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     ud ith evel

    MI HELFOU ULT

     ON EITOS ESSEN I lS

     

    l r luz

    E ITOR

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    J u clith Re v el

    MI HELFOU ULT

     ON EITOS ESSEN I IS

    Tradução  arlos Piovezani Filho e Nilton Milanez

    Revisão Técnica Maria do Ro ário Gregolin

     

    c la ra luz

    E ITOR

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    Título original:

      Vocabulaire de Foucault

    © Ellipses Édition Marketing S.A., 2002

    32, rue Bargue 75740 Paris cedex 15

    ISBN 2-7298-1088-9

    Diagramação

    Malra Valencise

    Capa

     ez e  ez Mu timeios

    Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca do ICMC/USP

    R449m Revel, Judith.

    Michel Foucault: conceitos essenciais / Judith Revel ;

    tradução Maria do Rosário Gregolin, Nilton Milanez,

    Carlo Piovesani. - São Carlos : Claraluz, 2005.

    96 p  21 cm

    ISBN 85-88638-09-6

    I. Teoria de Foucault. 2. Linguagem - Filosofia.

    3. Análise do discurso. L Gregolin, Maria do Rosário, trad.

    11.Milanez, Nilton, trad. 1II. Piovesani, Carlos, trad. IV. Título.

    EDITORA CLARALUZ

    Rua Rafael de A. Sampaio Vidal, 1217

    CEP 13560-390 - Centro / São Carlos - SP

    FonelFax: 16  3374 8332

    Site: www.editoraclaraluz.com.br

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou

    transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em banco de

    dados sem permissão da Editora Claraluz Ltda.

    ©

    Editora Claraluz, São Carlos, 2005

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     onceitos ssenciais

    Acontecimento 13

    Arqueologia 16

    Arquivo  

    Atualidade 20

    Aufklarung 22

    Autor 24

    Biopolitica 26

    Controle 29

    Corpos  investimento politico dos  31

    Cuidado de si / Técnicas de si 33

    Disciplina 35

    Discurso 37

    Dispositivo 39

    Episteme 41

    E tética  da existência  .43

    tica 45

    Expêriencia 47

    Exterior 50

    Genealogia 52

    Governamentalidade 54

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    Guerra 56

    História 58

    Loucura 62

    Norma 65

    Poder 67

    Problematização 70

    Razão / Racionalidade 72

    Resistência /  r n gressão 74

    Saber / Saberes 77

    Sexualidade 80

    Subjetivação processo de 82

    Sujeito / Subjetividade 84

    Verdade / Jogos de verdade 86

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     present ção

    A obra de Miche l Foucault é complexa: nela

    freqüentem ente sublinhou-se a grande variedade dos campos

    de investigação, a espanto a escritura barroca, os empréstimos

    de outras disciplinas, as voltas e reviravoltas, as mudanças de

    terminologia, a vocação simultaneamente f.tlosófica e jornali tica

    - numa palavra, nada que possa parecer com aquilo que a

    tradição nos habituou a conceber como um sistema filosófico.

    Um voc bu lár io de Foucault que apresenta seus conce itos essenc i is

    se inscreve ne sa mesma diferença, visto que ele apresenta,

    absolutamente ao mesmo tempo, a retomada de conceitos

    filosóficos herdados de outros pensamentos - e, por vezes,

    largamente desviados de seu sentido inicial -, a criação de

    conceitos inéditos e a elevação de termos emprestados da

    linguagem comum à dignidade f.tlosófica; por outro lado, é um

    voc bulár io

    que emerge freqüentem ente a partir de práticas e que

    se propõe como gerador de práticas: isso ocorre porque um

     rsen  l conce itu l é, literalmente gostava de lembrar Foucault),

    uma caixa de ferramentas . Enfim, antes de ser fixado

      T its et écrits foi publicado, no França, pela Gallimard  1994, 04 volumes),

    sob a direção de Oaniel Oefert e François Ewald com a colaboração de Jacques

    Lagrange. A edição brasileira de   itos e Escritos  organizada por Manoel Barros da

    Morta, foi publicada, em 05 volumes, pela Forense Universitária, entre 2002 e

    2004.

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    definitivamente no livros o vocabulário se forja e e modela no

    laboratório da obra: o enorme corpus de textos esparsos reunidos

    sob o título de Ditos e escritos  fornece desse ponto de vista um

    resumo formidável do trabalho de produção de conceitos que

    implica o exercício do pensamento; essa é a razão pela qual na

    maior parte dos casos se encontrará aqui neste livro referências

    aos textos de Ditos e escritos preciso igualmente sublinhar que

    esse laboratório do pensamento não é somente o lugar onde se

    criam conceitos mas freqüentemente também o lugar onde

    num movimento de reviravolta que está sempre presente em

    Foucault eles passaram num segundo tempo pelo crivo de uma

    crítica interna: os termos são portanto produzidos fixados

    depois reexaminados e abandonados modificados ou ampliados

    num movimento contínuo de retomada e de deslocamento.

    Este livro no qual proponho a definição de conce ito s

    essenc iais de Foucault sob a forma de um vocabulário em ordem

    alfabética precisou considerar tudo is o ao mesmo tempo. Tarefa

    árdua certamente já que procurei não estancar esse movimento

    e ao mesmo tempo pretendi tornar compreensível a coerência

    fundamental da reflexão foucaultiana. Foi necessário portanto

    operar escolhas freqüentemente difíceis a fim de tornar

    visíveis as passagens essenciais des a problematização contínua;

    e na medida do possível tentei tecer sistematicamente por

    meio de um jogo de remissões a trama a partir da qual o percurso

    filosófico de Foucault podia ser visualizado na complexidade

    de suas ramificações e de suas reviravoltas. o final de sua vida

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    Foucault gostava de falar de problematização e não entendia,

    nessa idéia, a representação de um objeto pré-existente nem a

    criação, por meio do discurso, de um objeto que não existe, mas

     o conjunto de práticas di cursivas ou não-discursivas que faz

    entrar alguma coi a no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui

    como objeto para o pensamento quer isso seja sob a forma da

    reflexão moral, do conhecimento cientifico, da análise política

    etc.) . Ele assim definia, portanto, um exercício crítico do

    pensamento que se opõe à idéia de uma pesquisa metódica da

     solução , porque a tarefa da filosofia não é resolver - aí

    compreendida a ação de substituir uma solução por outra - mas

     problematizar , não reformar, mas instaurar uma distância

    crítica, fazer jogar o desprendimento .

    A maior homenagem que podemos prestar, hoje, a

    Foucault é preci amente restituir ao seu pensamento sua

    dimensão problemática. Este livro, ao organizar um vocabulário

    com os

     o n e ito s e sse n i is

    de Foucault muito mais do que um

    simples conjunto de termos enumerados segundo a ordem

    alfabética) é uma tentativa de reconstituir a diversidade dessas

    problematizações - sucessivas ou superpo tas - que fazem a

    extraordinária riqueza das análi es foucaultiana .

    Judith Revel

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      rg niz ção do livro

    Este livro apresenta

     on eitos essen i is

    de Michel

    Foucault em forma de verbetes com três níveis assinalados por

    asteriscos

    definição de base

     

    definição particularizada que apresenta o desenvolvimentos

    do conceito na obra foucaultiana

     

    definição mais ampla que insere o conceito e o relaciona

    com outros no interior da obra de Foucault

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     ON EITOS ESSEN I IS

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    /4

    Judith Revel

     

    a partir dessa inserção do acontecimento no centro de sua

    análises gue Foucault reivindica o estatuto de historiador - talvez,

    também porgue, como ele mesmo o observa, o acontecimento não

    tenha sido uma categoria filosófica, salvo, talvez, nos estóicos:  O

    fato de eu considerar o discurso como uma s é r de acontecimentos

    nos situa automaticamente na dimensão da história

    f  

    ão sou

    historiador no sentido estrito do termo; mas os historiadores e eu

    temos em comum um interesse pelo acontecimento [...

     

    em a lógica

    do sentido, nem a lógica da estrutura são pertinentes para esse tipo de

    pesquisa? . É portanto, por ocasião de uma discussão com os

    historiadores  gue Foucault dá a definição de  acontecimentalização :

    não uma história aconteci mental, mas a tomada de consciência das

    rupturas da evidência induzidas por certos fatos. O gue se trata então

    de mostrar é a irrupção de uma singularidade  não necessária: o

    acontecimento gue representa o enclausuramento, o acontecimento

    da aparição da categoria de doenças mentais etc,

     

    A partir da definição de acontecimento como irrupção de uma

    singularidade histórica, Foucault vai desenvolver dois discursos. O

    primeiro consiste em dizer gue nós repetimos sem o saber os

    acontecimentos,  nós os repetimos na nossa atualidade, e eu tento

    apreender gual é o acontecimento sob cujo signo nós nascemos, e

    gual é o acontecimento gue continua ainda a nos atravessar . A

    acontecimentalização da história deve, portanto, se prolongar de

    maneira genealógica por uma acontecimentalização de nossa própria

    4

    Dialogue sur le pouvoir. In: Wade, S. Che; Foucault . Los Angeles: Circabook,

    1978. [Tradução brasi leira: Diálogo sobre o poder. In: Ditos e Escritos  vol. IV, p.

    258].

    5 La poussiêre et le nuage. In: M. Perrot (ed.) L impossible

    pr son 

    Paris: Seuil,

    1980. [Tradução brasileira: A poeira e a nuvem. In: Ditos e Escritos vol. IV, p. 323-

    334 .

