xavier guchet, o corpo social du sujeito

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dossiê 157 O Corpo Social do Sujeito 1 Xavier Guchet 2 Universidade Paris I Resumo Simondon situou o conjunto de seus trabalhos sob o signo de uma confrontação entre a filosofia e as ciências humanas. Partindo da constatação de que as ciências humanas de sua época são insuficientemente unificadas e que elas perdem a realidade do homem concreto e completo, ele quer propor uma filosofia da individuação humana que possa renovar os saberes sobre o homem. Esta filosofia da individuação se apresenta como um esforço para casar estreitamente duas dimensões da realidade humana que são habitualmente tratadas separadamente: as formas de organização social de um lado, os modos de confrontação à matéria do outro. Em suma, o social e o técnico. Na capacidade de pensar conjuntamente estas duas dimensões, do social e do técnico, lança-se, segundo Simondon, a possibilidade de propor um novo humanismo à altura dos desafios contemporâneos. Palavras-chave: Simondon; Ciências humanas; Filosofia. Résumé Simondon a placé l'ensemble de ses travaux sous le signe d'une confrontation entre la philosophie et les sciences humaines. Partant du constat que les sciences humaines de son époque sont insuffisamment unifiées et qu'elles manquent la réalité de l'homme concret et complet, il veut proposer une philosophie de l'individuation humaine qui puisse renouveler les savoirs sur l'homme. Cette philosophie de l'individuation se présente comme un effort pour coupler étroitement deux dimensions de la réalité humaine qui sont habituellement traitées séparément: les formes d'organisation sociale d'un côté, les modes de confrontation à la matière de l'autre. Bref, le social et le technique. Dans la capacité à penser ensemble ces deux dimensions du social et du technique, se joue selon Simondon la possibilité de proposer un nouvel humanisme à la mesure des défis contemporains. Mots-clés: Simondon; Sciences humaines; Philosophie. 1 O presente artigo foi publicado originalmente nos Cahiers Simondon, No. 3 (2011: 71-94), sob a responsabilidade editorial de Jean-Hugue Barthélémy. Agradecemos tanto a Xavier Guchet quanto a Jean-Hugues Barthélémy pela amabilidade em nos permitir sua tradução e publicação. 2 Tradução de Marcos Nalli, José Fernandes Weber e Américo Grisotto. Filosofia e Educação – ISSN 1984-9605 Volume 6, Número 3 – Outubro de 2014

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Xavier Guchet, O Corpo Social Du Sujeito

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  • dossi 157

    O Corpo Social do Sujeito1

    Xavier Guchet2Universidade Paris I

    ResumoSimondon situou o conjunto de seus trabalhos sob o signo de umaconfrontao entre a filosofia e as cincias humanas. Partindo da constataode que as cincias humanas de sua poca so insuficientemente unificadas eque elas perdem a realidade do homem concreto e completo, ele quer proporuma filosofia da individuao humana que possa renovar os saberes sobre ohomem. Esta filosofia da individuao se apresenta como um esforo paracasar estreitamente duas dimenses da realidade humana que sohabitualmente tratadas separadamente: as formas de organizao social de umlado, os modos de confrontao matria do outro. Em suma, o social e otcnico. Na capacidade de pensar conjuntamente estas duas dimenses, dosocial e do tcnico, lana-se, segundo Simondon, a possibilidade de propor umnovo humanismo altura dos desafios contemporneos.Palavras-chave: Simondon; Cincias humanas; Filosofia.

    RsumSimondon a plac l'ensemble de ses travaux sous le signe d'une confrontationentre la philosophie et les sciences humaines. Partant du constat que lessciences humaines de son poque sont insuffisamment unifies et qu'ellesmanquent la ralit de l'homme concret et complet, il veut proposer unephilosophie de l'individuation humaine qui puisse renouveler les savoirs surl'homme. Cette philosophie de l'individuation se prsente comme un effortpour coupler troitement deux dimensions de la ralit humaine qui sonthabituellement traites sparment: les formes d'organisation sociale d'un ct,les modes de confrontation la matire de l'autre. Bref, le social et letechnique. Dans la capacit penser ensemble ces deux dimensions du social etdu technique, se joue selon Simondon la possibilit de proposer un nouvelhumanisme la mesure des dfis contemporains. Mots-cls: Simondon; Sciences humaines; Philosophie.

    1 O presente artigo foi publicado originalmente nos Cahiers Simondon, No. 3 (2011: 71-94),sob a responsabilidade editorial de Jean-Hugue Barthlmy. Agradecemos tanto a XavierGuchet quanto a Jean-Hugues Barthlmy pela amabilidade em nos permitir sua traduo epublicao.2 Traduo de Marcos Nalli, Jos Fernandes Weber e Amrico Grisotto.

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 6, Nmero 3 Outubro de 2014

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    Introduo: Axiomatizar as cincias humanas

    imondon publicou em sua vida dois livros maiores, a partir

    respectivamente de sua tese principal e de sua tese complementar.

    A tese complementar sobre o modo de existncia dos objetos

    tcnicos foi publicada em 1958 (2012); entretanto, foi preciso esperar 19643

    (2005) para que a tese principal sobre a individuao fosse levada ao

    conhecimento do pblico (somente uma parte da tese principal: s os

    captulos consagrados aos regimes de individuao fsica e vital foram

    retidos pelo editor, permanecendo incompletos pela excluso dos captulos

    consagrados individuao psquica e coletiva). Em seguida Simondon

    redigiu textos maiores, mas sob a forma de cursos no publicados, ou ento

    de conferncias publicadas em revistas pouco difundidas pensa-se na

    notvel srie de trs conferncias sobre a psicossociologia da tecnicidade,

    pronunciadas em Lyon em 1960 e 1961, publicadas no Boletim da Escola

    Prtica de Psicologia e de Pedagogia de Lyon, e que foram reeditadas

    (2014). necessrio constatar, por conseguinte, que at muito recentemente,

    os leitores de Simondon tiveram acesso a uma parte limitada da obra as

    duas teses essencialmente amputadas das reflexes sobre o regime

    psicossocial da individuao. Esta situao pode explicar a maneira como

    Simondon foi lido pelos filsofos: de um lado, como um pensador que

    props uma aproximao original da tcnica original, mas desconcertante

    (seu curso sobre a inveno e o desenvolvimento das tcnicas agregadoras

    em 1968 suscitou uma certa perplexidade entre os estudantes...); em

    seguida, como um pensador que props uma crtica da metafsica e um novo

    conceito de indivduo. L-se Simondon com um pensador da tcnica

    (Marcuse, 1968; Naville, 1963), mas tambm com o autor de uma ontologia

    S

    3 Disponvel ademais in extenso, Simondon G., L'Individuation la lumire des notions deforme et d'information [A individuao luz das noes de forma e de informao],Grenoble, Jrme Millon, 2005.

