victor hugo e o melodrama no brasil

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  • VICTOR HUGO E O TEATRO ROMNTICO NO BRASIL

    Joo Roberto FARIA1

    O livro de A. Carneiro Leo, Victor Hugo no Brasil, publicado em 1960, pelaJos Olympio Editora, ainda uma referncia obrigatria para quem queira estu-dar o impacto que a obra do grande poeta, dramaturgo e romancista francscausou nos nossos escritores do sculo XIX. Impressiona o volume das tradu-es de seus poemas e romances, bem como a qualidade dos tradutores, entreeles Gonalves Dias, Machado de Assis e Artur Azevedo. E que dizer do grandenmero de poetas que se deixaram influenciar por sua dico, a comear pelonosso extraordinrio Castro Alves?

    No h dvidas quanto excelncia do livro de A. Carneiro Leo, no quediz respeito s informaes sobre o prestgio do Victor Hugo poeta e romancis-ta no meio literrio brasileiro. Mas o estudioso do nosso teatro, finda a leitura dolivro, percebe que o autor no se preocupou em avaliar como o dramaturgo foiaqui lido e encenado, nem em verificar que repercusses obteve a sua obra dra-mtica e seu pensamento teatral, expresso em vrios prefcios, notadamente ofamoso Prefcio do Cromwell.

    Pois este breve estudo tem o objetivo de realizar tal tarefa, demonstrandoque Victor Hugo no esteve de todo ausente em nossos palcos, que sua dramaturgiaserviu de modelo para alguns dos nossos dramaturgos e que seu pensamentoteatral foi matria de discusso no nosso perodo romntico.

    Carneiro Leo observa que comeou muito cedo, no Brasil, a atrao pelaobra de Victor Hugo. Em 1836, ele era comentado por Pereira da Silva nasVariedades Literrias (1960, p.37) e Gonalves de Magalhes escrevia o poemaNapoleo em Waterloo, inspirado em la Collonne e em LArc du Triomphe.Em 1841, ainda segundo Carneiro Leo, Maciel Monteiro traduzia Madame autourde Vous, poema nmero 24 de Les Feuilles dAutomne a primeira traduo aoque nos consta, feita, no Brasil, de produo de Victor Hugo(1960, p.47).

    1 Departamento de Letras Clssicas e Vernculas Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas USP 05508-900 So Paulo SP.

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  • Esta ltima informao, se verdadeira quando se fala de poesia, no o setemos em mente o teatro. A primeira traduo de produo de Victor Hugofoi muito provavelmente a do drama O Rei se diverte, encenado pelo grande atorromntico Joo Caetano, no Rio de Janeiro, em 1836. Mas antes de comentar-mos a recepo crtica desse drama, recuemos ainda mais no tempo para apreen-dermos duas menes ao escritor francs, antes mesmo do incio oficial doromantismo entre ns que se deu, como se sabe, com a criao da Niteri,Revista Brasiliense e a publicao dos Suspiros Poticos e Saudades, de Gonalves deMagalhes, em 1836.

    Trs anos antes, em So Paulo, os acadmicos do curso de Direito do Largode So Francisco criaram a Revista da Sociedade Filomtica, na qual publicavam seuspoemas e estudos literrios. Num longo texto assinado por Francisco BernardinoRibeiro, Justiniano Jos da Rocha e Antonio Augusto de Queiroga, intituladoEnsaios sobre a Tragdia, deparamos talvez com a primeira citao do drama-turgo Victor Hugo no Brasil. Os autores, porm, o recriminam, por ter seguidoos passos dos pr-romnticos alemes e de Shakespeare, na elaborao dos seusdramas. Em 1833, os jovens estudantes de Direito so adeptos do Classicismo eesto completamente desatualizados em relao ao que se passa na Europa. Tudoindica que desconheciam as conquistas romnticas, pois no mencionam nem oPrefcio de Cromwell, de 1827, nem a rumorosa Batalha do Hernani, ocorridano palco e na platia da Comdie Franaise em 1830. Seus argumentos em favor dosclssicos so quase totalmente baseados no Cours de Littrature de La Harpe ebuscam o tempo todo contrapor a excelncia das tragdias de Corneille, Racinee Voltaire s obras defeituosas de escritores como Lope de Veja, Caldern dela Barca, Shakespeare, Lessing e Schiller, entre outros. Para eles, a no obedincias regras clssicas era um pecado capital, responsvel, por exemplo, pelo teatromonstruoso dos alemes. Pois exatamente no captulo dedicado ao teatroalemo que os autores censuram Victor Hugo e Alexandre Dumas. Ambos teri-am abandonado os preceitos clssicos para abraar as extravagncias germnicas,divulgadas na Frana por Madame de Stal e Benjamin Constant, como se lnesta passagem:

    A nova escola recebeu de Schiller o nome de romntica, com o qual imprimiua sua Joana dArc. O corpo de delito deste gnero ridculo se acha nessa mesmaAlemanha de Mme. de Stal, onde se pretende encontrar as provas de sua defesa.Schiller, Goethe, Werner, so os campees a que ela d maiores encmios. Emdespeito dos bons princpios a sanha revolucionria tambm tem lavrado pelaFrana; Victor Hugo e Alexandre Domat [sic] so os corifeus da nova escola; mas

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  • o continuado ridculo de suas composies tem coberto os princpios clssicos, eseus propugnadores de lauris imarcescveis (FARIA, 2001, p.298)2.

    Tudo indica que os acadmicos brasileiros, nascidos por volta de 1810, ti-nham formao clssica e poucas informaes sobre o Romantismo, como de-nuncia a grafia errada do nome de Alexandre Dumas. Provavelmente no conhe-ciam nenhum dos dramas dos dois dramaturgos, quando escreveram esse inte-ressante estudo que trouxe para o Brasil, ainda que na contramo da Histria, apolmica entre clssicos e romnticos, que durante dcadas havia mobilizado osprincipais escritores europeus.

    Em janeiro de 1834, outro documento revelava como o Romantismo emgeral e Victor Hugo em particular eram ainda desconhecidos no Brasil. Gonal-ves de Magalhes havia viajado para a Frana e de Paris escreve uma carta aomestre e amigo Frei Francisco de Monte Alverne, para descrever o espritoliterrio que hoje domina este povo to amigo do novo. Vale a pena ler a passa-gem em que fala do teatro, um tanto assustado com as ousadias dos dramasromnticos de Victor Hugo e Alexandre Dumas:

    Os poetas esto aqui empenhados em explorar a mina da meia-idade, fatiga-dos com as idias antigas, e no podendo quase marchar na estrada de Racine eCorneille e Voltaire, eles calcam todas as leis da unidade to recomendadas pelosantigos; as novas tragdias no tm lugar fixo, nem tempo marcado, podem durarum ano e mais; o carter dessas composies muitas vezes horrvel, pavoroso,feroz, melanclico, frentico e religioso. Os assassnios, os envenenamentos, osincestos so prodigalizados s mos largas, mas nem por isso deixam de ter peda-os sublimes. Os principais trgicos so De Laragotine [sic]3, Alexandre Dumas,Victor Hugo. Esses poetas chamam-se romnticos; eu tenho visto representar asprincipais dessas peas(PORTO-ALEGRE & MAGALHES, 1964, p.16-7).

    Se analisarmos com cuidado essas palavras, veremos que o olhar de Gonal-ves de Magalhes o de quem est diante de coisas novas e desconhecidas. Ele sesurpreende com a forma livre do drama, que, ao contrrio da tragdia, no pre-cisa obedecer regra das unidades de tempo e lugar. E se espanta com os aspec-tos grotescos e os assuntos controversos apresentados em cena. Observe-se tam-

    2 A maior parte dos textos tericos e crticos citados no presente estudo encontra-se em: Faria, J. R.Idias Teatrais, 2001.

    3 Leia-se Delavigne. Gonalves de Magalhes refere-se a Casimir Delavigne, dramaturgo que tentouconciliar as formas do drama e da tragdia em sua peas. A grafia errada, neste caso, da responsa-bilidade do organizador do volume, Roberto Lopes, que lidou com originais em pssimo estado deconservao. Em nota de rodap, ele revela que a passagem em que aparece o nome de Delavigneestava em parte carcomida por traas.

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  • bm que o seu desconhecimento do romantismo fica claro ao referir-se aosdramas como tragdias e aos dramaturgos como trgicos. Por fim, a prpriaconstruo das frases finais revela que ele nada sabia do que est relatando aMonte Alverne.

