universidade estadual de maringÁ - paraná · 2009. 12. 2. · com base em autores como luria...

21
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL – PDE “-SERÁ QUE ESTE ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL É CAPAZ DE APRENDER?”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MEDIAÇÃO DOCENTE SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL Professora PDE: AUGUSTA LUIZA DE SOUZA COSSICH Orientadora PDE: Profª. Drª. SONIA MARI SHIMA BARROCO DEZEMBRO 2009

Upload: others

Post on 10-Mar-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁCENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIASECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ

PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL – PDE

“-SERÁ QUE ESTE ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL É CAPAZ DE

APRENDER?”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MEDIAÇÃO DOCENTE SOB A

PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL

Professora PDE: AUGUSTA LUIZA DE SOUZA COSSICH

Orientadora PDE: Profª. Drª. SONIA MARI SHIMA BARROCO

DEZEMBRO 2009

Page 2: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

“-SERÁ QUE ESTE ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL É CAPAZ

DE APRENDER?”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MEDIAÇÃO DOCENTE

SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL

Professora PDE: AUGUSTA LUIZA DE SOUZA COSSICH – UEM

Orientadora PDE: Profª. Drª. SONIA MARI SHIMA BARROCO – UEM

Resumo

Este texto tem como objetivo apresentar aspectos teóricos elaborados por L. S. Vigotski a respeito da mediação e discutir suas implicações para o trabalho docente. Ele resulta de pesquisa bibliográfica, de estudos em grupo, em que se contemplaram estudos de fontes primárias (textos de L. S. Vigotski e seus colaboradores) e fontes secundárias (textos de autores contemporâneos). Selecionadas as fontes, as mesmas foram lidas, analisadas e serviram de subsídios para as sínteses aqui apresentadas, norteadas pela Teoria Histórico-Cultural. Esta proposta é decorrente de questões que se apresentam na prática docente, em uma escola especial para alunos com deficiência intelectual. Justifica-se sua elaboração visto que, nessa prática, identificam-se aflições sobre que intervenção pode ser feita para que os alunos se apropriem dos saberes sistematizados, aprendam e se desenvolvam. Isso se revela como algo da maior importância, uma vez que a educação escolar constitui-se situação privilegiada para o desenvolvimento de pessoas com ou sem deficiência. No entanto, é comum entre os professores que essas aflições que envolvem a prática pedagógica, muitas vezes, apresentem-se sob a forma de constatação e não de dúvida. Não raramente, ela pode ser percebida em relatos como: o aluno apresenta “atenção limitada”, “ele tem falta de atenção e memória”, “aprende agora e depois esquece”, dentre outras. Dito de outro modo, os professores que atendem a alunos com deficiência intelectual podem não considerar devidamente quanto suas intervenções têm possibilidade de incidir sobre o desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores – FPS (memória mediada, atenção voluntária, pensamento verbal, etc.) do aluno e quanto a escolarização promove formas diferenciadas de pensar e agir. Desse modo, pressupondo a importância da escolarização, o foco é a mediação docente. Como resultado, foi possível compreender o conceito de mediação e as suas implicações, especialmente junto a pessoas com deficiência intelectual. Conclui-se, pois, que a teoria pode iluminar a prática docente, não somente aliviando as angústias do professor, mas reposicionando sua intervenção, sua mediação e, sobretudo, a crença na possibilidade de o aluno aprender – conforme suas especificidades – num processo contínuo de compensação e superação.

Palavras-chave: Mediação docente. Aprendizagem e desenvolvimento. Deficiência intelectual. Teoria Histórico-Cultural.

2

Page 3: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

Abstract

This work aims to present the theoretical aspects developed by L. S. Vygotsky about mediation and to discuss its implications for teaching. It results from a review of the literature, study group, which included studies of primary sources (texts of LS Vygotsky and his collaborators) and secondary sources (texts of contemporary authors). The selected sources were read, analyzed and provided as a subsidy for the summaries presented here, guided by historical-cultural theory. This proposal is the result of issues that arose during the teaching practice in a special school for students with intellectual disabilities. It is appropriate to their development because allows the identification of afflictions about which intervention can be developed for students to take ownership of systematized knowledge, learn and grow. This turns out to be something of great importance, since school education constitutes a privileged position for the development of people with and without disabilities. However, it is common among teachers that these afflictions involving the teaching practice be presented in the form of finding and not doubt. Not infrequently, it can be seen in reports such as “the student has limited attention”, “it is lack of attention and memory”, “Learn now and then forget about it”, among others. In other words, teachers of students with intellectual disabilities may not adequately consider how their activities are able to focus on the development of students' higher psychological functions - HPF (mediated memory, voluntary attention, verbal thinking, etc..), and promote education about different ways of thinking and acting. Thus, assuming the importance of schooling, the focus is the teaching mediation. As a result, it was possible to understand the concept of mediation and its implications, especially towards people with intellectual disabilities. It follows therefore that the theory can illuminate the teaching practice, not only relieving the anxieties of the teacher, but repositioning his/her intervention, mediation, and above all, the belief in the possibility of students learning – according to their specificities – within a continuous process of compensation and overcoming.

Key words: Teaching mediation. Learning and development. Intelectual disability. Historical-cultural Theory.

Introdução

Professor, qual é o seu papel no processo de aprendizagem e desenvolvimento

de seus alunos e em especial do aluno com deficiência intelectual?

Responder tal questão não se constitui em tarefa fácil diante dos

comprometimentos apresentados pelos os alunos com deficiência intelectual, bem como

diante da dificuldade dos profissionais que atuam na área para compreenderem as

questões que envolvem a aprendizagem e o desenvolvimento.

Em busca de respostas sobre a importância do professor neste processo, foram

realizados estudos nos quais se optou pelo aporte teórico da escola vigotskiana. Desta

3

Page 4: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

maneira, objetivamos expor um pouco a respeito da formação desse profissional, das

suas elaborações e, em especial, no que refere à sua mediação como docente.