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 6, Nmero 3 Outubro de 2014

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    do indivduo (como o faz Deleuze notadamente). Alguns se voltaram, com

    efeito, ao problema da unidade das duas teses, sobre a questo de saber

    porque Simondon, nos anos da dcada de 50, consagrou seus esforos a

    essas duas espcies de pesquisas primeira vista to distantes entre si, sobre

    o objeto tcnico e mais precisamente sobre a mquina industrial de um lado,

    sobre a metafsica do indivduo do outro. preciso compreender que a

    redefinio do indivduo uma passagem obrigatria para falar da mquina?

    preciso compreender que a filosofia da tcnica uma simples ilustrao

    da filosofia geral sobre o indivduo? Convm recusar de privilegiar uma das

    duas teses em relao outra? Em todo caso, muito raros so aqueles que

    tentam interpretar o conjunto da obra de Simondon do ponto de vista de uma

    confrontao entre filosofia e cincias humanas4.

    A reflexo sobre as cincias humanas no , no entanto, um rinco

    menor da filosofia de Simondon, pode-se mesmo sustentar que ela constitui

    o fio condutor. Simondon atribui em todo caso uma importncia

    considervel no texto de uma conferncia que ele pronunciou na Sociedade

    Francesa de Filosofia, no ms de fevereiro de 1960 (Simondon, 20055, p.

    531-551): aos ouvintes presentes, que contam entre os representantes mais

    eminentes da filosofia francesa do momento, substancialmente ele explica o

    que o levou a empreender suas pesquisas nos domnios da ontologia e da

    tecnologia, a constatao de uma falta de axiomatizao das cincias

    humanas e a necessidade de remediar essa lacuna. Simondon no d,

    verdade, muitos detalhes sobre o que pode querer dizer aqui

    axiomatizao. Ele precisa simplesmente que esta situao desagradvel4Citemos ao menos Moutaux J., Sur la philosophie de la nature et la philosophie de latechnique de Gilbert Simondon [Sobre a filosofia da natureza e a filosofia da tcnica deGilbert Simondon], in Philosophies de la nature [Filosofias da natureza], sob a direo deO. Bloch, Paris, Publications de la Sorbonne, 1994.5Forme, information, potentiel [Forma, informao, potencial], in LIndividuation lalumire des notions de forme et dinformation [A individuao luz das noes de forma ede informao].

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    afetou, e continua a afetar, as relaes entre a psicologia e a sociologia e que

    axiomatizar as cincias humanas significa antes de qualquer coisa

    redefinir as relaes entre a psicologia e a sociologia. Esta tarefa

    aparentemente crucial e urgente exige, sugere Simondon de maneira muito

    alusiva, ao mesmo tempo uma filosofia do objeto tcnico e uma refundao

    de conceitos como forma, informao, potencial os quais so precisamente

    os conceitos maiores de sua filosofia do indivduo.

    Essa conferncia a ocasio para Simondon, que ainda um jovem

    filsofo (ele tem 36 anos, em vias de defender suas teses, e no ainda

    professor na Sorbonne), de se fazer reconhecer por seus pares,

    apresentando-lhes a inteno geral de seus trabalhos. Ora, ele escolheu

    priorizar o problema que toca as cincias humanas, e em particular

    psicologia e sociologia. Este problema, seguramente, est no centro dos

    debates filosficos da poca, o estruturalismo ento muito discutido:

    Simondon parece querer oferecer uma contribuio original a esses debates.

    Um primeiro ponto merece explicao: por que esta ateno muito

    particular, para no dizer exclusiva, psicologia e sociologia, que nada

    so, de antemo, seno duas cincias humanas dentre um grande nmero de

    outras a histria, a lingustica, etc. de que Simondon no fala por assim

    dizer? Em que uma requalificao das relaes entre psicologia e sociologia

    de natureza a resolver o problema de conjunto das cincias humanas e de

    sua falta de axiomatizao?

    Fato que a psicologia e a sociologia no so cincias humanas

    como as outras: suas trocas recprocas tm poderosamente contribudo para

    fazer emergir o conjunto das cincias humanas como um novo campo de

    saber no sculo dezenove, e constituram de algum modo em sua polaridade

    mesma o a priori das cincias nascentes. Esse ato de nascimento deve ser

    procurado em uma formulao indita do tema antropolgico. Esse tema

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    no gira mais em torno da questo, no homem, das relaes entre o fsico e

    o moral (o que ainda era o caso no sculo precedente); ele se volta ademais

    sobre a questo, nova, das relaes entre o fsico e o psicolgico de um lado,

    e do social do outro. O homem interior, o homem exterior: tal a grande

    polaridade segundo a qual o tema antropolgico se encontra reformulado. O

    homem ento concebido como um vivente particularmente instvel,

    influencivel por toda sorte de fatores, tanto biolgicos quanto sociais. Esta

    situao pode desembocar sobre os comportamentos patolgicos. Trata-se

    por conseguinte de opor influenciabilidade e modificabilidade humanas

    uma resposta em termos de normas e de regulao das condutas: as normas

    devem ser postas a fim de que a variabilidade dos comportamentos seja

    contida em certos limites. Para alm desses limites, os comportamentos so

    julgados patolgicos. Influenciabilidade modificabilidade resposta

    normativa: tal o a priori constitutivo das cincias humanas (Le Blanc,

    2005).

    Ora, Simondon busca precisamente desfazer em seus fundamentos

    este a priori das cincias humanas e prope organizar as trocas da

    psicologia e da sociologia segundo outra polaridade que aquela do homem

    interior e do homem exterior. Resumindo excessivamente, sem dvida, a

    posio de Simondon sobre este ponto o seguinte: a realidade humana no

    se resolve em um problema de articulao da existncia psicolgica e da

    existncia social, no jamais partindo como um ser puramente psicolgico

    que o homem encontra, num golpe, o social (seno em casos extremos e

    patolgicos). Como diz Simondon (2005, p. 295), de uma maneira

    enigmtica que ser preciso comentar, o indivduo s entra em relao com

    o social atravs do social. Em outros termos, as cincias humanas so

    insuficientemente axiomatizadas na medida em que a psicologia e a

    sociologia se do por objetos as abstraes: o psicolgico cortado do social

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 6, Nmero 3 Outubro de 2014

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    uma abstrao e reciprocamente. Axiomatizar as cincias humanas no

    significa ento, no esprito de Simondon, impor a essas cincias um

    formalismo comum, isto no um problema de epistemologia das cincias

    humanas (no se v alhures em que este problema seria aquele do filsofo:

    as cincias humanas so perfeitamente capazes de fazer elas mesmas sua

    prpria epistemologia). Trata-se antes de pontuar o preconceito filosfico

    que tem sustentado o desenvolvimento das cincias humanas preconceito

    constitutivo do a priori das cincias humanas e levando para o objeto dessas

    cincias, a saber: o homem como duplo interior-exterior, tratado segundo a

    polaridade do normal e do patolgico e de mostrar em que este

    preconceito desembocou em uma maneira inadequada, abstrata de falar do

    homem. Axiomatizar as cincias humanas quer dizer, portanto, substituir

    essas abstraes por uma filosofia da realidade humana concreta, isto , na

    linguagem de Simondon: uma filosofia da individuao humana.

    verdade que na poca em que Simondon elabora seu prprio

    pensamento (nos anos 50), a psicologia e a sociologia no esto mais, sem

    dvida, a defenderem zelosamente suas fronteiras alhures elas

    provavelmente jamais consideraram seus domnios respectivos como

    fortalezas a proteger. A expresso de Simondon: difcil considerar o

    social e o individual como se enfrentando diretamente em uma relao do

    indivduo ante a sociedade conviria perfeitamente a Durkheim (cf.

