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Autor dd O HOMEM QUE CALCULAVA Melhores, Contos

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Autor dd O HOMEM QUE CALCULAVA

Melhores, Contos

rCIP-Drasll. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RI.

Taban. Malba. 1895-1974TI36m Os melhores contos/Malba Tahan;9~ ilustrações Mário Pacheco; notas

Prof. Dreno Alencar Dianco - 9~ed. - Rio de Janeiro: Record. 1990.

I. Como brasileiros. I. Pacheco, MArio.11. Dianco, Dreno Alenear. 11I. Titulo.

CDD-869.9389-0310 CDU-869-O(8r-

Copyri8ht <9 J~89 bYIvan Gil de Mello e Souza,Rubens Sérgiode Mello e Souza e

Sonia Maria de Faria Pereira

Capa e ilustrações: Mário PachecoNotas: Prof. Breno Alencar Bianco

Direitos desta edição reservados pelaDISTRIBUIDORARECORD DE SERVIÇOSDE IMPRENSA S.A.

Rua Argentina 171 - 20921 Rio de Janeiro, RJ - Te!.: 580-3668

Impresso no Brasil

PEDIDOS PELO REEMBOLSOPOSTAL .

Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro. RJ - 20922

....

o Livro do Destino .. .. . .. .. .. .. .. .. 9

Aprende a escrever na areia 12O sábio da Efelogia 14Os trinta e cinco camelos .......... 20A noiva de Romaiana 22O mais generoso dos cheiques 26O tesouro de Bresa .. .. .... ... .. .. .. . 30

A pequenina luz azul 36Os três homens iguais 40Senhor, eu não sou digno 45O fio da aranha 53A princesinha San-ga-Iu 56O oleiro e o poeta 64Dos dez para os doze 68A porcelana do rei 74

ÍNDICE

O palácio maravilhoso 75Os dois cântaros 80O turbante cinzento ................. 83As sentenças de Habalin 88O amor e o velho barqueiro 94O dervixe e o vizir : 95O homem que tudo achava 101.....Os sósiasdo rei 104"O casamento interrompido 107Dez anos de kest 114Olhos pretos e azuis 123Parábola das mães felizes 129A lenda dos cinco mais

cinco 133Malba Tahan 141

o Livro do Destino

Ninguém escapa ao DestinoOculto ou aparente,De face serena ou inclemente...

(Das "Mil e uma noites")

Certa vez - há muitosanos - quan-do voltava de Bagdá, onde fora ven-der uma grande partida de peles e.tapetes,encontreinum caravançará,Iperto de Damasco, um velho ára-be de Hedjaz que me chamou, de cer-to modo, a atenção. Falava agitadocom os mercadorese peregrinos,ges-ticulando e praguejando sem cessar;mascava constantementeuma mistu-ra forte de fumo e haxixe e, quandoouvia de um dos companheiros umacensura qualquer, exclamava, aper-

'Caravançard - refúgio construIdo, pelo governo oupor pessoas piedosas, à beira dos caminhos para servirde abrigo aos peregrinos. Espécie de "rancho" de gran-des dimensões em que se acolhiam as caravanas.

tando entre as mãos o turbante esfar-rapado:

- Mac Allah! ó muçulmanosPEu já fui poderoso! Eu já tive o Des-tino nesta mão!

- É um pobre diabo - afirma-vam alguns. - Não regula bem domiolo! Allah que o proteja!

Eu, porém, confesso, sentia irre-sistível atração pelo desconhecidode turbante esfarrapado. Procureiaproximar-me dele discretamente,

2MacAllah! Oeia-se:Mak-alá)- exclamaçãousualen-tre os árabes- "Por Deus!" - ou ainda: - "Exalta-do seja Allah".Muçulmanos - nome derivado de "musin" - "aqueleque se resigna à vontade de Deus" . Os muçulmanos se-guem a religião de Mafoma.

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falei-lhe várias vezes com brandurae, ao fimde algumashoras, já lheha-via captado inteiramente a confian-ça!

- Os caravaneirosmetomam pordoido - ele me disse uma noite,quando cavaqueávamos a sós. -Não querem acreditar que já tivenasmãos o destino da humanidade intei-ra. Sim, Senhor: o destino do gêne-ro humano.

Esbugalhei os olhos, assombrado.Aquela afirmação insistente, de

que haviasido senhordo Destino,eracaracterística do seu pobre estado dedemência.

O desconhecido,porém, que pare-cia não perceberos meussustose des-confianças, continuou:

- Segundoensina o Alcorão- olivro de Allah - a vida de todos nósestá escrita - maktub! 3 - no gran-de "Livro do Destino". Cada ho-mem tem lá a sua página, com tudoo que de bom ou de mau lhe vaiacontecer. Todos os fatos que ocor-

3Maktub - (estava escrito!) - particípio passado doverbo catab (escrever). Expressão que bem traduz o fa-talismo muçulmano.

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rem na terra, desdeo cair de uma fo-lha seca até a morte de um califa,estão escritos - estão fatalmente es-critos - no "Livro do Destino"!

E sem esperar que o interrogasse,prosseguiumeneando a cabeçadolo-rosamente:

- Salvei das mãos do cheiqueAbu Dolak, depois de uma "raz-zia"4 terrível, que esse im:piedosobeduíno fizera num acampamentoda tribo dos Morebes, um velho fei-ticeiro que ia ser enforcado. Esse fei-ticeiro, em sinal de gratidão, deu-meum talismã raríssimo que possuíauma pedra negra, peqúenina,em for-ma de coração, encontrada, anos an-tes, dentro do túmulo de um santomuçulmano.E essapedra maravilho-sa permitia a entrada livre na famo-sa gruta da Fatalidade, onde se acha- pela vontade de Allah - o Livrodo Destino. Viajei longos anos até oalto das montanhas de Masirah, pa-ra além do deserto de Dahna, a fimde alcançar a gruta encantada. Um

4Ataque de bedufnos, seguido de morticínio. devasta-ção e saque.

djim S - gêniobondosoque estavade sentinelaà porta - deixou-meen-trar, avisando-me, porém, de que sópoderia perman~cerna gruta por es-paço de poucos minutos. Era minhaintenção alterar o que estava escritona página de minha vida e fazer demim um homem rico e feliz. Basta-va acrescentar com a pena que eu jálevava:- "Será um homemfeliz,es-timado por todos; terá muita 'saúdee muito dinheiro!" Lembrei-me,po- .rém, dos meusinimigos.Poderia, na-quele momento, fazer grande mal atodos eles.Movidopelosmais torpessentimentos de ódio e de vingança,abri âpágina de Ali Ben-Homed, omercador. Li o que ia suceder,no de-senrolar da.vida, a esse meu rival eacrescentei embaixo, sem hesitar,num ímpeto de rancor: - "Morrerápobre, sofrendo os maiores tormen-tos!" Na página do cheique Zalfahel-Abari gravei, impetuoso, alteran-do-lhea vida inteira: - "Perderá to-

SDjins e efrites são gênios sobrenaturais, em cuja exis-tência os muçulmanos acreditavam. Atualmente essacrendice s6 subsiste nas classes incultas. Os djins sãobenfazejos, ao passo que os efrites se divertem com omal que podem fazer às criaturas.

dos os haveres; ficará cegoe morreráde fomee sedeno deserto!" E assim,sempiedade, ia ferindo e atassalhan-do todos os meus desafetos!

- E na tua vida? - indaguei,mirando-o com surpresa. - Que fi-zeste, ó caravaneiro, na página queo Destinodedicaraà tua própria exis-tência?

- Ah! meu amigo! - atalhou odesconhecido, contorcendo as mãos,desesperado. - Nada fiz em meu fa-vor. Preocupado em fazer o mal aosoutros, esqueci-mede fazer o bem amimmesmo.Semeeilargamenteo in-fortúnio e a dor, e não colhi a me-nor parcelade felicidade.Quando melembrei de mim, quando pensei emtornar feliza minha'vida, estava ter-minado o meu tempo. Semque eu es-perasse, me surgiu pela frente um"efrite"6 - gênio feroz - que meagarrou fortemente e, depois dearrancar-me das mãos o talismã, meatirou fora da gruta. Caí entre as pe-dras e, com a violência do choque,perdi os sentidoS.Quando recuperei

6Efrite - veja a nota' 5.

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a razão, me achei ferido e faminto,muito longeda gruta, junto a um oá-sis do deserto de Omã. Sem o talis-mã precioso, nunca mais pudedescobrir o caminho da gruta encan-tada das montanhas de Masirah!

E concluiu, entre suspiros, comvoz cada vez mais rouca e baixa:

- Perdi a únicaoportunidade quetive de ser rico, estimado e feliz!

Seria verdadeira essa estranhaaventura?

Até hoje ignoro. O certo é que otriste caso, do velho árabe de Hed-jaz, encerrava profundo ensinamen-to. Quantos homens há, no mundo,que, preocupados em levar o mal aseus semelhantes, se esquecem dobem que podemtrazer a sipróprios...

Aprende a Escrever na Areia*(Lendaoriental)

Dois amigos, Mussa e Nagib, viaja-vam pelas extensas estradas que cir-culam as tristes e sombrias monta-nhas da Pérsia. Ambos se faziamacompanhar de seus ajudant!s, ser-vos e caravaneiros. .

Chegaram, certa manhã, bem ce-do, às margens de um grande rio,barrento e impetuoso, em cujo seioa morte espreitava os mais afoitos etemerários.

-Em árabe: "Taallam au takub ála arrame".

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Era preciso transpor a correnteameaçadora.

Ao saltar, porém, de uma pedra,o jovem Mussafoi infeliz.Falseando-lhe o pé, precipitou-se no torvelinhoespumejante das águas em revolta.

Teria ali perecido, arrastado parao abismo, se não fosse Nagib.

Este, semum instantede hesitação,atirou-'seà correnteza e, lutando fu-riosamente, conseguiutrazer a salvoo companheiro de jornada.

Que fez Mussa?Chamou, no mesmo instante, os

seus mais hábeis servos e ordenou-lhes gravassem na face mais lisa deuma grande pedra, que perto se er-guia, esta legenda admirável:

"Viandante! Neste lugar, duranteuma jornada, Nagib salvou, heroica-mente, seu amigo Mussa. "

Isto feito, prosseguiram,com suascaravanas, pelos intérminos cami-nhos de Allah.

Alguns meses depois, de regressoàs terras, novamente se viram força-dos a atravessaro mesmorio, naque-le mesmo lugar perigoso e trágico.

E, como se sentissemfatigados, re-solveram repousar algumas .boras àsombra acolhedora do lajedo que os-tentava bem no alto a honrosa ins-crição.

Sentados, pois, na areia clara,puseram-se a conversar.

Eis que, por um motivo fútil, sur-ge, de repente, grave desavença en-tre os dois companheiros.

Discordaram. Discutiram. Nagib,exaltado, num ímpeto de cólera, es-bofeteou, brutalmente, o amigo.

Que fez Mussa? Que farias tu, emseu lugar?

Mussa não revidou a ofensa. Er-gueu-see, tomando, tranqüilo, o seubastão, escreveuna areia clara, ao pédo negro rochedo:

"Viandante! Neste lugar, duranteuma jornada, Nagib, por motivo fú-til, injuriou, gravemente, o seu ami':go Mussa. "

Surpreendido com o estranho pro-ceder, um dos ajudantes de Mussaobservou respeitoso:

- Senhor! Da primeira vez, paraexaltar a abnegação de Nagib, man-daste gravar, para sempre, na pedra,o feito heróico. E agora, que eleaca-ba de ofender-vos, tão gravémente,vósvos limitaisa escreverna areia in-certa o ato de covardia! A primeiralegenda, ó cheique, ficará para sem-pre. Todos os que transitarem por es-te sítiodela terão notícia. Esta outra,porém, riscadano tapetede areitr,an-tes do cair da tarde terá desapareci-do como um traço de espumas entreas ondas buliçosas do mar.

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Respondeu Mussa:- É que o beriefícioque recebide

Nagibpermanec~rá,para sempre,emmeu coração. Mas a injúria... essanegra injúria... escrevo-a na areia,com um voto, para que, se depressadaqui se apagar e desaparecer, maisdepressa, ainda, desapareçae se apa-gue de minha lembrança!......................................................................

- Assim é, meu amigo! Aprendea gravar, na pedra, os favoresque re-

ceberes,os benefíciosque te fizerem,as palavras de carinho, simpatiae es-tímulo que ouvires.

Aprende, porém, a escrever, naareia, as injúrias, as ingratidões, asperfídias e as ironias que te ferirempela estrada agreste da vida.

Aprendea gravar, assim, na pedra;aprende a escrever,assim, na areia...e serás feliz! .

(De "Mil Histórias sem Fim")

o Sábio da Efelogia .

Durante a última excursão que fiz aMarrocos, encontrei um dos tiposmais curiososque tenho vistoem mi-nha vida.

Conheci-o, casualmente, no velhohotel de YazidEI-Kedim,em Marra-quexe. Era um homem alto, magro,de barbas pretas e olhos escuros;ves-tia, sempre, pesadíssimo casaco deastracã, com esquisita gola de pelesque lhe chegavaaté às orelhas. fala-va pouco; quando conversavacasual-

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mente com os outros hóspedes, nãofazia, em caso algum, a menor refe-rência à sua vida, ou ao seu passa-do. Deixava,porém, de vezem quan-do, escapar observaçõeseruditas, de-notadoras de grande e extraordiná-rio saber.

Além do nome - Vladimir Kolie-vich - pouco mais se conhecia dele.Entre os viajantesque seachavamem"EI-Kedim", constava que o miste-rioso cavalheiro era um antigo e no-

-----.--

Aprende, porém, a escrever, na areia, as injúrias,as ingratidões, as perfidiase as ironiasque teferirem péla estrada agreste da vida.

Aprende a gravar, assim, na pedra; aprende a escrever, assim, na areia... e serás feliz!

tável professor da Universidade deRiga, que vivia foragido por ter to-mado parte n'uma revolução contrao governo da Letônia.

Uma noite, estávamos, como decostume, reunidos na sala de jantar,quando uma jovem escritora russa,Sônia Baliakine, que se entretinhacom a leitura de um romance, meperguntou:

- Sabe o senhor onde .fica o rioFalgu?

- O quê? Rio Falgu? Ao cabo dealgunsmomentosde baldada pesqui-sa, nos escaninhosda memóriaa fuiobrigado a confessar a minha igno-rância, lamentávelnesseponto, nun-ca tinha ouvido falar em semelhanterio, apesar de ter feitoum cursocom-pleto e distinto na Universidade deMoscou.

Com surpresade todos, o misterio-so Vladimir Kolievich, que fumavaem silêncioa um canto, veioesclare-cer a dúvida da encantadora excur-sionista russa.

- O rio Falgu fica nas proximi-dades da cidade de Gaya, na Índia.Para os budistas, o Falgu é um rio

sagrado, pois foi junto a ele que Bu-da, fundador da grande religião, re-cebeu a inspiração de Deus!

E, diante da admiração geral doshóspedes, aquele cavalheiro, habi-tualmente taciturno e concentrado,continuou:

- É muito curioso o rio Falgu. Oseu leito apresenta-se coberto deareia; parece eternamente seco, ári-do, como um deserto. O viajantequedele se aproxima não vê água nemouve o menor rumor do líquido.Cavando-se, porém, alguns palmos

. na areia encontra-seum lençol deágua pura e límpida.

E, coma simplicidadee clarezape-culiares aos grandes sábios, passou acontar-nos coisascuriosas, não só daÍndia, como de várias outras partesdo mundo. Falou-nos, por exemplo,minuciosamente,das "ftlazenes", es-péciede cadeirasem que seassentam,quando viajam, os habitantesde Ma-dagáscar.

- Que grande talento! Que inve-jável cultura científica! - segredou,a meu lado, um missionário católi-co, sinceramente admirado.

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A formosa Sônia afirmou que en-contrara referênciasao rio Falguexa-tamente no livro que estava lendo,uma obra de Otávio Feuillet.

- Ah! Feuillet, o célebreroman-cista francês! - atalhou ainda o eru-dito cavalheirodo astracã. - OtávioFeuilletnasceu em 1821e morreu em1890.As suas obras, de um roman-tismo um pouco exagerado, são no-táveis pela finura das observações epela concisão e brilho do estilo!

E, durante algum tempo, prendeua atenção de todos, discorrendo so-bre Otávio Feuillet, sobre a Françae sobre os escritores franceses. Aoreferir-se aos romances realistas, ci-tou as obras de Gustavo Flaubert:"Salambô", "Madame Bovary","Educação Sentimental"...

- Não selimitaa conhecera Geo-grafia - acrescentou, a meia voz, ovelho missionário..- Sabetambémliteratura a fundo!

Realmente. A precisão com que oerudito Vladimir citava datas e no-mes e a segurança com que expunhaos diversos assuntos não deixavam

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dúvida alguma sobre a extensão deseu considerável saber.

Nesse momento, começava umaforte ventania. As janelas e portasbatem com violência. Alguns excur-sionistas, que se achavam na sala,mostraram-se assustados.

- Nãotenhammedo- acudiu,bondoso, o extraordinário Kolievich.- Não há motivo para temores oureceios. Faye, o grande astrônomo,que estudou a teoria dos ciclones...

E depois de discorrer longamentesobre a obra.de Faye, passou a falar,com grande loquacidade, dos ciclo-nes, avalanchas, erupções e de todosos flagelos da natureza.

Senti-me seriamente .intrigado.Quem seria, afinal, aquele homemtão sábio, de rara e copiosaerudição,que se deixava ficar modesto, incóg-nito, como simples aventureiro, nu-ma velha e monótona cidade mar-roquina?

No dia seguinte,ao regressarde fa-tigante excursão aos jardins de EI-Menara, encontrei-o casualmente,sozinho, no pátio da linda mesquita

de Kasb. Não me contive e fui tercom ele.

- O senhor maravilhou-nos on-tem como seu saber - confesseires-peitoso. - Não podíamos imaginar,com franqueza, que fosseum homemde tão grande cultura. Na sua Aca-demia, com certeza...

- Qual, meu amigo! - obtempe-rou ele, amável, batendo-me no om-bro. - Não me considereum sábio,um acadêmico ou um professor. Eupouco sei - ou melhor- eu nadasei. Não reparou nas palavras de quetratei? Falgu, filazenes, Feuillet,França, FIaubert, Faye, flagelo. Co-meçam todas pela letra F! Eu só seifalar sobrepalavrasque começampe-la letra F!

Fiquei ainda mais admirado. Qualseria a razão de tão curiosa extrava-gância no saber?

- Eu lhe explico - acudiu combopl humor o estranho viajante. -Sou natural de Petrogrado, e vivodocomércio do fumo. Estive, porém,por motivos políticos, durante dezanos nas prisões da Sibéria. O con-

denado que me havia precedido, nacélula em que me puseram, deixou-me, como herança, os restos de umavelha enciclopédia francesa. Eu co-nheciaum pouco esseidioma- e co-mo não tivesseem que me ocupar, lie reli, centenas de vezes, as páginasque possuía. Eram todas da-letra F.Depois então fiquei sabendo muitacoisa; tudo, porém, semsair da letraF: fá, fabagela, fabela, fabiana, fa-bordão.

Achei curiosa aquela conclusão daoriginal história do inteligenteKolie-vich - o negociante de fumo.

Ele era precisamente o contráriodo famoso e venerado rio Falgu, daÍndia. Parecia possuir uma correnteenorme, profunda e tumultuosa desaber; entretanto, sua erudição, q1:1enos causara tanto assombro, não iaalém dos vários capítulos decoradosda letra F de uma velhaenciclopédia.

Era, inquestionavelmente, o ho-mem que mais conheciaa ciênciaqueele próprio denominara "Efelogia"!

(De "Maktub")

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Os Trinta e Cinco Camelos

Poucas horas havia que viajávamossem interrupção, quando nos ocor-reu uma aventura digna de registro,na qual meu companheiro Beremiz,com grande talento, pôs em práticaas suas habilidades de exímio alge-brista.

Ellcontramos, perto de um antigocaravançará meio abandonado, trêshomens, que discutiam acalorada-mente ao pé de um lote de camelos.

Por entre pragase impropériosgri-tavam possessos, furiosos:

- Não pode ser!- Isto é um roubo!- Não aceIto!O inteligente Beremiz procurou

informar-se do que se tratava.- Somos irmãos - esclareceuo

mais velho- e recebemos,como he-rança, esses 35 camelos. Segundo a

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vontadeexpressade meupai, devoeureceber a metade, o meu irmão Ha-med Namir uma terça parte, e ao Ha-rim, o mais moço, devetocar apenasa nona parte. Não sabemos, porém,como dividir dessa forma 35 came-los, e, a cada partilha proposta, .

segue-se a recusa dos outros dois,pois a metade de 35é 17e meio! Co-mo fazer a partilha se a terça partee a nona parte de 35também não sãoexatas?

- É muito simples - ,atalhou o"homem que calculava". - Encar-regar-me-eide fazer, comjustiça, es-sa divisão, se permitirem que eu jun-te, aos 35 camelos da herança, essebelo animal que, em boa hora, aquinos trouxe!

Neste ponto, procurei intervir naquestão:

- Não posso consentir em seme-lhante loucura! Como poderíamosconcluir a viagem,se ficássemossemo nosso camelo?

- Não te preocupes com o resul-tado, Ó "bagdali"!' - replicou-me,em voz baixa, Beremiz. - Sei, mui-to bem, o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás, no fim, aque conclusão quero chegar.

Tal foi o tom de segurança comque ele falou, que não tivedúvidaementregar-lhe o meu belo jamal,2que, imediatamente, foi reunido aos35 ali presentes, para serem reparti-dos pelos três herdeiros.

- Vou, meusamigos- disseele,dirigindo-seaos três irmãos -, fazera divisão justa e exata dos camelosque são agora, como vêem, em nú-mero de 36.

E, voltando-se para o mais velhodos irmãos, assim falou:

- Deves receber, meu amigo, ametade de 35, isto é, 17e meio. Re-ceberás a metade de 36 e, portanto,

IBagdali - indivíduonalUralde Bagdá.2Jamal - uma das muitas denominaçõesque os ára-bes dão ao camelo.

18. Nada tens a reclamar, pois é cla-ro que saíste lucrando com estadivisão!

E, dirigindo-seao segundoherdei-ro, continuou:

- E tu, Hamed Namir, deviasre-ceberum terço de 35, istoé, II e pou-co. Vais receber um terço de 36, istoé, 12.Não poderás protestar, pois tutambém saíste com visível lucro natransação.

E disse, por fim, ao mais moço:- E tu, jovem Harim Namir, se-

gundo a vontade de teu pai, deviasreceber uma nona parte de 35, istoé, 3 e pouco. Vais receber um terçode 36, isto é, 4. O teu lucro fOiigual-mente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado!

E, numa vozpausada e clara, con-cluiu:

- Pela vantajosa divisãofeita en-tre os irmãos Namir - partilha emque todos os três saíram lucrando -couberam 18camelosao primeiro, 12ao segundo e 4 ao terceiro, o que dáum resultado (18+ 12+ 4) de 34 ca-melos. Dos 36 camelos sobfaram,portanto, dois. Um pertence, como

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sabem, ao '~bagdali" meu amigo ecompanheiro; outro, por direito, amim, por ter resolvido,a contento detodos, o complicadoproblemada he-rança!

- Sois inteligente, ó estrangeiro!- confessop, com admiração e res-peito, o mais velho dos três irmãos.- Aceitamosa vossapartilha na cer-teza de que foi feita com justiça eeqüidade!

E o astucioso Beremiz - o "ho-mem que calculava" - tomou logo

possede um dos maisbelos"jamais"do grupo e disse-me,entregando-mepela rédea o animal que me perten-cia:

- Poderás agora, meu amigo,continuar a viagem no teu camelomanso e seguro! Tenho outro, espe-cialmente para mim!

E continuamosa nossajornada pa-ra Bagdá.

(De "O Homem que Calculava")

A Noiva de Romaiana

Na opulenta cidade de Badu, na Ín-dia, vivia, faz muitos anos, um ricobrâmane,I chamadoRomaiana,quepossuía as cinco.virtudes desejáveise era, além disso, destro e valente nomanejo dos corcéis de combate.

.Uma das quatro castas em que se divide o povo hin-du. As outras três são formadas pelos quichalrias (mi-litares), pelos vaicias (operários) e pelos su.Jras(escravos).

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Três encantadoras donzelas -Nang, Laira e Lamil- requestavamo coração do garboso e gentil Ro-maiana. Cada uma delas parecia ex-cederas demaisem belezade formas,lustresde avóse graçade gestose sor-risos.

Não sabendo o generoso Romaia-na qual das três deidadesescolherpa-ra esposa, foi ter como velhoe douto

Vidharba, a quem pediu lhe indicas-se um meio seguro e discreto de ave-riguar qual das três raparigas seria amais prendada.

- Aconselho-te um artifício ex-tremamente simples - acudiu o sá-bio brâmane ao jovem enamorado.- Dá a cada uma das jovensum pra-to de arroz, no meio do qual, terás,previamente,ocultado um brilhante,e pede-Ihesque te preparem um gos-toso manjar.

Depoisde aprontar cuidadosamen-te os três pratos, conforme deter-minara o sacerdote, Romaiana to-mou-ossobas amplasvestes,foi à ca-sa da formosa Nang, e disse-lhe, a-presentando-lhe um deles:

- Venhopedir-te,minhaquerida,que me prepares, tu mesma, com es-te arroz, um manjar. Virei,dentro desete dias, saborear a iguaria que fi-zeres!

Idêntico pedido fez Romaiana, lo-go depois, a Laira e Lamil, deixando-lhes os dois pratos restantes.

No dia marcado, ao cair da tarde,foi o moço brâmane, em companhia

do judicioso Vidharba, à casa deNang.

A jovem conseguira, com o alvocereal que lhe dera Romaiana, ummanjar finíssimo e saboroso.

- Como és habilidosa, Ó belaNang! - exclamouo moço,cheiodeentusiasmo.- Felizo mortal que hásde eleger para esposo!

O velho guru2disse, porém, bai-xinho, ao discípulo: .

- Esta jovem é, realmente, comodisseste, bastante habilidosa, masnão te poderá servir para esposa. É

. desonestae egoísta,pois, tendo en-contrado o brilhante no meio do ar-roz, guardou-o, sem nada dizer-te!

E prosseguiu:- A mulher desonesta e egoísta

- conforme li no "HitopadexaH3- é como o tigre faminto da flores-ta, que tanto devora um ladrão co-mo um santo.

Romaiana e seu mestre despedi-

2Guru- sábio;sacerdote. .3HilOpadexa -livro composto de uma coleção de fá-bulas. contos morais e ap6logos. O "Hitopadexa" émuito usado na Índia para a educação dos meninos.

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ram-sede Nange dirigiram-se,em se-guida, à casa em que morava Laira.

Não menos deliciosoestava o pu-dim que esta ide~dizara.Ao prová-Io,Romaiana ficoumaravilhado. E semsaber dissimular o seu entusiasmo:

- Não há elogios dignos desteapetitoso prato! Jamais me foi dadosaborear iguaria tão fina! Estou en-cantado!

- Maisencantada estou eu ainda- saiu-se ela de pronto - pois, nomeio do arroz, encontreivaliosobri-lhante, com o qual mandei fazer, pa-ra mim, este lindo anel!

E, estendendoa mão fina e perfei-ta, mostrou ao namorado a riquíssi-ma jóia que lhe cintilava no dedoesguio e branco.

Mas, sem que Laira o ouvisse, osacerdote murmurou ao ouvido deseu jovem discípulo:

- Esta moçaé prendada, é hones-ta, mas tem, a meu ver, um gravede-feito, é egoísta! A mulher egoísta -conforme nos ensina o "Hitopade.:.xa" - é como o pássaro que devoraa semente para que ninguém possaaproveitar o fruto!

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E, rematou, em voz baixa:- Deixemosesta casa. Vejamos

como vai receber-nosa formosa La-mil!

Romaiana seguiu, no mesmo ins-tante, para a casa de sua terceiraapaixonada.

Acolheu-o Lamil com grande sa-tisfação, oferecendo-lhe um lautobanquete.

- Que vejo! - exclamouRo-maiana. - Pedi-te que me fizesses,apenas, um manjar com a pequenaporção de arroz que te dei, e encon-tro iguarias tão diversas e tão finas,que só mesmo na ceia de um prínci-pe poderiam figurar!

- Pois tudo issoque aí está - re-torquiu a jovem com um sorrisoamável - preparei-teapenascomoarroz que me trouxeste!

- Como foi possíveltal milagre?- Nada maisfácil- explicouLa-

mil. - Ao examinar e lavar o arroz,achei um brilhante. Seessebrilhanteveio com o arroz - refleti -, devecontribu.ir de alguma forma para apreparação dos pratos! E, assim, re-solvi empenhar o brilhante. Com o

dinheiro obtido, compre~vários in-gredientes com os quais obtive asiguarias que aí est~o. Mostrei os a-cepipesàs minhas vizinhas, que, en-cantadas, me pediram que lhes ensi-nasse a tão bem fazê-Ios. Aquiesci,recebendo, de cada uma, dois "ta-lungs"4 de ouro. Foi com esse di-nheiro que conseguiretirar o brilhan-te do penhor!

E, entregando a Romaiana a pre-ciosagema, concluiucomencantado-ra simplicidade.

- Aqui está o brilhante! Guarde-o, que ele é teu!

O sábio brahmarxi,5, conduzindoo rapaz para o canto da sala,segredou-lhe meio emocionado:

- Casa, meu filho, une-te hojemesmo a esta meiga e preciosa me-

4Talung- moeda antiga do Sião.sBrahmarxi- brâmane dotado de grandes virtudes.Santo de casta bramânica.

nina! Ela é, a meu ver, habilidosa,honesta, boa e econômica!

