wislawa szymborska

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Um poema de Wislawa Szymborska para cada dia da semana PARA O DOMINGO: “Museu” “Há pratos, mas falta apetite. Há alianças, mas o amor recíproco se foi há pelo menos trezento anos. Há um leque –onde os rubores? Há espada– onde a ira? E o alaúde nem ressoa na hora sombria. Por falta de eternidade juntaram dez mil velharias (…) A coroa sobreviveu à cabeça. A mão perdeu para a uva. A bota direita derrotou a perna. Quanto a mim, vou vivendo, acreditem. Minha competição com o vestido continua. E que teimosia a dele! Como ele adoraria sobreviver!” PARA A SEGUNDA: “A alegria da escrita” “Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito? Vou beber da água escrita que lhe copie o focinho como papel-carbono? Por que ergue a cabeça, será que ouve algo?

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Page 1: Wislawa Szymborska

Um poema de Wislawa Szymborska para cada dia da semana

PARA O DOMINGO: “Museu”

“Há pratos, mas falta apetite.

Há alianças, mas o amor recíproco se foi

há pelo menos trezento anos.

Há um leque –onde os rubores?

Há espada– onde a ira?

E o alaúde nem ressoa na hora sombria.

Por falta de eternidade

juntaram dez mil velharias (…)

A coroa sobreviveu à cabeça.

A mão perdeu para a uva.

A bota direita derrotou a perna.

Quanto a mim, vou vivendo, acreditem.

Minha competição com o vestido continua.

E que teimosia a dele!

Como ele adoraria sobreviver!”

PARA A SEGUNDA: “A alegria da escrita”

“Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito?

Vou beber da água escrita

que lhe copie o focinho como papel-carbono?

Por que ergue a cabeça, será que ouve algo?

Apoiada sobre as quatro patas emprestadas da verdade

sob meus dedos apura o ouvido.

Silêncio–também essa palavra ressoa pelo papel

Page 2: Wislawa Szymborska

e afasta

os ramos que a palavra bosque originou (…)

as frases acossantes,

perante as quais não haverá saída (…)

Outras leis, preto no branco aqui vigoram.

Um pestanejar vai durar quanto eu quiser (…)

Existe então um mundo assim

sobre o qual exerço um destino independente?

Um tempo que enlaço com correntes de signos?

Uma existência perene por meu comando?

A alegria da escrita.

O poder de preservar.

A vingança da mão mortal.”

PARA A TERÇA: “A vida na hora”

“(…) Despreparada para a honra de viver,

mal posso manter o ritmo que a peça impõe.

Improviso embora me repugne a improvisação.

Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.

Meu jeito de ser cheira a província.

Meus instintos são amadorismo.

O pavor do palco , me explicando, é tanto mais humihante.

As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Nao dá para retirar as palavras e os reflexos,

inacabada a contagem das estrelas,

o caráter como o casaco às pressas abotoado–

eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Page 3: Wislawa Szymborska

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes

ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!

Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.

Isso é justo–pergunto

(com a voz rouca

porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores) (…)

E o que quer que eu faça,

vai se transformar para sempre naquilo que fiz.”

PARA A QUARTA: “Utopia”

“(…)Aqui se pode pisar no sólido solo das provas.

Nao há estradas senão as de chegada.

Os arbustos até vergam sob o peso das respostas.

Cresce aqui a árvore da Suposição Justa

de galhos desenredados desde antanho.

A Árovre do Entendimento, fascinantemente simples

junto a fonte que se chama Ah, Então É Isso.

Quanto mais denso o bosque, mais larga a vista

do Vale da Evidência (…)

Domina o vale a Inabalável Certeza.

Do seu cume se descortina a Essência das Coisas.

Apesar dos encantos a Ilha é deserta

e as pegadas miúdas vistas ao longo das praias

se voltam sem exceção para o mar (…)”

Page 4: Wislawa Szymborska

PARA A QUINTA: “Torturas”

“Nada mudou.