De acordo com a Teoria Histórico-Cultural, para a compreensão da aquisição

das formas superiores de desenvolvimento – das características tipicamente humanas –

faz-se necessário abordar o conceito de mediação.

Neste conceito, encontra-se um dos pontos de grande relevância da obra de L.

S. Vigotski1 (1896 -1934), ou seja, o papel da mediação no processo de aprendizagem.

O eixo orientador de sua obra foi a teorização da constituição sócio-histórica do

psiquismo humano e, consequentemente, isso implica na abordagem do papel que os

mediadores externos assumem para tanto.

Segundo Vigotski, a relação do homem com o mundo físico e social é sempre

mediada, isto é, ocorre por meio do concurso de um elemento intermediário, que a torna

mais indireta e mais complexa. Este autor defendeu que uma característica essencial que

difere o homem dos animais é, justamente, a sua capacidade de conhecer o mundo, de

nomeá-lo, de identificar as causas dos fenômenos e das relações entre eles. Dito de

outro modo, é a capacidade de apreender o mundo externo e de tê-lo internamente, na

consciência, por meio da palavra, dos signos, o que o credencia como ser superior sobre

todos os demais da natureza. Vygotsky e Luria (1996) defendem a mediação

instrumental como processo fundamental na apropriação do conhecimento, reforçando o

papel da educação escolar e do professor para o desenvolvimento humano, afinal, a

aprendizagem movimenta o desenvolvimento!

Entre as contribuições da Teoria Histórico-Cultural de Vigotski para a educação

destacam-se aquelas que se referem ao contexto da Defectologia. A lei central de

proposições vigotskianas no campo da defectologia é a de que qualquer defeito origina

uma tendência ou estímulo para a formação da compensação, ou seja, a insuficiência de

uma capacidade é compensada com o desenvolvimento de outra. A compensação

ocorrida é relativa ao funcionamento psicológico, numa concepção que corresponde à

plasticidade dos processos de desenvolvimento. As oportunidades para que o indivíduo

se desenvolva são propiciadas pelo meio sociocultural no qual ele se insere e sobre o

qual atua.

1 Apesar de se encontrar Vigotski grafado de diversas formas, tais como: Vygotski, Vygotsky, Vigoskii, Vigotskji, adotaremos, neste trabalho, a grafia VIGOTSKI. Manteremos, apenas nas indicações bibliográficas, a grafia adotada em cada uma delas.

4

Page 5: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

Vygotsky (1997) defende que é importante compreender o aluno com

deficiência como indivíduo social, o qual, dependendo das mediações recebidas em seu

ambiente físico e social, poderá acionar mecanismos compensatórios, que entram em

conflito com o meio externo para promover a maximização de sua aprendizagem.

Entendemos, enfim, que a contribuição da presente proposta de estudo está na

busca por subsídios teóricos e práticos que forneçam ao professor de alunos com

deficiência intelectual elementos que possam iluminar sua prática docente, em especial

no tocante à mediação instrumental.

Quem foi Lev Semenovich Vigotski?

Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007),

podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky nasceu em 1896 em Orsha, uma

pequena cidade provinciana da Bielo-Rússia, e faleceu em 1934, aos 37 anos, vítima de

uma tuberculose. Era membro de uma família judia com boas condições financeiras, o

que favoreceu seu acesso a um ambiente intelectualizado.

Sua educação formal aconteceu em casa, por meio de tutores particulares.

Concluiu seus estudos em Direito e Filologia na Universidade de Moscou em 1917.

Posteriormente, estudou Medicina. Lecionou Literatura e Psicologia em Gomel, de 1917

a 1924, quando se mudou novamente para Moscou, trabalhando, de início, no Instituto

de Psicologia e, mais tarde, no Instituto de Defectologia, por ele fundado. Dirigiu,

ainda, um Departamento de Educação para deficientes físicos e retardados mentais.

De 1925 a 1934, Vigotski lecionou Psicologia e Pedagogia em Moscou e

Leningrado. Nessa ocasião, iniciou estudo sobre a crise da psicologia, buscando uma

alternativa dentro do materialismo dialético para o conflito entre as concepções idealista

e mecanicista. Tal estudo levou Vigotski e seu grupo – entre eles, A. R. Luria e A. N.

Leontiev – a propostas teóricas inovadoras sobre temas como: relação entre pensamento

e linguagem, natureza do processo de desenvolvimento da criança e o papel da instrução

no desenvolvimento. O fundamento básico de suas hipóteses é que os processos

psicológicos superiores humanos são mediados pela linguagem e estruturados não em

localizações anatômicas fixas no cérebro, mas em sistemas funcionais, dinâmica e

historicamente mutáveis. O homem é considerado como corpo e mente, como ser

biológico e social, membro da espécie humana e de um processo histórico e cultural,

um ser concreto que cria suas condições de existência na história ao mesmo tempo que a

constrói.

5

Page 6: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

Vigotski foi possuidor de uma profunda formação em vários campos do

conhecimento, especialmente na filosofia marxista e na conjuntura soviética, e teve uma

larga experiência como professor em diversos níveis e ramos de ensino, sobretudo nas

pesquisas e estudos voltados ao processo de ensino e aprendizagem de pessoas com

deficiências. Após a década de 1990, com a queda do comunismo real, houve uma

maior divulgação de seu trabalho no ocidente, e isso ocorreu também no Brasil.

Sobre o Método Instrumental

De acordo com Facci (1998, p. 68), no texto intitulado O método instrumental

em Psicologia (VIGOTSKI, 1996, p. 93-1001) apresenta algumas implicações

metodológicas para o desenvolvimento do psiquismo, com a existência dos

instrumentos psicológicos, que “[...] são criações artificiais, estruturalmente, são

dispositivos sociais e não orgânicos ou individuais: destinam-se ao domínio dos

processos [psicológicos] próprios ou alheios, assim como a técnica se destina ao

domínio dos processos da natureza”(VIGOTSKI, 1996, p. 93).