E concluiu, com a firmeza que osanos e a experiência lhe garantiam:

- A mulher econômica, segundodi~ o "Hitopadexa", é como a for-miga, que nunca leva para fora desua vivendaos grãos preciososde seuceleiro.

Romaiana seguiu, sem hesitar, oconselho do sábio Vidharba, e viveumuitos anos felizes, sem jamais es-quecer os profundos ensinamentosdo "Hitopadexa":. - "Em verdade, quem não tem,procure adquirir; adquirindo, guar-de sem desperdiçar; guardando, au-mente convenientemente;aumentan-do, despendanos lugaressagrados!"

(De "Minha Vida Querida")

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o Mais Generoso dos Cheiques

Quando o cheique Elmadin Rayekhatravessava as ruas sombrias e tor-tuosas de Marraquexe, os homensparavam respeitosos para saudá-Io.

- Salã! Salã ao mais generosodos cheiques!

- Allah, badique, yah sidi! (Deusvos conduza, ó chefe!)

- Iuladi velodeil- ej-jinna! (Se-ja o paraíso a morada de vossospais!)

Ao ouvir aquelas expressões tãoeloqüentes que traduziam o senti-mento de gratidão que viviana almado povo, uma dúvida, por vezes,insinuava-se em meu espírito: SidiElmadin' seria, realmente, merece-

ISidi Elmadin - o vocábulo "sidi", que precede o no-me, corresponde a uma designação respeitosa: Sei:/lOr.O conto leva o leitor para o norte da África, onde écorrente o emprego desse lermo.

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dor daquelas homenagens? Não ha-veria exagerosem sublinhar-se o seunome como coloridoda fama que as-sinala os diletos de Allah?

Um dia, afinal, levou-me o Desti-no a assistir a uma cena que me aba-lou profundamente.

- Vou contá-Ia, ó irmão dos ára-bes!, e julgarás o caso segundoos di-tames de teu coração.

Achava-me, certa vez, pouco an-tes da terceiraprece,no pátio da mes-quita de Iazid, em companhia de SidiElmadin e de um perfumista de Ca-sablanca. Conversávamos,descuida-dos, sobre um misterioso crimeocorrido, dias antes, em Bab Berri-mas, quando vimos aproximar-se denós um ancião andrajoso e trôpego.

- Uma esmola! - implorou,com voz arrastada e humilde. -

Uma esmola por amor de Allah!Sidi Elmadin tirou da bolsa uma

rica moeda de ouro e depositou-anasmãos trêmulas do velho.

Ao recebera preciosalibra~o men-dicante ergueu os braços para o céue exclamou:

- Yah abu'/jazl! (Ó pai da exce-lência!)SejaAllah o vossoguia e am-paro~e que a sombra da ventura sejaa vossa própria sombra!

Ninguém poderá avaliar o espan-to que me invadiu~quando vi o chei-que dirigir-seao mendigo, tirar-lhe apeça de ouro (que momentos anteslhe dera) e~em troca~meter-lhe nasmãos um dinar de prata.

- Espera~meu velho- explicou,meio constrangido. - Enganei-meao tirar da bolsa o dinheiro.

E~apontando para o dinar, soltouesta frase:

- É esta a moeda que pretendiaoferecer-te!

O pedinte, depois de revirar entreos dedos grossos a rutilante moeda(de valor bem menor que a primei-ra), fez ouvir novamente os protes-tos de sua gratidão:

- Yah abu'/ jul! (Ó pai da bon-dade!) Que Allah, o misericordioso,abençoe os vossos filhos e os filhosde vossos filhos! Que a al~gria vivasempre em vosso lar!

Maior foi, ainda, a minha surpre-sa, quando vi o pecunioso Elmadin,alegandonovo equívoco,aproximar-se, outra vez,do pobre, arrebatar-lhedas mãos o dinar de prata e dar-lhe,em troca, com maior descaso~umaouquia, isto é~uma moeda de bron-ze de ínfimo valor:

- Sinto contrariar-te~ ó muçul-mano! - disse o rico cheique ao es-frangalhado mendigo - mas nomomento só posso dispor desta "ou-quia" .

Fosse eu o infeliz pedinte da mes-quita (livre-me Allah, o Exaltado,desse triste destino!), não admitiriaque um homem de vida aparatosa ebrilhante, como SidiElmadin~tripu-diasse,daquele modo~sobrea minhamiséria. Pelo manto de nosso glorio-so Profetaf2 Sem hesitar um segun-

2Pelo manto de nosso glorioso Profeta! Fórmula po.pular de juramento. Refere-se a Maomé. ou Mafoma,fundador do Islamismo. cuja memória é venerada pe.los muçulmanos.

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do, arremessariaa desprezívelouquianas barbas do arrogante magnata ecuspir-lhe-ia, por cima, o meu des-prezo infinito.

Bemdiversofoi, entretanto, o pro-ceder do mendigo. Sem demonstraro mais leveressentimento de contra-riedade, como se o seu coração já es-tivesseimpermeávela todas 'as afron-tas e indignidadesda Vida, ajoelhou-se aos pés do potentado muçulmanoe assim falou, com um pasmo idiotana face:

- Yah abu'/ Kamaul! (Ó pai daperfeição!) Que a generosidade deAllah, o Sapientíssimo, caia, parasempre, sobre vossos ombros e queas vossas mãos dadivosas possam,por muitos e muitos anos, auxiliarosinfelizese desamparados! Seja a fe-licidade a luz de vossos olhos!

Aquelaspalavras, impressionantespela sinceridadecom que eram ditas,ecoavam torturantes em meu cora-ção. Tive ímpetos de agredir SidiEI-madin, alvejá-Io com dois outrosinsultos pesados e afastar-me de suapresença.Contive-meunicamentepa-ra não manchar compalavrasde ódio

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e rancor as paredes veneráveis dagrande mesquita. Notei que o perfu-mista, os braços cruzados sobre opeito, permanecia risonho, impassí-vel, como se estivesseassistindo aocaso mais trivial do dia.

SidiElmadin, pousando a mão noombro do mendigo, aconselhou-ocom irritante mansidão:

- Leva essa ouquia, meu velho,à casa de Hassan, o padeiro, e com-pra um pão!

No dia seguinte achava-me no su-que de EI-Quemis, palestrando comFauzi Sarid; negociantede Damasco,quando avist~i Sidi Elmadin, quepassava a poucos passos de nós.

O sírio, que se achava a meu lado,dirigiu um afetuoso salã ao cheique.

~ Yah abu'/ nuzzaur! (Ó pai dariqueza!) Queira Allah fazer-te cemvezes mais rico e mil vezes mais fe-liz!

E, notando que eu ficara impassí-. vel, silencioso, perguntou-me se, poracaso, eu não tinha a incomparávelventura de conhecer Sidi Elmadin, omais generoso dos cheiques.

- Conheço-o de sobra - respon-di com ironia. - Esse ricaço podeiludire ilaqueara todo o mundo, me-nos a mim.

E narrei-lhe, em termos acerbos, oepisódio que havia, na véspera, tes-temunhado em companhia do perfu-mista de Casablanca.

Respondeu-meo mercador damas-ceno:

- Informaram-me ontem dessecaso que tanto espanto causou ao teuespírito, e a explicação da estranhaatitude do cheique é muito simples.Ouvia-a, esta manhã, do perfuq1istaque é amigo íntimo deSidi Elmadin.

- Não vejoexplicaçãoalguma-contestei irritado. - A meu ver, nãoassisteao ricaçomaníaco o direitodehumilhar a um pobre!

O mercador, decidido a esclarecera verdade, narrou-me o seguinte:

- Quando Sidi Elmadin avistouo velho andrajoso receou tratar-sede um falso mendigo e quis expe-nmentá-Io. Que fez? Deu-lhe umamoeda de ouro e, logo depois, ale-gando haver-se enganado, trocou amoeda por outra de prata, que valia,

talvez, a quinta parte da primeira. Seo mendigo tivessepalavras de revol-ta, revelandoalma sórdIda e propen-sa à ingratidão, seria mandado empaz com a libra de ouro e com o di-nar de prata. Tal, entretanto, não su-cedeu. Vendo, embora,-diminuída aesmola. ele não deixoude exaltar no-vamente a gratidão que sentia pelogeneroso benfeitor. Que fez o chei-que? Procurou certificar-semais umavezda grandezad'alma do infeliz,to-mou a moeda de prata, que já lhe de-ra, e substituiu-a por uma de bronze.Se se tratasse de um tipo vulgar, como espírito caldeado pela inveja e pe-lo despeito, decerto o bondoso chei-que teria sido injuriado por ter im-posto aquela segundatroca. O pobre,no entanto, revelando possuir senti-mentos nobilitantesde paciênciae re-signação, mostrou-se conformadocom a sorte, não se ofendeu com odesvalor da esmola, nem se irritoucom a perda dos dois outros valores.

- E que ganhou, afinal, o men- .

digo? - indaguei, arrastado pela cu-riosidade que o caso de mim desper-tara.

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- Aquelaouquia de bronze- re-sumiu o mercador - estava marca-da, e o mendigo, levando-a (como ocheique, aliás, recomendara) ao ve-lho Hassan, foi incluído na relaçãodos pobres de "Fátima", a socieda-de mantida pelo dadivoso Elmadin.As pessoassocorridas por "Fátima"têm pão e agasalho para o resto deseusdias. Eis aí a recompensaque al-cançouo velhoda mesquita. O maior6u;xílioque poderia desejar!

- Bemvês,meuamigo- repisoutranqüilo o mercador-, que SidiEI-

madiné, semdúvida, um dos homensmais sábios e mais generosos domundo!

Nessemomento avisteio cheique,de pé, junto a uma das portas do su-que. Na ânsia de reparar o erro dojulgamento que eu tivera a levianda-de de proferir contra ele, erguio bra-ço e exclamei bem alto:

- Allah badique,yah sidi! (Deusvos conduza, Ó chefe!)

(De "Lendas do Deserto")

o Tesouro de Bresa

Houve outrora, em Babilônia - a fa-mosa cidade dos Jardins Suspensos- um pobre e modestoalfaiate, cha-mado Enedim, homem inteligente etrabalhador, que, por suas boas qua-lidades e dotes de coração, granjea-ra muitas simpatiasno bairro em quemorava.

Enedim passava o dia inteiro, damanhã à noite, cortando, concertan-

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do e preparando as roupas de seusnumerososfregueses,e, embora pau-pérrimo, não perdia a esperança devir a ser riquíssimo, senhor de mui-tos palácios e grandes tesouros.

Como conquistar, porém, essa tãoambicionada riqueza? - pensava omísero remendão, passando e repas-sando a agulha grossa de seu ofício- como descobrir um desses famo-

sos tesouros que se acham escondi-dos no seio da terra ou perdidos nasprofundezas dos mares?

Ouviracontar, em palestracomes-trangeiros vindos do Egito, da Síria,da Gréciae da Fettícia,históriaspro-digiosasde aventureiros que haviamtopado comcavernasimensas,cheiasde ouro; grutas profundas crivadasde brilhantes; luras sórdidas queguardavam caixas pesadíssimas atransbordar de pérolas, mimoso fru-to da rapina de bárbaros cartagine-ses. E não poderia ele, à semelhançadessesaventureiros felizes,descobrirum tesourq fabuloso e tornar-se, as-sim,de um momentopara outro maisrico do que Nabonid, o rei podero-so? Ah! Se tal acontecesse,ele seria,então, senhor de um coruscante pa-lácio; teria numerososescravos,e to-das as tardes, num grande carro deouro, tirado por mansos leões, pas-searia, de seu vagar, sobre as mura-lhas de Babilônia, cortejando amis-tosamente os príncipesilustresda ca-sa real.

Assim meditava o bondoso Ene-dim, divagando por tão longínquas

riquezas, quando lhe parou à portada casa um velho mercador da Fení-cia, que vendiatapetes,caixasde éba-no, bolas de vidro, imagens, pedrascoloridas e uma infinidade de outrosobjetos extravagantestão apreciadospelos babilônios.

Por mera curiosidade, começouEnedim a examinar as bugigangasque o vendedor lhe oferecia, quan-do descobriu, entre elas, uma espé-cie de livro de muitas folhas, onde seviam caracteres estranhos e desco-nhecidos.

. Era umapreciosidadeaquelelivro- afirmava o traficante, passando asmãos ásperas pelas barbas que lhecaíam sobre o peito - e custavaape-nas três dinares.

Três dinares. Era muito dinheiropara o pobre alfaiate. Para possuirobjeto tão curiosoe raro, Enedim se-ria capaz de gastar até dois dinaresde prata.

- Está bem- concordousub--missoo mercador -, fica-lheo livropor dois dinares, mas esteja certo deque"lhe dou de graça.

Afastou-se o vendedor, e Enedim

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tratou, semdemora, de examinarcui-dadosamente a preciosidade que ha-via adquirido.' Qual não foi a suasurpresa quando conseguiudecifrar,na primeira página, a seguintelegen-da escritaem complicadoscaracterescaldaicos: "O segredodo tesouro deBresa" .

Por BaaW Aquele livro maravi-lhoso, cheio de mistério, ensinava,com certeza, onde se encontrava al-gum tesouro fabuloso, o tesouro deBresa! Mas que tesouro seria esse?Enedim recordava-se,vagamente,dejá ter ouvido qualquer referência aele. Mas quando? Onde?.E, com o coração a bater descom-

passadamente, decifrou ainda:

"O tesouro de Bresa, enterra-do pelo gênio do mesmo nomeentre as montanhas do Barba-tol, foi ali esquecido, e ali seacha ainda, até que algum ho-mem esforçado venha aencontrá-Io. "

IBaa/ - nomepelo qual era conhecidoo Deus supre-mo dos antigos fenícios. Significa, propriamente, o mes-tre, o senhor, e parece ter sido, durante muitos séculos,o nome genérico da divindade. Baal é um deus da na-tureza, cujas forças ele personifica.

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Harbatol! Que montanhas seriamessasque encerravamtodo o ouro fa-buloso de um gênio?

E o esforçado tecelão dispôs-se adecifrar todas as páginas daquele li-vro,a ver se atinava, custasse o quecustasse,com o segredode Bresa,pa-ra apoderar-se do teSouro imenso,que o capricho de seu possuidor fi,zera enterrar nalguma gruta perdidaentre montanhas.

As primeiraspáginas eram escritasem caracteres de vários povos. Ene-dim foi obrigado a estudar os hieró-glifos egípcios, a língua dos gregos,os dialetospersas, o complicadoidio-ma dos judeus. Ao fim de três anos,deixavaEnedim a antiga profissãodealfaiate, e passava a ser o intérpretedo Rei, pois na cidade não haviaquem soubessetantos idiomasestran-geiros.

O cargo de intérprete do rei erabem rendoso; ganhava Enedim cemdinares por dia; ademaismorava nu-ma grande casa, tinha muitos criadose todos os nobres da corte o sauda-vam respeitosamente.

Não desistiu, porém, o esforçado

Afastou-se o vendedor., e Enedim tratou, sem demora, de examinar cuidadosamente a preciosida-de que havia adquirido.

Enedim, de descobrir o grande mis-tério de Bresa. Continuando a ler olivroencantado, encontrouváriaspá-ginas cheias de cálculos, números efiguras. E, a fim de ir compreenden-do o que lia, foi obrigado a estudarMatemática com calculistasda cida-de, tornando-se, ao cabo de poucotempo, grande conhecedor das com-plicadas transformações aritméticas.

Graças a essesnovos conhecimen-tos adquiridos, pôde Enedim calcu-lar, desenhar e construir uma gran-de ponte sobre o Eufrates; essetrabalho agradou tanto ao Rei, que.o monarca resolveunomear Enedimpara exercer o cargo de prefeito. Oantigo e humildealfaiatepassava, as-sim, a ser um dos homens mais no-táveis da cidade.

Ativo e sempre empenhado emdesvendar o segredo do tal livro, foicompelido a estudar profundamenteas leis, os princípiosreligiososde seupaís e os do povo caldeu; com o au-xílio desses novos conhecimentos,consegu~uEnedim dirimir uma velhapendência entre os doutores.

- É um grande homem o Ene-

dim! - declarou o Rei quando sou-be do fato. - Vou nomeá-loprimeiro-ministro.

E assim fez. Foi o nosso esforça-do herói ocupar o elevado cargo deministro. Vivia, então, num suntuo-so palácio, perto do jardim real, ti-nha muitos escravos,e recebiavisitasdos príncipes mais ricos e poderososdo mundo.

Graças ao trabalho e ao grande sa-ber de Enedim, o reino progrediu ra-pidamente, a cidade ficou repleta deestrangeiros;ergueram-segrandespa-lácios, váriasestradas seconstruírampara ligar Babilônia às cidades vizi-nhas. Enedim era o homem mais no-tável do seu tempo; ganhava diaria-mente mais de mil moedas de ouro;e tinha, em seu palácio de mármoree pedrarias, caixa de bronze cheia dejóias riquíssimas e de pérolas de va-lor incalculável.

Mas - coisa interessante! - Ene-dim não conheciaainda o segredodolivro de Bresa, embora lhe tivesseli-do e relido todas as páginas! Comopoderia penetrar naquele mistério?

E um dia, cavaqueando com um

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venerando sacerdote, teveocasião dereferir-se à incógnita que o atormen-,tava. Riu-se o bom religioso, ao ou-vir a ingênua confissão do grandevizir, e, afeito a decifrar os maioresenigmas da vida, assim falou:

- "O tesouro de Bresajá está emvosso poder, meu senhor. Graças aolivro misteriosoé que adquiristes umgrandesaber, e essesabervospropor-cionou os invejáveisbens que já pos-suis. Bresa significa "saber".Harbatol quer dizer ','trabalho".Com estudo e trabalho pode o ho-mem conquistar tesouros maioresdoque os que se ocultam no seioda ter-ra ou sob os abismos do mar."

Tinha razão o esclarecidosacerdo-te.

Bresa, o gênio, guarda realmenteum tesouro valiosíssimo, que qual-quer homem esforçado e inteligentepode conseguir; essa riqueza prodi-giosa não se acha, porém, perdida noseio da terra nem nas profundezasdos mares; encontrá-Ia-eis, sim, nosbons livros, que, proporcionando sa-ber aos homens, abrem, para aque-les que se dedicam aos estudos comamor e tenacidade, as grutas mara-vilhosasde mil tesoUrosencantados.

(De "Lendas do Deserto")

A PequeninaLuz Azul

Certa manhã, depois da prece mati-nal, o poderoso sultãoEI-Khamir,reido Hedjaz, mandou vir à sua presen-ça o prefeito da cidade.

- Prefeito - disse o rei -, estanoite, levantando-mecasualmente, a

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desoras, chegueià janela e avistei aolonge, no meio da escuridão da cida-de, uma pe.queninaluz azul, muito vi-va e brilhante. Estou intrigado comesse caso e desejo vivamente saberquem passou a noite a velar.Ordeno-

-<lheque abra um rigoroso inquéritopara apurar a razão dessa vigília.

5 - Escutoe obedeço- retorquiu.' o prefeito de Jidda, capital do Hed-;!jaz, inclinando-se respeitosamente.- - Parece-me, porém, inútil esse in-cquérito! Cumpre-medizerque aquelal.luz provinha do oratório da minha2casa!

E diante do espanto indisfarçável; do rei, ele ajuntou, modesto, infle-

1:'tindoa cabeça para o peito:-. - Eu e minha família passamos

a noite em orações, pedindo a DeusOnipotente pela preciosa saúde de.Vossa Majestade!

(' - Obrigado, meu bom amigo-tor/nou o monarca sinceramente co-movido - em muito tenho sua ami-zade e dedicação.

E acrescentou,solene,comvoz so-nora e cheia:

- Saberei corresponder aos cui-cdados que lhe mereço.

Retirando-seo prefeito, mandou o-rei chamar o seugrão-vizir, o.respei-[tável Maollim, que acumulava na~ícorte do sultão as elevadas funções-de ministro e secretário.

- Meu caro Maollim- declarourisonho o rei, resolvi recompensarcom mil dinares de ouro o prefeitodesta formosa cidade: Jidda!

- Mil dinares de ouro! Por AI-lah! É muito dinheiro! - atalhou lo-go o grão-vizir,esgazeandoos olhos,tomado de vivo espanto. - Que te-ria feito o governador da cidade pa-ra merecer tão grande mercê?

- Praticou uma ação nobre e su-blime - justificou o soberano.

E narrou, com a maior simplicida-de, o caso da luz, rematando-o coma extraordinária confissão que lhe fi-zera pouco antes o prefeito.

- Permita-meponderar - profe-riu o ministro - que Vossa Majes-tade está sendo iludido por essehomem indigno. O prefeito, segun-do posso provar, não tem família esó sabe orar nas mesquitas, quandoa isso é obrigado. Vive, miseravel-mente como um avarento, em seusórdido casebre, para além do bair-ro judeu!

- Mas... e a pequenina luz azul!- refletiuo rei - donde, então, pro-vinha ela?

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- Vejo-meobrigado, ó rei gene-roso!, a confessar a verdade - con-traveioo ministrocomhumildade.-Essa pequena luz azul, que feriu osaugustos olhos de Vossa Majestade,era a lâmpada de azeite que iluminaa minhavidade estudos.Passeia noi-te acordado, cogitando acerca dosgraves problemas e das múltiplasquestões que Vossa Majestade deveresolver na audiência de hoje! Juro'pelo Alcorão que essa é a verdade1.

- Grande e esforçado amigo! -tornou, radioso, o ingênuomonarca,abraçando o ministro. - Comolheadmiro esseseuamor ao cumprimen-to do dever.

E, j~biloso, disse-lhe:- Palavra de rei, ó Maollim! Te-

rás brevementeuma recompensadig-na da tua dedicação!...

Mal se retirara o ministro,mandouo rei chamar o general Muhiddin,chefe das tropas muçulmanas doHedjaz, e contou-lhe que estava re-

IJuro pelo Alcorão - esse juramento é um dos maisgraves. A sua violação voluntária pode importar em se-veríssimo castigo.

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solvido a conceder o título de chei-que de Loheia ao seu digno ministroMaollim; o general devia destacar,portanto, um corpo de quinhentossoldados que ficariam permanente-mente à disposição do novo dignitá-rio do Hedjaz.

E o bom monarca, semnada ocul-tar, contou ao general a história daluz e a dedicação do bom ministro.

- E Vossa Majestade acreditounas falsas palavras de Maollim? -estranhou o general, tomado de in-dizível admiração. - Peço especialpermissão para provar que esse au-dacioso vizir, esquecendo o respeitoque deve a nosso glorioso sultão,mentiu como um infiel.

Mentira o prefeito? Mentira tam-bém o ministro! Como poderia ele,o rei, apurar a verdade sobre o ca-so? Como descobriro mistérioda lu-zinha azul? .

- Era minha intenção, ó rei afor-tunado - confessou, modesto, o ge-neral-, ocultar a verdade. Vejo-meagora, porém, obrigado a revelá-Ia.A pequenina luz azul que durante a.noite passada atraiu a atenção de

Vossa Majestadeprovinha apenas daminha tenda de campanha!

- De sua tenda, general! - cla-mou, ádmirativamente, o soberanoárabe, mais uma vez surpreendido.

E o generalnão hesitouem dar ter-ceira versão ao caso. Os boatos deum provávellevantamentorevolucio-nário, de algumas tribos do interior,haviam-noalarmado. Com receiodeque os beduínos rebeldese seusalia-dos revoltosos, durante a noite, vies-sem atacar o palácio real, ficara ele,para maior garantia da vida do rei,acampado nas cercanias da cidade,com algumas forças de sua absolutaconfiança.

Por Deus! Que valentia! Que he-roísmo! O poderoso sultão não sabiacomo agradecerao chefede suas tro-pas aquele serviço extraordinário,aquele zelo tão grande pela ordem epelo trono!

- Que farei? - cogitava ele de-pois que o general se despedira. -Vou conceder-lhe o título excepcio-nal de príncipedo Hedjaz e uma pen-são anual de vintemil dinares!Não...

Ele merece muito mais ainda -salvou-me a vida... a coroa...

Depois de muito refletir, e comonão chegassea uma conclusão satis-fatória, o pávido monarca resolveuconsultar o judicioso ulemá Ali-Ef-fendi, seu velho mestre e conselhei-ro.

- Na minha fraca opinião -ponderou o sábio muçulmano -,Vossa Majestade não deve acreditarno prefeito,nemno ministro,nemnogeneral. Quero crer que a tal luz pro-vinha do novo farol de EI-Basin,queindica aos navegantes a entrada doporto, assegurando-Iheso bom cami-nho em noites de tormenta.

O rei alçou para o sábio os olhossurpresos.

- Era, então,.a luz do farol! -exclamou.

O prudente ulemá aconselhou-o aque verificasse, naquela mesma noi-te, quem falava a verdade.

E assim, três horas depois da últi-ma prece, quando já bem adiantadaia a noite, ergueu-se o sultão EI-Khamir do régio leito, chegou à va-randa, estendeu o olhar por sobre o

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panorama da cidade, que lhe dormiaaos pés. Uma surpresa estranha oaguardava: comojá era conhecidadetodos a notícia das prometidas re-compensas, a cidade surgia, naquelanoite, extraordinariamente ilumina-da. Nunca se viu tanta luz! Eram mi-lhares de lâmpadas, lanternas elampiões. Queriam todos agradar aopoderoso soberano: a casa do minis-

tro parecia até o serralho de um cali-fa em noite de festa do mês deRamadã!

E o crédulo rei do Hedjaz com-preendeuentão que, no seurico e glo-rioso país, para cada súdito honestoe dedicado havia um milhão de men-tirosos e bajuladores.

(De "Maktub")

Os Três Homens Iguais- Ah! Para que fui eu acreditarnas apa-rências? Mil vezeserrei; mil vezesfui enga-nado! O caravaneiro errante que corre, nodeserto, em buscada miragem,pisa na som-bra da Morte. Só Allah pode salvá-lo!

Na velha cidade de EI-Katif, que fi-ca cercada de um verdejante oásis,para além do famoso deserto deRoba-el-Khali, apareceu, certa vez,um misteriosoestrangeiro,mago per-sa de grande-renome.Segundoanda-va na boca do povo, o tal mago fa-zia-se acompanhar de três homenspossuidores da propriedade extraor-

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dinária e prodigiosa de serem rigoro-samente iguais. Não era possível -diziam as crônicas do tempo - aosespíritos mais meticulosose observa-dores descobrir um traço fisionômi-co, um tique ou uma particularidadequalquer que permitissedistinguirumdos tais homens dos outros dois só-sias.

Contaram o caso ao poderosoAb-dallah Fahad, rei xiital de EI-Katif,senhordo impériodos carmatas, maso bom soberano não quis acreditarem tamanha singularidade.

- Seriapossível- refletiao mo-narca - que houvesseno mundo, as-sim como diziam, três homensperfeitamente iguais? Por certo quenão!

E como o picassea curiosidade-a que nemmesmoos grandesmonar-cas orientais podem fugir -, decla-rou o rei Fahad que queriaver os trêshomens iguais, pois que somente as- .

simé que elepoderia convencer-sedaexistência real do estranho fe-nômeno.

Uma ordem, dada ao grão-vizir,foi transmitida aos oficiais encarre-gados de zelarpela segurançada pes-soa do Sultão. Preparou-se umgrande e riquíssimo cortejo e o rei,em luxuoso palanquim, acompanha-do de brilhante comitiva, dirigiu-se

IXiita - nome dado aos muçulmanosda Pérsia, queconstituemseitado Islamismo,emoposiçãoaos demaismuçulmanosdenominadossunitas. Os xiitas não ad-mitemno trono do Islã senãoum dos descendentesdçAli.

à grande tenda que o mago mandaraerguer, para além das últimas tama-reirasde EI-Khamir,entre doisroche-dos, junto ao mar.

Ao avistar o inesperado cortejodiante da sua tenda, o feiticeiroencaminhou-seao encontrodo sultãoxiita, e, inclinando-sehumilde dian-te dos nobres visitantes, exclamou:

- Allah conserve e prolongue,por muitos anos felizes, a vida denosso amo e senhor.

O rei Abdallah Fahad desceu,comcautelosovagar, de seu palanquim e,dirigindo-seao velhoocultista, decla-rou que qileria ver imediatamente ostrês homens.iguais.

- Escutoe obedeço- respondeuo mago comademanescerimoniosos.

A tenda do singular feiticeiro eraampla e confortável.

O rei e os nobres que o acompa-nhavam mostraram-sesurpreendidoscom o luxoe a estranha arte com quetudo ali era arranjado.

Ao fundo, erguidosobreum tabla-do, via-se uma espéciede palco, fe-chado na frente por um grande panode"veludo amarelo. Cobriam o chao

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enormestapetesde coresvivas,cheiosde arabescos exóticos.

O rei sentou-sede pernas cruzadasnuma pilha de almofadas de seda in-diana.

Fez-se um grande silêncio.Sentia-se, esparso no ambiente,

nas pessoas, nas próprias coisas, osopro de um mistério.

O mago bateu palmas três vezesepronunciou umas palavras que nin-guém entendeu.

Ergueu-se lentamente o pano e vi-ram todos, de pé no meio do palco,um homem magro, moreno, vestidoluxuosamente à maneira dos merca-dores persas. Ostentava um riquíssi-mo turbante de seda branca e, àcintura, trazia um punhal alongado,cujo punho se marchetava de pedraspreciosas. Esse homem misteriosocruzou vagarosamente os braços so-bre o peito, sorriu e inclinou-se res-peitoso diante da nobre assistência.

- Eis aí, Ó Rei Magnânimo! -proclamouo mago-, eisaí o primei-ro dos três homens iguais!