O corpo sente dor,

necessita comer, respirar e dormir,

tem a pele tenra e logo abaixo sangue,

tem uma boa reserva de unhas e dentes,

ossos frágeis, juntas alongáveis.

Nas torturas leva-se tudo isso em conta.

Nada mudou.

Treme o corpo como tremia

antes de se fundar Roma e depois de fundada,

no século XX antes e depois de Cristo,

as torturas sao como eram, só a terra encolheu

e o que quer que se passe parecer ser na porta ao lado .

Nada mudou.

Só chegou mais gente,

e às velhas culpas se juntaram novas,

reais, impostas, momentâneas, inexistentes,

mas o grito com que o corpo responde por elas

foi, é e será o grito da inocência

seguundo a escala e registro sempiternos(…)”

PARA A SEXTA: “Opinião sobre a pornografia”

“Não há devassidão maior que o pensamento.

Essa diabrura prolifera como erva daninha

num canteiro demarcado para margaridas.

Page 5: Wislawa Szymborska

Para aqueles que pensam, nada é sagrado.

O topete de chamar as coisas pelos nomes,

a dissolução da análise, a impudicícia da síntese,

a perseguião selvagem e debochada dos fatos nus,

o tatear ndecente de temas delicados,

a desova das idéias–é disso que eles gostam.

À luz do dia ou na escuridão da noite

se juntam aos pares, triangulos e círculos.

Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros (…)

Preferem o sabor de outros frutos

da árvore proibida do conhecimento

do que os traseiros rosados das revistas ilustradas,

toda essa pornografia na verdade simplória (…)

É chocante em que posições,

com que escandalosa simplicidade

um intelecto emprenha o outro!

Tais posições nem o Kamasutra conhece (…)”

PARA O SÁBADO: “As três palavras mais estranhas”

“Quando pronuncio a palavra FUTURO

a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra SILÊNCIO

suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra NADA

crio algo que não cabe em nenhum ser”.

Page 6: Wislawa Szymborska

E PARA ALGUM DIA QUE NÃO HÁ: “Gato num apartamento vazio”

“Morrer–isso não se faz a um gato.

Pois o que há de fazer um gato

num apartamento vazio.

Trepar pelas paredes.

Esfregar-se nos móveis.

Nada aqui parece mudado

e no entanto algo mudou.

Nada parece meido

e no entanto está diferente.

E à noite a lâmpada já não se acende.

Ouvem-se passos na escada

mas não são aqueles.

A mão que põe o peixe no pratinho

também já não é a mesma.

Algo aqui não começa

na hora costumeira.

Algo não acontece

como deve.

Alguém esteve aqui e esteve,

e de repent desapareceu

e teima em não aparecer (…)

Até uma regra foi quebrada

e os papéis remexidos (…)

Espera só ele voltar,

espera ele aparecer.

Vai aprender

Page 7: Wislawa Szymborska

que isso não se faz a um gato.

Para junto dele

como quem não quer nada

devagarinho,

sobre patas muito ofendidas (…)”

Page 8: Wislawa Szymborska

Poetas do Mundo - Polónia - Wislawa Szymborska (1923 - 2012)

Poemas

Biografia

Wislawa Szymborska nasceu em 1923 em Bnin (Kornik), na Polónia. Vive em Carcóvia desde 1931. Durante a guerra frequentou cursos clandestinos, posteriormente estudou literatura polaca e sociologia na Universidade Jaguellonica. Estreou-se como poeta em 1945 com o poema Szukam slowa (Procuro uma Palavra). De 1953 a 1981 colaborou, como editora de poesia e como colunista, na revista semanal Zycie Literackie (A vida literária). Os seus ensaios Lektury nadobowiazkowe foram reunidos num livro. Traduziu vários poetas franceses. Wislawa Szymborska tem 16 obras de poesia publicadas, a primeira, intitulada É por isso que estamos vivos (1951), é uma tentativa de se adaptar ao

realismo-socialista, o estilo literário aprovado oficialmente pelo regime comunista. W. Szymborska aborda temas como as lutas modernas na Polónia, o Holocausto, a II Guerra Mundial, a ocupação soviética e a transição para a democracia. Na sua poesia, o contexto histórico e biológico manifesta-se em fragmentos da realidade humana. Os seus poemas foram traduzidos para 36 línguas. Em Portugal foram publicados dois livros: Paisagem com grão de Areia, Relógio D’Água, 1998 e Alguns Gostam de Poesia- Antologia, Czeslaw Milosz e Wislawa Szymbrosca, Cavalo de Ferro Editores, 2004. Ganhou vários prémios, nomeadamente o Prémio Nobel, em 1996.

