmo pároco. E sua participação era
fundamental na encomendação, acompanhamento e sepultamento dos fiéis.281
Os barões nem sempre tinham a mesma opulência descrita no registro de um
representante da Igreja:
Aos vinte sete de Março de mil oito centos e setenta e quatro, n’esta Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, falleceo da vida presente com o sacramento da Extrema Unção o Excellentissimo Barão do Ribeirão, em edade de setenta e quatro annos, viúvo, teve duas missas de Corpo presente, foi encommendado com assistência de trez Sacerdotes e acompanhado ao Cemitério desta Cidade, onde foi sepultado em caixão feichado. De que para constar mandei fazer este assento, que por verdade assigno. 282 (fl. 34)
Apenas o sacramento da Extrema-Unção foi realizado. Teve 2 missas de “corpo
presente”, assistência de 3 sacerdotes e caixão fechado. As diferenças percebidas no assento
do Barão do Ribeirão, se comparadas com o do Monsenhor Antonio Rodrigues de Garcia Rio,
são muitas. Os números descritos das cerimônias deste são muito maiores que daquele.
Entretanto, se comparadas com os mais pobres, são extremamente opulentas.
A cultura que une é a mesma que segrega, pois sendo a religião católica a oficial do
Império do Brasil, e sendo todos os batizados filhos de Deus, na prática, nem mesmo na hora
da morte eles eram iguais. Desta forma, os mais abastados tinham rituais fúnebres mais
ostentosos, com acompanhamento de párocos, sacerdotes, “missas de corpo presente”,
música, caixão fechado, mortalha, vestes especiais, como as de anjo comum aos filhos dos
livres e não dos escravos. Estes são indícios da distinção social. Quanto maior o número de
padres e de símbolos fúnebres, melhor a condição social do morto. Contratar padres extras
significava custo maior nas cerimônias de bem morrer e maior pompa no funeral. Nesta
hierarquia da morte, os padres tinham um papel de destaque. Eram as autoridades presentes,
representantes da igreja e responsável em garantir uma passagem mais segura como dito
acima. 283
Essa mesma cultura dominante, ao legitimar as diferenças sociais, garante para si o
local de destaque e a distância das outras culturas em relação a si mesma. Disto demandam
281REIS, João José. . A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 142. 282 1º. Livro de Óbito das pessoas livres. f. 34. CDH. 283 REIS, João José. . A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 143.
158
diferenças encontradas na forma de bem morrer na sociedade da Freguesia de Nossa Senhora
da Conceição de Vassouras. 284
284 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 11.
159
Considerações Finais.
No presente trabalho, procuramos demonstrar que as relações de poder presentes na
vida também se manifestavam na morte. As hierarquias - raciais e sociais - e estruturas
produzidas pelo “campo de lutas” tendiam a ser reproduzidas, segundo Bourdieu.285 A morte,
aqui entendida como uma das formas de distinção social e de relações de poder, trazia consigo
a possibilidade de ex-escravos e homens pobres se aproximarem dos indivíduos mais
abastados da sociedade. Contudo, estes se esforçavam para, neste momento, reafirmarem sua
posição no topo da hierarquia social por meio de diferentes signos.
“Vassouras, apesar de ser uma região de ocupação recente e já dominada pela grande
propriedade exportadora, não fugiu ao padrão de certa difusão social da posse de cativos”. 286
A expansão da cultura cafeeira tornou isso possível, viabilizando modificações na estrutura
social. As relações de poder tornaram-se extremamente complexas a partir do seu
desenvolvimento, viabilizando a construção e reconstrução de valores simbólicos e religiosos
como forma de distinção entre os seus indivíduos, livres ou escravos. Desta forma, o Estado
Imperial, como centro de referências e de poder político, é o ponto de mediação entre a região
de Vassouras e o cenário nacional e internacional.287 Além disso, o aumento da produção
cafeeira está intrinsecamente ligado à demanda externa, fato que acarretou maior necessidade
de mão de obra escrava para atender a um mercado crescente.
Procuramos demonstrar que o modo de produção nas fazendas cafeicultoras
influenciou diretamente na qualidade de vida de escravos. A jornada de trabalho, que poderia
durar até 16 horas, levava-os à exaustão física e muitas doenças encontravam aí um campo
fértil. A alimentação precária, roupas insuficientes, pouca ou nenhuma higiene, são fatores
que, combinados com castigos físicos, poderiam ceifar prematuramente a vida de muitos
cativos, questões analisadas no primeiro capítulo. A perda ou diminuição da mão de obra
incidia diretamente na produção da fazenda, bem como nos bens do proprietário. Contudo, a
atenção a esses fatores só foi despertada a partir da segunda metade do século XIX. De acordo
com os dados, houve uma melhoria na vida de escravos com o fim do tráfico negreiro, embora
a preocupação inicial, provavelmente, fosse com a perda do patrimônio ou da mão de obra
285 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. pg. 85. 286 SALLES, Ricardo Henrique. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 124. 287 Idem. Ibidem. p. 21.
