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A EXPERIÊNCIA DE "EMÍLIO": UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE A CONCEPÇAO - DE CONHECIMENTO E EDUCAÇAO EM ROUSSEAU Izabel Cristina Ferreira Borsoi' Erasmo Miessa Ruiz' RESUMO o artigo apresenta uma análise crítica da concepção de educação em Rousseau a partir da sua obra "Emilio ou da Educação". Destaca como a proposta rousseauniana centra-se numa pedagogia que privilegia a experiên- cia do sujeito com a realidade objetiva. Assim, a aprendizagem seria um processo onde estão necessariamente implicados a criança, o educador e a natureza. Nesta tríade, todos ensinam e tanto o mestre quanto o educando rprendem. Ao destacar a relação ensino-aprendizagem como o próprio processo educativo, Rousseau evoca um onjunto de questões ainda pertinentes à nossa contemporaneidade. Palavras-Chave: Educação - Aprendizagem -Infância Emílio's experience: A brief discussion about the knowledge conception and education in Rousseu ABSTRACT This article presents a critical analysis of tbe conception of education in Rousseau starting with his work "Emilio ou da Educação". It highlights how Rousseau's proposal is centered in a pedagogy that privileges the expenence of the subject with the objective reality. Learning constitute tben a process where child, educator and nature are necessarily implicated. In this triad, everyone teacbes, both master and student learn. Rousseau evokes a group of subjects that are still up to date when he demonstrates that the relationship between úaching and karning is in foct the educational process itself Key words: Education - Learning - Childhood Psicóloga, Mestre em Psicologia Social pela PUC/SP, doutoranda em Sociologia pela UFC e professora do Curso de Psicologia da .niversidade Federal do Ceará. Psicólogo, Mestre em Educação pela UFSCar, doutorando em Educação pela UFC, professor da Universidade Estadual do Ceará. 37 Revista de Psicologia, Fortaleza, V19(1I2) p. 37 - p. 46 janldez 2001

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A EXPERIÊNCIA DE "EMÍLIO":UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE A CONCEPÇAO-DE CONHECIMENTO E EDUCAÇAO EM ROUSSEAU

Izabel Cristina Ferreira Borsoi'Erasmo Miessa Ruiz'

RESUMO

o artigo apresenta uma análise crítica da concepção de educação em Rousseau a partir da sua obra "Emilioou da Educação". Destaca como a proposta rousseauniana centra-se numa pedagogia que privilegia a experiên-cia do sujeito com a realidade objetiva. Assim, a aprendizagem seria um processo onde estão necessariamenteimplicados a criança, o educador e a natureza. Nesta tríade, todos ensinam e tanto o mestre quanto o educandorprendem. Ao destacar a relação ensino-aprendizagem como opróprio processo educativo, Rousseau evoca umonjunto de questões ainda pertinentes à nossa contemporaneidade.

Palavras-Chave: Educação - Aprendizagem -Infância

Emílio's experience: A brief discussion about the knowledge conception and education in Rousseu

ABSTRACT

This article presents a critical analysis of tbe conception of education in Rousseau starting with his work"Emilio ou da Educação". It highlights how Rousseau's proposal is centered in a pedagogy that privileges theexpenence of the subject with the objective reality. Learning constitute tben a process where child, educator andnature are necessarily implicated. In this triad, everyone teacbes, both master and student learn. Rousseau evokesa group of subjects that are still up to date when he demonstrates that the relationship between úaching andkarning is in foct the educational process itself

Key words: Education - Learning - Childhood

Psicóloga, Mestre em Psicologia Social pela PUC/SP, doutoranda em Sociologia pela UFC e professora do Curso de Psicologia da.niversidade Federal do Ceará.

Psicólogo, Mestre em Educação pela UFSCar, doutorando em Educação pela UFC, professor da Universidade Estadual do Ceará.

37Revista de Psicologia, Fortaleza, V19(1I2) p. 37 - p. 46 janldez 2001

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Certa feita Voltaire observou, com refinadaironia, que ler Rousseau fazia nascer "desejos decaminhar em quatro patas". Essa interpretação"volrairiana", testemunha dos conflitos políticos edas rivalidades pessoais da época, ainda hoje marcadeterminada leitura de Rousseau, cristalizada peloque se tornou uma espécie de chavão: "o homemnasce bom, mas a sociedade o corrompe". Naverdade, nunca foi intenção de Rousseau umasimplória exaltaçâo da animalidade do homem. Pelocontrário, sua ótica do selvagem visava mostrar ahumanidade deste em detrimento daquele que erachamado de homem civilizado. O sistemaengendrado por Rousseau não quer ensaiar umretorno utópico a certo "estado de natureza", massim confrontar os abusos e limitações das formas depensamento e ações característicos do mundo feudal.Ou seja, a partir da visão do selvagem, criar umanova civilização, uma nova civilidade. Antes depretender destruir as manifestações artísticas eculturais, Rousseau quer libertar os artífices da artee da cultura, presos a frivolidades da moda e a crençassem nenhum sentido racional. Para tal empreitadaseria necessário um retorno a um estado de purezada consciência, livre de amarras e pressões.

