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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO MÁRIO SÉRGIO COUTINHO RAULINO A ARBITRAGEM NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS ANTE A CONSENSUALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FORTALEZA 2013

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO … · A arbitragem nos contratos administrativos ante a consensualidade na administração pública / Mário Sérgio Coutinho

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE DIREITO

MÁRIO SÉRGIO COUTINHO RAULINO

A ARBITRAGEM NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS ANTE A

CONSENSUALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

FORTALEZA

2013

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO … · A arbitragem nos contratos administrativos ante a consensualidade na administração pública / Mário Sérgio Coutinho

MÁRIO SÉRGIO COUTINHO RAULINO

A ARBITRAGEM NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS ANTE A

CONSENSUALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Monografia apresentada ao Curso de Direito da

Universidade Federal do Ceará como requisito

parcial para obtenção do Título de Bacharel em

Direito.

Orientador: Professor M.Sc. William Paiva

Marques Júnior

FORTALEZA

2013

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Federal do Ceará

Biblioteca Setorial da Faculdade de Direito

R245a Raulino, Mário Sérgio Coutinho.

A arbitragem nos contratos administrativos ante a consensualidade na administração pública /

Mário Sérgio Coutinho Raulino. – 2013.

65 f. : enc. ; 30 cm.

Monografia (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de

Direito, Fortaleza, 2013.

Área de Concentração: Direito Administrativo.

Orientação: Prof. Me. William Paiva Marques Júnior.

1. Contratos administrativos - Brasil. 2. Administração pública - Brasil. 3. Arbitragem

(Processo civil). I. Marques Júnior, William Paiva (orient.). II. Universidade Federal do Ceará –

Graduação em Direito. III. Título.

CDD 351

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO … · A arbitragem nos contratos administrativos ante a consensualidade na administração pública / Mário Sérgio Coutinho

MÁRIO SÉRGIO COUTINHO RAULINO

A ARBITRAGEM NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS ANTE A

CONSENSUALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Monografia apresentada ao Curso de Direito da

Universidade Federal do Ceará como requisito

parcial para obtenção do Título de Bacharel em

Direito.

Aprovada em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

Prof. M.Sc. William Paiva Marques Júnior (Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

__________________________________________

Doutorando M.Sc. Álisson José Maia Melo

Universidade Federal do Ceará (UFC)

__________________________________________

Mestranda Tainah Simões Sales

Universidade Federal do Ceará (UFC)

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO … · A arbitragem nos contratos administrativos ante a consensualidade na administração pública / Mário Sérgio Coutinho

A Deus.

À minha mãe, que batalhou para que eu

estivesse aqui.

À toda a minha família, que sempre esteve

pronta para me apoiar em todas as ocasiões.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO … · A arbitragem nos contratos administrativos ante a consensualidade na administração pública / Mário Sérgio Coutinho

AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter me dado o privilégio de viver ao lado de pessoas maravilhosas,

cuja convivência só me engrandeceu em todos os aspectos.

À minha mãe, por impulsionar a realização de todos os meus projetos e estar

sempre ao meu lado, apoiando-me nos momentos de maior necessidade.

À minha família, por sempre estar presente a festejar cada pequena conquista que

não é somente minha, mas de todos nós.

Ao meu amigo Victor Mota, que sempre se mostrou prestativo e me auxiliou não

só na confecção deste trabalho, mas durante todo o período de faculdade.

Aos meus amigos Rafael, Samuel, Alan, Daniel, Jonas, Nairim e Kate, cujos

excelentes momentos que passamos juntos ao longo destes cinco anos de convivência diária

jamais serão esquecidos.

À minha irmã Ana Teresa, a quem nunca deixei de amar mesmo com a distância

que a vida nos impôs.

Ao professor e orientador William Paiva Marques Júnior, de quem a

disponibilidade e presteza demonstradas foram de fundamental importância para a conclusão

deste trabalho.

Aos examinadores Álisson José Maia Melo e Tainah Simões Sales por, tão

prontamente, terem aceitado fazer parte da avaliação do presente trabalho.

Aos amigos da Procuradoria da República, com quem tive o privilégio de conviver

por dois anos, saindo com valiosa experiência e grandes amizades.

Aos professores e funcionários da Faculdade de Direito da Universidade Federal

do Ceará, por terem contribuindo de maneira decisiva para o meu crescimento pessoal e

profissional.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO … · A arbitragem nos contratos administrativos ante a consensualidade na administração pública / Mário Sérgio Coutinho

Perdoem os que os ofenderam, para que o Pai

de vocês, que está no céu, perdoe as ofensas de

vocês. (Marcos 11.25)

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RESUMO

A posição de supremacia estatal absoluta ante os particulares é um modelo de Administração

Pública advindo do Século XVIII, quando havia a necessidade de garantir a liberdade

individual e a legalidade por meio de um Estado forte e centralizador. Essa supremacia,

embora tenha tido substancial importância para a construção do Estado Democrático de

Direito em seus primórdios, tem dado espaço ao exercício irresponsável do poder

administrativo, mediante práticas que não se prestam à proteção dos direitos fundamentais,

interesse público primário do Estado. Nesse contexto, esse trabalho pretende analisar a

aplicação da arbitragem aos contratos administrativos como meio alternativo à via judicial na

solução de lides entre o Estado e os particulares. A fim de melhor compreender o instituto da

arbitragem, serão estudados pontos relevantes do seu desenvolvimento histórico, bem como

suas características no direito brasileiro. Devido à sua flexibilidade, custo menor e à maior

participação popular, conclui-se que a arbitragem pode resolver conflitos de modo mais

célere, barato e eficaz, protegendo os direitos fundamentais dos cidadãos e ampliando a

legitimidade das decisões governamentais acerca de solução de conflitos.

Palavras-chave: Interesse Público. Arbitragem. Direitos fundamentais.

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ABSTRACT

The position of absolute state supremacy before individuals is a model of Public

Administration coming from the XVIII century, when there was the need to ensure individual

freedom and legality through a strong and centralized State. This supremacy, although it had

had substantial importance to the building of a Democratic State of Law in its beginnings, has

given room to the irresponsible exercise of administrative power by practices that do not lend

themselves to the protection of fundamental rights, the primary public interest of the State. In

this context, this paper intends to analyze the application of arbitration to administrative

contracts as an alternative mean to judicial way in the settlement of disputes between the State

and particular parties. In order to understand better the concept of arbitration, it will be

studied relevant points of its historical development, as well as its characteristics in Brazilian

Law. Due to its flexibility, lower cost and greater popular participation, it is concluded that

the arbitration can resolve conflicts in a faster, cheaper and more effective way, protecting the

fundamental rights of citizens and increasing the legitimacy of government decisions

regarding disputes settlement.

Keywords: Public Interest. Arbitration. Fundamental rights.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 9

2 RELEITURA DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

SOBRE O PRIVADO ................................................................................................. 11

2.1 O conceito de interesse público ................................................................................... 11

2.2 Reconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado ... 16

2.3 O modelo de Administração Pública consensual ....................................................... 21

3 ARBITRAGEM NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS ................................. 27

3.1 Atos e contratos administrativos ................................................................................. 27

3.2 A arbitragem no Direito brasileiro ............................................................................. 32

3.3 A utilização da arbitragem nos contratos administrativos ....................................... 38

4 A ARBITRAGEM NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS ANTE A

CONSENSUALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA .................................. 44

4.1 Métodos alternativos de resolução de controvérsia em contendas fazendárias e

ambientais: busca pelo legítimo interesse público ..................................................... 44

4.2 Arbitragem nos contratos administrativos e efetivação do direito de acesso à

justiça ............................................................................................................................. 47

4.3 A arbitragem e a consensualidade: análise econômica do Direito ........................... 50

4.4 Consensualidade e arbitragem: meios de efetivar o princípio da eficiência ........... 53

4.5 Promoção do Estado de Direito, da democracia e da cidadania .............................. 56

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 60

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 62

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1 INTRODUÇÃO

Hodiernamente, é visível a necessidade de mudança de paradigmas no trato dos

interesses públicos. O modelo dos séculos XIX e XX precisa ser revisto. A figura do Estado-

garantidor já não atende a dinâmica tão caracterizadora de nossa sociedade. Os conflitos

sociais crescentes demandam uma Administração Pública mais presente e atuante nos

interesses de toda a coletividade.

Para isso, é necessário o estudo do regime jurídico-administrativo, notadamente

no tocante ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Com efeito, esse

princípio, que por tanto tempo fundamenta a atuação estatal, vem sendo interpretado

doutrinariamente de maneira diversa ao clássico, ensejando a formação do conceito de

Administração Pública consensual.

A prática gradual desse modelo de Administração Pública marca definitivamente

a passagem da atuação do Estado como garantidor para a sua atuação como mediador, na

medida em que cresce a tendência da não imposição de decisões para a coletividade ou para

particulares específicos através da utilização de instrumentos voltados para a mediação entre o

Poder Público e os indivíduos interessados.

Nessa seara, é notável o surgimento de instrumentos mediadores entre o Poder

Público e particulares na Administração Pública brasileira. Pode-se citar, como exemplo, a

exigência de audiência pública para a realização de determinadas obras e a possibilidade de

utilização de arbitragem para a solução de controvérsias decorrentes das chamadas Parcerias

Público-Privadas (PPPs) e dos contratos de concessão de serviço público.

O Estado, nessas ocasiões, passa a ser tratado em igualdade de condições com o

particular, restando afastado o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado

tal qual como concebido na atualidade. É imperioso, portanto, analisar as conveniências e

desvantagens deste modelo administrativo, buscando fundamentar a utilização da arbitragem

nos contratos administrativos no moderno Direito Público pátrio.

Com efeito, é preciso um estudo aprofundado acerca do modelo de Estado-

mediador, buscando regular o uso dos instrumentos de Administração Pública consensual.

Estes não devem ser usados de maneira aleatória, pois fatalmente levariam a um

enfraquecimento do Estado, tornando-o nulo frente a grandes interesses particulares.

O objetivo geral deste trabalho consiste em uma análise acerca da possibilidade e

conveniência do uso da arbitragem nos contratos administrativos, abordando o conceito de

Administração Pública consensual e o crescente uso de seus instrumentos no Direito Público.

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Tal temática é de grande importância na medida em que tende a implantar um

modelo de Administração Pública mais moderna e atual, tendente a fortalecer o Estado de

Direito e a democracia, e mais hábil à satisfação dos interesses públicos primários impostos

pela Magna Carta de 1988.

A metodologia utilizada foi bibliográfica, com consulta a livros, publicações

especializadas e artigos, além de pesquisa legislativa, documental e jurisprudencial.

O trabalho visa a responder as seguintes indagações: o modelo de Administração

Pública baseado na imperatividade é o que melhor se coaduna com as presentes demandas

sociais? Existe, de fato, uma supremacia do interesse público sobre o privado em abstrato? O

que é interesse público? É possível a implantação de uma Administração Pública baseada na

mediação e no consenso? A arbitragem nos contratos administrativos se presta à satisfação

daquele interesse público? Quais as vantagens deste modelo de resolução de controvérsias

para o particular e para a máquina estatal?

A fim de responder satisfatoriamente a todas estas indagações, dividiu-se o

presente trabalho em três capítulos. No primeiro, busca-se analisar o alicerce principal da

Administração Pública tradicional: o princípio da supremacia do interesse público sobre o

privado. Assim, analisa-se o conceito de interesse público em si, determinando suas feições e

limites, passando então a expor uma necessidade de reconstruir o mencionado princípio de

acordo com os ditames de uma sociedade moderna e democrática. Como resposta a essa

reconstrução, apresenta-se os contornos e instrumentos da Administração Pública consensual.

Em seguida, passa-se a analisar a arbitragem no Direito brasileiro em geral,

expondo sua regulamentação legal, suas vantagens e desvantagens, bem como sua

aplicabilidade atual nos contratos administrativos.

Por fim, fundamenta-se a utilização da arbitragem nos contratos administrativos

através de uma ótica consensual, expondo os resultados esperados com a sua larga utilização

nos conflitos envolvendo o Estado e direitos patrimoniais disponíveis.

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2 RELEITURA DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

SOBRE O PRIVADO

O Direito Administrativo, enquanto disciplina jurídica, somente passou a existir

como ciência após a Revolução Francesa de 1789. Naquele momento de quebra do Antigo

Regime, caracterizado pela infalibilidade do Estado, aquele surgiu como limite à atuação do

nascente Estado de Direito, personificado na prevalência do princípio da legalidade.

No Antigo Regime, embora existisse Administração Pública em seu sentido

material, inexistia Direito Administrativo, haja vista que o interesse público era o interesse do

próprio monarca, estando este livre de qualquer limite material ou formal. Outrossim, com as

Revoluções Liberais que derrubaram o Ancien Régime, o interesse público passou a ser

considerado como necessidade de garantia das liberdades individuais, já que os súditos

haviam se convertido em cidadãos livres (SILVA, 2012, p.113).

Em sentido oposto, Binenbojm (2008, p. 11) entende que aquele ramo do Direito

surgiu tão somente para possibilitar a sobrevivência de práticas do Antigo Regime. Com

efeito, a imposição de regras de privilégio para a Administração Pública e o relativo

afastamento do Judiciário nas contendas administrativas pelos revolucionários de 1789 são

apontados como indícios razoáveis de que o Estado continuaria com amplos poderes,

dispondo de meios eficazes de intervir nas liberdades individuais dos cidadãos, em razão da

inexistência de previsão de controle, que seria realizado pela própria Administração no

sistema conhecido como contencioso administrativo.

O certo é que, após a queda do Antigo Regime, o conceito de interesse público

surgiu, mudando, entretanto, os seus contornos ao longo do tempo, em busca de sustentar e

dar legitimidade ao governo estatal.

2.1 O conceito de interesse público

O modelo liberal de Estado, que tinha como fim precípuo a garantia de igualdade

formal entre os indivíduos, baseado sobremaneira no princípio da legalidade estrita, revelou-

se incapaz de atender as demandas sociais. À Administração foi imposto o aumento das

tarefas públicas, deixando esta de atuar como mera garantidora das liberdades individuais para

atuar de forma mais próxima da sociedade, dando origem ao chamado Estado de Direito

Social (DIAS; OLIVEIRA, 2006, p. 22).

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A Administração Pública, definida por Dias e Oliveira (2006, p. 9) como “uma

organização específica a quem incumbe uma tarefa de prossecução de finalidades ou

interesses” sempre esteve vinculada ao conceito de interesse público, o qual, não obstante

diversas tentativas doutrinárias, jamais foi delimitado de maneira clara e concreta ao longo da

história, servindo, muitas vezes, para respaldar atividades estatais duvidosas.

De modo a vislumbrar a íntima e interdependente relação entre Administração

Pública e interesse público, veja-se o conceito de função pública, fornecido por Justen Filho

(2006, p.30):

A função administrativa é o conjunto de poderes jurídicos destinados a promover a

satisfação de interesses essenciais, relacionados com a promoção de direitos

fundamentais, cujo desempenho exige uma organização estável e permanente e que

se faz sob regime jurídico infralegal e submetido ao controle jurisdicional.

Como já referido, a noção de interesse público surgiu na Revolução Francesa, sob

o manto de um discurso liberal que apregoava a afirmação dos interesses individuais. A

legalidade passou a ser considerada como a própria expressão do interesse público, uma vez

que se prestava a garantir as liberdades individuais (GABARDO; HACHEM, 2010, p. 28).

Tem-se claro, entretanto, que o Direito Administrativo e o próprio conceito de

interesse público dele decorrente serviram como meros instrumentos retóricos dos

revolucionários, com o objetivo primário de preservar a mesma lógica do poder reinante

durante o Antigo Regime (MARQUES JÚNIOR, mimeografado).

Em um Estado de Direito moderno, regido sobre uma forma de governo

republicana, no qual, segundo as palavras da Magna Carta, todo o poder emana do povo1, o

conceito de interesse público precisa alcançar novas feições, face à necessidade de

legitimidade popular. Com efeito, o princípio da soberania popular, que emana diretamente do

Estado Democrático de Direito e do princípio republicano, impõe uma maior participação

popular no poder, de modo a auxiliar na determinação do que, efetivamente, é interesse

público.

O advento da democracia, definida por Silva (2012, p. 132) como “regime de

garantia geral para a realização dos direitos fundamentais do homem” veio delimitar ainda

mais o conceito de interesse público, visto que a Constituição Federal de 1988 elencou uma

série de direitos do cidadão, diversos deles exigindo uma prestação positiva por parte do

Estado, diferenciando-se de sua concepção liberal, a qual somente exigia abstenções.

1 Aduz o art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal que “todo o poder emana do povo, que o exerce por

meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

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No mesmo sentido, Machete (2007, p. 372) assevera que: “[...] o Estado de

Direito surge em correlação com os direitos fundamentais e com a democracia, conforme a

fórmula de um Estado de Direito livre e democrático”.

O interesse público, agora intimamente ligado aos direitos fundamentais por força

da Magna Carta de 1988, é alicerce do chamado regime jurídico-administrativo. Este, como

amplamente lecionado, impõe os limites e declara as prerrogativas do poder estatal, através

dos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade dos

interesses públicos (MELLO, 2010, p. 55).