    Karsenti, 2006). No sculo XX se desenvolvem de, qualquer modo,

    numerosas correntes na psicologia social que buscam descrever o homem de

    outro modo que como um misto entre o psicolgico e o social.

    Consequentemente, quando Simondon se atm sobre esse psicologismo e

    esse sociologismo acusados de tornar as fronteiras totalmente rgidas e

    impermeveis, parece lanar um combate de retaguarda; um combate sem

    objeto. Ele conhecia muito bem esses trabalhos em psicologia social e em

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 6, Nmero 3 Outubro de 2014

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    antropologia cultural, no entanto esses trabalhos no satisfazem, segundo

    ele, a exigncia de axiomatizao que ele apresenta como fio condutor de

    suas pesquisas. A constatao pode se resumir da seguinte forma: a

    psicologia social e a antropologia cultural combinam as anlises

    psicolgicas e as anlises sociolgicas, mas elas no advm finalmente de

    uma concepo subjacente do homem como duplo psicossocial.

    Axiomatizar as cincias humanas toma ento um sentido original e

    preciso em Simondon: trata-se de desfazer em seus fundamentos o que

    Foucault (1966) chamou o prejuzo antropolgico e se desprender das

    duas polaridades segundo as quais este tema foi formulado: a polaridade do

    homem interior e a do homem exterior; a polaridade do normal e do

    patolgico. No h homem interior e homem exterior; quanto finalidade

    de uma sociedade humana, ela no de manter um estado de equilbrio,

    definido por um sistema de normas dadas, contra as variaes patolgicas

    que podem amea-la; de suscitar a inveno, a criao de normas novas.

    discutindo a ciberntica que Simondon considera a tarefa de propor uma

    concepo da realidade humana como alternativa ao prejuzo

    antropolgico. Com efeito, ele consagra dois notveis textos ciberntica

    no incio dos anos 50 (estes textos ainda so inditos), em uma poca em

    que a jovem cincia dos mecanismos teleolgicos interessa bem pouco

    aos filsofos franceses (com raras excees, como Georges Canguilhem ou

    Raymond Ruyer, notadamente). O cerne da crtica de Simondon a

    seguinte: a ciberntica est errada por querer a qualquer custo tratar as

    sociedades humanas segundo modelos homeostticos. Ele est, sobre este

    ponto, muito prximo da crtica que Canguilhem faz da ciberntica por

    ocasio de uma conferncia pronunciada em 1955 sobre O problema das

    regulaes no organismo e na sociedade (Canguilhem, 2002). Discutindo a

    ideia do bilogo Walter Cannon, proposta no incio dos anos 30, de aplicar o

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    conceito de homeostase s sociedades humanas, Canguilhem observa que as

    normas no funcionam nas sociedades humanas como nos organismos:

    enquanto a norma vital dada com o funcionamento do organismo, a norma

    social jamais dada e deve ser construda, quer dizer, discutida. Ela

    assunto de poltica e no de medicina ou de profilaxia social. A finalidade

    de uma sociedade humana no de manter equilbrios. Canguilhem, assim

    como Simondon, recupera, por conseguinte, o Bergson de Les deux sources

    de la morale et de la religion [As duas fontes da moral e da religio]

    (1982): as morais e as religies fechadas so sem dvida morais e

    religies conservadoras, que tm por funo preservar a estabilidade da

    ordem social existente; mas elas no so respectivamente, nem toda moral e

    nem toda religio: as morais e as religies abertas tm, ao contrrio, por

    funo mergulhar novamente as sociedades humanas no lan de criao que

    lhes marcou, e de lhes permitir se desprender da ordem existente, de

    inventar o novo, de se tornar outra coisa.

    Convm, por conseguinte, precisar qual a concepo da realidade

    humana, isto , da individuao humana, que Simondon cr substituir o

    prejuzo antropolgico. Para isso, convm se deter sobre algumas pginas

    dos captulos da tese principal consagradas individuao psicossocial.

    Com efeito aqui, nesses captulos todavia negligenciados (e muito

    curiosamente) pelo editor da tese principal em 1964, que se encontram os

    elementos principais dessa axiomatizao das cincias humanas de que

    Simondon fala.

    Da psicologia social ontologia do coletivo

    preciso admitir que abordar a questo da individuao humana a partir do

    psicossocial no bvia. De fato, Simondon observa muitas vezes que uma

    filosofia da realidade humana concreta no pode comear por apartar o

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 6, Nmero 3 Outubro de 2014

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    homem do vital. por outro lado o que motiva sua rejeio do que se chama

    a antropologia. Ele no visava, bem entendido, com este termo, os saberes

    antropolgicos do qual ele se nutriu (pensa-se em particular no estudioso da

    pr-histria Andr Leroi-Gourhan, que Simondon tanto estimava); ele se

    prende antes a uma doutrina que obrigada a substancializar seja o

    individual seja o social para dar uma essncia do homem.

    Por isso, a noo de antropologia comporta j a afirmao

    implcita da especificidade do Homem, separado do vital. Ora,

    deveras correto que no se pode fazer derivar o homem do vital,

    se subtrairmos do vital o Homem; mas o vital o vital

    comportando o homem, no o vital sem o Homem; do vital at

    o Homem e compreendendo o Homem; h o vital inteiro,

    incluso o Homem (Simondon, 2005, p. 297).

    Quando da conferncia na Sociedade Francesa de Filosofia, em

    fevereiro de 1960, Simondon responde a questo de um ouvinte explicando

    que uma antropologia lhe parecia impossvel. Em outros termos, no h

    antropologia: s h biologia, no sentido de uma biologia alargada que

    compreende o Homem. Propor uma filosofia da realidade humana concreta

    , pois, comear pelo vital e no pelo psicossocial. Comear pelo

    psicossocial no se arriscar alocar a realidade humana em uma abstrao

    desconectada do vital?

    Para responder a esta objeo, possvel aqui lembrar que

    Simondon foi aluno de Canguilhem, e que para Canguilhem o homem

    justamente o vivente pelo qual as normas sociais transformam at o

    significado das normas biolgicas. Nesta perspectiva, comear pelo

    psicossocial no supor o Homem desatado do vital; ao contrrio,

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 6, Nmero 3 Outubro de 2014

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    procurar compreender como, no caso do homem, a individuao psquica e

    coletiva reorganiza at os alicerces da individuao vital.

    Temos aqui uma primeira percepo detida dos termos em que se

    pe o problema, crucial para os comentadores, das relaes entre

    individuao humana e individuao das tcnicas quer dizer das ligaes

    entre as duas teses defendidas por Simondon em 1958. Deve-se reter dois

    pontos: 1) uma antropologia do Homem apartado do vital impossvel; 2) o

    homem o ser que faz com que as normas de sua existncia coletiva reajam

    sobre as normas de sua vida biolgica. A concluso se impe obviamente:

    no h nenhum sentido em rejeitar as intervenes tcnicas sobre o homem

    pelo motivo que elas podem alterar sua biologia (pensemos aqui nos debates

    atuais sobre as biotecnologias e as nanotecnologias). Do ponto de vista de

    Canguilhem e Simondon, tal julgamento no pode ter sentido.

