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VITIMIZAÇÃO E FACILITAÇÕES BUROCRÁTICO-CULTURAIS NOS
CURSOS DE HISTÓRIA E PEDAGOGIA – RELATO DE EXPERIÊNCIA
SOUZA, Iael de.
UFPI – Universidade Federal do Piauí
e-mail: [email protected]
I. Introdução
Pesquisas realizadas sobre o ingresso dos segmentos populares no ensino
superior demonstram que os cursos de licenciatura são os mais procurados. Dentre eles
alguns se destacam, como o de história e pedagogia. A razão principal apontada é a
concorrência por vagas e a maior probabilidade de aprovação, possibilitando adentrar ao
ensino superior e obter um diploma universitário.
Após onze anos de licenciatura no ensino superior, é possível constatar e
comprovar a veracidade desses estudos. Porém, um fato tem chamado nossa atenção,
instando-nos à reflexão e análise devido sua constância: a questão da vitimização e
apelo às facilitações burocrático-culturais pelos discentes do curso de história e
pedagogia, com destaque para o segundo, ainda que varie a intensidade de sua
manifestação pela composição das turmas e trajetória de socialização individual anterior
à escolar, além da internalizada pelo processo de escolarização de cada um,
determinando, em larga escala, a intensidade dos conflitos e tensões que serão
produzidos nas aulas, no processo ensino-aprendizagem e na relação professor-
estudante, estudante-professor.
O campus Senador Helvídio Nunes de Barros, da Universidade Federal do Piauí,
localizado na cidade de Picos, sendo nosso local atual de trabalho, vem servindo como
campo de observação e constatação, além de laboratório para reflexão e análise,
ilustrando de forma exemplar o que vem sendo experienciado na práxis cotidiana.
Entretanto, é importante frisar que o fato não se restringe apenas a esse campus,
reproduzindo-se em outros campi de outros estados e cidades brasileiras, conforme
depoimentos de colegas que ministram disciplinas nesses locais, principalmente no
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curso de pedagogia1. As pesquisas e estudos realizados por outros autores nos dão
elementos que, refletidos e analisados em suas múltiplas determinações, nos permitem
construir as mediações necessárias para compreender algumas das razões que permitem
e lamentavelmente sustentam e reproduzem esses comportamentos e atitudes.
É o que nos propomos fazer nesse artigo através da reflexão e análise da nossa
práxis cotidiana enquanto professora dos cursos de história e pedagogia do campus
Senador Helvídio Nunes de Barros, da Universidade Federal do Piauí, da cidade de
Picos, utilizando-o como instrumento de denúncia e também procurando sugerir e
apontar formas de enfrentamento à vitimização e às facilitações burocrático-culturais,
embasados no materialismo histórico-dialético.
II. Os segmentos populares e a “escolha” dos cursos no ensino superior
Através das pesquisas de Brito (et. al. 2008), Costa e Cunha (2007), Lahire
(1997), Pavão (2007), Piotto (2008, 2011), Portes (2000), Rego (2002), Vianna (2000) e
Zago (2006), constata-se que a escolha dos cursos no ensino superior pelos segmentos
populares tem como fundamento a) as delimitações e circunstâncias econômico-sociais
de classe, ou seja, o lugar ocupado (ou ainda não ocupado, pelo desemprego) na divisão
social do trabalho e, por consequência, à própria classe a que pertence, limitando as
possibilidades de escolha, ainda que relativamente a tenham; b) o histórico familiar, que
serve como referência para medir a longevidade escolar, por um lado, como também de
motivação para a construção de uma trajetória diferenciada, destoando do restante da
família, sendo o primeiro(a) a adentrar no ensino superior, motivo de orgulho e
distinção social, além de alimentar a esperança, ainda que ilusória, de mobilidade social;
dentre outros.
1 O REUNE (Reestruturação e Expansão do Ensino Superior) e o SISU (Sistema de Seleção Unificada)
são programas políticos do governo federal que têm por objetivo, segundo seus porta-vozes, democratizar
o ensino superior, garantindo o acesso dos segmentos das camadas populares a esse patamar de ensino.