O mesmo autor, ao analisar o conceito jurídico de interesse público, assevera que

há, em decorrência do regime jurídico-administrativo, a ideia de falso antagonismo entre o

interesse das partes e o interesse do todo (MELLO, 2010, p. 59). Ora, a imposição abstrata de

um dito interesse público em face de um interesse particular, sem qualquer oportunidade de

exame de caso, pressupõe a contraposição entre o interesse público e o interesse privado.

Infere-se, a partir do exposto, que o próprio regime jurídico-administrativo parte

do antagonismo entre os interesses públicos e particulares para regular a atividade estatal. E,

em vista disso, dá primazia ao interesse público em face do particular. Tem-se aqui,

sobretudo, mais um resquício das práticas absolutistas do Antigo Regime, impensáveis em um

Estado Democrático de Direito que dá primazia, conforme a Lei Maior, aos princípios e

garantias fundamentais.

É fácil observar que a ideia de interesse público abstrato, sem qualquer

instrumento que o contenha ou o defina é campo fértil para a prática de condutas, por parte do

Estado, contrastantes com a democracia. Acerca do tema, assevera Binenbojm (2008, p. 94):

Tal princípio legitimaria toda e qualquer outorga de vantagens à Administração,

prescindindo de qualquer análise a respeito de sua razoabilidade e

proporcionalidade. Em síntese: a ideia de supremacia como norma jurídica não se

coaduna com os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, que

preconizam a cedência recíproca entre interesses em conflito.

Nota-se, assim, a necessidade de delimitar o conteúdo do interesse público, com o

escopo de evitar seu uso para a legitimação de práticas antijurídicas. É corrente na doutrina

pátria a identificação do interesse público como um somatório de interesses individuais

coincidentes, enquanto partícipes da sociedade (MELLO, 2010, p. 60).

Por outro lado, entende Binenbojm (2008, p. 121) que a atuação administrativa

condizente com o interesse público será aquela que, no caso concreto, preservar e promover,

ao mesmo tempo, todos os direitos, sejam públicos ou particulares, constitucionalmente

protegidos.

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Importa salientar, em vista do exposto, que a doutrina nacional, em sua maioria,

tende a considerar o interesse particular como parte integrante do interesse público, daí não se

sustentando a ideia de antagonismo entre estes. Acerca do tema, Moreira Neto (2006, p. 329)

vai mais além, ao afirmar que o interesse público consiste no respeito aos direitos e interesses

do cidadão legalmente previstos.

Reconhecendo-se a imbricação entre interesse público e interesse particular,

aquele deve consistir na busca por uma solução constitucional e legal otimizada, quando da

decorrência de um eventual conflito. Nas palavras de Binenbojm (2008, p. 119): “[...]

qualquer interferência legislativa ou administrativa em matéria de direitos fundamentais deve

buscar sempre uma solução otimizadora que prestigie, igualmente, todos os direitos ou

princípios constitucionais envolvidos”.

Reconhecido o interesse particular como parte integrante do sobredito interesse

público, reveste-se aquele de autêntico limite para a atuação estatal, na medida em que o

Direito Privado fixa limites que só poderão ser ultrapassados pela Administração Pública com

a permissão legal, não podendo o Estado restringir direitos e liberdades individuais, frise-se,

com a mera invocação abstrata de um interesse público (DIAS; OLIVEIRA, 2006, p. 90).

De acordo com o exposto, Justen Filho (2006, p. 38) buscou a conceito de

interesse público através de uma conceituação negativa, ou seja, esclarecendo, primeiramente,

o que não pode ser considerado interesse público. Para o autor, o interesse público não se

confunde com o interesse do Estado, nem com o interesse do aparato administrativo,

tampouco com o interesse do agente público (JUSTEN FILHO, 2006, p. 38). Aprofundando o

estudo, ele chega à conclusão de que o interesse público não tem conteúdo próprio, já que não

pode ser considerado interesse privado comum a todos os cidadãos, nem de sua maioria,

tampouco da sociedade abstratamente analisada (JUSTEN FILHO, 2006, p. 40).

Com efeito, a ausência de conteúdo próprio para o interesse público, em seus

moldes tradicionais, resta latente. É temerário, para o Estado Democrático de Direito

instituído pela Constituição Federal de 1988 (art. 1º, caput), basear toda a atuação estatal em

um instituto que não tem conceituação própria. Tal daria espaço, como já salientado

anteriormente, para a prática de diversos atos arbitrários do poder estatal, que seriam

chancelados pelo pomposo discurso da busca pelo interesse público.

A busca pelo interesse público abstrato dá azo ainda maior para a prática de

arbitrariedades no caso concreto, face à sua completa impossibilidade de reconhecimento,

sobretudo por, em uma mesma relação jurídica, existir diversos interesses que podem ser

considerados como “públicos”. Acerca do tema, esclarece Justen Filho (2006, p. 43):

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Ou seja, as situações concretas demonstram a existência de diversos interesses

públicos, inclusive em conflito entre si. Logo, a decisão a ser adotada não poderá ser

fundada na pura e simples invocação do ‘‘interesse público’’. Estarão em conflito

diversos interesses públicos, todos em tese merecedores da qualificação de supremos

e indisponíveis.

Não obstante o exposto, é imperioso reconhecer a notória evolução doutrinária

acerca do tema, muito embora ainda haja desvios na prática cotidiana da Administração

Pública. Como limite doutrinário já existente ao conceito de interesse público, tem-se

importante doutrina italiana importada para o nosso Direito por Celso Antônio Bandeira de

Mello (2010, p. 65). Através desta, separa-se os interesses públicos em primários e

secundários. Estes seriam decorrentes da situação do Estado como pessoa jurídica, ou seja,

pertencentes à própria máquina administrativa, também chamados de interesses particulares

do Estado (MELLO, 2010, p. 65). Eles não merecem, de maneira alguma, tratamento

diferenciado por parte do ordenamento jurídico.

Os interesses públicos secundários devem ter como objetivo, tão somente, a

viabilização dos interesses públicos primários, devendo, por isto, ter caráter meramente

instrumental. Tais interesses não devem, por si só, legitimar a restrição da esfera jurídica do

particular, pois o fim do Estado é o homem, e não o próprio Estado.

Os interesses públicos primários, por sua vez, são a própria razão de ser do

Estado. Consistem, entre outros, nos direitos fundamentais previstos na Magna Carta. De fato,

o interesse público primário reside na necessidade de efetivação e prestação, por parte do

Estado, dos direitos previstos na Lei Maior. O Estado deve agir sempre com este desiderato,

sendo-lhe vedado perseguir interesses próprios quando contrapostos ao direito do cidadão,

este sim descrito e garantido constitucionalmente.

Nota-se, com todo o exposto, que a busca por interesses de um particular pode se

configurar, em determinado caso, como de interesse público, não havendo razão para se

pressupor, de plano, de uma supremacia do Estado ante os indivíduos.

Conclui-se, no tocante à relação entre o interesse público abstrato e o interesse

particular, que o fim precípuo da Administração Pública atualmente é a efetivação do

princípio da dignidade da pessoa humana. Com efeito, nas palavras de Pedro (2007, p. 444), o

ordenamento jurídico existe por causa do homem e para o homem, não podendo eventuais

interesses públicos alegados se sobrepor aos princípios fundantes do Estado Democrático

brasileiro, dentre eles o citado princípio.

Em um Estado Democrático de Direito, no qual o poder emana do povo e o

fundamento principiológico reside na dignidade da pessoa humana, não há mais espaço para

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO … · A arbitragem nos contratos administrativos ante a consensualidade na administração pública / Mário Sérgio Coutinho

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práticas estatais em que o homem é tratado como mero objeto do ato administrativo.

Outrossim, este deve ser visto como o fim de toda relação jurídica que envolva o Estado.

O interesse público, hodiernamente, reside na efetivação do princípio da

dignidade humana e dos demais princípios fundamentais, devendo aquele ser considerado o

interesse público primário da Administração Pública. Faz-se necessário, outrossim, a

reconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, abandonando

antigas amarras absolutistas para caminhar em direção aos anseios de uma sociedade

democrática condizente com os preceitos estatuídos na Magna Carta.

2.2 Reconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado

Busca-se, descortinada a questão da indeterminabilidade e da impossibilidade de

concretização prática da ideia de interesse público em seus moldes tradicionais, analisar a

alardeada supremacia que dado interesse teria, de plano, sobre todos os interesses particulares

porventura existentes em uma relação jurídica que envolva o Estado.

A ideia de princípio, definido de modo corrente na doutrina pátria como mandado

de otimização ou, ainda, como mandamento nuclear de um sistema (SILVA, 2012, p. 91)

implica, de fato, a noção de uma valoração acima da lei, servindo-lhe de espírito e

direcionando a aplicação do Direito no caso concreto, uma vez que todo o ordenamento seria

uma irradiação direta de tais valores tidos como superiores.

Destarte, o posicionamento do princípio da supremacia do interesse público sobre

o privado como fundamento basilar do atuar estatal não é compatível com o atual momento

social e político, haja vista que a gestão estatal não deve pressupor conflitos, mas, antes,

composição dos diversos interesses existentes. Ademais, o princípio da supremacia do

interesse público sobre o privado, em seus moldes tradicionais, carece de sentido frente à

atual conjectura social, acabando por restar esvaziada.

Propõe-se, aqui, desmitificar o precitado “princípio”, de modo a adequá-lo ao

cotidiano, já que seu caráter autoritário vigorante por mais de dois séculos não se coaduna

mais, principalmente, com os direitos e garantias fundamentais apregoadas pela Magna Carta.

Mello assim o define (2010, p. 69):

Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a

superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do

particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste

último. É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam

sentir-se garantidos e resguardados.

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Analisando-se a mencionada definição do princípio da supremacia do interesse

público sobre o privado, nota-se claramente se tratar de uma superioridade garantida ao

Estado sem qualquer análise de mérito no caso concreto, sendo ainda alçado à posição de

garantidor de uma ordem social na qual todos se sentem resguardados. Ora, não se vislumbra

como o cidadão possa estar protegido frente a um poder de supremacia dado ao Estado sem

qualquer critério de análise e controle, sobretudo pela ideia abstrata de “interesse público”.

Aos defensores do citado princípio, conforme explicita Ávila (2007, p. 5), coube

identificá-lo como um axioma, pois seria, à luz do ordenamento jurídico vigente, óbvio e

autossustentável. Tal entendimento, todavia, não merece prosperar. O citado princípio, nos

moldes da definição acima transcrita, não se presta a fundamentar as ações estatais. O

mencionado princípio não é óbvio, tampouco autossustentável, uma vez que tal entendimento

deriva das origens autoritárias do Direito Administrativo, que se prestou, em um primeiro

momento, a proteger o indivíduo das ações do “inimigo” estatal. Resta claro que a sua

aceitação equivale a reconhecer o permanente conflito entre interesses públicos e interesses

particulares, o que se constitui em evidente anacronismo.

De modo a fundamentar o acima alegado, importa analisar o caráter

principiológico da alegada supremacia, com vistas a reconstruir o seu conteúdo.

É cediço, conforme já exposto, que princípios são considerados, sobretudo, como

mandamentos nucleares de um sistema, tendo como função direcionar o intérprete à adequada

aplicação do Direito. Entretanto, estes não gozam de valor absoluto, de modo que, em um

eventual conflito, tendem a ser relativizados em busca de uma solução otimizada. Por sua vez,

o alegado princípio da supremacia do interesse público sobre o privado não comporta

relativização (ÁVILA, 2007, p. 9). Seu conteúdo normativo já é a própria imposição de um

único resultado possível em caso de conflito.

A ausência de possibilidade de relativização face ao caso concreto já seria apta,

por si só, a demonstrar que a alegada supremacia não possui natureza de princípio-norma. No

entanto, há diversos outros embargos ao reconhecimento de seu caráter principiológico. Uma

análise acurada da legislação vigente, notadamente a Constituição Federal, permite perceber

que não há, em qualquer dispositivo, qualquer menção a uma subentendida supremacia de um

interesse público abstrato sobre o privado.

Outrossim, cuida a Lei Maior de exteriorizar uma série de garantias e direitos ao

indivíduo, preocupação advinda do longo período ditatorial que a precedeu (ÁVILA, 2007, p.

11). A Constituição Federal cuidou de resguardar o particular, de diversas maneiras, da

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atuação arbitrária do Estado, positivando um vasto elenco de direitos intangíveis, a princípio,

pelo Estado.

Ora, tampouco institutos tradicionalmente citados, como, por exemplo, a

desapropriação, são capazes de demonstrar a existência de uma supremacia de um interesse

sobre o outro, visto que estes são derivados do princípio da legalidade, que serve de

fundamento para a atuação estatal restritiva, conforme restará demonstrado adiante.

O “princípio” em tela, por todo o exposto, configura-se como mera regra abstrata

de preferência, sendo incompatível com a Constituição Federal e a diversidade de interesses

que permeiam a nossa sociedade. Nesse sentido, Binenbojm (2008, p. 99):

Em face da diversidade de interesses consagrados constitucionalmente, os quais se

impõem à consideração do intérprete/aplicador do direito, um princípio explicativo

do Direito Administrativo não pode apresentar-se como uma regra de preferência.

Atualmente, uma eventual posição de superioridade entregue ao Estado em uma

dada relação jurídica não deve ser encarada como mero reflexo do dito princípio, mas como

incidência do princípio da legalidade.

Com efeito, a legalidade estatal, que difere da legalidade garantida aos indivíduos

na medida em que aquele só pode agir quando a lei proíbe, sendo-lhe vedado agir sem

previsão legal, é o verdadeiro pilar do Direito Administrativo moderno. Qualquer intervenção

estatal só estará justificada com a correspondente previsão normativa, sob pena de eivar o ato

de vício insanável (ÁVILA, 2007, p. 19).

Analisando a atuação estatal através de sua faceta legalista, resta evidente que o

Estado não goza de qualquer prerrogativa pela simples razão de representar o interesse

público. Este, enquanto parte na relação jurídica, somente gozará de benefícios quando a lei

assim determinar.

Com o exposto, não se está negando a existência de privilégios para o Estado. É

evidente a sua existência nas mais diversas relações jurídicas, consubstanciados em prazos

processuais dilatados ou, ainda, da possibilidade de extinção unilateral de contratos

administrativos, entre outros. O que se expõe é, basicamente, que tais privilégios não são

implicações diretas do proclamado princípio da supremacia do interesse público sobre o

privado, pois somente a lei tem o condão de justificar eventuais prevalências (MACHETE,

2007, p. 442).

Ademais, outros casos clássicos alegados como de incidência do princípio da

supremacia do interesse público sobre o privado resolvem-se facilmente através da aplicação

dos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade, notadamente quando

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referentes às relações da Administração Pública com particulares, nas quais, costumeiramente,

há a distribuição de favorecimentos ilícitos estatais a certos indivíduos (BINENBOJM, 2008,

p. 93).

Em vista do discutido, a ideia de uma pretensa supremacia do interesse público

sobre o particular resta antiquada e inverossímil frente ao atual quadro administrativo, no qual

a demanda por maior legitimação da atuação estatal é crescente.

A restrição às liberdades individuais, com a alegação da supremacia do interesse

público sobre o privado, deve cessar. Atualmente, a atuação estatal encontra-se atrelada à

legalidade. Só devem ser admitidas como intervenções estatais legítimas aquelas condizentes

com os ditames da Constituição Federal, pois somente esta pode ser fundamento para a

restrição de liberdades e garantidas individuais. Leciona Binenbojm (2008, p. 94):

Ora, se é a Constituição que, explícita ou implicitamente estabelece quando e em

que medida direitos individuais podem ser restringidos, (I) o fundamento da

restrição é a norma constitucional específica, e não o dito princípio, e (II) a medida

da restrição, conforme permitida pela Constituição, é dada por uma norma de

proporção e preservação recíproca de interesses em conflito, e não de prevalência a

priori do coletivo (estatal) sobre o individual (privado).

Ou seja, é impossível sustentar que o Estado detenha uma superioridade pelo

simples fato de defender um pretenso interesse público. É imperioso reconhecer a igualdade

de posição do Estado e dos indivíduos perante a lei. Estão ambos com suas disciplinas

jurídicas reguladas na Constituição Federal e nas normas infraconstitucionais. A partir do

momento em que se cristalizou o entendimento de que a Administração Pública só poderá agir

de acordo com suas competências legais, firmou-se terreno fértil para o reconhecimento de

uma relação de paridade Estado-indivíduo, ambos com suas garantias e limitações definidas

em lei (MACHETE, 2007, p. 431).

Importa salientar ainda, pela sua relevância, que o princípio da legalidade

supramencionado deve ser entendido de maneira ampla. Ao afirmar que o citado princípio é o

verdadeiro fundamento para as prevalências estatais existentes, não está a se falar somente na

lei, mas em todo o ordenamento jurídico, no que parte da doutrina convencionou chamar de

princípio da juridicidade (DIAS, 2006, p. 99).