É essa busca de um certo estado de purezaque preconiza a construção de "Emílio", síntese idealdas virtudes da espontaneidade da consciênciaselvagem, livre e governada pelo sentimento,organicamente ligada a uma perspectiva racional depensar a vida com base no conhecimento norteadopela lógica da ciência, das luzes da razão. Aespontaneidade criadora deve caminhar ao lado deum intelecto que se arma contra a estupidez de regrase normas, que precisam ser ultrapassadas para que ohomem (re)encontre sua verdadeira humanidade.

É impossível deslocar a construção do"Emílio" da vida pessoal de seu próprio autor.Rousseau, filho do ramo mais empobrecido dafamília, desenvolve grande parte de seu aprendizadode "homem" e "cidadão" experimentando os sabores

e dissabores que a realidade lhe impunha. Pareceentão que cumpria-lhe assimilar em um trabalhopedagógico aquilo que de positivo encontrou noprocesso de desenvolvimento de si próprio, mastambém aquilo que parece ter condenadoprofundamente. O princípio da experimentação da

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realidade, bem como a liberdade de decisão e açãoque sempre perseguiu, foram aspectos positivos. Asujeição a lógicas instirucionais, a aprendizagemobrigatória de determinados conteúdos queconsiderava inúteis parecem ter sido aspectos queconsiderou negativos. ao bastasse isso, tambémcondenou atos pelos quais jamais se perdoou,embora tentasse buscar todas as justificativasracionais possíveis, como, por exem pio, ter entregueos filhos ao orfanato alegando não ter condições deeducá-Ios. Parece ser numa atmosfera, por um lado,de culpa pessoal, por outro, de revolta contra asconvenções determinantes das ações constiruidorasda culpa, que Rousseau quer revolucionar o homempensado por seu tempo.

Cumpre a ele, então, falar do lugar do mestre,do preceptor, não necessariamente o pai, mas sempreuma figura de autoridade, pelo menos para oeducando. É tentador afirmar que Emílio sintetizariaa figura dos filhos ausentes, um catalisador de culpase receios de um educador que, na verdade, teria sidoum pai omisso. Mas, essas e outras elocubraçóes nâopossuem espaço aqui uma vez que nâo adentraremosem labirintos ao gosto de psicanalistas e arqueólogosda mente. Cumpre, entretanto, ressaltar o papel dasubjetividade do autor nos interesses que podemnortear seu trabalho e, portanto, nas análises tidasideologicamente como "neutras" e "objetivas". No"Emílio", bem como em qualquer trabalho onde sejatratada e difundida uma certa concepção de homem,sempre irá pairar os espectros dos conflitos pessoaismal resolvidos, das angústias e utopias hodiernas,dos interesses mais ou menos focados em torno dasnecessidades sociais historicamen te construídas.

Por ser um trabalho que é fruto da sua

experiência e da sua capacidade aguçada de observar,Rousseau realiza uma proposta revolucionária emmuitos aspectos, a começar pela concepção de

infância numa época em que ainda a criança era

hegemonicamente considerada uma espécie de

homem em miniatura.

Não se conhece a infância: com asfalsas idéiasque dela temos, quanto mais longe vamos maisnos extraviamos. Os mais sábios apegam-se aoque importa que saibam os homens, sem consi-derar que as crianças se acham em estado de

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aprender. Eles procuram sempre o homem nacriança, sem pensar no que esta é, antes de serhomem. Eis o estudo a que mais me dediquei afim de que, ainda que seja meu método quimé-rico e falso, possam aproveitar minhas observa-ções. Posso ter muito mal visto o que cabe fazer;mas creio ter visto bem o paciente que se deveoperar. Começai portanto estudando melhorvossos alunos, pois muito certamente não osconheceis e se lerdes este livro tendo em vista esseestudo, acredito não ser ele sem utilidade paravós. (ROUSSEAU, 1979: 06)

Uma descoberta preciosa está exposta aqui: oreconhecimento de que cada momento da vida

umana é especial e deve ser visto e respeitado comotai. Um momento é especial exatamente porque éoortador de um contexto não encontrado em outro. ornento. Se a uma criança falta a devida capacidadece discernimento entre o que é perigoso ou não,cabe ao adulto respeitar essa incapacidade comoarte necessária da vida infantil e ajudá-Ia a construirquilo que lhe falta. Essa falta não é uma falha dojeito nem uma maldição divina constituída a partir

o pecado de Adão, mas uma condição necessáriao sujeito. Não podemos cobrar da criança o que

e a não está em condições de responder. "Tratai-aa criança] portanto de acordo com a idade apesar dasiparências e temei esgotar-lhe as forças por terdesuerido exercê-las demasiado" (ROUSSEAU, 1979).

Claramente encontramos uma defesa de que aiança é perfeita em si mesma, perfeita e coesa em

rorno do instrumental que lhe foi legado pelatureza. De nada vale então nos apegarmos ao que

ne falta, importa considerar o que ela apresenta deróprio, de capacidade para experimentar e assimilarmundo que a cerca. É essa capacidade uma

expressão da natureza da criança, ou seja, do próprioornem de que ela é portadora em potência.

Obstruir essa capacidade significa, portanto, negarnatureza humana de buscar conhecer a realidade

e. desta forma, racionalmente transformá-Ia. Daí anecessidade absoluta de conhecer o sujeito pararopor algo condizente com sua condição.

