almas em sonho johnny marcus
TRANSCRIPT
Almas
em
sonho
“Eu não tenho uma alma.
Eu sou uma alma.
Eu tenho um corpo”.
C. S. LEWIS
Para Tayô
Prefácio do autor
“Almas em Sonho” é uma flor colhida no jardim da minha alma. É a luz de
amor que propago para o Universo.
Assim como a maioria dos romancistas estreantes, não resisti à tentação
de incluir um pouco de mim na história. É uma espécie de “Memórias Inventadas”
de Manoel de Barros, ou aquilo que chamo de “autobiografia não-autorizada”.
Apesar de ter nascido a partir da minha experiência com o Daime, este
livro não é sobre o Daime. Muito menos uma tentativa de doutrinação. “Almas
em Sonho” é o primeiro passo de uma nova etapa na minha caminhada espiritual.
A espiritualidade tem sido muito generosa comigo nos últimos três anos.
Amados irmãos de luz me orientaram e inspiraram na conclusão desta obra.
Destaque especial para Seu Zé Pelintra, querido companheiro de luta, e minha
mentora espiritual Eleanor.
Ciente da resistência por parte da crítica literária especializada em
relação àquilo que convencionou-se chamar de literatura esotérica, gnóstica,
espiritualista ou de autoajuda, meu esforço foi de escrever um romance com
toda a sua estrutura de forma a torná-lo interessante a qualquer tipo de
leitor.
Acima de tudo, “Almas em Sonho” é uma linda história de amor
interrompida e retomada no curso de várias encarnações. É a incansável busca
do ser humano pelo autoconhecimento, pela Verdade e, consequentemente, por
Deus.
Limitações de ordem financeira, tão comuns a escritores iniciantes,
impediram – por ora - a publicação do livro físico. A disponibilização deste
arquivo digital encerra uma agonia de quase um ano, desde que “Almas em
Sonho” foi concluído e gentilmente revisado por Marta Cocco e Luiz Renato
Souza Pinto.
Grande parte foi escrita enquanto eu morava no “Condado da Rainha”,
nome informal da paradisíaca chácara onde está instalada a igreja daimista
“Mestre Irineu”. A energia do lugar e todos os seres divinos que ali habitam
permitiram que eu pudesse trabalhar em harmonia e paz; e para que “Almas em
Sonho” exalasse o doce perfume do amor do Cristo Cósmico. Boa leitura. Namastê!
1
- Luz! Luz! Luz! – por várias vezes repetiu mentalmente João Guilherme,
depois de dar-se conta do estado em que se encontrava. A princípio, só percebeu
fracos lampejos a sua volta. Em seguida, conseguiu distinguir sombras em
movimento ainda na penumbra do ambiente. E, de repente, como quando todas as
luzes de um lugar são acesas instantaneamente, viu-se coberto pelo brilho da
lua cheia que pairava no céu. Em estado de êxtase, olhou para a paisagem com
os olhos de uma criança na primeira visita a um bosque. Tudo tinha uma nitidez
cristalina e um encanto único. Cintilantes lumes vagavam lentamente e a leve
brisa que soprava na noite embalava as flores verde-fosforescentes da
vegetação nativa. Os sons naturais da noite se misturavam à uma dulcíssima
voz que entoava um cântico quase inaudível. Pequenas esferas brancas de luz
flutuavam a certa distância. Às vezes, elas desapareciam para logo depois
ressurgirem dilatando-se e assumindo formas que lembravam uma figura
humana. Só depois de algum tempo João reconheceu que estava em uma área da
chácara onde morava.
Temendo uma recaída crônica dos surtos de sonambulismo dos tempos de
infância, passou a mão por trás da nuca e sentiu o cordão de prata. Um
sentimento de gratidão lhe envolveu a alma por aquilo que considerava uma
bênção e fez uma prece pedindo a proteção de seu mentor espiritual. Em seguida,
caminhou lentamente pela mata. Ele parecia flutuar tamanha a leveza e a
sensação de liberdade. Ao mover-se nesse mundo de densidades mais sutis, como
se fosse um fantasma, passava – literalmente - através das plantas e árvores.
O contato de seu fluido universal com os da mata causava leves choques de
energia. Ele caminhou mais um pouco até chegar a um cantinho que considerava
especial. Um pequeno descampado onde havia quatro tocos de madeira que
serviam de banquinhos e uma pequena mesa rústica feita a partir de um tronco,
onde gostava de ficar em estado de recolhimento, meditando. Era ali que
dirigia as preces aos Elementais da Natureza, os espíritos da Terra, Água,
Fogo e Ar. Por alguma razão desconhecida, sempre que fazia as orações naquele
lugar, embora se esforçasse para em falar em português, era recorrente que as
palavras saíssem em inglês – idioma que lecionava há mais de vinte anos.
O professor ficou imóvel e em silêncio por vários minutos. Quando ia
abrindo a boca para começar a prece, riu ao lembrar que a palavra falada só
é necessária no mundo físico. Nas dimensões superiores, a comunicação é feita
pela frequência do pensamento. João Guilherme elevou a mente e procurou na
memória momentos felizes da vida. Também jornalista e poeta, sempre pedia aos
Elementais por inspiração para escrever seus textos e poemas.
De plena posse dos olhos da alma, viu formas de luz saírem por detrás,
de cima e de dentro das árvores e, pelo que conseguiu entender, rodearam-lhe
a dançar uma espécie de ciranda astral. Feixes de energia de todas as cores,
especialmente azul e dourada, tomavam conta do cenário. Diante de si passavam
imagens de lugares onde lembrava ter estado e rostos de pessoas com quem havia
convivido. Sua capacidade cognitiva estava ampliada centenas de vezes.
Inúmeros poemas, melodias e textos surgiam simultaneamente. O primeiro
instinto foi o de reter o máximo possível daquele turbilhão para escrever a
respeito quando voltasse ao estado de vigília, pois sabia que, de volta à
matéria, a memória não seria completa. Afligido por esse temor, sentiu um frio
repentino. A garganta ficou totalmente seca; teve tonturas, a visão ficou
turva e tudo era escuridão novamente. Ele estava de volta ao corpo físico.
2
Como de costume, João Guilherme acordou de olhos fechados. Por
experiência, sabia que se os abrisse estaria definitivamente desperto e não
pegaria mais no sono. O estado de catalepsia, contudo, permanecia. Por isso
procurou relaxar, mas o máximo que conseguiu foi cair em um sono profundo e
sem sonhos. Se bem que não ignorava o fato de que sonhamos todas as noites.