Como decorrência do princípio da juridicidade, a eventual entrega de privilégios

ao Estado em detrimento do particular por meio de lei não se presta, por si só, a legitimar a

restrição das garantias individuais. Com efeito, para que o mencionado privilégio esteja de

acordo com os preceitos da ordem constitucional vigente, é necessário submetê-lo, ainda, ao

princípio da proporcionalidade. Por meio deste, analisa-se a necessidade e adequação da

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medida analisada, bem como o respeito ao princípio da isonomia (BINENBOJM, 2008, p.

114).

Acerca do citado princípio, Silva (2012, p. 121), ao analisar a adequada aplicação

da lei em um Estado Democrático de Direito, afirma que o império da lei reinante deve se

prestar a realizar o princípio da igualdade e da justiça. De fato, o princípio da legalidade, aqui

entendido como juridicidade, acaso não direcionado à concretização dos preceitos e

mandamentos constitucionais, estaria eivado de irremediável ilegitimidade.

Assim, o pretenso princípio da supremacia do interesse público sobre o privado

não se presta a regular a atuação estatal na busca pelos seus fins colimados, visto que já

pressupõe conflitos sem qualquer análise concreta. A lei lato sensu surge, assim, não mais

como limite à atuação estatal, mas como seu próprio fundamento. Nesse sentido, importa

colacionar ensinamento de Machete (2007, p. 413):

Nos primórdios do Estado constitucional o princípio da legalidade foi, com efeito

entendido fundamentalmente com aquele sentido de preferência da lei.

Posteriormente, a situação tornou-se cada vez mais diferenciada e, em certos países,

tende hoje a prevalecer uma interpretação daquele princípio no sentido de a lei

constituir o fundamento de toda a actividade administrativa.

A partir do moderno entendimento de que o interesse público primário

consubstancia-se na efetivação dos direitos fundamentais previstos pela Lei Maior, a

reconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado afigura-se

necessária para embasar a atuação estatal em busca daquele objetivo.

Com efeito, atualmente cumpre reconhecer que não há no Direito pátrio, seja este

positivado ou não, a existência de uma supremacia do interesse público a priori. Somente

pode-se aferir uma relação de supremacia no tocante aos direitos fundamentais, notadamente

o princípio da dignidade da pessoa humana. Como aduz Silva (2012, p. 105): “[...] a

dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos

fundamentais do homem, desde o direito à vida”.

Acerca do tema, leciona Justen Filho (2006, p. 67):

Então, o princípio da dignidade humana desempenha em relação ao direito e ao

Estado uma função que se poderia dizer transcendental. Equivale não apenas a

afirmar que ocupa posição de superioridade quanto aos demais princípios e valores -

o que significaria sua transcendência em relação aos demais. A dignidade da pessoa

humana não é apenas transcendente: ela é transcendental. Sua transcendentalidade

quer dizer que é condição de possibilidade de existência e compreensão do sistema

jurídico.

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O reconhecimento da dignidade da pessoa humana como detentor da verdadeira

supremacia em relação aos demais interesses, bem como da paridade do Estado e do indivíduo

perante o ordenamento jurídico, que deve ser aplicado de acordo com o princípio da

proporcionalidade, impõe a substituição de uma posição de supremacia do Estado para uma

relação de ponderação entre esta e os particulares, de modo a buscar a efetivação dos direitos

fundamentais, que é interesse tanto do Estado quanto dos indivíduos que o compõem, não

havendo que se falar, portanto, em um pretenso conflito.

Outrossim, tal objetivo requer um modelo de Administração Pública moderno, em

que o consenso nas relações estatais prevaleça, uma vez que a ideia oitocentista de eterno

conflito de interesses entre Estado e particular resta ultrapassada. A necessidade de efetivação

dos direitos fundamentais, bem como do aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito,

conduzem à implantação de um modelo de Administração Pública consensual.

2.3 O modelo de Administração Pública consensual

Foi exposto que a verdadeira relação de supremacia que existe em nosso direito

vigente é aquela que envolva os direitos fundamentais, consubstanciados na dignidade da

pessoa humana. Não há qualquer razão para se aceitar que o Estado detenha, de plano,

supremacia de interesse sobre qualquer indivíduo.

Como já ressaltado, o Estado e o particular figuram como partes de uma mesma

relação jurídica, e devem ser tratados de forma paritária frente ao ordenamento jurídico. Em

outras palavras, relações de supremacia já existentes e positivadas são resultado de

ponderação de valores realizada pelo legislador, de modo que, ressalte-se, não derivam de um

princípio supremo que deixa o particular a mercê do corpo estatal.

Há casos, entretanto, em que a lei deixa uma margem de escolha à Administração

Pública, de modo que esta possa, ao analisar o caso concreto, escolher como agir, entre as

opções autorizadas legalmente. Costuma-se chamar tal faculdade, em sede doutrinária, de

poder discricionário. Acerca do citado instituto, aduz Mello (2010, p. 430):

Atos discricionários, pelo contrário, seriam os que a Administração pratica com

certa margem de liberdade de avaliação ou decisão segundos critérios de

conveniência e oportunidade formulados por ela mesma, ainda que adstrita à lei

reguladora da expedição deles.

Infere-se da supracitada definição que a Administração Pública jamais realiza atos

totalmente discricionários. Com efeito, a discricionariedade aqui descrita se dá dentro dos

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limites estabelecidos pela lei. Justamente quando da efetivação de atos discricionários, usa-se

o critério abstrato de interesse público para legitimá-los, visto que a máquina estatal, em sua

concepção clássica, resta dotada de irremediável imperatividade.

Em um moderno modelo de Administração Pública, onde se reconhece a

efetivação dos direitos fundamentais como fim precípuo da atuação estatal, a imperatividade

pura e desmedida do governante não se coaduna com as demandas sociais. A Administração

Pública consensual surge, assim, como a nova faceta da atuação estatal no século XXI

(MARQUES JÚNIOR, 2009, p. 261).

Esta requer, primeiramente, a implantação de uma cultura do diálogo. A posição

do Estado como mero detentor do poder de império resta ultrapassada, de modo que este

surge com a função de mediador e garantidor perante a sociedade. Conforme adverte Oliveira

(2010, p. 217), a função de garantia do Estado emerge, outrossim, da sua obrigação

constitucional de efetivar diversos direitos fundamentais.

Do exposto, depreende-se que o modelo administrativo reinante durante os

últimos séculos, consistente em impor suas vontades em nome de um pretenso interesse

público, merece ser abandonado. A imperatividade estatal deve dar lugar ao diálogo. Assim, o

Estado não deverá impor sua vontade sobre o particular, mas sim compor o eventual conflito

da melhor maneira possível, buscando tutelar ambos os interesses envolvidos. Nas palavras de

Oliveira (2010, p. 218):

Ademais disso, cabe notar que a principal tarefa da Administração mediadora passa

a ser a de compor conflitos envolvendo interesses estatais e interesses privados,

definitivamente incluindo os cidadãos no processo de determinação e densificação

do interesse público, o qual deixa de ser visto como um monopólio estatal, com

participação exclusiva de autoridades, órgãos e entidades públicos.

Resta clara, assim, a necessidade de particulares participarem da gestão estatal.

Tal entendimento é corolário da própria noção de democracia, cuja conotação agora vai além

da política para atingir o próprio exame de oportunidade e conveniência de um ato

discricionário. De fato, trata-se de uma evolução da democracia brasileira, visto que a

democracia indireta revela-se falha por partir de uma presunção de legitimidade, quando esta

só poderá advir, em relação à atuação estatal, através de uma participação direta, aberta e

incentivada pelo Estado (MOREIRA NETO, 2006, p. 322).

A cultura do diálogo necessária para a modernização da Administração Pública

demanda, ainda, a valorização de diversos institutos que, ante o conceito tradicional de

Administração Pública, não encontraram espaço para florescer. A possibilidade de acordo,

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transação e conciliação, dentre outros, surgiu para oxigenar as relações existentes entre o

Estado e seus jurisdicionados.

Acerca do tema, é notório o crescimento de práticas consensuais na prática

administrativa brasileira. Tem-se, como exemplo, a previsão de audiência pública para

diversas obras e empreendimentos públicos. Esta funciona como requisito de aferição da

publicidade e eficiência do ato administrativo. Conforme leciona Figueiredo (2007, p. 14):

Agir com eficiência significa contemplar todas as possibilidades de obter o melhor

contrato, a melhor decisão (sobretudo legítima por obter o consenso dos

administrados), possibilitando, sem dúvida, que se discuta amplamente os modelos e

que, ademais, tais modelos possam estar estribados em fortes elementos de

convicção e nunca dependerem de escolhas discricionárias, sem limites, portanto, até

arbitrárias da Administração, sem peias ou amarras.

O particular deve ser parte integrante e permanente da máquina pública, uma vez

que aquele não mais é tido como mero objeto da relação jurídica estatal, mas como efetivo

detentor de direitos frente a este, sendo corolário deste entendimento o afastamento de uma

sujeição pré-normativa do particular face uma pretensão estatal (MACHETE, 2007, p. 450).

O conceito de Estado-instrumento surgiu para sepultar o outrora consagrado viés

autoritário do Estado, tido como fim em si mesmo. Vai mais além, afirmando a insuficiência

do princípio da legalidade estrita, conforme leciona Moreira Neto (2006, p. 233):

Juridiciza-se, no percurso, o conceito de Estado-instrumento como contribuição

compensatória das duras lições políticas sobre a insuficiência da legalidade estrita na

conceituação da juridicidade e da passagem da referência jurídica da lei ao Direito.

Com efeito, conforme já explicitado, o analisado princípio da legalidade estrita

não se presta a fundamentar a atuação do ente público. Para a restrição de garantias e

interesses individuais, além da previsão legal, é forçosa a incidência dos princípios da

proporcionalidade e da razoabilidade como requisitos intrínsecos à legitimidade do ato.

Uma Administração Pública consensual demanda, ainda, o reconhecimento da

absoluta paridade do Estado e do indivíduo frente ao ordenamento jurídico, que por si só já

determina os privilégios que ambas as partes terão em dada relação jurídica. Em consequência

disso, há completa possibilidade de defesa do particular ante um ato administrativo que,

indevidamente, vier a restringir direito legítimo. Assevera Machete (2007, p. 579):

Consequentemente, os cidadãos não se encontram mais numa situação de sujeição,

potencialmente ilimitada, perante os poderes públicos e em que a sua situação era

definida pelos actos destes últimos. Aqueles gozam hoje de um estatuto jurídico que,

não só não está na disponibilidade dos mesmos poderes, como integra ainda a

possibilidade de se defenderem eficazmente dos actos jurídicos públicos que,

violando a lei, também lesem os direitos que integram tal estatuto. Acresce que tais

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posições jurídicas gozam, como indicado, da garantia de tutela jurisdicional prevista

na Constituição.

Com todo o exposto até aqui, não se está descartando a coerção como instrumento

estatal válido. Esta é necessária para regular a sociedade e garantir a segurança jurídica dos

administrados. O que importa reconhecer, de fato, é que a coerção, apesar de necessária, não é

por si mesma suficiente para uma atuação estatal de acordo com os ditames da Constituição

Federal (MOREIRA NETO, 2006, p. 316).

Para uma completa adequação, urge estimular a participação dos cidadãos, através

de um canal direto e aberto com o administrador, em que se busque a moderação e se

estabeleça a ponderação dos valores envolvidos na relação em análise. Somente assim se

alcançará a legitimidade plena de uma eventual ação estatal, superando-se, por completo, a

presunção de legitimidade decorrente da democracia indireta que, juntamente com o conceito

abstrato de interesse público tradicionalmente adotado, contribuía para a realização de

práticas antijurídicas por parte do Estado.

O dogma da vinculação ao interesse público impede qualquer possibilidade de

negociação no âmbito da Administração Pública, sendo assim obstáculo intransponível ao

reconhecimento de um modelo consensual. Com efeito, o reconhecimento de uma prevalência

a priori afasta a possibilidade de participação do cidadão na determinação das prioridades

públicas (MOREIRA NETO, 2006, p. 325).

Por óbvio, a negociação referida deve ser direcionada ao atendimento do interesse

público, em sua concepção moderna. Entretanto, em sua busca, é salutar a proteção e

reconhecimento dos interesses individuais, na medida do possível, fazendo uso da

ponderação. Esta, como bem define Borges (2007, p. 17), consiste no sopesamento de

interesses tidos como conflitantes em busca de uma solução ótima, capaz de obter a maior

realização possível de ambas. No mesmo sentido, colhe-se ensinamento de Moreira Neto

(2006, p. 330):

A passagem de uma viciosa relação de supremacia a uma virtuosa relação de

ponderação marca, assim, o atual estágio evolutivo dessa interação, cada vez mais

intensa, entre a sociedade e Estado e põe em evidência a missão instrumental que lhe

cabe, tudo para que jamais e a qualquer pretexto se volte a invocar supremacias

téticas ou raisons d’État para sobrepor quaisquer interesses aos direitos

fundamentais.

O incremento e estímulo da negociação no âmbito público, com o consequente

aumento da participação popular na Administração, tem o condão de funcionar, para esta,

como um fomento ao revés (MOREIRA NETO, 2006, p. 331).

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O fomento, como se sabe, é tradicionalmente entendido como um instrumento da

política estatal tendente a estimular certa área do setor produtivo ou da sociedade. Em outras

palavras, é um impulso estatal a atividades privadas valoradas como importantes para o

Estado e a sociedade.

Em comparação, a prática de uma Administração Pública consensual guiaria o

Estado para a prática de um fomento ao revés, ocasião em que este deixará de ser o agente

estimulador para se tornar o agente estimulado. O crescimento da participação negocial do

particular no cotidiano estatal tende a promover a adoção de políticas públicas condizentes

com a efetiva necessidade da sociedade. Com efeito, ninguém poderá ter maior conhecimento

sobre as necessidades da sociedade do que ela própria.

Através do conceito de Estado-instrumento e do estímulo a práticas consensuais

por parte da Administração Pública, dá-se azo para o reconhecimento de um novo papel do

particular na vida pública: trata-se da Administração concertada, na qual a Administração

renuncia ao emprego de seus poderes coercitivos para aceitar fazer acordos com particulares,

de modo a ganhar a colaboração ativa destes (OLIVEIRA, 2010, p. 222).

Cumpre salientar, por oportuno, que tais negociações devem sempre ser realizadas

com vistas ao critério da consensualidade e aos princípios da razoabilidade e

proporcionalidade, de modo a evitar eventuais ingerências negativas da máquina

administrativa.

Para facilitar a aludida participação popular nas decisões administrativas, bem

como as negociações necessárias para a realização de acordos, a consensualidade na

Administração Pública pressupõe a existência de dois conceitos básicos: governança pública e

Estado em rede.

O estado em rede expõe a necessidade de criação de diversos canais de

negociação e estímulos mútuos entre Estado e particulares. Em outras palavras, requer a

criação de mecanismos tendentes a identificar as necessidades e interesses sociais. Acerca do

estado em rede, aduz Oliveira (2001, p. 28):

É imprescindível que tal fato ocorra para o fim de possibilitar a internalização das

demandas da sociedade, o que propiciará uma compatibilidade entre as políticas

públicas e as necessidades da sociedade.

No tocante ao conceito de governança pública, reza o mesmo autor (OLIVEIRA,

2001, p. 28) a sua necessidade com vistas a fortalecer as instituições sociais e políticas e o

próprio Estado de Direito, mediante o fomento da participação popular.

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Resta patente que o exercício das práticas acima descritas conduziria a uma

contratualização administrativa, em detrimento de decisões fundamentadas basicamente no

poder de império (OLIVEIRA, 2010, p. 224). Assim, os contratos administrativos surgiriam

como efetivo instrumento da Administração Pública consensual, motivo pelo qual tal instituto

merece cuidadosa análise.

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3 ARBITRAGEM NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

Uma administração moderna da máquina estatal requer, sobretudo, a participação

do particular, como meio de concertar e garantir legitimidade ao próprio atuar do governante.

Tal participação, privilegiando o consenso e a mediação em detrimento da imposição pura e

simples, levaria a uma contratualização da Administração Pública, dando-se preferência à

celebração de contratos em detrimento da expedição de atos unilaterais.

Assim, urge, primeiramente, analisar os dois meios principais que o Estado se

utiliza para intervir na sociedade: ato administrativo e contrato administrativo. Após, serão

analisados os instrumentos atuais tendentes a garantir uma maior consensualidade na gestão

pública, dentre eles se destacando o instituto da arbitragem.

3.1 Atos e contratos administrativos

Os atos administrativos devem ser entendidos, primeiramente, como categoria do

gênero ato jurídico, sendo este uma atuação humana que produz efeitos no mundo jurídico.

Assim, os atos administrativos são imputáveis à própria Administração Pública, produzindo

efeitos regulados pelo Direito Administrativo.

Ocorre, entretanto, que há atos produzidos pela Administração Pública que não

podem ser considerados como atos administrativos, sendo imperioso destacar a existência do

gênero atos da administração, do qual o ato administrativo é uma espécie.