Wislawa Szymborska morreu aos 88 anos, no dia 1 de Fevereiro de 2012

As três palavras mais estranhas

Page 9: Wislawa Szymborska

Quando pronuncio a palavra Futuro,a primeira sílaba pertence já ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,crio algo que não cabe em nenhuma não-existência.

RecordaçõeS

Estávamos a conversar e calámo-nos de repente.Tinha aparecido na esplanada uma raparigaque beleza!,demasiado belapara o nosso tranquilo veraneio ali.

Barbara olhou apressada para o marido.Cristina pôs instintivamente a mãosobre a mão de Zbyszek.Eu pensei: ligo-te,espera- vou-te dizer- não venhas,acabam de anunciar vários dias de chuva.

Só Agnieszka, viúva,saudou a bela com um sorriso.

Admiração

Porquê tanto a uma só pessoa?

A esta e não a outra? E que faço eu aqui?

Page 10: Wislawa Szymborska

Num dia que dizem terça-feira? Em casa e não em ninho?

Com pele e não com escamas? Com cara e não folha?

Porquê pessoalmente só uma vez?

E logo na Terra? Junto a uma estrela pequena?

Depois de estar ausente tantas eras?

Para além de todos os tempos e algas?

Para lá do pólipo e da medusa?

E logo agora? Para o sangue e os ossos?

Só comigo em mim? Por que

não mais além ou a cem milhas daqui,

ou ontem ou há um século

sentada e olhando o canto escuro

- tal como de focinho erguido de repente

olha um que rosna e a que chamam cão?

tradução: Júlio Sousa Gomes

em Paisagem com grão de areia, Relógio D'Água, 1998

ASSOMBRO

Por que, afinal de contas, isso e não outra coisa?Por que este ser específico, sem disfarce,não em um ninho, mas em uma casa,costurado não em escamas, mas em pele,não com folhas sobre o topo, mas uma face?Por que sobre a Terra, neste instante,terça-feira de todas as noites,

Page 11: Wislawa Szymborska

aos olhos atentos daquela estrelinha,depois de não ser por tantas eras,depois de oceanos de fados e constatações,todos os crustáceos, todas as constelações?O que, de fato, me fez ter aparecidonem um palmo, nem um continente mais distante,nem um átimo, nem um milénio mais cedo?O que me fez preencher-me assim tão precisamente?E por que aqui agora, a mirar este dia escurecido,resmungando irretorquível questionamentotal qual um cachorro, um bicho rosnento?

Tradução do inglês para o português de André J. Caetano

de "Paisagem com Grão de Areia"

Álbum

Na minha família ninguém morreu de amor.

Se alguma coisa houve não passou de historieta.

Tísicas de Romeu? Difterias de Julieta?

Alguns envelheceram até ganhar bolor.

Ninguém a definhar por falta de resposta

a uma carta molhada e dolorosa.

Apareceu sempre por fim algum vizinho

com lunetas e uma rosa.

Ninguém a desfalecer no armário de asfixia

de algum marido voltando sem contar.

E os mantos e os folhos e as fitas de apertar

Page 12: Wislawa Szymborska

a nenhuma impediram de ficar na fotografia.

E nunca no espírito satânico de Bosch!

E nunca pelos quintais de arma em punho!

De bala na cabeça teve a morte outro cunho

e em macas de campanha alguém os trouxe.

De olheiras fundas como após a grande folia,

até esta aqui de carrapito extático,

se fez ao largo em grande hemorragia

mas não por ti, ó bailarino, e com viático.