Para entender o psiquismo humano, Vigotski separa as funções psicológicas em

funções naturais, que podem ser entendidas como aquelas que compõem o equipamento

biológico e com o qual a criança conta no início de seu desenvolvimento, e em funções

psicológicas, que segundo a Teoria Histórico-Cultural, advêm do processo de

interiorização e de objetivação do conhecimento, que está intimamente ligado a uma

forma de mediação estritamente humana. As funções psicológicas superiores, por sua

vez, podem ser entendidas, de acordo com Barroco (2007), como “aquelas de origem

social, que só passam a existir no indivíduo ante a relação mediada com o mundo

externo (com pessoas e com aquilo que elas criam: objetos, ferramentas, processos de

criação e de execução, etc.)”.

Desta maneira, os modos de perceber, de representar, de explicar e de intervir

sobre o meio, os sentimentos em relação ao mundo, à outra pessoa e a si mesmo, enfim,

todo o funcionamento psicológico tem origem e vai se construindo nas relações do

indivíduo com o seu contexto cultural, social, histórico.

Entre os processos instrumentais e naturais, entre método instrumental e métodos científicos – naturais existe uma relação. Nos métodos científicos naturais, mantém-se uma relação linear, direta entre dois

6

Page 7: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

estímulos A – B, e nos métodos instrumentais estabelecem-se duas novas conexões A – X e X - B. Aqui, neste caso, o X seria o mediador entre o objeto e a operação psicológica, de forma que a relação seria aqui representada, através de um triangulo

A B

XTodo e qualquer ato de comportamento transforma-se, então, em uma operação intelectual, mediada por dois tipos de instrumentos, denominados por Vigotski de instrumento psicológico e instrumento técnico (FACCI, 1998, p. 68-69).

Podemos entender, desta maneira, que o ser humano necessita do instrumento,

cuja função é regular as suas ações sobre os objetos. Um instrumento refere-se a tudo

aquilo que se interpõe entre o homem e o ambiente, ampliando e modificando suas

formas de ação, potencializando a capacidade do seu próprio corpo. Por essa teoria, não

se tem o homem submetido ao destino, mas dependendo dos recursos que lhes são

disponibilizados. Nesse sentido, trabalhar sob essa perspectiva, implica em se assumir

um dado posicionamento ético diante da escolarização, em prol do desenvolvimento.

O homem, em seu desenvolvimento filogenético, cria o instrumento para lhe

facilitar a ação sobre a natureza e o mundo de modo geral. Os instrumentos acabam

transformando o próprio comportamento daqueles que o utilizam, uma vez que deixam

a prática da ação direta sobre o meio e passam a intervir de modo mais certeiro, amplo,

e, sobretudo, planejado. Um machado, por exemplo, é um instrumento. Quem aprende a

manejá-lo, tem sua força aumentada no intuito de derrubar uma árvore. Ou seja, o

machado permite uma ação indireta sobre o mundo, ao mesmo tempo em que

potencializa a ação do seu corpo (o golpe sobre a árvore tem força ampliada por esta

ferramenta). A transformação externa volta-se ao homem e transforma seu psiquismo.

Saber empregar uma ferramenta ou instrumento incide no próprio modo de ação sobre o

mundo. O instrumento permite que as necessidades de toda ordem, indo desde a

sobrevivência, sejam supridas.

Da mesma forma que atua sobre a natureza, transformando-a, o homem atua

sobre si próprio, transformando suas formas de agir. Mas há outras condições que são

essenciais para que o processo de humanização se realize na vida do sujeito particular.

Há outras formas de regulação da conduta. O signo, por sua vez, regula as ações sobre o

psiquismo das pessoas. O signo é comparado por Vigotski ao instrumento, que o

7

Page 8: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

denomina de instrumento psicológico. “Tudo que é utilizado pelo homem para

representar, evocar ou tornar presente o que está ausente constitui um signo, como a

palavra, o desenho, os símbolos [...]” (FONTANA; CRUZ, 1997, p. 59).

Diferenciando, temos que, enquanto o instrumento ou ferramenta está orientado

externamente, ou seja, para a modificação do ambiente, o signo é internamente

orientado, modificando o funcionamento psicológico do homem e o seu

comportamento.

O uso de instrumentos especificamente humanos, como os signos, produz novas

relações com o ambiente e uma nova organização do próprio comportamento. O

indivíduo adquire independência em relação ao ambiente imediato; pode fazer

referência a objetos e fatos ausentes. Signos são, pois, mediadores de natureza

psicológica que auxiliam o desenvolvimento de tarefas que exigem atenção ou

memória, uma vez que podem interpretar ou (re) apresentar dados da realidade,

referindo-se a elementos ausentes.

Utilizamos o signo para desempenhar diversas atividades. Anotar um recado,

seguir uma partitura musical, contar uma história. A utilização dos signos amplia a

memória, o raciocínio, o planejamento, a imaginação. “A verdadeira essência da

memória humana está no fato de os seres humanos serem capazes de lembrar

ativamente com a ajuda de signos” (VIGOTSKI, 2002, p. 68). A não internalização dos

signos convencionalmente adotados por uma sociedade leva o sujeito a sentir-se como

surdo ou mudo; ele fica alheio a tudo, não conseguindo utilizá-los funcionalmente para

regularem sua conduta. Olham, por exemplo, placas, mas não conseguem lê-las em

outro idioma.

Sendo assim, pode-se afirmar que a utilização de signos torna as ações humanas

mais complexas e sofisticadas, ou ainda, desenvolve a capacidade de operar com

instrumentos mediadores, e é fundamental para o desenvolvimento das funções

psicológicas superiores, diferenciando o homem de outros animais e o constituindo

como humano. Esses mediadores criam espaços de representação, dos quais emergem

um mundo novo, o mundo da significação.

Esse processo de desenvolvimento deve ser compreendido desde o início da vida

da criança. Esta não nasce em um mundo natural, mas em um mundo humano, em meio

a objetos e fenômenos criados pelos homens das gerações que a precederam. Ela vai se

apropriando destes ao se relacionar socialmente e ao participar das atividades práticas

da sociedade.