Mas desta vez, não sonhou mesmo. O corpo ficou imerso em profundo estado de
repouso por dez horas até que abrisse os olhos. Agora, de novo no plano astral,
não foi preciso repetir mentalmente o comando luz. Ele estava em pé no meio
da estrada de chão que dava acesso à sua residência. O sol brilhava
intensamente e tinha uma luz cuja beleza excedia qualquer tentativa de
descrição. João girou o olhar prestando atenção em tudo e resolveu voltar
para casa para fazer uma verificação. É que a maioria dos espíritos
desencarnados, diferente do que pregam os supersticiosos, não está nas ruas,
encruzilhadas ou cemitérios, e sim dentro dos lares. O professor queria saber
que espíritos lhe faziam companhia. Era só preciso tomar o cuidado de não
entrar no quarto onde o corpo físico dormia, pois isso o levaria
automaticamente de volta a ele.
O jornalista flutuou a curta distância que o levou à varanda da modesta
moradia. Como acontecia todo dia no meio da tarde, um cristal lapidado em
forma de diamante, preso a uma espiral metálica e pendurado na viga de
madeira por uma linha de pescar espalhava múltiplos raios coloridos,
proporcionando um lindo efeito visual. Vistos com os olhos anímicos, os pontos
luminosos ficavam ainda mais fascinantes. Era na pequena área externa que
João estacionava a moto estilo custom. Ao dar por sua falta, lembrou-se de ter
mandado fazer uma revisão geral para colocá-la à venda, pois planejava
comprar uma importada do mesmo modelo. Ele só ficou mesmo cismado com a
ausência da rede na qual sempre deitava para ler livros espiritualistas.
Quando estava prestes a entrar, ouviu um som inconfundível. Virou-se e viu
os dois gatos pretos com quem dividia a casa miando em sua direção. O poeta
não gostava de chamá-los de seus. Achava inconcebível um ser vivo pertencer
a outro. “Orfeu, irmãozinho! Wicca, bruxinha! O que vocês estão fazendo aqui
fora sozinhos?” Os bichanos não correram até o amigo, como sempre faziam.
Apenas ficaram miando, fixando o olhar no rumo em que João estava. Wicca
tinha sido batizada assim em referência ao termo original para bruxa, em
inglês. O nome de Orfeu fora dado por causa do menestrel mitológico, filho de
Calíope e Apolo. E também em homenagem ao protagonista da peça “Orfeu da
Conceição”, de Vinícius de Moraes.
- Fiquei honrado com a lembrança, caro João Guilherme. Muito obrigado!
Ouvir aquela voz forte, embora calma, e vinda sabe-se lá de onde, foi um
grande susto para o professor. Ele virou-se para todos os lados e não viu
ninguém. Pensou nos famosos espíritos zombeteiros. Olhou mais uma vez e nada.
Até que, depois de instantes que pareceram uma eternidade, escutou bem atrás
de si:
- A bênção, João!
Ao virar-se, não podia acreditar no que tinha diante de si. Mas era ele.
Só podia. Não tinha como errar. O jornalista estava frente a frente com o
espírito do poeta Vinícius de Moraes, que então lhe disse:
- Meu amigo, meu irmão, não tenha medo. Estou aqui em missão de paz em
nome do Nosso Divino Pai Eterno, Deus Todo Poderoso. Saravá!
João sabia que espíritos inferiores jamais saudavam em nome de Deus e
por isso replicou respeitosamente a saudação inicial imortalizada no samba do
próprio Vinícius e Baden Powell. “A bênção! Saravá!” Os olhos azuis do
menestrel estavam mais azuis do que nunca. Ele usava uma camisa verde de
mangas compridas e uma calça levemente marron. Ambos eram de linho. Os óculos
de grau eram idênticos aos que sempre usara em vida. O professor não ousava
fazer nenhuma pergunta, uma vez que o poeta tinha dito que viera em missão
de paz.
“Meu amado irmão, espíritos superiores me enviaram para vir ter contigo.
De hoje em diante, passaremos muitos momentos juntos, e tudo será esclarecido
paulatinamente”, disse Vinícius após uma pausa. Em seguida, tocando o ombro
de João Guilherme com a mão direita, pediu: “Feche os olhos e eleve o
pensamento. Nós vamos viajar”.
Tomado de súbita coragem e com a cautela para não ser grosseiro ou
desrespeitoso, o jornalista indagou: “Perdoe-me pelo ceticismo mas, antes de
ir a qualquer lugar, preciso saber se o senhor realmente é quem diz ser”.
Vinícius pareceu qualquer coisa ofendido, mas depois sorriu com bondade e
respondeu com ternura: “Meu irmão, a tua dúvida é pertinente. Melhor ainda,
é saudável. Realmente posso ser qualquer um. Assim sendo, devo esclarecer que
faço parte da falange espiritual dos poetas. Você deveria ser capaz de
reconhecer um semelhante, já que também faz parte dela. Muito embora palavras
bonitas possam ocultar seres de pouca luz, a sinceridade delas não é algo de
se imitar. Não foi o supremo mestre Cristo Jesus que ensinou que a boca fala
do que o coração está cheio?”
João Guilherme envergonhou-se da incredulidade. Percebendo a situação,
Vinícius de Moraes chegou bem perto e completou olhando-lhe no fundo dos
olhos: “Amado, certa vez lestes um livro sobre mediunidade, lembra-te?” O
professor respondeu positivamente com um pequeno aceno de cabeça.
- E o que o espírito que ditou o livro disse quando questionado sobre
qual era o mais alto grau de mediunidade?
- Ele disse que era a intuição. Que é quando entramos em comunicação com
o nosso Ser Divino.
- Perfeito. Consulte então a intuição e me diga se estou a mentir sobre
minha identidade.
João Guilherme olhou mais profundamente para os dois pingos de céu que
o espírito tinha nos olhos. Em seguida fechou os seus e viu que ele falava a
verdade. “Sinto-me honrado pela companhia e aceite minhas sinceras desculpas
pela falta de fé”, disse com humildade. O mentor espiritual apenas sorriu
novamente e, tocando o ombro de João, arrematou: “Podemos viajar agora?”
Instintivamente o jornalista fechou os olhos e um grande clarão, seguido de
uma espécie de estrondo, quase o fizeram perder os sentidos. Em seguida, sentiu
o corpo suspenso no ar e ser conduzido por um vórtice de luz azulada.
3
“Chegamos!”, exclamou o mentor Vinícius de Moraes. João Guilherme abriu
os olhos e reconheceu de imediato a paisagem. Era o lugar mais lindo onde já
tinha estado. Os dois espíritos estavam aos pés do Cristo Redentor, no Rio de
Janeiro, cidade pela qual o professor nutria uma paixão imensa, apesar de só
ter estado lá uma vez e por pouco tempo. Sua alma irradiava alegria diante
de tão belo cenário. Ao longe, o sol começava a fazer o trajeto derradeiro de
todos os dias, emprestando ao céu e ao mar uma luz rósea.
“Rio de sol, de céu, de praia e mar...” cantarolou Vinícius bem baixinho.