Se antes de "Emílio" já se inruía a necessidadede certa separação etária como facilitadora doprocesso de aprender, como nos mostrava Comeniusno século XVII, é com Rousseau que esta necessidadeserá objetivamente j ustificada com base noconhecimento de sua época, que já não se contentavaem formar mentalidades meramente descritivas.Assim, uma proposta pedagógica procedente levaem consideração tanto os limites do estado denatureza quanto as necessidades do educando, e issode acordo com cada etapa do seu desenvolvimento.Não se trata de treinar uma criança nisso ou naquilo.O treinamento pressupõe uma igualdade, uma certahomogeneização dos sujeitos, e mais, pressupõe aausência de capacidade de questionarnenro e críticapor parte de quem está sendo treinado. Oadestramento é para os animais inferiores que nãoperguntam, não questionam, aceitam em geral asimposições, as punições e os reforçamentos dotreinador sem precisar saber para que serve ou ondeaquilo vai dar. Ao homem, à criança não se trata deimpor tudo o que se julga certo ou errado, útil ounão. Não se deve por tudo ao alcance das mãos,como se a única capacidade da criança fosse assimilarpor osmose. Para Rousseau, uma criança deveaprender fazendo, experimentando, deparando-secom obstáculos que a obrigam a buscar soluçõespróprias, caindo e se levantando. É preciso entãoque a criança descubra suas potencialidades paraaprender e fazer as coisas: "Nascemos capazes deaprender, mas não sabendo nada, não conhecendonada. A alma, acorrentada a seus órgãos imperfeitose semiformados, não tem sequer o sentimento desua própria existência." (ROUSSEAU, 1979: 40).Daí que o educador potencializa uma capacidade jáposta na criança. Trata-se de canalizar a empiria domundo, mostrar de forma útil e inteligente o que sepode fazer. 1 O próprio ato de nascer e enfrentar asadversidades das correntes da realidade torna cadahomem um ser que luta para manter seu estado deliberdade natural. E é na experiência concreta darealidade que os homens encontram forças paralibertarem o intelecto das amarras de poderes queos fazem perder a consciência da própria existência.

É tentador imaginar que, nesta citação, Rousseau esteja referindo-se ao Prometeu acorrentado, símbolo mítico ligado à idéia de trabalho erdade, parecendo, assim, indicar que cada homem nasce como um Prometeu.

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.00 que se depreende do modo comoRousseau trata o desenvolvimento humano, épraticamente impossível não intuir uma certa noçãode "estágio", o que, por sinal, torna-se bastante claroquando consideramos a própria estrutura do livro.O primeiro e segundo livros tratam da primeirainfância, que vai de O a 12 anos, na qual a criançadeve apenas experimentar as coisas do mundo e nãoter contato algum com aprendizagem ou educaçãoformal, incluindo leitura de livros. Seria a idade danatureza. Essa primeira infância ainda se subdivideem dois momentos, sendo que o primeiro vai até osdois anos. Este período caracteriza a criança que éamamentada, absolutamente dependente e queainda não desenvolveu totalmente a linguagem paraque possa comunicar o que quer e sente. O segundoperíodo da idade da natureza vai dos dois aos dozeanos e se caracteriza por um longo processo deeducação da sensibilidade e do intelecto, mas muitomais no sentido de aprender a perceber e sentir anatureza, bem como de reconhecer a capacidade e olimite do próprio corpo. O livro III trata da faseque vai dos 12 aos 15 anos e se caracteriza pelaeducação formal. Uma vez educados o corpo e ointelecto, cabe adquirir conhecimento sobre ascoisas, mas ainda um conhecimento construído pelaexperiência, pelo contato com aquilo que a sociedadeproduziu: os livros, os ofícios. É também o momentodas escolhas: o que serei? O que farei para viver, eviver bem? Um projeto integral deve ser considerado."É preciso que ele [Emílio] trabalhe como umcamponês e pense como um filósofo, para não sertão vagabundo quanto um selvagem. O grandesegredo da educação consiste em fazer com que osexercícios do corpo e os do espírito sirvammutuamente de distração" (ROUSSEAU, 1979:221). Mais adiante Rousseau caracteriza estemomento como aquele que supera o estágio dasensibilidade para entrar no mundo do intet'ecto:

Nosso aluno não tinha, no início, senão sensa-ções; tem idéias agora: Não fazia senão sentir,julga agora. Porque, da comparação de váriassensações sucessivas ou simultâneas, e do julga-mento que delas sefaz, nasce uma espéciede sen-sação mista ou complexa a que chamo idéia.(ROUSSEAU, 1979: 222)

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O livro IV trata do estágio que compreende aidade de 15 a 20 anos. É o período da descoberta darazão e das paixões. É o momento do segundonascimento. O primeiro foi para existir, o segundopara viver. É a descoberta da sexualidade e do amor,o momento de transição e de crise quando a infânciacomeça a ficar para trás. É quando não se é nemcriança e nem homem. Diz Rousseau:

agora é que o homem nasce verdadeiramente paraa vida e que nada de humano lhe é estranho.Até aqui nossos cuidados não passaram de jogosinfantis; só agora adquirem uma importânciareal. Esta época em que terminam as educaçõescomuns é precisamente aquela em que a nossadeve iniciar-se. (J979: 231)

Cabe destacar que, durante todo o séculoXVIII, consolida-se a noção de infância como umperíodo que oferece as bases culturais que demarcamum universo físico, psicológico e biológico, distintodo mundo adulto; descobre-se um período ondetudo é opaco, onde as demarcações sinalizam eventosque ainda estão restritos ao mundo infantil mas, aomesmo tempo, apontam os delineamentos dasconvenções socioculturais que afirmam os deveres edireitos de quem é cidadão. Este período dedescobertas de possibilidades, de delimitações e de"morte" gradativa das práticas sociais típicas dacriança será posteriormente de~1arcado comoadolescência, período de crise e inconstância, onde

. uma sociedade com diversidade de papéis proporá/imporá a diversidade de caminhos. Daí,provavelmente, originam-se as crises, interpretadaspela maioria dos sistemas psicológicos comooriundas de uma certa imanência dodesenvolvimento humano. A ausência de rituaisiniciáticos claramente postos constituiria aambiguidade do mundo de Emílio e, de forma maismarcada, permanece até hoje.