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    Michel Foucault: conceitos essenciais  

    atualidade. O segundo discurso c nsiste precisamente em buscar na

    nossa atualidade os traços de uma ruptura acontecimental  - t raço

    que Foucault localiza já no texto kantiano consagrado às Luzes, e que

    ele crê reencontrar por ocasião da revolução iraniana, em 1979 -

    porque está aí, sem dúvida, o valor de ruptura de todas as revoluções:

     A revolução [... ] corre o risco de banalizar-se, mas como

    acontecimento cujo próprio conteúdo é importante, sua existência

    atesta uma virtualidade permanente e que não pode ser esquecida .

     

    What s is Enlightenment ? In P. Rabinow (êd.).

    The Foucault Reader 

    New York:

    Pantheon Books, 1984, e Qu es t-ce que les lumiêres? In:

    Magazine Littéraire

    na

    207, maio de 1984. [Tradução brasileira: O que são as Luzes? In:

    Ditos e

    Escritos,

    vol. lI, p. 335-351).

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    udith evel

     rqueologi

    *0

    termo argueologia aparece três vezes nos

    título

    da obra de

    Foucault - ascim en to da clín ic a   Uma arqueo lo gia d o o lh ar m é dic o  1963), As

    pa lavras e as co isa s  Um a arqueo lo g ia das ciê ncias humana s  1966) e Arqueolog ia

    do saber

     1969) - e caracteriza até o final dos anos 70 o método de

    pesguisa do fJ.iósofo.Uma argueologia não é uma  história na medida

    em que, como se trata de construir um campo histórico, Foucault opera

    com diferentes dimensões filosófica, econômica, científica, politica

    etc.) a fim de obter as condiçõe de emergência dos discursos de saber

    de uma dada época. Ao invés de estudar a história das idéias em sua

    evolução, ele e concentra sobre recortes históricos precisos - em

    particular, a idade clássica e o início do século XIX -, a fim de descrever

    não somente a maneira pela gual os diferentes saberes locais se

    determinam a partir da constituição de novos objetos gue emergiram

    num certo momento, mas como eles se relacionam entre si e desenham

    de maneira horizontal uma configuração epistêmica coerente.

    **

    e o termo arqueologia nutriu, em dúvida, a identificação de

    Foucault com a corrente estruturali ta - na medida em gue ele parecia

    evidenciar uma verdadeira estrutura epistêmica da qual os diferentes

    saberes não teriam sido enão variantes -, sua interpretação é, na

    verdade, bem outra. Como lembra o subtítulo de As palavras e as

    coisas não se trata de fazer a arqueo lo g ia   mas Nma arqueologia da ciência

    humanas: mais do que uma descrição paradigmática geral, trata-se de

    um corte horizontal de mecanismos gue articulam diferentes

    acontecimentos discursivos - o aberes locais - ao poder. Essa

    articulação, claro, é inteiramente histórica: ela possui uma data de

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    Michel Foucault: conceitos essenciais

     

    nascimento - e o grande desafio consiste em encarar igualmente a

    possibilidade de seu desaparecimento, como na orla do mar um

    rosto de areia .

      a arqueologia , reencontra-se, ao mesmo tempo, a idéia da

     rcbê  isto é, do começo, do princípio, da emergência dos objetos de

    conhecimento, e a idéia de arquivo - o registro desses objetos. Mas,

    da mesma maneira que o arquivo não é o traço morto do passado, a

    arqueologia visa, na verdade, ao presente: Se eu faço isso, é com o

    objetivo de saber o que nós somos hoje . Colocar a que tão da

    historicidade dos objeto de saber é, de fato, problematizar nosso

    próprio pertencimento, ao mesmo tempo, a um regime de

    discursividade dado e a uma configuração do poder. O abandono do

    termo arqueologia em proveito do conceito de genealogia , logo

    no começo dos anos 70, insistirá obre a necessidade de dirigir a leitura

      horizontal  das discursividades para uma análise vertical- orientada

    para o presente - das determinações históricas de nosso próprio regime

    de discurso.

      es mO S et les choses  Une archéologie des sciences humaines  Pari: GaJlimard 

    1966  [Tradução bra ileira: As palavras e as coisas Uma arqueologia das ciências

    humanas São Paulo: Martins Fonte  2000  p  536]

    8

    Dialogue ur le pouvoir  op  cit  nota 4 

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    Judith Revel

     rqu vo

    * Chamarei de arquivo não a totalidade de textos que foram

    conservados por uma civilização, nem o conjunto de traços que

    puderam ser salvos de seu desastre, mas o jogo das regras que, numa

    cultura, determinam o aparecimento e o desaparecimento de

    enunciados, sua permanência e seu apagamento, sua existência

    paradoxal de acon tecimento s e de coisas. Analisar o fatos de di curso no

    elemento geral do arquivo é considerá-Ios não ab olutamente como

    docum en to s

     de uma significação escondida ou de uma regra de

    construção), mas como monumen to s: é - fora de qualquer metáfora

    geológica, em nenhum assinalamento de origem, sem o menor gesto

    na direção do começo de uma arcb ê - fazer o que poderíamo chamar,

    conforme os direitos lúdicos da etimologia, de alguma coisa como

    uma arq /ICologia

    **Da

    H isto ria da Loucura   Arq ueo lo gia do S ab er

    o arquivo representa,

    portanto, o conjunto dos discursos efetivamente pronunciados numa

    época dada e que continuam a existir através da história. Fazer a

    arqueologia dessa massa documentária é buscar compreender as uas

    regras, suas práticas, suas condições e seu funcionamento. Para Foucault,

    isso implica, antes de tudo, um trabalho de recuperação do arquivo

    gera l da época escolhida, isto é, de todos os traço discur ivos

    susceptívei de permitir a reconstituição do conjunto das regras que,

    num momento dado, definem ao mesmo tempo os limite e as formas

    9

    Sur I archéologie des cience. Réponse au Cercle d é pistérnologie. ln:   ahiers

    pour I analyse

    n  9, 1968. [Tradução brasileira: Sobre a Arqueologia da Ciência.

    Resposta ao Círculo de Epi temologia. ln: Ditos e Escritos vol. l p. 95].

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    Michel Foucault: conceitos essenciais  

    da dizibilidade, da conservação, da memória, da reativação e da

    apropriação. O arquivo permite a Foucault, portanto, distinguir-se dos

    estruturalistas - pois se trata de trabalhar obre os discursos

    considerados como acontecimentos e não sobre o sistema da língua

    em geral -, e dos historiadores - uma vez que e esses acontecimentos

    não fazem, literalmente, parte de nosso presente,   eles subsistem e

    exercem, nessa mesma substância no interior da história, um certo

    número de funções manifestas ou secretas . Enfim, se o arquivo é o

    corpo da arqueologia, a idéia de constituir um arquivo geral, isto é, de

    encerrar num lugar todo os traços produzidos, é, por sua vez,

    arqueologicamente datável: o museu e a biblioteca são, certamente,

    fenômenos próprios à cultura ocidental do século XIX.

     

    A partir do inicio dos anos 70, parece que o arquivo muda de

    estatuto em Foucault: em favor de um trabalho direto com os

    historiadores (em

    P ie rre R ivie re ,

    de 1973; em

    L  i1 J tfJoss ib /e

    pri son , sob a

    direção de Michelle Perrot, de 1978; ou com Arlette Farge, em

    L e

    désord re d e s f a J Ii /Ies ,

    de 1982), ele reivindica cada vez mais a dimensão

    subjetiva de seu trabalho ( E te não é um livro de história. A escolha

    que nele se encontrará não seguiu outra regra mais importante do que

    meu gosto, meu prazer, uma emoção ?  ) e se entrega a uma leitura

    frequentemente muito literária do que ele chama, às vezes, de estranhos

    poemas . O arquivo funciona, a partir de então, mais como traço de

    existência do que como produção discursiva: sem dúvida, porque, na

    realidade, Foucault reintroduz nesse momento a noção de subjetividade

    em sua reflexão. O paradoxo de uma utilização não histórica das fontes

    históricas lhe foi muitas vezes abertamente censurado.

     

    La vie des hommes infâmcs In:

    Les cahiers du chemim 

    n? 29 1977  [Tradução

    brasileira: A vida dos homens infames

    ln:

    Ditos e Escritos  vol  IV  p 203]

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    Judith Revel

      t u l i d d e

     

    A noção de atualidade aparece de dua maneiras diferentes em

    Foucault. A primeira consiste em destacar como um acontecimento-

    por exemplo, a cisão entre loucura e não-loucura - não omente

    engendra uma série de discursos, de prática , de comportamentos e

    de instituições, mas se estende até nós. Todo es es acontecimento,

    parece-me que os repetimos. ós os repetimos em nossa atualidade e

    eu tento compreender qual é o acontecimento que pre idiu nosso

    nascimento e qual é o acontecimento que continua, ainda, a nos

    atravessar  '. A passagem da arqueologia

    à

    genealogia será, para

    Foucault, a ocasião de acentuar ainda mais essa dimensão de

    prolongamento da história no presente. A segunda concepção de

    atua idade

    está estritamente ligada a um comentário que Foucault faz

    do texto de Kant, O

    que é o J u1JI in is1J lo?

    em 1984

      2

    A análise insi te,

    então, sobre o fato de que colocar filosoficamente a questão de sua

    própria atualidade - o que faz Kant pela primeira vez - marca, na

    realidade, a passagem para a modernidade.

     

    Foucault desenvolve duas linhas de discurso a partir de Kant.

    Para Kant, colocar a questão do pertencimento a sua própria atualidade,

    é - comenta Foucault - interrogá-Ia como um acontecimento do qual

    se poderia falar em termos de sentido e singularidade, e colocar a

    questão do pertencimento a um  nós que corresponde a essa

     

    Sexualité et pouvoir. Conferência na Universidade de Tókio  1978). Retomado

    em

    D its e t É crits

    Paris: Gallimard,

     

    994, vol. 3., texte n. 233. [Tradução brasileira:

    Sexualidade e poder. Ln:  itos e Escritos vol. V, p. 56]

      2

    Ver: What s is Enlightenment ? op. cit. nota 6.