    Provavelmente isto quer dizer que no h limites para nossas intervenes

    biotcnicas sobre os seres vivos e em particular sobre o vivente humano?

    Obviamente no esta a concluso a que chega Simondon. A filosofia da

    individuao humana de Simondon nos dota, ao contrrio, da capacidade de

    formular julgamentos de valor sobre as biotcnicas. Dizer que no h

    essncia do homem no implica que no domnio das intervenes

    biotcnicas tudo possvel e tudo permitido. Entre a invocao de uma

    natureza humana e o vale tudo, Simondon empreende uma difcil, mas

    tambm necessria, terceira via, que preciso agora seguir examinando a

    forma que Simondon solidariza o problema da existncia para muitos (o

    psicossocial) e o problema dos modos de confrontao matria (a tcnica),

    para alm do caso particular em que a interveno tcnica recai diretamente

    sobre o homem mesmo caso que Simondon permanentemente evocou,

    mas de forma marginal.

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 6, Nmero 3 Outubro de 2014

  • dossi 167

    Segundo Simondon, o erro das diferentes correntes da

    psicossociologia existente que elas permanecem tributrias de um

    gravssimo pressuposto da metafsica clssica, que Simondon expe desde

    as primeiras pginas de sua tese principal. Esse pressuposto o seguinte: a

    nica realidade ontologicamente consistente aquela do ser individuado e

    ela que urge explicar; a operao de individuao mesma no tem

    classificao de ser, ela no tem consistncia ontolgica. Toda cincia

    assim cincia de estruturas constitudas, quer dizer de estruturas vazias de

    toda referncia s suas operaes construtivas. Nas cincias humanas, esse

    pressuposto metafsico se traduz por uma separao dos domnios

    cientficos e pela institucionalizao das disciplinas separadas a

    psicologia, a sociologia deixando para depois que uma certa porosidade

    entre esses domnios seja reconhecida e que as circulaes entre as

    disciplinas sejam julgadas possveis. nisto que chegou a psicologia e a

    sociologia: todas as duas se desenvolveram como cincias de realidades j

    individuadas, j estruturadas a realidade fsica, a realidade social ainda

    que de uma a outra, admite-se por muito tempo (desde sempre sem dvida)

    a necessidade de intercmbios frutferos. Nessa perspectiva metafsica que

    continua a ser aquela da psicossociologia da poca (segundo Simondon), a

    relao posterior aos seres que ela religa, ela no tem qualquer realidade

    prpria. A existncia psicossocial desse ponto de vista interpretvel como

    uma relao entre dois domnios pr-constitudos: o psquico e o coletivo.

    Por consequncia, no fundamento da operao de individuao, a metafsica

    clssica est obrigada a procurar alguma coisa que j um ser individuado e

    que se supe que detm o princpio de individuao ( o caso, por

    exemplo, de uma estrutura psquica ou de uma estrutura social

    determinada). Para explicar uma gnese de individualidade, ela j se d um

    indivduo: ela pressupe assim o que est em questo. Simondon ento

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 6, Nmero 3 Outubro de 2014

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    pergunta: como evitar esta petio de princpio? preciso partir de uma

    situao em que a individualidade no seja pressuposta de maneira alguma.

    ento pela prpria operao de individuao que preciso se interessar,

    estabelecendo uma concordncia entre a classe de ser e a relao: para

    explicar a gnese de individualidade, preciso partir da existncia de um

    sistema segundo diferentes fases complementares. O ser individuado no

    a nica realidade aps a operao de individuao: ele s uma das

    fases do ser, apelando como complementar para uma realidade no

    individuada. Essa descrio no surpreendente em biologia: sabemos bem

    que um ser vivo no existe como ser individuado parte do meio ambiente,

    para entrar depois em relao com meio j constitudo; a individuao do

    ser vivo e a constituio do meio so contemporneos e complementares.

    Simondon eleva essa concepo da individualidade biolgica (que muito

    claramente enunciada por Canguilhem) ao nvel de uma filosofia geral da

    ontognese definida como teoria das fases do ser. Simondon apresenta

    aqui os principais conceitos e o mtodo de seu programa de

    axiomatizao da psicologia e da sociologia: considerar o psicolgico e o

    social como duas fases da individualidade humana, a partir de um

    processo de defasagem no interior de um sistema de realidade pr-

    individual rica em potenciais.

    Esse sistema de realidade pr-individual no pressupe nem o

    psquico e nem o coletivo: trata-se do sistema de realidade constituda pela

    individuao vital. A individuao do vivente no esgota todas as tenses e

    todos os potenciais contidos na situao pr-vital; o par vivente/meio, ponto

    final de uma defasagem imprevista num sistema de ser fsico-qumico,

    deixa potenciais no utilizados. Em outros termos, o vivente humano esse

    vivente muito particular que no pde resolve suas problemticas vitais no

    interior da ordem vital: ele s pde encontrar solues a seus problemas de

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 6, Nmero 3 Outubro de 2014

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    adaptao tornando-se outra coisa que um simples vivente, como diz

    Simondon. Pode-se pensar aqui nas anlises de Leroi-Gourhan sobre o

    equilbrio do fsico e do psquico no homem, implicando a exteriorizao

    das funes biolgicas nos utenslios e nas mquinas, implicando tambm a

    exteriorizao das programaes do vivente numa memria social. O gesto e

    a palavra para retomar o ttulo da obra maior de Leroi-Gourhan (1964 e

    1965) constituem as duas fases da hominizao, quer dizer, da resposta

    especificamente humana para uma problemtica vital, supondo a entrada

    num novo regime de individuao acima da simples vida. Esta anlise e

    esta aproximao com Leroi-Gourhan permite encontrar um certo nmero

    de pr-requisitos do pensamento da individuao humana: primeiramente, a

    recusa em separar o homem do vital; em segundo, a recusa de considerar o

    homem como um duplo psicossocial; terceiro, a ideia que, resolvendo suas

    problemticas vitais, passando a um regime de individuao superior vida,

    o homem mudou a significao mesma de seu viver. Ser homem fazer

    sair o psicossocial do vital no como um efeito de sua causa, mas como

    uma soluo de um problema e, em retorno, fazer reagir a existncia

    psicossocial sobre a significao mesma da existncia biolgica.

    O sujeito como operao

    sem dvida nos captulos da tese principal Problemtica da ontognese

    e individuao psquica e O individual e o social, a individuao do grupo

    que Simondon (2005, p. 263-306) precisa melhor sua concepo da

    individuao humana. Simondon pe nessas pginas a questo da gnese do

    sujeito individuado. Ele comea por estabelecer que a dvida cartesiana no

    d conta dessa gnese. Ele pressupe o contrrio: com efeito, se Descartes

    pde pretender que a dvida desse conta da gnese do Cogito,

    confundindo dois sentidos da dvida: h de uma parte a dvida duvidante,

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 6, Nmero 3 Outubro de 2014

  • dossi 170

    a operao mesma da dvida, e h por outra parte a dvida duvidada, o

    objeto da dvida. Descartes quis que na operao mesma da dvida o sujeito

    se tomasse como objeto da dvida; o sujeito tomando-se como sujeito

    duvidante, a operao se objetiva no momento mesmo em que ela se exerce.