É num mundo de convenções opacas em seusdesdobramentos e obrigações que Emílio terá deafirmar seu papel como cidadão. E o papel decidadão afirma-se fundamentalmente pelas escolhasracionalmente construídas, apesar dos afetos e daspaixões. Na verdade, a "Educação de Emílio" é aproposta de uma estrada longa e íngreme que tem

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a adolescência uma de suas curvas mais traiçoeiras,ois é aí que as escolhas assumirão consequências

mais definitivas para toda a vida.Por fim, o quinto livro discute a fase do início

a maturidade, quando já é possível usufruir maisplenamente da educação e do conhecimentoonstruídos. Um novo mundo se abre - o casamento

quando então assumirá um conjunto deresponsabilidades juntamente com uma outrapessoa. Cumpre buscar uma mulher para Emílio.eria Sofia (nome sugestivo, porque sofia em gregoignifica conhecimento, sabedoria) que também

deve ter uma educação apropriada, não como a deEmílio por este ser homem, mas uma e~ucaçãoplanejada para uma mulher. Se o homem deve teruma educação que respeite sua natureza, a mulher,por seu turno, deve passar por processo semelhante,respeitando-se as diferenças entre os sexos, istoporque homem e mulher devem se complementar:

Todas as faculdades comuns aos dois sexos nãoIhes são igualmente repartidas; mas encaradasem conjunto elas se compensam. A mulher valemais como mulher e menos como homem; emtudo em que faz valer seus direitos, ela leva van-tagem; em tudo o que quer usurpar os nossosfica abaixo de nós. Não sepode responder a estaverdade geral senão com exceções;maneira cons-tante de argumentar dospartidários do belo sexo.(ROUSSEAU, 1979: 422)

Obviamente, as feministas de plantão ficariamorrorizadas. Mas, é óbvio também que um texto

- mpre guarda em si mesmo o espírito de sua épocae, desta forma, deve ser avaliado e padecer do sensorírico de todos nós. Neste sentido, em "Ernílio",ousseau nos propõe uma visão revolucionária da

mulher para sua época pelo simples fato de afirmar.ue ela também deve sofrer um processo educacionaleculiar às suas necessidades. Assim, trata-se deuscar um certo nível de cidadania e

esponsabilidade política que transcenda o exercícioe sua prática apenas como universo masculino. Seo homem, expressar os comportamentos de

objetividade e condução seria meramente o exercícioa sua natureza, à mulher fica reservada aossibilidade de ascender ao conhecimento comoma necessidade e decorrência da constituição da

própria experiência. Então, apesar de afirmadas asdiferenças num sentido qualitativamente superiorpara o homem, afirma-se para Sofia necessidadeidêntica à de Emílio, qual seja, a de tambémconstruir a experiência e, assim, de também sereducada.

Cabe enfatizar que, para Rousseau, tratava-sede deslocar um certo projeto pedagógico que afirmavaum método apesar dos sujeitos que aprendiam. Ele,instigantemente, propõe que olhemos o sujeito para,só a partir disso, construirmos um "método" maisadequado. Na verdade, a pedagogia rousseaunianaafirma como "método" um certo olhar que foque osujeito e avalie as suas necessidades de aprendizagem.Significa dizer que Rousseau está para a pedagogiaassim como Freud para a psiquiatria. Trata-se de nãoolhar o gesto do sujeito como algo independente dele.Para Freud, os sintomas não são entidadesindiferenciadas que poderiam ser classificadas deforma descritiva ao bel prazer do nosografista. Pelocontrário, o sintoma, de forma mais ou menos velada,conta a história do sujeito, oferece indíciosinterprerativos da real natureza de sua morbidade. Osintoma é um dos atos da peça e o corpo do sujeito opalco onde os dramas inconscientes se desenvolvem.De maneira análoga, para Rousseau, o exercício daconstrução de um método era totalmente inútil senão levasse em conta quem era o sujeito a ser ensinado.É esta percepção copernicana que Rousseau propõe àpedagogia. É só ao olhar Emílio que podemoscompreender o que ele pode e/ou deve aprender, enão o contrário. É por esta razão que Manacorda(1989) qualifica a abordagem pedagógica de Rousseaucomo "antropológica", isto é, aquela que focaliza osujeito, a criança ou o homem e se confronta com aabordagem "epistemológica", "centrada nareclassificação do saber e na sua transmissão à criançacomo um todo já pronto". (p. 242).