    Mas Gonalves de Magalhes permanecer at 1837 na Europa e ter papelimportante na instaurao do romantismo brasileiro. Quanto ao teatro, veremosmais frente se o contato com os dramas romnticos foram ou no importantespara ele, quando escreveu as peas Antonio Jos ou O Poeta e a Inquisio e Olgiato,representadas no Rio de Janeiro em 1838 e 1839, respectivamente. Por ora, vol-temos a 1836, ano em que Joo Caetano encenou O Rei se diverte.

    So poucos os documentos disponveis para uma apreciao exata da re-cepo crtica primeira pea de Victor Hugo representada no Brasil. Mas nojornal O Cronista, Justiniano Jos da Rocha, um dos trs signatrios do textopublicado na Revista da Sociedade Filomtica, condenou com veemncia o segundodrama romntico posto em cena por Joo Caetano. O primeiro havia sido ATorre de Nesle, de Alexandre Dumas, em setembro de 1836. E o crtico fora umtanto condescendente com a novidade. Mas dois meses depois, ao ver em cena ORei se diverte, explodiu:

    Ainda crimes, ainda horrores! Ainda o Teatro Constitucional no abandonouseu sistema de depredaes das peas da escola romntica! Depois dos incestuo-sos deboches da Torre de Nesle, quantos crimes no tem reproduzido a nossa cena!Que horrvel esperdcio de sangue, e de atentados. Agora do-nos o divertimentode um rei; esse rei o vencedor de Marignan, o protetor das letras, o cavaleirodiscpulo de Bayard: esse rei Francisco 1o , Francisco 1o que s tinha dois cultos,o da honra e o do amor. Espervamos portanto uma pea agradvel, espervamosver o rei cavaleiro em toda a sua glria, em todo o seu esplendor; enganamo-nos:o Francisco 1o do drama no o Francisco 1o da histria, um homem sem pejo,sem brio, que desce s tabernas, que se entrega a meretrizes(FARIA, 2001, p.319).

    Justiniano resume longamente em seguida o enredo do drama horrvel deVictor Hugo e continua suas restries:

    Mas para que tantos crimes? que lio moral deve deles resultar? Francisco 1o

    que o drama nos pinta to infame, fica triunfante, e pronto para voar a novosamores; nem ao menos com um instante de remorsos pagou seus crimes. As vti-mas so todas inocentes, St. Valliers, ancio respeitvel, a virtuosa Branca,amante to terna. Esses viciosos cortesos ficam ilesos, esse rei, digno chefe deles,fica impune; apenas Triboulet recebe o justo castigo de seus escrnios, de seussarcasmos. Onde pois a moralidade da pea? (p.319)

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  • Como explicar a recepo negativa ao drama de Victor Hugo? A respostaest no prprio julgamento de Justiniano Jos da Rocha. Ele l O Rei se diverte,no como um drama, mas como um melodrama que desobedece s regras dognero. Joo Caetano vinha encenando melodramas como Trinta anos ou A vidade um jogador e Os seis degraus do crime, nos quais abundam as lies morais, arecompensa aos virtuosos, a punio dos maus. Ao condenar O Rei se divertepor no ter essas caractersticas, insistindo sobretudo no carter imoral dodrama, nosso primeiro crtico teatral revela desconhecer as diferenas entre osdois tipos de pea.

    Difcil saber se Joo Caetano levou em conta os comentrios de Justiniano.De concreto, sabemos que ele deu preferncia aos melodramas em sua carreiraartstica e que montou apenas mais um drama de Victor Hugo, o Hernani. Emcompensao, encenou nove dramas de Alexandre Dumas, o que talvez se expli-que pela maior proximidade desse autor com o melodrama, como acredita Dciode Almeida Prado (1972, p.38-41). De qualquer modo, no deixa de ser curiosoregistrar que no ano em que se inicia o Romantismo no Brasil, os pressupostosdo drama romntico ainda so desconhecidos pelos nossos intelectuais, e que setenha exigido de O Rei se diverte o que no existe como preocupao central nessetipo de pea: lies morais.

    A maior contradio, porm, ainda estava por vir. Atribui-se a Gonalves deMagalhes o incio do teatro romntico brasileiro, com a encenao de AntonioJos ou O poeta e a Inquisio, em maro de 1838. Pois basta a leitura dessa pea e daoutra que escreveu, Olgiato, bem como dos seus prefcios, para percebermos adistncia que ele mesmo se imps em relao ao Romantismo. Em primeirolugar, Magalhes no escreveu dois dramas, mas sim duas tragdias, opo que oaproxima do Classicismo. Depois, todas as suas explicaes para demonstrar quebuscou o meio-termo entre os dois movimentos literrios, semelhana do dra-maturgo francs Casimir Delavigne, no so convincentes. Nos dois pratos dabalana, os argumentos em favor das lies dos clssicos pesam mais.