    O duvidante e o duvidado coincidem. Ora, o que Descartes negligencia

    precisamente a distncia que jamais pode ser coberta entre a operao de

    duvidar e o objeto da dvida, entre o duvidante e o duvidado: eu duvido

    de mim mesmo no ato de duvidar, mas no instante mesmo em que creio ter

    nas mos a operao de duvidar para faz-la um objeto da dvida, ela me

    escapa como operao. A dvida objetivada uma dvida superada, a

    atualidade da operao da dvida escapa objetivao.

    A dvida dvida sujeito, dvida operao em primeira pessoa

    e tambm dvida que se destaca da operao de duvidar atual

    como dvida duvidada, operao completamente j objetivada

    [...] Entre a dvida duvidante e a dvida duvidada se constitui

    certa relao de distanciamento atravs da qual, no entanto, se

    mantm a continuidade da operao (Simondon, 2005, p. 285).

    Se impossvel apoiar a gnese do sujeito, que precisamente o sujeito

    essa separao, essa relao de distanciamento, essa tomada de

    distncia que ao mesmo tempo ligao. Descartes pensou poder tomar

    a gnese do Cogito porque ele compreendeu o Cogito como uma estrutura,

    como uma substncia, como res e como cogitans, suporte de operao e

    operao em vias de se preencher (Simondon, 2005, p. 286): ora, o sujeito

    no substncia e no estrutura, ele a realidade de uma operao

    inassimilvel s estruturas constitudas. Simondon chama memria essa

    tomada de distncia sem alienao. Ele aqui, h de se admitir, muito

    Filosofia e Educao ISSN 1984-9605 Volume 6, Nmero 3 Outubro de 2014

  • dossi 171

    bergsoniano. O erro de Descartes de ter suposto uma relao simtrica

    entre o duvidante e o duvidado: na objetivao do duvidado, o

    duvidante se toma efetivamente como duvidante posto que duvidante

    e duvidado tm a mesma estrutura, tm o mesmo suporte substancial. Para

    ser mais preciso, o duvidante e o duvidado coincidem segundo

    Descartes porque todos os dois so compreendidos como realidades

    estruturais, e que a objetivao do duvidante em duvidado no altera

    sua comum identidade de estrutura. Desde ento, contrariamente ao que se

    compreende, o sujeito como operao e no como estrutura, uma relao

    de assimetria que constitui o sujeito: assimetria entre uma operao presente

    que sempre se escapa e uma estrutura objetivada que j est sempre no

    passado. o estabelecimento de tal reciprocidade assimtrica entre

    estruturas e operaes no ser que Simondon chama uma individuao. A

    partir de ento, o progresso da memria um desdobramento assimtrico

    do ser sujeito, uma individualizao do ser sujeito (Simondon, 2005, p.

    285). A operao cria uma assimetria entre o presente e o passado, ela

    constitui o passado como passado: o passado o campo reticulado, uma

    primeira aproximao como o cristal j formado na gua-me. O presente

    seria antes como o limite do cristal em formao, propagando e prolongando

    a operao de tomar forma. Seguramente isto apenas uma aproximao na

    medida em que o passado do sujeito no um resduo morto e completamente

    inerte (o que o caso do cristal): como bem sabemos, nossa capacidade

    atual para individuar e para nos individuar rica de todo nosso passado;

    nosso passado permanece informador de nosso presente.

    O passado ento o que Simondon chama um smbolo do eu,

    quer dizer a realidade complementar do eu atual. O sujeito mais que o eu

    atual; o eu atual e o passado so duas fases complementares do sujeito. Na

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  • dossi 172

    operao da memria, o passado o indivduo, o estruturado; o eu atual

    como o meio, uma reserva de potenciais.

    Simondon desenvolve uma anlise anloga tocando a assimetria do

    presente e do futuro, assimetria que se constitui no mais na operao de

    memria, mas naquela da imaginao. A diferena dos dois, memria e

    imaginao, reside em uma espcie de quiasma: enquanto na memria o

    smbolo do eu (o passado) o indivduo, na imaginao o eu atual que

    o indivduo: o futuro o campo de potenciais, zona de realidade no

    individuada, meio ambiente. O eu atual ento ao mesmo tempo indivduo

    e meio, indivduo em relao ao porvir, meio em relao ao passado. O

    presente do eu ento definido como transduo entre o campo do porvir e

    os pontos em rede do passado (Simondon, 2005, p. 288).

    Ora, o produto dessa individuao psquica, diz Simondon (2005,

    p. 287), s de fato psquico no centro; o psquico puro o atual; o passado

    tornado passado longnquo e o futuro distante so realidades que tendem

    para o somtico. O passado e o futuro se incorporam. A conscincia se liga

    ao corpo pela memria e pela imaginao. A alma pura e o corpo puro, a res

    cogitans e a res extensa cartesianas, so dois casos extremos, duas

    abstraes prvias sobre um contnuo psicofsico constitudo pela

    transdutividade de uma operao. Por transdutividade, Simondon entende

    precisamente a conservao e a propagao, no de uma estrutura

    constituda que se mantm idntica a si mesma (a identidade a da substncia

    cartesiana), mas aquela de uma operao criadora da assimetria e das

    complementaridades de fases em um sistema de realidade rico em

    potenciais. O que define a identidade do sujeito, no a performance de

    uma estrutura, a permanncia dessa operao que estrutura um campo de

    potenciais (o futuro) em uma rede de pontos-chaves (o passado).

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  • dossi 173

    Passado e futuro so ento o no-presente, o inatual, e o corpo

    passado e futuro puros. A alma est no corpo como o presente est entre o

    futuro e o passado. A alma transduo entre duas corporeidades, aquela do

    futuro, que o campo de virtualidades, e aquela do passado, que rede de

    pontos-chaves. H ento uma espcie de dupla natureza do corpo: o corpo

    meio para o eu presente que a busca virtualidades, tenses, porvir; mas ele

    tambm indivduo para o eu presente que o vive como o que carrega todo

    o peso das estruturas impostas do socius. Para Simondon, definitivamente

    pelo corpo que eu me vinculo ao coletivo.

    A individuao transindividual e os dois sentidos do social

    Na interpretao anti-substancialista de Simondon, o problema da

    integrao social do indivduo no pode ser colocado em termos de

    enfrentamento direto entre um indivduo j constitudo e uma socialmente

    igualmente constituda. Isto implicaria em reintroduzir o prejuzo da

    metafsica clssica, estipulando que toda realidade s pode se explicar por

    referncia a estruturas pr-existentes (aqui, o indivduo e a sociedade), as

    operaes sem ter razo de ser, quer dizer sem consistncia ontolgica. O

    problema da integrao social do indivduo tambm um problema de

    operaes e no um problema de relao entre estruturas dadas. A

    integrao social uma individuao, um processo; os termos da relao

    (indivduo e sociedade) aparecem por defasagem e so derivados da

    relao mesma. preciso definir um novo regime de individuao segundo

    o qual o indivduo se constitui simultaneamente ao coletivo; quer dizer, um

    regime de individuao que torna compatveis e complementares o que

    Simondon chama a individuao pessoal e a individuao social.