Na verdade a criança não é um homúnculo.Com a invenção do microscópio a tese medieval dohomúnculo se reafirmou. Pensava-se que dentro decada espermatozóide existiria um homem emminiatura. É desta interpretação equivocada do dadocientífico que se intuirá uma certa homogeneidadeabsoluta dos seres humanos que, em seus processospsicológicos, deveria ser lida e intuída como Newtone Galileu liam o universo - como dados objetivos

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interpretáveis a partir de uma linguagem matemáticae só a ela redutíveis. O que Rousseau afirma, revo-lucionariamente para a época e ainda nos dias dehoje, é que o homem só se torna homem de fatocom seu desenvolvimento. E mais, que a singu-laridade não pode ser redutível a homogeneização.Não se trata mais de olhar os processos sensoriaispara se entendero aprendizado, como pensavam osempiricistas, trata-se de entender que experiência osujeito absorve e, de fato, que experiência ele precisapara se tornar um homem saudável, crítico einteligente. O projeto rousseauniano propõe, então,reconstruir o homem, respeitando sua próprianatureza. É assim que o homem encontrarialiberdade e felicidade. Para Rousseau, o homemnatural é tudo para si mesmo.

Rousseau deplora quem desdenha a infância.Para ele, a fase infantil é absolutamente necessária àconstrução do homem.

Se o homem nascessegrande eforte, seu porte esuaforça seriam inúteis até que ele tivesse apren-dido a deles servir-se. Ser-lhe-iam prejudiciais,impedindo os outros de pensar em assisti-lo e,abandonado a si mesmo, ele morreria de misé-ria antes de ter conhecido suas necessidades.(ROUSSEAU, 1979: 10)

Diante do fato de se nascer desprovido de tudoe do homem ser belo em seu nascimento porque é"natural", Rousseau propõe muito mais fazer ohomem que o cidadão. Fazer o cidadão é educar ohomem para os outros, ao passo que fazer o homemé educá-Io para si mesmo. Não é possível construiro cidadão sem antes construir o homem, seria umcontra-senso. O exercício da cidadania só pode serpensado a partir da existência de homens realmentelivres. E essa liberdade deve ser conquistadaexperimentando o mundo e não aceitando-osimplesmente de modo passivo e sem qualquerquestionamento. A liberdade se exerce a partir domomento em que me conheço e conheço as razõese os sentidos dos meus atos. Esse conhecimento sópode se dar, não ao nível res~rito apenas à razão,como queria Sócrates, mas ao nível da experi-

2 Trata-se da canção "Sarnpa" de Caetano Veloso.

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mentação, da interação com o mundo, com arealidade. Nesse sentido, a educação volta-se parauma valoração da natureza. Se o homem énaturalmente bom, necessário se faz culriva-lo emsua bondade sem deturpá-Io. Entretanto, o homemnão só constrói, mas também, parafraseando o poeta,"destrói coisas belas'? . A contradição entre o projetoda natureza e o projeto social está claramente postologo no início do primeiro livro:

Tudo é certo em saindo das mãos do Autor dascoisas, tudo degenera nas mãos do homem. Eleobriga uma terra a nutrir asproduções de outra,uma árvore a dar frutos de outra; mistura e con-fonde os climas, as estações;mutila seu cão, seucavalo, seu escravo; transtorna tudo, desfiguratudo; ama a deformidade, os monstros; não quernada como ofez a natureza, nem o homem; temde ensiná-lo para si, como um cavalo depicadei-ro; tem que moldá-lo a seujeito como uma árvo-redeseujardim. (ROUSSEAU, 1979: 09)

Diante de afirmações como estas,poderíamos especular sobre o que Rousseaupensaria sobre a biotecnologia, óvulostransplantados, doações de esperma, bebês deproveta, alimentos transgênicos etc. No entanto,é preciso historicizar sua afirmação, o modelo decivilização a ele disponível, bem como o de todosos iluministas e românticos. E o que é a civilizaçãono século XVIII na Europa ocidental? Cidadesinsalubres, sujas, sem saneamento, sem sistemas decoleta de lixo, sem noções de higiene. Estamos nosprimórdios da revolução industrial, sob a lógica daacumulação primitiva. É quando está ocorrendo,de forma mais sistemática, a expropriação doscamponeses, o início dos grandes adensamentosurbanos, o surgimento de populações moral efisicamente degradadas por sem número de doençase pela inadaptação às exigências psicossociais deum novo modo de vida, oriundo da crescenteindustrialização, que impunha novas noções deespaço e tempo, novas noções e concepções dedisciplinamento de corpos e mentes. Neste sentido,com certeza, a civilização mata! Retira os "impulsos

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ais". Longe do adensamento urbano, portanto,-astados das epidemias, da maior probabilidade

.:.e carências nutricionais, vivendo em núcleosrurais mais coesos e avessos a mudanças, aqueles

ais "próximos da natureza" (uma natureza jáediatizada pela mão do homem como bem

criticava Marx nas "Teses contra Feuerbach")avam mais "protegidos", pois tinham acesso a ar

_ ro, dieta de alimentos frescos etc. Só pára se teruma vaga idéia, morria-se mais de febre puerperal. ando os partos eram assistidos em hospitais que. ando ocorriam em casa ou no campo. Moliere,o "Doente Imaginário", satiriza, com toda

_ opriedade, a ineficácia de uma medicina sem asoções de assepsia e ainda precariamente

encastelada nas práticas mágicas e irracionais.Não é sem razão, então, que Rousseau

reconizava um "retorno à natureza". Ele não secoloca contra a civilização, mas sim contra umcererminado projeto civilizatório que muito mais

imaliza e depreda o homem que o afirma comorealmente humano. É por isso que sua época viveráo miro do selvagem como protótipo do homem. eal, uma utopia que solene e inocuamente tece_ ricas às consequências sociais dos primórdios da- 'oluçâo industrial.