8

Page 9: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

Segundo Fontana e Cruz (1997), neste processo interativo, as funções biológicas

herdadas, tais como percepção, memória, ações reflexas, reações automáticas e

associações simples, entrelaçadas aos processos culturalmente organizados,

transformam-se em modos de ação, de relação e de representação propriamente

humanos.

A criança, desde o seu nascimento, apropria-se desse meio cultural, e é por

meio dele que irá assumir características do gênero humano, irá desenvolver a sua

genericidade. Para tanto, para se tornar gênero humano singular, precisa dominar os

conhecimentos próprios a esse meio e ao nível alcançado pela humanidade; precisa

tornar seu aquilo que é circulado entre seus pares. Necessita, pois, da mediação de

indivíduos mais experientes, de modo direto, em sua vida cotidiana e na sua

escolarização, bem como, de modo indireto, por aquilo que escrevem ou objetivam em

obras (científicas, artísticas, filosóficas, etc.). Na concepção de Vigotski, a relação do

homem com o mundo físico e social é, portanto, sempre mediada.

Segundo Facci (1998), de acordo com o método instrumental, o que diferencia

uma criança da outra (o talento, a normalidade) é a possibilidade que ela tem de utilizar,

por si mesma, suas próprias funções naturais e de dominar os instrumentos psicológicos.

Compreender o conceito de mediação, que se caracteriza pela relação do homem

com o mundo e com os outros homens, é de fundamental importância, justamente

porque é por meio deste processo que as Funções Psicológicas Superiores – FPS –, que

são especificamente humanas, desenvolvem-se. Desse modo, podemos pensar quanto a

intervenção docente não se restringe ao conteúdo curricular trabalhado, antes, por meio

deste, a criança apreende o mundo e a humanidade. Assim, ao estar diante de uma

criança com deficiência intelectual, a preocupação não é somente com a sua apropriação

dos conteúdos trabalhados, mas com a oportunidade desta se apropriar dos recursos de

humanização, que podem levá-la a ser um adulto cultural. Sob essa teorização, os

resultados e, antes mesmo, a intervenção docente ganham um novo significado.

Conceito de linguagem

Além dos estudos sobre a mediação, outro tema que Vigotski abordou é de

especial importância para nossa temática. Ele dedicou particular atenção à questão da

9

Page 10: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

linguagem, porque entendia que é um sistema simbólico fundamental para o

desenvolvimento de todos os grupos humanos.

De acordo com Facci (1998, p. 70) a linguagem

[...] surgiu como uma necessidade decorrente do processo de trabalho, quando os homens tiveram de criar meios de comunicação que permitissem trocar informações, planejar suas atividades, numa ação coletiva. Ela representa um ponto muito importante, no desenvolvimento do homem e é o sistema de signos mediador das funções psíquicas.

Segundo Leontiev (2003, p. 72-73),

A aprendizagem da linguagem é a condição mais importante para o desenvolvimento mental, porque o conteúdo da experiência histórico-social não está consolidada somente nas coisas materiais, está generalizada e reflete-se de forma verbal na linguagem. É precisamente nesta forma que a criança acumula o conhecimento humano, os conceitos sobre o mundo que a rodeia .

Para a Teoria Histórico–Cultural, os objetos físicos são entendidos como

instrumentos e a linguagem, como um sistema simbólico, que tem uma função

mediadora. A apropriação dos instrumentos e dos signos pelo indivíduo ocorre sempre

na interação com o outro, e a criança, desde o nascimento, tem com o mundo uma

relação mediada pelo outro e pela linguagem.

O adulto ensina a criança a utilizar objetos ao agitar um brinquedo diante dela,

ao ajudar a pegá-lo, ao ensinar a comer com talheres, a tomar banho. Ele aponta,

nomeia, destaca, indica e, ao mesmo tempo, atribui significações aos seus

comportamentos. Desta maneira, aos poucos, a criança aprende a falar e passa a utilizar

a própria linguagem para regular suas ações e conferir sentido às coisas.

De suas relações com o outro, a criança reconstrói internamente as formas

culturais de ação e de pensamento. Nesse processo os instrumentos físicos têm a função

de potencializar externamente a ação do homem, ou seja, orientar sua ação sobre o

objeto, enquanto os signos ampliam as ações psicológicas, como a capacidade de

pensamento, de atenção, de percepção, de memória, de abstração, dentre outras.

A linguagem como sistema simbólico, gera mudanças substanciais no indivíduo.

Por meio dela, acontece a apropriação do conhecimento produzido pelas gerações

precedentes. Ao internalizar a linguagem de sua cultura , o indivíduo não só internaliza

uma forma de comunicação, como sobretudo, o que estas palavras expressam e indicam

em seu meio. Ao internalizar o código linguístico, o significado também é internalizado,

10

Page 11: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

resultando no desenvolvimento das funções complexas de pensamento, por possibilitar

o desenvolvimento da atenção voluntária, da memória compreensiva, da percepção, do

raciocínio, da capacidade de imaginar.

[...] à atividade consciente do homem [...] designando os objetos e eventos do mundo exterior com palavras isoladas ou combinações de palavras, a linguagem permite ‘discriminar esses objetos, dirigir a atenção para eles e conservá-los na memória’. Resulta daí que o homem ‘está em condições de lidar com os objetos do mundo exterior inclusive quando eles estão ausentes’. [...] as palavras de uma língua não apenas indicam determinadas coisas como abstraem as propriedades essenciais desta, relacionam as coisas perceptíveis, a determinadas categorias. [...] A linguagem é o ‘veículo de transmissão de informação’’, que se formou na história social da humanidade [...] (LURIA, 1991, p. 80-81).

A esse processo interno de reconstrução de uma operação externa, Vigotski dá o

nome de internalização (FONTANA; CRUZ, 1997). Nesse movimento, a atividade

interpessoal transforma-se para se constituir em funcionamento interno, intrapessoal.