A um sinal do velho ocultista, ohomem do turbante branco retirou-

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se lentamente, desaparecendo atrásdo pesado reposteiro escuro que co-bria o fundo do palco.

Decorrido um rápido instante, omago bateu novamente palmas.

Apareceu então, vindo de trás domesmoreposteiroescuro,um homemperfeitamenteigualao primeiroe ves-tido rigorosamente com os mesmostrajes. Dir-se-ia a mesma pessoa. Oturbante parecia ser o mesmoe o pu-nhal tinha até o mesmo brilho. Igualera a expressão fisionômica e idênti-ca a maneira de olhar e sorrir.

- Eis aí, ó Rei Magnânimo!~

declarou com a maior seriedade omago-, eisaí o segundodos três ho-mens iguais!

Os vizires e cortesãos, na quasecertezade que estavamsendo vítimasdas artimanhas de um intrujão auda-cioso, entreolharam-sedesconfiados.

A um novo sinal do ocultista per-sa, o segundo homem afastou-se edesapareceu, como o outro, atrás domesmo reposteiro.

Em seguida, o mago, com imper-turbável calma e serenidade, bateupalmas pela terceira vez.

Surgiu imedIatamente no palco,saindo por detrás do tal reposteiro,um terceiro homem perfeitamenteigual aos outros dois. Não era possí-vel notar-se, quer na fisionomia im-passível do desconhecido, quer noseu trajar bem-posto, a mais peque-na dessemelhancacom os outros doisque o haviam precedido.

- Eis aí, ó Rei - tornou o magocom pausada firmeza-, eiso tercei-ro dos três homens iguais!

O grão-vizir, que se achava de péjunto ao monarca, ao atentar, nosolhares equívocosp nos sorrisos malreprimidosdos cortesãos, disseao reiem voz baixa:

- Quero crer, ó Emir dos Cren-tes!, que essemago é um cínico, umintrujão! Quer divertir-seà nossacus-ta! É evidente que fOIo mesmo ho-mem que apareceu três vezesdianteda Vossa Majestade'

O rei Fahad, que vinhadesconfian-do do caso, ao ouvir a insinuação dogrão-vizir, ergueu-se colérico da al-mofada e gritou com os lábios bran-cos, o olhar desorientado.

- Não creio nessa farsa ridícula,

ó velho intrujão! Julgas, então, nãoter eu percebidoque foi o mesmoho-mem quem apareceu diante de mimtrês vezes! Queres fazer pilhéria ouridicularizar o rei dos carmatas, se-nhor de um oásis que tem um niilhãode palmeiras? Vais já para a forca,ó cão, filho de cão!

Ouvindo tão grave ameaça, incli-nou-se o mago, humildemente,dian-te do abespinhado rei, e, depois debeijar a terra entre as mãos, assimfalou:

- VossaMajestadeacreditará emmim se vir agora os três homensjun-tos?

Respondeu o rei Fahad:- Não há como descrer se os vir

ao mesmo tempo,.juro pela memó-ria de Ali (com ele a oração e a gló-. ,)na. .A um sinal do mago, ergueu-se o

pesado reposteiro que cobria - co-mo já dissemos - o fundo do pal-co. E, com grande assombro, viramtodos - rei, vizires e altos dignitá-rios da corte - três homens perfei-tamente. iguais, de pé, imóveis, nomeio do tablado. Estavam os três na

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mesma atitude; não era, realmente,possível,distinguir-seentre qualquerdeles a menor diferença!

- Agora sim- afirmou, cheiodeconvicção,o senhor do grande oásis.- Agora, sim, acredito! Os três ho-mens são realmente iguais!

Ao ouvir tais palavras, adiantou-se o velho mago - que era um gran-de sábio - e, dirigindo-se ao rei dafamosa província árabe, falou destasorte:

- Perdoe VossaMajestade a .mi-nha ousadia: mas não deve agoraacreditar no que vê!

- Por .quê? - indagou o rei.- Porque agora - esclareceu o

grande ocultista - sobre o tabladoestá um homem só! As outras figu-ras que aparecem são simples ima-gens .obtidas com o auxílio de doisespelhos habilmente combinados!

E, dianteda decepçãode todosos .

presentes, com um sorriso quase ins-tantâneo, disse o sábio:

A princípio era verdade. Fiz

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aparecer os três homens, sendo umde cada vez. Mas, como as aparên-cias eram contra mim, ninguém medeu crédito. Da segunda vez, apre-senteium homemsó, dando a ilusão,com o aUXIliode uma combinaçãodeespelhos,de que setratava de três ho-mens iguais. Embora não fosse ver-dade, todos acreditaram em mim,porque as aparências eram a meu fa-vor!

E, depois de fazer com que os trêshomens iguais passassem juntos,diante do rei, a fim de evitar quequalquer dúvida lhe pairasse aindano espírito, concluiú o sábio persa,com solene exaltação:- É assim também na vida! Ilu-didos pelas aparências enganadorasdas coisas, deixamosmuitas vezesdeacreditar na verdadepara acolheremnosso coração o Erro e a Mentira!

Uassalã!

(De "Céu de Allah")

Senhor, Eu Não Sou Digno

Há muito tempo, em Roma, paraalém da Porta Nomentana, erguia-seum amontoado de míseros casebres,onJe viviamcentenasde escravosfo-iagidos, comediantes arruinados,mendigos, traficantes e gladiadoresestropiados, que pareciam maisamêaçadores com seus andrajos doque os arrogantes vigias do Empo-rium com suas pesadas lanças rebri-lhantes. Aquele perigoso refúgio,raramente visitado pelos agentes deCésar, era apelidado a "Pequena Sa-lária" ou melhor "A Salária".

Por entre as vielassórdidas e som-brias da Salária, um dos tipos maispopulares era o velho Flaminius, oSereno.Pela manhã, muito cedo ain-da, arrastando-se lentamente, deixa-va o seumiseráveltugúrio e dirigia-se

para o pátio da Semita, em busca desol, sob as árvores ferrugentas.

Era um homemalto, magro, de fa-ces amortecidas e olhar distraído. Asua cabeleira, inteiramente branca,

. sempre revolta, dava-lhe uma estra-nha aparênciade profeta gaulês.Usa-va, habituaJmente, uma espécie detúnica palmata, avermelhada, suja,esfarrapada, que mal lhe chegavaatéos joelhos.

De que vivia? Onde ia buscar re-cursos aquele ancião que não esmo-lava na Praça do Mercado nem eravistoa tirar sortes nas escadariasdostemplos?

Repontavaaí a sombra de um mis-tério, que o tempo jamais consegui-ria esclarecer.Garantiam alguns queo velhoFlaminius era amparado por

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um antigo senador, íntimode Augus-to, que eleconheceramuitosanos an-tes, em Nápoles, quando trabalhavano porto, carregando as galeras deTibério.

E, na verdade,Flaminius,que ago-ra arrastava a sua triste decrepitudena Salária, tivera, em sua vida, umperíodo de prosperidade e alegria.Casara-secom uma camponesada Si-cHiae tivera dóis filhos. Um deles-Cláudio, o Belo - fizera-se poeta.Tomara-se popular na corte. As suaspoesias eram declamadas pelos no-bres e elogiadas pelo imperador. Atéos cônsules,altivos,comprestígioen-tre os senadores, invejavamos triun-fos do jovem Cláudio.

Flaminiusorgulhava-sedaquelefi-lho, que os deuses haviam cumula-do de talento.

Mas Cláudio era ambicioso.Ligou-se a um certo Marcus Lucius,político sem escrúpulos, que Tibérioescolhera, no período mais agitadode seu governo, para pacificar umaprovíncia grega. Lucius partiu e le-vou o poeta. E, de Atenas, Cláudiojanlais regressou.

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o desaparecimento do filho ama-do navalhou o coração de Flaminius.Abandonou o trabalho em Nápolese passou a viver em Roma, entreaventureiros da pior espécie, sempão, sem conforto, sem esperança.Sua esposa o deixou e foi para a Es-panha, com alguns parentes ricos. Ofilho mais moço fez-se soldado ealistou-se nas legiões de César.

E, no entanto, Flaminius, no meiode tanta desgraça, sentia-se feliz.

As palavras que ele ouvira de umoráculo do Templo de Vestaenchiamo seu coração de esperanças.

Passara-se o caso num dos últimosdias de setembro,quando os fiéistra-ziam suas oferendas aos deuses.Cru-zava Flaminius o átrio do templo,quando ouviu que o chamavam. Eraum dos oráculos. Trajava uma túni-ca branca, muito alva, vistosamenterecamada de franjas. Na manga di-reita, que se abria em leque, apare-cia, desenhada, uma figura estranha- dragão, esfinge, serpente ou coi-sa parecida.

- Não te lembrasde mim, Flami-nius?

o anciãoaproximou-se,desconfia-do. Surpreendia-o, além do mais, otom amistoso daquele profeta deolhos mortiços e rosto pálido.

- Quero recordar-te - prosse-guiu o oráculo, olhando fito no ve-lho. - Há vários anos passados(reinava o divino Augusto), em Ná-poles, certa noite, socorresteum via-jante que fora assaltado no porto.Graças a teu auxílio, ele conseguiulivrar-se dos sicários. Esse viajanteera precisamente eu. Devo-te, por-tanto, a vida. Quero agora prestar-te igualmente um benefício. Vou lero teu futuro.

Flaminius parou diante do orácu-lo. Cruzou os braços sobre o peito eaguardou impassível a terrível e ar-rebatada sentença. Curiosos que pe-rambulavam entre as colunasaproximaram-se em silêncio.

- O teu nome será esquecido. Atua memória será apagada por com-pleto e desaparecerá como as cinzaslevadas pelo vento. Mas as palavrasadmiráveis de teu filho jamais serãoolvidadas. Milhões e milhões de ho-mens, no desenrolar dos séculos, re-

petirão por todos os recantos domundo as palavras de teu filho! Quejúbilo, que glória imensa para o teucoração de pai!

Ao retomar ao seu casebre de Sa-lária, o velho Flaminius assim medi-tava:

- Vivisempre obscuro; morrereiesquecido e obscuro. Não importa!Mas a glória perpetuará, sobre a ter-ra, o nome de Cláudio, meu filho. Osseusversosadoráveis, que César nãose cansava de repetir, serão lembra-dos pelos homens, no desenrolar dosséculos!

E aquele'êxito do filho poeta tra-zia infinita alegriae tranqüilidade aocoração do velho romano.

- Que importa a pobreza em quevivo! Consola-me a certeza de quemeu filho Cláudio terá por prêmio aimortalidade!

E o velhoFlaminius,a quem as pa-lavras do oráculo deram alento pararesistir a todas as amarguras e vicis-situdes de sua negra existência, teveum fim trágico. Ao regressar, um

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dia, de uma visita ao Templo de Jú-piter, avistou, num recanto da praçaSalutis, um soldado espancandocruelmente uma pobre menina. Re-voltado com aquela covardia, tentouo anciãosocorrera pequena.O agres-sor, irritado com a intervenção da-quele desconhecido, não hesitou ematravessá-Io com uma punhalada.

Flaminiuspereceuheroicamente.Eno dia seguinte,um mendigosemru-mo, no seuandar bamboleante, avis-tou casualmente a miserável man-sarda em completoabandono, na Sa-lária. Apoderou-se dela, atirou paraali seus trapos, sem indagar do des-tino que lévava o primitivo dono.

E assim como previra o oráculo,como a cinza que o vento espalha,apagou-se entre os homens a lem-brança daqueleque fora em vidaFla-minius, o Sereno.

Conduzido à mansão dos justos, viuFlaminius surgir diante dele a figuraradiosa de um Anjo.

- Flaminius - disseo Enviadode Deus, em tom maviosode paciên-

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cia -, a tua morte gloriosaJez remirtodos os erros e pecados de tua exis-tência. Cabe-te,pois, uma recompen-sa no céu. Fala, meu bom amigo, eo Eterno ouvirá a tua voz.

Respondeu Flaminius na sua sim-plicidade:

- Nada fiz, estou certo, para me-recer a menor recompensa da mise-ricórdia de Deus. Confesso, porém,que tenho o coração torturado poruma grande angústia. Gostaria de re-tornar ao mundo, no fim de algunsséculos, a fim de verificar se os ho-mens (conforme me garantiu o orá-culo) conservam, na memória, osversosde meu filho. Que indizível.

alegriapara mimcertificar-mede quemeu filho, por seu gênio incompará-vel, se tornou imortal!

Deus, na sua infinita misericórdia,atendeuao pedidodaquelepai. E, de-corridos dezenove séculos, Flami-nius, condijzido por um Anjo, re-tomou a Roma.

Por todos os recantos da terraerguiam-secruzes.A religiãoque Cé-

sar havia desprezado, a princípio, eperseguidomais tarde, vencera, afi-nal, e dominava o mundo.

Flaminius, o Sereno, guiado peloAnjo, entrou num grande Templocristão. Milharesde fiéisachavam-seem oração; um jovem sacerdote, re-vestidode riquíssimaparamenta, de-bruada com fios de ouro, junto a umbelíssimoaltar, adorava o verdadei-ro Deus, Jesus, Nosso Senhor!

Flaminius não cabia em si de des-lumbramento! Tudo ali era para elemotivo de indescritívelassombro! Ebalbuciou muito humilde (e suas pa-lavras só eram ouvidas pelo Anjo):

-=- E os versos de meu filho? Po-derei ouvi-Ios, aqui, neste Templo,cheiode cristãos, que erguempara océu as suas preces lamuriantes?

- Sim - confirmou o Anjo -,dentro de algunsinstantes! Rejubila-te! Todos os cristãos, aqui reunidos,repetirão as palavras de teu filho!

Decorridos alguns minutos, cessa-ram os cânticos. Fez-seprofundo si-lêncio. E o sacerdote, batendo nopeito três vezes,suplicoucheiode hu-mildade e confiança:.

- Domine, non sum dignusut in-Ires sub tectum meum...

(Senhor, eu não sou digno de queentreis na minha casa...)

- Eis aí - acudiu o Anjo. -Acabaste de ouvir! Foram estas pa-lavras proferidas, há muitos séculos,por teu filho, e até hoje os homensas repetem diante de Deus! Sintodizer-te, porém, que não são versosde Cláudio, o poeta; são simplespa-lavrasproferidaspor Marcelo, teu fi-lho mais moço...

Flaminius quedou um momentoperplexo e replicou, esboçando umsorriso pálido:

- Aquele que se fez soldado?- Sim- confirmouo Anjo, num

tom de absoluta confiança -, aque-le que se alistou nas legiõesde César!Marcelo era um homem bom e cari-doso: apiedava-se dos sofrimentosalheios; socorria os pobres; consola-va os aflitos. Quando servia às or-densde Herodes, tetrarca da Galiléia,um dos seusservosadoeceucom umagrave paralisia. Marcelo, nesse tem-po, fora promovido;já era centurião.

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E todos os homens de sua centúriao estimavam.

Inspirado"pela delicadeza de suasensibilidade;cuidouMarcelode acu-dir, com desvelo, ao servo enfermo.Todos os remédios,aconselhadosporamigos e vizinhos, ele experimenta-ra, sem resultado. Alguém sugeriu:

- "Chefe! Por que não apelaspara Jesus de Nazaré? Dizem que oRabi faz milagres!"

Marcelo era puro de coração e,muito embora fosse romano, acredi-tava naquele Rabi, cheio de simpli-cidade e candura, que sorria para ascriancinhas e curava os enfermoscom o simplesestender suavede suasdivinas mãos.

Não se atreveu, porém, a ir pro-curar Jesus e pediu a alguns israeli-tas fossem em busca do Mestre, decujo amparo o infelizservo tanto ne-cessitava.

Jesus, NossoSenhor, com seusdis-cípulos, dirigia-se para Cafarnaum,quando recebeu o pedido de dois an-ciãos, amigosde Marcelo.E disseaosque o acompanhavam.

Irei até lá!

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Quando o centurião romano foi in-formado de que Jesus de Nazaré, empessoa, se dirigia para a sua mora-da, levantou-seimediatamentea pas-sos rápidos seguido de alguns aju-dantes e servos e foi ter, muito res-peitoso, ao encontro do Mestre. Edisse-lhe, com extrema humildade:

- Senhor! Eu não sou digno deque entreisna minha morada (Domi-ne, non sum dignus...). Basta que di-gais uma só palavra e, estou certo,meu servo estará para sempre cura-do!

E, como Cristo o fitasse surpreen-dido, ajuntou:

- Porque eu, Senhor, sou militare sei muito bem o que é obedecer eo que é mandar! Estou sujeito à au-toridade de meus chefes,e tenho sol-dados às minhas ordens! Digo a um:- "Vai!" E ele segueo rumo que in.:-diquei. Digo a outro: - "Vem cá!"E ele se aproxima de mim! Basta,pois, Senhor, uma só palavra Vossa,e meu servo será salvo.

Ouvindo isto, Jesus se admir<?u;e,voltando-se para o povo que o se-guia, disse:

I

." .----------..- - .....

.-..o"~, E::-o.,

- Senhorl Eu não sou digno de que entreis na minha morada (Domine, non sum dignus...). Bas-ta que digais uma só palavra e, estou certo, meu servo estará para sempre curadol

- Em verdade, em verdade vosdigo que nem em Israel achei tãogrande fé.

E disse ao bom centurião:- Vai, e faça-se como tu crês!E, naquela mesma hora, ficou cu-

rado o servo!

Que restam dos versos famosos deCláudio, o festejado poeta? Não! Oshomens não se lembram mais dasodes admiráveis que César elogiavae que os comediantesmais ilustresde-clamavam nos festins romanos.

Mas as palavras do bom soldadosão repetidastodos os dias, com pro-

funda veneração, por milharesde lá-bios humildes e orgulhosos!

- E por quê?- Porque as palavras do poeta

eram despidasde sinceridade,ao pas-so que as palavras do soldado foramproferidas com fé!

Escuta, meu filho, as palavras di-tas com fé, para a salvação de umaalma, ficarão na lembrança dos ho-mensper omniasoecu/asoecu/orum!

Glória a Deus! Glória a Deus nomaisalto doscéuse paz, na terra, aoshomens de boa vontade!. Amém!

(De "Novas Lendas Cristãs")

o Fio da Aranha

(Lenda hindu)

Kandata, o facínora, tendo expiradosem mostras de arrependimento, foipela imutávelJustiça atirado à regiãosombria dos eternos suplícios..

·A região dos eternos suplícios - o Inferno.

Durante muitos séculos, suportouindiferente os tormentos do Inferno.Um dia, porém, o seu coração em-pedernido foi tocado por tênue raiode luz do arrependimento. Ajoelhou-se e implorou, em prece fervorosa, a

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proteção e misericórdiado SenhordaCompaixão.2

No mesmoinstante surgiu-lhea fi-gura radiosa de um Anjo, que lhe dis-se:

- O Senhor da Compaixãoouviua prece humilde que acabas de pro-ferir. E aqui estou para salvar-te doscastigos tenebrosos do Inferno. ÓKandata, no decorrer das tuas vidasanteriores houve dia que tivessesas-sistido a uma boa ação tua, por maispequena que fosse? Ela te ajudaria,agora, livrando-te dos tormentosque, sem tréguas, te afligirão. Masnunca esperes ver cessados os sofri-mentos atuais, conseqüência do teupassado, se.conservaresainda senti-mentos de egoísmo e se tua almaguardar a impureza da vaidade, daluxúria e da inveja! Diz-me, ó Kan-data, se queres sair daqui, qual foi,acaso o ato de bondade que em vidapraticaste?- Pelo Deus da Misericórdia! -exclamouKandata, cheio de profun-da humildade e tristeza. :..- Jamais

2Senhor da Compaixão - Deus.

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pratiquei, em minha vida passada,qualquer ato digno ou louvável. Aminha existência foi um rosário in-terminávelde crimese infâmiasde to-da espécie!

- Kandata! - insistiuo Anjo. -Procura rememorar miudamente to-das as ações do teu negro passado!Basta um ato verdadeiramente bomde tua parte, um só, para que obte-nhas o perdão de Deus! Alguma vezsocorreste, com a esmola, o despro-tegido da sorte?

- Nunca!- murmurouKanda-ta, com voz sucumbida.

- Algum dia - prosseguiuo An-jo - tiveste uma palavra de consoloou de bondade para os aflitos e de-sesperados?

- Nunca!- Nãote moveram,umavez,à

piedade, os enfermos,nemdispensas-te qualquer proteção aos fracos e in-felizes?

- Nunca! - soluçava Kandata,com o desespero dos arrependidos.

- E para com os animais, nossosirmãos inferiores?- insistiuainda oAnjo. - Trataste comcrueza, impie-

dosamente, todos os seres fracos domundo?

- Deus seja louvado! - excla-mou Kandata. - Lembro-mede que,certa vez, ao -atravessarum bosque,vi uma pequenina aranha que procu-rava esconder-se sob a relva. -"Não pisarei esta pobre aranha -pensei - porque é fraca e inofensi-va." Desvieio passo, a fim de pou-par a vida ao mísero animalzinho.Teria sido esta uma ação agradávelaos olhos do Criador?

- Feliz que és, Kandata - res-pondeu o Anjo. - Essepequel}oatode bondade que acabas de recordaré, semdúvida, suficientepara salvar-te do Inferno; e é a própria aranhado bosque que, em breve, te propor-cionará - pela vontade divina - omeioúnico de salvação.Da altura in-finita do Céu a aranhazinha vailançar-te um fio; por ele poderás su-bir até ao seio do Onipotente!

E, isto dizendo, o Anjo desapare-ceu.

Quase no mesmo instante, viuKandata, comgrande.assombro, queum fio de aranha descia das alturas

divinas até o fundo do abismo negroque o torturava. Aquele fio, de en-ganadora fraqueza, representavapa-ra ele a salvação, a tão sonhadaVentura! Estaria, para sempre, livredos suplícios indizíveisdo Inferno!

Semhesitar, Kandata agarrou-seaele e começou a subir. Sentiu, desdelogo, que o fio - pela vontade doOnipotente - era forte e lhe susten-tava perfeitamente o peso do corpo,que balouçava no espaço.

De repente, porém, em meio da es-calada, lembrou-se o bandido deolhar para baixo e notou que os seuscompanheiros de infortúnios procu-ravam, também, à porfia, salvar:-seda regiãodos tormentos, subindo pe-lo mesmo fio.

Com certeza, não poderá tão del-gado sustentáculo suportar o pesodessa gente toda! - pensouKanda-ta apavorado.

E, instigadopelo terrívelEgoísmo,desejando apenas a própria liberda-de - sem lhe importar a alheia des-graça -, gritou para os infelizesquejá se agarravam, penca infernal, aofio salvador:

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- Larguem, miseráveis! Lar-guem, que este fio é meu, só meu!

No mesmoinstante, partia-se o fioda aranha e Kandata era para sem-pre restituído às profundezas em quetanto tempo sofrera tão duros casti-gos!

o fio salvador, forte bastante pa-ra levar ao Céu milhares de criatu-ras arrependidas de seus crimes,rompera-seao sofrer o pesodo egoís-mo que a maldade insinuara num co-ração!

(De "Lendas do Deserto")

A Princesinha San-ga-Iu

Até hoje, os árabes se referem comadmiração e orgulho ao nome de AI-Mansur, o famoso califa de Bagdá.Foi um monarca generosoe justo. E,mais ainda, tolerante e bondoso.

O grandeAl-Mansur, pai extremo-so, tinha uma filhaque era todo o en-canto de sua vida..Halima (assimse chamava a prin-

cesinha)morava num suntuoso palá-cio, que um arquiteto cristão fizeraerguer no centro de opulento jardim.Dispunha de várias escravas para oseu serviço. Possuía caixascheias dejóias; em seus aposentos amontoa-vam-sevestidosfiníssimos.Mas, ape-

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sar do luxo e do conforto em que vi-via, atendida sempre em seusmenores caprichos, rodeada de ser-viçaisatentos e prontos para agradá-Ia, a princesa não se sentia feliz.

Uma tarde, depois da terceira pre-ce, o califa AI-Mansur, ao regressarde uma longa e fatigante audiênciacom seus vizires, atravessou casual-mente o jardim. Era um dia quentee abafado. No céu, cor de pérola,grazinava um bando de gaivotas. Pe-quenas borboletas de asas amarelasvolitavam entre os canteiros. Ouvia-se o rumor doce e cantante do repu-xo no meio dos rosais. De repente,.

o monarca viu a filha sozinha, sen-tada na grama, de cabeça baixa, nu-ma atitude denunciadora de grandetristeza, fitando atenta as sombrasque se desenhavam no chão. Cabeaqui um esclarecimento,que já se fa-zia nece~sário:Halima, nessetempo,contava pouco mais de dezoito anos.

Al-Mansur sentiu-seassaltado porséria apreensão. Já de muitos dias,observavaem sua filha qualquer coi-sa de anormal. Halima estaria doen-te? Teria algum desgosto recalcadoa afligir-lhe o coração?

O bom monarca, sempre preocu-pado com o bem-estar da filha,interrogou-acominexcedívelbrandu-ra:

- Que tens, minha querida? Porque foges, constantemente, ao con-vívio de tuas amigas e vens ameigara solidão?Desejasque te mande bus-car novas bailarinas? Desejas ouviros músicos cegos que tocam cítara eca.ntamao som dos alaúdes? Inte-ressa-teuma excursão às montanhasou uma peregrinação às ruínas deQuerbela? .Vamos, conta-me o quesentes, poi$ é.bem possível que eu

descubra um meio de atenuar as tuastristezas. Quero, para a minha per-feita felicidade, que a alegria volte abrilhar em teus olhos!

Interpelada dessemodo, a bondo-sa princesa respondeu sorrindo, comar de profunda amargura:

- Vivotorturada por um profun-do desgosto, meu pai! E não acredi-to que possa existir remédio para oestranho mal que me oprime a almae dilacera o coração!

- Que mal é esse, minha filha?Será possívelque estejas apaixonada

. por algumpríncipeencantado?- Uma noite, meu pai, achava-

me no pavilhão das "Mil violetas",e já mepreparavapara repousar tran-qüila, quando ouvi na escuridão doparque o ladrar furioso dos cães deguarda. Seguiu-seum estranho rumo-rejo de vozese gritos angustiososquese perdiam nas trevas espessas. Te-ria algum ladrão audacioso escaladoo muro e saltado para o jardim dopalácio? Mandei que uma das escra-vas fosse indagar do que ocorrera.Passado algllm tempo, a escrava re-gr~ssou, com uma informação que

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me impressionou. Uma cigana, aofugir de dois beduínos que a perse-guiam, galgara o portão do palácioe fora atacada pelos cães bravios. Seos vigilantes não tivessem corridocom toda presteza, a infeliz fugitivateria sido estraçalhada pelos molos-sos. Penalizou-me a situação da po-bre mulher. Quis conhecê-Ia. Deter-mineique a trouxessemà minha pre-sença. Era meu desejo interrogá-Ia.Com grande surpresa, verifiqueiquese tratava de uma rapariga morena,robusta, de cabelos negros e simpá-tica. As suas vestesestavamem fran-galhos, sujas e ensangüentadas. Aface direita, lanhada de alto a baixopor um profundo golpe, inspiravacompaixão. A sua figura era trágica,impressionante.Por minha ordem asescravaspensaram-lheos ferimentose deram-lhealimento. Falei-lhe,commansidão e talvez receosa. Vencidé;!.pela delicada maneira com que eratratada, tornou-se viva e loquaz.Contou-nos que se chamava Suraia,e que pertenciaa uma tribo de nôma-des do deserto. Vieracom alguns pa-rentesa Bagdáem buscade remédios

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e víveres. - "E que pretendiam deti os dois beduínos?" - perguntei-lhe. - "Queriam matar-me" - res-pondeu, passando, nervosa, a mãoferidapela testa. Compreendique ha-via em torno daquela tragédia um se-gredo. Aquela mulher, para evitar aameaça de dois sicários, nã9 hesitouem atirar-se no meio de uma matilhade cães ferozes. Bem dizem os ára-bes: - "Só sabe fugir, com verda-deira coragem, da morte, aquelequenão tem nenhumamor à vida." A cu-riosidade apoderou-se de mim. Re-solvi desvendar O.mistério. Fiz comque as aias e escravas se retirasseme ficamos a sós no aposento, eu e acigana. - "Quero saber a verdade!- declareicom firmeza.- Exijoqueme contes tudo o que ocorreu." Abeduína arrancou da barra do vesti-do um frasco escuro e disse-me, ar-rebatada: - "Eis aqui, princesa!Eisaqui o que os bandidos pretendiam:Este frasco de perfume! E queres sa-ber que perfume é este? É o célebre"San-ga-Iu" descoberto por um má-gico da Armênia."

Depois de um curto silêncio, a

princesa retomou o fio da narrativa,erguendo a bela e nobre cabeça comum movimento encantador.