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    Michel Foucault: conceitos essenciais

    21

    atualidade, isto é, formular o problema da comunidade da qual fazemos

    parte. Mas é preciso igualmente compreender que se retomamos hoje

    a idéia kantiana de uma ontologia crítica do presente, não é somente

    para compreender o que funda o espaço de nosso discurso, mas para

    desenhar os seus limites. Da mesma maneira que Kant busca uma

    diferença: qual a diferença que o hoje introduz em relação a ontem? ',

    devemos, de nossa parte, fazer emergir da contingência histórica, que

    nos faz ser o que somos, possibilidades de ruptura e de mudança.

    Colocar a questão da atualidade retoma, portanto, a definição do

    projeto de uma crítica prática sob a forma da ultrapassagem

    possível  ,

     

    Atualidade e presente são, inicialmente, sinônimos. o

    entanto, uma diferença vai se acentuar cada vez mais entre o que, de

    um lado, nos precede mas continua, ape ar de tudo, a nos atravessar e

    o que, de outro lado, sobrevém, ao contrário, como uma ruptura da

    grade epistêmica a que pertencemos e da periodização que ela engendra.

    Essa irrupção do novo , que tanto Focault quanto Deleuze chamam

    igualmente de acontecimento , torna-se, assim, o que caracteriza a

    atualidade. O presente, definido por sua continuidade histórica, não é,

    ao contrário, interrompido por nenhum acontecimento: ele pode

    somente oscilar e se romper dando lugar à instalação de um novo

    presente. Se elas representaram um grande problema - particularmente

    no momento de publicação de  s p l v r s e  s c ois s (1966) - nos anos

    80, o conceito de atualidade permite a Foucault encontrar, enfim, o

    meio para integrar as rupturas epistêrnicas.

     

    What's is Enlightenrnent ? op. cito nota 6.

    14

    What's is Enlightenment

     

    op. cit. nota 6.

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    Michel Foucault: conceitos essenciais

      3

    compreender a evolução da posteridade do  ti  kliinmg nos cliferentes

    países e a maneira pela qual ela foi investida em campos cliversos: em

    particular, na Alemanha, numa reflexão histórica e politica da sociedade

    ( dos hegelianos à Escola de Frankfurt e a Lukács, Feuerbach, Marx,

    ietzsche e Max Weber I ; na França, por meio da história das ciências

    e da problematização da cliferença entre saber/crença, conhecimento/

    religião, científico/pré-científico (Comte e o positivismo, Duhem,

    Poincaré, Koyré, Bachelard, Canguilhem). Enfim, o terceiro coloca a

    questão de nosso próprio presente: Kant não busca compreender o

    presente a partir de uma totalidade ou de uma realização futura. Ele

    busca uma cliferença: qual a cliferença que ele introduz hoje em relação

    ao ontem 18?   essa busca da cliferença que caracteriza não somente

     a a titude da modernidade , mas o   t os que nos é próprio.

    ***0 comentário de Kant esteve no centro de um debate com

    Habermas, infelizmente interrompido pela morte de Foucault, As

    leituras que os dois filósofos dão à questão das Luzes são

    diametralmente opostas, em particular, porque Habermas busca, na

    verdade, definir, a partir da referência kantiana, as conclições requeridas

    para uma comunidade lingüistica ideal, isto é, a unidade da razão crítica

    e do projeto social. Em Foucault, o problema da comunidade não é

    condição de possibilidade de um novo universalismo, mas a

    conseqüência direta da ontologia do presente:  para o filósofo, colocar

    a questão do pertencimento a esse presente, não será mais,

    absolutamente, colocar a questão de seu pertencimento a uma doutrina

    ou a uma traclição; não será mais, simplesmente, colocar a questão de

    seu pertencimento a uma comunidade humana em geral, mas aquela

    de seu pertencimento a um certo nós , a um nós que se relaciona

    com um conjunto cultural característico de sua própria atualidade ? .

     7 Introdução a Canguilhem, G.   lhe  ormal nnd lhe Pathological  op.cit. nota 16.

     

    What is Enlightenrnent? op. cit. nota 6.

     9 What's enlightenment?, op. cit. nota 6.

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    Judith Revel

     ut r

    *Em 1969, Foucault faz uma conferência sobre a noção de autor que

    se abre com essas palavras: Que importa quem fala? essa

    indiferença se afirma o principio ético, talvez o mais fundamental, da

    escrita contemporâneaF . Essa critica radical da idéia de autor - e

    mai geralmente do par autor/obra - vale ao mesmo tempo como

    diagnóstico sobre a literatura (em particular, na tripla esteira de

    Blanchot, do novo romance e da nova crítica), e como método

    foucaultiano de leitura arqueológica: com efeito, e reencontramos

    frequentemente a teorização desse lugar vazio em alguns escritores

    gue Foucault comenta na época, é igualmente verdadeiro que a análise

    a que se dedica o filósofo em

    As Palavras e as C oisas

    procura, por sua

    vez, aplicar ao arquivo, isto é, à historia, o princípio de uma leitura das

      massas de enunciados ou   planos discursivos , que não estavam

      bem acentuados pelas unidades habituais do livro, da obra e do

    autor  ? . Desse ponto de vista, o início de

    A O rdem do D iscurso

    continuidade à reflexão sobre um fluxo de fala que seria ao mesmo

    tempo historicamente determinado e não-individualizado, e que ditaria

    as condições de fala do próprio Foucault na sua aula inaugural no

    Col egede France Gostaria de perceber que no momento de falar uma

    voz sem nome me precedia há muito tempo 22.

    **Do ponto-de-vista do método, Foucault está aparentemente

    bastante próximo do que fez Barthes na mesma época, porque a análise

    estrutural da narrativa não se refere à psicologia, à biografia pessoal

      Qu est-ce qu un auteur? In: Bulletin de Ia Société Française de Philosophie junho-

    setembro 1969. [Tradução brasileira: O que é um autor? In:

    Ditos e Escritos

    vol. 111,

      . 2641·

      Qu est-ce qu un auteur?, op. cit. nota 20.

     

    L  ordre du discours.

    Paris: Gallimard, 1971. [Tradução brasileira: A

    ordem do

    discurso. São Paulo: Loyola, 1996 , p. 5] .

     

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    Michel Foucaul(· conceitos essenciais  

    ou às características subjetivas do autor, mas às estruturas internas do

    texto e ao jogo de sua articulação.

     

    provavelmente a partir da

    constatação dessa vizinhança  metodológica (que o aproxima

    igualmente de Althusser, de Lévy- trauss ou de Durnézil) que se tem

    geralmente associado Foucault à corrente estruturalista. Em Foucault,

    entretanto, a busca de estrutura lógicas e tá marcada por uma veia

    blanchotiana particular ( a obra comporta sempre, por assim dizer, a

    morte do autor: no mesmo momento em que se escreve, se

    desapareceP ) que, além da simples referência à caducidade histórica

    de uma categoria que se havia acreditado até então incontornável, leva

    Foucault a uma análise das relações que envolvem a linguagem e a

    morte.

    À

    descrição do apagamento de uma noção da qual ele descreve

    historicamente a constituição e os rnecani mos, depois a dissolução (e,

    por i so, a noção de autor recebe o mesmo tratamento que aquela de

      sujeito ) ; Foucault acrescenta, assim, ao mesmo tempo a identificação

    de seu próprio estatuto de fala e a problematização de uma experiência

    da escritura concebida como passagem ao limite.

      Essa influência blanchotiana o levará, ao longo dos anos 60, e à

    margem dos grandes livros, a e deter sobre um certo número de

     casos literário s que p ssuem todos um parentesco com a loucura (e

    estamos ainda bem longe das propo tas da

    His tória da LoIfC llra 

    ou

    com a morte. Foucault comentará, então, Hôlderlin e erval, Roussel

    e Artaud, Flaubert e Klossowski, e até mesmo alguns escritores

    próximos do grupo

    Te  Que ,

    sublinhando-lhes o valor exemplar: A

    linguagem, entâ , tomou sua e tatura soberana: ela surge como vinda

    de alhures, de lá onde ninguém fala; mas só existe obra se, remontando

    seu próprio discur o, ela fala na direção dessa ausência ? .

      3 Interview avec Michel Foucault,

     onniers Liuerãre Magasin 

    Stockholrn, n  3,

    março de 1968. Retomado em Dits e Écrits vol.l, texto n  54.

    24.Le non  du pére. In :   ritique n  178, março de 1962. [Tradução bra ileira: O

    não do pai. In: Ditos e Escritos  vol. I, p. 200].

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    Judith Revel

      iopolítica

    *0 termo biopolítica designa a maneira pela qual o poder tende a

    se transformar, entre o fim do século XVIII e o começo do século

    XlX a fim de governar não somente os indivíduos por meio de um

    certo número de procedimentos disciplinares, mas o conjunto dos

    viventes constituidos em população: a biopolítica - por meio dos

    biopoderes locais - se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da

    higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida

    em que elas se tornaram preocupações políticas.

    ** A noção de biopolítica implica uma aruilise histórica do quadro

    de racionalidade política no qual ela aparece, isto é, o nascimento do

    liberalismo. Por liberalismo é preciso entender um exercício do governo

    que não somente tende a maximizar seus efeitos, reduzindo ao máximo

    seus custos, sobre o modelo da produção industrial, mas que afirma

    arriscar-se empre a governar demais. Mesmo que a razão do Estado

    tivesse buscado desenvolver seu poder por meio do crescimento do

    Estado, a reflexão liberal não parte da existência do Estado,

    encontrando no governo um meio de atingir essa finalidade que ele

    seria para si mesmo; mas da sociedade que vem a estar numa relação

    complexa de exterioridade e de interioridade em relação ao Estado 25.