Como leciona Di Pietro (2011, p. 192), na categoria atos da administração estão

englobados os atos de direito privado efetuados pelo Poder Público, os atos materiais, atos de

conhecimento, atos políticos, atos normativos, contratos e atos administrativos propriamente

ditos. Neste estudo, no entanto, importa analisar tão somente os dois últimos modelos citados.

Os atos administrativos propriamente ditos diferenciam-se dos demais por serem

prolatados pelo Estado sob as regras de Direito Público. Em outras palavras, os atos

administrativos estão sujeitos ao regime jurídico-administrativo, razão pela qual não se

reconhece sua existência em países cujo Estado atua em regime de direito privado (DI

PIETRO, p. 194).

A mencionada autora assim define os atos administrativos:

Com esses elementos, pode-se definir o ato administrativo como a declaração do

Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com

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observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo

Poder Judiciário. (DI PIETRO, 2011, p. 198)

Para atingir seu desiderato, os atos administrativos gozam de atributos que,

teoricamente, garantiriam uma supremacia do Estado em face ao particular. Entre eles, cita-se

a presunção de legitimidade e veracidade, imperatividade, autoexecutoriedade e tipicidade.

Dentre tais atributos, sem dúvida merece destaque a imperatividade, que é oposta

à ideia de consensualidade, uma vez que garante ao Estado o poder de impor seus atos aos

particulares através de sanções, mesmo sem a concordância deste, e, em alguns casos, com

contraditório diferido.

Por muito tempo, em decorrência da imperatividade inerente à Administração

Pública, os atos administrativos foram predominantes na atuação estatal. Verifica-se

atualmente, entretanto, estímulo à contratualização administrativa, uma vez que a

governabilidade e a legitimidade estatal tendem a aumentar com a diminuição de conflitos

entre este e os seus jurisdicionados.

Entretanto, o contrato administrativo possui peculiaridades que não permitem seja

este confundido com o contrato de Direito Privado. Este é conceituado por Caio Mário da

Silva Pereira (2009, p. 7) como: “[...] um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a

finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar e extinguir direitos”. Infere-

se, das lições do citado autor, que o contrato tem como fundamento a vontade humana voltada

para a criação de direitos e obrigações.

Por sua vez, o contrato administrativo é assim conceituado por Carvalho Filho

(2009, p. 169):

[...] o ajuste firmado entre a Administração Pública e um particular, regulado

basicamente pelo direito público, e tendo por objeto uma atividade que, de alguma

forma, traduza interesse público.

Depreende-se, da análise dos conceitos colacionados, que contratos

administrativos contam com seu objeto reduzido, visto terem como objetivo precípuo, tão

somente, a efetivação de determinado interesse público. Sua principal diferença reside no

regime jurídico de Direito Público.

Em decorrência da alegada busca pelo interesse público, os contratos

administrativos não possuem, tradicionalmente, a igualdade entre as partes, uma vez que o

regime jurídico-administrativo garante ao Estado uma série de prerrogativas que não confere

ao particular, desequilibrando naturalmente a relação contratual.

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As citadas prerrogativas, que no regime de direito privado estariam eivadas de

irremediável vício e seriam, portanto, nulas de pleno direito, são chamadas doutrinariamente

de cláusulas exorbitantes ou, ainda, cláusulas de privilégio e, no direito brasileiro, são cinco:

alteração unilateral, rescisão unilateral, imposição de sanções, poder de fiscalização e

faculdade de impor garantias ao particular (CARVALHO FILHO, 2009, p. 185).

A alteração unilateral do contrato está prevista no art. 58, I da Lei n. 8.666/93

2. Esta, para a doutrina juspublicista, demonstra a superioridade estatal face à outra parte, e

traduz a possibilidade de a Administração Pública alterar o projeto e suas especificações de

maneira coercitiva, independendo da aquiescência do particular.

Tal alteração facultada ao poder público pode ser qualitativa, quando visa uma

maior adequação técnica ao objeto do contrato ou quantitativa, quando diz respeito ao valor

da contratação em si. Na alterações em tela, os interesses do particular restam resguardados,

uma vez que o equilíbrio econômico-financeiro do contrato deve ser mantido, por imposição

legal (art. 58, §2º da Lei n. 8.666/933).

Verifica-se, de plano, a existência de efetiva superioridade do ente estatal na

relação contratual em análise decorrente de imposição legal, e não de uma pretensa

supremacia do interesse público sobre o privado in abstracto. Com efeito, o mesmo

dispositivo assegura o interesse particular frente ao poderio estatal, ao impor a obrigação de

manutenção econômico-financeira, em uma clara demonstração de que o ordenamento

jurídico vigente busca preservar tanto os interesses públicos quanto os particulares, em uma

ponderação realizada pelo legislador em cada caso vislumbrado.

Reflexo disso é a possibilidade do particular ser reembolsado pelo poder público

em determinados casos, tendo o seu interesse reconhecido como o que, efetivamente, merece

tutela jurídica. Assim expõe Carvalho Filho (2009, p. 187):

Conquanto a lei confira ao Poder Público a prerrogativa de supressão no caso de

obras, serviços ou compras, pode surgir efeito pecuniário para o contratado. Se este

já houver adquirido os materiais necessários ao cumprimento do objeto contratual e

os tiver colocado no lugar da execução, a Administração, no caso de supressão,

poderá ser sujeita a duplo ônus: 1) ficará obrigada a reembolsar o contratado pelos

custos do material adquirido, com a devida atualização monetária; 2) terá o dever de

indenizar o contratado por outros danos decorrentes da supressão. Em qualquer caso,

todavia, deverá o contratado comprovar os custos de aquisição e os prejuízos que se

originaram da supressão (art. 65, §4º, Estatuto).

2 Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em

relação a eles, a prerrogativa de:

I – modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os

direitos do contratado. 3 §2º Na hipótese do inciso I deste artigo, as cláusulas econômico-financeiras do contrato deverão ser revistas

para que se mantenha o equilíbrio contratual.

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30

Tal obrigação, assim como a necessária revisão em caso de fato de príncipe ou da

administração, é corolário do reconhecimento da aplicação da teoria da imprevisão nos

contratos administrativos. Tal teoria, em regime de Direito Privado, encontra farta aplicação.

Assim a expõe Caio Mario da Silva Pereira (2009, p. 138):

A teoria tornou-se conhecida como cláusula rebus sic stantibus, e consiste,

resumidamente, em presumir, nos contratos comutativos, uma cláusula, que não se

lê expressa, mas figura implícita, segundo a qual os contratantes estão adstritos ao

seu cumprimento rigoroso, no pressuposto de que as circunstâncias ambientes se

conservem inalteradas no momento da execução, idênticas às que vigoravam no da

celebração.

A Administração Pública goza ainda da prerrogativa de extinguir unilateralmente

o contrato avençado nos casos previstos no art. 78 da Lei n. 8.666/93. Basicamente, surgirá

para a Administração a faculdade de rescindir unilateralmente o contrato em caso de

inadimplemento, por razões de interesse público ou em caso fortuito ou de força maior (art.

393, parágrafo único, do Código Civil4).

Nota-se, mais uma vez, o uso de um conceito jurídico de difícil determinação em

uma lei de regência, fato que pode gerar práticas abusivas por parte da Administração Pública.

No entanto, tal vício resta parcialmente remediado, uma vez que em caso de rescisão por

razões de interesse público, a Administração Pública estará obrigada a ressarcir o particular de

suas despesas comprovadas. O mesmo vale para as recisões decorrentes de caso fortuito ou

força maior (DI PIETRO, 2011, p. 274).

Em sede de Direito Civil, tal faculdade é conhecida como exceptio non adimpleti

contractus e surge sempre que uma das partes contratantes não cumpre com o pactuado, não

podendo exigir esta que a outra cumpra com a sua. Discorre acerca do inadimplemento

contratual Pereira (2009, p. 135):

Daí se origina uma defesa oponível pelo contratante demandado, contra o co-

contratante inadimplente, denominada exceptio non adimpleti contractus, segundo o

qual o demandado recusa a sua prestação, sob fundamento de não ter aquele que

reclama dado cumprimento ao que lhe cabe.

No tocante ao tema, importa salientar que por muito tempo reinou o entendimento

doutrinário e jurisprudencial que afirmava não poder o particular suspender a prestação de um

serviço em face do inadimplemento da Administração, em respeito ao princípio da

4 Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente

não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível

evitar ou impedir.

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31

continuidade dos serviços públicos (art. 22 do Código de Defesa do Consumidor5). Tratava-

se, outrossim, de mais uma face da alegada supremacia do interesse público sobre o privado,

ao afirmar que o particular deveria continuar a prestar o serviço até que obtivesse uma decisão

favorável na justiça.

À luz dos preceitos constitucionais e do disposto na Lei n. 8.666/93, o

mencionado entendimento não merece prosperar de maneira absoluta. Não pode o particular

em dia com as suas obrigações contratuais ficar a mercê de uma Administração Pública em

mora com suas obrigações. Assim, restou relativizado o princípio da continuidade que dava

suporte a este privilégio. Assim aduz Carvalho Filho (2009, p. 190):

O Estatuto vigente mitigou o privilégio. Dispõe que é causa de rescisão contratual

culposa o “atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela

Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já

recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da

ordem interna ou guerra”, estabelecendo que nesse caso o particular tem direito a

optar pela suspensão do cumprimento da obrigação ou pela indenização por

prejuízos causados pela rescisão.

Tem-se, mais uma vez, um dispositivo que protege o indivíduo em face de

eventuais ações arbitrárias estatais. Este não ficará mais a mercê da Administração Pública em

mora e do judiciário lento para ver resguardados os seus direitos.

Como terceira cláusula exorbitante, está prevista a faculdade conferida ao Poder

Público de aplicar penalidades de natureza administrativa ao contratado em face de

inexecução total ou parcial do objeto da contratação (art. 58, IV, da Lei n. 8.666/936). As

sanções cabíveis estão previstas no art. 877 da mesma lei.

Ressalte-se que tais sanções não precisam estar previstas no contrato celebrado,

decorrendo diretamente da lei de regência. Isso não impede, todavia, que o termo contratual

preveja outras sanções oponíveis ao particular. Leciona Carvalho Filho (2009, p. 190):

5 Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra

forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos

essenciais, contínuos. 6 Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em

relação a eles, a prerrogativa de:

IV - aplicar sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste; 7 Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar

ao contratado as seguintes sanções:

I - advertência;

II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;

III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por

prazo não superior a 2 (dois) anos;

IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os

motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que

aplicou a penalidade, [...]

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32

Nos contratos administrativos, porém, prevê o art. 58, IV, do Estatuto, que é

prerrogativa da Administração aplicar sanções ao particular inadimplente. Trata-se,

nesse caso, da possibilidade de serem aplicadas sanções não previstas no

instrumento contratual, mas sim na própria lei.

Intimamente ligada com a possibilidade de impor sanções está a prerrogativa da

Administração Pública de fiscalizar o particular no cumprimento do objeto contratual (art. 67

da Lei n. 8.666/938). Tal fiscalização será obrigatória, não podendo ser repelida pelo

particular, cuja resistência poderá dar ensejo à rescisão unilateral do contrato.

Por fim, no tocante às cláusulas exorbitantes, que colocam o Estado acima do

particular na relação contratual, resta aduzir a faculdade conferida ao poder público de impor

a prestação de garantia por parte do contratado (art. 56, §1º, da Lei n. 8.666/939).

Apesar de a presença de cláusulas exorbitantes conferir um grau de

imperatividade estatal frente ao particular, é forçoso reconhecer que a contratualização

administrativa é um grande passo rumo à Administração Pública consensual. De certo, a

celebração de contratos em detrimento da imposição de atos administrativos é uma tendência

visível no Direito Administrativo moderno, notadamente com o surgimento de novos modelos

de contratação regulados por lei, como, por exemplo, as parcerias público-privadas. Ali,

verifica-se prontamente a mitigação de diversas prerrogativas estatais, rumo a uma relação de

paridade entre o Estado e seus contratados.

3.2 A arbitragem no Direito brasileiro

No ordenamento jurídico brasileiro, o Estado conta com o monopólio da

jurisdição. Assim aduz até mesmo a Constituição Federal em seu art. 5º, inciso XXXV, que “a

lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Entretanto, a

jurisdição estatal não é o único instrumento tendente a dirimir eventuais conflitos existentes

8 Art. 67. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração

especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações

pertinentes a essa atribuição. 9 Art. 56. A critério da autoridade competente, em cada caso, e desde que prevista no instrumento convocatório,

poderá ser exigida prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e compras.

§ 1o Caberá ao contratado optar por uma das seguintes modalidades de garantia:

I - caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública, devendo estes ter sido emitidos sob a forma escritural,

mediante registro em sistema centralizado de liquidação e de custódia autorizado pelo Banco Central do Brasil

e avaliados pelos seus valores econômicos, conforme definido pelo Ministério da Fazenda;

II - seguro-garantia;

III - fiança bancária.

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33

na sociedade. Em determinados casos, existem meios mais adequados e efetivos para a

resolução de conflitos, tais como a arbitragem, a mediação e a conciliação.

Estes instrumentos, conhecidos doutrinariamente como métodos alternativos de

solução de controvérsias, existem paralelamente à jurisdição estatal, não visando a sua

substituição, mas tão somente auxiliar a resolução das diversas lides existentes. É certo que

tais métodos vem ganhando espaço na prática jurídica brasileira, sendo mais um sintoma de

uma relação de cooperação entre o particular e o Estado. Com efeito, a valorização destes

instrumentos é notória, tendo estes especial destaque no projeto do novo Código de Processo

Civil, em trâmite no Congresso Nacional.

Ao longo da história, há notícias de três modelos de solução de controvérsias

adotados pelo homem. Primeiramente, surgiu a autotutela, marca dos povos antigos, onde não

havia qualquer regulação e cada indivíduo resolvia seus conflitos como entendesse

conveniente. Tal método, obviamente, está em franco desuso no Direito ocidental há alguns

séculos, embora ainda possa ser aplicado em determinados casos previstos em lei, como a

legítima defesa, o estado de necessidade e o estrito cumprimento do dever legal.

A autocomposição, por sua vez, visa atenuar os conflitos sociais existentes através

da implantação de uma cultura do diálogo, sendo instrumento efetivo da aplicação de uma

Administração Pública consensual. Aqui, busca-se amenizar o conflito existente entre as

partes através da implantação de uma resolução colaborativa, onde todos tenham voz.

Atualmente, a mediação e a conciliação são seus representantes mais efetivos, sendo sua

aplicação prevista para os mais diversos ramos do ordenamento jurídico.

Por fim, a heterocomposição surgiu quando as partes envolvidas resolveram

investir um terceiro com o poder de resolução do conflito através da análise do caso.

Primeiramente, tal poder era entregue a um particular isento, que analisava o caso e dava o

seu parecer. No entanto, com a evolução da civilização ocidental, tal poder acabou sendo

entregue ao Estado. Tem-se, nessa categoria, a jurisdição estatal e a arbitragem.

Embora a arbitragem seja um método de composição de conflitos

heterocompositivo, sabe-se que esta guarda íntimas relações com a mediação e a conciliação,

pois, apesar de o poder decisório estar investido em um terceiro, o seu caráter de litígio resta

atenuado através da efetiva participação das partes, tanto na escolha do árbitro, quanto nos

métodos de resolução da controvérsia, escolhidos antecipadamente.

A arbitragem costuma ser definida pela doutrina brasileira como “um meio

privado de resolução de controvérsias no qual as partes, em acordo de vontades, subordinam-

se à decisão de um terceiro desinteressado, dito árbitro” (VEDANA, 2002, p. 153).

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34

Do supratranscrito conceito, é possível vislumbrar a presença dos princípios

basilares da arbitragem, que legitimam e regulam tanto a sua implantação quanto o seu

procedimento. É de se destacar, primeiramente, os princípios da autonomia da vontade e da

boa-fé (SANTOS, 1999, online).

Segundo lição de Pereira (2009, p. 20), a autonomia da vontade conta com quatro

pressupostos de existência. Para esta restar plena, é necessária a liberdade de contratar e de

não contratar, de escolher com quem contratar, o poder de fixar o conteúdo do contrato, e,

uma vez firmado este, sua constituição em fonte formal de direito.

Na arbitragem, vislumbra-se a satisfação destas quatro facetas da autonomia da

vontade. Com efeito, as partes são livres para pactuar a convenção arbitral, fixando as suas

condições e, após sua celebração, a obrigatoriedade de instauração de juízo arbitral em caso

de eventuais controvérsias surgidas.

Sobre a autonomia da vontade na arbitragem leciona Santos (1999, online):

É ainda o princípio da autonomia da vontade determinante do objeto da arbitragem,

dentro da esfera dos direitos disponíveis, isto é, daqueles acerca dos quais para sua

aquisição, cessão, oneração, transação e disposição, não enfrenta o titular qualquer

restrição legal ou não depende a parte de qualquer providência do Estado.