    Faamos uma breve anlise do prlogo a Olgiato. L esto duas citaes doPrefcio de Cromwell, o que demonstra que Magalhes conhecia os pressupos-tos tericos do drama romntico, segundo Victor Hugo, mas no os aceitava. Aprimeira evidncia disso a discusso em torno do personagem Galeazzo Sforza,que no aparece em cena, apesar do enredo da pea girar em torno de umaconspirao para mat-lo. Eis a explicao do autor para no expor aos olhos doespectador a figura desse duque milans, um tirano cruel, imoral e devasso:

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  • Se eu introduzisse Galleazo em cena, ver-me-ia forado, para conformar-meao gosto do tempo, a dar-lhe o seu torpe e infame carter; o que, alm de vexar oator que o interpretasse, incomodaria os espectadores, e ofenderia a moral pblica[...]. Que linguagem e aes daria eu a um tirano, que se no fartava de devassido,enquanto no saboreava a desesperao dos pais e dos maridos, por ele converti-dos em ministros e testemunhas de sua prpria desonra? (FARIA, 2001, p.334)

    claro que ao no colocar Galleazo em cena, Magalhes evita o grotesco,elemento imprescindvel ao drama romntico, conforme se l no Prefcio deCromwell, e no se arrisca a criar um personagem que poderia ser consideradoimoral, semelhana dos personagens devassos que povoam as peas de VictorHugo e Alexandre Dumas. Influenciado pelo filsofo Victor Cousin, para quema arte no deve ter outro fim seno o belo moral, Magalhes coloca-se contraos apaixonados da realidade natural, trazendo para sua defesa o prprio VictorHugo e citando esta passagem do Prefcio de Cromwell em que a realidadesegundo a arte assim diferenciada da realidade segundo a natureza: H incon-seqncia (tourderie) em confundi-las, como fazem alguns partidistas do Roman-tismo pouco adiantados. A verdade da arte jamais poder ser, como pretendemmuitos, a realidade absoluta (FARIA, 2001, p.334).

    Na verdade, o argumento no esconde a verdadeira posio do escritorbrasileiro em relao idia central do drama romntico, ou seja, a sua combina-o do sublime com o grotesco, do bufo com o terrvel, do belo com o disfor-me, da comdia com a tragdia, aquilo, enfim, que Victor Hugo chamava deharmonia dos contrrios. Por isso, lemos adiante, no prlogo a Olgiato, a se-guinte confisso:

    No posso de modo algum acostumar-me com os horrores da moderna esco-la; com essas monstruosidades de caracteres preternaturais, de paixes desenfrea-das e ignbeis, de amores licenciosos, de linguagem requintada, fora de quererser natural; enfim, com essa multido de personagens e de aparatosos coups dethtre, como dizem os franceses, que estragam a arte e o gosto, e convertem acena em uma bacanal, em uma orgia da imaginao, sem fim algum moral, antesem seu dano (FARIA, 2001, p.335).

    A est o princpio clssico do utilitarismo moral da arte, ao lado da conde-nao de personagens e assuntos considerados imorais, bem como da prpriaimaginao romntica. No surpreende que no passo seguinte Magalhes censu-re outra passagem do Prefcio de Cromwell, contrapondo-se idia de que opoeta deva procurar no o belo, mas o caracterstico. A seu ver, isso reduziria apoesia a um daguerretipo de palavras. E seria preciso lembrar a Victor Hugo,

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  • que o caracterstico serve poesia, mas no a constitui, e que outra a suamisso(FARIA, 2001, p.336).

    O que parece sustentar em grande parte os argumentos de Magalhes a suacrena na finalidade moralizadora do teatro. A condenao dos dramas romnti-cos como imorais j acontecera na Frana e a reao dos brasileiros no seriadiferente. J vimos o texto de Justiniano Jos da Rocha sobre O Rei se diverte, peaem que uma das cenas Branca violentada nos bastidores pelo rei consideradade uma imoralidade asquerosa. Vejamos agora como dois outros dramas de VictorHugo, Marie Tudor e Ruy Blas, foram julgados pelo Conservatrio Dramtico Brasi-leiro, em 1844 e 1845, ou seja, no auge do nosso Romantismo. Todas as peasprecisavam da aprovao do Conservatrio para serem encenadas. Mas o censorJos Clemente Pereira assim se manifestou sobre Marie Tudor:

    O drama Maria Tudor apresentando o deplorvel espetculo de uma Princesasoberana, digna de censura pelos escndalos de sua moral pervertida, como mu-lher e como Rainha, no pode deixar de deprimir, e muito, o prestgio da Realeza,se chegar a representar-se. E como, segundo meus princpios, s devam aparecerem cena os atos hericos, morais e virtuosos dos soberanos, capazes de inspirarnos Povos sentimentos de amor, venerao e respeito, no posso convir em que seautorize a representao do referido Drama, e muito principalmente no Teatro deS. Pedro de Alcntara, honrado freqentes vezes, e sem prvia participao, com aAugusta Presena da Famlia Imperial. (CARNEIRO LEO, 1960, P.79-80)

    Leiamos agora o parecer sobre Ruy Blas, que foi elaborado a seis mos, porum jri dramtico composto por Jos Rufino, Bernardino Jos da Silva e Joa-quim Norberto da Silva:

    Formam pois a base deste drama os amores da Rainha com um vil lacaio; epor certo no ser por meu voto que o Conservatrio Dramtico Brasileiro per-mitir a apresentao deste espetculo ao pblico da Capital da nica monarquiada Amrica, maxime quando notrio o prximo parentesco que une SS, MM, oImperador e a Imperatriz do Brasil Famlia Real de Espanha. Sou de parecer quese negue a licena pedida... (KHDE, 1981, p. 68-69)

    O que chama a ateno em ambos os pareceres a preocupao em preser-var a Famlia Imperial de qualquer constrangimento. Mas no parecer sobre MarieTudor h um dado que no pode passar despercebido. O censor condena o dra-ma com argumentos parecidos com os de Justiniano Jos da Rocha. Ou seja,tambm ele aprecia o alcance edificante do melodrama, com seus personagensbons e maus claramente definidos.

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  • A hegemonia do melodrama na cena brasileira dos tempos romnticos, gra-as a Joo Caetano, talvez explique algumas das dificuldades enfrentadas pelosdramas romnticos para se fazerem aceitos. Gnero que simplifica os sentimen-tos, que v o ser humano pela tica maniquesta e que ao final pune os culpadose premia os virtuosos, o melodrama conquistou enorme prestgio popular. J odrama romntico, com maior preocupao literria, com personagens comple-xos, muitas vezes trazendo dentro de si o bem e o mal, e com temas controver-tidos, como o incesto e o adultrio, enfrentou a ira dos moralistas e, no conquis-tando a cena, no teve adeptos entre 1836 e 1845. Toda a nossa produo dram-tica nesse perodo se divide entre as formas da tragdia neoclssica e do melodra-ma, como se pode perceber pela leitura das peas de Lus Antnio Burgain eMartins Pena, que tentou o gnero srio antes de se tornar o extraordinriocomedigrafo que conhecemos. No entanto, entre alguns intelectuais, parecehaver uma aceitao maior de Victor Hugo. Em 1844, no artigo Da Arte Dra-mtica no Brasil, publicado na revista romntica Minerva Brasiliense, mile Adet,intelectual francs radicado no Rio de Janeiro, recomenda a uma companhiafrancesa que dava espetculos na cidade a encenao de Les Burgraves, informan-do ainda que essa mesma companhia havia representado de modo assazsatisfatrio o drama Ruy Blas. Na mesma Minerva Brasiliense, um ensaio semassinatura, no qual se fazia a biografia de Francisco Bernardino Ribeiro, mortoprecocemente, aos vinte e dois anos de idade, em 1837, o autor lamenta que aoescrever o longo estudo sobre a tragdia para a Revista da Sociedade Filomtica,junto com dois colegas, Bernardino Ribeiro tenha criticado tanto os escritoresromnticos, influenciado que estava pela moribunda escola dos clssicos fran-ceses ... em vsperas do triunfo da fecunda escola de Hugo e de Dumas( FA-RIA, 2001, p.44).