- Eu ouvira, realmente, de umaescravanegra (quando ainda era me-nina) uma história complicada naqual aparecia esse perfume denomi-nado "San-ga-Iu".Para mim, o "San-ga-Iu" não passava de uma lenda,uma fantasia louca. Aquele que as-pirava o "San-ga-Iu", afirmavam ossupersticiosos,adquiria um dom ex-traordinário. Ficavacom o poder deatrair, como se fosse um ímã encan-tado, os segredosde todas as p~ssoasque dele se aproximassem. E ali es-tava, nas mãos da cigana, o perigoso"San-ga-Iu"!Dissea Suraia: - "Dá-me,por um instante,essefrasco!Que-ro certificar-me da verdade~'A ciga-na, com o olhar desvairado, obede-ceu-me.Ajoelhou-se,porém, a meuspés e suplicou-mealucinada que nãoaspirasseaqueleinfernalperfume.Se-ria, para mim, uma desgraça.Não lhedei ouvidos.Repugnavam-meas cren-dices e superstiçõesgrosseiras da ci-gana. Abri o frasco e aspirei lenta-mente o "San-ga-Iu". O aroma que

exalavapareceu-meum misto de jas-mim e bekum. Derrameiuma gota napalma da mão e, a seguir, fechei no-vamente o frasco e devolvi-oà rapa-riga. Aquele frasco (de acordo coma tradição dos árabes)tomara-se inú-til: perdera todo o seu poder. Suraiaafastou-se de mim, bradando, comquanta força tinha, em seu arreveza-do dialeto: - "Bacrun fir Halimabissir"! Não dei ao caso a menor im-portância. No dia seguinte,pela ma-nhã, recomendei fosse entregue àcigana uma bolsa com cem dinares e

. deixei-apartir tranqüila. Logopelamanhã verifiqueique a minha vida iasofrer uma profunda alteração.Izzat,a bondosa escravaque me veio pen-tear, com uma vivacidademuito forade sua habitual placidez, revelou-medois gravíssimossegredosda sua vi-da. Fiqueiimpressionada.Izzatera degênio retraído, muito calada, rara-mente falava. Seriaaquilo influênciado "San-ga-Iu"? Já estaria eu, semquerer, atraindo os segredosalheios?Não; fora tudo simplescoincidênciae nada mais. Recebo,porém~na ter-ceira hora, a visita de Nacibe, esposa

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de um vizir, a qual vinha todos os diasbordar em minha companhia. Essadama, que semprese mostrara discre-ta, levou-me para um canto da salae revelou-me,nervosa,atropelando aspalavras, várias particularidades es-pantosas de sua vida íntima. E, des-se momento em diante, nunca maistive sossego.Qualquer mulher que demim se aproxima entra, semo menorrecato, a desfiar o rosário das maisnegras confidências. São casos tene-brosos do marido, dos filhos e dosamigos. Algumas segredam-mecoma maior simplicidade: - "Quandochego junto de ti, princesinha, sintologo um desejo incontido de contartudo o que sei; de confessar os meuspecados, de revelar os pensamentosmais secretose as coisasmais íntimasde minha vida. Eu, que sou tão dis-creta diante de meu marido, de mi-nha mãe ou de meu pai, não me pos-so conter diante de ti, princesinha!"E entram logo a falar... Sinto-me es-magada sob o pesode uma verdadeiramontanha de segredosquejamais po-derei revelar. Tornou-se para mimuma torturante obsessão ouvir, a to-

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do instante, queixas,ignomínias,me-xericos, indiscrições. Sou, como dizo povo, uma "San-ga-Iu". Que vidatorturante! Temo, por vezes, enlou-quecer! Afasto-me de todos, pois ca-da novo segredo,com seu cortejo detorpezase misérias,envenena-mea vi-da e enegrece-meo coração!

O califa, ao ouvir aquela surpreen-dente narrativa de sua filha, encarou-a de olhos silenciosose uma inquie-tação grave. Impunha-se uma solu-ção urgente para o caso. Como livrarHalima daquela perseguição diabó-lica?

Disse, por fim, o velho monarca,fitando-a, embevecido:

- Escuta, flor de minha vida! Fá-cil será, para mim, encontrar ummeio que ponha termo às tuas afli-ções. Quero, entretanto, prevenir-tede uma coisa. Ontem, conversandocom o vizir Labid...

A jovem encarou o pai com angús-tia e como assombrada; levantou-senum ímpeto e afastou-se acorrer.

- Não, meu pai! Não! - protes-tou aflita.

A desditosa princesinha percebera

que o velho monarca, sob a influên-cia mágica do "San-ga-Iu" , esqueci-do de que falava à própria filha, iacontar-lhe também um segredo.

E não seria para ela uma desgraçatomar conhecimento dos segredosque negrejavam a vida do pai?

O califa não fez o menor gesto pa-ra deter a filha. Deixou-a afastar-se.Viu-a entrar no pavilhão das "Milvioletas" e encaminhou-se tranqüilopara os seusaposentos, que ficavamno outro extremodo parque, embos-cado na mancha espessa do arvore-do. .

Mandou, no mesmo instante, queviesse à sua presença o esclarecidoAbu-Mussa, seu vizir-conselheiro,jáem provecta idade.

Pretendia consultá-Io sobre o es-tranho caso de Halima, poisera inad-missívelque sua filha, fadada a umaexistênciafelize tranqüila, transfor-mada inopinadamente em "San-ga-lu", vivesseamortalhada pelossegre-dos e confidências alheias. Abu-Mussa era um ulemá, isto é, um sá-bio capaz de solucionaros problemasmais complicados e mais obscuros.

Trocados os primeiros"salã", dis-se o califa, com voz grave e pausa-da, ao douto e sisudo vizir:

- Recebi, meu caro Abu-Mussa,uma denúncia secretaque me deixouimpressionado. Informaram-me deque, em nossa corte, existeuma pes-soa que possui o dom misterioso de"San-ga-Iu" !

- Não creio, ó Emir dosÁrabes!,que seja verdadeira essa denúncia.Não há segredo que resista ao poderda essência de "San-ga-Iu". Ora,uma pessoa dotada dessa mágica in-fluência, isto é, um verdadeiro "San-ga-Iu", entraria na posse dos segre-dos mais graves, ficaria a par de to-das as intrigas, estaria informada detodos os planos, negócios e combi-nações. O "San-ga-Iu" .seriacapaz derevolucionar o país. Imaginai, ÓPríncipe dos Crentes, o poder ex-traordinário de um homem que tives-se conhecimento de segredos recôn-ditos de todos os nossosgenerais?Deque não seria capaz esse "San-ga-lu", tendo o exército,a polícia, a ma-gistratura e os sacerdotesinteiramen-te entreguesa seuscaprichos?Muitos

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homens, tidos como honrados, se-riam presos e decapitados, centenasde funcionáriosseriamdemitidos;al~guns ministros (que agora vivemnoluxo e na opulência) teriam os seusbens confiscadospelo Estado; have-ria a ruína de muitos lares; anulaçõesde casamentos; suicídios; assassina-tos; uma calamidade, enfim!

O califa AI-Mansurencarava cominfinito assombro o seu honrado vi-zir. Este, depois de breve pausa, to-mando uma grande atitude, prosse-guiu com a mesma entonação:

- Tudo levaa crer, portanto, quea denúncia que chegou ao vosso co-nhecimento é falsa. E quereis umaprova segura da veracidade do queafirmo? Se houvesse, na corte, umapessoa (homem ou mulher, não im-porta!) com o poder de "San-ga-Iu",o trono de Bagdá já não estaria emvossopoder. Essapessoa, com a for-ça invencíveldos segredosalheios, játeria provocado uma revolução e to-mado conta do governo! Tal hipóte-se só não ocorreria se o dom de"San-ga-Iu" tivesse recaído sobrepessoa dotada de uma bondade infi-

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nita e de uma força de caráter ex-cepcional. Direi, enfim, que o "San-ga-Iu" só não seria nocivo à coleti-vidade se (como dizem os cristãos)fosse um verdadeiro santo, digno deser colocadono altar, e veneradoportodos os crentes! Não acredito naexistência de uma criatura capaz dese apoderar de todos os segredos efechá-tospara sempreno cofredo co-ração. Penso, pois, que, para tran-qüilidade do povo e para segurançado Estado, qualquer pessoa (seja elaquem for) suspeita de "San-ga-Iu"deve ser presa e executada inexora-velmentel

E o ancião acrescentou, com im-pressionanteserenidade,esforçando-se por ser claro e decidido:

- Alguémpoderá objetar que se-ria uma clamorosa injustiça, um cri-me odioso, uma verdadeira infâmia,condenar-seà morte um "San-ga-Iu"inocente. Sim, mas diante dos inte-ressessagrados do Estado anulam-see desaparecem, por completo, os in-teresses individuais. Se um inocenteoferece perigo ao Estado, se a suae~istência é uma ameaça para a co-

letividade,elimina-seo inocente! Hásegredos, ó Príncipe dos Crentes,que, quando chegamao conhecimen-to do povo, aniquilam coroas e ar-ruínam os tronos mais poderosos!

As gravíssimasconsideraçõesadu-zidas pelo velho ulemá deixaram ocalifa AI-Mansur mergulhado emperplexidade.

Este vizir (pensou o rei), obceca-do pela nefanda preocupação de de-fender o Estado, não hesitará empraticar a infâmia de entregar àsmãos impiedosas do carrasco a mi-nha meiga e bondosa Halima. Aquisó há uma solução. Não me ocorreoutra. Vou apunhalar este velho in-tolerante e mandá-Io para o túmulocom todas as suas teorias ignóbeiserevoltantes. O laço que não se podedesatar, corta-se. Este fanático será,de uin momento para outro, terrívelameaça para minha filha; amanhã,com seus infamesargumentos, exigi-rá do povo o sacrifício de Halima.

Desatinadopelospensamentosquetumultuavam o seu espírito, o califade Bagdá, habitualmente tão sereno,

chegou a levar a mão ao cabo do pu-nhal.

Conteve-se, porém. Fez-se lívido.Flamejavam-lhe os olhos com umbrilho que maispareciafebril que na-t~ral; suas mãos tremiam. Sentia-sefortemente impelido por duas pai-xõesopostas; crispavam-se-Iheos pu-nhos cerrados.

- Por Allah! Um segredoapenas(a certeza, por todos ignorada, deque ~ua filha era "San-ga-Iu") já oimpelia, naquele trágico instante, apraticar um crime covarde - o as-

. sassíniode um ancião! Imagine-se,agora, se ele fosse um "San-ga-Iu",com o coração enegrecidopor mil eum segredos tenebrosos?

E o califa, dominando o ímpetosanguinário que lhe refervia o espí-rito, simulando tranqüilidade e indi-ferença, como um homem que temee desejasaber, interpelouo vizirAbu-Mussa no tom mais natural destemundo, anediando as barbas:

- Sou, meu caro vizir, o primei-ro a reconhecerque se o terrível domde "San-ga-Iu" recaísse,por tristefa-talidade, em pessoa destituída de ca-

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ráter e de bons sentimentos, passariaa constituir grave perigo para a se-gurança do trono e séria ameaça pa-ra a felicidade do povo. Raro, bemraro, é o homem que não tem, .pesando-lheno passado ou atormen-tando-o no presente, a sombra negrade um segredopecaminoso.Só Allah,o Clemente, pode conhecer as facesconfidenciais de nossa vida e os pen-samentos .veneníferosque nos domi-nam; pois Deus é justo e sa1?eper-doar. Pode acontecer, entretanto,que algum infeliz tenha sido levado,involuntariamente, a possuir o ma-léficopoder de "San-ga-Iu". Que fa-ria para livrar-se dele? Em outraspalavras: Esse mal de "San-ga-Iu" éincurável?

- Incurávelnão é - afirmouovizir inclinando a fronte clara -, jáchegou ao meu conhecimento o es-tranho caso de um homem que se li-vrou do mal de "San-ga-Iu".

- Conta-meesta história, ó escla-recido "taleb" - acudiu crepitanteo rei, com mal disfarçada inquieta-ção. E pensou: Enquanto ele nar-ra, decidireise devomatá-Ioagora oumais tarde!

- Escuto e obedeço, ó Comenda-dor dos Crentes - retorquiu o vizircom profunda vênia.

E, com seu ar impenetrávele som-brio, narrou o seguinte:*

(De "Mil Histórias sem Fim". voto2, 36~ narrativa)

o Oleiro e o Poeta

o caso da rua El-Kichani parecia,realmente, muito sério. Uma rixainesperada surgira entre o jovemFauzi, o poeta, e o oleiro Nagib. Oscuriosos amontoavam-se junto à ca-sa do oleiro. Cruzavam-se as inter-

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rogações: - Que foi? Como foi?Brigaram?Um guarda, para evitarqueo tumultoseagravasse,resolveu

· Nota - A continuação deste conto, no vol. 2 das "MilHistórias sem Fim... ", vai constituir um novo capitulointitulado: História singular de um hóspede misterioso.

o poeta Fauzi, que cruzava, naquela ocasião, a rua Bardauni, havia atirado violentamente umapedra e partira um dos vasos - um vaso já pronto, que estava a secar junto à portal

levaros dois litigantesà presençadocádi, isto é, do juiz.

Essejuiz, homemíntegroe bondo~so, interrogou, em primeiro lugar, ooleiro que parecia o mais exaltado:

- Mas afinal, meu amigo? Deque se trata? Parece-me que fosteagredido. É verdade?

- Sim, senhor juiz - confirmouo oleiro desabridamente-, fui agre-dido, em minha própria casa, por es-se poeta. Estava, como de costume,trabalhando em minha oficina, pre-parando dois novos vasos coloridos,que pretendia vender ao príncipeRauzi, quando ouvi um ruído surdoe a seguir um baque. Percebi logo deque se tratava. O poeta Fauzi, quecruzava, naquela ocasião, a rua Bar-dauni, havia atirado violentamenteuma pedra e partira um dos vasos -um vaso já pronto, que estava a se-car junto à porta! Ora, senhor juiz,isso é um absurdo, um crime! Estouno meu direito; exijo uma indeniza-ção!

Voltou-se o juiz para o poeta einterpelou-o serenamente:

- Que tens a alegar, meu amigo?

Como justificas o teu estranho pro-ceder?

- Senhorcádi - respondeuo jo-vem-, o caso é muito simplese que-ro crer que a razão milita a meufavor. Há três dias passados voltavaeu da mesquita quando, ao cruzar arua Bardauni, em que mora o oleiroNagib, percebique eledeclamavaumde meus poemas. Notei, com triste-za, que os versosestavam errados: ooleiro mutilava, isto é, quebrava osmeus versos. Aproximei-me dele e,delicadamente, ensinei-lhe a formacerta, que ele repetiu semgrande di-ficuldade. No dia seguinte, ao pas-sar novamente pelo mesmo lugar,ouvi ainda o oleiro a repetir os mes-mos versos deturpados, isto é, coma forma erradíssima. Cheio de pa-ciência, tornei a ensinar-lhe a formacorreta, e pedi-lhe que não tornassea mutilar os meus poemas. Hoje, fi-nalmente, regressavaeu do trabalhoquando, ao passar pela rua Bardau-ni, percebi que o oleiro "declamavaa minha linda poesia, estropiando asrimas e mutilando vergonhosamenteos versos. Não me contive. Apanhei

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de uma pedra e parti com ela um deseus vasos. Como vê, senhor juiz, omeu procedimento não passou, afi-nal, da represáliade um poeta que sesente ferido em sua sensibilidadear-tística por um indivíduo grosseiro.

Ao ouvir as alegaçõesdo poeta, ojuiz, dirigindo-seao oleiro, declarou:

- Que esse caso, ó Nagib, sirvade lição para o futuro! Procura res-peitar as obras alheias, a fim de queos outros artistas respeitem as tuasobras. Se te julgavas com o direitode quebrar o verso do poeta, achou-se também o poeta com o direito dequebrar o teu vaso. Lembra-tede queo poeta é o oleiro da frase, ao passoque o bom oleiro é o poeta da cerâ-mica!

E a sentença do ilustre cádi foi aseguinte:

- Determino, pois, que o oleiroNagib fabrique um novo vaso de li-nhas perfeitas e cores harmoniosas,no qual o poeta Fauzi escreverá umde seus lindos versos. Esse vaso serávendido em leilãoe a importância davenda repartida igualmenteentre am-bos.

A notíGiado caso espalhou-se pe-la cidade. O oleiro vendeumuitosva-sos com versos do poeta Fauzi eambos tornaram-seprósperose ricos.Mas continuaram sempre bons ami-gos. O oleiro mostrava-se arrebata-do ao ouvir os versos do poeta;encantava-se o poeta com os vasosadmiráveis do oleiro.

Uassalã!

(De "Maktub")

Dos Dez para os Doze

O rei Tajuã ou Teijuã, do Iêmen, se-nhor de centoe oitenta milpalmeiras,tinha um vizir chamado Calin-Beg,

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que era excessivamentegordo e, di-gamos semreceio da verdade, exces-sivamente mau.

A gordura espantosa do tal minis-tro podia ser pesada facilmente, emarrobas, numa grandebalançade fer-ro; impossívelseria, entretanto, cal-cular a soma das maldades quenegrejavam seu coração.

Um dia, ao terminar a audiênciacostumeira, o maldoso Calin-Beg,com voz grave e solene, assim falouao poderoso sultão:

- Os judeus, senhor, constituemuma raça detestável. O ouro.obtidopelo trabalho penoso de nossasmãosvaicair, finalmente, em poder deles.São infiéis incorrigíveise a todo ins- .

tante proferem blasfêmias contra ospreceitos mais puros e elevados danossa religiãol. Penso que devemosexpulsá-Ios,o maisdepressapossível,do nosso país e venho pedir-vos, pa-ra isso, a necessária autorização.

O rei Tajuã ou Teijuã, tolerante ebondoso, não ocultava a sua simpa-tia pelos judeus que viviam em seusdomínios.

Não via, aliás, razão alguma para

TA religião do ministro era a muçulmana. Os árabesmuçulmanos são inimigos irreconciliáveis dos judeus.

repelir e martirizar um povo que nãoperturbava a paz de suas cento e oi-tenta mil palmeiras e, ao contrário,contribuía, de algum modo, para oprogresso de seu reino. Disse, pois,ao seu odiento vizir:

- Uma vezquejulgasmedidaútilao bem-estarde meussúditos, eu nãohesitaria em decretar, de momento,a expulsãode todos os israelitas.Co-mo medidapreliminar, desejo, entre-tanto, observar como viveme traba-lham os judeus. Vamos, meu ami-go, dar ligeiro passeio pelos arredo-res da cidade.

Acudiu pressuroso o ministro:- Julgo interessantea vossa lem-

brança, ó rei! Tereis ocasião de ver,durante a nossa excursão, que os ju-deus vivem como chacais i~undos,praguejando, cheios de ódio, contraos servos de Allah. (Exaltado seja oAltíssimo!)

Momentos depois, o rei Teijuã,acompanhado do seu primeiro-ministro, saía a passearpelosbairrosmais pobres da cidade, observandoatentamente os míseros casebresemque viviam os israelitas.

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Em dado momento, aproximou-seo soberano de um pobre tecelão quetrabalhava sentado à soleira da por-ta e disse-lhe, em tom amistoso:

- Por Allah, meu amigo! Vejo-te a trabalhar incessantemente. Dosdez já tiras tu para os doze?

Respondeu o tecelão, esboçandoum sorriso muito triste:

- Ah! Senhor! Eu, dos dez, nãotiro nem para os trinta e dois!

Ao ministro, que tudo ouvia coma maior atenção, causou não peque-no espanto aqueleestranho diálogo.

O rei Tajuã, entretanto, parecen-do não se .contentar com a respostado pobre judeu, interrogou-o nova-mente: .

- E quantos são, para ti, os trin-ta e dois de cada dia?

- Quatro, com dois incêndios -tornou o outro.

Sorriu o rei ao ouvir essa respos-ta, cujo sentido a inteligência do vi-zir não soube penetrar, e insistiucombondade:

- Seesperasincêndiopara breve,por que não depenas logo o pato?

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Com as penas poderás apagar o fo-go.

Retorquiu o tecelão:- Assim espero, senhor. Com a

ajuda de Deus, em breve depenareio pato.

Ao regressar ao palácio, o rei ob-servou, muito sério, ao vizir:

- Estou certo, meu amigo, quecompreendeste perfeitamente a con-versa que tive, há pouco, com aque-le pobre judeu.

- Infelizmente,senhor - confes-sou constrangido o ministro -, ou-vi as vossas perguntas e todas asrespostasdo israelitasem nada enten-der!

- Pela glória do Profeta! - cor-tou o rei - a declaração que acabasde fazer é humilhante para um vizir!Não posso tolerar semelhantefraque-za! Vou conceder-te o prazo de trêsdias para descobrires a significaçãoperfeita das minhas perguntas e ex"'plicares,claramente, todas as respos-tas dadas pelo judeu. Se não oconseguires, serás demitido, por in-capacidade, do cargo de vizir.

O odiento ministro, esmagado pe-

Ia terrível ameaça do rei, procurou.por todos os meios a decifração domistério.

As perguntas do rei não tinham,realmente, sentido algum. A primei-ra era obscura charada:

- Dos dez já tiras tu para os do-ze?

E a resposta, logo a seguir, dadapelo judeu? Não passava, afinal, deum verdadeiro disparate:

- Ah! Senhor! Eu, dos dez, nãotiro nem para os trinta e dois!

A segunda indagação do rei pare-cia traduzir completo absurdo:

- E quantos são, para ti, os trin-ta e8doisde cada dia?

Eis a enigmática resposta formu-lada pelo.israelita:

- Quatro, com dois incêndios!Havia, ainda, como complemento

diabólico, a terceira pergunta do so-berano:

- Seesperasincêndiopara breve,por que não depenas logo o pato?Com as penas poderás apagar o fo-go.

Convenceu-seo rancoroso vizirdeque a sua pobre e acanhada inteligên-

cia não dispunha de recursos paradeslindaro segredoque envolviao es-tranho diálogo, travado entre o rei eo israelita.

Consultou, às ocultas, seusamigosmaisatilados, mas nenhumdelessou-be achar uma explicaçã~ para o ca-so. Recorreu aos ulemás (doutores)que viviam entre livros e manuscri-tos, e os sábios, depois de largas di-vagações filosóficas, declararam-seinc.apazesde esclarecer o místério.

Que fazer?. Preocupadocom a graveameaçaq~e lhe pesava sobre os ombros, re-solveu, enfim, procurar a única pes-soa que poderia auxiliá-Io naqueladificuldade. Foi, semmais hesitar, àcasa do tecelão judeu.

Interrogado pelo vizir, respondeuo velho israelita:

- Sinto dizer-vos, senhor, quesou pobre e luto para vivermodesta-mente. Não posso perder, portanto,as boas oportunidades que se me ofe-recem para melhorar a triste condi-ção de penúria em que me encontro.Exijo, pois, o pagamento de cem di-

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nares pela explicação da primeirapergunta.

O ministro Calin-Beg tirou, ime-diatamente, da sua bolsa, a quantiapedida e entregou-a ao judeu:

- A primeira pergunta, ó vizir!- começou o israelita -, é muitosimples.O nosso bom soberano que-ria saber "se dos dez eu tirava paraos doze" , isto é, se com dez dedosdamão eu ganhava o suficientepara vi-ver durante os doze meses do ano.Respondi-lhe, então (essa é a verda-de), que "dos dez eu não tirava nempara os trinta e dois" , isto é, para ostrinta e dois dentes da minha 15oca,ou melhor, com os dez dedos da mãoeu não chegava a obter o indispen-sável para a minha alimentação!

- Realmente! - exclamou ra-dianteo ministro.- É n;lUitoracio-nal e clara tua explicação. Compre-endi tudo perfeitamente. E a segun-da parte, ó filho de Israel, que senti-do tem?

- Para a explicação da segundaparte desse enigma - impôs o tece-lão -, quero receber um prêmio deduzentos dinares.

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Satisfeitoimediatamente,o judeu,depois de guardar o dinheiro, assimfalou:

- Quando o nossogloriososobe-rano me interpelou daquela forma:"E quantos são, para ti, os trinta edois de cáda dia?", compreendi queele queria saber o número de pessoasmantidas por mim, isto é, quantossão os trinta e dois (dentes)a que doude comer cada dia. A minha respos-ta foi clara e evidente:"Quatro, comdois incêndios." As quatro pessoassão: minha mulher e três filhos."Com dois incêndios"significa"comduas filhas para casar". Pois o casa-mento de uma filhaacarreta,para nósjudeus, tanta despesa,tantos transtor-nos e aborrecimentos, que pode sercomparado a um verdadeiroincêndio.Com a minha resposta, clara e preci-sa, informei o rei sobre o número depessoas da minha família, indicandoaté o número exatode filhas que pre-tendo casar.

- É curioso! - refletiuo vizir.-Sinto agora que o enigma não tem,realmente, dificuldade alguma. E a

última pergunta? Como podereiinterpretá-Ia?

Para decifrar a terceira e últimapergunta, o judeu, alegando maiordificuldade e embaraço, exigiuo pa-gamento de quinhentos dinares.

Logoque seviu de possedo dinhei-ro, o astucioso israelita explicou:

- A última pergunta formuladapelo glorioso soberano tem um sen-tido muito-claro: "Se esperas incên-dia em sua casa, por que não depenaso pato?" isto é, "se precisas de re-cursos para casar tua filha, por quenão tomas o dinheiro de um toloqualquer?" "Pato", como ninguémignora, é o indivíduopouco inteligen-te, do qual podemos tomar, sem di-ficuldade, quantia por vezes avul-tada. Tendo compreendido o senti-do exato das palavras do rei, respon-di que "ainda tinha, com a ajuda deDeus, esperançade depenar o pato",isto é, de arranjar com um lorpaqualquer o dinheiro necessário.E foiprecisamente o que aconteceu, se-nhor ministro. Com o dinheiro queacabo de receber de vossas mãos ge-

nerosas, poderei custear o próximocasamentode minha filhamaisvelha!

Retirou-se, envergonhado e furio-so, o vizir, mais furioso do que en-vergonhado, ao perceberque, no fimde contas, ele fizera o papel ridículode "pato", isto é, de idiota!

Ao chegarao palácio, foi ter à pre-sença do monarca e declarou que es-tava pronto a explicar o sentido detodas as enigmáticas perguntas.

Sorriu o rei do Iêmen ao ouviraquela confissão de seu maldoso se-cretário, e disse-lhe:

- E ainda pretendes, ó vizir, ex-pulsar de nosso país um povo tão vi-vo e inteligente?Acabaste de recebera prova eloqüentede que um simplese inculto remendão judeu é capaz dereduzir ao míseropapel de "pato" ovizir mais atilado do mundo.

E aqui termina, meu caro leitor, alenda que se refere ao tal rei Tajuãou Teijuã, do Iêmen, senhor dasCento e Oitenta Mil Palmeiras.

(De "Lendas do Povo de Deus")

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A Porcelana do Rei

(Lenda chinesa)

Certa vez, achava-se Confúcio, ogrande filósofo, na sala do trono.

Em dado momento, o rei, afas-tando-se por alguns instantes dosricos mandarins que o rodeavam,dirigiu-se ao sábio chinês e pergun-tou-lhe:

- Dizei-me,ó honrado Confúcio:como deveagir um magistrado'?Comextrema severidade a fim de corrigire dominar os maus, ou com absolu-ta benevolência - a fim de não sa-crificar os bons?

Ao ouvir as palavras do soberano,o ilustre filósofo conservou-seem si-lêncio; passados alguns minutos deprofunda reflexão, chamou um ser-vo, que se achava perto, e pediu-lheque trouxesse dois baldes - sendo

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um com água fervente, outro comágua gelada.

Ora, havia na sala, adornando aescada que conduzia ao trono, doislindos vasos dourados de porcelana.Eram peças preciosas, :quase sagra-das, que o rei muito apreciava.

E, com a maior naturalidade, or-denou o velho filósofo ao servo:

- Quero que enchasessesdoisva-sos com a água que acabas de trazer,sendoum com a água ferventee o ou-tro com a água gelada!

Preparava-seo servoobedientepa-ra despejar, como lhe fora ordena-do, a água fervente num dos vélisOSe a gelada no outro, quando o rei, .emergindode sua estupefação, inter-veio no caso com incontida energia:

- Que loucura é essa, ó venerá-vel Confúcio! Quereis destruir essasobras maravilhosas?!A água ferven-te fará, certamente, arrebentar o va-so em que for colocada; a águagelada fará partir-se o outro!

Confúcio tomou então de um dosbaldes,misturou a água ferventecoma água gelada e, com a mistura as-sim obtida, encheuos dois vasossemperigo algum.

a poderoso monarca e os veneran-. dosmandarinsobservavamatônitosa atitude singular do filósofo.

Este, porém, indiferenteao assom-

bro que causava, aproximou-se dosoberano e assim falou:

- A alma do povo, ó rei, é comoum vaso de porcelana, e a justiça écomo a água. A água fervente da se-veridadeou a gelada da excessivabe-nevolência são igualmente desastro-sas para a delicada porcelana; man-da pois, a Sabedoria e ensina a Pru-dência que haja um perfeito equi-líbrio entre a Severidade,com que sepode castigar o mau, e a Longanimi-dade, com que se deve educar e cor-rigir o bom.

o Palácio Maravilhoso

A lenda singular que envolvea vidagloriosa do rei Hiamir, senhor do Iê-men, deve ser contada cem mil vezespara que os homens de sentimentopossam dela colher as tâmaras maisdoces da Beleza e da Verdade.

Se Allah permitir, poderei repeti-Ia mais uma vez:

Conta-se que o rei Hiamir cha-

mou, certa vez, o seu digno ministroIdálio e disse-lhe:

- Quero fazer, ó vizir, uma lon-ga e demorada excursão a uma dasregiões mais longínquas do meu rei-no. Formei o desejo de visitar e per-correr o país de Tiapur, na fronteira.

"Estou informado, porém, de queessa província, sobre ser pobre e tris-

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te, é árida e semconforto. Daquipar-tirás, pois, alguns meses antes demim, levando os recursos que foremnecessários.Logoque chegaresa Tia-pur mandarás, sem demora, cons-truir um magnífico palácio, comlargas varandas de marfim e pátiosfloridos. Nessepalácio ficareihospe-dado, durante uma temporada, comtranqüilidade e conforto.

Respondeu o vizir, beijando a ter-ra entre as mãos:. - Escuto e obedeço,ó Reil, avossa ordem estará semprediante demeus olhos e de meu coração:

Cinco dias depois, uma poderosacaravana, sob a chefia do grão-vizir,partia da capitalemdemandados oá-sis verdejantes de Tiapur. Os nume-rosos camelos carregados de ouro ericas alfaias deixavam sulcos bemfundos na areia branca do deserto.