    Pressupor a compatibilidade entre a dimenso de relao a si (a

    individuao pessoal) e a dimenso de relao aos outros seres individuados

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  • dossi 174

    (individuao social), cometer uma petio de princpio posto que o

    problema da individuao humana reside inteiramente no estabelecimento

    dessa compatibilidade. Ora, justamente, esta compatibilidade no est de

    modo algum garantida. Com efeito, a individuao pessoal e a individuao

    social parecem caminhar a reboque uma da outra: a sociedade exige dos

    seres individuados que eles se integrem ordem estabelecida, isto , que

    eles construam seu futuro segundo as normas herdadas do passado: a

    sociedade exige de cada um que endosse os papis sociais bem definidos, e

    que faa seus um certo nmero de fins impostos.

    O indivduo se v a propor fins, papis a escolher; ele deve

    tender para esses papis, para os tipos, para as imagens, ser

    guiado por estruturas que ele se esfora por realizar

    concordando com elas e complementando-as: a sociedade

    diante do ser individual apresenta uma rede de estados e papis

    atravs dos quais a conduta individual deve passar (Simondon,

    2005, p. 293).

    O ser individuado , por conseguinte, incitado a forjar seu futuro segundo

    uma rede de pontos-chaves que define o passado de uma sociedade. O

    futuro do sujeito, o passado da sociedade. Tal a tenso de partida, a

    incompatibilidade entre individuao pessoal e a individuao social. Como

    sempre em Simondon, uma incompatibilidade clama por uma estratgia de

    resoluo de problema, que passa na ocorrncia pela entrada dos seres

    individuados em um regime de individuao indita; um regime de

    individuao que compatibiliza a individuao pessoal e a individuao

    social. esse regime de individuao que Simondon chama de

    transindividual. A integrao do indivduo ao social se faz pela criao

    de uma analogia de funcionamento entre a operao que define a presena

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  • dossi 175

    individual e a operao que define a presena social; o indivduo deve

    encontrar uma individuao social que recubra sua individuao pessoal

    (Simondon, 2005, p. 295). Retomando a terminologia da psicologia social

    norte-americana, Simondon chama in-group essa dimenso coletiva da

    personalidade individual. O in-group (ou transindividual) no uma

    realidade substancial que deveria ser superposta aos seres individuais e

    concebida como independente deles: a operao e a condio de operao

    pela qual se cria um modo de presena mais complexa que a presena do ser

    unicamente individual. A relao entre o indivduo e o transindividual se

    define como o que supera o indivduo todo, prolongando-o: o

    transindividual no o exterior do indivduo e, no entanto, se destaca em

    certa medida do indivduo. O transindividual ou in-group assume uma

    dimenso de transcendncia em relao individuao pessoal, mas no se

    trata de uma estrutura transcendente aos indivduos: antes de uma

    alterao interna dos indivduos, de uma dimenso de transcendncia dos

    indivduos que enraza na interioridade, que no carrega uma dimenso

    de exterioridade mas de superao em relao ao indivduo. Seguindo

    Merleau-Ponty (1988), Simondon quer pensar a existncia para muitos

    como uma transcendncia do indivduo (e no para o indivduo), uma

    transcendncia de dentro, sugerindo que o indivduo no est encerrado em

    seus prprios limites, sem no entanto que isso implique a suposio de uma

    positividade transcendente, de uma sociedade pr-existente e evidente.

    Essa dimenso de transcendncia do indivduo e no para o

    indivduo encontra sua origem na carga de pr-individualidade que

    permanece sempre atada ao indivduo. O transindividual faz comunicar os

    indivduos no nvel pr-individual que nenhuma individuao esgota

    completamente, que ainda rica em potenciais e em foras organizveis

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  • dossi 176

    (Simondon, 2005, p. 166) e que torna possvel a entrada de novas

    individuaes.

    Pode-se entender [por transindividualidade] uma relao que

    no pe os indivduos em relao ao meio de sua

    individualidade constituda separando-as umas das outras, nem

    ao meio do que h de idntico em todo sujeito humano [...] mas

    o meio dessa carga de realidade pr-individual, dessa carga de

    natureza que conservada com o ser individual, e que contm

    potenciais e virtualidade (Simondon, 2005, p. 248).

    Ns podemos nos comunicar com os outros sobre a base das estruturas que

    esto em ns, por exemplo as estruturas da linguagem ou as normas que o

    socius nos inculca. Todavia, h uma parte de ns mesmos que no est na

    estrutura e que nos torna capazes de inventar, de introduzir novidade no

    mundo (encontra-se aqui a ideia de Canguilhem: a finalidade das sociedades

    humanas no o equilbrio homeosttico; a inveno). A relao

    transindividual , portanto,

    o que faz que os indivduos existam juntos como os elementos

    de um sistema comportando potenciais e metaestabilidade,

    expectativa e tenso, depois descoberta de uma estrutura e de

    uma organizao funcional que integram e resolvem essa

    problemtica [...] O transindividual passa no indivduo [relao

    interna portanto] como do indivduo ao indivduo [relao

    externa] (Simondon, 2005, p. 302).

    O psicossocial verdadeiro o transindividual. A relao transindividual no

    nem de origem social nem de origem individual; ela depositada no

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  • dossi 177

    indivduo, levada por ele; dito de outro modo, ela no transcendncia aos

    indivduos, mas ela no lhe pertence e no deriva de seu sistema de ser

    como indivduo [...] O indivduo conservou consigo o pr-individual, e

    todos os indivduos conjuntamente tm assim um tipo de fundo no

    estruturado a partir do qual uma nova individuao pode se produzir

    (Simondon, 2005, p. 303).

    A passagem ao transindividual no sobrepe uma individualizao

    (coletiva) para uma individuao prvia (pessoal); ela vem complicar a

    individuao pessoal, ela a torna mais complexa. Em outros termos, a

    individuao transindividual no cria uma realidade outra que o indivduo:

    ela cria uma realidade individual nova, o que muito diferente. A

    individuao pessoal implica ademais a relao aos outros. A interioridade

    de grupo uma certa dimenso da personalidade individual, no uma

    relao de um termo distinto do indivduo; uma zona de participao em

    torno do indivduo (Simondon, 2005, p. 295).

    O frente-a-frente do in-group, o out-group, designa ento essa

    realidade social parecendo como que uma realidade transcendente, coerciva,

    impondo aos seres individuados passagens obrigatrias, uma estrutura de

    ordem herdada do passado, regras codificadas, etc. porque a ideia que a

    sociedade uma realidade exterior e transcendente no completamente

    falsa e sem fundamento: uma ontologia do processo no culmina na

    invalidao pura e simples dessa ideia, ao contrrio ela a precisa. O out-

    group , para ser justo, vivido como o social substancializado, mas no

    todo o social: a integrao ao out-group no implica um indivduo pr-

    social, ela concerne um ser individuado que j dilatou sua personalidade at

    aos limites do in-group; a integrao social dos indivduos se faz por

    mediao do in-group (salvo nos casos extremos e patolgicos, como por

    exemplo os casos de delinquncia ou de alienao mental, segundo

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  • dossi 178

    Simondon: nesses casos, todo grupo aparece ao indivduo como um grupo

    de exterioridade). o que queria dizer Simondon ao escrever: o indivduo

    s entra em relao com o social atravs do social. Compreendamos: o

    indivduo s entra em relao com o out-group (primeiro sentido do social)

    atravs do in-group (segundo sentido do social).