O leque de possibilidades, para o indivíduo compreender, analisar e expressar os fenômenos e fatos objetivos, depende da qualidade da linguagem internalizada, ou seja, depende do conteúdo apropriado nas interações que estabelece com seus pares. Na escola, a linguagem se configura nos conteúdos das diferentes áreas do conhecimento, portanto, os conteúdos, trabalhados nas diferentes disciplinas dão suporte ao desenvolvimento das funções complexas do pensamento.(GALUCHI; MORI, 2008, p. 21-22).

O desenvolvimento humano ocorre, do plano social para o individual, ou seja,

para que a apropriação aconteça faz-se necessário um processo de internalização, no

qual a processos externos que se efetivam nas atividades entre as pessoas se

transformem em processos intrapsicológicos, em que a atividade é reconstruída

internamente.

Ainda no plano ontogenético, pode-se dizer que a criança vai assumindo a forma humana à custa de outros agentes mediadores humanos e daquilo que eles produzem. Para se humanizar, precisa sair cada vez mais da esfera das funções naturais e ampliar o espectro cultural de sua vida. Necessita, portanto, fazer uma transposição de um plano a outro, ou seja, do social para o pessoal. Conceitos cotidianos e científicos, valores, crenças, etc., expressos por diferentes signos e traduzindo determinadas significações, presentes no âmbito público, precisam ser apropriados, internalizados, tornados particulares pela criança, que a tudo isso atribuirá um dado sentido (BARROCO, 2007, p. 253, grifo da autora).

11

Page 12: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

Desta maneira, as origens e as explicações do funcionamento psicológico do

homem devem ser buscadas nas interações sociais. São por meio delas que o indivíduo

tem acesso aos instrumentos e ao sistema de signos que possibilitam o desenvolvimento

de formas culturais de atividade e permitem estruturar a realidade e o próprio

pensamento, destacando, como exposto, o papel da linguagem para que as trocas se

efetuem.

O homem cultural é aquele que, vivendo com outros homens, apropria-se e cria formas mediatas de estar no mundo, de apreendê-lo, de transformá-lo. Necessariamente vale-se da língua/linguagem para tanto e desenvolve o pensamento verbal. Este passa a regular o seu comportamento, permitindo que as suas próprias funções elementares (sensação, percepção, etc.) sejam desenvolvidas para um dado curso que o habilita a estar no mundo de modo ativo (BARROCO, 2007, p. 24).

Zona de Desenvolvimento Proximal: espaço da mediação docente

Vigotski estabeleceu o conceito de zona de desenvolvimento proximal, que é

muito importante para o meio educativo, por fornecer elementos para a compreensão de

como se dá a integração entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento.

Em suas pesquisas, identificou dois níveis de desenvolvimento. O primeiro

nível se constitui pelas funções psicológicas já efetivadas, formadas e amadurecidas

pelo indivíduo, como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados.

Denominou-o nível de desenvolvimento real ou efetivo. Esse nível costuma ser

determinado, pela solução individual do problema, ou seja, refere-se àquelas conquistas

que já estão consolidadas na criança, aquelas funções ou capacidades que ela já

aprendeu e domina, pois já consegue utilizar sozinha, sem a assistência de alguém mais

experiente.

De acordo com Rego (1999), a avaliação de crianças na escola, na vida cotidiana

e em pesquisas sobre o desenvolvimento infantil restringe-se somente a este nível.

Considera-se representativo de seu desenvolvimento somente aquilo que ela é capaz de

fazer sem a colaboração de outros.

Miranda (2005) também se refere a esta questão ao asservar que, para a análise

do processo de aprendizagem, tradicionalmente, toma-se como base as aquisições já

disponíveis, as possibilidades de realizações de tarefas, ou seja as conquistas já

12

Page 13: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

efetivadas. As atividades que uma criança é capaz de resolver são consideradas como

indicadores de suas possibilidades e determinam seu nível de desenvolvimento

O segundo nível de desenvolvimento é o potencial, proximal ou próximo, que se

define como aquelas funções que estão em vias de amadurecer e que podem ser

identificadas, mediante solução de tarefas, com o auxílio de adultos e outras crianças

mais experientes. Nesse caso, a criança realiza tarefas e soluciona problemas por

intermédio do diálogo, da colaboração, da imitação, da experiência compartilhada e das

pistas que lhe são fornecidas. Para Vigotski, este nível é bem mais indicativo do

desenvolvimento mental da criança. Enquanto aquele nível caracteriza o

desenvolvimento mental retrospectivamente, este o caracteriza prospectivamente.

É preciso, portanto, conhecer o nível de desenvolvimento potencial, entendido

como a capacidade de realizar tarefas com a mediação de outrem mais experiente. As

possibilidades de alcançar, em um dado momento, novas aquisições mentais, por meio

da realização de tarefas mediadas por outras pessoas, é fundamental na teoria de

Vigotski, por revelar o nível de desenvolvimento potencial.

A participação do outro mais experiente resulta na apropriação de novas formas

culturais. Neste sentido, o processo de desenvolvimento passa por transformações

constantes, permeadas pelo processo da mediação; daí o papel fundamental da interação

social na construção das funções psicológicas humanas.

Mediação Docente: da teoria à prática

O bebê humano, se comparado com as demais espécies animais, é o mais

indefeso e despreparado para lidar com os desafios de seu meio. Para sobreviver,

depende dos sujeitos mais experientes de seu grupo, que se responsabilizam pelo

atendimento de suas necessidades básicas, como locomoção, abrigo, alimentação,

higiene; afetivas, como carinho, atenção e pela formação de comportamentos

tipicamente humanos.