E virando-se para João, disse com certa pompa irônica na voz: “Eis que o filho
pródigo à casa torna”. Diante do espanto do jornalista, prosseguiu: “Sim,
irmãozinho. A tua intuição sempre esteve correta. Você já morou mesmo na
cidade maravilhosa. E olha que foi em uma época gloriosa”. João Guilherme não
sabia o que dizer. Virou-se e viu o Cristo de abraços abertos como a dizer
“bem-vindo, meu filho”. Não resistindo, chorou de emoção diante das primeiras
estrelinhas que prometiam que aquela seria uma noite divinamente iluminada.
- A última vez em que esteve aqui na cidade, você voou de asa delta, não
é mesmo?
- Sim. E foi uma experiência única. Pena que só durou cinco minutos.
O jornalista jamais se esquecera daqueles cinco minutos. Da paz de
espírito ao sentir o vento frio no cume da Pedra da Gávea; da adrenalina ao
correr, amparado pelo instrutor, rampa abaixo e saltar em direção ao infinito,
de entregar a alma à floresta e ao mar que o saudavam lá de baixo e soltar
um grito de liberdade reprimido por tanto tempo no peito.
“Volare, ô, ô...!”, entoou Vinícius precipitando o corpo ribanceira abaixo.
“Você não vem, Joãosinho?”, gritou sem olhar para trás.
Despertado pelo chamado e feliz com o tratamento carinhoso, João
lembrou-se das oficinas de projeção e daquilo que se denominava volitar, não
pensou duas vezes e lá foi realizar seu sonho de Ícaro. Ele alternava o olhar
entre o azul do céu e o azul do mar. Flutuando por sobre as águas, imagens
aleatórias e não muito nítidas de sua encarnação no Rio de Janeiro lhe vinham
à mente. Eles então pousaram na praia de Ipanema. “Onde mais?”, pensou João
Guilherme em meio a um sorriso. “Eu ouvi isso”, reprimiu Vinícius
simpaticamente. Era óbvio que sendo o pensamento a forma de comunicação no
astral, não havia espaço para segredos - concluiu o professor.
O poeta parou em frente ao mar no que parecia ser uma atitude de oração
e permaneceu assim por vários minutos. Em seguida, entrou na água com roupa
e tudo e desapareceu. O professor só conseguiu vê-lo novamente quando já
estava a pelo menos cinquenta metros da praia, por cima da imensidão azul.
- E Vinícius de Moraes caminhou sobre as águas – pensou João Guilherme.
- Eu ouvi isso também! - respondeu o mentor em meio à uma gargalhada.
O jornalista foi até onde Vinícius estava e ficou ao seu lado.
“Já perdi a conta das vezes que recitei ‘Minha Namorada’”, confessou
constrangido. “E eu não sei? Meu irmão, se não me engano, você recitou esse
poema para todas as suas namoradas”, comentou Vinícius dando destaque para o
“todas” e aumentando o constrangimento de João.
- Mas os poemas de amor não foram escritos para serem recitados às
mulheres?
- Poema é coisa séria, querido. Se você fizesse ideia do que ele causa na
cabeça e no coração de uma mulher...! A propósito, por que você não recitava os
teus próprios?
- Nunca me senti muito à vontade para declamar minha poesia. Sempre a
achei meio chinfrim. Mas uma vez escrevi um poema de uma só estrofe que me
deixou muito feliz.
- E como era?
- “Vivo ao lado da poesia,/ nela me completo./ De costas pro mundo./ De
frente pro verso”. Bonito, né?
- Obrigado!
-Hã?! Como assim, “obrigado”?
- Fui eu quem lhe soprou isso. Fim de noite no bar do Chicão. Como sempre,
sozinho na mesa do canto. Terceira cerveja. Usou o guardanapo para escrever.
Correto?
João Guilherme ficou impressionado. Tinha sido isso mesmo. Vinicius
então lhe explicou que muito da produção musical e poética de grandes artistas
era, em parte, o tipo de psicografia classificada como inspirada - que ocorre
quando o espírito sugere o texto à pessoa através do pensamento.
- Mas eu só sugeri os dois últimos versos. Os dois primeiros são da tua
lavra mesmo.
- E o que achou?
- Chinfrins!
Percebendo o abatimento de João com a crítica negativa, Vinícius
abraçou-o de lado e falou ternamente: “Ninguém nunca se tornou poeta, mas
poeta de verdade, vivendo “ao lado” da poesia. O mais correto seria dizer “na”
poesia. Estar ao lado não significa necessariamente estar com. A poesia é uma
mulher possessiva, ciumenta. Ela não admite ser dividida com ninguém. Ou você
se entrega de corpo e alma ou nada feito. Fazer poesia ou samba não é contar
piada. Você precisa ressuscitar a veia poética, meu filho”.
Os homens ficaram em silêncio e o céu agora estava coberto de estrelas e
o reflexo prateado da lua cobria os espíritos que flutuavam sobre o mar calmo.
De repente, ouviu-se ao longe um som que parecia o início de um tremor. Como
não se lembrava de ter presenciado um maremoto, o jornalista afirmou: “Ouço
um tropel nas ondas do mar”. “É Ogum com seus cavaleiros”, esclareceu Vinícius
de Moraes.
O barulho foi ficando cada vez mais intenso. O coração de João Guilherme
batia na mesma intensidade daquelas centenas de cascos que se aproximavam. E
eis que ao longe, sob a luz da lua cheia e do manto estelar que iluminavam a
noite da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, surge ele, o Orixá
guerreiro, rodeado por seu exército. O Rei Ogum apeia de seu cavalo branco e
caminha até Vinícius de Moraes. O poeta ajoelha-se com a perna esquerda,
deixando a direita de apoio. Com a mão esquerda fechada ao lado do corpo, bate
com o punho cerrado da mão direita no peito e exclama em alta voz: “Ogu yê!”
O rei de ébano retribui a saudação sem, contudo, curvar-se. A princípio João
fica sem saber como agir, até que instintivamente repete os mesmos gestos de
Vinícius. A entidade o saúda de volta, também sem curvar-se e o encara. O
professor vê centenas de estrelas, luas, planetas e sóis nos olhos do Orixá.
Ogum oferece ajuda para que João Guilherme se levante. Agora o Rei guerreiro
coloca as mãos sobre cada ombro do jornalista e diz com voz de trovão: “O amor
e o perdão são as forças mais poderosas do universo, meu filho. Que o Divino
Pai Eterno, Jesus Cristo Redentor e a Virgem Mãe Maria Santíssima lhe
abençoem com a coragem e a humildade para fazer o que deve ser feito”. Ogum
ainda olhou para João mais uma vez antes de virar-se, montar em seu cavalo e
depois de dar ordens aos seus generais, sumir na imensidão do mar, com a mesma
pompa e circunstância com que tinha chegado. João Guilherme levantou os olhos
como que a procurar alguma explicação para o que tinha acabado de acontecer,
mas só viu clarões de luz que lembravam remotamente uma aurora boreal.