    Corpo e transindividualidade: Simondon e Bergson

    Ora, a criao dessa zona de participao que define um regime de

    individuao mais complexa implica o corpo. O corpo prprio do

    indivduo se estende at os limites do in-group; assim como existe um

    esquema corporal, existe um esquema social que se estende os limites do eu

    at fronteira do in-group e do out-group. Pode-se considerar em um certo

    sentido o grupo aberto (in-group) como o corpo social do sujeito

    (Simondon, 2005, p. 294). O out-group pode tambm ser qualificado de

    grande corpo. Intil lembrar aqui a antiguidade das aproximaes entre

    organismo e sociedade. A concluso importante a qual conduz a anlise de

    Simondon que essa tem dois sentidos, conforme se fale do in-group ou do

    out-group. Lembremos que para Simondon, o corpo ao mesmo tempo

    futuro e passado, campo de potencialidades e rede de pontos-chaves. O

    corpo social-organismo essa rede de pontos-chaves que me impe

    estruturas de ordem; o corpo social no sentido de in-group esse campo de

    virtualidades que eu posso tomar para continuar minha individuao

    pessoal. Essa anlise no deixar de evocar coisas que o senso-comum pode

    experimentar: o corpo no ao mesmo tempo o que nos socializa na medida

    em que, desde nossa mais tenra infncia, os hbitos (quer dizer, as estruturas

    estabelecidas) nos so inculcadas? Mas o corpo no tambm o que me

    permite me desprender das estruturas estabelecidas para me tornar outra

    coisa? Mauss (1950, p. 363-386) tratou muito bem dessa ambivalncia do

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  • dossi 179

    corpo em seu famoso artigo sobre as tcnicas do corpo. Nos termos de

    Simondon, o corpo do sujeito se articula ao mesmo tempo sobre o in-group

    e sobre o out-group. A relao do indivduo ao

    in-group e sua relao ao out-group so um e outro como o

    futuro e o passado; o in-group fonte de virtualidades, de

    tenses, como o futuro individual; ele reservatrio de

    presena [...] Sob a forma de crena, a pertena ao grupo de

    interioridade se define como uma tendncia no estruturada,

    comparvel ao futuro para o indivduo: ela se confunde com o

    futuro individual, mas ela assume tambm o passado do

    indivduo, pois o indivduo se d uma origem nesse grupo de

    interioridade, mtico ou real (Simondon, 2005, p. 295).

    a razo pela qual no in-group, a individuao pessoal e a individuao

    grupal so compatveis e complementares; seria necessrio mesmo dizer

    recprocos; elas caminham lado a lado e no a reboque: o futuro e o passado

    individual coincidem respectivamente com o futuro e o passado do in-

    group. A relao com o out-group ao contrrio, uma relao j constituda:

    no passado social que o ser individuado chamado a atar seu futuro.

    Essa filosofia da individuao implica, portanto, uma filosofia do

    corpo compatvel com a ideia de transindividualidade. Como compreender

    que o corpo prprio possa se estender at os limites do in-group? A resposta

    reside na constatao de uma enorme dvida que Simondon tem para com

    Bergson. Em matria de pensamento social, Simondon evoca Bergson de

    maneira verdadeiramente crtica: ele lhe reprova a distino (que julga

    demasiadamente marcada, substancial demais) entre sociedades fechadas e

    sociedades abertas: vo proceder maneira de Bergson opondo grupo

    aberto e grupo fechado; o social, curta distncia, aberto; de longe,

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  • dossi 180

    fechado (Simondon, 2005, p. 294). O in-group e o out-group, ou grupo

    aberto e grupo fechado no se opem como duas realidades mutuamente

    exclusivas: a integrao social a integrao no out-group, mas essa

    integrao supe uma dilatao prvia da personalidade individual at os

    limites de um grupo de pertencimento. Dito isto, independentemente do fato

    que Bergson sem dvida alguma ops to categoricamente quanto pretende

    Simondon as sociedades fechadas e as sociedades abertas, precisamente

    em Bergson que se encontra essa filosofia do corpo de que Simondon

    necessita para pensar essa dimenso de transcendncia do indivduo.

    Em Les deux sources de la morale et de la religion, Berson escreve

    o seguinte: nosso corpo vai at s estrelas. Mesmo por seu corpo, o

    homem est longe de s ocupar o mnimo lugar que se lhe atribui

    ordinariamente [...] Pois se nosso corpo a matria pela qual nossa

    conscincia se aplica, ele coextensivo nossa conscincia, ele compreende

    tudo o que percebemos, ele vai at s estrelas (Bergson, 1982, p. 274).

    Bergson explica que o encarceramento da conscincia nesse corpo

    mnimo, delimitado pelo invlucro corporal propriamente dito, conduz a

    negligenciar o corpo imenso (isto , coextensivo a tudo o que ns

    percebemos), e o produto de uma iluso metafsica. Ele precisa tambm

    que o corpo mnimo no pura e simplesmente absorvido no corpo

    imenso, ele o ponto a partir do qual o conjunto do grande corpo muda.

    Esse texto muito elptico, Bergson remete a nota de p de pgina ao

    primeiro captulo de Matire et mmoire [Matria e memria]. a ento

    que preciso ir buscar as explicaes mais detalhadas.

    Bergson descreve a o que chama a percepo pura, quer dizer

    uma sorte de ideal de percepo esvaziada de toda referncia memria.

    Essa percepo no existe, ela seria uma percepo instantnea. Se Bergson

    se vale dessa abstrao, porque ela apenas lhe permite descrever a

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  • dossi 181

    natureza verdadeira da percepo. Bergson se detm em uma iluso

    metafsica que consiste em dizer que as percepes so construes mentais

    feitas a partir de sensaes inextensivas, projetadas fora da conscincia. Isso

    incompreensvel, diz Bergson. Como posso fazer o extenso a partir da

    inextenso? Como posso fazer a exterioridade a partir da interioridade?

    Como posso fazer a percepo com as afeces? (eu sou afetado, mas

    jamais compreenderei que as afeces possam ser convertidas em

    representaes de qualquer coisa externa). Bergson inverte ento

    completamente os termos do problema e prope compreender o corpo como

    um objeto material dentre outros, o que ele chama uma imagem. A imagem

    em Bergson no uma construo da conscincia, ela o mundo exterior,

    ela designa o aparecer das coisas quando eu abro os olhos (ou os outros

    sentidos: h, por exemplo, imagens tteis). Todas essas imagens agem e

    reagem umas em relao s outras em todas suas partes elementares

    segundo leis constantes, as leis da natureza. O universo das imagens

    determinista. Todavia, entre essas imagens, h uma a que se destaca: meu

    corpo. Meu corpo no somente percebido, ele tambm sentido. Essas

    afeces vm se intercalar entre a ao das outras imagens sobre meu corpo,

    e o movimento que meu corpo reenvia s imagens. Elas introduzem uma

    parte de indeterminao em minha resposta ao das coisas sobre mim.