    Esse novo tipo de governamentalidade, que não é redutível nem a

    uma análise jurídica nem a uma leitura econômica ainda que uma e

    25

    Naissance de Ia biopolitique.

    ln

    nnuaire du Collêge de France

    79 année.

    Chaire d histoire des systêrns de pensée année 1978-1979 1979. [Tradução

    brasileira: Nascimento da biopolítica. 1n: Resumo dos Cursos do College de France

     /970-1982 . Rio de Janeiro: Jorge Zahar  1997  p. 911-

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    Michel Foucault: conceitos essenciais

    27

    outra aí estejam ligadas , se apresenta, por conseqüência, como uma

    tecnologia do p der que se dá um novo objeto: a população . A

    população é um conjunto de seres vivos e coexistentes que apresentam

    traços biológicos e patológicos particulares e cuja própria vida é

    suscetível de ser controlada a fim de assegurar uma melhor gestão da

    força de trabalho:   A descoberta da população é, ao mesmo tempo

    que a descoberta do indivíduo e do corpo modelável, o outro grande

    nó tecnológico ao redor do qual os procedimentos políticos do

    Ocidente são transformados. Inventou-se, nesse momento, o que eu

    chamarei, por oposição à anátomo-política que acabei de mencionar,

    de biopolítica . Enquanto a disciplina se dá como anátomo-política

    dos corpos e se aplica essencialmente aos indivíduos, a biopolítica

    representa uma grande medicina social que se aplica à população a

    fim de governar a vida: a vida faz, portanto, parte do campo do

    poder.

     

    A noção de biopolítica levanta dois problemas. O primeiro está

    ligado a uma contradição que se encontra no próprio Foucault: nos

    primeiros textos onde aparece o termo, ele parece estar ligado ao que

    os alemães chamaram no século XIX de P ol ize iwissC   schaf t isto é, a

    manutenção da ordem e da disciplina por meio do crescimento do

    Estado. Mas, em eguida, a biopolítica parece, ao contrário, assinalar

    o momento de ultrapassagem da tradicional dicotornia Estado/

    sociedade, em proveito de uma economia política da vida em geral.

      dessa segunda formulação que nasce o outro problema: trata-se de

    pensar a biopolítica como um conjunto de biopoderes ou, antes, na

    medida em que dizer que o poder investiu a vida significa igualmente

      Les mailles

      u

    pouvoir, conferência na Universidade da Bahia, 1976. Ln:  arbárie

    n° 4 e n? 5, 1981. Retomado em

    Dits et Écrits

    vol.

     

    texto n° 297.

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    Judith Revel

    que a vida é um poder, pode-se localizar na própria vida - isto é,

    certamente, no trabalho e na linguagem, mas também no corpo, nos

    afetos, nos desejos e na sexualidade - o lugar de emergência de um

    contra-poder, o lugar de uma produção de ubjetividade que se daria

    como momento de desassujeitamento? esse ca o, o tema da

    biopolítica seria fundamental para a reformulação ética da relação

    com o político que caracteriza as últimas análises de Foucault; mais

    ainda: a biopolitica representaria exatamente o momento de passagem

    do político ao ético. Como o admite Foucault, em 1982, a análise, a

    elaboração, a retomada da questão das relações de poder e do

     ago nismo entre relações de poder e intransitividade da liberdade,

    são uma tarefa política incessante [...] é exatamente esta a tarefa política

    inerente a toda existência social?  .

     

    Le sujet et le pouvoir. In: Dreyfus H. e Rabinow. P.

    Michel Foucault: Beyond

    Structuralism and

     ermeutics

    Chicago: The University of Chicago Pres 1982.

     Tradução bra ileira: Michel Foucault  uma trajetória filosófica: para além do

    estruturalismo e da hermenêutica  Rio de Janeiro: Foren e Univer itária 1995].

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    Miche Foucault: conceitos essenciais

    29

     ontrol

    *0 termo controle aparece no vocabulário de Foucault de maneira

    cada vez mais fregüente a partir de 1971-72. Designa, num primeiro

    momento, uma série de mecanismos de vigilância gue aparecem entre

    os séculos XVIII e XIX e gue têm como função não tanto punir o

    desvio, mas corrigi-lo, e, sobretudo, preveni-lo:  Toda a penalidade

    do século XIX transforma-se em controle, não apenas sobre aquilo

    gue fazem os indivíduos - está ou não em conformidade com a lei? -

    mas sobre aquilo gue eles podem fazer, gue eles são capazes de fazer,

    daquilo gue eles estão sujeitos a fazer, daquilo gue eles estão na irninência

    de fazer 28. Essa extensão do controle social corresponde a uma  nova

    distribuição espacial e social da rigueza industrial e agrícola 29: é a

    formação da sociedade capitalista, isto é, a necessidade de controlar

    os fluxos e a repartição espacial da mão de obra, levando em

    consideração necessidades da produção e do mercado de trabalho,

    gue torna nece sária uma verdadeira

    ortoped i soci l

    para a gual o

    desenvolvimento da policia e da vigilância das populações são os

    instrumentos essenciais.

    **0 controle social passa não somente pela justiça, mas por uma

    série de outros poderes laterais (as instituições psicológicas, psiguiátricas,

    criminológicas, médicas, pedagógicas; a gestão dos corpos e a

    instituição de uma politica da saúde; os mecanismos de assistência, as

    associações filantrópicas e os patrocinadores etc.) gue se articulam em

    dois tempos: trata-se, de um lado, de constituir popul ções nas quais os

    28

    La vérité et les formes juridiques. Conferência na universidade do Rio de Janeiro,

    maio, 1973. Retomado em:   itset É rits vol.2, texto n° 139.[Tradução brasileira:

    A verdade e as formas jurídicas Rio de Janeiro: Nau Editora, 1999].

     

    La vérité et les forme juridique , op. cit. nota 28.

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    30

    Judith Revel

    indivíduos serão inseridos - o controle é essencialmente uma economia

    do poder que gerencia a sociedade em função de modelos normativos

    globais integrados num aparelho de Estado centralizado - ; mas, de

    outro, trata-se igualmente de tornar o poder capilar, isto é, de instalar

    um sistema de individualizacão que se destina a modelar cada individuo

    e a gerir sua existência. Esse duplo aspecto do controle social (governo

    das populações/governo pela individualização) foi particularmente

    estudado por Foucault no caso do funcionamento das instituições de

    saúde e do discurso médico do século XIX, mas também na análise

    das relações entre a sexualidade e a repressão no primeiro volume da

    H istória da Sexualidade A vonta de de saber .

     

    Toda a ambigüidade do termo controle deve-se ao fato de

    que, a partir dos anos 80, Foucault deixa subentender que ele o entende

    como um mecanismo de aplicação do poder diferente da disciplina.

     

    em parte sobre esse ponto que se efetua a reviravolta programática

    da H istôria da Sexua lidade, entre a publicação do primeiro volume (1976)

    e aquele dos dois últimos (1984):  o controle do comportamento

    sexual tem uma forma completamente diferente da forma disciplinar

    que se encontra, por exemplo, nas escolas. ão se trata de modo

    algum do mesmo

    assunto ?

    A interiorização da norma, patente na

    gestão da sexualidade, corresponde ao mesmo tempo a uma

    penetração extremamente fina do poder nas malhas da vida e   sua

    subjetivação. A noção de controle, uma vez tomada independentemente

    das análises disciplinares, conduz então Foucault ao mesmo tempo

    em direção a uma ontologia critica da atualidade e a uma análise

    dos modos de subjetivação que estarão no centro de seu trabalho nos

    anos 80.

    30

    Interview de Michel Foucault. In : Krisis  rnars 1984. [Tradução brasileira:

    Entrevista com Michel Foucault. In :

    Di os e Escritos 

    vol. I  p. 338].

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    Mjchel Foucault: conceitos essenciais

    Corpos  investimento político dos 

    *  Houve, no curso da idade clássica, toda uma descoberta do corpo

    como objeto e alvo do poder ? : as análises de Foucault nos anos 70

    buscam antes de tudo compreender como se passou de uma

    concepção do poder em que se tratava o corpo como uma superfície

    de inscrição de suplícios e de penas a uma outra que buscava, ao

    contrário, formar, corrigir e reformar o corpo. Até o final do século

    XVIII, o controle social do corpo passa pelo castigo e pelo

    enclausuramento:   Com os príncipes, o suplício legitimava o poder

    absoluto, sua  atrocidade se desdobrava sobre os corpos, porque o

    corpo era a única riqueza

    acessivel P ;

    em contra partida, nas instâncias

    de controle que aparecem desde o início do século XIX, trata-se, antes

    de tudo, de gerir a racionalização e a rentabilidade do trabalho industrial

    pela vigilância do corpo da força de trabalho:   Para que um certo

    liberali mo burguês tenha sido possível no nível das instituições, foi

    preciso, no nível do que eu chamo de micro-poderes, um investimento

    muito mais forte dos indivíduos, foi preciso organizar o

    esquadrinhamento dos corpos e dos comportamentos=  .

    **  Foi um problema de corpo e de materialidade - uma questão de

    física - que proporcionou a grande renovação da época: nova forma

    de materialidade tomada pelo aparelho de produção, novo tipo de

    contato entre esse aparelho e o que o fez funcionar; novas exigências

    impostas aos indivíduos como forças produtivas [...] é um capítulo na

     

    Surveiller e/ Punir. Pari: Gallimard, 1975, p. 138. [Tradução brasileira: Vigiar e

    punir. Petrópolis/RJ: Vozes, 1987J.

     

    La prision vue par un philosophc (rançais. In:

    L  Europeo 

    n° 1515, abril de 1975.