    No estava longe no tempo a primeira vez que Victor Hugo teria sua obradramtica reconhecida, valorizada e devidamente compreendida no Brasil. Em1845, Gonalves Dias volta da Europa com dois dramas entre os seus papis:Patkull e Beatriz Cenci. No ano seguinte, no Rio de Janeiro escreve a primeiraobra-prima do teatro brasileiro: o drama Leonor de Mendona. Finalmente estamosdiante de dramas, no de melodramas. Gonalves Dias conhecia a obra deShakespeare, modelo maior de Victor Hugo, como conhecia o teatro alemo e ofrancs e muito provavelmente o Prefcio de Cromwell, como parece claronesta passagem do prlogo que escreveu para Leonor de Mendona, na qual, alis,cita o drama Lucrecia Borgia, de Victor Hugo:

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  • No comeo do teatro moderno, havia apenas duas obras possveis: a tragdia,que cobria as suas espduas com manto de prpura, e a comdia que pisava opalco cnico com os seus sapatos burgueses; era assim, porque a tragdia andavapelos grandes, enquanto que a comdia se entretinha com os pequenos, e aindaassim com o que nestes havia de mais cmico e risvel. Hoje, a comdia e a trag-dia fundiram-se numa s criao. E de feito, se atentamente examinarmos as pro-dues de hoje, que chamamos dramas, notaremos que ainda na mais lricas emajestosas h, de vez em quando, certa quebra de gravidade, sem a qual no htragdia. Notaremos tambm que essa quebra provm de ordinrio de uma cenada vida domstica, o que verdadeiramente pertence comdia. Aquela cena, porexemplo, do segundo ato de Lucrcia Brgia entre Lucrcia e o duque de Ferrara, um bosquejo da vida ntima, um fato que, mais ou menos modificado, tem lugarem toda a parte no conchego familiar; uma cena que pertence comdia, porqueno da sua essncia fazer rir. Descreva ela fielmente os costumes, e a arte ficarsatisfeita. (FARIA, 2001, p.350)

    V o leitor ao terceiro quadro do segundo ato de Leonor de Mendona: aliesto as cenas da vida domstica, em torno da famlia do jovem Alcoforado,quebrando a gravidade do restante do drama. Gonalves Dias tinha pleno dom-nio dos conceitos bsicos do romantismo teatral. Em suas peas esto presentesvrios aspectos formais e conteudsticos especficos do drama, tais como a foraavassaladora da paixo; a matria dramtica buscada no passado, mas nas histri-as nacionais, no na Antigidade greco-latina; a abordagem de temas controver-tidos, como o incesto, e a conseqente despreocupao com a finalidade moralou didtica da arte; a presena simultnea de cenas domsticas tpicas da comdiae de cenas violentas comuns na tragdia; e a distenso da ao dramtica notempo e no espao. Em relao s idias de Victor Hugo para o drama, presentesno Prefcio de Cromwell, s no aceitou o uso do verso. Acreditava que omelhor era fazer como Shakespeare: usar alternadamente o verso e a prosa:Quando ele quer exprimir uma coisa vulgar ou uma chocarrice, usa da prosa;quando quer exprimir um sentimento nobre ou uma exaltao do esprito, usado verso (FARIA, 2001, p.350).

    Gonalves Dias escreveu Leonor de Mendona em prosa, mas so muitos osmomentos de alta poesia no drama. As trs peas que tinha em mos poderiamter dado um novo impulso ao teatro romntico brasileiros, se tivessem sido en-cenadas em 1846 ou 1847. Mas Beatriz Cenci foi proibida pelo ConservatrioDramtico, acusada de imoral; Leonor de Mendona no foi aceita por Joo Caeta-no, provavelmente porque no era um melodrama; e Patkull ficou guardada emalguma gaveta.

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  • Depois de Gonalves Dias no tivemos nenhum dramaturgo afinado comos dramas romnticos de Hugo e Dumas, escrevendo regularmente para a nossacena. Alm disso, tambm na Frana o romantismo teatral chegava ao fim, comos sucessos seguidos dos dramaturgos da cole du bon sens Franois Ponsard emile Augier, em sua primeira fase - e do vaudeville de Scribe. No Brasil, o gostopelo melodrama era alimentado por Joo Caetano, que s a partir de 1855 teveopositores de peso, no Teatro Ginsio Dramtico. A dramaturgia brasileira quenasceria em torno desse teatro j buscaria outros modelos franceses, maisatualizados: a comdia realista de Alexandre Dumas Filho e mile Augier, entreoutros.