Emílio seria então o protótipo do homemucado para si, perfeito em sua natureza, tendo rodas

- suas potencialidades e capacidades realmenteulrivadas e não de-formadas ou mal-formadas. Seriaexemplo do homem realmente livre e, ao mesmo

-~mpo, absolutamente responsável por si e pelos.nros, posto que conheceria as razões mais profundas

-~ seus pensamentos e gestos. Razões essas descobertas. artir da própria experimentação e não a partir de

- ras ensinadas. Não seria um mero cidadão noenrido de que se submete às regras sociais e garanteeterminados direitos. Emílio seria o cidadão, aquele

• e não só garante direitos numa sociedadecemocrâtica, mas, fundamentalmente, aquele que agecom liberdade e responsabilidade exatamente porconhecer as razões e os sentidos de seus atos.

A aprendizagem ocorreria a um processoverso do proposto pela sociedade vigente. Não se

-. rende de fora para dentro, apenas assimilandodo feito uma esponja que absorve toda água que

- ca. A aprendizagem é um processo onde estão

- '-J1L.OS

necessariamente implicados a criança, o educador ea natureza. Nesta tríade todos ensinam e tanto omestre quanto o educando aprendem. Aaprendizagem não é necessariamente sobre as coisasou sobre a vida, mas sim do processo de viver. É essaa educação planejada para Emílio: "viver é o ofícioque lhe quero ensinar."

Viver não é respirar, é agir; éfazer uso de nossosórgãos, de nossos sentidos, de nossasfaculdades,de todas as partes de nós mesmos que nos dãosentimento de nossa existência. O homem quemais vive não é aquele que conta maior númerode anos e sim o que mais sente a vida. Há quemseja enterrado a cem anos e que já morrera aonascer. Teria ganho em ir para o túmulo namocidade, se ao menos tivesse vivido até então.(ROUSSEAU, 1979: 16)

É preciso aprender a viver, a conservar-se sejaem que canto do planeta estiver: "nos gelos daIslândia ou no rochedo escaldante de Malta". Viveré experimentar tudo, tanto o que é agradável quantoo que é desagradável, viver é lançar-se no mundoabsorvendo-o e sendo por ele absorvido. Rousseauentão planeja construir um homem forte e livre paraexperimentar e saborear esse mundo tanto no quetem de doce quanto de amargo. Então, a educaçãoé um exercício de fortalecimento e preparação docorpo e liberdade do espírito para realmenteexperimentar, provar, indo assim contra rudo o quea sociedade propõe enquanto projeto humano. ParaRousseau,

O homem civil nasce, vive e morre na escravi-dão; ao nascer, envolvem-no em cueiro; ao mor-rer, encerram-no em um caixão; enquanto con-serva sua figura humana está acorrentado anossas instituições. "( 1979: 17).

Nos dias de hoje, quando os aparatosburocráticos tornam-se cada vez mais complexos eportadores de lógicas insondáveis aos indivíduos quedeles participam, a afirmativa de Rousseau pareceganhar uma ironia ferina. Além disso, torna-se atémais fácil entendermos sua noção decorruptibilidade do homem diante da imposiçãosocial. Se adaptamo-nos a normas formais e

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informais sem, na maioria das vezes, nosquestionarmos sobre seus sentidos, o que esperar deum mundo que preconiza instituições que intentamcontrolar toda a expressão natural da sexualidade deseus membros? O que esperar de instituiçõeshospitalares que impõem horários rígidos de visita,apesar dos agonizantes não "escolherem" a hora emque morrem e, desta forma, ficando a mercê dahorrenda possibilidade de morrerem sós, se o horáriode visitas houver terminado? O que esperar de umacivilização que incute a necessidade de todos teremautomóveis poluentes em ruas cada vez maisestreitas? Se hoje a fala de Rousseau ainda guardacerta logicidade interna, sua contemporaneidadereportava de forma mais atroz uma sociedade quedegenerava o homem.

Diante disso, era preciso pensar uma educaçãoque reformasse também a sociedade e não só o homemde modo isolado. É Rousseau quem afirma "o nossoverdadeiro estudo é a condição humana". Ora, essacondição humana só pode ser referida ao modo comoo homem vive, às instituições que criou parasupostamente melhor viver, amparar-se, educar-se. Háque se transformar a condição humana, torná-Ia maispróxima do natural. Essa humanização natural deveriainiciar-se tão logo a criança encontre-se livre da conchauterina. Educar seria algo como tornar o mundo umaescola e não a escola o mundo. O projeto do "Emílio"pressupõe a criação de uma consciência que percebaa realidade captada pelos sentidos como a real essênciadaquilo que precisa ser aprendido.f

Assim, a vocação do homem não é, paraRousseau, uma voz de Deus dentro de sua alma. Pelocontrário, a voz de Deus encontra-se na própriarealidade experimentada pelo homem. Se Piaget intuíauma certa imanência do desenvolvimento cognitivo,Rousseau intuía a imanência de um estado de naturezaque, por si só, busca conhecer a realidade de formasmuito específicas a cada fase do desenvolvimento. Avocação do homem é conhecer o mundo.