Porém, como bem demonstram Lucas e Leher (2001); Barreto e Leher (2008); Gentili e Silva (2010);
Jimenez (2004); Lombardi, Saviani e Sanfelice (2005), trata-se dos rearranjos da reestruturação produtiva
do capital e sua política-econômica neoliberal para manutenção do controle do social, alimentando as
ilusões de redenção, melhoria de vida e participação política-econômica-social dos indivíduos através da
educação.
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Entretanto, naquilo que nos interessa destacar, os autores demonstram que os
segmentos populares utilizam como estratégia de ingresso a opção pelos cursos menos
disputados do vestibular, ou seja, aqueles que se concentram nas ciências humanas.
Interessante os dados colhidos por Pavão (2007, p. 65 e 66. Os parênteses são nossos.)
em entrevista com estudantes do curso de Pedagogia e Serviço Social e as conclusões a
que chega, dizendo que
mais do que ser pedagoga ou assistente social, elas desejavam fazer
faculdade, ‘ser universitárias’, construir essa identidade. As histórias
revelam, em geral, casos de grande frustração. A opção por Pedagogia
ou Serviço Social é, muitas vezes, a última opção, a última tentativa,
depois de várias investidas frustradas de ingresso na universidade.
(Com uma ou outra exceção), todas queriam fazer outros cursos,
tinham outras ‘vocações’.
No caso dos estudantes do curso de História do Campus Senador Helvídio
Nunes de Barros, de acordo com o questionamento realizado em sala para todas as
turmas de segundo semestre desde 2010, de maneira geral, de uma sala de 45 alunos,
cerca de 30 gostariam de fazer Direito como primeira opção, mas como não obtêm a
pontuação necessária, acabam ficando com a segunda, que é o curso de História. Em
outras palavras, cerca de 66% dos estudantes estão cursando história porque é a única
forma de adentrar e cursar o ensino superior. Essa porcentagem varia semestralmente,
mas, mesmo assim, é significativo o número de alunos que gostaria de fazer outro curso,
mas acaba se matriculando no de História. O mesmo ocorre com o curso de Pedagogia.
O fato ilustra de maneira exemplar o que estamos afirmando em relação às razões das
“escolhas” dos cursos no ensino superior pelos segmentos populares.
Pavão (2007, p. 70) também menciona que ao questionar os estudantes de
pedagogia sobre as motivações em relação à escolha do curso, “16% avaliaram que não
passariam para um curso mais disputado”. Vemos, portanto, que, no geral, a escolha não
se realiza mediante a consciência do por que e para que fazer, de projeto político-social,
de compromisso e comprometimento com determinada visão de mundo e de homem, ou
melhor, de qual mundo se trata e de que tipo de homem ele necessita, o que seria
pressuposto e condição para os cursos de licenciatura, como os de história e pedagogia.
Esse é um dos fatores, dentre outros, que pode contribuir para compreendermos o atual
estado da educação.
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Porém, há exceções, ainda que não possamos nos guiar e pautar por elas, como o
caso de um rapaz citado por Piotto (2008). Trabalhava como garçom e estudava nos
horários possíveis e certamente em locais inusitados (filas bancárias, banheiro, espera
em consultórios, itinerário de ônibus, trem, metrô, etc.), cujo sonho era fazer Psicologia
na USP. Prestou onze vestibulares, em cinco anos, sempre tendo o curso de Psicologia
como primeira opção, obtendo sucesso e ingressando no ensino superior no último dos
cinco anos de tentativa. Recebeu congratulações dos fregueses conhecidos por ter
conseguido passar numa universidade tão concorrida e reconhecida. O que denota o
prestígio e a questão de status social envolvidos nessa escolha e, por outro lado, como
os seguimentos populares precisam de mais tempo, paciência, esforço e dedicação, ou
seja, reelencar de prioridades da vida, mudança de rotina, aprender a estudar e a
desenvolver disciplina para poder superar as deficiências, debilidades e lacunas do seu
processo de escolarização pregresso, como demonstra o caso desse rapaz que, a certa
altura, confessa que não sabia estudar e teve que aprender no decorrer desses anos de
tentativa de ingresso ao ensino superior.