Talvez antes do daguerreótipo, alguém,

mas nos deste álbum, ninguém, que eu verifique.

Tristezas dissiparam-se, os dias sucederam-se,

e eles, reconfortados, sumiram-se de gripe.

Elogio dos sonhos

Nos sonhos

pinto como Vermeer Van Delft.

Falo grego com fluência

e não apenas com os vivos.

Conduzo um automóvel

que me é obediente.

Page 13: Wislawa Szymborska

Sou hábil,

escrevo grandes poemas.

Escuto vozes

tão bem como os antos mais austeros.

Ficaréies admirados

da perfeição com que toco piano.

Consigo voar como devia ser,

isto é, eu de mim própria.

Ao cair de um telhado

sei como descer lentamente na verdura.

Não me lamento:

consegui descobrir a Atlântida.

Fico contente porque, antes de morrer,

consigo acordar sempre.

A guerra a rebentar

e eu a virar-me para o melhor lado.

Sou, sem ter porém

que o ser, filho da época.

Page 14: Wislawa Szymborska

aqui há alguns anos

vi dois sóis.

e, antes de ontem, um pinguim,

ali, muito nítido, ao pé de mim.

Vida na expectativa

Vida na expectativa.

Espectáculo sem ensaios.

Corpo sem tirar medidas.

Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.

Sei apenas que é o meu, intransmissível.

É já em cena que tenho de adivinhar

de que trata a peça.

Debilmente preparada para a honra que é a vida,

dificilmente aguento o tempo de acção que me é imposto.

Lá vou improvisando embora deteste improvisar.

Passo a passo tropeço no desconhecimento das coisas.

O meu modo de vida cheira-me a provincianismo.

Os meus instintos são crasso amadorismo.

Page 15: Wislawa Szymborska

O medo do palco, explicando-me, ainda me humilha mais.

Os factores atenuantes parecem-me cruéis.

Palavras e gestos sem regresso,

estrelas por contar,

o carácter – um casaco à pressa abotoado,

são os deploráveis efeitos desta urgência.

Treinar ao menos uma quarta-feira,

ou repetir uma quinta ao menos uma vez!

E já lá vem a sexta com um guião que ignoro.

Está como deve ser – pergunto

(com um pigarro na voz

pois nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

È ilusória a ideia de que é só um exame rápido

realizado em sala provisória. Não.

Fico de pé diante do cenário e dou conta da sua solidez.

Impressiona-me o rigor de cada adereço.

o palco rotativo há já muito que funciona.

Já estão acesas até as mais distantes nebulosas.

Não tenho quaisquer dúvidas que se trata da estreia!

E, seja o que for que eu faça,

para sempre se transforma no que eu fiz.

Page 16: Wislawa Szymborska

A preparação do currículo

Que é preciso?

È preciso fazer um requerimento

e ao requerimento anexar o currículo.

Independentemente da duração da vida,

o currículo deve ser curto.

É obrigatória a concisão e boa selecção dos factos,

transformar as paisagens em endereços,

e vagas recordações em datas fixas.

De todos os amores o conjugal é quanto basta,

e quanto aos filhos só os que nasceram.

Mais importante que quem conheces é de quem és conhecido.

Viagens só se ao estrangeiro.

A que aderiste mas sem dizeres porquê.

Distinções sem motivo.

Escreve como se nunca tivesses falado contigo próprio

e te evitasses ao passares por ti.

Omite o silêncio dos cães, dos gatos e das aves,

cacaréus de lembrança, sonhos e amigos.

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Valoriza mais o preço que o valor

e o título que o texto.

Antes o número que calça que aonde vai

esse atrás de quem tu andas.

A fotografia de orelhas descobertas.

Importa o seu formato e não o que elas ouvem.

Que ouvem elas?

O estrépito das máquinas triturando papel.

Despedida da paisagem

Não quero mal à Primaverapor ela aí estar de novo.Não a culpo por,como em cada ano,cumprir as suas obrigações.