No início da vida, a atividade psicológica do bebê é bastante elementar e determinada por sua herança biológica ou pelo equipamento biológico. O adulto não está só ligado ao meio ambiente por milhares de elos os mais estreitos, como é, ele próprio, produto dele; sua essência encontra-se na essência das coisas ambientais. Não é o que se dá com

13

Page 14: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

um recém-nascido. Tudo quanto, para o adulto, serve de ponte entre ele e o meio ambiente, tudo o que lhe traz cada sinal do mundo exterior – isto é, sua visão, audição e os demais órgãos da percepção – é quase não funcional num recém-nascido. Imagine-se um homem a quem, um após o outro, se tenham cortado todos os vínculos com o meio ambiente; ele passa a estar completamente isolado do mundo, uma pessoa solitária em meio a um mundo de coisas que não existem para ele. Essa condição é a que se assemelha à de um recém-nascido (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 155).

Vygotsky e Luria ressaltam que os fatores biológicos têm preponderância sobre

os sociais somente no início da vida da criança. Aos poucos, as interações com seu

grupo social e com os objetos de sua cultura passam a governar o comportamento e o

desenvolvimento de seu pensamento.

Naturalmente, esse desenvolvimento produz uma revolução total na vida da criança: de ser primitivo com somente sensações orgânicas, de ser que não vê e não ouve, imerso apenas em sua vida orgânica, ela se transforma num ser que, pela primeira vez, se defronta com a realidade, e começa a interagir com ela, começa a reagir ativamente a estímulos que dela provêm e se encontra diante da necessidade de, gradativamente e de maneiras primitivas, adaptar-se a ela. O primeiro princípio “orgânico” de existência começa a ser substituído por um segundo princípio – o princípio da realidade externa e, o que é mais importante, social (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 156).

Fica evidente que Vigotski não ignora as definições biológicas da espécie

humana, no entanto, atribui como fundamental a dimensão social, que fornece

instrumentos e símbolos que medeiam a relação do indivíduo com o mundo, e que

acabam por fornecer também seus mecanismos psicológicos e formas de agir nesse

mundo.

O aprendizado é considerado, assim, um aspecto necessário e fundamental para

que o desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores aconteçam. Nessa

perspectiva, é o aprendizado que possibilita e movimenta o processo desenvolvimento.

Sendo assim, as relações entre desenvolvimento e aprendizagem ocupam lugar de

destaque na obra de Vigotski, considerando que o ensino é fator imprescindível para o

desenvolvimento do psiquismo humano.

Vygotsky e Luria (1996) defendem a mediação instrumental como processo

fundamental na apropriação do conhecimento, reforçando o papel da educação escolar e

do professor para o desenvolvimento humano. Nessa direção, temos que, desde a

educação infantil, a mediação não pode se apresentar de improviso, assistemática e

14

Page 15: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

desprovida de intencionalidade junto às crianças com e sem deficiências. No caso

daquelas com deficiência intelectual, esse cuidado deve ser ampliado.

Segundo esses autores, já a partir do nascimento, o desenvolvimento e a

aprendizagem estão inter-relacionados. Desde muito pequenas, as crianças realizam

uma série de aprendizados na comunicação direta com pessoas que a rodeiam,

observando, manipulando, experimentando diretamente mediante as interações socais

imediatas. Por isso, muito antes de entrar na escola, a criança já se apropriou de uma

série de conhecimentos do mundo que a cerca. Esses conhecimentos construídos na

experiência pessoal, concreta e cotidiana, Vigotski chamou de conceitos cotidianos ou

espontâneos.

Ao entrar na escola, a criança terá contato com outro tipo de conhecimento. São

os conhecimentos apropriados por meio do ensino sistemático, intencional, próprios à

educação escolar, os quais Vigotski chamou de conceitos científicos. Estes se

relacionam a eventos não diretamente acessíveis à observação ou ação imediata da

criança.

O professor constitui-se, pois, em mediador entre os conhecimentos espontâneos

trazidos pela criança e os científicos que ensina. Os conceitos científicos são

assimilados por meio da colaboração sistemática entre o professor e a criança. O auxílio

e a participação do adulto promove o processo de amadurecimento das FPS da criança.

A qualidade do trabalho pedagógico está relacionada à capacidade de

movimentar avanços no desenvolvimento do aluno, de intervir na sua zona de

desenvolvimento proximal, levando ao amadurecimento e à conquista daquilo que ainda

não é parte do nível real.

No processo de aprendizagem do aluno com deficiência intelectual, a mediação

pedagógica é muito importante, por contribuir para que este possa sair do imediato

concreto e forme o pensamento categorial ou conceitual. A escola lida, assim, com as

flores e os brotos do desenvolvimento e deve fazê-los frutificar. Ou ainda, na linguagem

metafórica, deve transformas crisálidas em borboletas (VYGOTSKY; LURIA, 1996).

Para a Teoria Histórico-Cultural, os processos de desenvolvimento são

impulsionados pelo aprendizado. Neste sentido, a escola deve oferecer conteúdos que

possam desenvolver diferentes modalidades de pensamento. Sob esta perspectiva, a

instituição escolar é imprescindível para o desenvolvimento dos indivíduos com ou sem

deficiência.

15

Page 16: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

Interagindo com o conhecimento, o ser humano se transforma, sendo introduzido

em novos modos de operação intelectual e, neste sentido, à medida que a criança

expande seus conhecimentos, modifica sua relação cognitiva com o mundo e suas

funções psicológicas superiores, como o pensamento abstrato, a atenção voluntária, a

memória mediada, etc., desenvolvem-se.

Deficiência intelectual: dos limites às compensações

Para compreendermos a importância da mediação docente no processo de

aprendizagem e de desenvolvimento do aluno com deficiência intelectual, faz-se

necessário o conhecimento de algumas questões apontadas em estudos realizados, por

Vigotski e seus colaboradores, com crianças com “retardo”2.

A idéia que normalmente se tem de uma criança sob esta condição é de

[...] alguém que possui um repertório psicológico deficiente, que não possui memória necessária, a capacidade de percepção adequada ou a inteligência adequada. Uma pessoa retardada é psicologicamente desvalida de nascença (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 227).

Pesquisas realizadas por estes autores apontaram para um quadro bem diferente

do exposto. Crianças com retardo na maioria dos casos, apresentam preservadas as

funções relacionadas à visão e à audição. Também foi possível observarem casos que

apresentavam aguçada memória. Ante tais constatações, indagam: como compreender a

diferença no comportamento da criança normal e da criança com retardo.