    [Tradução brasileira: A prisão vista por um filósofo francês. In :

    Di/os e Escritos 

    vol.

    [V, p. 154J.

      Sur Ia sellette. In :

    Les Nouvelles Littéraires

    n? 2477, março de 1975. Retomado em

    Dits e  Écri ts vol. 2, texto n° 152.

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    udith Revel

    romana da moral pastoral cristã; e não é precisamente na articulação

    do cuidado de si com os

     p rodisi

    que se pode compreender essa

    passagem da ética greco-romana   moral pastoral cristã? O segundo

    problema concerne, na verdade,   história desses  phrodis i como campo

    de investigação específico da relação com o si: trata- e de buscar

    apreender como os indivíduos foram levados a exercer sobre si

    mesmos e sobre os outros uma hermenêutica do desejo na qual seu

    comportamento sexual esteve, sem dúvida, envolvido, mas não,

    certamente, como domínio exclusivo , e de analisar os diferentes jogos

    de verdade utilizados no movimento de constituição do si como sujeito

    do desejo.

      Na Antigüidade clássica, o cuidado de si não está em oposição

    ao cuidado dos outros: ele implica, ao contrário, relações complexas

    com os outros porque é importante, para o homem livre, incluir na

    sua boa conduta  uma justa maneira de governar sua mulher, suas

    crianças ou sua casa. O

    ethos

    do cuidado de si é, portanto, igualmente

    uma arte de governar os outros e, por isso é essencial saber tomar

    cuidado de si para poder bem governar a cidade.

     

    sobre esse ponto,

    e não sobre a dimensão ascética da relação consigo, que se efetua a

    ruptura da pastoral cristã: o

     mo r s i

    torna-se a raiz de diferentes

    falhas morais e o cuidado dos outros implica, doravante, uma renúncia

    de si no transcurso da vida terrena.

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    Michel Foucault: conceilos essenciais 35

     isciplin

    * Iodalidade de aplicação do poder que aparece entre o final do

    século XVIII e o início do éculo XIX. O   regime disciplinar

    caracteriza-se por um certo número de técnicas de coerção que exercem

    um esquadrinhamento sistemático do tempo, do espaço e do

    movimento do indivíduos e que atingem particularmente as atitudes,

    os gestos, os corpos: Técnicas de individualização do poder. Como

    vigiar alguém, como controlar sua conduta, seu comportamento, suas

    atitudes, como intensificar sua performance, multiplicar suas

    capacidades, como colocá-Io no lugar onde ele será mais útil  38. O

    discurso da disciplina é estranho à lei ou à regra jurídica derivada da

    soberania: ela produz um discurso sobre a regra natural, isto é, . obre

    a norma.

    **Os procedimentos disciplinares se exercem mais sobre o. processos

    da atividade do que sobre seus resultados e a sujeição constante de

    suas força. [...] impõe uma relação de docilidade-utilidade P , As

      disciplinas não nascem, com certeza, verdadeiramente no século

    XVIII - elas se encontram desde há muito tempo nos conventos, nas

    forças armada , nas oficina -, mas Foucault procura compreender

    de que maneira elas tornaram-se, num determinado momento,

    fórmulas gerais de dominação.   O momento histórico das disciplinas

    é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que não visa

    somente ao crescimento de suas habilidades, nem ao incremento de

    sua sujeição, mas   formação de uma relação que no mesmo mecanismo

    o torna tanto mais obediente quanto mais útil ele for, e inversamente t ,

      Lc mailles du pouvoir. op. cit. nota 26.

    19

    Surveiller et unir  op.

    cit  nor 

    10 Surveiller et   unir  op. cit. nota

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    M ichel oucault  conceitos es enciai

    37

     is urso

    *0 discurso designa, em geral, para Foucault, um conjunto de

    enunciados que podem pertencer a campos diferentes, mas que

    obedecem, apesar de tudo, a regras de funcionamento comuns. Essas

    regras não são omente lingüísticas ou formais, mas reproduzem um

    certo número de cisões historicamente determinada (por exemplo, a

    grande separação entre razão/ desrazão): a ordem do discur o

    própria a um período particular possui, portanto, uma função

    normativa e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de

    organização do real por meio da pr dução de saberes, de estratégias

    e de práticas.

    **0 interes e de Foucault pelos planos discursivos foi

    imediatamente duplo. De um lado, tratava-se de analisar as marcas

    di cursivas, procurando isolar as leis de funcionamento independente

    da natureza e das condições de enunciação, o que explica o interesse

    de Foucault, na mesma época, pela gramática, pela lingüística e pelo

    formalismo:   foi original e importante a descoberta de que aquilo

    que se faz com a linguagem - poesia, literatura, filosofia, discurso em

    geral- obedece a um certo número de leis e de regularidades internas:

    as leis e as regularidades da linguagem. O caráter lingüístico dos fato

    de linguagem foi uma de coberta muito importante : ; mas, de outro,

    tratava- e de descrever a transformação dos tipo de discurso nos

    séculos À VII e XVIII, isto é, de historicizar o procedimentos de

    identificação e de classificação próprios de se período: nesse sentido,

      La vérité et les forme juridique   op  cit  nota 28 

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    38

    Judith Revel

    a arqueologia foucaultiana dos discursos não é apenas uma análise

    lingüistica, mas uma interrogação sobre as condições de emergência

    de dispositivos discursivos que sustentam práticas (como em

    História

    da Loucllt  1

    ou as engendram (como em

    As Palavras e a s C oisas

    ou em

    A arq/le ologia do Saber . esse sentido, Foucault substitui o par

    saussureano língua/fala por duas oposições que ele faz funcionar

    alternativamente: o par discurso/linguagem, no qual o discurso é,

    paradoxalmente, o que é renitente   ordem da linguagem em geral (é,

    por exemplo, o caso do esoterismo estrutural  de Raymond Roussel)

    - e é preciso notar que o próprio Foucault anulará essa oposição,

    intitulando sua aula inaugural no Collêge de France como A Ordem do

    Discurso, em 1971; e o par discurso/ fala, no qual () discurso se torna o

    eco lingüístico da articulação entre saber e poder, e no qual a fala,

    como instância subjetiva, encarna, ao contrário, uma prática de

    resistência   objetivação discur iva .

    ***0 aparente abandono do tema do discurso depois de 1971, em

    proveito de uma análise das práticas e das estratégias, corresponde ao

    que Foucault descreve como a passagem de uma arqueologia a uma

      dinastia do saber  : não mais somente a descrição de um regime de

    discursividade e de sua eventual transgressão, mas a análise da relação

    que existe entre esses grandes tipos de discurso e as condições históricas,

    as condições econômicas, a condições politicas de seu aparecimento

    e de sua

    forrnação t  .

    Ora, esse deslocamento, que embasa a passagem

    metodológica da arqueologia

     

    genealogia, permite problematizar as

    condições do

    desaparecim ento

    do discurso : () tema das práticas de

    resistência, onipresente em Foucault a partir dos anos 70, possui, na

    realidade, uma origem discursiva .

    •   De I archéologie à Ia dynastique. Entretien avec S.  asurni  scpiernbre 1972.

    Retomado em

      its et Écri ts,

    vol. 3, texto n  119. [Tradução brasileira: Da arqueologia

      dinástica. In:

      itos e Escritos

    vol. IV, p.

    49 

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    Michel Foucault: conceitos essenciais

    39

      spos t vo

    *0 termo dispositivos aparece em Foucault nos anos

     

    e designa

    inicialmente os operadores materiais do poder, isto é, as técnicas, as

    estratégias e as formas de assujeitamento utilizadas pelo poder. A partir

    do momento em que a análise foucaultiana se concentra na questão

    do poder, o filósofo insiste sobre a importância de se ocupar não

      do edifício jurídico da soberan.ia, dos aparelhos do Estado, das

    ideologias que o acornpanham r , mas dos mecanismos de dominação:

    é essa escolha metodológica que engendra a utilização da noção de

      dispositivos . Eles são, por definição, de natureza heterogênea: trata-

    se tanto de discursos quanto de práticas, de instituições quanto de

    táticas moventes: é assim que Foucault chega a falar, segundo o caso,

    de dispositivos de poder , de dispositivos de saber , de

      dispositivos disciplinares , de dispositivos de sexualidade etc.

    **0 aparecimento do termo dispositivo no vocabulário conceitual

    de Foucault está provavelmente ligado à ua utilização por Deleuze e

    Guattari no  Anti Édipo (1972): é, pelo menos, o que deixa entender o

    prefácio que Foucault escreveu em 1977 para a edição americana do

    livro, visto que ele aí ob erva a noções em aparência abstratas de

    multiplicidades, de fluxos, de dispositivos e de rarnificaçõe   44

    Posteriormente, o termo receberá uma acepção cada vez mais ampla

    (mesmo que, no começo, Foucault somente utilize a expressão

     

    ll faut défendre Ia société 

    Paris: Seuil, 1997. [Tradução brasileira:

    Em defesa da

    sociedade. Curso no College de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,

    1999].

    44 Prefácio a Deleuze, G. e Guauari, F.Anti Oedipus: Capitalism and Schizophrenia.

    New York: Viking Press, 1977. Retomado em Dits et Écrits vol. 3, texto n  189.

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    Judith Revel

     dispositivo de poder ) e c ada vez mais precisa, até ser objeto de

    uma reflexão completa após   uontade de saber (1976), em que a

    expressão dispositivo de sexualidade é central: um dispositivo é

     um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,

    instituições, organizações arquitetõnicas, decisões regulamentares, leis,

    medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,

    morais, filantrópicas.  m suma: o   t o e o não-dito l ] O dispositivo

    é a rede que se pode estabelecer entre esses

    elementos r  .