Vemos, portanto, que as “escolhas”, salvo exceções, não são orientadas por
objetivos político-sociais conscientemente definidos e muito menos por aptidão e
habilidades em termos de inserção na divisão social do trabalho. As questões
socioeconômicas são as que fundam e fundamentam as opções dos candidatos e
concorrentes a estudantes.
III. Vitimização e facilitações burocráticos-culturais nos cursos de história e pedagogia
– diferenças peculiares e semelhanças
Fazer-se de vítima para abrandar as responsabilidades e poupar o trabalho que
não se quer ter é um recurso muito utilizado pelos segmentos populares. Indagados
sobre o que compreendem por estudo2, raramente têm ciência de que é, em certo
sentido, um trabalho, já que se trata de uma atividade produtiva que corresponde à
2 SOUZA, Iael de. Estudo, estudar, ser estudante no ensino superior – condições gerais imanentes e
contexto socioeconômico cultural das classes populares. (No prelo)
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produção de conhecimento sistematizado, elaborado, científico da prática social
humana, indo além do saber comum, do conhecimento prático-imediato-utilitário,
próprio à inserção e sobrevivência no mundo. A produção de conhecimento científico,
sistematizado, elaborado exige como condição pressuposta o esforço árduo, que impõe
sacrifícios pessoais em diversas dimensões da vida, além do ócio produtivo e da
disciplina.
Porém, a vitimização é uma tática e estratégia corriqueira de que se servem os
segmentos populares para obter as facilitações burocrático-culturais (burlar as regras, as
normas, os regulamentos e conseguir fazer com que os professores “fechem os olhos”,
fazendo “vistas grossa”, às deficiências, defasagens e lacunas do processo de
escolarização pregresso), algo que se acentua muito mais nos cursos de pedagogia do
que no de história, embora também ocorra nesse último. Não podemos deixar passar
esse dado desapercebido. Devemos nos indagar: por que isso ocorre? Vejamos.
Segundo o que pudemos constatar ao longo desses anos de magistério no ensino
superior lecionando em ambos os cursos, um dado que explica esse fenômeno é a
formação dos professores do curso de história e a formação dos professores do curso de
pedagogia. No curso de história, a maioria dos docentes é graduado em história e os
professores que ministram as disciplinas pedagógicas, como no caso do campus
Senador Helvídio Nunes de Barros, em Picos, são emprestados do curso de pedagogia,
onde há graduados em pedagogia, filosofia e ciências sociais, portanto, perspectivas
distintas sobre a concepção de educação, escola e ensino que refletem na didática e na
metodologia desses professores.
Geralmente, os professores pedagogos, isto é, graduados em pedagogia, salvo
raras exceções, acabam contribuindo e estimulando o processo de vitimização que
ocorre no curso de pedagogia. Uma das razões, que talvez nem seja consciente, está no
fato de que têm o costume de justificar e dar descontos às deficiências, defasagens e
lacunas de aprendizagem e conhecimentos que deveriam ser pressupostos devido às
mazelas, infortúnios, agruras e desgraças socioeconómicas, familiares, culturais vividos
mais intensa e frequentemente pelos segmentos populares, presentes massivamente nos
cursos de pedagogia. É comum ouvirmos dos colegas pedagogos as seguintes
expressões: “coitado do fulano, olha só o que aconteceu com ele! É preciso dar um
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desconto. Vou dar um jeito na situação dele”; “temos que levar em conta os problemas
que ele está passando, sua família é toda desestruturada”; e daí por diante.