A fila era tão extensa que a carava-na, ao parar, sob a inclemência dosol, parecia um arabesco escuro tra-çado no areal sem fim.

- Que vai fazer, tão longe, o vi-zir? - indagavamos beduínos.-

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Por Allah! Com que fim conduz eletantas riquezas?

O chamir - guia da caravana -procurava saciar aquela sede de cu-riosidade, derramando uma torren-te de indiscrições:

- O vizir vai construir, em Tia-pur, um palácio maravilhoso para orei! O palácio terá varandas de mar-fim e pátios cheios de flores! Uassa-1_,a.

A imensacaravana conduzia, real-mente, entre os seus viajantes, o ta-lentoso Benadin, o arquiteto de maisprestígio daquele tempo.

Ao chegar, porém, ao país de Tia-pur, o vizirIdálio ficoudesoladocomo estado de pobreza e de abandonoem que se achava a população. En-controu, pelas estradas, crianças fa-mélicas, nuas, que mendigavam tâ-maras secas; em casebres de palha,centenas de infelizes, abatidos pelasfebres, morriam de inanição; mulhe-res cobertas de andrajos, com os fi-lhinhos nos braços, deixavam-se fi-car, esquálidas, no pátio da velha

mesquita, aguardando os pedaços depão que eram ali atirados por beduí-nos supersticiosos.

Os quadros de misériae sofrimen-to que se desenrolavam, a cada pas-so e a todo instante, torturavam ocoração do poderoso ministro. E eletrouxera, por ordem do rei, mais detrinta mil dinares, que seriam gastosna construção de um grandioso pa-lácio!

Que fez o vizir do rei?Levado por um impulso irresistí-

vel de bondade, em vez de executara ordem do poderoso soberano, de-liberou gastar o dinheiro que trazia,beneficiando a infeliz população doTiapur. Mandou, pois, construir a-brigos para os desamparados; distri-buiu víveresentre os mais necessita-dos; determinou que todos os enfer-mos fossem, sem demora, medica-dos; forneceuvestesaos que estavamnus, e pão, em abundância, aos quepadeciam fome. Por sua ordem foiconstruído um grande asilo para osórfãos; mandou, ainda, reformar amesquita, que se achava quase emruínas, e ao lado do velhotemplo fez

erguer um magnífico hospital, onderecolheu os cegos e aleijados.

Ao fim de alguns meses. notava-se uma transformação completa dacidade. Os homens haviam voltado,cheiosde entusiasmo, ao trabalho, epor toda parte reinava a alegria; ascrianças brincavam nos pátios e asmulheres cantavam nas portas dastendas.

E do palácio maravilhoso, que orei encomendara, nada existia...

Um dia, afinal, como já estava com-binado, o rei Hiamir, acompanha-do de grande escolta, deixou a be-la cidadeem que viviapara jornadearpelas terras fronteiriças de seu reino.

O vizir Idálio foi ao encontro dosoberano e aguardou a chegada darégiacaravana no oásisde Cobo, quefica ~ três horas de jornada de Tia-pur.

- Estou ansioso, ó vizir! - ex-clamou o rei - por.admirar o belomonumento que aqui vieste cons-truir! A fadiga da longa viagemconvida-me ao repouso, mas só sa-

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beria descansar na varanda de mar-fim de meu belo palácio!

Quando o rei Hiamir chegoua Tia-pur, foi recebido por uma indescrití-vel manifestação de júbilo dapopulação.

- Sinto-me feliz - confessou omonarca ao seu primeiro-mini~tro-por saber que sou sinceramente esti-mado pelos meus dedicados súditos.A satisfação com que todos aqui merecebem é um indizívelconforto pa-ra o meu espírito.

E, muito intrigado, perguntou:- Mas onde está, ó vizir, o palá-

cio de Tiapur?- Rei poderoso! - respondeu o

vizir Idálio. - Antes de vos falar dopalácio que aqui vim erguer, segun-do vossa determinação expressa, te-nho um pedido muito sério afazer-vos. Segundo as vossas leis,aquele que desobedecer ao rei, pra-ticando conscientemente um abusode confiança, deve ser condenado àmorte. Houve, ó rei, um homem devossa confiança que praticou o gra-ve delito da desobediência. Espera

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que determineis, semdemora, a exe-cução do culpado.

- Quem é o acusado? - indagouo monarca. - Como se chama? Nãoé curial que exijas de mim sentençade morte contra um réu que desco-nheço!

- O criminoso sou eu, ó rei! -respondeu o vizir.

E, sem ocultar aos olhos do sobe-rano a menor parcela da verdade,descreveu,em poucas palavras, o es-tado deplorávelem que encontrara opovo daquela terra. Falou do aban-dono em"que se achavam os enfer-mos, das criancinhas famintas quemendigavam, e da miséria inenarrá-vel que torturava as pobres mães. Econfessou, afinal, que ele, penaliza-do diante de tanto sofrimento, emvez de construir o palácio real, resol-vera despender todos os recursos dacaravana real em socorrer e mitigara triste sorte da população.

E, ajoelhando-se aos pés do mo-narca, exclamou o bom vizir:

- Não cumpri, ó Rei!, como aca-Dei de con(essar, a ordem que medestes. Desobedeciao meu amo e se-

nhor! E aguardo, humilde, o castigode que me fiz merecedor. Que sejacontra mim lavrada a sentença demorte!

- Levanta-te! Dá-mea tua mão,meu amigo - ordenou emocionadoo rei. - Não poderá pesar jamais so-bre tua consciênciaa culpa de menordesobediência. O palácio, de cujaconstrução, em boa hora, foste pormim encarregado, acha-se construí-do com incomparável arte e invejá-vel talento. E posso, deste lugar,abrangê-loem suas linhas suntuosas,.em seuconjunto soberbo; em sua cú-pula radiosa e eterna.

E, erguendo o rosto como se fitas-se algum monumento fantástico, ex-clamou cheio de entusiasmo ecomoção:

- Que palácio maravilhoso! Co-mo é lindo e deslumbrante! Vejo astorres cintilantesnas fisionomiasale-gresdas criançasque foram por ti so-corridas; admiro as largas varandas

de marfim, no sorriso radiante dosmeussúditos;reconheçoos pátiosen-floridos no olhar de gratidão .dasmães felizes!Como é majestosoe be10,ó vizir, o palácio que a tua bón-dade fezerguer nas terras de Tiapur!Allah seja exaltado!

Reparai, meu amigo! A verdadenãodeve ser ofuscada!

Grande fora, semdúvida, o minis-tro Idálio, ao praticar, com risco desua vida, aquele ato de caridade;maior, porém, demonstrara o rei tersido ao aprovar imediatamente, comintensaalegria, a generosidadede seuvizir.

O palácio maravilhoso do rei Hia-mir tinha os seusalicercesinabaláveisna terra; mas estendia as suas torresdeslumbrantes até o 'Céu.

(De "Céu de Allah")

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Os Dois Cântaros

(Lenda cristã)

Um moço religioso, que vivia entreos monges do deserto, sentindo-sepouco inteligentee incapaz de guar-dar os ensinamentos recebidos, pro-curou o mais velhosábio e disse~lhe:

- Grave desgostome acabrunha,meu pai. Apesar dos esforços cons-tantes que faço,;não chego a conser-var na memória, durante muitotempo, as instruções que, para boaconduta na vida, recebodos mestres.Vão, também, para o esquecimento,os trechos mais belos que leio, dia-riamente, nos Santos Evangelhos!

O santo, que tinha emsua celadoiscântaros vazios, disse-lhe:

- Meu filho, toma um daqueles. cântaros; deita-lheum pouco d'água;

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lava-o depois, cuidadosamente; en-xuga-o com o teu próprio hábito edeixa-o ficar no lugar em que está.

Maravilhado, embora, com taispalavras, fez o moço exatamente oque o velho monge lhe determinara.

Concluída a tarefa, o anciãoperguntou-lhe qual dos cântaros es-tava mais limpo, mais claro e puro.

O solitário tomou nas mãos o cân-taro que acabara de enxugar e res-pondeu:

- Este, por certo, está mais lim-po. Lavei-o com muito cuidado.

Retorquiu, então, o sábio:- E, no entanto, repara bem,

meu filho, essecântaro não mais re-tém vestígioalgumda água que o pu-

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- Este, por certo, está mais limpo. Lavei-ocom muito cuidado.

rificou. Também aquele que ouve,_confiantemente, a palavra de Deus,embora não gravena memóriao teordos santos ensinamentos, traz o co-

ração tão puro como um cântaro la-vado.

(De "Lendas do Céu e da Terra")

o Turbante Cinzento

Meu nome é Sind Mathusa. Poucoshomenstêm existidona Índia maisri-cos do que meu pai e não sei de umsó que o excedesseem inteligência,bondade e prudência.

Sentindo-se,certavez,assaltadodegrave enfermidade, e na certeza deque os dias que lhe restavam de vidapodiam ser contados pelos dedos damão, meu pai chamou-me para jun-to de seu leito e disse-me:

- Escuta, ó jovem desmiolado.Atenta bem no que te vou dizer. És,pela lei, o herdeiro único de todos osbens que possuo. Com o ouro que tevou deixar, poderias viver regalada-mente como um rajá durante duzen-tos anos, se a tanto quisessem osDeuses prolongar a tua louca e inú-til existência. Como sei, porém, que

és fraco para resistir aos víciose for-te em seguir os maus exemplos, te-nho a triste certezade que muito malempregarás a riqueza que vai, embreve, cair-te nas mãos. Quero, as-sim, fazer-teagora um pedido; se foratendido, morrereitianqüilo e não le-varei para a vida futura o tormentode uma angústia.

- Diz-me, pai - respondi since-ramente emocionado - qual é o teudesejo. Que os deuses2me tornemmais repelente que um chacal se dei-xar de cumprir a tua vontade!

- Meu filho, quero arrancar de tium juramento. Vês aquele turbantecinzento que ali está? Vaisjurar, pe-

IDeuses - na religião hindu, aceitam os crentes. ~:o-mo verdade. a existência de muitos deuses.

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Ia imaculada pureza dos ídolos e pe.Ias asas de Vichnu2, que se algumdia te sentiresdesonrado~procurarás,imediatamente, a reabilitação que amorte concede aos infelizes, enfor-cando-te naquele turbante!

Fiz, sem hesitar, a vontade ao en-fermo. Jurei pelos ídolos e peloscomplicados Deuses de meus ante-passados que se me visse,no futuro,ferido pela mácula da desonra, pro-curaria a morte enforcando-me noturbante cor de cinza.

Passados dois ou três dias, meupai, fechando os olhos para a vida,integrou-se no Nirvana. Vi-me, deum momento para outro, senhor deinúmeraspropriedades,das quais au-feria uma renda que chegava a cau-sar inveja e insônia ao orgulhoso Xáda nossa província. Passei a ostentaruma vida de luxo e dissipações; ro-deavam-me, dia e noite, falsos ami-gos e bajuladores da pior casta, queme induziam a praticar toda a sortede leviandades e loucuras.

2Uma das muitas formas que os hindus atribuem à di-vindade. Vichnu é representado por dez formas dife-rentes (B.A.B.)

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Uma noite, tendo reunido em mi-nha casa, como habitualmente fazia,em grande festa, vários e divertidoscompanheiros da nossa laia, um de-les, chamado Ishamai, que adquiri-ra considerável riqueza vendendocamelose elefantes,convidou~mepa-ra uma partida de jogo de dados. Aprincípio, a sorte me foi favorável;cheguei a ganhar num golpe o meupeso em marfim. Cedo, porém, per-seguidopor uma triste fatalidade, en-trei a perder e os meus prejuízosexcederamde mais de cemvezeso.lu-cro inicial. Com a esperança de re-cuperar o dinheiro perdido, redobreias paradas. Perdi novamente. Naprogressiva loucura do jogo, já alu-cinado, arrisquei nos azares da sorteas minhas jóias, escravos e proprie-dades. Maisuma vezperdi, e, ao nas-cer do sol sobre o Ganges, nada maisme restava da herança de meu pai.Na certezade que poderiacontar coma generosidadee auxíliodaquelesqueme rodeavam, fiz, com a garantia daminha palavra, uma grande dívidadehonra, ao perder a última partida.Procureium jovem brâmane, filhode

opulenta família, e que sempre vive-ra a meu lado no tempo da fartura,e pedi-lheque me emprestassealgumdinheiro.

- Meu caro Sind - disse-meobrâmane, conduzindó-me para o in-terior de sua rica vivenda -, chegasem péssima ocasião. Fui obrigado aenviar, ontem, para resgatar uma dí-vida de me1,lpai, cerca de duas milrupiaspara Benares.Encontro-mein-teiramente desprevenido. Lamento,portanto, não poder servira um ami-go tão querido.

Olhei para as pratarias que seamontoavam por todos os recantosde sua casa. Havia narguilés riquís-simos e bandejas com inscriçõesquedeviam valer alguns milhares.

- Nada disso é nosso - acudiulogo o brâmane, apontando para osadornos e enfeites.- É desejo demeu pai casar minhas irmãs com ho-men~de boa casta, e, para atrair ospretendentes, alugou toda essa pra-ta e esses tapetes bordados a ouro.Todos acreditam, desse modo, quesomos ricos e que vivemosna fartu-ra e na opulência.

Irritado com o cinismo daquelefalso amigo, disse-lhecom calculadafrieza:

- Bem sabes que sou descenden-te de nobres e que meus avós perten-ciam à mais alta linhagem da índia.Declaro, pois, que, para fugir da si-tuação em que me encontro, estoudisposto a casar com uma jovem fi-na e educada. Peço, pois, a tua irmãmais moça em casamento.

Sorriu o brâmane:- Pedes em casamento uma jo-

vem que não conheces e que talveznão te aceite para esposo. Em nossafamília, os casamentos não são dita-dos pelos interesses pessoais; a mu-lher deveser ouvidae suasinclinaçõespessoais levadas em linha de conta.Se desejaspagar dívidasde jogo como dote de minha irmã maismoça, sin-to dizer-te que estás equivocado. Ja-mais aceitaria, como cunhado, umhomem que se arruinou em conse-qüência de uma vida desregradae pe-caminosa!

E, conduzindo-me até a porta deseu palácio, empurrou-me delicada-mente para a rua.

8S

Apesar desse péssimo acolhimen-to, não desanimei. Fui ter à casa emque morava um mercador chamadoMetingque era assíduo freqüentadorde minha casa. De mimhaviaMetingrecebido inúmeros obséquios e fine-zas, e muito dinheiro para eleeu per-dera no jogo.

- Que desejas de mim? - per-guntou-me.

Disse-lheque precisava de peque-no auxílio.

- Julgas que eu sou algum imbe-cil da tua espécie? - respondeu-mecom insolência. - De mim não te-rás nem um talung3de cobre.

Desesperado,vendo-merepudiadopor todos, e semrecursos para pagaro imensodébito que contraíra, aban-donei o palácio e fui ter a um grandebosque nas vizinhanças da cidade.Era meu intento cumprir o juramen-to que formulara junto ao leito demeu pai.

Escolhi, portanto, entre mUltas,uma belíssimaárvore. Subi pelo no-doso tronco, sentei-me em um dos

3Talung- moeda de ínfimo valor.

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galhos mais altos, desenrolei o lon-go e beloturbante cor de cinza,amar-rei uma das suas extremidades emoutro galho que estava a meu alcan-cee fiz, na outra extremidade,um la-ço seguro em torno do pescoço.Todos esses preparativos trágicosexecutei-oscom a maior calma, sen-tindo, embora, o coraçãoQpressope-la mais intensa tristeza. ;-..,.

Já ia deixarcair o corpo 00 espa-ço, quando, ao reforçar o laço fatalque me estrangularia, notei que ha-via na ponta do turbante, por den-tro, qualquer coisa de muito resis-tente. Que seria? Na esperança lou-ca de encontrar ali qualquer coi-sa que me pudesse salvar, rasguei oturbante. Embora pareça incrível,se-nhor, devo contar: dentro dele reti-rei uma carta de meu pai, redigidanos seguintes termos:

Estás desligado do teu juramento.Vai à casa de Kashiã, o tecelão, epede-lhe a caixa de areia. Quem se sal-va, por um milagre, da desonra e damorte, deve evitar o erro e procuraro caminho reto da vida.

Ébrio de alegria, saltei da árvoree, quase a correr, fui ter à choupanaonde morava o pobre Kashiã, apeli-dado "o tecelão"; recebi das mãosdesse pobre homem a dádiva quemeu pai ali deixara para me ser en-tregue.

Ao abrir a misteriosa caixa, quasedesmaiei, tão grande foi o meu as-sombro. Estavarepletade brilhantes,pérolas e rubis - algunsdos quaisvaliam mais que as coroas dos prín-cipes hindus.

Possuidor de tão grande riqueza,não soube dominar a emoção de quefui presa e chorei. Lembrei-me demeu bom pai, sempregenerosoe pru-dente, que, ao prever a minha des-graça, usara daquele artifício parasalvar-me.Era evidenteque eu só po-deria obter a caixa com o auxílioda carta, e a existênciadesta só che-garia ao meu conhecimento se o tur-bante fossepor mimpróprio desman-chado.

Como louco que se salva de umabismo ao fundo do qual se atirara,assipl me vi naquele momento. De-pois de lançar aos pés do velho Ka-

shiãum punhado de preciosasgemas,tomei da caixa e encaminhei-mepa-ra a cidade. Era minha intenção pa-gar todas as minhas dívidas e read-quirir as minhas antigas proprieda-des. Quis, porém, a fatalidade, quetal não acontecesse.

Ao atravessar um pequeno e som-brio bosque, nas margens do Tellir,encontrei, sentada sob uma grandeárvore, uma jovem de deslumbranteformosura. Os seus olhos azuis ti-nham um pouco do céu da Índia comos reflexos mais verdes do mar deOmã. As faces eram como as da ter-ceiraDeusado temp.lode Yhamã. Oslábios da linda criatura tinham umencanto a que talvez não pudesse re-sistir o faquir mais puro e mais san--to da terra. Com essas comparaçõesnão exagero a beleza da desconheci-da, ao contrário, fico muito aquémda verdade.

A jovem chorava.,Os seus soluçosvibravam em ondas de indizível an-gústia.

- Que tens, ó jovem? -, per-guntei-lhe carinhoso, aproximando-me dela. - Qual é o motivo do teu

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pranto? Se para o teu mal há remé-dio, dentro dos recursos humanos,certo estou de que sabereilivrar-tedequalquer desgosto!

Isso proferia com ênfase, sobra-çando a preciosacaixaonde reluziamas pedras que me dariam ouro, famae poderio.

Sem interromper o seu copiosopranto, a jovem, com surpresa paramim, segurou com os lábios o belomanto de seda que lhe caía sobre osombros e, puxando-o para o lado,deixou a descoberto o colo e os bra-ços, maisalvos, ambos, do que as pe-nas das.garças sagradas de Ramadã.Reêuei horrorizado. Gelou-me nos

lábios um grito de surpresa e terror.A infeliz tinha as duas mãos corta-das junto aos pulsos!

- Ó desditosa criatura! - excla-mei,.a alma oprimida pela maior an-gústia.. - Qual foi o bárbaro autorde tamanha crueldade? Conta-me acausa da tua.desgraça, e"ficacerta deque poderás armar o meu braço como ódio que a vingança te souber ins-pirar!

A desventurada jovem, com vozumedecida de lágrimas, narrou-me oseguinte:*

(De "Mil Histórias sem Fim")

As Sentenças de Babalin

Na última viagem que fIz ao Egitoencontrei, casualmente,em velhoba-zar do Cairo, exemplar raríssimo deum livro muito curioso, intitulado"La Tanish".

Julgo prudente avisá-Io,meuami-go, de que a tradução do título "La

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Tanish" pode ser feita por meio deuma frasebem sugestiva:"Não se es-queça de mim" - e isso só estarácerto admitindo-seque tal conselho

·Nota- A continuação da estranha aventura de SindMathusa constitui um novo capitulo das "Mil Histó-rias sem Fim...".

seja dirigido a pessoa do sexo femi-nino. A mesma recomendação feitaa distinto cavalheiro seria expressa,em árabe, por outro vocábulo- "Latansah" .

Pois bem. Nas páginas de "La Ta-nish" foram incluídas as quarentasentençasmais sugestivase originaisproferidas pelo célebre Kalil Haba-lin, um dos juizes mais famosos doIslã.

Vou recordar, agora, a décimaquinta sentença do insigne Habalin.As trinta e nove restantes ficarão (seAllah quiser) para amanhã.

Um dia, ao cair da tarde, três bonsamigos, um alfaiate, um caçador eum músico, divertiam-se numa dasruas do Cairo, jogando pelota. Emdado momento, a pelota, escapandocasualmente da mão de um dos jo-gadores, foi alcançar um camponês,chamadoChafik, que passavadescui-dado, machucando-o seriamente noolho direito.

O camponês, ferido, pôs-se a es-bravejar como um demente. Queriauma indenização: exigia que os cul-pados fossem severamente punidos.

Vários populares intervieram no ca-so e procuraram acalmar o exaltado.Nada, porém, demovia o irritadoChafik do seu rancoroso intento deconseguir uma punição para os trêsestouvados peloteiros.

O rumoroso caso foi levado, nomesmo dia, ao conhecimentodo juizHabalin.

O velho magistrado, depoisde ou-vir a queixa formulada pelo ferido etendo-se certificadoda inteira casua-lidade do acidente, voltou-se, solene,para os acusados e interrogou-os.

- Desejo saber qual dos três, nomomento em que ocorreu o aciden-te, se achava em situação mais fracana partida.

O músico, que parecia o mais ve-lho, respondeu:

- A vitória do jogo pendia parao meu lado. Em segundo lugar esta-va o caçador; menor número de pon-tos contava o alfaiate.

Volveu, então, pausadamente, ojuiz:. - Um de vocês (é difícil apurar

com segurançao verdadeiroculpado)feriu, com uma pelota, o olho direi-

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to.do .infelizChafik. Determinao Al-corão, nosso código de justiça, queum dos três culpados sofra um gol-pe idêntico ao que sofreu o queixo-so. Resolvo,pois, que o al mate, quepelo modo de pelotar aparece comomenoshábil no jogo e que, provavel-mente, foi o autor do golpedesastra-do, leve uma violenta pelotadaprecisamente no olho esquerdo.*

· A Lei de Talião, extremamente perigosa por causa dasiniqüidades que dela poderiam decorrer, era prescritano Alcorão e, tendo tido sua origem na legislação mo-saica, veio, mais tarde, figurar nos códigos grego e ro-mano.

No Livro dos Árabes, a 2~ surata, em seu versículo173, dispõe sobre o caso do assassínio; e em outro tre-cho de seu código (5~ surata, verso 49) o muçulmanoencontra determinação bem clara:

liA nossa leiprescreve: vida por vida, olho por olho,nariz por nariz, orelha por orelha, dente por dente, fe-rida por ferida..."

Edmundo d' Amicis, em seu livro "Marrocos" (pg.322), escreve:

"Descobri que entre os soldados da guarda do palá-cio há um a quem falta a orelha direita, e disseram-meque foi legalmente cortada, em presença de testemunhas,por outro soldado a quem ele arrancara também a ore-lha direita tempos antes. Tal é a Lei de Talião vigenteem Marrocos. Não só um parente qualquer de uma pes-soa assassinada tem o direito de matar o assassino nomesmo dia da semana, à mesma hora e no mesmo lu-gar onde está a vítima, ferindo-o com a mesma armana mesma parte do corpo; mas quem for privado deum membro qualquer tem o direito de privar do mes-mo aquele que o feriu." (B.A.B.)

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A sentença inesperada do grandeKalil Habalin fez empalidecer o po-bre alfaiate. As suaspernas tremiame a sua testa cobriu-se de suor.

- Judiciosocádi! - disseele,inclinam10-se Já meio sucumbidodiante do juiz. - A vossasábia e no-tável sentença, inspirada pelo nobredesejo de punir o verdadeiro culpa-do, cai impiedosa sobre mim. Con-fesso, realInente, que não sou dosmais hábeis no jogo da pelota! Masdada a confusãodo momentoem queocorreuo acidente,é difícilapurar dequem partiu o desastrado golpe queferiu o camponês distraído. Acresceainda, no caso, uma circunstânciaque militaa meu favor. Se eu levar .

uma pelotada no olho, direito ou es-querdo, não importa!, ficareiimpos-sibilitado, durante muito tempo, deexercera minha árdua e delicadapro-fissão. Como poderei, com o olhovendado, cortar, provar e acertar asroupas que preparo para os meusexi-gentes fregueses?O nosso amigo ca-çador, sim, é que pode sofrer, semprejuízo, a pelotada judicial, pois,como é sabido, o caçador, ao atirar

na presa, fechaum olho. Que impor-ta ao caçador a perda de um olhoquando esse olho é completamenteinútil ao exercíciode sua profissão?

Volvidosalgunssegundos,respon-deu o prestigioso Habalin, o juiz:

- A observação feita por essehonrado alfaiate, tem, a meu ver,muito fundamento. Reformo, pois,a sentençaproferida, e determinoquea pelotada - exigida pelo queixoso- seja aplicada no olho direito docaçador!

Focalizado pela perigosa sentençado cádi, o caçador achou que devia,no caso, defender-sede qualquer for-ma. E, depois de saudar, respeitosa-mente, o digno magistrado, assimargumentou, numa voztrêmula e dé-bil, retorcendo os dedos:

- Não nego, senhor, que ao vi-sar a caça fecho, muita vez,um olho,no momento de desferir o tiro certei-ro. Mas se a escolha, por esse moti-vo, pudesse recair sobre mim, pormais forte e mais justa razão deveriarecair sobre o nosso amigo, o músi-co! Sim, todo mundo sabeque o mú-sico- que é aliásum exímioflautista

- quando tira as melodias admirá-veisde seu instrumento fecha os doisolhos! Ora, que importa uma pelo-tada no olho, direito ou esquerdo,para um artista, que fecha os doisolhos no exercíciode sua profissão?

Depois de um momento de refle-xivo silêncio, o juiz Habalin volveutranqüilo, arrastando austeramenteas palavras:

- Vejo-meforçado a reconhecerque as razõesque o caçador acaba dealegar não podem ser desprezadas.

. Sãomuito sériase ponderáveis.Re-formo, pois, a minha segundasenten-ça e determino que seja aplicada aomúsico, que é o terceiro dos acusa-dos, uma pelotada no olho direitoouesquerdo, como o próprio réu acharpreferível! -

Será inútil dizerque o músico, quenão podia escondera inquietaçãoquelhe abafava o espírito, não se confor-mou com a terceira sentença do sá-bio Habalin. É difícilque um homemfique impassíveldiante da ameaça delevar no olho uma pelotada capaz decegar até um elefante!

E resolvido a fugir das malhas da

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justIça, como já haviam feIto os seusdois companheiros, pediu permissãoao juiz para expor a sua maneira depensar sobre o melindroso caso.

- Acredito, sr. juiz, que o cam-ponês Chafik nada lucrará se eu le-var uma pelotada no olho direito ouse a pelotada me atingir no olho es-querdo. Sugiro,pois, que ofereçamosà vítima uma indenização. E essa in-denização deve ser de tal forma quenela possam contribuir, em partesiguais, os três acusados, isto é, eu, ocaçador e o alfaiate!

- E que indenização propõe? -indagou curioso o juiz.

-.:. A indenização que julgo maisinteressante - acudiu pressuroso omúsico - é a seguinte: o caçadorapanhará na mata maispróximaumalinda raposa prateada; com a peledessa raposa o alfaiate fará um be-líssimo colete. Esse colete de raposaprateada será oferecido ao campo-nês!

Com a interessante sugestão domúsicoconcordou logo, com vivasa-tisfação, o queixoso. Para ele, comefeito,era mais interessantevestirum

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colete de raposa do que ver um po-bre e alegre flautista levar uma pelo-tada no olho. Diante dissoo preclarojuiz achou que seria de bom avisore-formar, mais uma vez, a sua senten-ça. E o fez sem a menor hesitação.

- Determino que o segundo acu-sado, o caçador, seja obrigado a apa-nhar uma raposa de pêlo prateado;com a pele dessa raposa o primeiroacusado, o alfaiate, fará um linqo eperfeito coleteque será oferecido co-mo indenização ao camponês que le-vou, sem querer, a pelotada!

Um advogado que acompanhara,desdeo princípio, todas as peripéciasdo singular julgamento, não se con-formou com a sentença final. E, de-pois de dirigir ao juiz um respeitoso"salã", ponderou delicadamente:

- Quer-me parecer, sr..juiz, quea sua última sentença veiobeneficiarum dos acusados, em detrimento dosoutros dois. Com efeito, para a in-denização oferecida ao camponês ostrês culpados deveriam contribuircom parcelas ou partes iguais: cabeao caçador a tarefa de obter a rapo-sa de pêlo prateado; cumprirá ao al-

faiate o dever de arranjar um coletecom a pele de raposa. E ao flautis-ta? Qual foi a sua contribuiçãono ca-so? Como descobrir a terça parte domúsico?

Sorriu o íntegro cádi ao ouviraquela observação. E a fim de evitarque a menor sombra de dúvida pu-desse acinzentar a confiança que oseuprestigiosonome inspirava,assimfalou:

- Na indenização, oferecida eaceita pelo camponês Chafik, todos

os três acusados contribuíram igual-mente. O habilidoso alfaiate fará ocolete; o caçador, com sua astúcia,terá que aprisionar uma bela raposade pêlo de cor prateada, e o músico,çom seu talento e inspiração, contri-buiu com a idéia!

- Há idéias, meu amigo, que va-lem mais do que todas as raposasprateadas do mundo!