    O problema

    é, então, para Foucault, o de interrogar tanto a natureza dos diferentes

    dispositivos que ele encontra quanto sua função estratégica.

      a verdade, a noção de dispositivo substitui pouco a pouco

    aquela de

    ep istem e 

    empregada por Foucault, de um modo absolutamente

    particular, em   s p alavras e as coisas e até o final dos anos 60. Com

    efeito, a epistem e é um dispositivo especificamente discursivo, enquanto

    o dispositivo , no sentido que Foucault explorará dez anos mais

    tarde, contém igualmente instituições e práticas, isto é, todo o social

    não-discursivo  46 

    4j Le jeu de Michel Foucault. Ornicar  Bulletin périodique du champ [reudien  n 

    10, julho de 1977. (Tradução brasileira: Sobre a história da sexualidade. In:

     icroftsica do Poder  Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 244).

    46 Le jeu de Michel Foucault, op. cit. nota 45.

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    Mjchel Foucault: conceitos essenciais

    41

     pist m

    *0 termo episterne está no centro das análises de

      s Palavras e as

    Coisas

     1966) e deu lugar a numerosos debates na medida em que a

    noção é, ao mesmo tempo, diferente da de sistema - que Foucault

    praticamente nunca utiliza antes que sua cadeira no Collêge de France

    fosse, a seu pedido, rebatizada, em 1971, como cadeira de história

    dos sistemas de pensamento - e da de estrutura . Por

    episteme

    Foucault designa, na realidade, um conjunto de relações que liga tipos

    de discursos e que corresponde a uma dada época histórica: são

    todos esses fenômenos de relações entre as ciências ou entre os

    diferentes discursos científicos que constituem aquilo que eu denomino

    a episteme de uma época : 

    **Os mal-entendidos engendrados nos anos 60 pelo u o da noção

    devem-se a dois motivos: de um lado, interpreta-se a episteme como

    um sistema unitário, coerente e fechado, isto é como uma coerção

    hi tórica, que implica uma sobredeterminação rígida dos discursos; e,

    de outro lado, acusa-se Foucault de um certo relativismo histórico,

    isto é,

    ele

    foi instado a explicar a ruptura epistêrnica e a descontinuidade

    gue a pa sagem de uma

    episteme

    a outra necessariamente implica. obre

    o primeiro ponto, Foucault responde que a episteme de uma época não

    é a soma de seus conhecimentos ou o estilo geral de suas pe guisas,

    mas o desvio, as distâncias, as oposições, as diferenças, as relações de

    seus múltiplos discur os científicos: a

    episteme

    não é tona espécie de g ra tlde

    4? Le problêrnes de Ia culture. Un débat Foucault-Preli. In:   Bimestre  n? 22-23

    setembro-dezembro. 1972. Retomado em Dits et É  rits  vol. 2  texto n? 109.

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    42

    Judith Revel

    t eo r ia s u bi ac e nt e é um espaço de dispersão   é um cam po aberto

    l  

    a ep iste me

    nào é lim a cobertura de história comum a todas as ciências; é um jogo

    s imultâneo de

    remanêndas

    especif icas 48 . [ais do que uma forma geral da

    consciência, Foucault descreve, portanto, um feixe de relações e de

    deslocamentos; não um sistema, mas a proliferação e a articulação de

    múltiplos sistemas que remetem uns aos outros. Sobre o segundo

    ponto, Foucault reivindica, por meio do uso da noção, a substituição

    da questão abstrata da mudança particularmente viva, na época, para

    os historiadores) por aquela dos diferentes tipos de transformação :

     substituir, enfim, o tema do devir  forma geral, elemento abstrato,

    causa primeira e efeito universal, mistura confusa do idêntico e do

    novo) pela análise das t rans formações em sua especificidade : .

    ***0 abandono da noção de

    episteme

    corresponde ao de locamento

    do interesse de Foucault, de objetos estritamente discursivos a realidades

    não-discursivas - práticas, estratégias, instituições etc:  Em As Pa lao ra s

    e as Coisas querendo fazer uma história da episte lJle permanecia num

    impasse. Agora, gostaria de mostrar que o c1ue chamo de dispositivo

    é algo muito mais geral que compreende a ep is teme . Ou melhor, que a

    episteme é um dispositivo especificam nte discursivo, diferentemente

    do dispositivo, que é discursivo e não-discursivo, sendo seus elementos

    muito mais heterogêneos : .

     

    Réponse

    à

    une questiono ln:

    Esprit 

    na 371, maio 1968. Retomado em

      its

    et Écrits vol. I, texto N° 58.

    49  épons une question, op. cit. nota 48.

    50 Le jeu de Michel Foucault. op. cit. nota 45.

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    udith evel

    (por meio da retomada do texto kantiano sobre as Luzes) e faz da

    invenção de si uma das características dessa atitude: a modernidade

    não é somente a relação com o presente, mas a relação consigo mesmo,

    na medida em que ser moderno não é aceitar a si mesmo tal como

    se é no fluxo dos momentos que passam; é tomar a si mesmo como

    objeto de uma elaboração complexa e dura: o que Baudelaire chama,

    de acordo com o vocabulário da época, de 'dandismo't'F, A estética

    da existência é, ao mesmo tempo, o que Foucault localiza fora da

    influência da pastoral cristã (temporalmente: o retorno aos Gregos;

    espacialmente: o interesse contemporâneo de Foucault pelo zen e pela

    cultura japonesa) e o que deve, de novo, caracterizar a relação que nó

    mantemos com a nossa própria atualidade.

    ***0 tema da estética da existência como produção inventiva de si

    não marca, entretanto, um retorno

    à

    figura do sujeito soberano,

    fundador e universal, nem a um abandono do campo político:  penso,

    pelo contrário, que o sujeito se constitui através das práticas de sujeição

    ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de liberação't . A

    estética da existência, na medida em que ela é uma prática ética de

    produção de subjetividade, é, ao mesmo tempo, assujeitada e resistente:

    é, portanto, um gesto eminentemente político.

     2

    What s enlightenment? op. cit. nota 6.

    S3

    Une e thétique de l exi tence op.

    eu

    nota 51.

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    Judith Revel

    obra de arte ). Em contrapartida, a moral cristã funciona não sobre a

    escolha mas sobre a obediência, não sobre os   pbrodisi (que são ao

    mesmo tempo o prazer, o desejo e os atos), mas sobre a carne (que

    coloca entre parênteses tanto o prazer quanto o desejo): com o

    cristianismo, o modo de sujeição é, então, a lei divina. E creio que até

    mesmo a substância ética mudou, porque ela não é mais constituida

    pela   pbrodisi mas pelo desejo, pela concupiscência, pela carne etc.?  .

    ***0

    termo ética aparece pela primeira vez de maneira realmente

    significativa em 1977, em um texto obre O .Anti Édipo de Deleuze e

    Guatarri:  E u diria que O Anti Édipo (perdoem-me os autores) é um

    livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França

    depois de muito tempo?  . E é interessante constatar que Foucault

    caracteriza da mesma maneira, alguns anos mais tarde, sua própria

    História da Sexllalidade:  se , por  ética entender-se a relação que o

    indivíduo estabelece consigo mesmo, eu diria que tende a ser uma

    ética, ou, pelo menos, tentarei mostrar o que poderia ser uma ética do

    comportamento sexual  ? .

    E

    para além da sexualidade, o projeto de

    uma ontologia crítica da atualidade recebe, às vezes, a formulação

    de uma política como uma ética : isso quer dizer que o interesse

    foucaultiano pela ética, nos ano

    80 

    longe de ser o fim da

    problematização filosófica e histórica das estratégias do poder e de

    sua aplicação aos indivíduos, re-propõe a análise do campo político a

    partir da constituição ética dos sujeitos, a partir da produção da

    subjetividade.

    55 A propos de Ia généalogie de l éthique : un aperçu du travail cn cours, op. cit.

    nota 37.

    56

    Prefácio a Deleuze, G. e Guartari, F. Anti Oedipus op. cit. nota 44.

    57

    Une interview de Michel Foucault par Stephen Riggins.  n  Ethos  vol.

     

    n° 2.

    1983. Retomado em

    Dits et Écrits.

    vol 4, texto n° 336.

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    Michel Foucault: conceitos essenciais 47

     xpêrienci

    A noção de experiência e tá presente ao longo de todo o percurso

    filosófico de Foucault, mas ela passa por importantes modificações

    no decorrer dos anos. e é verdade que, de maneira geral, a

    experiência é alguma coisa da qual saímos transforrnados t  , Foucault

    refere-se, inicialmente, a uma experiência que deve muito, ao mesmo

    tempo, a Bataille e a Blanchot: no cruzamento de uma experiência do

    limite e de uma experiência da linguagem considerada como

      experiência do exterior , ele procura, com efeito, definir - em

    particular no domínio da literatura - uma experiência do ilimitado, do

    intransponível, do impossivel, isto é, daquilo que afronta, na realidade,

    a loucura, a morte, a noite ou a sexualidade, ao aprofundar, na espessura

    da linguagem, seu próprio espaço de fala. um segundo momento,

    muito diferentemente, a experiência se torna para Foucault a única

    maneira de distinguir a genealogia ao mesmo tempo de uma

    abordagem empírica ou positivista e de uma análise teórica: se algumas

    problematizacõe nascem de uma experiência (por exemplo, a e critura

    de

    Vigiar e Punir

    depois da experiência do Grupo de Informação

    sobre as Prisões e, mais amplamente, depois de 1968), é no sentido de .

    que o pensamento filosófico de Foucault é verdadeiramente uma

    exper iment ção ele dá, com efeito, a ver o movimento da constituição

    histórica dos discursos, das práticas, das relações de poder e das

    subjetividades, e é devido a essa relação com a genealogia que a

     N Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori, Paris, 1978). In:

     

    ontributo 4 année, n. I. Retomado em Dits et Écrits vol. 4, 1994, texte n. 281.