Estamos de acordo que antes de qualquer coisa, lidamos com seres humanos e
temos de ter humanidade num mundo onde as relações são cada vez mais de
humanização desumanizada devido o estranhamento, a fetichização e a alienação que
perpassam as relações sociais e de produção capitalistas. Porém, lidamos com a
coletividade, com o social, e por mais que nos solidarizemos e compreendamos os
indivíduos que os produzem (a coletividade e o social), não podemos deixar de fazer o
que se deve e o que é necessário quando se tem consciência do que é a educação, já que
sua natureza essencial consiste
em propiciar ao indivíduo a apropriação de conhecimentos,
habilidades, valores, comportamentos, etc. que se constituem em
patrimônio acumulado e decantado ao longo da história da
humanidade, contribuindo, assim, para que o indivíduo se construa
como membro do gênero humano e se torne apto a reagir face ao novo
de um modo que contribua para a reprodução do ser social, que se
apresenta sempre sob uma determinada forma particular. (TONET,
2005, p. 222)
Talvez seja pela falta dessa clareza e do que ensinar, ou seja, transmitir para que
seja assimilado como condição para a reprodução da vida social e dos homens como
membros do gênero humano (e que nele se reconhecem), que muitos professores-
pedagogos se perdem na construção da relação professor-estudante, estudante-professor,
contribuindo para a confusão generalizada que se estabelece na cabeça do estudante e
nas relações ensino-aprendizagem. Não bastasse a complexidade das relações humanas,
ainda temos mais esse agravante. Não estamos aqui afirmando saber o que fazer, muito
menos como fazer, mas sim o que não deve ser feito para evitar desgastes, tensões,
conflitos nas relações ensino-aprendizagem e professor-estudante, estudante-professor.
O grande problema na área da educação e, principalmente, da pedagogia, são os
“modismos pedagógicos”, como alerta Saviani (2004, p. 179. Os parênteses são
nossos.). Como diz o autor:
a consciência pedagógica é bastante vulnerável às influências e flutua
de uma influência a outra, sem criar raízes, sem situar-se de modo
profundo no centro de preocupação dos educadores. E o centro de
preocupação dos educadores deveria ser a própria realidade
educacional. Parece-me que o fenômeno das flutuações da consciência
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pedagógica se caracteriza exatamente por isto: as influências vêm de
fora, de outras áreas que não propriamente a educação, e os
educadores aderem como leigos a essas influências. Assim, a
educação fica descentrada, é abordada apenas perifericamente e não se
vai à raiz da problemática educacional, (isto é, não verificam) em que
se assentam essas propostas e que tendências elas traduzem do ponto
de vista histórico, do ponto de vista da sociedade que engendra essas
diferentes modalidades.
Essa fragilidade está, em grande medida, na ausência de um embasamento
teórico contextualizado histórico-socialmente, como enfatiza Libâneo (2008, p. 67-72),
na questão do praticismo e imediatismo que contamina o saber e fazer docente, sob a
influência da retórica e lógica pós-moderna. Seu enfrentamento sério e eficaz só é
possível pela retomada dos fundamentos teórico-filosóficos da lógica sistêmica da
funcionalidade do modo de produção capitalista, embasando o fazer e saber professoral.
Retomando a questão da vitimização, também é preciso combater o discurso dos
estudantes que a ela aderem como forma de justificar suas deficiências, defasagens e
lacunas, culpando as escolas públicas pelos insucessos, ineficiências, insuficiências e
incipiências de sua formação degenerada, já que aquelas são entendidas como sem
qualidade, ruins e fracas. Como nos faz lembrar Nosella (2004, p. 144, 145. Os
parênteses são nossos.) citando a fala de Gramsci, é preciso aprender a “tirar sangue de
nabo”, ou seja, “mesmo quando os instrumentos da grande cultura faltam, para quem
possui um método (uma leitura de mundo materialista-dialética, pautada na filosofia da
práxis), qualquer leitura serve”.
Nas palavras de Gramsci (apud NOSELLA, 2004, p. 145):
Muitos encarcerados subestimam a biblioteca do cárcere. Certo, as
bibliotecas dos cárceres, em geral, são formadas aleatoriamente: os
livros são recolhidos ao acaso, através de doações de patronatos que
recebem dos editores restos de depósitos, ou através de livros
deixados por outros presos. Há muitos livros de devoção e de
romances de terceira classe. Todavia, eu creio que um preso político
deva tirar sangue de nabo. O importante é estabelecer uma finalidade
nas leituras pessoais e saber tomar apontamentos (...). Por que essa
literatura é sempre a mais lida e editada? A que necessidades atende?