Compreendo que a minha tristezanão detém a vegetação.O cálamo se vacilaé só ao vento.

Não me causa dorque sobre a água os tufos de amieirosde novo tenham com que ramalhar.

Tomo em consideraçãoque, como se vivesses ainda,a margem de certo lagopermaneça linda como foi.

Nada tenho contraesta vista, à vistada baía esplendorosa de sol.

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Consigo até imaginarque outros que não nósse sentem neste momentono tronco do pinheiro derrubado.

Respeito o seu direitoao murmúrio, ao riso,a um silêncio feliz.

Apostaria mesmoque o amor os unee que ele a envolvecom um braço vivo.

A passarada novarumoreja nos caniços.Sinceramente lhes desejoque a ouçam.

Não peço qualquer mudançaàs ondas de junto à margem.desenvoltas, preguiçosas,rebeldes ao meu querer.

Nada exijoaos fundos da água sob o bosque,safira agorae logo esmeraldae logo negros.

Com uma coisa não concordo.Em regressar lá.Desisto dele -do privilégio da presença.

Pois quanto baste eu Te sobrevivi,apenas quanto baste,para pensar com distância.

Trad. Júlio Sousa Gomes

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de Paisagem com Grão de Areia,Relógio d'Água, 1998

4 poemas

Estou demasiado perto

 

Estou demasiado perto para ser sonhada por ele.Sobre ele não vôo, dele não fujosob as raízes de uma árvore.Estou demasiado perto.Não é com a minha voz que canta o peixe na rede.Não é do meu dedo que rola o anel.Estou demasiado perto.Uma enorme casa está ardendosem mim, pedindo socorro.Demasiado perto,para que no meu cabelo o sino badalasse.Demasiado perto para poder entrar como convidadoante o qual as paredes se abrem.Pela segunda vez não morrerei jamais tão levemente,tão fora do meu próprio corpo, tão involuntariamentecomo outrora em meu sonho.Estou demasiado perto,demasiado perto. Ouço um silvo,e vejo a casca fulgurante dessa palavra,imóvel nos meus braços. Ele dorme,agora mais acessível a uma bilheteira de circo ambulantecom um leão apenas,vista uma vez na vida,do que a mim, deitada a seu lado.Agora para ela nele cresce um valeDe folhagens ruivas, fechado por um monte nevadono ar azul. Eu estou perto demaispara cair-lhe do céu.Meu gritosó poderia acordá-lo. Pobre de mim,limitada à minha própria figura,eu que fui bétula, eu que fui ninfae saía da casca,brilhando as cores da pele. Eu que tinhaa graça de sumir ante olhos espantadoso que é uma riqueza de riquezas.Estou perto,demasiado perto para ser sonhada por ele.Retiro o meu braço de sob a cabeça dele que dorme,

Page 20: Wislawa Szymborska

e o braço dormente fervilha de agulhas,em cujas pontas esperando a contagemsentaram-se os anjos caídos.

Autotomia

Em perigo, a holotúria divide-se em duas: uma delas entrega-se àà voracidade do mundo, a outra lhe escapa.

Desagrega-se de repente em perdição e salvação, em multa e em prêmio,no que foi e no que será.

No meio do corpo da holotúria abre-se um abismo com duas margenssubitamente estranhas.

Numa a morte, noutra a vida. Aqui desespero, alento ali.Se houver uma balança, os pratos não oscilam,Se houver justiça, aqui está.

Morrer quanto necessário, sem exceder a medida.Crescer de novo quanto necessário a parte que se salvou.

É verdade, também nós podemos nos dividir.Mas apenas em corpo e suspiro cortado.Em corpo e poesia.

De um lado a garganta, do outro o riso,leve, rapidamente sumindo.

Aqui um coração pesado, ali non omnis moriar,três palavras apenas como três penas aladas.

O abismo não nos separa.O abismo nos circunda.

 

Amor à primeira vista

Os dois estão convencidosde que foi um sentimento súbito o que os juntou.É bela uma certeza como essa, Mas é mais bela a incerteza.