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    48/93

     

    udith  evel

    experiência sai dela mesma modificada:  Me u problema é o de fazer

    eu mesmo - e de convidar os outros a fazerem comigo, por meio de

    um conteúdo histórico determinado - uma experiência daquilo que

    nós somos, daquilo que é não omente o nosso passado mas também

    o nosso presente, uma experiência de nossa modernidade de tal

    maneira que dela saiamos transformados. ?

    **Enquanto a experiência fenomenológica   qual Foucault se refere

    ainda, em parte, nos seus textos dos anos 50) procura, na realidade,

      retomar a significação da experiência cotidiana para compreender

    de que maneira o sujeito que eu sou é realmente fundador, em suas

    funções transcendentais, daquela experiência e de suas significações t  ,

    a referência a ietzsche, a Bataille e a Blanchot permite, ao contrário,

    definir a idéia de uma experiência-limite que arranca o sujeito dele

    mesmo e lhe impõe sua fragmentação ou sua dissolução. Assim, torna-

    se evidente que a referência a Bataille seja essencial e que Foucault

    censure os surrealistas, mesmo reconhecendo que Breton tenha tentado

    percorrer experiência limites, por tê-Ias mantido em um espaço da

    psique. O fato de construir-se a partir do apagamento do sujeito faz

    com que essa idéia da experiência

    com o passagem ao

    limite não esteja, na

    realidade, tão distante das outras análi es de Foucault nos anos 60: ele

    atualiza nela o horizonte desenhado pelo final de

     s Pala tras e a s oisa s

      possível desaparecimento do homem ao mesmo tempo como

    consciência autônoma e como objeto de conhecimento privilegiado:

      uma experiência está prestes a nascer onde o que está em jogo é o

    59

    Entretien avec Michel Foucault  avec Ducio Trombadori , op. cit. nota 58.

    60

    Entretien avec Michel Foucault  avec Ducio Trombadori , op. cit. nota 58.

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    Michel Foucault: conceitos essenciaj; 49

    nosso pensamento; sua iminência já visível, mas absolutamente vazia,

    não pode ainda ser nomeada ? .

    ***Se é verdade que a maior parte das análises de Foucault na ce de

    uma experiência pe soal - como ele mesmo reconhece - elas não

    podem, de maneira alguma, serem reduzidas a isso. Ao contrário,

    Foucault coloca-se como tarefa a reformulação da noção de

    experiência, ampliando-a para além do si (um i já maltratado pela

    crítica dos filósofos do sujeito): a experiência é algo que se dá

    solitariamente, mas que é plena somente na medida em (lue escapa

     

    pura subjetividade, isto é, que outros podem cruzá-Ia ou atravessá-Ia.

    A partir dos anos 70, é, pois, sobre o terreno de uma prática coletiva

    - i to é, no campo político - que Foucault procura situar o problema

    da experiência como momento de transformação: o termo passará,

    então, a ser associado ao mesmo tempo à resistência aos dispositivos

    de poder (experiência revolucionária, experiência de lutas, exp riência

    de sublevação) e aos processos de subjetivaçâo.

    61

    La folie, l absence d ceuvre  La Table Ronde, n° 196 : Situation de Iapsychiatrie

    1964, retomado em   its et Écrits vol. I, texto n° 25. [Tradução brasileira: A

    loucura, a ausência da obra.

      n

    itos e Escritos vol. I,

    p.

    219].

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    Judith Revel

     xt rior

    *Em 1966, num texto consagrado a Maurice

    Blanchot 

    Foucault

    define a experiência do exterior  co rno a dissociação do eu penso

    e do eu falo : a linguagem deve enfrentar o desaparecimento do

    sujeito que fala e inscrever seu lugar vazio corno fonte de sua própria

    expansão indefinida. A linguagem escapa, então, ao modo de ser do

    discurso - ou seja, à dinastia da representação - e o discurso literário

    se desenvolve a partir dele mesmo, formando urna rede em que cada

    ponto, distinto dos outros,   distância mesmo dos mais próximos,

    está situado em relação a todos num espaço que ao mesmo tempo os

    abriga e os

    separa r  .

     

    Essa passagem ao exterior como desaparecimento do sujeito que

    fala e, contemporaneamente, como aparição do próprio ser da

    linguagem, caracteriza para Foucault uma espécie de linhagem marginal

    da cultura ocidental, cujo pensamento será necessário um dia tentar

    definir as formas e as categorias fundamentais . De Sade a Hôlderlin,

    de ietzche a Mallarmé, de Artaud a Bataille e a Klossowski, trata-se

    sempre de considerar essa passagem ao exterior, isto é, ao mesmo

    tempo a fragmentação da experiência da interioridade e o

    descentramento da linguagem em direção ao seu próprio limite: nesse

    sentido, segundo Foucault, Blanchot parece ter conseguido tirar da

    linguagem a reflexividade da consciência e transformado a ficção em

    uma dissolução da narração que valoriza   o interstício das imagens .

    O paradoxo dessa palavra sem raiz e sem fundações, que se revela

    62

    La pensée du dehors. In:  ritique  n. 229, 1966. [Tradução brasileira: O

    pensamento do exterior. ln: Ditos e Escritos vol. Hl, p. 219-242).

    63

    La pensée du dehors, op. cit. nota 62.

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    Michel Foucaull: conceitos essenciais 5/

    como deslizamento e como murmúrio, como divisão e como

    dispersão, é que ela representa um avanço em direção ao que nunca

    recebeu linguagem - a própria linguagem, que não é nem reflexão

    nem ficção, mas jorro infinito - ou seja, oscilação indefinida entre a

    origem e a morte.

    ***0 tema do exterior é interessante, ao mesmo tempo, porque

    interliga o autores do quai Foucault se ocupa no mesmo período -

    a linhagem do exterior , da qual Blanchot seria a encarnação mais

    evidente - e porque forma um contra ponto radical com aquilo que o

    filósofo se aplica a de crever, no mesmo momento, em seus livros.

    Com efeito, quando Foucault sublinha o risco de reconduzir a

    experiência do exterior   dimensão da interioridade e a dificuldade de

    dotá-Ia de uma linguagem que lhe seja fiel, ele se refere   fragilidade

    desse exterior : não há exterior possível numa descrição arqueológica

    dos dispositivos discursivos tal como apresentada em

    As pala Iras e as

    Coisas 

    Será somente bem mais tarde que Foucault deixará de pensar o

     exter ior  co mo uma passagem ao limite ou como uma pura

    exterioridade, e que ele lhe dará um lugar no seio mesmo da ordem

    do discurso: a oposição não será, portanto, mais entre o de dentro e o

    de fora, entre o reino do sujeito e o murmúrio anônimo, mas entre a

    linguagem objetivada e a palavra de resistência, entre o sujeito e a

    subjetividade, isto é, aquilo que Deleuze chamará a dobra . dobra

    - e o termo já fora., estranhamente, utilizado por Foucault em 1966 -

    , é o fim da opo ição dentro/fora, porque é o exterior do dentro. E

    Foucault conclui:

     l

    estarnos sempre no interior. A margem é um

    mito. A fala do exterior

     

    um sonho que não paramos de repetir  ? .

    64 L extension sociale de Ia norme. In: Politique

     ebdo

    nO212, março de 1976.

    Retomado em

      its et Écrits

    vol. 3. texto n° 173.

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    Michel Foucault: conceitos essenciais

    53

    uma tentativa de desassujeitar os saberes hi tórico ,isto é, de torná-los

    capazes de oposição e de luta contra a ordem do discurso ; isso

    significa que a genealogia não bu ca somente no passado a marca de

    acontecimento ingulares, mas que ela se coloca hoje a questão da

    possibilidade dos acontecimentos: ela deduzirá da contingência que

    nos fez ser o que somos, a possibilidade de não mai ser, fazer ou

    pensar o que somos, fazemos ou pensarnos r .

     

    A genealogia permite apreender de maneira coerente o trabalho

    de oucault desde os primeiros textos (antes que o conceito de

    genealogia começasse a ser empregado) até os últimos. Foucault inclica,

    com efeito, que há três domínios possíveis de genealogia: uma antologia

    histórica de nó -rnesrnos em nossas relações com a verdade, que

    permite nos constituirmos como sujeitos de conhecimento; nas nossas

    relações com um campo de poder, que permite nos constituirmos

    como sujeitos que agem sobre os outros; e em nossas relações com a

    moral, que permite nos constituirmos como agente éticos. Todos

    o três [eixos possíveis para a genealogia] estavam presentes, embora

    de forma um tanto confu a, em H istória da L oucura  Estudei o eixo da

    verdade em astimento d a C lín ica e As Palavras e as Coisas Desenvolvi o

    eixo do poder em

    Vigiar e   unir

    e o eixo moral em

    História da

    eXllalidade 69 

    67

    Cour du 7 janvier 1976. In:

     icrofisica dei potere

    Torino : Enaudi  1977.

    [Tradução brasileira; Genealogia e Poder.  

    icrofisica do Poder 

    Rio de Janeiro :

    Graal 1999 p.17I].

    68

    What s enlightenment? op. cit. nota 6.

      propos de Ia génealogie de I éthique: un aperçu du travail em cours op. cit.

    nota 37.

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    udith evel

     overn ment lid de

    * A partir de 1978, em seu curso no Co  ege de F rance Foucault analisa

    a ruptura que se produziu entre o final do século XVI e o início do

    século À VII e que marca a passagem de uma arte de governar herdada

    da Idade Iédia, cujos princípios retomam a virtudes morais

    tradicionais (sabedoria, justiça, respeito a Deus) e o ideal de medida

    (prudência, reflexão), para uma arte de governar cuja racionalidade

    tem por princípio e campo de aplicação o funcionamento do Estado:

    a governamentalidade racional do Estado. Essa razão do Estado

    não é entendida como a suspensão imperativa das regras pré-existentes,

    mas como uma nova matriz de racionalidade que não tem a ver nem

    com o soberano de justiça, nem com o modelo maquiavélico do

    Príncipe.