    Nesse contexto, Victor Hugo teria literalmente sumido de cena, no fosseuma ou outra encenao espordica de seus dramas, como a de Angelo, em janei-ro de 1865, elogiosamente comentada por Machado de Assis (1950, p.310-1). Omesmo Machado que, um ano depois, lamentando a decadncia do teatro decunho literrio escrever: Molire, Victor Hugo, Dumas Filho, tudo passou demoda; no h preferncias nem simpatias. O que h um resto de hbito queainda rene nas platias alguns espectadores(FARIA, 2001, p.557).

    Apesar dessas palavras, o palco nacional ainda veria uma ltima produodramtica motivada pela extrema admirao que um dos nossos poetas romnti-cos dedicava a Victor Hugo. Tardiamente, para no dizer anacronicamente, em1867, quando o romantismo e o realismo j haviam esgotado suas possibilidadesno teatro, Castro Alves escreve um drama inteiramente hugoano. Gonzaga ou ARevoluo de Minas apresenta a mesma exuberncia de linguagem que encontra-mos em seus poemas condoreiros. Alencar, quando o leu, percebeu de imediatoo parentesco: O Sr. Castro Alves um discpulo de Victor Hugo, na arquiteturado drama, como no colorido da idia. O poema pertence mesma escola doideal; o estilo tem os mesmos toques brilhantes (FARIA, 2001, p.409).

    Tambm Machado de Assis apontou as semelhanas:

    A musa do Sr. Castro Alves tem feio prpria. Se se adivinha que a sua escola a de Victor Hugo, no porque o copie servilmente, mas porque uma ndoleirm levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditaes. No lhe apra-zem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivase os traos vigorosos da ode (...) O poeta explica o dramaturgo. Reaparecem nodrama as qualidades do verso; as metforas enchem o perodo; sente-se de quandoem quando o arrojo da ode. Sfocles pede as asas a Pndaro. Parece ao poeta queo tablado pequeno; rompe o cu de lona e arroja-se ao espao livre e azul.(FARIA, 2001, p.415-6).

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  • Se em Castro Alves, nosso ltimo grande escritor romntico, o dilogo comVictor Hugo salta aos olhos, a verdade que no terreno da dramaturgia o ro-mantismo brasileiro no soube aclimatar as idias do autor de Marion Delorme.Como vimos, nos anos em que a forma do drama romntico era hegemnica naFrana, nossos primeiros crticos e dramaturgos preferiram ou o melodrama oua tragdia neoclssica como modelos. Depois, vieram as proibies de MarieTudor e de Ruy Blas pelo Conservatrio Dramtico, dificultando ainda mais adifuso das obras dramticas do escritor no Brasil. Quando Gonalves Dias es-creveu os seus dramas, a partir de 1845, o prprio Victor Hugo havia j desistidodo gnero dramtico. E o palco carioca, nessa altura sob o domnio do ator eempresrio Joo Caetano, acolheu preferencialmente o melodrama, deixando delado os dramas do nosso grande poeta.

    Todos esses fatos somados explicam por que a presena de Victor Hugo nacena brasileira no foi to marcante como poderia ter sido. E talvez expliquemtambm, se no talmente, pelo menos em parte, por que o nosso romantismoteatral no se constituiu num movimento orgnico, unificado em torno dos prin-cpios estticos que definiam, na poca, o que era o drama romntico.

    Referncias

    ASSIS, M. de. Crnicas. Rio de Janeiro. Jackson, 1950.

    CARNEIRO LEO, A. Victor Hugo no Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960.

    FARIA, J. R. Idias teatrais: o sculo XIX no Brasil. So Paulo: Perspectiva, 2001.

    KHEDE, S. S. Censores de pincen e gravata. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.

    PORTO ALEGRE, A; MAGALHES, G. de. Cartas a Monte Alverne. So Paulo: Con-selho Estadual de Cultura, 1964.

    PRADO, D. de A. Joo Caetano. So Paulo: Perspectiva, 1972.

    Resumo: Breve estudo no qual se demonstra que a dramaturgia de Victor Hugoserviu de modelo para alguns dramaturgos brasileiros e que suas idias sobre teatroforam matria de discusso em nosso perodo romntico.

    Palavras-chave: Victor Hugo; Romantismo; dramaturgia; teatro do Romantismo brasileiro.

    Victor Hugo e o teatro romntico no Brasil

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  • Abstract: The object of this essay is to show that Victor Hugos plays are consideredexamples for some of the Brazilian dramatists, and his ideas in relation to the theaterare discussed in our period of romanticism.

    Keywords: Victor Hugo; Romanticism; Brazilian theater of Romanticism

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