160
necessária para a produção cafeeira; no entanto, foi revertida em alguns casos, ainda que
poucos, em benefícios para os cativos, que após este marco atingiram idade superior aos 50
anos, dado não encontrado até a década de 1850.
As diferentes moléstias descritas nos livros de óbito da paróquia e nos inventários nos
proporcionaram entender de que forma elas influenciavam na relação senhor / escravo. Se os
livros paroquiais apontam a tuberculose, pneumonia e doenças cardíacas como as
enfermidades que mais matavam, os inventários quantificam problemas físicos que
conduziam à queda do valor da propriedade escrava. Estes geralmente eram defeitos variados
nas pernas, mãos, braços e pés; surdez, cegueira e obesidade. Juntos, esses defeitos somam
46.97% do total dos cativos que tiveram uma enfermidade informada, que poderiam
efetivamente diminuir a mão de obra disponível. Essas deformidades sugerem o alto custo da
utilização da violência na manutenção da ordem, ou da intensa exploração para atingir uma
grande produção. Provavelmente, os registros religiosos estavam mais preocupados com os
simbolismos e rituais da morte, pois a maioria dos assentos não informa o motivo do
falecimento.
As segregações eram materiais e imateriais, aquelas facilmente percebidas no
cotidiano de senhores e escravos, no lugar social ocupado por cada um dos indivíduos na
sociedade e no interior de seu grupo. Entre os fazendeiros, as subdivisões de mega, grande,
pequeno e micro proprietários não se restringiam às designações: as roupas, construções e
alimentação eram, também, alguns dos fatores de distinção social. Poucos eram os que
ostentavam grandes fazendas e senzalas repletas de escravos.
As imateriais são observadas no campo simbólico. Na vida, podem ser percebidas nos
títulos nobiliárquicos. Na morte, se faziam notar nos diferentes locais de sepultamento que
hierarquizavam social e racialmente os indivíduos. Muito mais do que informar o local exato
de um corpo inumado, as descrições, que em alguns casos são demoradas, traduzem a
importância que teve em vida o cadáver ali disposto. Se dentro ou fora da igreja, era a
primeira segregação entre escravos e livres, ricos e pobres. Uma vez enterrado dentro do
templo, as diferenças aumentavam, quanto mais próximo do altar, mais importante era o
morto.
Outros dados fornecidos pelos Registros paroquiais são o número de missas de corpo
presente, de sacerdotes, da utilização de música nos acompanhamentos, da descrição da cor,
da condição jurídica do morto, cônjuges e pais, da informação “pobre” ou “pobríssimo”.
Todos esses, mecanismos utilizados para marcar na morte as estratificações fortemente
presentes naquela sociedade, principalmente a partir da década de 1850, com o aumento da
161
população de cor entre os livres. Fator percebido nas designações que diferenciavam e
apontam o maior quantitativo de pardos entre os indivíduos que compunham o livro de óbitos
das pessoas livres.
A vestimenta de crianças livres e descendentes de escravos e libertos é um fator
significativo. Ela demonstra uma integração dos não livres nos códigos e valores da sociedade
abrangente, formadas também por mega fazendeiros, senhores de grandes extensões de terra e
de escravos. A tentativa dos descendentes de africanos em se equiparar aos livres demonstra
as possibilidades reais de mobilidade social, ao mesmo tempo em que evidencia os diferentes
lugares sociais.
Assim, o exame dos documentos neste trabalho não nos possibilitou uma visão
conclusiva sobre a morte e todos os fatores sociais, econômicos e simbólicos nela presentes,
que hierarquizavam os indivíduos. Estes foram segregados em vida e também no momento da
morte. Muitos indícios nos aproximam da complexidade social que fazia deste um momento
decisivo. No entanto, embora os documentos utilizados para este trabalho tenham nos
proporcionado um material rico para entendermos algumas questões, outros acabaram
surgindo como possibilidade de ampliar a pesquisa, como, por exemplo, a análise de
testamentos, que dilataria o debate sobre o poder simbólico.
Para uma análise mais coesa sobre as doenças e suas implicações, poderiam ser
utilizados registros hospitalares e médicos, receituários, medicação existente nos documentos
das fazendas e quantidades compradas, bem como documentos da Santa Casa de
Misericórdia. Da mesma forma, um melhor conhecimento dos tratamentos de moléstias que
existiram nos portos africanos na preparação para a diáspora poderia viabilizar o
conhecimento de práticas médicas naquele continente. Esses dados poderiam expandir o
conhecimento relativo aos males físicos que acometiam escravos e seus descendentes.
Enfim, acreditamos que, para estudar a escravidão no Brasil, seja necessário voltar os
olhos para a África. Os indícios sobre sua cultura, riquíssima, devem ser resgatados e
socializados, para que, talvez, possamos finalmente suplantar os preconceitos formados com
base em nosso passado histórico.
162
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Centro de Documentação Histórica / CDH – 2º. 1869-1888.
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de Documentação História / CDH – 1º. 1822-1868.
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