De volta à areia, manteve-se em silêncio por um longo tempo. Por mais
que tentasse, não conseguia acessar os arquivos de memória de sua encarnação
no Rio de Janeiro. Obviamente, a chave para a sentença misteriosa de Ogum.
“Não se esqueça de que você ainda está encarnado”, disse o guia espiritual
Vinícius de Moraes, surgindo ao seu lado, para em seguida completar: “A matéria
é forte impeditivo para muitas ações aqui nas esferas mais sutis. Eu sei que
o que você mais quer agora são respostas e elas virão quando tiverem de vir”.
- E qual o próximo passo?
- Divertir-se!
Ante o olhar surpreso do amigo, o anjo poeta acrescentou: “E para onde
vamos, você tem de estar vestido apropriadamente”. Como que em um passe de
mágica, o professor agora trajava um paletó e calça de linho na cor creme. A
camisa, também de linho, era marrom escura e ele não usava gravata. Como
último acessório, tinha um chapéu marron de pêlo na cabeça.
- Para onde vamos, Vinícius?
- Para o único lugar onde ele pode estar.
- “Ele”? Ele quem? E que lugar é esse?
- Na Lapa, Joãosinho, na Lapa!
4
Era cedo quando João Guilherme e Vinícius de Moraes chegaram. A Lapa
ainda estava relativamente vazia. Somente alguns bares tinham clientes
sentados às mesas postas na calçada. João gastou um bom tempo olhando para os
arcos por onde, há muitos anos, passavam os trens.
- Jão das Letras! E não é que quem é morto sempre aparece?
Surpreso com a saudação gritada, o jornalista olhou para trás e
facilmente identificou o rei da boêmia carioca. Terno branco completo, sapatos
de cromo, gravata vermelha e chapéu panamá branco. Era Zé Pelintra, o Exu
malandro. O guia aproximou-se de João Guilherme e lhe deu um forte abraço.
“Salve, mestre!”, disse em meio ao enorme sorriso. “Mestre?”, indagou João. “E
como não? Vinícius, meu irmão, o que aconteceu com a memória do menestrel?”,
inquiriu seu Zé com sarcasmo.
“Cavalheiros, vamos nos sentar”, sugeriu o poeta. Zé Pelintra e Vinicius
sentaram-se normalmente, mas quando João tentou fazer o mesmo, passou direto
da cadeira e afundou-se no chão. A situação inusitada provocou gargalhadas
nos espíritos desencarnados. “Joãosinho, use o poder anímico para manipular
o fluido universal da cadeira para que então você consiga se sentar”, orientou
Vinícius de Moraes. Meio sem jeito, João pediu orientações mais claras. Seu Zé
riu novamente e explicou: “Apenas deseje sentar-se, mestre”. O professor
obedeceu e desta vez teve sucesso. Constrangido pelos olhares fixos dos colegas
em sua direção, João Guilherme virou-se de lado e viu, no plano físico, uma
bonita loira que passava. “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...”
gracejou Vinícius. “Isso é de fazer virar a cabeça de qualquer homem, não é
mesmo mestre?”, provocou Zé Pelintra. João, por sua vez, não disse nada.
O silêncio da mesa só foi quebrado por Vinícius de Moraes alguns minutos
depois. “Amado irmão Zé, João ainda está encarnado e não se lembra totalmente
de sua encarnação aqui no Rio. Fui instruído por espíritos superiores a
procurá-lo e depois vir até você. Temos de ajudá-lo em uma missão”. Dito isso,
pediu que os três dessem as mãos, fechassem os olhos e pensassem em Jesus
Cristo. “Divino Pai Eterno, vós que sois todo poder e bondade, abençoai-nos
com a Vossa luz no caminho que devemos trilhar. Que o amor de Cristo Jesus e
da Virgem Maria Santíssima esteja em nossos corações para que o perdão, a
justiça e a verdade prevaleçam”, orou. João Guilherme sentiu o corpo todo
estremecer e a cabeça girar – o que fez com que seu Zé Pelintra e Vinícius lhe
segurassem mais forte as mãos. A mente foi bombardeada por fortíssimos raios
de luz e ele começou a suar frio. A situação incômoda fez com que o jornalista
vomitasse várias vezes. Quando os batimentos cardíacos se estabilizaram,
começou a ouvir centenas de vozes. Ao abrir os olhos, viu uma pequena multidão
de pessoas conversando animadamente pelos bares da Lapa. Somente três homens,
em uma mesa à parte, estavam calados. “Até que a gente era bonito, não é
mesmo?”, brincou Vinícius de Moraes. “Eu continuo bonito até hoje”, protestou
Zé Pelintra. Mais uma vez, o professor manteve-se em silêncio.
5
Entre os três, João – o mais velho – é quem tinha o semblante mais pesado.
Naquela época, ele não se chamava João Guilherme Ribeiro, mas sim João Maria
de Albuquerque – um dos escritores mais conceituados do Brasil. Além de
escrever poesias, também fazia sucesso com romances. Cultuado pelos aspirantes
a poeta da época, foi assim que conheceu o ainda rapaz Vinícius de Moraes, que
havia terminado a faculdade de Direito recentemente. João Maria, ou “Jão” das
Letras – alcunha que recebeu do inseparável parceiro da boêmia José Gomes da
Silva. Apesar da fama, do dinheiro e de ser casado com uma das mulheres mais
lindas do Rio de Janeiro, Marina Vital – João não era um homem feliz. Sua
obra por vezes deixava transparecer um homem atormentado pela dor. E para
aplacá-la o poeta se embriagava, noite após noite, junto com Zé Gomes. No chiste
entre amigos, enquanto Zé o chamava de Jão das Letras, este o chamava de “Zé
Pelintra” – de certa forma, um jeito de carinhoso de dizer “pilantra”, como
alternativa ao termo “malandro” – ainda não em voga. Zé Pelintra era um negro
forte e alto, oriundo de Pernambuco. Falastrão e conquistador inveterado, era
o contraponto de João Maria, sempre recatado e discreto. A primeira mesa no
bar do Pereirinha era cativa dos dois. Ali “ficavam ébrios como cavalheiros”,
como explicava Zé Gomes. Muitos dos mais belos sonetos do escritor foram
compostos nessas noites. O jovem Vinícius havia conquistado a simpatia dos
boêmios veteranos com suas poesias e ia ter com eles pelo menos duas vezes por
semana. Como João era “o” poeta, Vinícius passou a ser chamado por Zé de
“poetinha”.