    **  Por e sa palavra governarrientalidade , eu quero dizer três coisas.

    Por governamentalidade, eu entendo o conjunto constituído pelas

    instituições, procedimento, análises e reflexõe , cálculos e táticas que

    permitem exercer essa forma bastante específica e complexa de poder,

    que tem por alvo a população, como forma principal de aber a

    economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos

    de segurança. Em segundo lugar, por governarnentalidade, entendo a

    tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante

    muito tempo, à preeminência desse tipo de poder que se pode chamar

    de governo  s obre todos os outros - soberania, disciplina etc [... 

    Enfim, por governamentalidade, eu creio que seria preciso entender o

    resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade

    Média, que se tornou nos séculos XVI e XVII Estado administrativo,

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    Michel Foucault: conceitos essenciais

    55

    foi pouco a pouco governamentalizado,>7O. A nova

    governamentalidade da razão do Estado se apóia sobre dois grandes

    conjuntos de saberes e de tecnologias políticas, uma tecnologia político-

    militar e uma policia . o cruzamento dessas duas tecnologias,

    encontra-se o comércio e a circulação interestatal da moeda:  é do

    enriquecimento pelo comércio que se espera a possibilidade de

    aumentar a população, a mão-de-obra, a produção e a exportação, e

    de se dotar de armas fortes e numerosas.   par população-riqueza

    foi, na época do mercantilismo e da cameralistica, o objeto privilegiado

    da nova razão governamental,,71. Esse par está no fundamento da

    formação de uma economia política ,

     

    A governamentalidade moderna coloca pela pnmeJra vez o

    problema da   população , isto é, não a soma dos sujeitos de um

    território, o conjunto de sujeitos de direito ou a categoria geral da

      espécie humana , mas o objeto construído pela gestão politica global

    da vida dos indivíduo (biopolítica). Essa biopolítica implica,

    entretanto, não somente uma gestão da população, mas um controle

    das estratégias que os indivíduos, na sua liberdade, podem ter em

    relação a eles mesmos e uns em relação aos outros. As tecnologias

    governamentais concernem, portanto, também ao governo da

    educação e da transformação dos indivíduos, àquele das relações

    familiares e àquele das instituições.

     

    por essa razão que Foucault estende

    a análise da governamentalidade dos outro para uma análise do

    governo de si:   Eu chamo governamentalidade o encontro entre as

    técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si n.

    70

    La gouvernamentalité.

    Cours ou Collêge de France, 1977 1978:

    Sécurité. territoire,

    population, 4a aula,

    1

     

    de fevereiro de

    197 .

    ln:

      its et Écri ts 

    vol. 3, texto n 

    239.

    [Tradução brasileira: A Governamentalidade. In:

    Microjísica do Poder.

    Rio de Janeiro:

    Graal,

    1999 

    p.

    291 292J.

    71

    Sécurité, territcire. population [ Segurança. território e população. ln:

    Resumo dos

    Cursos do Collêge de France /970-1982).

    Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997  p.

    841·

    72

    Lcs techniques de soi. ln :

    Technologies of lhe Sel]. A Seminar with M. FOI/caI/lI.

    Massachuseus, U.P.,

    [988.

    Retomado em

    Dits et

    Écrits vol. 4, texto n  363.

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    Michel Foucault: conceitos essenciais

     

    um estado primeiro do qual derivam todos os fenômenos de

    dominação e de hierarquização social? Os processos de antagonismo

    e de lutas, sejam eles individuais ou de classe, são reconduzíveis ao

    modelo geral da guerra? As instituições e os procedimentos militares

    são o coração das instituições políticas? E, sobretudo, quem primeiro

    pensou que a guerra era a continuação da política por outros meios, e

    desde quando? O curso, que se alongou sobre a ruptura entre o direito

    de paz e de guerra característico do poder medieval e a concepção

    politica da guerra a partir do século XVII, procura, es encialmente,

    responder à última questão; po teriormente, o modelo da guerra é

    abandonado em proveito de um modelo mais complexo de análise

    das relações de poder: a  gove rnamentalidade .

    ***Foucault localiza no século XVII um discurso histórico-politico

    - muito diferente do discurso filosófico-jurídico ordenado pelo

    problema da soberania ?  - que transforma a guerra num fundo

    permanente de todas as instituições de poder. a França, esse discurso,

    que foi desenvolvido em particular por Boulainvilliers, afirma que a

    guerra presidiu o nascimento dos Estados: não a guerra imaginária e

    ideal imaginada pelos filósofos do estado da natureza - para Hobbes,

    é a não-guerra que funda um Estado e lhe dá sua forma,,7

    8

    - mas

    urna guerra real, uma   batalha da qual, no mesmo ano, [ igiar e P un ir

    nos incita a ouvir o estrondo surdo .

    77 11  ut défe ndre Ia socie té 

    op cit  nota 4

    11 f  ut défe ndre Ia socie té 

    op cit nota 4 

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    58

     udirh evel

     istóri

    Ainda que o termo história apareça em numerosas retomadas

    nos títulos das obras de Foucault, ele recobre, na verdade, três eixos

    de discursos distintos. O primeiro consiste numa retomada explícita

    de ietzsche, isto é, absolutamente ao me mo tempo, da crítica da

    história concebida como contínua, linear, provida de uma origem e

    de um

    te  o s

    e da crítica do discurso dos historiadores como história

    monumental  e supra-histórica, É, portanto, essa leitura nietzschiana

    que impulsiona Foucault a adotar, desde o começo dos anos 70, o

    termo genealogia : trata-se de reencontrar a descontinuidade e o

    acontecimento, a singularidade e os acasos, e de formular um tipo de

    enfoque que não pretende reduzir a diversidade histórica, mas que

    dela seja o eco. O segundo eixo corresponde à formulação de um

    verdadeiro pensamento do acontecimento - de maneira muito

    próxima do que faz Deleuze na mesma época -, isto é,   idéia de uma

    história menor feita de uma infinidade de traços silenciosos, de narrativas

    de vidas minúsculas, de fragmentos de existências - donde o interesse

    de Foucault pelos arquivos. O terceiro eixo se desenvolve precisamente

    a partir dos arquivos e induz Foucault a colaborar com um certo

    número de historiadore , isto é, ao mesmo tempo, a problematizar o

    que deveria ser a relação entre a filo ofia e a história  ou, mais

    exatamente, entre a prática filosófica e a prática histórica) uma vez

    aídos da tradicional divergência filo ofia da história/história da

    filosofia, e a interrogar, de maneira crítica, a evolução da historiografia

    francesa desde os anos 60.

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    Michel Foucaull: conceitos essenciais

     

    a verdade, parece que o discurso de Foucault oscila entre duas

    posições: de uma parte, a história não é uma duração, mas uma

    multiplicidade de durações que se emaranham e se envolvem umas

    nas outras [...] o estruturalismo e a história permitem abandonar essa

    grande mitologia biológica da história e da duração

    - -

    o que resulta

    em afirmar que apenas um enfoque que faça jogar a continuidade das

    séries como chave de leitura das descontinuidades contempla, na

    verdade, os acontecimentos que, de outro modo, não apareceriam  ? ,

    O acontecimento não é em si fonte da descontinuidade; mas é o

    cruzamento de uma história seria I e de uma história aconteci mental -

    série e acontecimento não constituem o fundamento do trabalho

    histórico, mas seu resultado a partir do tratamento de documentos e

    arquivos - gue permite fazer emergir,

    ao mesmo tempo

    dispositivos e

    pontos de ruptura, planos de discurso e falas singulares, estratégias de

    poder e focos de resi tência etc.  Aco ntecimento: é preciso entendê-

     

    não como uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas

    como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um

    vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma

    dominação que se enfraquece, se amplia e se envenena e uma outra

    que faz sua entrada, mascarada ?  . Por outro lado, essa reivindicação

    de uma história que funcionaria não como análise do passado e da

    duração, mas como iluminação das transformações e do

    acontecimentos, define-se por vezes como uma verdadeira história

    aconteci mental  por meio da referência a um certo número de

    79 Revenir

     

    l Histoire, In : Paidéia  n° 11, fevereiro de 1972. Retomado em  its et

    Écrits 

    vol. 2, texto n  103. [Tradução brasileira: Retornar à história. In:   iTOS

    e

    Escritos 

    vol.   p.293-2941.

    R II Revcnir à l Histoire, op. cit. nota 79.

    R I

    Nictzche, Ia généalogie, l histoire, op. cit. nota 65.

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    Judith Revel

    historiadores que estudaram o cotidiano, a sensibilidade, os afetos

    (Foucault cita várias vezes Le Roy Ladurie, Ariês e Mandrou); e mesmo

    se ele reconheceu na Escola dos Annales - e, em particular, Marc

    Bloch e depois Fernand Braudel - o mérito de ter multiplicado as

    durações e redefinido o acontecimento não como um segmento de

    tempo, mas como o ponto de intersecção de durações diferentes, não

    é menos verdade que Foucault acabou por opor seu próprio trabalho

    sobre o arquivo à história social das classificações que caracteriza para

    ele uma boa parte da historiografia francesa desde os anos 60:  E ntre

    a história social e as análises formais do pensamento, há uma via, uma

    pista - talvez muito estreita - a do historiador do pensarnento t  .

     

    a

    possibilidade dessa pista estreita que alimentará o debate sempre

    vivo entre Foucault e os historiadores e que motivará uma colaboração

    ocasional com alguns dentre