A diferença está apenas no fato de que uma criança normal utiliza racionalmente suas funções naturais e, quanto mais progride, mais é capaz de imaginar dispositivos culturais apropriados para ajudar sua memória. Não é o que se dá com a criança retardada. Uma criança retardada pode ser dotada dos mesmos talentos naturais de uma criança normal, mas não sabe como utilizá-los racionalmente. Assim, eles permanecem adormecidos, inúteis, como peso morto. Ela os possui, mas não sabe como utilizar esses talentos naturais e isso constitui o defeito básico da mente da criança retardada. Em conseqüência, o retardo é um defeito não só dos próprios processos naturais, mas também do seu uso cultural (VYGOTSKY, LURIA, 1996, p. 288-289)

2 Este termo era empregado pelos autores daquelas décadas, nos dias de hoje, eles tem cunho pejorativo.

16

Page 17: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

Uma das características da criança deficiente mental, para LURIA (1974, apud

TULESKI, 2007, p. 152),

[...] está no fato de não conseguir ultrapassar o nível da percepção imediata dos objetos, tendo dificuldades em estabelecer relações entre os mesmos em função de uma percepção fragmentada, apresentando dificuldades na transposição de processos externos para internos. Um atraso das operações internas de síntese pode ser considerado uma característica importante da criança atrasada mental. Este atraso, ao aparecer em suas idéias e seu conhecimento, tem relação estreita com o atraso da linguagem e os sistemas complexos de associação que se formam a partir da linguagem..

De acordo com a American Association on Mental Retardation – AAMR

(Associação Americana de Deficiência Mental) e o Manual Diagnóstico e Estatístico de

Transtornos Mentais 54 (DSM-IV), a deficiência mental refere-se a um estado de

redução notável do funcionamento intelectual, significativamente inferior à média

esperada para pessoas da mesma idade e nível de experiências semelhante. Isto deve ser

associado às limitações em, pelo menos, dois aspectos do funcionamento adaptativo:

comunicação, cuidados pessoais, habilidades sociais, competências domésticas,

utilização dos recursos comunitários, aptidões escolares, autonomia, lazer e trabalho,

saúde e segurança (BARROCO, 2007).

Uma mudança na adjetivação da deficiência, de mental para intelectual, vem

ganhando força desde que a Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização

Mundial da Saúde realizaram um encontro em Montreal, em 2004, do qual resultou a

Declaração de Montreal Sobre Deficiência Intelectual. Vale ressaltar que, essa

mudança já se fazia presente em alguns eventos ou documentos. Entende-se, assim, que

pessoas com deficiência intelectual são aquelas que apresentam algumas limitações em

áreas das habilidades adaptativas, não reclamando apoios em áreas não-afetadas. Em

relação aos apoios, estes podem ser identificados conforme a sua intensidade:

intermitente, limitado, extenso, generalizado (BARROCO, 2007).

De acordo com Garcia (1999, apud NUERNBERG, 2008, p.309), “a despeito de

envolver limitações orgânicas como lesões cerebrais e malformações orgânicas, a

deficiência não pode ser reduzida aos seus componentes biológicos”.

Vigotski distingue deficiência em primária e secundária. A deficiência primária

consiste nos problemas de ordem orgânica e a deficiência secundária, refere-se às

conseqüências psicossociais da deficiência.

17

Page 18: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

Mediadas socialmente, as limitações secundárias, remetem-se ao fato de o

universo cultural estar construído em função de um padrão de normalidade, que cria

barreiras físicas, educacionais e atitudinais para a participação social e cultural da

pessoa com deficiência.

No que se refere à deficiência intelectual, Vigotski apresenta contribuições que

apontam para a heterogeneidade do grupo que compartilha desta condição, salientando

que, tão importante quanto a deficiência, é a personalidade dos sujeitos.

De acordo com Nuernberg (2008, p. 309),

As vias alternativas de desenvolvimento na presença da deficiência seguem a direção da compensação social das limitações orgânicas e funcionais impostas por essa condição. Cumpre ressaltar, contudo, que não se trata de afirmar que uma função psicológica compense outra prejudicada ou que a limitação numa parte do organismo resulte na hipertrofia de outra. A compensação social a que se refere Vigotski consiste, sobretudo, numa reação do sujeito diante da deficiência, no sentido de superar as limitações com base em instrumentos artificiais, como a mediação simbólica.

Compreendemos, portanto, que, sob a perspectiva desta teoria, simultaneamente

com o déficit, estão dadas também as tendências psicológicas de uma direção oposta, ou

seja, existem as possibilidades de compensação para vencer a deficiência. A

compensação, neste sentido, deve se alicerçar em um contexto que favoreça

oportunidades para que o sujeito alcance os mesmos fins que o processo educacional

das pessoas consideradas normais. As possibilidades de compensação se apresentam no

desenvolvimento da criança e devem ser incluídas no processo educacional como força

motriz. Consideramos que, para tal, o sistema educacional precisa organizar-se na busca

de criar caminhos alternativos para o desenvolvimento das funções psicológicas

superiores, apoiando-se em formas de ação mediada, que possam, em algum grau,

promover a substituição das funções lesadas por formas superiores de organização

psíquica.

Desta forma, Vigotski entende que a educação escolar, para as crianças

atrasadas, torna-se ainda mais importante do que para a criança normal, diante da

perspectiva de introduzir-lhes, certas técnicas culturais de comportamento.

18

Page 19: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

Conclusão

Ao longo deste artigo, a questão inicial sempre esteve presente: “-Será que este

aluno com deficiência intelectual é capaz de aprender?”.

Esta inquietação encontra respostas por meio do respaldo teórico apresentado

pela Teoria Histórico – Cultural, ao discutir o conceito de mediação, ou seja, o papel

da mediação no processo de aprendizagem.