Mas naquela noite o clima estava pesado entre os três amigos. Zé Pelintra,
mulherengo incorrigível, havia se engraçado para o lado de uma loira
lindíssima - e casada. A mulher não havia gostado dos gracejos e, farta com a
insistência, contou tudo ao marido. Este, por sua vez, fez saber na Lapa que,
naquela noite, queria encontrar-se com Zé Gomes para tomar satisfações. Zé
Pelintra, inconsequente como sempre, comemorou o fato. “Pronto! O corno vem
aqui me desafiar e eu acabo com ele”, disse passando a mão pelo cabo de osso do
punhal“. E como prêmio, ganho uma deusa loura”, contou olhando para João,
como que a esperar por aprovação. Mas o poeta não pronunciou uma única
palavra e sorveu lentamente mais um gole de uísque e fechou os olhos como que
a reviver algum sonho distante. João Maria pensava no próprio casamento,
marcado por brigas e ciúme, que só se mantinha na aparência. E para piorar, a
esposa não podia ter filhos – verdadeira obsessão do escritor. A situação tinha
ficado insuportável quando Marina achou no bolso do paletó dele uma carta
com letra e perfume de mulher. Na pequena correspondência, que não tinha
assinatura, lia-se:
“João, meu poeta adorado, minha vida nunca mais pode ser a mesma depois que
lhe conheci. Nossas noites de amor reacenderam o fogo da paixão em meu coração.
Quando estou em teus braços sinto-me uma mulher em toda a plenitude. Cada
instante longe de ti é como um açoite à minha alma. Por favor, liberte-me
dessa prisão que tem sido a minha vida neste casamento mentiroso. Eu não o
amo. Amo somente a ti, bem o sabes. Vamos embora para longe. Podemos ser felizes
em qualquer lugar. O que ainda te prende aqui? Estou disposta a tudo pra
ficar ao teu lado. Em breve nascerá o fruto do nosso amor. Em pouco tempo não
será mais possível esconder minha situação. Por favor, João, não vire as costas
pra mim. P.S.: Muito obrigada pelo poema publicado no jornal. Chorei de emoção”.
O conteúdo da carta foi como uma bofetada para Marina. Agora estava
claro o porquê de João quase não procurá-la, da frieza e irritação constantes.
Naquela madrugada, quando o esposo chegou, a mulher decidiu confrontá-lo pela
última vez. “Então quer dizer que o senhor tem um caso com uma mulher casada
e ainda por cima vai ter um filho com ela? Que linda atitude para o respeitado
escritor João Maria de Albuquerque, não é mesmo?”, gritou com a carta na mão,
em um tom ao mesmo tempo sarcástico e ameaçador. Como de costume, João não
esboçou nenhuma reação. Depois de alguns instantes e com um semblante austero,
encaminhou-se em direção à esposa, tomou-lhe a carta das mãos e trancou-se
no escritório até o amanhecer.
“Fidelidade... afinal, o que significa fidelidade?”, com estas palavras de
Vinícius de Moraes, João Maria foi trazido de volta à realidade. “O que o
senhor acha?”, quis saber do mestre o jovem poeta. “Por que a pergunta, filho?”,
retrucou. “É que o nosso amigo Zé está tentando me convencer que a fidelidade
é um conceito relativo e que, dependendo das circunstâncias, não precisa ser
levada em conta. Eu já penso que a fidelidade é fruto do amor genuíno,
imortal”, explicou Vinícius. João – que nunca dizia nada de pronto – pensou
por um momento e respondeu com voz pausada. “A fidelidade é uma convenção
social. Uma forma mesmo de controle, quase sempre calcada no outro. Eu quero
dizer, via de regra, o exercício da fidelidade é praticado em favor de algo ou
alguém em detrimento de nós mesmos. Nesse ponto, concordo com o amigo Zé que
ela não deva ser absoluta”, ponderou. “Então a fidelidade no amor não é
pressuposto inquestionável?”, quis saber mais Vinícius. “O amor não é imortal,
meu poetinha”, respondeu João Maria secamente. “O amor é uma chama cuja força
varia de acordo com o sopro do vento. Ou seja, de acordo com a intensidade de
cada momento”, completou. “Pois então que seja infinito enquanto durar”,
intrometeu-se Zé Pelintra em voz alta. “E o amor da minha deusa loura pelo
marido já durou o que tinha de durar. O amor dela agora é meu e juntos vamos
vivê-lo em cada vão momento”, comemorou.
João tomou mais um gole de uísque e olhando para o amigo de longa data,
quis saber: “Zé Pelintra, meu irmão da noite, o que o faz pensar que essa
mulher também lhe tem afeto?” Como era de seu feitio, Zé Gomes esboçou um
sorriso e replicou ao companheiro: “Lembra quando o amigo passou uma semana
em São Paulo, no mês passado? Pois bem, eu, claro, não deixei de frequentar o
nosso ponto – até teu copo ficou colocado aí. Acontece que por três noites
seguidas essa mulher, essa deusa loura, ficou andando aqui pela Lapa como que
a procurar alguém. Ela não tinha jeito de dama da noite, eu as conheço bem,
como bem sabeis. Mais de uma vez ela me olhou e quase veio falar comigo. Mas
quando eu fazia menção de me levantar, ela virava as costas”, explicou. “E o
senhor acha que ela estava à vossa procura, Seu Zé?”, interrompeu Vinícius.
“E não? A minha fama de bom amante já se espalhou por toda a cidade
maravilhosa e mulheres de todos os cantos vêm me procurar. Mas depois ela
sumiu e aí eu é que fui procurá-la. Acredita que a danada deu uma de difícil?”,
respondeu Zé Gomes sem nenhuma modéstia.
O que era somente uma desconfiança tornou-se uma certeza para João
Maria. A deusa loura de Zé Pelintra era a sua amante Amparo, esposa do
sargento Savério. Após elegantemente pedir licença aos colegas, o escritor
levantou-se e foi ao banheiro. Enquanto lavava o rosto, olhou-se no espelho
e pela primeira vez na vida, sentiu vergonha de si mesmo. A teoria da
imortalidade do amor defendida por Vinícius havia mexido consigo. “Essa
mulher sabe que você é casado?”, lembrou-se dos gritos furiosos de Marina.
“Parece que não, para ela ter a petulância de perguntar, como é mesmo? ‘O que
ainda te prende aqui?’”, a voz da jovem esposa ecoava em sua cabeça. Mas sim,
Amparo sabia que João era casado. Entretanto, Zé Pelintra, seu melhor amigo,
ignorava que os dois tinham um caso e o marido não tinha conhecimento que
ela esperava um filho de outro homem. Essa situação poderia ser um golpe
terrível na reputação do escritor e acabar de vez com as pretensões de ser
admitido na Academia Brasileira de Letras. A vergonha que sentia era por
importar-se muito mais com o status social que com “a outra”, a quem realmente
amava. Em um inédito acesso de fúria, João Maria cerrou o punho direito e
esmurrou o vidro do espelho até quebrá-lo.
A lua estava alta no céu quando João voltou à mesa. Zé Gomes e Vinícius
estranharam a mão ensanguentada, mas não ousaram perguntar nada, dado o
estado visivelmente alterado do escritor. Em seu íntimo, ele sabia que aquilo
não acabaria bem. Algo de trágico se anunciava para aquela noite. Mas como
demover Zé Gomes da ideia fixa de conquistar a mulher matando-lhe o marido?