Page 21: Wislawa Szymborska

Acham que por não se terem conhecido antesnunca houve nada entre eles.E o que diriam as ruas, escadas, corredores,Onde há muito podiam se cruzar?

Queria perguntar-lhesSe não se lembram -Na porta giratória talvezUm dia cara a cara?Em meio à multidão um 'com licença'?No telefone a voz - engano?- mas conheço sua resposta.Não, não se lembram.

Ficariam surpreendidos de saberQue já faz tempoO acaso brincava com eles.

Não preparado aindaa transformar-se para eles num destino,aproximava-se e os afastava,cortava-lhes o caminhoe, abafando a gargalhada,saltava para o lado.

Houve sinais, signos, só que ilegíveis.Talvez há três anos atrásou na terça-feira passadacerta folha vooude um ombro para o outro?

Houve algo perdido e recolhidoQuem sabe, uma bolajá no bosque da infância.

Houve maçanetas e campainhas,em que antesjá o toque se punha no toque.As malas lado a lado no depósito de bagagem.Talvez, numa certa noite, o mesmo sonhoApagado imediatamente depois de acordar.

Pois cada princípioé apenas uma continuação,e o livro de eventossempre aberto no meio.

poemas encontrados aqui

Page 22: Wislawa Szymborska

O primeiro amor

Dizemque o primeiro amor é o mais importante.É muito romântico,mas não é o meu caso.

Algo entre nós houve e não houve,deu-se e perdeu-se.

Não me tremem as mãosquando encontro pequenas lembranças,aquele maço de cartas atadas com um cordel,se ao menos fosse uma fita.

O nosso único encontro, passados anos,foi uma conversa de duas cadeirasjunto a uma mesa fria.

Outros amorescontinuam até hoje a respirar dentro de mim.A este falta fôlego para suspirar.

No entanto, sendo como é,não lembrado,nem sequer sonhado,consegue o que os outros não conseguem:acostuma-me com a morte.

mais poemas

Quarto do suicida

Vocês devem achar, sem dúvida, que o quarto esteve vazio. Mas lá havia três cadeiras de encosto firmes. Uma boa lâmpada para afastar a escuridão. Uma mesa, sobre a mesa uma carteira, jornais. Buda sereno, Jesus doloroso, sete elefantes para boa sorte, e na gaveta - um caderno. Vocês acham que nele não estavam nossos endereços?

Page 23: Wislawa Szymborska

Acham que faltavam livros, quadros ou discos? Mas da parede sorria Saskia com sua flor cordial, Alegria, a faísca dos deuses, a corneta consolatória nas mãos negras. Na estante, Ulisses repousando depois dos esforços do Canto Cinco. Os moralistas, seus nomes em letras douradas nas lindas lombadas de couro. Os políticos ao lado, muito rectos.

E não era sem saída este quarto, aos menos pela porta, nem sem vista, ao menos pela janela. Binóculos de longo alcance no parapeito. Uma mosca zumbindo - ou seja, ainda viva.

Acham então que talvez uma carta explicava algo. Mas se eu disser que não havia carta nenhuma -éramos tantos, os amigos, e todos coubemosdentro de um envelope vazio encostado num copo.

Retornos

Voltou. Não disse nada. Parecia muito perturbado.Deitou sem tirar a roupa. Escondeu-se debaixo do cobertor, as pernas dobradas.Tem quarenta anos, mas não neste momento.Está vivo - mas como no ventre maternoatrás de sete peles, na escuridão que o defende.Amanhã dá palestra sobre homeostasisna cosmonáutica metagalática.Por enquanto se encolhe, adormece.