A que aspirações responde? Que sentimentos e ponto de vista são
representados nesses péssimos livros para agradarem tanto? (...) Todo
livro, sobretudo os de História, pode ser útil de se ler.
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Se substituirmos as palavras “encarcerados”, “presos” e “preso político” por
“estudantes (dos segmentos populares)” e “cárcere” por “escolas públicas” a afirmação
de Gramsci evidencia toda sua atualidade. De fato, os filhos dos segmentos populares
apenas têm a oportunidade de acessar alguma coisa do patrimônio histórico-cultural
acumulado pela humanidade através das escolas públicas e sua deficitária infra-
estrutura, pois não tem capital econômico suficiente para se apropriar da cultura
material e imaterial produzida pela humanidade através de compra de livros, viagens,
ida a museus, teatros, cinema, etc.. São as escolas públicas, apesar de todos os pesares,
que promovem esse encontro com o capital cultural e social, com o patrimônio
histórico-cultural, ainda que de maneira inadequada e imprópria pela falta de
investimentos na educação. Concordamos com Silva (2010, p. 20):
As escolas privadas não são mais eficientes que as escolas públicas
por causa de alguma qualidade inerente e transcendental da natureza
da iniciativa privada (o contrário valendo para a administração
pública), mas porque um grupo privilegiado em termos de poder e
recursos pode financiar privadamente uma forma privada de educação
(sem esquecer a vantagem de capital cultural inicial – de novo
resultante de relações sociais de poder – de seus/suas filhos/as, em
cima do qual trabalham as escolas privadas). As escolas públicas não
estão no estado em que estão simplesmente porque gerencial mal seus
recursos ou porque seus métodos ou currículos são inadequados. Elas
não têm os recursos que deveriam ter porque a população a que
servem está colocada numa posição subordinada em relação às
relações dominantes de poder. Seus métodos e currículos podem ser
inadequados, mas isso não pode ser discutido fora de um contexto de
falta total de recursos e de poder. Por isso a questão da qualidade
também não pode ser formulada fora desse contexto. A qualidade já
existe – qualidade de vida, qualidade de educação, qualidade de saúde.
Mas apenas para alguns. Nesse sentido, qualidade é apenas sinônimo
de riqueza e, como riqueza, trata-se de um conceito relacional. Boa e
muita qualidade para uns, pouca e má qualidade para outros. Por isso,
a gerência da qualidade total na escola privada é redundante – ela já
existe; na escola pública é inócua – se não se mexer na estrutura de
distribuição de riqueza e recursos.
Portanto, cabe aos estudantes dos segmentos populares aprenderem e tomar
consciência, através da reflexão dos determinantes causais que servem de mediações
para a compreensão de suas condições materiais de existência em suas múltiplas
determinações, de que precisam “tirar sangue de nabo” e isso só será possível se não
forem vistos como “coitados”, “pobrezinhos” e não se reafirmarem os discursos
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vitimistas que acabam sendo encorajados pelas falas irrefletidas de alguns colegas
professores.
Dissemos que a vitimização também tem lugar no curso de História, mas não
com a intensidade e da forma como acontece no curso de pedagogia, e pelo que
pudemos constatar nesses anos de laboratório e análise, muito disso deve-se a própria
formação do corpo docente, em sua maioria graduado em História e também contando
com a colaboração de professores graduados em Filosofia e Ciências Sociais que
ministram aulas no referido curso, reduzindo a presença de professores graduados em
pedagogia. Se há a semelhança da incidência da vitimização e seu corolário, as
facilitações burocrático-culturais, a diferença peculiar é como os professores, no geral,
reagem e respondem a esse recurso tático/estratégico dos estudantes dos segmentos
populares, já que a maioria desses professores também provém desse segmento social,
sendo, embora nem todos se reconheçam, classe trabalhadora, tendo passado por
dificuldades semelhantes ou piores ao longo de sua trajetória escolar e processo de
socialização.