Infere-se do trecho transcrito que, embora presente na celebração de convenções

arbitrais, o princípio da autonomia da vontade resta mitigado por expressa previsão legal, ao

afirmar o art. 1º da Lei n. 9.307/96 que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da

arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Importa salientar

ainda que a vontade dos contratantes encontrar-se-á sujeita também aos princípios da ordem

pública e dos bons costumes (PEREIRA, 2009, p. 22).

Acerca do princípio da boa-fé (art. 422 do Código Civil10

), aduz Pereira (2009, p.

18):

O princípio da boa-fé, apesar de consagrado em norma infraconstitucional, incide

sobre todas as relações jurídicas na sociedade. Configura cláusula geral de

observância obrigatória, que contém um conceito jurídico indeterminado, carente de

concretização segundo as peculiaridades de cada caso.

Para Santos (1999, online), o princípio da boa-fé objetiva equipara a arbitragem à

jurisdição estatal, mesmo não contanto com o poder coercitivo de impor suas decisões,

conforme aduz em suas palavras:

10

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os

princípios de probidade e boa-fé.

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35

A boa-fé, entretanto, reequipara as condições entre o juízo estatal e o juízo arbitral,

pois dela deriva um clima de ausência de combate entre as partes, de respeito pelos

direitos recíprocos e pelos árbitros, bem assim de absoluta confiança nos últimos.

Nota-se, assim, que a proibição expressa da imposição de medidas coercitivas

pelo árbitro (art. 22, §4º, da Lei n. 9.307/96) resta contrabalanceada pelo princípio da boa-fé,

pois, ao firmar-se uma convenção arbitral, espera-se que ambas as partes cumpram com as

decisões eventualmente prolatadas, pois naquele procedimento não há o viés de litigiosidade

tão característico da jurisdição estatal.

Embora conte com uma regulamentação legal adequada e moderna atualmente, a

arbitragem padeceu de inúmeros vícios ao longo da história brasileira, adquirindo efetividade

e praticidade tão somente após a edição da Lei n. 9.307/96.

Segundo narra Azevedo (2002, p. 114), a arbitragem, enquanto método de solução

de controvérsias, está presente no ordenamento pátrio desde épocas remotas. Suas primeiras

experiências no Brasil datam da colonização portuguesa, quando as Ordenações Filipinas a

previam para a resolução de litígios sobre determinadas matérias.

A partir daquele momento, a arbitragem veio se desenvolvendo no ordenamento

pátrio, embora até recentemente não contasse com grande destaque. Após a independência, o

Brasil continuou com a tradição de prever este instituto, agora através do Regulamento n. 737

e do Código Comercial de 1850 (AZEVEDO, 2002, p. 114).

A aplicação da arbitragem não estava limitada tão somente às relações comerciais,

embora ali estivesse a seara mais propícia à pactuação da convenção arbitral. É certo que a

legislação civil também a previa, como assim o fez o Código Civil de 1916 e o Código de

Processo Civil de 1973, ainda em vigência (AZEVEDO, 2002, p. 115).

No entanto, apesar da farta previsão legal, a arbitragem raramente era utilizada

para dirimir os litígios existentes, podendo ser considerada, até mesmo, “letra morta” em face

da sua quase nula utilização (MACHADO, 2008, p. 361).

A doutrina costuma apontar duas causas para a parca utilização da arbitragem

antes do advento da Lei n. 9.307/96, a saber: necessidade de homologação judicial das

decisões e a falta de força vinculante da cláusula compromissória.

Acerca do primeiro vício, leciona Machado (2008, p. 361):

O primeiro era que a sentença arbitral, isto é, a decisão ofertada pelo árbitro ao final

do processo, no sistema antigo tinha de ser previamente homologada pelo Poder

Judiciário para que passasse então a ser exigível. Ou seja, depois de transcorrido

todo o processo arbitral, a parte vencedora tinha necessidade de ingressar no Poder

Judiciário para homologar o resultado de sua vitória na arbitragem.

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Tal imposição de homologação por parte do Poder Judiciário acabava por tornar o

juízo arbitral inútil, uma vez que as partes teriam, de qualquer maneira, que ingressar no

contencioso estatal, não se vislumbrando, portanto, qualquer vantagem na instituição da

arbitragem.

O segundo vício é assim explicitado pelo autor:

[...] no momento em que o contrato estava sendo assinado, as partes estabeleciam,

por meio de uma cláusula compromissória, que as eventuais controvérsias

decorrentes daquele instrumento não seriam resolvidas no Poder Judiciário, mas sim

por um determinado árbitro ou tribunal arbitral. Ocorria, entretanto, que se

porventura – quando surgisse um litígio – uma das partes se negasse a dar início à

arbitragem, nada podia a outra fazer para compelir aquele que prometera se

submeter ao processo arbitral. (MACHADO, 2008, P. 361)

Em outras palavras, a cláusula compromissória pactuada não tinha força

vinculante, pois não obrigava qualquer das partes a, efetivamente, instituir a arbitragem para

dirimir os litígios. Com efeito, tratava-se de simples previsão da qual as partes detinham

autonomia para decidir se a cumpririam ou não, tendo como sanção tão somente a conversão

em perdas e danos, pois era impossível impor à outra parte a arbitragem.

A falta de eficiência da arbitragem no Direito brasileiro acabou por criar uma

cultura de estatização de resolução das controvérsias, na qual somente o Estado é visto com

confiança pelos jurisdicionados, o que gerou uma aversão à instituição arbitral. Tratava-se,

com efeito, de um ciclo vicioso, já que a lei era falha e inibia os particulares de usar a

instituição arbitral, criando uma cultura avessa à arbitragem que, por sua vez, dificultava a

edição de novas leis que pudessem modernizar aquele instituto (AZEVEDO, 2002, p. 114).

Tal cenário restou resolvido com a promulgação da Lei n. 9.307/96, que trouxe

cinco inovações essenciais para a revitalização da arbitragem no direito brasileiro. Assim as

expõe Azevedo (2002, p. 117):

[...] (i) estabeleceu que o processo arbitral pode ser instituído por intermédio de uma

convenção de arbitragem, emprestando assim nova força à cláusula arbitral que até

então possuía natureza jurídica de pactum de compromittendo; (ii) estipulou que não

é mais necessário que a sentença seja homologada pelo judiciário; (iii) assegurou

ampla efetividade às sentenças arbitrais na medida em que emprestou a essas

sentenças a força de título executivo judicial; (iv) garantiu jurisdição ao árbitro, e

delimitou a cognição da demanda anulatória de sentença arbitral a um rol de motivos

de caráter essencialmente processual, visando, mais uma vez, garantir a efetividade

do processo arbitral; e (v) estabeleceu que sentenças arbitrais estrangeiras estão

sujeitas a uma única homologação, que ocorrerá perante o Supremo Tribunal

Federal.

Ressalte-se, por oportuno, que, atualmente, a última inovação exposta pelo autor

encontra-se modificada por força da Emenda Constitucional n. 45/2004, que determinou que a

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competência para a homologação de sentenças estrangeiras passaria a ser do Superior

Tribunal de Justiça (STJ).

As novidades trazidas pela Lei de Arbitragem acabaram por revitalizar este

método de resolução de controvérsias no Direito brasileiro, uma vez que solucionaram todos

os entraves à sua efetividade e trouxeram, à arbitragem, uma roupagem moderna e segura,

capaz de atrair os particulares para o seu uso no cotidiano das resoluções de conflito.

É certo, hodiernamente, que a arbitragem traz consigo inúmeras vantagens se

comparada à jurisdição estatal. Esta, reconhecidamente lenta e morosa, tem agora como

contraponto um procedimento dotado de notável celeridade processual, caracterizado pela sua

informalidade, flexibilização, possibilidade de oralidade e estipulação de prazo pelas próprias

partes para a resolução da controvérsia (VEDANA, 2002, p. 157).

A arbitragem tem como vantagem, ainda, a sua eficiência para dar resposta aos

anseios das partes, sendo certo que a instituição arbitral é muito mais acessível ao particular,

no tocante ao seu procedimento, do que a jurisdição estatal, com todo o seu formalismo.

Destaque-se, ainda, a possibilidade de escolha do árbitro, a confidencialidade do laudo arbitral

e diminuição do desgaste emocional na resolução da lide, que se dará de forma muito mais

rápida do que pelas vias tradicionais, estando ausente o clima de litígio inerente ao

procedimento estatal (VEDANA, 2002, p. 160).

Ressalta ainda o mesmo autor que a arbitragem conta com certas desvantagens,

algumas delas até mesmo faceta das vantagens acima expostas (VEDANA, 2002, p. 163). A

título de exemplo, a confidencialidade das sentenças dificulta a formação e o acesso aos

precedentes arbitrais, sendo penoso descobrir como aquele tribunal arbitral decide sobre

determinados casos. A quebra do consenso durante o procedimento arbitral pode dificultar ou

mesmo impossibilitar a sua conclusão, notadamente no tocante a como o procedimento

arbitral deve prosseguir, daí a importância da confecção de cláusulas arbitrais cheias

(BARBOSA, 2002, p. 179).

Não obstante os notórios benefícios trazidos pela Lei de Arbitragem ao Direito

pátrio, importa salientar que esta, na data de sua promulgação, foi alvo de diversos

questionamentos acerca de sua constitucionalidade, notadamente se confrontada com os

princípios do juiz natural e da inafastabilidade da jurisdição (COELHO, 2002, p. 39).

Tal controvérsia resta superada, uma vez que a constitucionalidade da lei em

análise é reconhecida em sua plenitude. A lei em tela não afasta a jurisdição estatal, tão

somente posterga seu exercício, sendo cabível a análise da legalidade das sentenças arbitrais

pelo Poder Judiciário (AZEVEDO, 2002, p. 119).

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3.3 A utilização da arbitragem nos contratos administrativos

Embora atualmente seja uma questão pacificada e a Lei da Arbitragem esteja em

pleno vigor, sua constitucionalidade foi alvo de Agravo Regimental nos autos da

Homologação de Sentença Estrangeira n. 5.206. Coube, assim, ao Supremo Tribunal Federal

proferir uma decisão a respeito, o qual fez nos seguintes termos:

EMENTA: [...] 3. Lei de Arbitragem (L. 9.307/96): constitucionalidade, em tese, do

juízo arbitral; discussão incidental da constitucionalidade de vários dos tópicos da

nova lei, especialmente acerca da compatibilidade, ou não, entre a execução judicial

específica para a solução de futuros conflitos da cláusula compromissória e a

garantia constitucional da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário (CF, art.

5º, XXXV). Constitucionalidade declarada pelo plenário, considerando o

Tribunal, por maioria de votos, que a manifestação de vontade da parte na

cláusula compromissória, quando da celebração do contrato, e a permissão

legal dada ao juiz para que substitua a vontade da parte recalcitrante em

firmar o compromisso não ofendem o artigo 5º, XXXV, da CF. Votos vencidos,

em parte - incluído o do relator - que entendiam inconstitucionais a cláusula

compromissória - dada a indeterminação de seu objeto - e a possibilidade de a outra

parte, havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, recorrer ao Poder

Judiciário para compelir a parte recalcitrante a firmar o compromisso, e,

conseqüentemente, declaravam a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei

9.307/96 (art. 6º, parág. único; 7º e seus parágrafos e, no art. 41, das novas redações

atribuídas ao art. 267, VII e art. 301, inciso IX do C. Pr. Civil; e art. 42), por

violação da garantia da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário.

Constitucionalidade - aí por decisão unânime, dos dispositivos da Lei de

Arbitragem que prescrevem a irrecorribilidade (art. 18) e os efeitos de decisão

judiciária da sentença arbitral (art. 31).

(STF – SE-AgR 5.206 EP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 11 de

dezembro de 2001, DJ 30-04-2004 PP-00029 EMENT VOL-02149-06 PP-00958).

Grifos nossos.

Superada a questão da constitucionalidade da Lei n. 9.307/96 e garantindo-se,

assim, plena eficácia a este dispositivo normativo, passou-se a questionar a possibilidade de

entes públicos celebrarem cláusula compromissória.

Sabe-se que a Lei da Arbitragem, em seu art. 1º, estatui que todos dotados de

capacidade civil podem instituir cláusula arbitral para resolver litígios relacionados a direitos

patrimoniais disponíveis. Tem-se, aqui, dois requisitos: arbitrabilidade objetiva e

arbitrabilidade subjetiva. A primeira diz respeito ao objeto do pacto arbitral, sendo vedada a

instituição de arbitragem envolvendo outros direitos que não aqueles considerados

patrimoniais disponíveis. A segunda diz respeito à pessoa do contratante e sua capacidade

para celebrar pactos. Resta claro que a Administração Pública, indiscutivelmente, possui

arbitrabilidade subjetiva (LEMES, 2004, p. 5).

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A grande controvérsia, no tocante à possibilidade de arbitragem nos contratos

administrativos, reside na arbitrabilidade objetiva. Tal controvérsia advém diretamente do

princípio da indisponibilidade do interesse público. Acerca do mencionado princípio, leciona

Carvalho Filho (2009, p. 32):

A Administração não tem a livre disposição dos bens e interesses públicos, porque

atua em nome de terceiros. Por essa razão é que os bens públicos só podem ser

alienados na forma em que a lei dispuser. Da mesma forma, os contratos

administrativos reclamam, como regra, que se realize licitação para encontrar quem

possa executar obras e serviços de modo mais vantajoso para a Administração.

Mais uma vez, confunde-se o interesse público primário de efetivar e garantir os

direitos fundamentais com os direitos secundários, condizentes tão somente ao governante ou

à máquina administrativa. Outrossim, a ideia de contrato, por si só, já garante certa margem

de disponibilidade acerca dos direitos dali decorrentes. Assim aduz Oliveira (2007, p. 20):

Ora, sendo o contrato administrativo um processo próprio do agir administrativo,

parece claro que a admissão, no ordenamento pátrio, da possibilidade da

Administração contratar implica conferir-lhe o direito de certa margem de

negociação e disposição sobre determinados interesses, bens e direitos. É óbvio que

tanto essa negociação, quanto essa disposição encontram-se regidas, condicionadas

pelo regime jurídico-administrativo brasileiro.

No mesmo sentido, assevera Lemes (2004, p. 8):

Com efeito, é na própria definição de contrato administrativo que encontramos a

resposta insofismável a permitir a utilização da arbitragem, ao se referir aos direitos

patrimoniais disponíveis. [...] Por sua vez, as espécies de contratos administrativos,

nas modalidades de contrato de concessão de serviço público ou de concessão de

obra pública, não alteram a natureza patrimonial da avença.

São ainda utilizados para argumento contrário à utilização da arbitragem em

contratos administrativos o princípio da legalidade administrativa e o princípio da

inafastabilidade do controle jurisdicional. Acerca da legalidade administrativa, leciona

Binenbojm (2005, p. 15):

A autorização legal (geral e orçamentária) para a realização de despesas pela

Administração, mediante celebração de contratos com particulares, importa, a

fortiori, a autorização para que o administrador faça uso de todos os meios negociais

disponíveis para a melhor consecução dos interesses da coletividade.

A aplicabilidade da arbitragem regulamentada pela Lei n. 9.307/96 às entidades

estatais foi analisada pelo STJ. A questão chegou ao tribunal através do litígio entre a

Companhia Estadual de Energia Elétrica do Estado do Rio Grande do Sul (CEEE/RS) e a

empresa privada Uruguaiana Empreendimentos Ltda. (AES). No caso, a primeira havia

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pactuado uma cláusula compromissória que instituía a arbitragem como o método que seria

utilizado para decidir questões de direito disponível. No entanto, ao surgir a contenda, a

CEEE/RS, sociedade de economia mista, ingressou ao Judiciário com vistas a não realizar a

arbitragem, que entendia ilegal. Assim, ficou a cargo do STJ decidir acerca da eficácia da

cláusula compromissória pactuada por uma empresa de economia mista e um particular, o que

fez nos autos do Recurso Especial n. 606.345-RS, publicado nos seguintes termos:

PROCESSO CIVIL. JUÍZO ARBITRAL. CLÁUSULA

COMPROMISSÓRIA. EXTINÇAO DO PROCESSO. ART. 267, VII, DO CPC.

SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. DIREITOS DISPONÍVEIS.

1. Cláusula compromissória é o ato por meio do qual as partes contratantes

formalizam seu desejo de submeter à arbitragem eventuais divergências ou litígios

passíveis de ocorrer ao longo da execução da avença. Efetuado o ajuste, que só pode

ocorrer em hipóteses envolvendo direitos disponíveis, ficam os

contratantes vinculados à solução extrajudicial da pendência.

2. A eleição da cláusula compromissória é causa de extinção do processo sem

julgamento do mérito, nos termos do art. 267, inciso VII, do Código de Processo

Civil.

3. São válidos e eficazes os contratos firmados pelas sociedades de

economia mista exploradoras de atividade econômica de produção ou

comercialização de bens ou de prestação de serviços (CF, art. 173, 1º) que

estipulem cláusula compromissória submetendo à arbitragem eventuais litígios

decorrentes do ajuste.