    Dito de outro modo, as afeces culminam em atos que no podem

    rigorosamente se deduzir dos fenmenos anteriores, segundo as leis da

    natureza: eles manifestam a capacidade que tenho de escolher minhas

    respostas e de introduzir novidades no mundo. Meu corpo ento, no

    conjunto do mundo material, uma imagem que age como as outras imagens,

    recebendo e dando movimento, com apenas uma diferena, talvez, que meu

    corpo parece escolher (Bergson, 1965, p. 14). Meu corpo , por

    conseguinte, um centro de ao e no um produtor de representaes do

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  • dossi 182

    mundo exterior a partir de sensaes inextensivas. Ele recebe movimento e

    o restitui, com essa diferena em relao s outras imagens, que ele escolhe

    sua resposta. Ele decide entre muitas abordagens materialmente possveis.

    Como ele escolhe? Ele escolhe em funo da maior ou menor vantagem que

    pode tirar das imagens ao seu redor. A partir da, conclui Bergson,

    necessrio que essas imagens assinalem de alguma maneira, na superfcie

    direcionada ao meu corpo, o partido que meu corpo poder tirar delas

    (Bergson, 1965, p. 15). Em outras palavras, os objetos que me cercam so o

    exato reflexo da ao possvel de meu corpo sobre eles: as imagens agem

    sobre mim, meu corpo reflete a ao que ele virtualmente tem sobre elas. Ei

    o que a percepo de uma coisa: a reflexo da ao possvel de meu corpo

    sobre essa coisa. A percepo no da ordem de uma representao, ela

    da ordem da ao: ela proporcionada pela possibilidade que tenho de agir

    sobre as coisas. Nossa representao da matria a medida de nossa ao

    possvel sobre os corpos (Bergson, 1965, p. 35). A percepo limita, corta

    no tecido do universo: indefinida de direito, ela se restringe, de fato, a

    assinalar a parte de indeterminao deixada pelas abordagens dessa imagem

    especial que chamais vosso corpo (Bergson, 1965, p. 38). Um organismo

    de possibilidades de ao muito limitadas ter uma percepo limitada; um

    organismo cujo sistema nervoso central autoriza uma gama de aes

    possveis muito extensa ter uma percepo em relao com essa riqueza:

    sendo ela tambm rica. No h ento mais na percepo/representao que

    na coisa: h menos. No se compreende totalmente como alguma coisa pode

    ser acrescida s sensaes inextensivas que me afetam para produzir um

    objeto extenso, tomando lugar no mundo exterior; por outro lado, no h

    problema para compreender que meu corpo, imagem entre as imagens,

    seleciona no universo os aspectos das coisas que interessam diretamente

    sua ao possvel sobre elas: ele deixa de lado o que no interessa a sua

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    ao. A percepo aparece quando uma ao das coisas sobre o corpo no

    provoca imediatamente uma resposta automtica (se h automatismo, no h

    nem percepo nem conscincia): ela aparece quando h atraso e escolha. A

    percepo no ento um fenmeno mental, ela se faz nas coisas e por ela

    ns nos colocamos junto s coisas. Meu corpo, no sendo um centro de

    representaes mas um centro de ao, coextensivo a suas possibilidades

    de aes sobre o universo das imagens.

    Se se retorna agora ao texto de Les deux sources de la morale et de

    la religion, v-se bem que esse corpo desmesuradamente grande de que fala

    Bergson no uma metfora, isso no designa metaforicamente o corpo

    social (no sentido do out-group de Simondon): esse corpo crescido no

    outro seno meu corpo, definido como centro de ao. O ponto crucial da

    anlise que ao definir o corpo como centro de ao, subordinando a a

    percepo ao (, alis, o que tambm fez Simondon), Bergson solidariza

    de maneira muito estreita o problema da existncia para muitos e o

    problema dos modos de confrontao matria. Descobre-se que o modo de

    agrupamento dos homens no de todo indiferente aos modos de

    confrontao matria, que abrem para possibilidades de ao marcantes.

    Em termos simondonianos, uma filosofia da individuao humana implica

    ter junto o pensamento do transindividual o corpo social do indivduo

    e o pensamento da tcnica o tipo aliana do homem e da matria em um

    dado momento, em uma sociedade dada. Tem-se aqui, ento, a unidade das

    duas teses.

    Concluso

    Em uma poca (os anos cinquenta) em que as diatribes contra o suposto

    anti-humanismo das mquinas industriais constituem praticamente o

    nico discurso filosfico sobre a tcnica, Simondon surge como um

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    pensador resolutamente iconoclasta. Defendendo a ideia que as mquinas

    so realidades culturais por inteiro, da mesma forma que as obras de arte,

    sem dvida ele surpreendeu. Indo at a tese defendida de que uma filosofia

    da individuao humana deve pensar o homem sobre a base de seus modos

    de engajamento na matria quer dizer, definitivamente, sobre a base de

    suas tcnicas ele corre fortemente o risco de permanecer incompreendido

    na poca. No entanto, ele apenas eleva ao plano da reflexo filosfica das

    descobertas antropolgicas maiores e incontestveis: o homem se

    humanizou fazendo o retorno para o mundo exterior, confrontando-se com a

    matria, exteriorizando suas funes biolgicas nas ferramentas e

    exteriorizando suas programaes numa memria social. Os animais

    podem ter competncias sociais muito elaboradas, basta citar o caso dos

    chimpanzs e dos bonobos. Contudo, o homem sem dvida o nico

    vivente que multiplicou, enriqueceu e complicou as formas de sua

    organizao social na medida mesma em que ele multiplicou, enriqueceu e

    complicou seus modos de confrontao matria. H certamente tcnica na

    animalidade, h mesmo mediaes tcnicas complicadas entre os animais

    (em todo caso em certas espcies animais que no somente utilizam

    ferramentas, mas que podem tambm combinar operaes tcnicas segundo

    uma cadeia operatria elaborada). Dito isto, o homem esse vivente

    especial cujas formas de organizao social podem sempre ser

    transformadas por irrupo de modos inditos de confrontao com a

    matria. muito provavelmente uma situao desse tipo que nos expem as

    biotecnologias e as nanotecnologias hoje: novas relaes para com a matria

    so experimentadas nos laboratrios, essa situao suscetvel de inquietar

    as formas sociais de humanidade atual. Simondon elevou a um alto nvel de

    elaborao filosfica essa constatao, feita pelos paleoantroplogos, que a

    realidade e a evoluo humana repousam sobre a existncia de uma

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    solidariedade entre modo de confrontao matria e modo de

    agrupamento. Em suma, entre tcnica e sociedade. Essa solidariedade que

    faz a originalidade da frmula humana no conjunto do mundo vivo desenha

    ento os contornos disso que Simondon no hesita em denominar de um

    humanismo para o nosso tempo. Sociologia, tecnologia, humanismo: tais

    so os trs pilares da filosofia da individuao humana proposta por

    Simondon.

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