Não há, por parte desses professores do curso de História, um afrouxamento das
exigências inerentes e imanentes ao estudo e as técnicas e procedimentos de pesquisa,
que compõem o estudar. Podem, pelo lado humano da relação, prorrogar os prazos e
fazer outras concessões, mas no que concerne ao processo ensino-aprendizagem, à
avaliação, fazem o que deve ser feito, ou seja, verificam a assimilação, a capacidade de
sistematização, construção de conceitos e categorias e transmissão fundamentada
através de reflexão crítica, teórica e cientificamente embasada por parte dos estudantes,
pois sabem que no mundo urbano-industrial-capitalista moderno, a escrita é a
linguagem dominante e hegemônica e sua apropriação e domínio é essencial para que os
segmentos populares possam participar efetivamente da construção da história, fazendo-
se ouvir e difundindo sua visão de mundo. Ainda que não haja uma unanimidade, o
trabalho de muitos desses professores, mesmo que não seja em quantidade, mas um
diferencial significativo na substância qualitativa, de certa forma estaria na direção do
que sentencia lucidamente Gramsci (apud NOSELLA, 2004, p. 129 e 130):
aos pobres devem ser oferecidas as condições materiais para seu
estudo, jamais facilitações burocrático-culturais.
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Se ocorrer que alguém não possua as habilidades ou informações
necessárias para passar de ano, como provavelmente ocorrerá com
Mea no final do ginásio, deve-se redobrar o esforço assim como se
concentram as energias para levantar um objeto bastante pesado, deve-
se apertar os lábios e parar até de falar para centrar todas as energias
no esforço imediato: ‘Parece-me que você – diz à irmã Teresina –
deve explicar esse conceito a Mea para que não perca a coragem e
continue a estudar de todas as formas; poderá até perder algum ano, na
pior das hipóteses, como mero tempo material numa certa sequência
escolar, mas não o perderá totalmente se a cada dia melhorar sua
cultura, sua profissão geral, se alargar o horizonte de suas cognições e
de seus interesses intelectuais’.
Comentário de Nosella (2004, p. 130) a respeito dessa citação:
A postura de Gramsci representa com dignidade e altivez a classe
pobre diante dos obstáculos postos pela estrutura social e escolar
capitalista a sua formação e escolarização. Luta ele para mudar essa
estrutura, mas jamais recorre aos mecanismos fictícios de rebaixar a
escola e suas exigências para fingir uma democratização existente
somente nas estatísticas.
Sim, Gramsci, em toda a sua militância política-social e em suas análises e
reflexões acerca da formação e educação da classe trabalhadora, jamais compactuaria
com condutas, métodos, conteúdos e ações educativas que não contribuíssem
efetivamente para a elevação da consciência crítica-reflexiva da classe trabalhadora
sobre suas condições materiais de existência e sobre sua práxis social. Afinal, como
demonstra Saviani (2007, p. 55 e 56):
o domínio da cultura constitui instrumento indispensável para a
participação política das massas. Se os membros das camadas
populares não dominam os conteúdos culturais, eles não podem fazer
valer os seus interesses, porque ficam desarmados contra os
dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais
para legitimar e consolidar a sua dominação. (...) o dominado não se
liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam.
(...) mesmo veiculando a própria cultura burguesa, e
instrumentalizando os elementos das camadas populares no sentido da
assimilação desses conteúdos, eles ganham condições de fazer valer os
seus interesses, e é nesse sentido, então, que se fortalecem
politicamente. Não adianta nada eu ficar sempre repetindo o refrão de
que a sociedade é dividida em duas classes fundamentais, burguesia e
proletariado, que a burguesia explora o proletariado e que quem é
proletário está sendo explorado, se o que está sendo explorado não
assimila os instrumentos pelos quais ele possa se organizar para se
libertar dessa exploração.