4. Recurso especial provido.

(Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 606.345/RS. AES Uruguaiana

Empreendimentos LTDA vs. Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE).

Relator Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 17 de maio de 2007). Grifos

nossos.

Data de muito tempo o leading case em matéria de arbitragem em contratos

administrativos, através do litígio conhecido como “Caso Lage” (CACHAPUZ; CONDADO,

2008, p. 108). Naquele momento, foi expedido o Decreto-Lei n. 9.521/46, o qual instituía a

arbitragem para determinar os valores de indenizações decorrentes do torpedeamento de

navios da Organização Lage durante a Segunda Guerra Mundial em face da União Federal

(VITA, 2008, p. 216). Mais uma vez foi questionada a legalidade do supracitado ato sob o

argumento de que o Poder Público não poderia celebrar cláusulas compromissórias com os

particulares. Vejamos como se pronunciou a respeito o STF, através da ementa do Agravo de

Instrumento n. 52.181:

INCORPORAÇÃO, BENS E DIREITOS DAS EMPRESAS ORGANIZAÇÃO

LAGE E DO ESPOLIO DE HENRIQUE LAGE. JUÍZO ARBITRAL. CLÁUSULA

DE IRRECORRIBILIDADE. JUROS DA MORA. CORREÇÃO MONETÁRIA.

1. Legalidade do juízo arbitral, que o nosso direito sempre admitiu e consagrou, até

mesmo nas causas contra a Fazenda. Precedente do Supremo Tribunal Federal.

2. Legitimidade da cláusula de irrecorribilidade de sentença arbitral, que não ofende

norma constitucional.

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41

3. Juros de mora concedidos, pelo acórdão agravado, na forma da lei, ou seja, a

partir da propositura da ação. Razoável interpretação da situação dos autos e da lei

4.414 de 1964.

4. Correção monetária concedida, pelo tribunal a quo, a partir da publicação da lei

4.686, de 21.6.65. Decisão correta.

5. Agravo de Instrumento a que se negou provimento.

(Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento 52.181/GB. Organização Lage

vs. União Federal. Relator Bilac Pinto, julgado em 13 de novembro de 1973, DJ 15-

02-1974 PP-*****)

Confirma-se assim, a tradição brasileira de reconhecer a possibilidade de

celebração de pactos arbitrais entre particulares e o Poder Público, havendo precedentes

noticiados desde a época dos contratos de concessão de serviços públicos imperiais. Pode-se

citar, ainda, precedentes envolvendo a Compagás e o “Caso Lloyd Brasileiro v. Ivarans

Rederi” (CACHAPUZ; CONDADO, 2008, p. 108).

Atualmente, a possibilidade de arbitragem está prevista para litígios patrimoniais

decorrentes de contratos de concessão de serviço público, regulados pela Lei n. 8.987/95 e

para os contratos de parcerias público-privadas, regulados pela Lei n. 11.079/04.

Tais contratos vem sendo bastante utilizados pelo Poder Público, chamando o

particular para prestar serviços em nome do Estado, mediante delegação do serviço público

em si (CARVALHO FILHO, 2009, p. 181). É mais um passo rumo a uma Administração

Pública paritária e consensual, notadamente as parcerias público-privadas.

As parcerias público-privadas surgiram em um contexto de necessidade do Poder

Público, o qual não possuía mais capacidade de gerir e fornecer com qualidade todos os

serviços públicos essenciais para a coletividade. Assim, o particular, sabidamente mais

eficiente na prestação de determinados serviços, foi chamado para participar da

Administração, seja com recursos financeiros, seja com sua capacidade técnica.

Enquanto na concessão de serviços públicos a remuneração recebida pelo

particular prestador do serviço é diretamente proveniente das tarifas pagas pelo usuário

(CARVALHO FILHO, 2009, p. 350), as parcerias público-privadas (PPPs) vão além,

prevendo outras formas de reembolso ao particular, que terá que arcar com gastos grandiosos

para a execução do objeto contratual. Em decorrência de tais gastos, as prerrogativas estatais

decorrentes das cláusulas exorbitantes são atenuadas rumo a uma relação de paridade.

As PPPs comportam duas modalidades: concessão patrocinada e concessão

administrativa. Quanto à concessão patrocinada, aduz Binenbojm (2005, p.2):

A concessão patrocinada é espécie do gênero concessão de serviço público (ou

concessão de serviço público precedida de obra pública, ou apenas concessão de

obra pública), em que a remuneração do concessionário envolve, adicionalmente à

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tarifa cobrada pelos usuários, uma contraprestação pecuniária devida pelo poder

concedente (art. 2º, §1º da Lei 11.079/04).

No tocante às concessões administrativas, informa o mesmo autor:

A concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a

Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva a

execução de obra ou o fornecimento e instalação de bens (art. 2º, 2º da Lei

11.079/04). (BINENBOJM, 2005, p. 4)

Em razão da natureza dos contratos de PPP, estes só devem ser utilizados em

casos excepcionais, tendo a Administração Pública o dever de justificar a sua escolha, seja

pela necessidade de investimentos iniciais de grande vulto, seja pela natureza do serviço

contratado (BINENBOJM, 2005, p. 5).

É cediço ainda que, em virtude do grande risco existente nesse tipo de

empreendimento, as prerrogativas estatais tendem a ser reduzidas. Com efeito, as exigências

impostas ao particular são maiores do que nas concessões comuns, o que justifica a redução

de tais privilégios estatais, conforme adverte Binenbojm (2005, p. 11):

A lógica econômica das garantias especiais das PPPs é a de proporcionar, aos

parceiros privados, a possibilidade de obtenção de financiamentos no mercado em

condições mais favoráveis, por conta da redução de riscos que elas oferecem. A

garantia reforçada é a contrapartida das maiores exigências feitas ao parceiro

privado, em contratos de PPP.

Em decorrência do exposto, tem-se a repartição objetiva dos riscos entre as partes

(art. 4º, VI, da Lei n. 11.079/0411

), no que diverge sensivelmente de outras modalidades de

contrato administrativos, que preveem a assunção do risco por conta do particular, tão

somente.

Em um cenário de parceria, onde as partes terão que conviver por um longo

período sob os termos do contrato celebrado, é imperioso evitar lides e conflitos que se

prolonguem no tempo e possam abalar a cordialidade entre os parceiros. Assim, a Lei n.

11.079/04 em seu art. 1112

previu a instituição de arbitragem para a resolução de controvérsias

patrimoniais.

11

Art. 4º. Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes:

[...] VI – repartição objetiva de riscos entre as partes; 12

Art. 11. O instrumento convocatório conterá minuta do contrato, indicará expressamente a submissão da

licitação às normas desta Lei e observará, no que couber, os §§ 3o e 4

o do art. 15, os arts. 18, 19 e 21 da Lei

no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, podendo ainda prever:

III – o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no

Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos

decorrentes ou relacionados ao contrato.

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43

As vantagens da adoção da arbitragem nos contratos administrativos são

inúmeras. No tocante ao tema, Timm e Silva (2011, online) citam três vantagens básicas:

a) Contribui para aprimorar a governabilidade dos Estados contemporâneos,

constituindo vantagem em termos de eficiência; b) Propicia mecanismo de controle

e prevenção contra o abuso do poder estatal, o que representa uma conquista no

campo da legalidade; c) Estimula a participação mais consciente e responsável das

partes envolvidas, o que certamente valoriza a cidadania e possibilita o alcance de

decisões mais justas às partes e, portanto, mais facilmente cumpridas, representando

aperfeiçoamento no campo da legitimidade.

Infere-se do exposto que se trata, sobretudo, do reconhecimento de que o Estado

também é dependente da iniciativa privada. Não há, com efeito, uma relação de supremacia

deste sobre aquele, notadamente no campo econômico. Tais setores são interdependentes e,

por este motivo, deve ser estimulada uma relação de consenso entre os mesmos, da qual a

arbitragem é importante ferramenta.

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44

4 A ARBITRAGEM NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS ANTE A

CONSENSUALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Expostas as ideias gerais acerca do modelo de Administração Pública consensual

e a sua relação com o interesse público legítimo que deve ser buscado pelo Estado, cumpre

avaliar a viabilidade e o efeito da utilização dos métodos alternativos de controvérsias nas

diversas contendas em que o Estado moderno se vê envolvido e, assim, esclarecer como a

arbitragem nas relações estatais, notadamente em celebração de contratos, pode favorecer a

efetivação dos direitos fundamentais através da participar popular e do consenso.

Como afirmado, o crescimento da utilização da arbitragem na prática jurídica

brasileira poderá trazer inúmeros benefícios a médio e longo prazo. O Estado, enquanto

entidade que deve buscar a concretização do ideal de justiça na sociedade, não pode ficar

alheio a esta tendência, devendo estimulá-la e participar do processo.

Assim, passa-se à exposição de alguns direitos fundamentais e deveres estatais

que tendem a ser favorecidos com a implantação da consensualidade e o estímulo à utilização

de métodos alternativos de resolução de controvérsias, dando-se especial destaque à

arbitragem.

4.1 Métodos alternativos de resolução de controvérsia em contendas fazendárias e

ambientais: busca pelo legítimo interesse público

Sabe-se que o Direito Tributário é um dos terrenos mais férteis para a aplicação

do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. O tributo tem, como um dos

mecanismos a lhe dar legitimidade, o fato de a restrição da liberdade do indivíduo se dar em

benefício de toda a sociedade, através dos valores arrecadados pelo Estado.

É frequente, no Brasil, o aumento de tributos com a alegação genérica de interesse

público. Mas acerca do tema, cabe indagar: trata-se realmente de um interesse público

primário pagar mais impostos? A sociedade anseia, de fato, por colaborar cada vez mais com

o Estado garantidor brasileiro? Tal interesse não seria, tão somente, um interesse público

secundário?

Embora pareça natural pensar que no Brasil, um país tradicionalmente dotado de

um Estado garantidor e paternalista (ROSENN, 1998, p. 52), o aumento de impostos seja

expressão cristalina da busca pelo interesse público primário, tal entendimento não merece

prosperar.

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45

Com efeito, o Estado resta irremediavelmente dotado de uma carga arrecadatória

que em nada ou muito pouco se converte em efetivos benefícios para a população. Trata-se,

sobremaneira, de um interesse público secundário, que só beneficia à própria máquina estatal.

Outrossim, a litigiosidade inerente à jurisdição estatal acaba por interferir na

atividade arrecadatória do Estado. O passivo fazendário é gigantesco e as eternas contendas

judiciais acabam por postergar bastante o recebimento daquele valor.

Acerca do tema, cabe indagar se o melhor interesse público será a infindável

busca pelo valor devido na Justiça ou o recebimento negociado, mesmo que a menor, mas

viável de pagamento por parte do particular. Entende-se, ainda, ser de interesse privado pagar

impostos, desde que se revertam efetivamente em benefícios que auxiliem na concretização

dos direitos fundamentais previstos na Magna Carta. Não há que se falar, portanto, em

conflito e, sem litígio, não há qualquer relação de supremacia.

Verifica-se a necessidade de que o particular seja chamado a participar deste

processo, buscando-se o consenso também na seara fazendária. Para tal, a arbitragem será de

suma importância, embora sua utilização seja supostamente obstada pela alegada

indisponibilidade dos créditos tributários.

Entretanto, é de se destacar que os créditos tributários não são indisponíveis. A

indisponibilidade reside na competência tributária. Assim leciona Tôrres (2008, p. 182):

No campo da aplicação, nada impede que a lei possa qualificar, dentro de limites e

no atendimento do interesse coletivo, os melhores critérios para constituição,

modificação ou extinção do crédito tributário, inclusive meios de resolução de

conflitos, vinculativamente e com espaço para discricionariedade, no que couber,

visando a atender a praticabilidade, economicidade, celeridade e eficiência da

administração tributária.

Será importante, portanto, a utilização da arbitragem e demais métodos de solução

de controvérsias para a resolução de controvérsias em matéria tributária. Com efeito, a

arbitragem, enquanto método dotado de notória celeridade em comparação com o

procedimento arbitral, poderá auxiliar na captação deste passivo tributário para que possa ser

aplicado em práticas estatais que visem garantir, sobretudo, a dignidade da pessoa humana.

Para viabilizar a arbitragem, no entanto, é preciso atender aos ditames da legalidade, sendo

necessária a promulgação de Lei Complementar que a preveja como medida de extinção de

obrigações tributárias, expondo seus pressupostos gerais, limites e condições (TÔRRES,

2008, p. 184).

Destaque-se, ainda, que o Código Tributário Nacional (CTN), em seu art. 156,

prevê a transação como causa de extinção do crédito tributário, sendo este um passo

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importante rumo à consensualidade na Administração Pública. A arbitragem surge, assim,

como o próximo passo a ser dado, estimulando o particular a pagar os impostos devidos e

contribuir para a construção de um Estado apto a realizar todas as suas tarefas em plenitude.

Acerca do tema, aduz Dallari (2001, online):

Ao optar pela solução amigável, a Administração Pública não está necessariamente

transigindo com o interesse público, nem abrindo mão de instrumentos de defesa de

interesses públicos. Está, sim, escolhendo uma forma mais expedita ou um meio

mais hábil para a defesa do interesse público.

Em matéria ambiental, é notório o crescimento da participação popular nas

decisões referentes ao tema. A audiência pública se tornou etapa indispensável para a

validação de grandes obras, em uma maior busca pelo consenso e mediação dos interesses

envolvidos.

De fato, a participação popular tornou-se importante na realização de grandes

obras, sendo efetivo requisito de legalidade do procedimento licitatório. Aduz Figueiredo

(2007, p. 14):

Como já dissemos anteriormente, nas obras e serviços, que demandarem audiências

públicas preliminares, é absolutamente importante que a audiência efetivamente

preceda tais obras ou serviços. Estarão em confronto os princípios da legitimidade,

economicidade e eficiência [...]

Importa salientar, acerca do tema, a existência de diversos interesses públicos

envolvidos quando se trata de meio ambiente, boa parte deles conflitantes. Um exemplo

notório é o direito ao meio ambiente equilibrado e a mobilidade urbana.

Atualmente, tem havido grande discussão referente à construção de viadutos na

área do Parque do Cocó, em Fortaleza, inclusive com ocupação popular à área em questão,

onde ficaram por cerca de três meses. Não se sabe, entretanto, se aquele grupo em especial

representa as aspirações da sociedade, nem se seus ideais visam à efetivação do melhor

interesse público.

Este tema, em especial, tem causado grande debate na sociedade cearense, e cabe

ao Estado, enquanto organismo responsável pela busca do interesse público, encontrar formas

de diálogo com a sociedade, chamando o particular a participar deste processo, seja através de

audiências públicas, seja ouvindo representantes das manifestações.

A Administração Pública consensual repousa exatamente na busca pela mediação

de conflitos através da cultura do diálogo, estimulando a participação popular. Todavia, tal

participação deve se dar de maneira legítima, de modo que toda a sociedade se sinta

representada, e não somente uma parcela de determinada ideologia.

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A controvérsia reside, sobretudo, na busca pelo melhor interesse público, sendo

este aquele que melhor atenda aos reclamos da sociedade e à efetivação dos direitos

individuais e sociais. No caso, cabe uma ponderação, com massiva participação popular, entre

o direito ao meio ambiente, analisando-se os danos que possam ser causados, e o direito de

uma mobilidade urbana adequada que, sem dúvidas, afeta o bem-estar da população.

4.2 Arbitragem nos contratos administrativos e efetivação do direito de acesso à justiça

É notória a morosidade e lentidão do judiciário brasileiro em seus moldes atuais.

Tal situação, sem dúvidas, acaba por comprometer a credibilidade da justiça ante a população

em geral, que se vê desestimulada a procurar auxílio naquele aparato.

O acesso à justiça, de fato, resta ineficiente na atual conjuntura social e

econômica, onde as contendas tendem a crescer cada vez mais enquanto a máquina estatal

permanece inerte, incapaz de lidar com o aumento elevado da demanda. O direito

fundamental em tela é previsto e resguardado pela Magna Carta (art. 5º, XXXV). Cabe, assim,

ao Estado brasileiro promover meios adequados para a sua efetivação e concretude.

Destaque-se, por oportuno, que o acesso à justiça deve ser entendido em sua

concepção material. Com efeito, não basta ao Estado promover meios para que o particular

ingresse ao Judiciário, devendo este garantir uma decisão justa, adequada e célere. Outrossim,

a plena aplicabilidade deste princípio é de suma importância para toda a sociedade na medida

em que serve de remédio para combater eventuais ingerências indevidas sobre outros direitos

fundamentais do cidadão. Nesse sentido, alega Paroski (2006, p. 228):

O acesso à justiça talvez seja o mais básico dos direitos fundamentais, pois que é

através do seu exercício que outros direitos fundamentais podem ser assegurados

quando violados, pela imposição de sua observância pelos órgãos estatais

encarregados da jurisdição.