A Lapa estava lotada e o som de música e de pessoas conversando começou a
provocar tonturas em João Maria. A vontade era de sair dali imediatamente,
porém não podia abandonar o amigo. A situação permaneceu inalterada ainda
por mais uma hora. Nesse ínterim, o trio trocou pouquíssimas palavras e o
estado de embriaguez começava a se manifestar. “Talvez, afinal de contas, o
sargento não venha tomar satisfações”, supôs João, um pouco mais aliviado. Se
assim fosse, considerou fortemente a possibilidade de fugir com Amparo para
a Inglaterra, onde tinha estudado na juventude e possuía muitos amigos.
“Covarde! Covarde! Covarde! Mil vezes covarde!”, esbravejou Zé Pelintra
em pé e com a faca em punho. “Eu sou José Gomes da Silva, batizado por meu
querido poeta, Jão das Letras, de Seu Zé Pelintra. Sou o rei da noite e comigo
ninguém pode. Que todos saibam que existe um homem na cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro, cujo nome não sei e nem quero saber, que não honra as calças
que veste e tem medo de defender a honra da mulher”. Enquanto Vinícius apenas
ria da performance teatral de Zé Gomes, julgando não passar de mais um de
seus rompantes, João Maria tentou acalmá-lo. Ato inútil, Zé Pelintra ficou
ainda mais irritado e desta vez subiu na mesa para dizer novamente tudo o
que havia dito antes. Por uma fração de segundos a música parou e nenhuma
voz se ouviu. Zé Gomes ainda lançou mais uma vez seu brado aos céus. Quando
finalmente se calou, ficou olhando para a lua e as estrelas, que naquela noite
tinham um brilho diferente. “Safado!” A ofensa, dita em voz alta, rompeu a
quietude do ambiente. Zé virou-se para ver de onde partira tamanho
desrespeito. Mal tinha olhado para trás, ouviu o estampido seco do revólver
do sargento Sáverio. O tiro acertou em cheio o rosto de José Gomes da Silva, o
lendário Zé Pelintra. Movido por uma força desconhecida, João Maria lançou-
se contra o militar em uma luta de vida ou morte. Vinícius de Moraes e os
outros habitués não ousaram intrometer-se. No calor da briga, a arma de fogo
foi lançada para longe e foi nervosamente apanhada pela mulher loura que
acabara de chegar ao local. Seu grito agudo fez com que os dois interrompessem
a contenda. “Parem com isso. Se não, eu acabo com a minha vida agora mesmo”,
disse apontando o revólver contra o ouvido.
Diante da iminência de uma tragédia, Savério e João concordaram com uma
trégua e se desvencilharam. Contudo, a mulher mantinha a mesma atitude de
ameaça. Uma mistura de ódio e incompreensão dominava o olhar do militar e
ele não pronunciou uma única palavra. Como a amada mostrava-se resoluta,
João Maria ignorou as consequências e pôs-se a falar. “Amparo, minha vida,
minha estrela matutina, eu te imploro, não faça isso. Abaixe essa arma. Pense
no nosso amor, pense no nosso filho que está para nascer”, balbuciou com a voz
sôfrega. A inusitada declaração pública de amor provocou na mulher um pranto
convulsivo. Lentamente João se encaminhou a ela e, tirando o paletó, envolveu-
a num terno abraço e cuidadosamente tomou-lhe a pistola da mão. Ao fazer isso,
nem se apercebeu do terrível erro que acabava de cometer. O rival, agora mais
louco de ódio do que nunca por descobrir que a esposa tinha um caso secreto e
ainda por cima esperava um filho de outro homem, em um misto de desespero e
desejo insano de vingança, sacou de outra arma que trazia escondida no coturno
e precipitou-se em direção ao casal. “Desgraçada! Eu te mato, sua prostituta!”
Novamente impelido por uma força desconhecida, João Maria entrou na frente
da amante protegendo-a com o próprio corpo. O tiro, à queima roupa, atingiu-
lhe o peito, próximo ao coração e o fez tombar. Antes que pudesse disparar
outro tiro, Savério foi contido por Vinícius de Moraes e os garçons do bar.
Em pânico, Amparo apertou o corpo de João Maria contra si e, vendo que o amado
ainda respirava, clamou por socorro. Com dificuldade, os olhos do poeta
encontraram os da musa. Sua voz era apenas um sussurro.
- Amparo... amor da minha vida... me perdoe... eu te imploro... cuide de
nosso filho... diga que lhe amo... faça com que ele... tenha orgulho de mim...
- Não, não, não, meu amor! João, você não vai morrer. Eu te proíbo! Nós
vamos criar nosso filho longe daqui, na Inglaterra, como sempre sonhamos. Meu
amor, em nome de Deus, por tudo o que é mais sagrado, não me deixe.
“Não me deixe” – ironia das ironias, o primeiro e o último encontro entre
João Maria e Amparo terminavam com a mesma súplica.
Naquela manhã de domingo, há exato um ano, o sol iluminava a cidade com
um brilho carinhoso. Não se via nenhuma nuvem e o azul do céu e o azul do mar
eram como o reflexo um do outro. João Maria de Albuquerque participava de um
café da manhã especial junto com outros escritores na aristocrática
Confeitaria Colombo. Os homens das letras se alternavam na leitura dos
próprios poemas e de autores estrangeiros. Porém, mais do que a paixão pela
poesia em si, havia uma enorme competição de egos como pano de fundo no sarau.
E para tanto valia toda sorte de exibições, como recitar em outros idiomas.
Nisso João era mestre. Poliglota e dono de uma voz grave, ele declamava William
Shakespeare, Pablo Neruda, Charles Baudelaire e Catulo no original.
Especialmente inspirado, recitou – de memória – o famoso monólogo “To be or
not to be” do príncipe Hamlet, da peça homônima. O escritor sabia que o
desempenho seria primordial na batalha que travava com o romancista
Sebastião de Mello pela cadeira vaga na Academia Brasileira de Letras. Depois
de declamar, obteve muitas palmas e passou a vez para o concorrente. Enquanto
Mello recitava, João sentiu estar sendo observado. Ainda demorou um momento
até que olhasse de lado. A princípio não notou nada de anormal nas pessoas ao
redor, atentas à performance do adversário. Mas então, como quando o céu se
abre depois de uma tempestade por detrás das nuvens, João Maria deparou-se
com o mais lindo par de olhos azuis que já tinha visto na vida. Ela tinha
traços finos, estatura mediana e corpo esguio. Só com algum esforço, o poeta
conseguiu notar o dourado dos cabelos por baixo da touca. Foi quando prestou
atenção no resto do uniforme e ficou claro que se tratava de uma das várias
atendentes da confeitaria.