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É por isso que concordamos com Gramsci quando diz que,
Falar (ao operariado) uma linguagem pobre é empobrecer o raciocínio
e deformar a problemática. A educação de massa deve sim enraizar-se
no senso comum, dele partir, mas se não ultrapassar aqueles limites, se
não puxar para cima, torna-se educação conservadora, católica e
jesuítica, isto é, conquista a adesão do povo mantendo-o, porém, no
mesmo nível em que efetivamente está. (apud NOSELLA, 2004, p. 60
e 61)
Parece que esse conhecimento é mais próximo dos professores do curso de
história do que dos professores do curso de pedagogia, derivando daí a diferença
peculiar que mencionamos. Que nossos colegas pedagogos não tomem essa reflexão e
análise instada a partir do laboratório da nossa práxis professoral como ofensa e afronta,
porque acreditamos que como pedagogos que são estarão certamente muito mais
capacitados que nós de avaliarem a pertinência e os fundamentos dessa crítica e seus
desdobramentos na prática política-pedagógica, afinal, este é o objetivo das discussões
teórico-metodológicas-filosóficas, obviamente embasadas numa determinada concepção
de mundo e de homem e por isso mesmo podem mostrar-se mais ou menos adequadas
para o fim que se deseja alcançar, qualificando-o ou desqualificando-o, servindo,
portanto, de critério para avaliação e análise dos fundamentos teórico-histórico-
filosóficos em questão.
Por sua vez, esperamos que os estudantes dos segmentos populares também não
se sintam ofendidos, insultados, subestimados, inferiorizados, enfim, desqualificados de
modo geral; ao contrário, pedimos que procurem ser honestos consigo mesmos, que
analisem racionalmente como vivenciaram, construíram e elaboraram seu processo de
escolarização, ressignificando-o à luz dessas ponderações, dizendo, sinceramente, se
não se reconhecem nelas. Admitir e, mais do que isso, reconhecer, são as ações mais
difíceis de colocar em prática, como bem sabemos. Não somos os donos da verdade,
mas nos comprometemos sim com ela, em desvela-la e demonstra-la, doe a quem e em
quem doer. Afinal, a verdade não é fácil, mas é sim revolucionária, como dizia Hegel, e
engendra a virtualidade da desacomodação.
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IV. À guisa de conclusão – formas de enfrentamento
Não há receitas, nem fórmulas mágicas para enfrentamento desses problemas.
Por isso mesmo, não nos propomos a dizer o que fazer, nem como fazer, mas o que deve
ser feito tendo por base a natureza essencial da educação, como foi exposta. Um
pressuposto básico é esclarecer aos estudantes dos segmentos sociais o que é o estudo e
o que é estudar e como esses dois momentos se interligam, sendo que um é condição
para a realização e desenvolvimento do outro. De modo que possam alcançar a
compreensão de que o estudo é a atividade de produzir conhecimento sistematizado,
elaborado do mundo, portanto, conhecimento científico, que parte do saber comum mas
o transcende positivamente pela mediação da reflexão, do concreto pensado, realizando
o detour ao ponto de partida, agora desvelado, logo, compreendido em todas suas
complexas mediações e determinações reflexivas.
Essa sistematização exige esforço, como também o ócio produtivo, ou seja, o
tempo para a maturação reflexiva, para a análise, impondo a disciplina em sua dimensão
positiva, entendida enquanto busca de ser mais, de se humanizar e aperfeiçoar, uma das
condições essenciais para que o homem se humanize e se eleve, superando as suas
limitações presentes, colocando-se outros e novos problemas, de qualidade distinta,
possibilitando, no dizer de Bertrand Russel, que supere o drama (da sobrevivência) para
viver, em plenitude, a tragédia (da existência). A disciplina é necessária para que, mais
tarde, as condições para a autodisciplina, o autodidatismo, a autonomia e a liberdade
possam, efetivamente, se concretizar.