(De "Maktub")

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o Amor e o Velho Barqueiro- .. .sim, meu amigo, não nego. O Tempo arran-cou-me do coração o Amor que me aflingia, masdeixou, em seu lugar, a Saudade!Que farei eu, agora, desta Saudade que pareceser mais forte e mais torturante do que o Amor?

Chegando, afinal, à margem dogrande rio, o Amor avistou três bar-queiros que se achavam, indolentes,recostados às pedras.

Dirigiu-se ao primeiro:- Quer~s,meubom amigo, levar-

me para a outra margem do rio?Respondeuo interpelado, com voz

triste, cheio de angústia:- Não posso, menino! É impos-

sível para mim!O Amor recorreu,então, ao segun-

do barqueiro, que se divertia em ati-

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(Fauzi Maluf, trad.)

rar pedrinhas ao seio tumultuoso dacorrenteza.

- Não. Não posso - respondeusecamente.

O terceiro e último barqueiro, queparecia o mais velho, não esperouque o Amor viesse pedir-lhe auxí-lio. Levantou-se tranqüilo, e, esten-dendo-lhe,bondoso, a larga mão for-te, disse-lhe:

- Vemcomigo, menino! Levo-tesem demora para o outro lado.

Em meio da travessia, notando o

Amor a segurança com que o velhobarqueiro navegava,perguntou-lhe:

- Quem és tu? Quem são aque-les dois que se recusaram a atenderao meu pedido?

- Menino - respondeu, pacien-te, o bom remador -, o primeiro éo Sofrimento; o segundoé o Despre-zo. Bem sabes que o Sofrimento e oDesprezonão fazempassar o Amor.

- E tu, quem és, afinal?...- Eu sou o Tempo, meu filho -

atalhou o velhobarqueiro. - Apren-

de para sempre a generosa verdade.Só o Tempo é que faz passar oAmor!

E continuou a remar, numa cadên-cia certa, como se o movimento deseusbraços possantes fossereguladopor um pêndulo invisívele eterno.

Sofrimento, Desprezo... Que im-porta tudo issoao coração apaixona-do? O Tempo, e só o Tempo, é quefaz passar o Amor.

(De "Minha Vida Querida")

o Dervixee o Vizir

Passados algunsminutos, foi o sinis-tro faquir reconduzido à sala em quese achava o soberano árabe, rodea-do de seus vizires e oficiais.

Assombradosficaram todos quan-do viram o dervixe, com o vagar demonge, aproximar-se muito ~oleneebeijar a terra entre as mãos.

Disse-lheo rei comcalculadaspau-sas:

- Levanta-te, meu amigo!Admiro-te! O poder de tua ciênciatem as sete asas do Ministério! PorAllah! Levanta-te!

Ergueu-sevagaroso o dervixe.Emseu rosto estampava-se uma palidezestranha.

Nessemomento ocorreuno rico sa-lão uma cena imprevista, que deixouo monarca e os nobres que o rodea-

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vam mergulhados num "simum" deespanto.

O ilustre Zein Tela Fari, um dosvizires do rei, que se mantivera emsilêncio,ouvindo atento todas as pa-lavras, dirigiu-separa o meio da sa-la, fez uma reverênciacerimoniosa edisse em voz trêmula:

- Peço-vos,ó rei do Islã, que nãointerrogueis este homem - e apon-tava, raivoso, para o dervixe. - Se-rá desonra para o nosso país e paraa nossagente!Este homemé um mis-tificador ignóbil, um mentiroso queexplora a boa-fé dos simples e a ig-norância dos imbecis!

O dervixeouvia impassívelaquelaacusação tremenda. O cheique ZeinTela Fari era uma das figuras. demaior prestígio na corte.

- Tuas palavras, meu caro vizir- retorquiu o rei com serenidade-,envolvem uma acusação tão graveque há de ser apurada com a máxi-ma cautela.

Tornou o vizir Tela Fari com fir-meza:

- Posso provar, imediatamente,ó Príncipe dos Árabes!, que não me

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afastei da verdade ao considerar es-te sacripanta um mistificador de bai-xa espécie. A minha prova há de sergarantida pelo selo da absoluta evi-dência. Vou narrar um doloroso epi-sódio de que participamos eu e essedervixe imundo.

E o vizir, erguendo a sua longa fa-ce requeimada, contou o seguinte:

- Foi há quase dois anos passa-dos. Quando meu filho Tufik com-pletou o seu primeiro aniversário,oferecia um grupo numerosode ami-gos uma festa noturna em meu palá-cio. por sugestão de um escribada-masceno chamado An-Haf, mandeique trouxessemessedervixe.Quería-mos ouvi-Io sobre o futuro de meufilhinho. Fazendo-o acompanhar demeus convidados, levei-o aos meusaposentos.

O pequeno Tufik repousava emseuberço. Ordeneique seacendessemtodas as lâmpadas. O ignóbil misti-ficador resolveu zombar cruelmentede mim. Encaminhou-separa o meiodo aposento, voltou-se para o berci-nho em que dormia meu filho e, de-pois de fazer, com as mãos, uma

- Peço-vos, 6 rei do Islã, que não interrogueis este homem - e apontava, raivoso,para o dervixe.

infInidadede trejeitos, proclamouso-lene:

- Deste berço há de sair um rei!E apontava, como se fosseuma es-

tátua, para o berço do pequenino.Aquele augúrio encheu-me de en-

tusiasmo. O futuro de meu filho se-ria glorioso. Reservava-lheo destinoum trono entre os tronos do mundo!Ouvi, de todos os que assistiramàquela cena, palavras de regozijo eefusivas congratulações-. Tomei deuma bolsa com duzentos dinares emandei oferecê-Ia ao dervixe.

Passaram-se semanas: amontoa-ram-se os meses; novos Ramadãs sefestejaram. Do meu pensamento nãosaíam as palavras proféticas do der-vixe Talibrã:

- Deste berço há de sair um rei!E, no entanto, o estado de saúde

do meu filho Tufik não era satisfa-t6rio. O pequeno viviasempredoen-te. Febres terríveis abatiam-lhe oorganismo.Antes de completaro ter-ceiro aniversário, faleceu! Era poisfalsa, mentirosa, a profecia dessein-trujão! AfIrmou, com a segurançadesua ciência, que meu filho seria rei!

E o infeliz menino saiu do berço pa-ra a sepultura.

E o vizirTela Fari, tomado de in-dizível rancor, numa irritação cres-cente, clamou desabrido:

- Infamementiroso!Mistificador!E no excesso da indignação, che-

gou a espumar pelos cantos da bo-ca.

Aquela tremenda acusação, o ve-lho neb-y' ouviu-a impassível, osbraços cruzados, a cabeça baixa.Quando o vizirdeu por findo o rela-to, Talibrã resolveuintervir. Ergueuri rosto, voltou-se para o rei e, numavoz roufenha e impiedosa, assim fa-lou:

- Posso afirmar, 6 Vigáriode Al-lah!, que esse preclaro vizir, com ocoração ainda abalado pela morte deum filho querido, adultera as minhaspalavras, aponta o erro e acusa en-gano onde s6 existiacerteza e verda-de. A minha previsão naquela noitefestiva foi: "Deste berço há de sairum r~i!" Não me referia, é claro, aopequenino. Seria doloroso púngir,

INeby- profeta mago.

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com palavras desalentadoras, um paiextremoso que sonha glórias imen-sas para um filho enfermiço. Aludi,pois, unicamente, ao berço, dizendo:"Deste berço há de sair um rei!"

E após esses dizeres, encarandocom serenidade o vizir, interpelou-ocom surpreendente gravidade:

- E o berço, ó judicioso ulemá?Que fizeste do berço de teu filho?

Ao ouvir aquela pergunta, expediuo vizir uma casquinada de riso des-denhoso e amargo.

- Tranqüiliza-te, imbecil, "BenDebb"!2 - replicou o vizir, levandoa mão ao peito como se quisessecon-ter o coração convulso. - Não medesfiz, ao acaso, do ber~ode meu fi-lho. Não o vendia outra família. Te-mi que, por ironia do Destino, fossealguém confirmar o teu vaticíniomentiroso! Queria desmascarar-te,intrujão! Desmancheio berço, quei-mei algumas peças, e a parte restan-te, toda de ébano, conservei-a co-migo durante muito tempo! Há duas

2BenDebb - expressão insultuosa: "Filho de um as-no".

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ou três semanas ofereci-a ao imã3da mesquita!

- Pois o imã dirá se menti ounão! - atalhou o dervixe com umsorriso de piedosa lástima.

Determinou o rei que fossem ime-diatamente buscar o zelador do tem-plo.

Quando o velho imã chegou, opróprio califa foi o primeiro ainterrogá-Io:

- É verdade, meu amigo, que re-cebestedo vizirTela Fari algumaspe-ças de ébano?

- Sim, ó rei! - confirmou o in-terpelado. - Era o que restava deum berçoantigoque pertenceraao vi-zir!

- E que fizeste com esses peda-ços de madeira? - insistiu concilia-dor o rei.

Respondeu o imã, erguendo parao califa a face requeimada:

- Dedico as minhas horas feria-das a pequenos trabalhos de carpin-taria. Faço cofres, caixas, argolas,

31mã- religioso encarregado de ler a prece namesquita.

pulseiras, cachimbos e dezenas deadornos caseirosque os muçulmanostanto apreciam. Com a fina madeiraque recebi do nosso ilustre vizir, fizuma coleçãocompleta de peças parajogo de xadrez!

- E entre essaspeçasnão há umachamadarei?- acudiu, comvozlen-ta, o dervixe.

- Sim- respondeuo imã. - Há.,um rel....E o mago, com impiedoso sarcas-

mo, mais uma vez interpelou grave-mente o imã:

- Não tiveste, por acaso, a opor-tunidade de fabricar um rei?

- Sim - confirmou o religioso.- Com um dos pedaçosde ébano fizum rei de linhas admiráveis!

Concluiu vitorioso o dervixe:- Reparai, ó Emir. O futuro veio

confirmar a minha previsão. Do lei-to precioso em que repousava o fi-lho do vizir "saiu um rei"!

(De "Aventuras do Rei Baribé")

o Homem Que Tudo Achava

Duas horas depois, Pedrinho e seucompanheiro de jornada reuniram areduzida bagagemque traziam e rei-niciaram a viagem para o Iguatu.

A estrada que percorriam era lar-ga e bem-feita. Juazeiros com os ra-mos verdes estendiam pelo chão asmanchas largas de sua sombra. Nãocruzaram, em caminho, com outros

viajantes. Naturalmente, a ameaçado vulcão fizera fugir todas as pes-soas daquela região.

Pedrinho notou que o seu compa-nheiro, de vezem quando, interrom-pendo a palestra, parava um momen-to e abaixava-se para apanhar nochão um objeto qualquer.

A princípio o menino não deu im-

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portância ao caso, mas sua repetiçãoconstante começou a chamar-lhe aatenção.

Reparou, então, que o curiosovia-jante era de uma sorte incrível paraachar objetos ocultos; pôde observarque, em menos de uma hora, acharaduas chaves, três anéis, uma corren-te de ourQ, cinco ou seis moedas,uma faca e outros objetos de menorimportância.

"É incrível!", pensava Pedrinho."Como pode esse.homemachar tan-ta coisa, enquanto eu, por mais quearregale os olhos, não consigo~charuma simplesferradura?" Devia, ser,naturalmente, algum dom extraordi-nário qu~ o cavalheiro de barba lou-ra possuía, e que lhe facultava a pos-se de todos os objetos perdidos nomundo.

Ao vê-Io, finalmente, arrancar domeio da areia da estrada uma espé-cie de rosário de contas avermelha-das, não se conteve e observou, comum sorriso de admiração:

- Nunca vi sorte como a sua pa-ra achar coisas perdidas!

- Não é questãode sorte, meujo-

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vem amigo - respondeu-lhe o ho-mem da barba loura -, trata-se,apenas, de uma habilidade que pos-suo, e que consegui adquirir com oauxílio de pedacinhos de um botãodurante o tempo em que estive pre-so!

- Pois olhe, eu já me admiromuito de que uma habilidade ajudetanto o senhor, mas não percebo oque possam ter os pedacinhos de bo-tão com isso.

- Pois é a pura verdade - repli-couelecalmamente.- É a pura ver-dade.

E, querendo satisfazer a viva cu-riosidade de Pedrinho, narrou-lhe oseguinte:

- Meu nome é Miguel e sou na-tural da Rússia. Nasci em Moscou,a famosa capital. Quando tinha vin-te anos, mais ou menos, influencia-do por alguns companheiros de es-tudos, tomeiparte numa conspiraçãocontra o governo do czar. Inútil serádizerque os nossosplanos foram des-cobertos e todos os conspiradorespresos. Graças à intervenção de umamigo da família, livrei-me de ser

enviadopara a Sibéria.Condenaram-me, ainda assim, a quinze anos deprisão, em Moscou. Nos primeirosmeses de cárcere, fui torturado porum tédio horrível. Não tinha que fa-zer durante o dia inteiro. Passava-os,a fio, sentado estupidamenteem umalaje da cela, procurando descobrirum meio qualquer de me distrair, al-guma coisa com que me ocupar. Umdia, arranquei um dos botões da mi-nha roupa. Quebrei-o em vários pe:daços, ajuntei-os na palma da mãoe pus-mea refletirsobreo que faria .

com eles, quando, distraindo-me,deixei-oscair no chão. Este inciden-

. te, que noutras circunstânciasseriatrivial, sugeriu-me um passatempoexcelente- procurar os pedacinhosde botão. E assim, depois de reuni-los na mão, fechava os olhos e ati-rava-os a esmo para o ar. Isso feito,punha-me a procurá-los e não des-cansava enquanto não os tinha apa-nhado um por um. Repeti essa proe-za, uma ou mais vezes por dia, du-

_ rante os quinzeanos em que estivepreso. A distrair-me assim, desen-volveu..seem mim um golpe de vista

extraordinário que me proporcionahoje a habilidadede descobriros me-nores objetos ocultos. Sou capaz deachar um grão de trigo perdido nomeio de um areal. O interesseque de-monstrei pelo lago, junto ao qual es-tivemos parados, foi motivado pelofato de eu ter percebidoque haviaumobjeto qualquer, talvezde grande va-lor, abandonado no fundo. Voltareimais tarde para buscá-lo.

E, sorrindo à estupefação de Pe-drinho, o antigo prisioneiro .russoacrescentou:

- Há três anos que consegui fu-gir do meu país. Hoj~ vivo exclusi-vamenteda habilidadeque adquirinaprisão. Vim ao Brasil à procura dediamantes. Já estiveem Mato Gros-so e Goiás. Pretendo montar, numagrande cidade, uma grande agênciade "Perdidos e Achados", que pres-tará inestimáveis serviços à popula-ção.

E, depois de uma pequena pausa,disse resoluto:

- Pude notar que você é um me-nino valentee discreto. Quer ser meuauxiliar?

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E, sem esperar que Pedrinho res-pondesse,afastou-see, abaixando-se,a alguns passos mais, apanhou nochão uma bolsa escura de couro quese ocultava sob as folhas secas,ao la-do da estrada.

Meditou Pedrinho sobre a curiosahistória de Miguel, o russo, e con-cluiu que um homem ativo e inteli-gente, mesmo no fundo escuro de

uma prisão, pode adquirir, com au-xíliode uma insignificânciaqualquer,uma habilidadeextraordinária,capazde proporcionar-lhe,maistarde, umaútil e rendosa profissão.

Miguel era o "homem que tudoachava" ou melhor "o homem quetudo via".

(De "Amigos Maravilhosos")

Os Sósias do Rei

Soyuti, célebrehistoriador árabe, deorigem persa, que viveu na segundametade do século XV, escreveu:

"O califaAl-Motassim, de Bagdá,merece ser apontado entre os sobe-ranos mais gloriosos do mundo!"

Para aquelesque vivemalheiosaosepisódiosda vida árabe, a opinião doerudito Soyuti sobre o emir Al-Motassim parece repintada com ascores berrantes do exagero.

Não valea pena discutir, meuami-go, sobre a validade e justeza destaou daquela opinião. Em nossas ten-

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das jamais acendemoso narguilé ve-nenosodas controvérsiasinúteis.Vouapenas recordar um singularepisódioocorrido com o famoso califa que osábio historiador pretendeu incluirentre os "mais gloriososdo mundo" .

Conta-se(Allah, porém, é maissá-bio!) que AI-Motassim, califa deBagdá, chamou um dia o seu prefei-to e disse-lhe:

- É verdade, ó prefeito!, que vi-vem nesta cidade, e já foram vistospelosmeusamigos,homensextrema-mente parecidos comigo?

Respondeu o prefeito:- É verdade, sim, ó Emir dos

Crentes! Conheço dois muçulmanosque são como retratos vivosde Vos-sa Majestade. Um delesexercea pro-fissão de pasteleiro e outro éfabricante de tapetes. É possível,po-rém, que existam outros sósias deVossaMajestadesob o céu destaglo-riosa Bagdá.

- Pois faço grande empenho emconhecer os meus sósias - declarouo rei. - Convida-osa uma reuniãoem palácio, pois a todos darei, semexceção, ricos presentes.

Aquela ordem do monarca foiatendida com a maior solicitude epresteza.O prefeito fezanunciar, pe-los pátios das mesquitas, bazares epelos recantos longínquos da grandecidade, que todos os homens que sejulgassemparecidoscom o Califa de-veriam comparecer, em dia e horacertos, ao "di vã" das audiências. Opoderoso Emir prometia generosasrecompensas.

O caso despertou grande curiosi-dade. Quantos sósias teria, afinal, orei?

No dia marcado, no suntuoso sa-lão das audiências, o poderoso mo-narca, rodeado de seusvizires,cádise altos funcionáriosda corte, recebeuos pretendentes, que eram, aliás, emnúmero de sete!

Havia, entretanto, uma particula-ridade que fez sorrir o rei e causoucerta impressão de constrangimentoaos cortesãos. Dos sete candidatosaos prêmios,seiseram parecidíssimoscomo monarca: o sétimo,porém, erainteiramente diferente.

. Ossósiasforam,uma um, recebi-dos em audiência e chamados parajunto ao trono. A cada um dirigia orei palavras de estímulo, de bonda-de e simpatia. E todos partiam ra-diantes de alegria com vinte dinaresde ouro e um belo turbante de seda.

Chegou, finalmente, a vezdo últi-mo - o tal cuja figura em nada seassemelhava à do rei.

Os vizires e cheiques entreolha-vam-se espantados.

O pretenso "sósia", num andartranqüilo e firme, aproximou-se dalarga escadaria de mármore cor-de-rosa que conduzia ao trono.

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- Meu amigo - disse-lheo bon-doso soberano árabe -, sei que háenganos sérios na vida e que não ra-ramente o homem é levado a errar,sem querer, nas coisas mais simplese pueris. O teu comparecimentoa es-te concursosó pode ser explicadoporum lamentáve:lequívoco de tua par-te. Não quero admitir a hipótese deteres sido inspirado pelo desejo au-dacioso de zombar de mim. Ora, omeu convite era dirigido exclusiva-mente àqueles que se julgassem pa-recidoscomigo,e pelo que meé dadoobservar somos inteiramente qesse-melhantes. Repara bem, meu amigo.Sou corpulento, alto e forte; és, aocontrário, franzino, baixoe fraco; te-nho os olhos negros e a pele more-na; os teus olhos são azuladose a tuapele é clara; o meu rosto é emoldu-rado por uma pujante barba preta etu és inteiramente imberbe! A únicasemelhança, ó muçulmano! que sepode observar entre nós, é sermosambos homens, isto é, servos de AI-lah! E, assim, não terás diteito aomesmo prêmio que fQidado aos ou-tros seis. Receberás um prêmio bem

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menor. Um dinar de prata... e nadamais.

O homem de olhosazuis,depoisdeouvir, coma maior serenidade,a sen-tença do califa, inclinou-se respeito-samente e assim falou:

- Agradeço o vosso dinar, ó Co-mendador dos Crentes!, mas nãoposso aceitá-Io. Não tenho direito arecompensa alguma. Fui iludido pe-las aparências. Quando aqui compa-reci julguei, realmente, que éramosmuito parecidos...

- Parecidos! - estranhou oreicom certo movimento de impaciên-cia. - Por Allah! Estavas, então,certo de tua parecença comigo?

- Sim, ó Emir dos Crentes! -confirmou, com absoluta firmeza, odesconhecido. - Certíssimo! Julga-va que havia entre nós grande pare-cença. Essa parecença, porém, nãoera física - pois a semelhança físicaque acaso exista entre duas criaturaso tempo facilmente destrói e aniqui-la. Certo estava de que éramos uni-dos por uma profunda semelhançadesentimento e de espírito, isto é, jul-guei que as nossas almas fossem co-

mo duas almas 'gêmeas. Sou inteli-gente e estava convencido de queéreis inteligente também. Sou since-ro, generoso e simples, e julguei queéreis, do mesmo modo, sincero, ge-neroso e simples.

- Basta - interrompeu placida-mente o rei. - Se assim pensavas,não houve, asseguro, erro algum detua parte. Somos, realmente, muitoparecidos. É grande a afinidade es-piritual que nos aproxima. E possodemonstrar-te facilmente. Sou inte-ligente, pois compreendi muito bema profunda liçãomoral que acabasdeme dar; sou generoso, pois receberásde mim uma recompensa vinte vezesmaior do que a que esperavas; sou

simples e sincero, pois não hesito emreconhecer o meu erro diante de meusamigos e auxiliares.

Era assim, com destemor e since-ridade, que pensava e agia o magnâ-nimo califa AI-Motassim, Príncipedos Crentes.

Não nos parece, portanto, envol-ver o menor traço de exagero o elo-gio formulado pelo historiadorSoyuti (que era árabe, mas de origempersa).

Al-Motassim foi glorioso entre osmais gloriosos!

Uassalã!

o Casamento Interrompido

As estranhas e inacreditáveisaventu-ras com que o Destino formou o ro-sário de minha existência tiveraminício há uns três anos passados du-rante a segundalua do mêsde Rabiel-Auel.

Por esse tempo, tinha eu poucomais de dezoito anos de idade.Achando-meperdido nestabela cida-de,I semrumo nempousocerto, re-

IRefere-se a Bagdá.

1.07

solvi passar a noite numa pequenamesquita que se me deparou nas mi-nhas perambulagens.

Entrei no pátio do templo, onde'pretendia deixar as sandálias, quan-do vi que se acercavam de mim doishomens, precedidosde escravospor-tadores de pesadas lanternas de óleo.Afastei-me para que elespassassem;o mais velho deles - um anciãodeaspecto venerável -, depois de meolhar com muita atenção, exclamou:

- Que a paz seja contigo!Retribuindo àquele salã, respondi

imediatamente:- E contigo seja sempre a mise-

ricórdia infinita de Allah!O velho perguntou-me com vivo

interesse:- És estrangeiro, meu filho?Contei-lhe (nem via razão para

ocultar a verdade)que era natural dacidadedo Cairo, no Egito, e que diasantes, em viagempara Bagdá, meha-via extraviado em caminho, perden-do de vista os meus companheiros.

- Por Allah, ó jovem forasteiro!- exclamouo velho,interrompendo-me. - Louvado seja o Sapientíssi-

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mO!2Quererás, hoje mesmo, tirar-nos de uma grande dificuldade?

Aquela pergunta inesperada maisparecia uma ironia maldosa do queum apelo sincero. Como poderia eu,em cidade desconhecida, faminto esemdinheiro, auxiliaraquelecheiquede aparência nobre e distinta?

- Direi em poucas. palavras -começouo ancião - o que desejo deti, meu jovem amigo. Tenho uma fi-lha chamada Nedjma.3É sem dúvi-da uma das jovens mais formosasdesta cidade. Ontem, quando ela, emcompanhia de duas escravas, se diri-gia para a Mesquita de Omar,4

encontrou-se casualmentecom o de-testável Sayeg, primeiro-vizirdo rei.Sayeg, homem já idoso e perverso,enamorou-se de minha filha, e, peloque fui informado', pretende, aindahoje, pedi-Iaem casamento. Seo pe-dido for feito, não poderei recusá-Io,e para a pobre meninaessecasamen-to com um sujeito rancoroso e mauserá uma verdadeira desgraça...

2Sopientfssimo - Deus.

3Nedjmo - nome feminino, significa "Estrela".4Mesquitode Omor - templo famoso de Bagdá.

Quero livrar Nedjma dessenamo-rado indesejável. E só há um meio:casá-Iacom um estrangeiro.Sabedordas perigosas'intenções do vizir, re-solvi sair com meu filho Nasif, esterapaz que veio comigo, em busca deum marido para Nedjma e tivemosa felicidadede te encontrar, ó jovemegípcio!É exatamente um estrangei-ro, desconhecidoem Bagdá,que maisnos convém!

E, batendo-mecarinhosamentenoombro, disse num tom grave:

- Queres - ó egípcio! - casarcom minha filha Nedjma? Receberáscomo dote cem dinares e dez came-los de sela!

A situaçãode indigênciae abando-no em que me encontrava era terrí-vel. A proposta do velho cheiqueoferecendo-me a mão de sua filha eum dote valioso encantou-me sobre-maneira.

Respondi, pois, sem hesitar, dis-farçando a comoção:

- Aceito!O ancião, voltando o rosto para o

moçoque ficaraem silêncio,a peque-na distância de nós, exclamou:

- Louvado seja Allah, o Eterno!Este estrangeiro - ó Nasi(! - acei-ta a nossa proposta.

E ajuntou com alvoroço:- Vamosimediatamentepara ca-

sa. Tudo será feito, em segredo, napresença do cádi Abul Soraka!

Depoisd~percorrermosváriasruastortuosas e escuras, chegamos, final-mente, diante de um grande palace-te, no bairro de Kazimien, um dosmais ricos de Bagdá. Era ali que mo-rava aquela que deveriaser minhaes-posa.

Levaram-me por uma pequenaporta lateral para um grande aposen-to ricamentemobiliado. Ali me fize-ram tomar um banho perfumado,vestir um traje luxuoso e deram-meuma bolsa com cem dinares de ou-ro, que correspondiam a uma partedo prêmio prometido. Apertava-mea cintura riquíssima faixa de seda, aque prendi a minha inseparávelespa-da.

Uma escrava circassiana,s, muito

SCircassiana- natural de Circássia, país situado noCáucaso. Faz parte, hoje, da União Soviética.

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pálida, mas de incomparável formo-sura, tomando-me pela mão, levou-me ao deslumbrante salão onde iarealizar-se o meu singular casamen-to e onde se encontravam, além doancião e do jovem Nasif, quatro ho-mens desconhecidos: um deles, gor-do, de turbante verde,eu soube, maistarde, chamar-se Abul Soraka, eexercera as funções de cádi, os ou-tros três eram amigosdo dono da ca-sa, chamadosa testemunharo enlace.

Momentos depois, acompanhadade sua escrava predileta, apareceuNedjma, a noiva desconhecidague oDestino me trouxera.

Embora tivesseo rosto oculto sobum véu azulado, pude ver, numacontemplação imóvel, que se tratavade uma rapariga extremamente for-mosa. Fiquei prisioneiro, no mesmoinstante, de seu olhar, que derrama-va languidez e bondade.

Chamou-me desde logo a atençãoo fato curioso de a escrava trazer orosto ainda maisveladodo que a pró-pria noiva. Suposiçõesfantasiosasin-vadiam o mundo agitado de meuspensamentos.

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o velho Ahmed Kamil- assimsechamava o cheique - aproximou-sede mim e segredou-me assaz miste-rioso:

- Meu bom amigo, não te esque-ças, um só momento, de que não pas-sas de um marido mercenário,encontrado na rua e alugado a pesode ouro. Este casamento não passa-rá de simples formalidade, e o meufito, ao realizaresta cerimônia,é, ex-clusivamente, como já disse, livrarminha filha de um destino execrável.Ainda hoje mesmo, ao romper dodia, deixarás esta cidade, pois jámandei preparar a caravana com dezcamelos que deverá conduzir-te devolta à tua pátria. Dentro de algunsmeses anularei este casamento; mi-nha filha poderá, então, ligar-seàquele que seu coração eleger.

Cobrando ânimo, refleti:- Peço perdão - ó venerável

cheique! Logo que o casamento foranulado, o vizir poderá retornar aoseu intento, e certamente o fará.

Isto diziaeu com muita veemência,pois não me parecia interessantedes-fazer aquele casamento com uma jo-

vem tão sedutora, ambicionada atépelo primeiro-vizir do rei.

- Estásenganado- discordoulogo o cheique. - Há, em nossopaís, uma leique não permiteas núp-ciasde um vizircomuma mulherquetenha sido esposa de estrangeiro.Com este casamento, portanto, mi-nha filha estará, para sempre, livreda ameaça de qualquer vizir do rei.

E acrescentou, com voz soturna egrave, pondo-me as mãos espalma-das sobre os ombros:

- Para evitardúvidase contrarie-dades futuras - ó egípcio! -, vaisjurar sobre o Alcorã06que deixarásesta cidade ao romper do dia!

Nasif, irmão de Nedjma, trouxeum exemplardo Livro Sagrado paraque eu proferisse a fórmula do jura-mento. Notei que todos acompanha-vam, com vivacuriosidade, os meusgestos, como duvidosos de minhasubmissão àquelas exigências.

6Alcorão -livro sagrado dos muçulmanos, compos-to de 114 capítulos (ou suratas), cada capítulo dividi-do em versículos. Para citar o Alcorão, é preciso indicara surata e o versfculo. Assim, 18-23ou XVIlI-23; o pri-meiro número indica a surata, o outro corresponde aoversículo.