Page 24: Wislawa Szymborska

Os filhos da época

Somos os filhos da época,e a época é política.Todas as coisas - minhas, tuas, nossas,coisas de cada dia, de cada noitesão coisas políticas.Queiras ou não queiras,teus genes têm um passado político,tua pele, um matiz político,teus olhos, um brilho político.O que dizes tem ressonância,o que calas tem pesode uma forma ou outra - político.Mesmo caminhando contra o ventodos passos políticossobre solo político.Poemas apolíticos também são políticos,e lá em cima a lua já não dá luar.Ser ou não ser: eis a questão.Oh, querida que questão mal parida.A questão política.Não precisas nem ser gentepara teres importância política.Basta ser petróleo, ração,qualquer derivado, ou atéuma mesa de conferência cuja formavem sendo discutida meses a fio.Enquanto isso, os homens se matam,os animais são massacrados,as casas queimadas,os campos se tornam agrestescomo nas épocas passadase menos políticas.

Tradução: Ana Cristina Cesar

Céu

Page 25: Wislawa Szymborska

Era preciso começar daí: céu.Janela sem encosto, sem moldura, sem vidraça.Abertura e nada mais, porém muito bem aberta.Não preciso aguardar a noite amena:nem levantar a cabeçapara perscrutar o céu.Tenho céu atrás de mim, sob as mãose debaixo das pálpebras.Estou enredada de céue isto me exalta.Nem as montanhas mais altasEstão mais próximas do céuque os vales mais profundos.Não há mais céu num lugardo que em outro.A nuvem está atada ao céuindiferente como o túmulo.A toupeira é tão felizquanto a coruja que abre as asas.O objecto que cai no precipíciocai do céu no céu.Partes poeirentas, líquidas, montanhosas,passageiras e queimadas do céu, migalhas do céu,brisas de céu e montes.O céu é omnipresenteaté nas trevas sob a pele.Devoro o céu, rejeito o céu.Estou com armadilhas na armadilha,com o habitante instalado,com o abraço abraçado,com a pergunta presente na resposta.A divisão entre céu e terranão foi pensada de forma adequadaa respeito desta unidade.Permite até que se sobrevivano endereço mais exacto,que pode ser achado mais depressase me procurarem.Os meus sinais característicos sãoo arrebatamento e o desespero.

Blog Livrada

Page 26: Wislawa Szymborska

Pois bem, disse tudo isso por quê, afinal? Disse porque hoje, pela primeira vez em dois anos de blog, vamos falar de um livro de poesia nessa bagaça, e todo mundo sabe que pouca gente se atreve a comentar essa arte por puro medo de estar falando besteira sem saber.

E é aí que entra o nosso livro de hoje. Nada menos que a recente coletânea de poemas da poetisa polonesa Wisława Szymborska, prêmio Nobel de literatura de 1996, que foi traduzida para um livro pela primeira vez no Brasil no ano passado. Ê, atraso! Mas, tudo bem, antes tarde do que nunca. Fico boladão com essa galera que não se coça pra traduzir um autor mesmo depois que ele ganha o prêmio Nobel. Agora tão pipocando uns poemas do Sr. Transformer por aí, mas cadê que nego publica um livro dele? Vai vendo e depois não reclama, mas legenda pra filme do Shrek tem todo ano, pensa nisso.

Enfim, esse livro não é nenhum livro inteiro da Szymborska (para vocês que gostam de ler em voz alta os textos, mesmo que seja para vocês mesmos, a pronúncia é Vissuáva Chembórsca), mas uma coletânea de poemas de vários de seus poucos livros (he he) escolhidos pela tradutora Regina Przybycien (pchêbítchen), que é curitibana e bateu um papo comigo aqui. Ela diz que escolheu os poemas baseado no grau de facilidade em traduzi-los, o que eu acho muito correto levando-se em consideração que tradução de poesia é algo muito mais zeloso do que tradução de prosa e ponderando que polonês não deve ser a língua mais fácil do mund de se traduzir.

Bom, e por que os poemas de Wisława Szymborska são bons o bastante para entrar aqui nesse blog? Simplesmente porque são fáceis, no nível de que até uma criança seria capaz de entender e apreciar sua beleza. Essa senhorinha simpática que não larga o pirulito sabor metástase não fica se escondendo por trás de significados ocultos, construções herméticas, jogos de palavras sinistros, e palavreado floreado que ninguém entende. Ela quer simplesmente ser entendida e falar sobre as coisas que lhe são caras, a saber: a vida, a morte, a guerra, a mulher e a própria poesia.