Nesta seara, a distinção entre acesso à justiça formal e material adquire grande

importância. Com efeito, o acesso à justiça formal não é um grande problema na sistemática

jurisdicional brasileira. O cidadão tem meios eficazes para ingressar ao Judiciário, tendo

especial destaque as Defensorias Públicas, que tem prestado relevante serviço à sociedade,

democratizando o acesso à justiça na prática forense brasileira. Acerca do acesso à justiça

formal, ensinam Cachapuz e Condado (2008, p. 96):

Esse acesso formal, por meio do processo, perante os órgãos do Poder Judiciário,

onde se identifica o problema e se diz o direito como forma de realizar justiça, não é,

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na atualidade, o melhor modelo e, muito menos, aquele que proporciona um maior

acesso à justiça.

Para Paroski (2008, p. 232), é importante diferenciar, ainda, tutela jurídica e tutela

jurisdicional. Aquela tem por objetivo proteger os direitos subjetivos e atos lícitos do

particular. A tutela jurisdicional é espécie desta, consistindo na proteção fornecida pelo

Estado, desde que provocado a fazê-lo pelo particular lesado.

Embora a tutela jurisdicional não possa ser abandonada, entende-se como mais

importante a tutela jurídica, consistindo esta no real acesso à justiça em seu aspecto material.

Os direitos previstos em lei devem ser resguardados, mesmo que por método alternativo

àquele implantado pelo Estado, não havendo que se falar em monopólio da tutela jurídica por

parte do aparato estatal.

O que cabe ressaltar, entretanto, e aqui reside a maior problemática relativa ao

tema, é o acesso à justiça em seu sentido material. Indaga-se se as decisões preferidas pelo

órgão jurisdicional realmente alcançaram a justiça no caso concreto.

Em sede de Administração Pública, é notória a dificuldade que o particular tem de

superar para ver o seu direito reconhecido e garantido. Após passar por longo e penoso

processo judicial, onde a Fazenda Pública goza de inúmeros privilégios, vê o seu direito ser

direcionado a uma fila de precatórios que demoram anos para serem compensados.

Pergunta-se relativamente ao tema: o particular ter o seu direito satisfeito após

anos de aflição emocional decorrente de uma batalha judicial é o atendimento ao interesse

público que deve ser legitimamente buscado pelo ente estatal? A resposta só pode ser

negativa.

Como exposto, o interesse público, em uma Administração Pública moderna, deve

ser entendido como a efetivação dos direitos fundamentais garantidos constitucionalmente

através de uma cultura do diálogo com o particular. Em especial, a preferência por métodos

consensuais de resolução de controvérsias em relação à imperatividade que, apesar de não

desaparecer do aparato estatal, deve ser preterida sempre que possível. Ademais, é preferível

ter o particular como colaborador das ações estatais, e não como objeto a ser compelido para a

prática de determinado ato forçosamente.

No entanto, em nome de uma pretensa supremacia do interesse público sobre o

privado, busca-se impor interesses públicos secundários a interesses públicos primários,

conforme se vê diariamente na prática administrativa brasileira. Há quem entenda a

obrigatoriedade de recorrer de sentenças desfavoráveis à máquina pública mesmo que,

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notoriamente, não esteja esta respaldada pelo ordenamento jurídico vigente, sendo tal prática

usual.

Não há que se falar, no caso, em indisponibilidade do interesse público, pois não

há qualquer resquício de interesse público legítimo. O interesse público e o interesse

particular, embora por vezes coloquem-se em posição antagônica, não são contrários. O

melhor interesse público reside na correta aplicação da lei, mesmo que contrária ao interesse

da máquina pública, sendo carecedor de legitimidade qualquer ato estatal tendente a retardar o

usufruto dos direitos legitimamente perseguidos pelos particulares.

A arbitragem, enquanto método de solução dotado de celeridade e eficiência, é

peça importante para a implantação do pleno acesso à justiça no Direito brasileiro. Nesse

sentido, entendem Cachapuz e Condado (2008, p. 111):

Como forma alternativa de solução de conflitos, a institucionalização da arbitragem,

com toda certeza, desafogará o Judiciário, proporcionando maior tranquilidade aos

juízes estatais, permitindo que se voltem à solução das demandas de maior

complexidade, proferindo decisões mais qualificadas.

O direito de acesso à justiça é assim definido por Paroski (2006, p. 240):

O acesso à justiça, visto como direito fundamental, garantido pela Constituição da

República, excede aos acanhados limites de mera possibilidade de propor uma

demanda perante os órgãos jurisdicionais, devendo ser concebido como acesso aos

próprios direitos contemplados pelo ordenamento jurídico substancial e processual,

assegurando-se àquele que tem razão a efetiva entrega do bem jurídico tutelado, com

o menor custo e tempo possíveis.

De certo, vislumbra-se que os contratos administrativos não podem ficar alheios a

esta tendência. O particular deve ser chamado a participar deste processo, seja como árbitro,

seja como contratado, mas em condições de paridade com a Administração Pública, com

vistas ao interesse público de propiciar o acesso à justiça.

Com efeito, quando da celebração de parcerias entre o setor privado e o Estado, o

direito de acesso à justiça pelo particular deve restar completamente resguardado. Não se está

a falar em afastar completamente a jurisdição estatal, sendo certo que esta sempre estará

legitimada para analisar a legalidade dos atos praticados. Importa colocar a disposição das

partes, entretanto, um meio mais adequado para a resolução de conflitos que não instale a

litigância entre os membros (PAROSKI, 2006, p. 233).

Entende-se, outrossim, que a aplicação da arbitragem nos contratos

administrativos, no tocante aos direitos patrimoniais disponíveis, atende ao melhor interesse

público. Há quem entenda, na doutrina pátria, que a ampliação do uso da arbitragem por

setores públicos, bem como por diversas camadas da sociedade, tende a beneficiar a própria

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jurisdição estatal, não podendo se falar em conflito entre ambos. Assim entende Benvindo

(2002, p. 236):

Embora os mecanismos paralelos de resolução de controvérsias possam parecer, em

princípio, uma ameaça ao funcionamento do poder judiciário, é fundamental

entender que tais métodos existem para complementar e atuar paralelamente ao

poder judiciário. Não são contraditórios. Ambos, afinal, estão a buscar a mesma

função, que se centra na persecução da paz social.

Assim, o uso da arbitragem deve ser estimulado sempre que possível, inclusive na

área pública, onde a rápida solução de demandas e satisfação do particular constituem

elemento central dos deveres impostos ao Estado.

4.3 A arbitragem e a consensualidade: análise econômica do Direito

É notória e inegável a necessidade de participação do particular para incrementar

políticas estatais tendentes a estimular o crescimento econômico da Nação. Imperioso,

portanto, a implantação de práticas que estimulem e façam com que a iniciativa privada se

sinta atraída a contribuir com o Estado brasileiro, com vistas à construção de uma sociedade

mais forte economicamente.

Reflexo disso são as novas modalidades de contrato administrativo surgidas no

ordenamento jurídico brasileiro. Dá-se especial destaque às parcerias público-privadas, que

são um sintoma inegável da crescente implantação de relações consensuais Estado-indivíduo,

com vistas a um bem maior de interesse de ambas as partes.

Cabe ao Estado, ante o panorama aduzido, adotar práticas tendentes a diminuir os

custos de transação do particular com o Estado. Acerca do conceito de custos de transação,

leciona Pugliese (2008, p. 77):

Custos de transação são os custos para a realização de intercâmbios econômicos.

Todos os custos que o indivíduo incorre, em função dos relacionamentos que deve

manter com os demais integrantes do sistema produtivo podem ser chamados de

custos de transação.

Vislumbra-se claramente que o método de resolução de controvérsias utilizado

pelas partes pode influir positiva ou negativamente nos custos de transação envolvidos. O

Estado deve estimular a arbitragem em vista disso, pois tratar-se-ia de uma ferramenta de

grande valia para o estímulo e crescimento econômico que o Brasil tanto necessita. Acerca do

tema, aduz o mesmo autor:

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51

Com efeito, se comparada à prestação jurisdicional estatal, a arbitragem pode reduzir

os custos de transação da prestação jurisdicional. Em primeiro lugar, em razão da

agilidade com que é concluída. O procedimento arbitral não está sujeito à rigidez

dos processos judiciais, não se submete ao regime dos infindáveis recursos a

instâncias superiores, e os árbitros, não raro, contam com a infra-estrutura necessária

para que suas decisões sejam tomadas com grande rapidez. (PUGLIESE, 2008, p.

78)

Aqui, cabe analisar o Poder Judiciário brasileiro como uma instituição econômica.

É inegável a influência da eficiência da justiça no campo econômico, sendo uma justiça

eficiente fomento para o crescimento da atividade econômica, enquanto que sua visível

ineficiência poder levar a uma estagnação da supracitada atividade.

Analisando-se a eficiência do Poder Judiciário enquanto instituição influente no

campo econômico, é imperioso ressaltar a sua completa incapacidade, nos moldes atuais, de

contribuir com o crescimento econômico brasileiro. Sabe-se que a justiça deve restar dotada

de acessibilidade, previsibilidade e celeridade para cumprir com este objetivo, o que

infelizmente não é a realidade da jurisdição brasileira (JOBIM, 2008, p. 125).

A previsibilidade e, notadamente, a celeridade são deficiências notórias na

prestação da justiça pelo Estado, o que implica em seu descrédito pelo mercado.

É certo que a imprevisibilidade das decisões e a sua lentidão acabam por afetar os

custos de transação na sociedade. Ao pactuar, os particulares tendem a onerar ainda mais os

negócios realizados, vislumbrando a dificuldade que um eventual litígio judicial poderia levar

para ambas as partes. Assim, aumentando-se a oneração dos contratos, ocorre o desestímulo

em pactuar o que, por sua vez, interfere no crescimento econômico do país como um todo.

Resta, portanto, caracterizada a íntima relação entre um Judiciário eficiente e o

crescimento econômico de um país. A título de exemplo, o STF demorava em média, no ano

de 2007, 272 (duzentos e setenta e dois) dias para proferir uma decisão monocrática,

proferindo 22 (vinte e duas) decisões por dia para cada ministro (JOBIM, 2008, p. 126). O

autor, ao comparar o caótico quadro do STF brasileiro com a Suprema Corte Americana no

mesmo ano, chegou à conclusão de que o número de decisões por ano em toda aquela corte é

equivalente ao número de decisões que cada Ministro brasileiro, individualmente, profere por

semana (JOBIM, 2008, p. 127).

Efetivamente, parece desproporcional que cada Ministro do STF, em uma semana,

decida o mesmo número de processos do que toda a corte americana em um ano inteiro. Tal

quadro retrata o completo caos que a jurisdição brasileira vive, sendo imperiosa uma política

de implantação de soluções alternativas que auxilie a tradicional litigância estatal.

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO … · A arbitragem nos contratos administrativos ante a consensualidade na administração pública / Mário Sérgio Coutinho

52

É notória, ainda, a incapacidade de um Judiciário tão sobrecarregado de processos

em proferir decisões qualitativas e céleres e funcionar como uma instituição de estímulo

econômico. Urge apelar para os métodos alternativos, uma vez que a tutela jurídica restará

duplamente afetada, seja em seu caráter social (acesso à justiça), seja em seu caráter

econômico.

Acerca do exposto, é preciso adotar, na Administração Pública brasileira, o

conceito de Administração gerencial, onde se dá primazia à celeridade e qualidade das

decisões em detrimento da burocracia, o que garantiria, igualmente, maior possibilidade de

negociação entre a máquina pública e os particulares.

Machado (2008, p. 367), ao tratar do tema em debate, trouxe importante

contribuição ao relacioná-lo com a teoria de saída, voz e lealdade de Albert O. Hirschman,

doutrina de cunho essencialmente econômico. Para Hirschman, a concorrência é o principal

mecanismo de recuperação de determinada entidade, pois estimula o uso dos instrumentos de

saída e de voz por parte de seus usuários. Assim aduz Machado (2008, p. 367) acerca do

conceito de saída:

Nesse caso, quando um agente está descontente com a atuação de uma organização

“A”, pois está agindo em desacordo com a expectativa que se nutria para com ela, o

principal mecanismo que esse agente possui para forçá-la a recuperar-se está na

concorrência, ou seja, na possibilidade de que tem esse agente de encontrar uma

outra organização “B”, capaz de substituir potencialmente aquela organização “A”.

Além da saída, que se resume na busca por um serviço mais correto e eficiente em

outra organização, tem-se a voz, assim definida (MACHADO, 2008, p. 368):

[...] há uma outra resposta possível por parte dos agente insatisfeitos, que vem a ser

a manifestação direta e expressa de sua insatisfação para com as organizações, por

meio de protestos contra esse decréscimo de qualidade.

Nota-se que a sociedade já fez uso da voz por diversas vezes no tocante à

prestação jurídica estatal. Sabe-se dos intensos pedidos de reforma processual tendentes à

celeridade na justiça, sendo mesmo tal objetivo elevado a um princípio do direito processual

brasileiro. É inconteste o clamor popular por uma justiça mais eficiente, justa e célere, sendo,

igualmente, incontáveis as diversas tentativas de reforma com vistas a obter um processo que

tenha o condão de materializar os diferentes direitos previstos (MACHADO, 2008, p. 375).

Entretanto, como exposto, no Brasil há um imenso apego à prestação jurisdicional

por parte do Estado, seja por simples tradição, seja por uma pretensa segurança que o aparato

estatal garante aos particulares. Assim, há uma resistência em buscar formas alternativas ao

Poder Judiciário em virtude da lealdade de seus usuários.

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53

Conclui-se do exposto que a arbitragem funciona como uma saída ao Poder

Judiciário, sendo mais uma alternativa que pode ajudar a modernizar o próprio aparato estatal

através da concorrência. Suas vantagens, notadamente em matéria econômica, impõem o seu

uso sempre que se tratar de direitos patrimoniais disponíveis.

Outrossim, duas características inerentes à arbitragem tendem a diminuir os custos

de transação na sociedade, razão pela qual tal método resta consagrado em negociações

mercantis a vários anos: sigilo e rapidez (TIMM, 2009, p. 23).

Com efeito, o particular, ao notar no edital de licitação para a contratação com o

ente público a previsão da arbitragem, chegará irremediavelmente à conclusão de que as

contendas eventualmente dali decorrentes serão resolvidas de maneira mais célere, sem

maiores delongas, propiciando um clima amigável na relação entre os contratantes.

Não é por outro motivo que a arbitragem vem tendo larga utilização nos contratos

empresariais entre particulares. A Administração Pública, que tem como um de seus deveres

principais estimular o desenvolvimento socioeconômico, deve se valer da arbitragem para

atrair o particular à concertação da gerência estatal através do diálogo e do consenso.

4.4 Consensualidade e arbitragem: meios de efetivar o princípio da eficiência

Antes do advento da Emenda Constitucional n. 19/98, não havia qualquer

previsão legal que impusesse, aos agentes administrativos, a obrigação de atuar com presteza

e eficiência. Com efeito, tratava-se, sobremaneira, de um dever moral, motivo pelo qual o

Estado brasileiro viu seu aparelhamento se tornar uma máquina lenta e burocrática.

Visando a dar maior proteção aos governados, garantindo o seu direito de contar

com uma prestação de serviços mais eficiente, a supracitada emenda veio impor a eficiência

como um princípio oponível a toda a atividade administrativa, inserindo-o no art. 37, caput,

da Constituição Federal, juntamente com os princípios da legalidade, moralidade,

impessoalidade e publicidade, então já existentes.

Acerca do mencionado princípio, leciona Carvalho Filho (2009, p. 28):

O núcleo do princípio é a procura de produtividade e economicidade e, o que é mais

importante, a exigência de se reduzir os desperdícios de dinheiro público, o que

impõe a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento

funcional.

Para Di Pietro (2011, p. 84), o princípio da eficiência comporta dois aspectos: o

modo de atuação do agente público e o modo de organizar, estruturar e disciplinar a

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Administração Pública, com vistas a alcançar os melhores resultados possíveis no exercício da

atividade administrativa.

Não obstante contar com relevante construção doutrinária atualmente, o princípio

da eficiência, na época de sua inclusão na Magna Carta, foi alvo de diversas críticas,

notadamente no tocante à imprecisão do termo (CARVALHO FILHO, 2009, p. 28). De fato,

trata-se de uma valoração bastante subjetiva analisar se uma eventual prestação de serviço

público foi realizada de maneira eficiente. Como exposto, nesse ramo do Direito, a utilização

de conceitos jurídicos indeterminados ou ausência de uma maior regulação por parte da lei

podem dar ensejo a práticas escusas.

No tocante ao princípio da eficiência, este pode restar vazio de sentido sem uma

maior explicitação acerca de seu conteúdo e critérios de análise, razão pela qual a doutrina e a

jurisprudência vem realizando importante trabalho na definição dos seus contornos. Convém

destacar lição de Carvalho Filho (2009, p. 28):

Incluído em mandamento constitucional, o princípio pelo menos prevê para o futuro

maior oportunidade para os indivíduos exercerem sua real cidadania contra tantas

falhas e omissões do Estado. Trata-se, na verdade, de dever constitucional da

Administração, que não poderá desrespeitá-lo, sob pena de serem responsabilizados

os agentes que derem causa à violação. Diga-se, entretanto, que de nada adiantará a

menção a tal princípio se não houver uma disciplina precisa e definida sobre os

meios de assegurar os direitos dos usuários [...]