Essa compreensão demonstra que o esforço é imanente e inerente à atividade de
produção do conhecimento científico, do conhecimento sistematizado, não sendo mérito
individual, mas condição pressuposta ao estudo. Assim, o estudante é capaz de
compreender que se esforçar é um pressuposto para todos aqueles que se propõem a
produzir conhecimento de modo racional, científico e histórico-socialmente embasado,
sendo capaz de entender a incoerência e inadequação da frase: “Poxa, professora (or), a
senhora (o) tem que levar em consideração que eu me esforcei. Mereço uma nota pelo
meu esforço, pelo menos”.
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Desconstruir as ideias equivocadas a respeito do estudo e do estudar,
ressignificar essas atividades é um primeiro momento para a construção de novas
relações no processo ensino-aprendizagem, pois vão de encontro aos vícios e
questionam as facilitações de toda ordem estrategicamente utilizadas pelos estudantes
dos segmentos populares para benefício próprio, desobrigando-os de suas
responsabilidades enquanto estudantes, ou seja, de se apropriar e dominar,
aperfeiçoando continuamente, a escrita e a leitura; de disciplinar-se a estudar,
arrumando tempo, disciplinando a mente (atenção, concentração) e o corpo (ficar
sentado por horas pesquisando, lendo, escrevendo, fazendo anotações, etc.); de construir
novos hábitos, reelencando as prioridades na vida; rever os erros a fim de compreendê-
los e transformá-los em acertos, estando cônscios de que não atingirão a perfeição
imediatamente, já que na educação, como diz Platão, três elementos essenciais são pré-
requisitos: tempo, esforço e paciência. Logo, das notas não se gosta ou desgosta, porque
elas são resultado de como estamos ou não estamos assimilando e conseguindo
transmitir o assimilado, os conceitos e categorias trabalhados que auxiliam na
apropriação da dialeticidade do real, as análises e reflexão racional e historicamente
construídas através de embasamento teórico-filosófico.
Diferentemente da onda modista pedagógica das competências e da pluralidade,
da ênfase no saber-fazer, na contramão afirmamos que o saber-fazer só poderá ser um
meio potencializador se estiver racional e teoricamente bem orientado e de acordo com
o fim, qualificando-o. Daí a necessidade de o professor saber porque-fazer, algo que
exige o questionamento dos modismos, como explicitado por Saviani (2004, p. 179), ou
seja, uma fundamentação teórico-filosófico para reflexão e análise crítica da lógica de
funcionamento da totalidade social e de como a educação e as atividades educativas
com ela se relacionam, podendo contribuir para sua transformação ou conservação.
Todos nós, professores, independente da área do conhecimento em que atuamos,
seja nas Ciências da Natureza ou nas Ciências Humanas, necessitamos nos apropriar e
conhecer a natureza essencial da educação, bem como compreender sua configuração
dentro de uma sociedade de classes, sendo ou não adeptos do marxismo, pois como bem
observou Florestan, “a mudança requer luta e luta social entre classes”. E numa
sociedade de classes onde a educação é uma educação de classes, “um professor deve
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aprender em termos de luta de classes, mesmo que não seja marxista” (FERNANDES,
1986, p. 26).
Por fim, nesse sentido, nós professores do ensino superior necessitamos lutar
hoje, em resposta às políticas neoliberais de precarização do trabalho docente, para
manter e ampliar nossas condições de trabalho, uma vez que estão sendo reduzidas e
subtraídas, elevando estatisticamente os casos de doença no âmbito acadêmico.
Precisamos de tempo para refletir coletivamente sobre nossa práxis, para reorganiza-la e
reorienta-la, de modo que possamos agir com maior coerência e estarmos respaldados
por uma compreensão histórico-social do significado de educação, da escola e do ensino
e sua sistematização e configuração numa sociedade de classes, refletindo em nossa
atuação e na formação dos estudantes que, por conseguinte, terão outra atitude (visão,
valores) e, consequentemente, outro comportamento em relação ao processo ensino-
aprendizagem (estudo, estudar, ser estudante; relação professor-estudante, estudante-
professor), combatendo de forma eficaz a vitimização e as facilitações burocrático-
culturais que, geralmente, dela decorrem.
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