João Maria agora era escravo daquele olhar azul celeste. Inútil a
tentativa de não encará-la. Ainda que timidamente, a moça sorriu e João quase
derrubou o café. Ela sorriu novamente e ele tentou disfarçar cofiando o
bigode. Nesse momento o sorriso encantador da jovem desapareceu e o
constrangimento ficou nítido. Sem perceber, João tinha feito o movimento com
a mão esquerda e a aliança de ouro no dedo anelar refletiu a luz da manhã
ensolarada. Quando a sessão de leitura terminou, o poeta procurou inutilmente
pela linda mulher que havia lhe provocado um turbilhão de emoções no coração.
Mas não se deu por vencido. Oferecendo uma pequena gorjeta ao rapaz do caixa,
inquiriu com certo ar de desinteresse o nome da moça. “Amparo”, foi a resposta.
O escritor saiu da confeitaria junto com os colegas escritores, mas só foi até
a esquina. Andou mais um pouco e viu algo que podia dar-lhe novo alento, uma
chance de desfazer a má impressão deixada. E o que seria melhor do que um
buquê de rosas? Agora só faltava um cartão com a mensagem certa. Metódico e
perfeccionista na composição de seus versos, nunca passara pela aflição de
escrever algo às pressas. Após alguns torturantes instantes, caprichou na
caligrafia:
“Amparo,
Em teus olhos estão todos os azuis da natureza. O azul dos mistérios do
mar; o azul da liberdade do céu e o azul delicado da borboleta que deixa um
beijo de amor em cada rosa que visita”.
Em seguida, pagou nova gorjeta para que um menino entregasse as flores
sem demora. Enquanto esperava o guri voltar, ficou lendo o jornal. E qual não
foi a surpresa quando viu o garoto, na porta do estabelecimento, lhe
apontando? A primeira reação foi virar as costas e sair andando. Todavia algo
muito mais forte o impediu. Ele quedou-se mais surpreso ainda quando Amparo,
com as flores em mãos, veio em sua direção. Habituado a falar para multidões,
João Maria ficou desconcertado quando a mulher parou diante de si. “Eu só
vim agradecer pelas flores e pelo cartão. Gostei muito, mas não posso aceitar”,
disse com voz firme. “Por favor, eu insisto”, retrucou o escritor. “Mas o senhor
é casado. Isso não está certo”, rebateu. “Sim, não nego que sou casado. Eu não
costumo ficar de paqueras, mas é que a senhorita é muito linda e mexeu deveras
comigo”, tentou explicar.
Por um momento, nenhuma palavra foi pronunciada enquanto o homem e a
mulher se olhavam ali no meio da calçada. Finalmente ela tomou a iniciativa.
“O senhor é um homem muito galante e deve se divertir às custas de moças
inexperientes como eu. Peço que aceite as minhas desculpas pelo
constrangimento que lhe causei lá dentro da confeitaria”. Agora não era mais
somente a beleza de Amparo que chamava a atenção do escritor. A sua voz doce
era um complemento perfeito à sua eloquência. Outra vez ela fez menção de
devolver o buquê, mas João antecipou-se: “Queira me perdoar pela grosseria.
De forma alguma eu quis lhe desrespeitar. Só peço que fique com as flores. Que
elas possam embelezar o teu dia, assim como você embelezou o meu”. Ela sorriu.
Depois de agradecer novamente, virou-se e sumiu no meio da multidão. O poeta
ainda ficou parado, como que em estado de transe. “E então, voltas no mesmo
bonde que nós?”, foi essa pergunta, feita pelo escritor Sebastião Mello, que
fez com que João Maria retornasse ao momento presente. “Agradecido pela
gentileza da oferta, caros amigos, mas acho que ainda vou ficar mais um tempo
por aqui, haja vista que a minha senhora foi visitar os pais em Petrópolis e
estou sozinho em casa”.
Livre de olhares curiosos, João agora usaria de uma de suas maiores
virtudes: a paciência. Como não sabia a que horas Amparo sairia do trabalho,
sentou-se estrategicamente na direção da porta da frente do comércio e pôs-
se a esperar. Somente duas horas depois é que a mulher que havia lhe encantado
os olhos apareceu na rua, já sem o uniforme. Seus cabelos loiros e ondulados
iam até um pouco abaixo do ombro. Ela usava um vestido branco com detalhes
floreados e a silhueta das pernas se insinuava sob o reflexo do sol. Quando
notou que João Maria caminhava em sua direção, a primeira reação foi sorrir
de forma a explicitar o contentamento. Depois se conteve, ao lembrar-se do
estado civil do poeta que tanto admirava. “Com licença, senhorita Amparo. Se
me permite, gostaria de falhar-se por alguns instantes”, interpelou. “Não sei
se seria prudente, senhor João Maria”, respondeu enfatizando a palavra
senhor. “Por favor, não me tome por inconveniente, mas eu insisto”. Após
hesitar um pouco, Amparo resolveu dar-lhe a atenção solicitada. “Muito
obrigado pela gentileza, senhorita. Posso convidá-la para um sorvete?” Convite
aceito, os dois caminharam por algumas quadras até encontrarem um local
discreto. Embora não soubessem explicar, João e Amparo sentiam como se aquele
fosse um reencontro depois de longa separação. A jovem contou que era natural
do Rio mesmo e que aquele trabalho era apenas temporário. Com o salário,
compraria um piano usado e voltaria a dar aulas, ofício que exercia antes de
ter de vender o instrumento para ajudar no tratamento da doença da mãe. Por
sua vez, o escritor falava da tristeza de viver um casamento de aparências
com uma mulher que não podia lhe dar filhos. A conversa durou por quase três
horas até que ambos não conseguiam mais disfarçar o fogo da paixão que se
acendia. “Você confia em mim?”, disse João olhando profundamente nos olhos
azuis da moça. “Sim, confio”, respondeu ela sem pensar. Mandando a discrição
às favas, João Maria tomou-a pela mão e chamando um cocheiro, dirigiram-se
para um hotel no centro da cidade.
Já era tarde da noite quando o casal parou de fazer amor. Amparo não
morava muito distante de João iria lhe garantir o transporte. Ainda na cama,
beijaram-se longa e ternamente. Insegura por ter acabado de perder a
inocência, ela repousou a cabeça no ombro do poeta e pediu: “Por favor, não me
deixe...”
Nunca havia se ouvido silêncio tão profundo na Lapa. Dois de seus mais
ilustres frequentadores haviam se encontrado com a morte. Foi o jovem
Vinícius de Moraes que fechou os olhos do poeta e, após ajudar Amparo a se
levantar, cobriu o corpo do mestre estendido no chão frio. O poetinha fez o
mesmo com José Gomes. Seguindo uma inspiração sobrenatural, propôs um brinde
aos reis da noite. Uma dose de uísque foi colocada ao lado de cada corpo e,
erguendo os copos, todos os boêmios fizeram um brinde de despedida a Jão das
Letras e Zé Pelintra. Em seguida, Vinícius recitou um dos mais conhecidos
sonetos de João Maria de Albuquerque. Somente Amparo não prestou atenção. O
único ânimo que tinha para viver estava em seu ventre, filho do homem que
amava e que agora jazia morto.