Antes que me fossedado profenrcomo bom muçulmano, o juramen-to exigido, o cádi Soraka, que pare-cia excessivamentenervoso,voltou-separa o cheique, pai de Nedjma, edisse-lhe:

- Proponho que o dervixe7Tali-brã, antes do casamento, leia a sor-te, boa ou má, desse jovem estran-geiro. Não se esqueçamde que o Des-tino, às vezes, escreve, como oscristãos, da esquerda para a direita.8

7Dervixe - indivíduo que cultiva a magia: religiosomuçulmano. Acreditavam os árabes que os dervixes pos-suíam o dom de adivinhar o futuro. Essa crendice sósubsiste hoje nas classes ignorantes. O dervixe era tam-bém chamado "daroés".8Da esquerda para a direita - Os árabes escrevem dadireita para a esquerda. A expressão "escrever da es-querda para a direita", em linguagem literária, signifi-ca "acontecimento inesperado".

E, a respeito da escrita árabe, julgamos que deverãointeressar ao leitor as curiosas considerações aduzidaspelo ilustre orientalista português. Sr. Eduardo Dias:

"A interrogação - por que escrevem os povos se-míticos em sentido inverso dos indo-europeus - têmsido propostas várias soluções. Uma, pelo menos en-genhosa e devida ao estranho Fabre d'Olivet, pode serresumida assim: Nos tempos pré-históricos não haviaescrita vulgar. O uso de representar as coisas por sinaisé tão velho quanto a civilização humana. E sempre, nes-ses primitivos tempos, a escritura foi privilégio do sa-cerdócio, como coisa sagrada, como função religiosae de inspiração divina. Quando, no hemisfério austral.os padres da raça negra traçaram sobre peles de ani-mais ou sobre mesas de pedra os seus misteriosos si-nais, tinham o hábito de se voltar na direção do Pólo

lU

- Sim,sim- concoraaram lOgO,com impressionantealvoroço, as trêstestemunhas.- Ouçamosa eloqüen-te palavra do sábio dervixe.

O cádi acercou-sede uma porta es-treita, que mal se percebia, no fun-do da s~a, e bateu palmas três vezes.

Dentro de poucos instantes, comonum passe de magia, surgiu no apo-sento um novo e estranho tipo. En-rodilhado numa túnica andrajosa eimunda, tinha a aparênciade um des-ses mendigos ascorosos que peram-bulam, ao cair da noite, por entre astendas dos mercadores.

O rosto se mostrava meio encober-to por uma barba ruiva e espessa; oscabelos eram bastos, castanhos e os-

Sul; a mão dirigia-se para o Oriente, fonte de luz. Elesescreviam, portanto, da direita para a esquerda. Os pa-dres da raça branca, ou nórdicos, aprenderam a escri-tura dos padres negros e começaram a escrever comoeles. Quando, porém, O sentimento da sua origem sefoi desenvolvendo, junto com a consciência nacionale o orgulho da raça, eles inventaram sinais próprios,e ao invés de se voltarem para o sul, na direção do paísdos negros, fizeram face ao norte, ao país dos antepas-sados, continuando a escrever na direção do Ocidente.Os caracteres seguiam então da esquerda para a direi-ta. E assim se explica - entende Fabre d'Olivet - adireção das ruínas célticas, do zende, do sãnscrito, dogrego, do latim e de todas as formas de escritura dasraças arianas."

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tensivamente revoltos. Cammhavadevagar, e no olhar, esconso e mau,traduzia o brilho cortante de punhalaguçado.

Aquele tipo repelente era o dervi-xe Talibrã, que, por sugestão do cá-di, ia ler a minha sorte.

Abeirando-se de mim, o "zhel-g~gh"9 fitou-me longamente.

- Ah!Ah!- casquinouesfre-gando as mãos como um demente.-É esseo noivo! Ah! Ah! Ah! - Quefazias tu no pátio da mesquita?

E seus olhos faiscavam maldade.Franjeou:"lheos lábios uma espumabranca de ódio.

Encarei-o com inquietação e as-sombro.

O asselvajado dervixe cruzou osbraços, considerou demoradamenteo recinto com o olhar desnorteado.

Que pretenderia ele de mim? Porque motivo procurava atingir-mecom o veneno de seu rancor?

- Jovem egípcio- reatou numavoz rouquenha e trágica -, por que

8Zhelgagh- Variedade de lagarto, de aspecto repug-nante, encontrado nas regiões desertas. É aplicado co-mo termo injurioso.

abandonastea opulentacaravanadosamigos de teu pai? Ah! Ah! Foi oDestino! A tua vida tomará novo ru-mo: vais cair no fundo de um abis-1110.- Soltou uma risadinha cor-tante e mordaz. - Tua salvação, Ócairota!, estará na tua mão direita.Não levantesnunca tua mão direita.

Súbito, o sacripanta emudeceu.Esgazeou-se-Iheo olhar. Viravae re-virava a cabeça de um lado para ou-tro. Pareceu-me, então, ouvir umsussurro duvidoso, uma toada surdade passos e vozes. O estranho ruídopartia do fundo do palácio.

- Estamos traídos - bradouumâ das testemunhas. - O vizir foiavisado deste casamento!

Decorridospoucosminutos, visur-girem na sala, fazendo retinir suaspesadíssimas espadas, cinco ou seishomens que pareciam oficiaisdo rei.

Um dos recém-chegadosdirigiu-seao velho cheique Kamil e disse-lhesem mais preâmbulos:

- O nobre vizir Sayeg foi infor-mado de que pretendeis unir legal-mente vossa filha Nedjma com umjovem recém-chegado do Egito. Te-

mos ordens para impedir, de qual-quer modo, esseestúpidocasamento.

Estabeleceu-selogo, na sala, gran-de confusão.O dervixeentroua sal- .tar como um demente. As mulheresgritavam. O velho cheique esbrave-java, possesso.Um homemcorpulen-to, mal-encarado, segurou comviolênciaa noiva, tolhendo-a, brutal-mente, pelos braços. Senti que metraspassava um calafrio.

No meio daquela balbúrdia, fiqueiesquecidoa um canto~A escra,vaqueacompanhava Nedjma aproximou-sede mim e segredou-me com aflitivadocilidade:

- Vemcomigo, 6 egípcio!Possolevar-te para lugar seguro!

E, tomando-me pela mão, condu-ziu-me para um canto da sala, ondeuma porta secretaabria para uma es-cada escura e precipitosa.

Na salaninguémdeu pelanossafu-ga.

Descemoslentamentea escada,cu-jos degraus eram irregulares e trai-çoeiros, e chegamos a um aposentofdo e úmido, escavado no subterrâ-

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neo do palácio. Tateávamos, já nu-ma escuridão completa.

A escrava que me servia de guia,no meio das trevas, tirava-me bran-damente pela mão. Eu sentia-lhe apressão delicada dos dedos e o per-

fume inebriante que exalava de seuslongos e sedosos cabelos.

Dentro de alguns minutos iria euter uma das maioressurpresasda mi-nha vida.

Eis o que ocorreu:*

Dez Anos de Kest

Não entres na vereda dos ímpios nemandes pelo caminho dos maus.Evita o pecador; não passes por ele;desvia-te dele e passa de largo.Afasta-te daqueles que comem o pão daimpiedade e bebem o vinho da violência.

SALOMÃO

Interessanteseria, meu amigo, come-çar este conto à maneira dos clássi-cos israelitas, citando cinco ou seispensamentos admiráveis, colhidosnas páginas famosas do TaImude.'

ITa/mude e Pentateuco são dois livros tradicionais paraos judeus. O Ta/mude é uma coleção de leis, tradiçõese costumes dividida em duas partes: o Michma e o Ge-mara. O Michma ou "Segunda Lei" é o compêndio dasleis orais redigidas pelo rabi Jerouda-Ha-Nassi, o San-to, por ocasião da fundação da Academia de Tiberia-des (459 da Era Judaica). Subdivide-se em seis partes.Zerahim, que trata do cultivo das sementes e plantase das regras para o pagamento dos dizimos e primícias;Môed, referente às festas e tempos; Nachin, dedicadoàs mulheres, dissertando sobre esponsais, matrimônio

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Como recordar-me, porém, dos tre-chosmaisbelosda AntologiaHebrai-ca, quando é fraca, incerta eclaudicantea minha memória? Vem-me apenas à lembrança um velho

e divórcio; Nizikim, sobre contratos mercantis e outrosfatos, danos e prejuízos; Dodaskim, das coisas santifi-cadas e serviços do templo; Teharot, das coisas limpase imundas.

O Gemara ou Suplemento do rabi Joachanan é o co-mentário de todos os assuntos do Michma.

Ao Ta/mude de Jerusalém pode-se juntar o da Babi-lônia, redigido em 504 (Era Judaica) por Ascheh e Ra-bina, e terminado pelo rabi Jehosueh.*A continuação corresponde a novo capitulo do roman-ce "Aventuras do Rei Baribê".

provérbio muito citado pelos judeusrussos: "Quando o homem é feliz,um dia vale um ano."

A verdade contida nesseaforismoé indiscutível. E a história que a se-guir vou narrar poderá servir parailustrar a minha asserção.

Vivia em Viena, há mais de meioséculo, um jovem chamado David

. Kirsch,filho de um malamed,2ho-mem prudente e sensato. DavidKirsch adornava o seu espírito comuma qualidade bastante apreciável:não ousava tomar resolução algumade certa relevância sem se sentir es-clarecidoe orientado pelosconselhosdos mais velhos. Quando pensou emcasar-se, ouviu de seu pai a seguinterecomendação:

- Cabe-me dizer-te, meu filho,que deverásevitarqualquercasamen-to, quando deste resultar aproxima-ção, por parentesco, com um roi-ter-id.3

E acrescentou, com a prudênciaque só a longaexperiênciada vidaen-sina aos homens:

2Malamed - professor.3Roiter-id - judeu vermelho.

- Sealgum dia, porém, por umafatalidade, caíres nas garras de umroiter-id, procura, semdemora, o au-xIlio de outro roiter-id!

Quis o jovem David, com grandeempenho, conhecer, mais por curio-sidadedo que por outro motivo, a ra-zão de ser daquele curioso conselho,mas o velhomalamed recusou-seter-minantemente a dar, sobre o caso,qualquer explicação,alegandoque ti-nha, para assim proceder, motivosque de consciêncianão poderia reve-lar.

Algumassemanasdepois, o jovemDavid Kirsch foi procurado por umschatchhen, isto é, um agenciadordecasamentos.

Trocadas as saudações habituais- Scholem Aleichem! AleichemScholem!-, o schatchhen assim fa-lou:

- Como sei que pretendes resol-ver do melhor modo possívelo pro-blema do teu futuro, com a escolhade uma companheira digna, queroinformar-te de que obtive, para o teucaso, uma soluçãoadmirável. A noi-va que tenho em vista é formosa, de

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famíliahonestíssimae, alémdo mais,.muito culta e prendada.

- E o dote? - indagou Davidgrandemente interessado.

- Quanto ao dote - explicoulo-go o schatchhen,com um sorrisoquetraduzia o orgulho de bom profissio-nal -, está combinado que será demil coroas, e terás ainda dez anos de"kest" !

- Dez anos de kest! - repetiuDavid. - Mas isto é espantoso, ina-creditável!

Sou forçado a interromper a pre-sentenarrativa para dar ao leitornão-judeu, isto é, ao meu amigo gói,4um esclarecimentoque me parece in-dispensável.

4Gói- forma com que os judeus, em geral, designamum indivíduo que não é judeu.

O vocábulo "gói" penence ao yidisch.Convém esclarecer o "gói" (ou góim) sobre a ver-

dadeira significação do yidisch.Sob esse nome - derivado do alemão Judisch Ou-

deu) - é conhecido o idioma que falam os judeus daRússia (e dos países que integravam a antiga Rússia Im-perial), da Polônia, da Romênia, da. Áustria, da Hun-gria e, também, aqueles que emigraram para a América.Em yidisch são publicados centenas de jornais, revis-tas, obras literárias e até livros de ciência. Em NovaYork, onde vivem milhões de judeus, há teatros que re-presentam peças traduzidas para o yidisch ou escritasdiretamente nesse idioma.

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o "kest" é costumetradicionalen-tre os judeus. O pai da noiva, alémdo dote (que é de uso também entreos cristãos), concede ao genro, a tí-tulo de aUXIliopara iniciar a vida, apermissão de viver, durante algumtempo, em sua casa, sem fazer a me-nor despesa,quer coma alimentação,quer mesmo com o vestuário. Esseperíodo, durante o qual o pai da jo-vem toma a seu encargo a subsistên-cia completa dos recém-casados, édenominado kest e, em geral varia deum a três anos.

Para um jovem egoísta, sem âni-mo para a vida, pou~o inclinado aotrabalho, a oferta de um kest prolon-gado constitui uma isca irresistível.Era esse,precisamente,o caso de Da-vid Kirsch, indolente como um falsomendigo, amigo da boa vida e do fe-riado permanente.

No yidisch o vocabulário alemão entra com 60 porcento dos termos e expressões. A pane restante é cons-tituída de palavras adaptadas ou tomadas do hebreu,do russo, do romeno etc.

Um dos escritores mais populares na pujante e notá-velliteratura yidisch é Scholem Aleichem, humoristade renome universal.

Dez anos de kest?Umjudeu sensato não poderia he-

sitar. A cerimônia do noivado, coma clássicaapresentação das famílias,foi marcada para alguns dias maistarde.

Quando David Kirschfoi levado àpresença de sua noiva, ficou mara-vilhado: o schatchhen não o haviailudido, pintando com as éores vivasdo exageroos encantosda noiva pro-metida. A meninaera uma judia real-mente graciosa, e os dez anos de kestemprestavam-lhe ao olhar, ao sorri-

- so e aos lábios todos os ímãs incon~cebíveisda beleza. Rebla, a filha dorei de Gorner, não parecera mais en-cantadora aos olhos do grande 8alo-mão!

Dolorosafoi, porém, a surpresadonoivo judeu ao defrontar, pela pri-meira vez,com seu futuro sogro. Erao velho um tipo perfeito e inconfun-dível de roiter-id!

Naquelemomentorecordou-seDa-vid, com pavor, do conselho que aprudência paterna lhe ditara: "Evi-tar qualquer aproximação, pelo ca-samento, com um roiter-id!" Mas

que fazer naquela dificuldade?A suapalavra estava dada; ademais,.acimade qualquer compromisso, os dezanos de kest constituíam um argu-mento irrespondível diante do qualdesapareciam todos os motivos quemilitavam contra o consórcio que selhe afigurava tão promissor.

Pouco tempo depois realizou-seoenlacenupcial e o jovem passou a vi-ver, com sua adorada esposa, o seubelo período de kest, na casa do ricoroiter-id.

"Esse judeu vermelho", pensouDavid, desconfiadocom ocaso, "al-guma peça prepara contra mim.Custa-meacreditarque elemantenhaa sua promessa dos dez anos de kest.Naturalmente aqui, em sua casa, te-rei um tratamento tão vile humilhan-te, que nem mesmo um cão seriacapaz de aturar, e ao fim de dois outrês meses,é certo, sereiforçado, pelasituação, a procurar outro pouso etrabalho. Alguma coisa desagradá-vel o meu sogro já planejou contramim!"

Com grande espanto, entretanto,o jovem David verificouque o pai de

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sua esposa era de um feitio que des-mentia por completo seus temores.edesconfianças.O roiter-id mostrava-se delicado e afetuoso, e dispensavaao seu novo genro um tratamentoprincipesco:fazia multiplicaros pra-tos saborosos nas refeições, propor-cionava-lhe passeios agradabilíssi-mos, dava-lhe roupas finas e enchia-o de presentes valiosos.

"Meu pai não tinha razão", me-ditava o jovem, refletindo sobre a vi-da regulada e invejável que desfru-tava em casa de seu sogro. "Que ou-tro marido poderá ser mais feliz doque eu? Rivekelê,sa minha esposa,é encantadora; por longoprazo, semo menor trabalho ou contrariedade,terei, nesta casa, mesa sempre lauta,agasalho, carinho e consideração!"

Ao cabo de alguns dias, o velhoroiter-id chamou o indolente maridode sua filha e interpelou-o, muito sé-rio.

- Diz-me,ó David! És na verda-de feliz, na tua nova situação de ho-mem casado e chefe de família?

SRivekelê - diminutivo carinhoso.

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- Muito feliz, meu sogro - con-firmou o jovem. - Sinto-meaqui in-comparavelmente feliz!

- Se assim é - tornou, grave-mente, o judeu vermelho -, o teukest está terminado!

- Terminado o meu kest? - ex-clamouatônito o marido parasita. -Mas se eu estou casado há poucomais de uma semana!Como pode seristo?

- Como pode ser? - repetiu osogro num tom muito sério. - Na-da mais simples. Estás casado comminha filha há dez dias. Bem sabesqu~ "para um homem feliz, um diavale um ano". Logo, de aCQrdocomesse tradicional provérbio, estás ca-sado há dez anos! Amanhã, portan-to, levarás de minha casa tua esposae irás para a tua residência.Creioquedeverás, também, procurar um em-prego, um meio qualquer de vida,pois de mim já recebeste o necessá-rio auxílio, o dote e o kest prometi-dos.

Diante da imposição do sogro,.sentiu-seo nossoherói presode gran-de furor. Quis apresentar argumen-

tos que militavamem seu favor, maso astucioso roiter-id manteve-se in-transigente e não houve como levá-10a reconsiderar a resolução que to-mara, insistindo em afirmar que na-da fazia senão atender à verdadecontida no provérbio: "Quando ohomemé feliz,um dia valeum ano."

David Kirsch não se conformavacom a idéia de ser obrigado a traba-lhar para viver;e a situação a que fo-ra, derepente,atirado, envenenou-lheo espírito com todas as toxinas dorancor. Tinha sido, a seu ver, indig-no o proceder do pai de Rivekelê.Prometera-lhe,sob palavra, dez anosde kest,e depois,comevidentemá-fé,baseando-senum idiota brocardo ju-deu, reduzirao prazo a dezdias! Quetratante! Era um grande velhaco oroiter-id! Quando o interesseestavaem jogo, sabia transformar um pro-vérbio em lei social!

- Meu pai tinha razão - mur-murou David. - Pratiquei uma im-prudência muito séria, fazendo-mesurdo aos conselhosdaqueleque, me-lhor do que eu, deveconhecera vidae os filhos de Israel!

E, resolvido a não incidir maisuma vezno erro, o jovem, recordan-do-se da segunda parte do conselhopaterno, foi, nesse mesmo dia, pro-curar um conhecido seu, chamadoElias Bloch, também judeu verme-lho, e pediu-lhe que indicasse ummeio que lhe permitissesair da situa-ção crítica em que se encontrava.

O inteligente Elias Bloch atendeucom amabilidade o jovem David e,depoisde ouviro minuciosorelato daburla do kest, respondeu pachorra-mente:

~ Não vejo dificuldade algumaem resolver o teu caso. Irás amanhãà casa de teu sogro, e se seguiresasminhas instruções, sairás vencedornesse litígio.

No dia seguinte,DavidKirsch,ten-do nas mãos um exemplarda Torah6- que é o livroda leientre os hebreus-, foi ter à rica vivendado seu astu-cioso sogro.

6Torah - em sentido amplo, "lei". "ensinamento".Em sentido mais restrito, designa a Torah o conjuntoda lei, escrita e oral, isto é, a Bíblia, a Mishner e o Tal-mude. Em linguagem corrente pode designar apenas oPentateuco, que é a Torah de Moisés.

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Depois de saudar o velho roiter-idcom reserva e cerimônia, como se asrelaçõesentre ambos estivessempro-fundamente abaladas, assim falou:

- Por motivo muito grave souforçado a vir agora à sua presença.Vou divorciar-me!

Divórcio!Essapalavrapara a famí-lia judaica representa uma calamida-de só comparável às maiores cala-midades.7

- Estáslouco,rapaz!- desde-nhou o velho com um sorriso meioamarelo. - Bem sabes que o divór-cio só pode ser obtido segundo a leide Moisés. Que motivo poderá seraduzido para justificativa dessa nó-doa infamante que pretendes lançarcontra a minha família?

- Tenho a leia meu favor - rea-giu com altivez o moço. - Vivi, co-mo o senhormesmodeclarou,em suacompanhia, os dez anos de kest. Os

7DivÓrcio~~ressante indagar como foi o proble-ma do divórcio encarado pelos sábios israelitas que com-puseram o Talmude.

Vale a pena sublinhar, no famoso livro da Lei, estepensamento admirável:

"Quando uma esposa é repudiada pelo marido, umestremecimento de horror agita a terra inteira."

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doutores e rabis não ignoram que oLivro da Leide Moisés- a Torah-diz com a maior clareza: "Quando amulher não concebe, ao fim de dezanos, o maridopode requerero divór-cio." Ora, eu estou casado há dezanos e não tenho filhos;cabe-mepor-tanto, segundo a Lei, o direito de re-pudiar minha esposa!

- Que brincadeira é essa, meu fi-lho? - apaziguou o roiter-id, abra-çando amavelmente o genro. -Afastemos de nós as idéias tristes,pois já não foi pequeno o susto comque abalaste meu coração de pai. Fi-zestemalemtomar a~sérioo meugra-cejo sobre o tal provérbio dos diasfelizes, e se assim é, fica o dito pelonão dito. Se eu prometi dez anos dekest, é certo que poderás viver todoesse tempo em minha casa!

E concluiu, com orgulho, passan-do a mão lentamente pelos cabelosavermelhados.

- Jamais deixei, menino, comoum bom judeu, de cumprir a palavradada.

(De "Lendas d ovo de Deus")

- Estás louco, rapazI - desdenhou o velho com um sorriso meio amarelo. - Bem sabes queo divórciosó pode ser obtido segundoa lei de Moisés.

Olhos Pretos e Azuis

Que a tua sabedoria não seja uma humilhação pa-ra o teu próximo. Guarda domínio sobre ti mes-mo e nunca te abandones à tua cólera. Se aspirasà paz definitiva, sorri ao Destino que te fere; nãofiras a ninguém.

Terminada a exposição feita por Be-remiz sobre os problemas famo~os daMatemática, o sultão, depois de con-ferenciar em voz baixa com dois deseus conselheiros, assim falou:

- Pela resposta dada, ó calculis-ta, a todas as perguntas, fizeste jus aoprêmio que te prometi. Deixo portan-to à tua escolha. Queres receber vin-te mil dinares em ouro ou preferespossuir um palácio em Bagdá? Dese-jas o governo de uma província ouambicionas o cargo de vizir na minhacorte?

- Rei generoso! - respondeuBe-remiz profundamente emocionado.

OMAR KHA YY AM

- Não ambiciono riquezas, títulos,homenagense regalos,porque seiqueos bensmateriaisnada valem;a famaque pode advir dos cargos de prestí-gio não seduz,poiso meuespíritonãosonha com a glória efêmera do mun-do. Se é vosso desejo tornar-me, co-mo dissestes, invejado por todos osmuçulmanos, o meu pedido é o se-guinte: - Desejo casar-mecom a jo-vem Telassim filha do cheique IezidAbul-Hamid.

O inesperado pedido formuladopelo calculista causou indizível as-sombro. Percebi, pelos rápidos co-mentários que pude ouvir, que todos

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os muçulmanos que ali se achavamnão tinham mais dúvida alguma so-bre o estado de demênciade Beremiz.

- É um loucoessecalculista- di-ziam. - Despreza a riqueza e rejeitaa glóriapara casar-secomumajovem'que nunca viu!

Quando o califa AI-Motassimou-viu o pedido do astucioso Beremiz,disse-lhe:

- Não farei, ó calculista, oposi-ção alguma ao teu casamento com aformosa Telassim. É bem verdadeque essajovemjá estava prometida aum dos cheiquesmais ricos da corte;uma vez, porém, que ela própria de-seja mudar o rumo de sua vida -maktub! - sejafeitaa vontadedeAl-lah!

"Imponho, entretanto - prosse-guiu, enérgico, o soberano -, umacondição. Terás, ó exímiomatemáti-co, de resolver,diante de todos os no-bres que aqui se acham, um curiosoproblema inventado por um dervixedo Cairo. Se resolveres esse proble-ma, casarás comTelassim; caso con-trário, terásque desistir,para sempre,

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dessa fantasia louca de beduíno quebebeu haxixe.* Serve-tea proposta?

- Emir dos Crentes! - retorquiuBeremiz com muita tranqüilidade efirmeza. - Desejo, apenas, conhe-cer os termos do aludido problema,a fim de poder solucioná-Io, com osprodigiosos recursos do Cálculo e daAnálise!

Respondeu o poderoso califa:- O problema, na sua expressão

mais simples,é o seguinte:Tenho cin-co lindas escravas; comprei-as, hápoucos meses, de um príncipe mon-gol. Dessascincoencantadoras meni-nas, duas têmos olhospretos,e as trêsrestantes têm os olhos azuis. As duasescravas de olhos pretos, quando in-terrogadas, "dizem semp~ea verda-de"; as escravas de olhos azuis, ao

*Haxixe- substância narcótica preparada com folhassecas e hastes tenras do cânhamo. Os árabes, dados aouso da embriaguez, fumam ou comem esse perigoso en-torpecente, que é um veneno para o organismo. O ha-xixe embebeda como o ópio, e o seu uso conduz sempreà imbecilidade e à loucura.

É de estranhar que Malba Tahan tenha escrito "be-ber haxixe", quando, na verdade, essa substância é in-gerida de mistura com a madjum - que é uma espéciede massa feita de manteiga, mel, noz moscada e cravo(B.A.B.).

contrário, são mentirosas, isto é,"nunca dizem a verdade" . Dentro dealguns minutos, essas cinco jovens se-rão conduzidas a este salão; todas elasterão o rosto inteiramente oculto porespesso véu. O "haic" que as envol-ve torna impossível distinguir-se, emqualquer delas, o menor traço fisio-nômico. Terás que descobrir e indi-car, sem a menor possibilidade deerro, quais as raparigas de olhos pre-tos e quais as de olhos azuis. Poderásinterrogar três das cinco escravas, nãosendo permitido, em caso algum, fa-zer mais de uma pergunta à mesma jo-vem. Com. auxílio das três respostasobtidas, o problema deverá ser resol-vido, sendo a solução justificada comtodo rigor matemático. E as pergun-tas, ó calculista, devem ser de tal na-tureza que só as próprias escravassejam capazes de responder com per-feito .conhecimento.

Momentos depois, sob os olharescuriosos dos circunstantes, apareciamno grande divã das audiências as cin-co escravas de AI-Motassim. Apre-sentavam-se cobertas com longos

.véus negros da cabeça até os pés; pa-

reciam verdadeiros fantasmas dodeserto.

Sentiu Beremizque chegara o mo-mentodecisivodesua carreira.O pro-blema formulado pelo califa deBagdá, sobre seroriginale difícil,po-deria envolver embaraços e dúvidasimprevisíveis.

Ao calculistaseriafacultadaa liber-dade de argüir três das cinco rapari-gas. Como, porém, iria descobrirpelasrespostas, a cor dos olhosde to-das elas?Quaisseriamas três a sereminterrogadas? Como determinar asduas que ficariam all}eiasao interro-gatório?

Havia uma indicação preciosa: asde olhos pretos diziam sempre a ver-dade; as outras três (de olhos azuis)mentiam invariavelmente.

E isso bastaria?Vamos supor que o calculista in-

terrogasseuma delas. A pergunta de-veria ser de tal natureza que só aescrava soubesse responder. Qbtidaa resposta, continuaria a dúvida. Ainterrogada teria dito a verdade? Te-ria mentido? Como apurar o resul-

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tado, se a resposta certa não era porele conhecida?

O casoera, realmente,muito sério.As cincoembuçadas colocaram-se

em fila no centro do suntuoso salão.Fez-se grande silêncio. Nobres mu-çulmanos, cheiquese viziresacompa-nhavam com vivo interesse o des-fecho daquele novo e singular capri-cho do rei.

O calculista aproximou-se da pri-meiraescrava(queseachavano extre-mo da fila, à direita) e perguntou-lhecom voz firme e pausada:

- De que cor são os teus olhos?~or Allah! A interpelada respon-

deu em dialeto chinês, totalmentedesconhecidopelosmuçulmanospre-sentes!Beremizprotestou. Não com-preendera uma única palavra daresposta dada.

Ordenou o califa que as respostasfossem dadas em árabe puro, e emlinguagem simples e precisa.

Aquele inesperado fracasso veioagravar a situação do calculista.Restavam-lhe, apenas, duas pergun-tas, pois a primeira já era considera-da inteiramente perdida para ele.

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Beremiz, que o insucessonão ha-via conseguido desalentar, voltou-separa a segundaescrava e interrogou-a:

- Qual foi a resposta que a suacompanheira acabou de proferir?

Disse a segunda escrava:- As palavras dela foram: "Os

meus olhos são azuis."Essa resposta nada esclarecia. A

segunda escrava teria dito a verdadeou estaria mentindo? E a primeira?Quem poderia confiar em suas pala-vras?

A terceira escrava (que se achavano centro da fila) foi interpelada, aseguir, pelo calculista, da seguinteforma:

- De que cor são os olhos dasduas jovens que acabo de interrogar?

A essa pergunta - que era, aliás,a última a ser formulada - a escra-va respondeu:

- A primeira tem os olhos pretose a segunda olhos azuis!

Seriaverdade? Teria ela mentido?O certo é que Beremiz, depois de

meditar algunsminutos, aproximou-se tranqüilo do trono e declarou:

Comendador dos Crentes!'';ombra de Allah na Terra! O proble-11IiI proposto está inteiramente resol-vido, e a sua solução pode sert"lIlInciadacom absoluto rigor mate-IlIíHico. A primeira escrava, à direi-111,tem os olhos pretos; a segundah'lUos olhos azuis; a terceira tem osolhos pretos, e as duas últimas têmo!tolhos azuis!