Esse último tema, aliás, é o que eu acho de melhor na poesia da moça, que mostra não só um senso de humor autodepreciativo saudável como também uma leveza de espírito invejável. Szymborska sabe que pouca gente se enteressa pelo tipo de escria que ela e seus colegas poetas realizam, e consegue rir de sua própria impopularidade. É assim, por exemplo, em “Alguns gostam de poesia”, publicado alguns anos antes de ser consagrada com o Nobel:

Alguns –

Ou seja nem todos

Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria;

Sem contar a escola onde é obrigatório

E os próprios poetas

Seriam talvez uns dois em mil

O tema se repete em “O Recital da Aurora”, mais antigo, e ainda mais engraçado:

Page 27: Wislawa Szymborska

Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir

Nos recusaste a multidão ululante.

Uma dúzia de pessoas na sala

Já é hora de começar a fala

Metade veio porque está chovendo

O resto é parente. Ó musa.

Percebe? Não é nada complicado, é só uma poetisa que sabe que não é lida e faz troça disso com o quê? Com a própria poesia. Esses trechos mostram bem o espírito leve e brincalhão de Szymborska, que faleceu recentemente este ano deixando esse mundo mais carrancudo. Mesmo quando ela fala de coisas realmente tristes, como o nazismo, ela consegue ser leve. Em “Primeira Foto de Hitler”, ela brinca com o bebê do monstro austríaco:

E quem é essa gracinha de tiptop?

É o Adolfinho, filho do casal Hitler!

Será que vai se tornar um doutor em direito?

Ou um tenor da ópera de Viena?

De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?

De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe:

De um tipógrafo, padre, médico, mercador?

Quais caminhos percorrerão estas pernocas, quais?

Page 28: Wislawa Szymborska

Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório

Com a filha do prefeito?

Esse é o tom da ironia da autora, que fere sem ferir, e põe reflexão em coisas simples, como a infância de um ditador extremista (algo que Adriana Partimpim copiou depois, talvez sem saber. Talvez, muito provavelmente, ou a moça lê poesia em polonês, por acaso?)

E eu poderia ficar aqui transcrevendo trechos de vários poemas do livro, mas não quero tirar a graça dessa leitura. Porque esse livro de Szymborksa é um daqueles livros fragmentários que você vai descobrindo a graça individual de cada um dos poemas. É como um disco dos Beatles: primeiro uma música dele é a sua música favorita, depois outra, depois outra e depois outra, até que todas as faixas passaram pelo menos uma vez pelo título de canção favorita da banda. Tudo aqui tem o seu valor e nenhuma destas poesias está fora do alcance do leitor comum. Acho que esse é um legado que Szymborska deixa para o mundo da poesia, principalmente num país onde existem pessoas como o Arnaldo Antunes: sê simples e sê palatável, pobre poeta. Nada de querer fazer a nova poesia concretista, o verso livre preso a significados ocultos, o hexâmero dactílico do século 21, pára com essas palhaçadas e sê modesto, que aí quem sabe as pessoas começam a gostar de poesia de novo.

Esse projeto da Companhia das Letras é feito, ao que parece, para uma série de prêmios Nobel majoritariamente poetas, como ela e o Derek Walcott, que foi publicado com seus Omeros (que vai na contramão de tudo que eu acabei de aconselhar). O lance é simples: foto do cabra da peste na capa, código de barra na capa, símbolo do prêmio Nobel na contra-capa e lombada e contra-capa da mesma cor do box com o título. Essa foto da capa que escolheram é um charme. Qualquer senhorinha fazendo essa fumaça com o crivo pareceria a legítima bruxa veia, mas ela parece tão doce e feliz fumando esse cigarrinho que a gente só quer abraçá-la e ficar impregnado com esse cheiro maldito de nicotina. Papel pólen de alta gramatura e fonte Meridien, que até então nunca tinha visto em livro nenhum (ou pelo menos assim me lembro). Maravilhoso livrinho, recomendadíssimo.