Interessante é notar que, já naquela época,Rousseau identificava a educação como afastada dascoisas da vida. As escolas, as poucas existentes,

ficavam na mão dos religiosos que espalhavam as"belas mentiras". A própria escola, a instituição eseu espaço físico, trazia em si mesma todos os víciosda civilização. Nas universidades, um conjunto desaberes teóricos era aprendido totalmentedesconectado dos ideais de experimentação. Não soaestranho, portanto, que ARIÉS (1990) reporte aexistência de uma farmacopéia oriunda de cadáveresainda no século XVIII. Não soa estranho quetratados de física e matemática ainda busquemsolenemente entender a influência dos astros na vidae comportamentos dos indivíduos. O que hojeentendemos como método científico, em seu sentidomais demarcado pelo positivisrno lógico, era, nostempos de Rousseau, muito mais um idealidiossincrático, cultivado de forma doméstica poralguns doures, e ainda não havia se afirmado comométodo em sua plenitude, o que só ocorreria noséculo XIX. A visão medieval de educação, jáagonizante, ainda regurgitava um canto de cisne nosestertores do absolutismo sob o qual vivia Rousseau.

Rousseau não só chama a atenção por suaproposta pedagógica ou mesmo pela sua concepção deinfância, mas também pela descrição cuidadosa eacurada do comportamento infantil e adolescente. Astáticas adotadas pela criança para conseguir a atençãodos pais, a facilidade com que os adultos cedem àsreivindicações infantis, os jogos de "condicionamentos"e "reforçamentos", tanto da criança como do adulto,são descritos de modo a deixar qualquer bom psicólogocomportamentalista espantado com a precisãodescritiva. Os protótipos do que hoje denominamosde "modelagem", de processos de "sensibilização" e"dessensibilização progressiva", de imitação estão já emRousseau. Vejamos um exemplo:

Todas as crianças têm medo de máscaras. Come-ço mostrando a Emílio uma máscara defisionomia agradável,' depois alguém põe essamáscara no rosto diante dele: eu rio e todo mun-do ri e a criança ri com todos. Pouco a poucoacostumo-a a máscaras menos agradáveis e fi-nalmente a caras horrorosas. Se tiver ordenado

; Impossível aqui não pensar em Piaget quando defende que a criança deve construir conhecimento sobre o mundo inreragindo com ele,experimentando tudo que a cerca, descobrindo as propriedades dos objetos a partir do contato, da inreração, quando afirma a necessidade dese considerar a criança como um sujeito que se constrói na relação direta com a sua realidade.

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com cuidado a gradação, ela há de rir das últi-mas como da primeira. Depois disso não receioque a assustem com máscaras. (ROUSSEAU,1979: 44)

Esse relato, bem como outros que buscam- monstrar como se deve educar uma criança, parece

serir que Rousseau não só fundamentava-se emervações de eventos como esses, mas também na

rimentação, o que pode ter sido facilitado por sua- ndição de preceptor dos filhos alheios. Emílio, é bem

dade, afirma o autor, é um personagem fictício,cealizado, bem como o projeto de educação que

. ropõe é utópico, mas bem que Emílio poderia serde seus pupilos tanto quanto o método pedagógicoa ter sido algo que, pelo menos em parte, adotou.

No projeto pedagógico rousseauniano não émente a criança o alvo de atenção, também oulro com quem ela convive torna-se figura

~portante de estudo. Nesse sentido, é a relação~edagógica que está em questão. Esta implica,aecessariarnenre, um processo de troca, onde tanto

pode ganhar como perder em am bos os lados. A_ rspicácia e senso de observação de Rousseau não

eixa passar despercebido o comportamento, às"ezes, perverso, e, outras vezes, contraditório do

ulto em relação à criança. E no caso desta, estáonge de concebê-Ia como um ser totalmente-e provido de defesas.

Ao nascer, uma criança grita; sua primeira in-fância passa a chorar. Sacodem-na às vezes ou aacariciam para acalmá-Ia; ameaçam-na tam-bém e batem-na para que se cale. Ou fazemos oque Lheagrada, ou dela exigimos o que nos agra-da. Ou nos submetemos a suas fantasias ou asubmetemos às nossas:não há meio termo, épre-ciso que nos dê ordens ou que as receba. Assimsuasprimeiras idéias são de império ou de servi-dão. Antes de saber falar ela manda, antes depoder agir ela obedece; e não raro castigam-naantes que ela possa conhecer seus erros. Ou oscometer. E assim é que se inculcam em seu jo-vem coração as paixões imputadas a seguir ànatureza e que, depois de ter se esforçado por

tornd-/a md, a gente .re 'lueàa de de.rcopn:'/amá. (ROUSSEAU, 1979: 23)

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A dificuldade que o ad ul to tem decompreender a criança, de lidar com ela, se expressanum jogo de contradições e exigências às quaisjamais ela deveria se expor. O caráter imperativo dacriança se choca com o caráter também imperativodo adulto num jogo de forças, onde, ao final dascontas, quem perde é a criança. Esta permanece àmercê porque seu modo de exigir se dáfundamentalmente através de uma linguagem que,muitas vezes, sequer ela tem controle. Estepermanece praticamente nas mãos do adulto e setraduz em regras, às vezes, ambíguas e, por isto,incompreensíveis para uma criança. Para Rousseau,seria mais fácil, em determinado instante, o adultoadaptar-se à linguagem infantil e não o oposto. Alinguagem do adulto se construiria mais facilmentena criança na medida em que as noções fossemtransmitidas em universo e linguagens infantis. Umaasserriva que parece óbvia nos dias de hoje, numaépoca que inventa a infância, ela soa necessariamenterevolucionária.