Importa salientar que a mera presença do mandamento constitucional não implica

a concretização de uma Administração Pública mais eficiente. No Brasil, há a infeliz cultura

de buscar resolver os problemas sociais tão somente através da promulgação de leis

(ROSENN, 1998, p. 54). Tal reflete, sem dúvidas, na quantia absurda de leis existentes

atualmente, quantia esta que, por sua vez, reflete a falta de poder estatal para fazer valer o que

está positivado.

A inclusão do mencionado princípio na regulamentação constitucional referente à

matéria é tão somente o primeiro passo para a construção de uma máquina pública eficiente.

Em vista disso, cabe ao Estado, agora, buscar meios de fazer valer o que está disposto na

Magna Carta, sob risco de transformar o princípio da eficiência em mera letra morta.

Entretanto, os meios utilizados pelo Poder Público devem restar de acordo com os

demais princípios basilares da Administração Pública, buscando-se evitar práticas abusivas

por parte dos detentores do poder público. Sobre o tema, Di Pietro (2011, p. 85):

Vale dizer que a eficiência é princípio que se soma aos demais princípios impostos à

Administração, não podendo sobrepor-se a nenhum deles, especialmente ao da

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legalidade, sob pena de sérios riscos à segurança jurídica e ao próprio Estado de

Direito.

É inevitável relacionar a necessidade de implantação de uma maior eficiência na

atividade administrativa e a crescente utilização do consenso e dos métodos alternativos de

solução de controvérsias. Com efeito, a nova contratualização administrativa, baseada no

diálogo e no consenso, é uma das novas facetas na busca estatal por uma maior eficiência na

prestação de serviços. Gustavo Henrique Justino de Oliveira (2007, p. 14) expõe claramente

as premissas desta tendência, a seguir:

(i) privilegia-se sobremaneira a cultura do diálogo entre o parceiro público e o

privado, (ii) confere-se maior atenção às negociações preliminares ao ajuste (que

devem ser transparentes), (iii) abre-se espaços para trocas e concessões mútuas entre

os parceiros, visando um balanceamento dos interesses envolvidos, (iv) diminui-se a

imposição unilateral de cláusulas por parte da administração pública com o

proporcional aumento da interação entre os parceiros para o delineamento e fixação

das cláusulas que integrarão o contrato e (v) institui-se uma maior interpedendência

entre as prestações correspondentes ao parceiro público e ao parceiro privado,

inclusive com a atribuição de garantias a esse último, tidas como não usuais nos

contratos tradicionais firmados pela Administração.

No Brasil, o processo de implantação do novo modelo de contratação

administrativa está em pleno crescimento. A regulamentação legal das parcerias público-

privadas foram somente o início dessa prática que foi imposta pelo reconhecimento de

interdependência econômica entre o parceiro público e o parceiro particular, reduzindo-se

cada vez mais o espaço para a imposição de atos unilaterais por parte do ente estatal.

Tal tendência, sem dúvidas, se presta perfeitamente a estabelecer um novo grau de

eficiência e legitimidade nos atos praticados pelo Estado. Em contratos administrativos mais

paritários, em que há uma maior liberdade ao particular na medida em que este deixará de

figurar com um subordinado ao poder estatal para atuar em colaboração com este, a iniciativa

privada se beneficiará através da possibilidade de investimento em grandes obras, enquanto o

Poder Público poderá prestar os seus serviços com maior presteza e sem grandes despesas nos

já combalidos cofres públicos.

É importante ressaltar, contudo, a necessidade de se afastar antigas amarras e

tradições inerentes ao Direito Administrativo que já não se coadunam mais com o momento

atual em que passa o Estado Brasileiro. Com efeito, não são mais legítimas práticas

burocráticas ou tradicionais que se revelem empecilhos para a concretização dos direitos

fundamentais positivados na Magna Carta, notadamente a dignidade da pessoa humana.

Eventuais prerrogativas estatais e apegos formalistas só restarão respaldados pelo

ordenamento jurídico vigente se possuírem como objetivo a atuação eficaz e prestativa da

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Administração Pública em prol do verdadeiro interesse público. Do contrário, tais práticas

restariam eivadas de total ilegitimidade. Assim aduz Dallari (2001, online):

Isso significa que é preciso superar concepções puramente burocráticas ou

meramente formalísticas, dando-se maior ênfase ao exame da legitimidade, da

economicidade e da razoabilidade, em benefício da eficiência.

A obrigatoriedade de recorrer ao Poder Judiciário em face de conflitos decorrentes

de contratos administrativos não restaria de acordo com a necessidade se buscar uma

prestação estatal eficiente. A arbitragem, outrossim, surge como escolha natural para

contendas relativas a direitos patrimoniais disponíveis, mesmo que decorrentes de contratos

públicos. Tal é corolário direto do princípio da eficiência. Prossegue o mencionado autor:

Agora é preciso mais: a administração deve buscar a forma mais eficiente de

cumprir a lei, deve buscar, entre as opções teoricamente possíveis, aquela que,

diante das circunstâncias do caso concreto, permita atingir os resultados necessários

à satisfação de interesses públicos. (DALLARI, 2001, online)

É inegável se tratar a arbitragem do método mais eficiente para resolver conflitos

relativos a direitos patrimoniais disponíveis, pelos motivos já aduzidos. A busca pela

eficiência administrativa impõe, sobretudo, a utilização da arbitragem na resolução dos pactos

com o particular, levando parte da doutrina a entender que a instituição da arbitragem não é

mais mera faculdade do Poder Público, e sim um dever (LEMES, 2002, p. 54).

4.5 Promoção do Estado de Direito, da democracia e da cidadania

Por fim, cabe analisar as benesses que podem ser geradas pelo estímulo às práticas

consensuais e utilização dos métodos alternativos de solução de controvérsias para a própria

estrutura do Estado brasileiro. Com a implantação de uma Administração Pública moderna e

consensual, o Estado de Direito se fortalecerá.

O Estado de Direito, que surgiu como meio de garantir a liberdade individual

através da submissão de todos à lei, inclusive o próprio Estado, que passaria a responder por

práticas contrárias ao ordenamento jurídico, teve origem estritamente liberal. Entretanto, trata-

se de um conceito vago e indefinido.

Acerca do conceito de Estado de Direito, leciona Silva (2012, p. 112):

[...] Disso deriva a ambiguidade da expressão Estado de Direito, sem mais

qualitativo que lhe indique conteúdo material. Em tal caso a tendência é adotar-se a

concepção formal do Estado de Direito à maneira de Forsthoff, ou de um Estado de

Justiça, tomada a justiça como um conceito absoluto, abstrato, idealista,

espiritualista [...]

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É importante colacionar, ainda, lição do mesmo autor acerca da relação do Estado

de Direito em sua concepção de Estado de Justiça com o Poder Judiciário:

Diga-se, desde logo, que o Estado de Justiça, na formulação indicada, nada tem a ver

com Estado submetido ao Poder Judiciário, que é um elemento importante do Estado

de Direito. Estado submetido ao juiz é Estado cujos atos legislativos, executivos,

administrativos e também judiciais ficam sujeitos ao controle jurisdicional no que

tange à legitimidade constitucional e legal. É também uma abstração confundir

Estado de Direito com uma visão jusnaturalista do Estado. (SILVA, 2012, p. 113)

Nota-se que não há qualquer exigência da obrigatória utilização da jurisdição para

a resolução de todas as lides. Com efeito, o Estado de Direito se caracteriza pela subordinação

à lei de todos os agentes sociais, inclusive a própria administração pública. Tal subordinação,

acrescente-se, servirá de garantia ao particular e tem como grande tendência a posição

paritária entre particular e poder público, notadamente nas relações contratuais.

O princípio da soberania popular, corolário do próprio Estado Democrático de

Direito impõe uma maior participação do povo na atividade administrativa, pois aquele é

verdadeiramente o detentor do poder na sistemática jurídica brasileira.

Outrossim, importa salientar ainda que a arbitragem se constitui em importante

instrumento para a fortificação do Estado de Direito, na medida em que se traduz em maior

celeridade, eficiência e participação popular nas contendas estatais, seja como árbitro da

disputa, seja como parte colaboradora e contratante.

A própria democracia13

brasileira, ainda em pleno desenvolvimento em um país

de história tão oligárquica e autoritária, tende a se beneficiar da implantação e ampliação de

práticas consensuais e métodos alternativos de solução de controvérsias. É evidente, nesta

sistemática de governo, a necessidade de legitimidade popular para todos os atos praticados

pelo Estado, bem como para o próprio Estado em si.

Em outras palavras, a existência de prerrogativas estatais e a promulgação e

eficácia das leis devem contar com uma legitimidade popular, no sentido de que devem estar

de acordo com os anseios sociais com vistas à resolução de problemáticas em favor do povo,

que é o verdadeiro criador e destinatário final das normas jurídicas.

Com efeito, a atividade estatal e a própria democracia estariam viciadas se não se

prestassem a garantir os direitos fundamentais positivados na Magna Carta, devendo estar se a

seu objetivo precípuo. Aduz Silva (2012, p. 178):

13

Silva (2012, p. 126) a define como “um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de

ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo”.

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A expressão direitos fundamentais do homem, como também já deixamos delineado

com base em Pérez Luño, não significa esfera privada contraposta à atividade

pública, como simples limitação ao Estado ou autolimitação deste, mas limitação

imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela

dependem.

Em vista disso, embora tenha sido a democracia representativa um passo

importante rumo à legitimidade da atuação estatal, entende-se que esta não se presta, por si só,

a legitimar a governança estatal atualmente. Verificamos no Brasil, de fato, verdadeira crise

de representabilidade, na qual a confiança neste modelo se reduz cada vez mais em vista dos

acontecimentos fraudulentos e criminosos que são notícia diariamente.

Ressalte-se que a própria Magna Carta, já no longínquo ano de 1988, procurou

estabelecer instrumentos de verdadeira democracia participativa, prevendo institutos valiosos

como o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular para a formulação de projetos de lei. Tal

é sintoma inconteste da intenção, já naquela época, de conferir mais legitimidade estatal

através do estímulo à maior participação dos governados.

Em busca da evolução na democracia brasileira, urge agora estimular a prática da

mediação, conciliação e arbitragem também na área de contratos e atos públicos,

tradicionalmente regulados por uma imperatividade estatal que não tem mais razão de ser.

Contudo, tais práticas devem ser reguladas por lei, de modo a evitar ingerências indevidas e

práticas populares ilegítimas que afetam diretamente a Administração Pública, o que,

infelizmente, tem sido notícia nos últimos tempos no Brasil.

A democracia não pode ser usada como argumento para a prática de atos violentos

e ilegais em nome de uma pretensa participação popular na Administração Pública. Tal

participação aduzida deve ser tendente a expressar os valores de parte considerável da

sociedade, e não somente de determinada parcela ou ideologia.

Toma-se, como exemplo, a existência de grupos sociais surgidos pretensamente

como instrumentos para a participação popular e que, com base na prática democrática, vem

desafiando o Estado de Direito brasileiro de maneira inédita, sem que qualquer medida mais

séria seja tomada para punir e inibir os mencionados grupos.

Outrossim, tais entidades se revestem em um caráter paraestatal, uma vez que

estão atuando paralelamente ao Estado, buscando impor suas vontades a este através da força

sob uma pretensa legitimidade advinda do apoio da população.

É preciso combater tais práticas e estimular a utilização do diálogo e do consenso

na Administração Pública, com vistas a uma participação popular legítima. Entende-se que a

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utilização da arbitragem em contratos administrativos tende a fortalecer o Estado de Direito, a

democracia e a cidadania.

Sobremaneira, é imperioso deixar que o particular exerça a sua cidadania14

, e esta

deve ser exercida através da liberdade dada pelo Estado de atuação dentro dos parâmetros da

legalidade. O Estado brasileiro, tradicionalmente garantista e paternalista, deve dar espaço

para que o particular exerça suas próprias escolhas, dentre elas a possibilidade de utilização de

arbitragem, mesmo nos contratos administrativos, uma vez que tal prática beneficia a

Administração Pública e permite ao particular o exercício de sua autonomia da vontade.

14

Definida por Silva (2012, p. 346) como qualificação dos participantes do Estado, sendo atributo das pessoas

integradas na sociedade estatal, decorrente do direito de participar no governo e de ser ouvido pela

representação política.

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60

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante todo o exposto, infere-se, primeiramente, a necessidade de encarar a

Administração Pública sob uma nova ótica. Esta deve ser modernizada com vista aos novos

tempos, abandonando-se o modelo consagrado desde o século XVIII, baseado na

imperatividade e na imposição estatal.

Em vista disso, é preciso realizar uma reconstrução do princípio da supremacia do

interesse público sobre o privado, de modo que tais interesses, em uma sociedade moderna,

não restem contrapostos. O interesse público, conceito jurídico indeterminado por excelência,

deve ter seus contornos bem delineados com base nos direitos fundamentais positivados na

Magna Carta de 1988, notadamente quanto ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, o verdadeiro interesse público a ser perseguido pelo Poder Público é

aquele que busque a efetivação daqueles direitos através da correta aplicação da lei e do

direito, incidindo, aqui, os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e juridicidade.

Para a concretização da dignidade da pessoa humana, fim precípuo da

Administração Pública, é necessário abandonar a ideia de supremacia do interesse público

sobre o privado, uma vez que estes devem ser encarados sob uma ótica colaborativa, pois a

efetivação de tais direitos são interesses de ambas as partes.

Essa relação colaborativa entre o particular e o poder público, baseada na cultura

do diálogo e na mediação, é corolário do modelo de Administração Pública consensual, a qual

preconiza o uso de métodos consensuais de contratação e resolução de controvérsias em

detrimento de meios imperativos adotados pelo Estado.

Como instrumentos desse novo modelo de administrar, que chama o particular

para participar da gestão pública como colaborador, surgem novos modelos de contratos

administrativos, que relativizam as prerrogativas estatais tradicionalmente existentes em

negócios envolvendo o Estado. As parcerias público-privadas são exemplos claros do

reconhecimento de que o Estado também necessita do particular para o seu adequado

funcionamento, de modo a existir uma relação de interdependência entre ambos.

Em decorrência disso, as leis de regência das concessões de serviço público e das

parcerias público-privadas passaram a prever a possibilidade de adoção da arbitragem para

dirimir eventuais litígios decorrentes de direitos patrimoniais disponíveis, rompendo com a

obrigatoriedade de se recorrer ao Judiciário.

Tal método, outrossim, é o que mais se coaduna com os propósitos legítimos da

máquina estatal, pois fornece celeridade e eficiência à resolução das controvérsias e ajuda a

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manter a cordialidade entre os parceiros. Resta evidente, igualmente, que a utilização de

arbitragem para contratos administrativos é de larga tradição na cultura jurídica brasileira,

desde a resolução do leading case “Lage”, no qual o STF considerou válida a obrigatoriedade

de arbitragem para um ente estatal mediante a celebração de acordo.

Verifica-se, ainda, que a arbitragem é de grande valia para a Administração

Pública e deve ser estimulada sempre que a contenda se resumir a direitos patrimoniais

disponíveis, embora o rito da arbitragem mereça alguns reparos para ser utilizado em regime

de Direito Público, notadamente quanto ao sigilo característico daquele procedimento, que

poderia colidir com o princípio da publicidade colimado constitucionalmente.

Com efeito, a partir da identificação do interesse público primário como a

necessidade de garantir a correta aplicação do ordenamento jurídico e concretizar os direitos

fundamentais previstos constitucionalmente, a arbitragem revela-se como o método mais

adequado para ser utilizado pelos particulares e pelo Estado.

Ao longo do exposto, restam claros os inúmeros benefícios que a utilização da

arbitragem pelo Poder Público pode ensejar para todo o país. Nas searas ambiental e

fazendária, a consensualidade deve ser estimulada através da resolução de conflitos de

maneira amigável, com vistas a propiciar um meio ambiente equilibrado e dotar o Estado de

recursos suficientes para cumprir adequadamente com suas tarefas.

A arbitragem nos contratos administrativos funciona, ainda, como uma

sinalização positiva para o investidor privado, que se verá tentado a colaborar com a

Administração Pública através de investimento e mão-de-obra, contribuindo para o

crescimento econômico do país sem comprometer os recursos limitados do Estado.

Vale destacar, ainda, o fortalecimento do Estado Democrático de Direito através

da maior participação do particular na gestão pública, conferindo maior eficiência e,

sobretudo, legitimidade às decisões tomadas pelo ente público, havendo ainda notória

facilitação ao acesso à justiça garantido constitucionalmente.

Conclui-se, portanto, que a utilização da arbitragem em contratos administrativos

referentes a direitos patrimoniais disponíveis é importante ferramenta para a configuração de

uma Administração Pública consensual e paritária, voltada para a efetivação do princípio da

dignidade da pessoa humana, mormente no tocante aos direitos fundamentais.

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