Vigotski tem como eixo orientador de sua obra a explicação da constituição

social psiquismo humano. Explica a trajetória do nascer homem e tornar-se humano,

adquirindo formas superiores de desenvolvimento, características tipicamente humanas,

por meio da interação e apropriação dos bens culturais, contando com as mediações do

outro.

Devemos, desta maneira, compreender que, sobre uma base herdada, o indivíduo

poderá construir sua história ao apropriar-se de sua cultura, desenvolvendo, assim, suas

funções psicológicas superiores. O que lhe é dado biologicamente ao nascer, pode

progredir por meio das suas interações sociais. De acordo com pressupostos desta

teoria, o desenvolvimento é impulsionado pela aprendizagem.

Temos, então, fundamento para afirmar que todos podem aprender. Como

membros pertencentes à espécie humana socialmente organizada, devemos nos

apropriar dos conhecimentos desta para nos humanizarmos.

Mas, quando pensamos no aluno com deficiência intelectual, acreditamos

realmente na sua capacidade de aprender?

Ao discutir a questão da mediação docente, L. S. Vigotski afirma que todos

podem aprender, desde que existam mediações adequadas. Vale considerar que

devemos pensar nas conquistas individuais, ou seja, diferentes aprendizagens para

diferentes níveis de comprometimento intelectual e, com isso, diferentes níveis de

desenvolvimento. Queremos ressaltar, aqui, a capacidade para aprender e não o que se

espera tradicionalmente que se aprenda.

A educação escolar e o professor ocupam lugar de destaque no processo de

aprendizagem e desenvolvimento de seus alunos. Por esta teoria, estes devem criar ou

ampliar zonas de desenvolvimento proximal, considerando, no trabalho junto ao aluno

deficiente, o que este apresenta de íntegro e não se basear no que ele apresenta de

deficitário, buscando vias colaterais de desenvolvimento. Desta forma não podemos

determinar a princípio o que o aluno irá ou não aprender, sem estabelecer limitações,

pautado na sua deficiência.

19

Page 20: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

O professor ao se assumir como mediador efetivo entre os conhecimentos

científicos e os alunos, está possibilitando o progresso das funções psicológicas

superiores deste. Deste modo, acredita que o processo de escolarização contribui de

maneira fundamental para o desenvolvimento destas funções.

Respondendo à pergunta-título, sim, o aluno com deficiência intelectual é capaz

de aprender.

Deficiente talvez esteja nosso conhecimento a respeito das capacidades e

possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento do aluno com deficiência

intelectual, como também nossa importância e responsabilidade em realizar mediações

adequadas que promovam sua aprendizagem e desenvolvimento.

Referências

BARROCO, Sonia Mari Shima. A educação especial do novo homem soviético e a psicologia de L. S. Vigotski: implicações e contribuições para a psicologia e a educação atuais. 2007. 414 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Ciências e Letras. Universidade Estadual Paulista, Araraquara, SP, 2007.

FACCI, M. G. D. O psicólogo nas escolas municipais de Maringá: a história de um trabalho e a análise de seus fundamentos teóricos. 1998. 252 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília,1998.

FONTANA, Roseli; CRUZ. Maria Nazaré da. Psicologia e trabalho pedagógico. São Paulo: Atual, 1997.

GALUCH, Maria Terezinha Bellanda; MORI, Nerli Nonato Ribeiro.(Org.) Aprendizagem e desenvolvimento: intervenção pedagógica para pessoas com deficiência sensorial auditiva. Maringá: EDUEM, 2008.

LURIA, A. Curso de psicologia geral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

LEONTIEV, A. N. Os princípios do desenvolvimento mental e o problema do atraso mental. In: LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N.; VYGOTSKY, L S. Psicologia e pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2003. p. 59 - 76.

MIRANDA, M. I. Conceitos centrais da teoria de Vygotsky e a prática pedagógica. Revista Ensino em Re-Vista. n.13, v. 1, p. 7-28 , jul. 2005.

20

Page 21: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Paraná · 2009. 12. 2. · Com base em autores como Luria (1988), Fontana (1997), Barroco (2007), podemos afirmar que, Lev Semenovich Vygotsky

NUERNBERG, A. H. Contribuições de Vigotski para a educação de pessoas com deficiência visual. Revista Psicologia em Estudo, Maringá, v.13, n. 2, p 307-316, abr/jul. 2008.

REGO, C. T. Vygotsky: Uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1999.

VIGOTSKI, L. S. Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

VIGOTSKI, L.S. A formação social da mente. O desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. ed. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

VYGOTSKI, Liev Semiónovich. Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Trad. Julio Guilhermo Blanck. Madrid: Visor Dist. S. A., 1997b.

VYGOTSKI, Liev Semiónovich. Obras escogidas: problemas de psicologia geral. Tomo II. 2. ed. Trad. José Maria Bravo. Madrid: Machado - Visor Dist. S. A., 2001.

VYGOTSKI, Liev Semiónovich. Obras escogidas: problemas del desarrollo de la psique. Tomo III. Trad. Lydia Kuper. Madrid: Visor, 2000.

VYGOTSKI, Liev Semiónovich. Obras escogidas: problemas teóricos y metodológicos de la psicología. Tomo I. 2. ed. Trad. José Maria Bravo. Madrid: Visor Dist. S. A., 1997a.

VYGOTSKI, Liev Semiónovich. Obras escogidas: psicología infantil. Tomo IV. Trad. Lydia Kuper. Madrid: Visor Dist. S. A., 1996.

VYGOTSKY, L. S. Obras escogidas , v. 2. São Paulo: ed. Alfa-Omega, 1997.

VYGOTSKY, L. S; LURIA, A. R. Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

TULESKI, Silvana Calvo. A Unidade Dialética entre Corpo e Mente na Obra de A. R. Luria: Implicações para a Educação Escolar e para a Compreensão dos Problemas de Escolarização. 2007. 354f. Tese (Doutorado em Educação) – Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Ciências e Letras. Universidade Estadual Paulista, Araraquara, SP, 2007.

21