Ironicamente, nossa contemporaneidadeparece estar desinventando a infância sob a égide deum capitalismo que, para ampliar ainda mais lequede consumo, investe numa falsa autonomia infantil,tendo os pais como instrumentos de realização dodesejo da criança. A ausência de demarcadoresinfantis começa a aparecer nas roupas, nos gestos,nas ações que afirmam a erotizaçâo precoce de corpose subjetividades ao som do "É o T charn". É salutarlembrarmos que é preciso preservar o que é, talvez,umas das maiores invenções da burguesia: a noçãode infância. Rousseau, a todo instante, em suapedagogia, sinaliza esta necessidade.

Rousseau ressalta o aspecto negativo de umaeducação servil, que desconsidera o caráter próprioda fase infantil, e mais, responsabiliza claramente a

sociedade por construir o homem que destrói aoinvés de construir. Ao mesmo tempo, critica essamesma sociedade por não admitir talresponsabilidade e por culpabilizar, na maioria dasvezes, o lado mais fraco. Parece haver aí uma espéciede oposição a uma visão inatista que concebe umanatureza boa ou má intrínseca ao homem, algo comoo dicado "pau que nasce rorto não cndircite",

Rousseau parte de um princípio distinto, embora

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lance mão de uma idéia de bondade natural. Paraele a sociedade escreve o que quer e como quer naalma humana, em geral escreve o que é negativo,deformador. Parece não conseguir perceber aspectospositivos nos processos de socialização vigentes ou,se os percebe, os mesmos acabam naufragando empráticas institucioriais que são necessariamenteobtusas.

O importante a ressaltar é que não devemosacreditar em um Rousseau que negue o social a partirda afirmativa cega da possibilidade da supremaciaabsoluta do indivíduo. Pelo contrário, sua obracaminha em sentido oposto. O que "Emílio"preconiza é um projeto que altere o homem para

•construir uma nova sociedade a partir de suatransformação prática, pela ação consciente eracional do homem que conhece e, porque conheceracionalmente, almeja conscientemente transformara realidade que o sufoca. Neste sentido, "Ernílio"convida o leitor do seu tempo a destruir os alicercescarcomidos da aristocracia feudal.

Rousseau estava longe de ser um meropedagogo ou educador de gabinete, ou ainda umespeculador à busca de verdades universais. O quedefende advém de uma experiência rica e aguda davida e de um senso de observação incomum. Omodelo pedagógico que propõe ressalta tanto apostura adequada do adulto no processo deeducação de um indivíduo, quanto aquilo que sedeve .evitar sob pena de por a perder o cidadão.Deixa claro que a pedagogia não deve ser baseadanuma receita imutável e sempre certa, mas deveser concebida como um processo, como umaexperiência acima de tudo.

Muito embora possamos perceber no "Emílio"afirmações bastante questionáveis, como a próprianoção de natureza humana, não há dúvida de quemuito do que Rousseau escreve é de umapreciosidade ímpar e de uma atualidadesurpreendente. Cabe lembrarmos que, se a maioriadas escolas afirmam serem construtivistas, um olhar

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mais focado no cotidiano escolar irá perceber queas assertivas de "Emílio", sobre a busca de liberdadee autonomia, esbarram em práticas irracionais e semsentido. As crianças ainda podem ser punidas porpintarem o céu de vermelho ou por passaremcorrendo pelos corredores da escola. Quanto a nós,adultos, já "naturalizamos" o medo de sermosassaltados por crianças nas ruas, a presença de pessoasfamintas revirando o lixo, os congestionamentos aovoltarmos do trabalho para casa, o descaso pela saúdee educação públicas etc. Isso só sinaliza que aceitamosum mundo onde pessoas infelizes estão sesubmetendo a regras que pessoalmente não criaram;e não só se submetendo, mas também ajudando areproduzir, colaborando, assim, para a concretizaçãode seus próprios sentimentos de infelicidade. Nestesentido, uma leitura de "Emílio" pode mostrar quenossos ideais de liberdade não abandonaram o papel,em parte, porque ainda insistimos em exercer nossa"liberdade" a partir de práticas que a coíbem.

Se para nós, dois séculos depois, a propostade Rousseau ainda soa como revolucionária emmuitos aspectos, o que diremos do impactoprovocado na sua época? Não foi sem razão que o"Emllio" passou a fazer parte do "Index dos livrosproibidos", posto que considerado um escândalo ouuma espécie de atentado às normas sociais ou aomodelo educacional vigente. O século XVIII haviaproduzido o seu Sócrates, cabia condená-lo, expurgá-10, começando por calá-lo. Tempos mais "amenos"esses, afinal, Rousseau não foi obrigado a tomarcicuta, muito embora tenha provado o fel do exílio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIES, P. O Homem Diante da Morte. Rio deJaneiro: Francisco Alves, 1990.

MANACORDA, M. A. História da Educação. SãoPaulo: Cortez/Autores Associados, 1989.

ROUSSEAU, J. Emílio ou da Educação. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1979.

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