Erguidosos véuse retirados os pe-..udos"haics" , asjovens apareceramIjorridentes, os rostos descobertos.

()uviu-se um "ailá" de espanto noBrandesalão. O inteligente Betemizhavia dito, com precisão admirável,11cor dos olhos de todas elas!

- Pelas barbas de Maomé! - ex-damou o rei. - Já tenho propostoesse mesmo problema a centenas de'lábios, ulemás, poetas e escribas, e,ufinal, essemodestocalculistaé o pri-meiro que consegue resolvê-Io! Co-mo foi, Ójovem, que chegaste a essa'4olução?De que modo poderás de-monstrar que não havia, na respostafinal, a menor possibilidadede erro?

Interrogado dessemodo pelogene-

roso monarca, o "Homem que Cal-culava" assim falou:

- Ao formular a primeirapergun-ta "Qual é a cor dos teus olhos?",eu sabia que a resposta da escravase-ria fatalmente a seguinte: "Os meusolhos são pretos!" Com efeito, se elativesseos olhos pretos diria a verda-de, isto é, afirmaria: "Os meus olhossão pretos!" Tivesseela os olhos a-zuis, mentiria,e, assim,ao responder,diria também: "Os meus olhos sãopretos!" Logo, eu afirmo que a res-posta da primeira escrava era umaúnica, forçada e bem determinada:"Os meus olhos são pretos!"

Feita, portanto, a pergunta, espe-rei pela resposta que previamenteco-nhecia. A escrava, respondendo emdialeto para mim estranho, auxiliou--me de'modo prodigioso. Realmente.Alegando não ter entendido o arre-vezado idioma chinês, interroguei asegunda escrava: "Qual foi a respos-ta que a sua companheira acabou deproferir?" Disse-mea segunda: "Aspalavras dela foram: "Os meusolhossão azuis!" Tal resposta vinha de-monstrar que a segundamentia, pois

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essa não podia ter sido, de forma al-guma, como já provei, a resposta daprimeira jovem. Ora, se a segundamentira, era evidente que tinha osolhos azuis. Reparai, ó rei! Nessaparticularidade notável para a solu-ção do enigma! Das cinco escravas,nesse momento, havia uma cuja in-cógnita estava, pois, por mim resol-vidacom todo rigor matemático.Eraa segunda. Havia faltado com a ver-dade; logo, tinha os olhosazuis. Res-tavam ainda quatro incógnitas doproblema.

Aproveitando a terceira e últimapergunta, interpelei a escrava que seachavano centroda fila: "De que corsão os olhosdas duas jovensque aca-beide interrogar?" Eis a respostaqueobtive: "A primeiratemos olhospre-tos e a segunda olhos azuis!" Ora,em relação à segunda eu não tinhadúvida, conforme já expliquei. Queconclusão pude tirar, então, da ter-ceira resposta? Muito simples.A ter-ceira escrava não mentira, pois

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confirmara que a segunda tinha osolhos azuis. Se a terceira não menti-ra, seus olhos eram pretos e as suaspalavras eram a expressão da verda-de, isto é, a primeiraescravatinha osolhos pretos. Foi fácil concluir queas duas últimas, por exclusão, à se-melhança da segunda, tinham osolhos azuis!

E o calculista concluiu:- Posso asseverar, ó rei do Tem-

po!, que nesseproblema,embora nãoapareçam fórmulas, equações ousímbolosalgébricos, a solução, paraser certa e perfeita, deve ser obtidapor meiode um raciocíniopuramentematemático!

Estava resolvidoo problemado ca-lifa. Outro, muito mais difícil, Bere-miz seria, em breve, forçado aresolver:Telassim, ou sonho de umanoite em Bagdá!

Louvadoseja Allah, que criou a I

Mulher, o Amor e a Matemática!

(De "O Homem que Calculava") I

II

~I

Parábola das Mães Felizes

(De um poema árabe do séc. XII)

A jovem mãe ia, enfim, iniciar agrande jornada pela estrada incertada vida. E perguntou, muito tímida,ao Anjo Bom do Destino:

- É longoo caminhoa percorrer,Senhor? Serei feliz com os meus fi-lhos que tanto amo e estremeço?

Respondeu-lhe, sereno e terno, oAnjo Bom do Destino:

- O caminho que se abre diantede ti é longo, muito semeado de an-gústias, recortado de dores e tapeta-do de fadigas. Antes de alcançares acurva extrema, virá a impiedosa ve-lhice ao teu encontro. Ainda assim,asseguro-te que os teus derradeirospassos serão mais cheios de alegriaeencantamento do que os primeiros.

E a jovemmãepartiu. Sentia-seex-

tremamente ditosa em companhia deseusfilhinhos.A existêncialhe decor-ria sob o véu de um deliciosoencan-tamento. Brincava com os pequeni-nos; colhiapara eles,unicamentepa-ra eles, as mais lindas flores queadornavam os caminhos do mundo.E o sol brilhava, inundando a terracom a bênção de suas torrentes deluz. E o dia se escoava tão sereno,que a jovem mãe murmurou, fitan-do, enternecida, o céu azul.

- Nada haverá, Senhor, de maisbelo! Jamais serei, na companhia demeus filhos, mais feliz do que souagora!

A noite veio, porém, alongandosobre a terra o seu manto pesado esombrio. Nuvens disformes amon-

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toaram-se no firmamento:. desabouo temporal. O vento norte uivavaco-mo um chacal faminto pelos areaissem fim. Os pequeninos, tolhidos defrio, trêmulos de medo, soluçavam.A jovem mãe destemidaaconchegou-os a si, agasalhando-os sob sua túni-ca, e as crianças, bem abrigadas eprotegidas, murmuraram docemen-te, docemente murmuraram:

- Ó mãezinha querida! O medojá não mais se abriga em nossos co-rações! A teu lado, mãezinha adora-da, nenhum mal nos alcançará!

E a jovem mãe exclamounum ím-peto de alegria:

- Isto para mim, ó Deus!, é maisbeloe grandiosodo que a jornada pe-lo caminho tranqüilo, sob o esplen-dor do dia! Sinto-me,realmente,feliz!Mais feliz do que ontem! Contra atormenta protegi meus filhos e lan-cei, para sempre,em seuspequeninoscorações,a sementedo destemore dacoragem!

Passou a noite. Louvado sejaDeus!A noite passou. Raiou, esplên-dida e balsâmica, a alvorada. A es-trada, naquele terceiro dia, se esten-

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dia ladeirenta pelo dorso de uma mon-tanha alcantilada e perigosa. Era for-çoso subir. Subir muito. Os pequeni-nos sentiam-se fatigados. A jovemmãe, quase desfalecida de sede e decansaço. Fazendo, porém, das fibrascoração, mostrava-se animosa, e, semcessar, dizia aos filhos:

- Vamos! Para cima! Breve che-garemos ao alto! Vamos! Subamossempre! Subamos!

E essas palavras multiplicavamI

energias que o esforço constante eI

excessivo queria aniquilar. E as crio'anças iam subindo, subindo... Che.

garam, finalmente, ao cimoda mon-otanha. A jovem mãe os enlaçou, eJ 1tão, em seus braços carinhosos. U'eles lhe disseram:

- Ó mãezinha querida,. sem ~

não teríamos conseguido vencer e!I

tas escarpas, contornar estes abism~e levar a bom termo esta jornacP ~Sem o teu auxílio incomparável ~"Icumbiríamos em meio da escalad~Sabemos; agora, como superar ~grandes tremedais da sorte! ~

E a delicada mãe, ao repousar rf

quele dia, semimorta, exclamou ar-rebatada:

- Ó Deus, clementejusto! O diade hoje foi para mim melhor aindado que o de ontem!Sinto-memaisfe-liz! Mais felizdo que nunca! Ensineimeus filhos a enfrentar, bravamen-te, os revesese as tristezas da vida!

No quarto dia, estranhas nuvenscor de chumbo cruzaram o céu. Um

'1rugido surdo, que parecia partir dasI prófundezas ignoradas da terra, en-

~

chia o ar, soturnamente. De súbito,a imensa montanha tremeu: rochasdescomunais desprenderam-se e ro-laram com estrondo para os abismos

.-apavorantes...e. Era o cataclismo que começava.

Gão altas e densas erguiam-se as co-lunas de pó, que chegavam a cobrir

~ '1face do sol. E as trevas da noite des-.~.~eram sobre a terra em pleno dia. A~:norte, com suas garras de fogo, ron-i~~~avapor toda parte. Nem tenda ha-'dia, nem caverna ou abrigo, onde um~ ~r humano pudesse ter segura a cur-ê l vida. As crianças, presas de cru-~I iante pavor, choravam. E a jovemF '1ãe, serena e forte, lhes dizia:

- Em Deusconfiai, meus filhos!Olhai para cima! Deusnão nos aban-donará!

E os pequenosconfiaramem Deus.E Deusos livrouda fúria infrene. Aofindar aquele dia, a mãe exclamouem êxtase, erguendohumildepara oscéus.os seusolhos cheiosde gratidão:

- Este foi o dia melhor de minhavida, Senhor! Ensinei meus filhos acrer em Vós, a confiar em Vós, só emVós, ó Deus Misericordioso!

Amontoaram-se os dias; sucede-ram-seos meses;os anos passaram...E a mãe, toda entregue a felicidadee ao bem-estar dos filhos, não sentiuo rolar intérmino do Tempo. Os seusformosos cabelosfizeram-se.brancoscomo a neve; o brilho desapareceu-lhe dos olhos; a face tracejou-se-Ihede rugas. Era, enfim, a velhice quechegava.Mas que encanto para a suavida de mãe! Os filhoscrescidos,for-tes, cheiosde alegria, pareciam redo-brar em si a boa seiva que delapartira. Ela, a mãe feliz, curvada aopeso da vida, já mal podia caminhar.Os filhos, porém, ali estavam, a seu

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lado, para servi-Ia, honrá-Ia eobedecer-lhe!

O mais velho dizia-lhe, carinhosoe com desbordante afeto:

- Mãezinha! Quero hoje carre-gar-te em meusbraços!Estás tão fra-ca e cansada!

Protestava o mais moço com en-tusiasmo:

- Que egoísmoé esse, meu caro!Hoje é meu dia! Eu, sim, é que ireicarregar a mãezinha querida!

E a mãe feliz sorria a um, abraça-va a outro; beijava a ambos.

Que bons e delicados lhe eram osfilhos. Sim, para o coração materno,fizera pausa o Tempo. Eles eram,ainda, os seusfilhinhos,os ternos, es-tremecidos... E ela sentia-se tão fe-liz, tão feliz,que não achavapalavrascom que agradecer a Deus!

Um dia, afinal, a mãe ditosa reu-niu os filhos e disse-lhes, num fiozi-nho de voz:

- A minha tarefa está finda,meus filhos. Vou deixar-vos. Irei pa-ra longe, para muito longe daqui...

O mais velho dizia-lhe,carinhosa-mente:

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- Pois iremoscontigo,mãezinha!Ninguém nos poderá separar de ti!

Ela, não sustendoas lágrimase dei-xando-asdeslizar,insistiucommeigui-ce:

- Não, querido.Destaveztereideir só. Partirei sozinha.

E eles, afeitos à obediência, maisuma vez obedeceram.E a boa velhi-nha partiu. Foi indo, vagarosamente,toda acurvada, trêmula...

Diante dela, no extremo do cami-nho, abriram-se dois largos portõesque refulgiam cheiosde luz. Entrou.Uma voz,que" maispareciaum cân-tico de glória, lhe dizia com infinitamansuetude:

- Vindea mim, ó mãe feliz!Vin-de a mim!

Os filhos, que a vigiavamde longe,viram-na, de repente, desaparecer:

- Ela partiu para sempre!Não averemosnunca mais!Nunca mais!-exclamaramemocionados. - Mas asanta lembrançadessamãequeridavi-verá para sempreem nossoscorações!Eduquemos nossos filhos como elanos educou:na bondade, na obediên-cia, no amor...

E no silêncio da tarde que caía, len-tamente, ouvia-se o sussurro de umchorar longínquo. Calaram-se todos.

Que seria? Era o filho mais moço.O rosto entre as mãos, inconsolável,soluçava de joelhos, à margem da vi-

da, com a dor da saudaae a negrejar-lhe o coração:

- Minha Mãe!Minha Mãe queri-da!

(De "Minha Vida Querida")

A Lenda dos Cinco MaisCinco

Livra-me, meu Deus, das mãos do ímpio, dasmãos do homem injusto e cruel.

. DAVI. Salmos;- 71-4

Em nome de Allah, Clemente e Mi-sericodioso...

Afirmam os matemáticos, assegu-r~ os pacientes calculistas, que a so-ma cinco mais cinco é sempre cons-tante e igual a dez. Por Allah, o Exal-tado! Que deplorável ingenuidade!Muitos casos há, posso garantir, emque a conta de cinco mais cinco ofe-rece resultados que vão muito além dototal previsto pelos crédulos e fanta-siosos algebristas.

Como pode ser isso? perguntará,

certamente, o leitor semprealerta pa-ra cooperar com a Verdade. Comopode ser isso?

Cabe-meesclarecera dúvida e res-tabelecer o prestígio da Aritmética,narrando um singular episódioocor-rido no reinado do famoso califa AI-Mutawakil, que a História, sempresevera em seus julgamentos, incluientre os maisgloriosos soberanos doPaís dos Árabes.

AI-Mutawakil (que Allah o tenhaem sua paz!) chamou um dia o seu

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digno vizir Calil Sadek e disse-lhe:- Minha esposa Djohar comple-

ta amanhã o seu vigésimo terceiroaniversário. Quero surpreendê-Ia eencantá-Ia com um presente originale valioso, lallah! Pretendo mimosearDjohar com um adereço feito de pé-rolas.. Irás, agora mesmo, ao suquedos mercadores e procurarás, entreos joalheiros, aquele que tiver as ge-mas mais raras para vender.

O honrado e prestimoso Sadek,inclinando-se diante do seu podero-so amo, respondeu:

- Escuto e obedeço, ó Príncipedos Príncipes!

E, semperda de tempo, partiu pa-ra o grande bazar de Bagdá (tambémchamado suque), onde se reuniam, apartir da primeiraprece, os mercado-res mais ricos e opulentos da cidade.

A sorte favoreceu o bom vizir dorei. Seguindo as informações de umescriba, conseguiu descobrir um pe-roleiro damasceno que se dispunha avender, por preço bastante razoável,pérolasbelíssimas,colhidas(diziaele)entre as ondas revoltas do mar deOmã.

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Uma hora depois, o prestativo Sa-dek, seguido do peroleiro, ingressa-va no divã real, isto é, na sala deaudiência do califa.

Imensa foi a satisfação com queAI-Mutawakil recebeu o seu insigneministro:

- É esse, ó Sadek!, o mercadorque vende pérolas?

E enquanto fazia essa pergunta ocalifa observava, com discreta curio-sidade, o peroleiro, correndo-o como olhar da cabeçaaos pés. O sírio eraum homem alto, de meia-idade, om-bros largos, rosto redondo e peque-nos olhos vivos. Usava barba bemcuidada e vestia-se com a sobrieda-de de uma pessoa fina e de bom gos-to. Alémde larga faixa, característicados cheiques, ostentava um turban-te de seda cor de tâmara com frisosbrancos. Mantinha sob o braço es-querdo pesada bolsa de couro.

- Emir dos Crentes!- informouo vizir Sadek, com voz pausada -,este damasceno, segundo informa-ções que colhi, é pessoa de bem e go-

IDjohar. em árabe, significa pérola.

za ae bom conceito no suque dosmercadores.Traz da velhaDamasco,seu berço, UI11acoleção de pérolas edeseja vender essa preciosidade porpreço bem razoável. É possível quea mercadoria desse rico peroleiropossa agradar ao Vigário de Allah,nOSSOamo e Senhor!

AI-Mutawakil (assim diziam osseus biógrafos) não era homem quelevasse indecisões na garupa de seucamelo; voltou-se, pois, para o chei-que do turbante cor de tâmara e as-sim falou:

- Diz-me o teu nome, ó irmãodos Árabes! Mostra-me as tuas pé-rolas e faze-meconhecero preço quepretendes auferir de tua mercadoria.

Interpelado dessemodo pelo rei, omercador sírio ergueu o rosto e pro-feriu bem alto, placidamente, o salãdos caravaneiros:

- Que Allah, o Exaltado, colo-que sob os pés do Príncipe o tapeteda paz e a areia clara da facilidadee da glória! Me/il elbilad el-Kabir!(salveo grande rei do país!) Chamo-meEliasDaud Batah, mas os homensda minha terra apelidaram-me o

"Cheique dos Imprevistos", pois seiresolver de maneira diferente, e im-previsível, os pequenos e grandesproblemasda vida. Aqui estão, ó Su-cessordo Profeta!, as pérolasque de-sejo vender.

Descerrou o mercador a larga bol-sa e retirou duas pequenas caixas demadeira. Abertas as caixas, o rei nãoocultou o seu deslumbramento. Ca-da uma delas, sobre um fundo de ve-ludo roxo, continha ciaco pérolasenormes de impecável beleza.

- As cinco pérolas - informouo sírio apontando para uma das cai-xas - que se acham nesta caixaama-rela são verdadeiras.Valemum tesou-ro e são dignas da virtuosa esposa denosso generoso e querido califa. Asoutras, que se acham na caixa éscu-ra, tão lindas como as outras, sãofalsas!Inteiramentefalsas!Nesta ori-ginal coleçãode dez pérolas, é difícil,quase impossíveltalvez, ao mais ex-'perimentado perito, distinguir umapérola falsa de uma verdadeira, poisas ilegítimasapresentam requintesdeperfeição, ao passo que nas autênti-cas percebemos, depois de acurado

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exame,pequeninasmanchase ligeirossenões. E isso acontece, ó Rei do Tem-po!, porque a Verdade,em sua singe-leza, tem muitas vezesa aparência daimpostura e da fraude, ao passo quea Mentira, para iIaquear a boa-fé,reveste-secom todas as cores da au-tenticidade e da exatidão.

-, E quanto queres, ó Cheiquedos Imprevistos!, pelas tuas pérolasfalsase verdadeiras?- indagou comimpaciência o califa.

O mercador, depois de refletir du-rante alguns instantes, assim falou:

- Cada pérola verdadeira custaapenas dez dinares; cada pérola fal-sa custará quinhentos dinares. Maseu só venderei as cinco legítimasàquele que adquirir, também, as cin-co imitações.

AI-Mutawakil, ao ouvir aqueladesconchavadaproposta, cruzou umsorriso. E, comos olhos firmes,meioperplexos:- Pela memória do nosso Profe-ta, ó Mercador de Damasco! Uala-lu! É bem estranho que procuresvender o falso cinqüenta vezesmaiscaro que o verdadeiro.O certo, o jus-

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to, o curial seria que as pérolas au-tênticas custassemquinhentos ou mildinares cada uma e que as ilegítimasfossem vendidas, em conjunto, pormeia dúzia de moedas!

- Peço perdão, ó Reidos Árabes-, volveu em tom de cerimônia omercador. - Vejo-meforçadoa dis-cordar de vosso respeitável parecer.A longa experiênciada vida ensinou-me que, na realidade, o homem pa-ga sempre,pelo que é enganosoe fal-so, muito mais do que despende poraquilo que é verdadeiro e sincero.Um amigofalso, por exemplo,custa-nos caro, ao passo que um apúgo leale dedicado não nos causa dissaboresnem prejuízos. O jovem que faz umcasamento falso arrepende-se; pagacom as intermináveis amarguras daexistência o passo errado que à ilu-são de um momento o levou a prati-car; aquele que escolhe uma boaesposae realizaum matrimônio acer-tado e feliz, prospera e enriquece.Ainda desta vez o falso custou caro.O verdadeiro deixou a impressão denão ter custado meio sequim em re-lação ao lucroque proporcionou. Ba-'

seado em tais argumentos, delibereifixar para as minhas pérolas preçosbem diversos, e essespreços, ao es-pírito menosavisado, podemparecerdesconexos: as falsas custam cin-qüenta vezesmais caro que as verda-deiras! Faço, nas minhastransações,a imitação exata da vida!

AI-Mutawakil, arguto e inteligen-te, percebeu que a intenção dó mer-cador era fazer-se diferente e origi.:naI. Queria justificar o apelido"Cheique dos Imprevistos". E resol-veu mostrar ao damasceno que eletambém, embora califa, prestigiosoe rico, não seria facilmente vencidono largo terreno da bizarricee da ex-travagância.

Disse,pois, com voz grave, ao pe-roleiro:

- Aceitoa tua proposta. Recebe-rás do meu tesoureiro o preço queacabas de exigir.

Uma nova personagem vai ingres-sar nesta história. Trata-se do intri-ganteAli FaresNeman, tesoureirodeAl-MutawakiI.Chamado pelocalifa,o novo viZÍrdo Tesouro compareceuao divã, fez as contas e declarou que

o mercador devia receber dois mil,quinhentos e cinqüenta dinares. Asmoedas foram contadas e entreguesao vendedor de pérolas.

Ali Fares Neman, avarento e mau,trazia sempre na alma uma pequenadosede veneno.Aproximou-sesoler-te do califa e disse-lhe,muito em se-gredo, qualquer coisa ao ouvido.

"Que farei agora?", pensou o ca-lifa. E como não lhe ocorresse, nomomento, uma decisão que lhe pa-recesse prudente e conciliadora, re-solveu interpelar o damasceno:

- Infelizmente, meu amigo, de-pois de ouvidos os 'dois peritos em pé-rolas, a tua situaçãoé delicada. Seeuaceitar, como certo, o parecer do há-bil Sabaga, cairá sobre ti grave acu-sação. Ingrata será a tua sorte. Ja-mais deixei impune, sob o céu deBagdá, os impostores e intrujões.Admitido o voto do venerando Ma-luf, homem sensato e judicioso, fi-cará ainda assim, pairando sobre oteu nome, a triste sombra da menti-ra e da leviandade. Ofereces ao Ca-lifa dos Crentes dez pérolas verda-deiras e procuras falsear a verdade,

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deslustrar esta corte, zombar da nos-sa magnanimidade, fazendo crer quecinco eram falsas! Exijo, pois, quesejas leal e sincero. Que há de certoe positivo em toda essa confusão?

Ao ouvir as palavras do califa epensando bem na gravidadeda situa-ção, o mercador sírio assim falou:

- Acabais, ó Príncipe do Islã, deapelar para a minha sinceridade:Fa-ço da sinceridade ponto de honra daminha vida. A sinceridade é semprelouvável, mas cumpre que seja deli-cada e prudente. Falar com sinceri-dade sobre coisas que devemos calaré ser brutal e descaridoso. Logo quea sinceridade ofende e magoa mudade nome e vira estupidez. A sinceri-dade é a maneira suave de dizer asverdades que devem ser ditas semofender, sem melindrar. Tem a per-feita sinceridade limites que a boaeducação torna intransponíveis. Pa-ra atender, pois, ao vosso justo de-sejo, vou expor, com a maior since-ridade, o que penso sobre este casosem me afastar uma linha da leal-dade e da lisura. Vejo, agora, dian-te de mim, ó Emir dos Árabes!, três

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homens notáveis: o vosso tesourei-ro Ali Fares Neman e os dois joa-lheiros de maior renome em nossopaís - Sabaga, o cauteloso; e Ma-luf, o semrival. Cada um dessesmu-çulmanos agiu, neste particular epi-sódio das pérolas, inspirado pela ma-neira pessoal com que procuram en-carar a própria vida. Não os acuso:sobre elesnão atiro as flechasda cul-pa. Julgo-os apenas. O tesoureiroNeman é homem desconfiado. Emseu rosto pálido notam-se as sete ru-gas da antipatia. Suspeita de tudo ede todos. Tem o coração cortado erecortado pelos espinhos do receio eda desconfiança. Lamento-o. Serásempreum infeliz.A vida para elese-rá a eterna tortura entre o medo doshomens e a descrença de Deus. Pornão confiar jamais nos outros, é in-capaz de confiar em si próprio. Ohonrado Ali Fares Neman, a meuver, tomou um roteiro errado peloscaminhos da vida. Só aqueles queconfiam podem ser felizes. Precisa-mos confiar nos amigos, nos homensde bem, em nossos chefes e superic-res, naqueles, enfim, que agem com

lisura e retidão. Cumpre-nos confiarnas pessoasdignasque não deramja-maismotivospara suspeitase descon-fianças. E ainda mais: confiar noAmor, confiar na Bondade, confiarem Deus!

Neste ponto o peroleiro fez umapequena pausa, e logo, retomando apalavra, disse:

- Ali está o rico joalheiro Saba-ga. Vejamos o seu papel neste caso.Conheço-o muito bem, embora sejaeu para ele um desconhecido. É umpessimista. Em tudo, e em todos, sóvê defeitos, imperfeições,víciose de_oformidades. Para Sabaga, a perfei-ção, a pureza e o requinte não exis-tem. É cego para as qualidades queadornam as criaturas, mas tem olhosde lincepara descobrirmanchase se-nões. Se lê um trecho de prosa, ouum verso, não é para admirar a idéia,mas para sublinharnegligências.Nãolouvoa maneira de agir daquelesqueprocedem como Sabaga. A vida écurta: apreciemos com alegria o quehá de belo e esqueçamosas máculase deformidades. A tendência pessi-mista de seu espírito leva-o a admi-

tir como falsas pérolas legítimas,verdadeiras. Que Allah me livredes-se homem injusto e cruel.

E prosseguiu o damasceno:- Já bem diverso de Sabaga é o

velho Maluf. Tem bom coração; éum simples;encaraa vidacom benig-nidade e otimismo. -Para Maluf tu-do é lindo, gracioso e puro. O bon-dosojoalheiro só vêqualidades.A in-dulgência de seu espírito não permi-te que ele perceba os tristes defeitos

.e as deploráveismazelas.Para eletu-do é excelente e nobre. O homemequilibrado será incapaz de agir co-mo Sabaga, o invejoso, que só vê fa-lhas e labéus, mas evita procedercomo Maluf, que. só reconhece osbons e nobres predicados. Sejamosjustos procedendo com nobreza,exaltando também as qualidadese oslegítimos valores.

- Basta! - exclamou AI-Muta-wakil interrompendo o mercador. -Por Allah! Basta! Aceito, por com-pleto, a tua explicação. Acredito nasinceridade dos teus propósitos e nalisura de tuas palavras. Confio emti,pois não vejomotivospara alimentar

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receios e desconfianças. Estou con-vencido de que adquiri de ti, ó hon-rado e talentoso damasceno!, dezpérolasbelíssimas,sendocincoverda-deiras e cinco falsas! E ao obter de tias dezgemasfulgurantes,recebi,tam-bém, um número, para mimincontá-vel,de belose preciososensinamentosque serãocomo luzeiroseternospeloslongos e tortuosos caminhos de AI-lah!

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Como vê, meu amigo, da soma decinco mais cinco (diz a lenda) resul-tou um número que o imaginoso AI-Mutawakil, Emir dos Crentes, comtoda a sinceridade, não conseguiuavaliar.

Uassalã!

(De "Céu de Allah"")

Malba Tahan

o nome de Malba Tahan * está gra-vado no coração de cada um dos sí-rios e libaneses do Brasil. É ele agrande figura intelectual brasileiraque dedicou sua vida e seu talento àdivulgação das coisas orientais emlíngua portuguesa. Nos seus livros,verdadeiros relicários, repletos dejóias lindíssimas, ele tem mostradosempre um amor imenso pela raçaoriental, consagrando em páginas debeleza imortal todas as virtudes.dospovos de raça árabe, ressaltando asua lealdade, a sua sabedoria, a suabondade, a sua gratidão e o seu he-roísmo. Podemos mesmo afirmarque é através dos livros de Malba Ta-han que todos os brasileiros conhe-cem o Oriente.

·Malba é uma palavra de origem árabe. Figura entreas derivadas do verbo "Labá", que significa ordenhar.Malba é a denominação dada ao lugar onde eram reu-nidas as ovelhas para a ordenha.

A melhor tradução para o vocábulo Malba seria"aprisco". Tahan (o árabe pronuncia "Tá-rran", o haspirado) é um substantivo corrente no idioma árabe.Significa o moleiro, isto é, o homem que prepara o tri-go (prof. SULEIMAN SAFADY - Diretor do Giná-sioOriental,de São Paulo).

Revestidos de uma imensa força desugestão e poesia, os seus contos e ro-mances têm aproximado o povo bra-sileiro do espírito oriental, prestandoum serviço extraordinário à divulga-ção da cultura árabe no Brasil.

Cada criança bfcsileira tem emMalba Tahan o seu amigo, aqueleque lhe vem contar lendas maravilho-sas, passadas em países de sonho, vi-vidas por personagens de uma raçaheróica, leal, boa e sábia. É, pois, pe-la mão de Malba Tahan que o orien-tal entra no coração dos brasileiros.Por tudo isso, é Malba Tahan dignoda nossa admiração ilimitada, dignodo lugar que ocupa no coração de ca-da um de nós. Malba Tahan é quaseuma figura de lenda. É um escritorque sabe tecer suas histórias com ocoração, e sabe fazer de sua pena ummotivo de terna e suave beleza.

PAULO MANSUR

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Malba TahanUm mestre na arte de contar histórias

A cada Hwro, Malba Tahan surpreende comouma fonte ineSgotável de um verdadeiro tesouro de

t~mase person~gens.As lendasqué cria - deliciosasmesclas de faníflsia e moralidade - transportam oleitor no tapete mágico da imaginação aos cenáriosde encantamento das Mil e Unia Noites. Sultões, xe-

ques e vizires, pr~ncesase escravas, caravanas e be-duínos, desert~ e oásis permeiam históriasmaravilhosas e ch~as de sabedoria,. narradas no me-lhor estilo oriental.

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