6
Ao despertar, mais uma vez de olhos fechados, tudo que João
Guilherme percebia eram cores. Infinitas cores. Sentia como se o corpo
estivesse flutuando muito acima do chão, embora o coração estivesse pesado.
Reviver cenas de uma encarnação anterior tinha mexido muito consigo.
Repentinamente, foi acometido de uma crise de choro. A separação trágica da
amada dilacerava-lhe a alma. Tentou abrir os olhos ou pelo menos mover alguma
parte do corpo. Inútil. Instantes depois, adormecia de novo.
“Meu amigo, hora de abrir os olhos!”, a voz era de Zé Pelintra. Com muito
esforço João conseguiu atender ao pedido do compadre. A alguns metros,
Vinícius de Moraes fez uma saudação com um sorriso. “Onde estamos?”, indagou
o professor. “Nós estamos onde você quiser. Imagine um lugar e pronto -
estaremos lá”, explicou o exu. O jornalista imaginou o Corcovado. Durante
alguns minutos os três amigos nada disseram. Até que Vinícius, levantando-se
do degrau onde sentava, olhou para João e falou: “Bem, uma parte da história
você já conhece”. “Meu Deus... tudo isso é demais pra minha cabeça”, desabafou
João. ”Joãosinho...” antes que o poetinha completasse a sentença, o professor
perguntou com ênfase: “E o que aconteceu a Amparo? E ao meu filho?”. Novo
silêncio. “Filha, Jão, filha...” esclareceu por fim Zé Pelintra.
“Muito bem cavalheiros, vamos direto ao ponto”, estabeleceu Vinícius de
Moraes. “Antes que a história toda seja revelada, é preciso que você se encontre
com alguém”, completou. O jornalista respirou aliviado ao inferir que o
encontro seria com Amparo. Só podia ser. A convicção era tanta que ele nem se
deu ao trabalho de pedir qualquer esclarecimento aos amigos. “E o que estamos
esperando? Vamos logo”, alvoreceu-se. “Onde você vai, compadre, Vinícius e eu
não podemos ir. Só desejamos que tenha a coragem e a humildade de fazer o que
deve ser feito”, exortou Zé Pelintra. Coragem e humildade – essas tinham sido
exatamente as palavras de Ogum quando do encontro na praia de Ipanema. João
Guilherme respirou fundo e, fechando os olhos, fez uma prece silenciosa ao
rei guerreiro. Quando terminou, Vinícius de Moraes e Zé Pelintra tinham
desaparecido.
O poeta olhou ao redor de si e nada viu. O silêncio era sepulcral. Uma
leve brisa começou a soprar. A brisa ficou então mais forte e um calafrio
atravessou-lhe o corpo. Ele não resistiu ao choque e caiu de joelhos no chão.
João não precisou olhar para trás para sentir a forte presença que havia se
manifestado. “Amparo?”, perguntou timidamente. “A cara está diferente, mas
você continua o atrevido de sempre, não é mesmo?”, foi a resposta que teve.
Virando-se, João Guilherme defrontou-se com o homem pelo qual tinha sido
morto: Sargento Savério.
- Desgraçado, você acabou com a minha vida, poeta de merda.
- E você com a minha.
- Você tirou de mim a única pessoa que amei.
- Um homem não espanca a mulher que diz amar.
- Não quando a mulher é fiel.
Depois da primeira vez com Amparo, muitas outras se sucederam. A ponto
de João Maria alugar uma casa somente para esses encontros. A intenção era
que a amante morasse definitivamente na residência, até que ele se separasse
da mulher. Entretanto, a jovem preferiu continuar morando com os pais. Depois
de quase um ano de espera e como a separação prometida nunca acontecia,
seguindo os conselhos da mãe, ela resolveu encerrar o romance e finalmente
dar uma chance ao recém-promovido sargento do exército, Savério Anunciação.
O ambiente foi sendo tomado por uma forte luz vermelha. Os dois homens
se olhavam com profundo rancor. Foi quando João Guilherme teve a nítida
impressão de já ter visto o militar na atual encarnação e em alguma anterior
a do Rio de Janeiro. “A sua sorte é que não tenho a permissão de acabar de vez
com você”, bradou Savério. O jornalista não replicou a provocação. Apenas
fechou os olhos. “Coragem e humildade”, as palavras do Rei Ogum vieram-lhe
forte no coração. “Meu irmão”, começou a dizer com serenidade na voz,
“realmente o que fiz foi errado. Eu desonrei a tua esposa e a minha também.
Tudo em nome do orgulho. Amparo foi a melhor coisa que me aconteceu na vida.
Eu a amava do fundo do coração, mas isso não me dava o direito de fazer o que
fiz”. Um profundo sentimento de vergonha inundava a alma de João Guilherme.
No caminho espiritual que havia escolhido, a evolução moral era algo levado
extremamente a sério. E era isso que buscava de todo o coração. Ele sabia que
devia controlar as paixões e os pensamentos para não ser dominado pelo ego. E
foi pensando no Cristo que conseguiu harmonizar-se e de seu coração começou
a fluir uma pequena esfera de luz alaranjada. O brilho foi se expandindo e a
sinceridade das palavras do poeta de alguma forma tinha mexido com o
sargento. O tom rubro de seu rosto começou a desvanecer. “Por que você não se
casou com ela quando pôde? Era só você ter se separado da sua mulher”. “Eu
tive medo. Parece que minha vida toda foi sempre marcada pelo medo. Mas
perante o Divino Pai Eterno, que nos colocou frente a frente novamente, eu
peço humildemente o teu perdão. Eu ainda estou encarnado e agora fica óbvio
que os espíritos superiores me trouxeram aqui para isso”, disse João, de cabeça
baixa.
Confuso com o que acabara de ouvir, Savério hesitou por um breve
instante. Mas logo as lembranças da humilhação sofrida e do desprezo de Amparo
desencadearam uma forte onda de energia negativa em seu íntimo e, envolto
novamente por uma luz rubra, respondeu: “Depois de morto todo mundo fica
bonzinho. Pois guarde o arrependimento pra si mesmo, filho da puta. Eu não te
perdoarei nunca e não vou descansar enquanto você não pagar por tudo que me
fez. Em breve, muito breve, nos veremos novamente”. Tomado de espanto pela
ameaça, o poeta pensou em pedir esclarecimentos, mas foi surpreendido pela
aparição de Zé Pelintra e Vinícius de Moraes. Savério e Zé trocaram um olhar
que deixou claro para o professor que eles tinham passado pela mesma situação
em algum momento de suas vidas. Sem notar, os quatro espíritos formavam a
figura de uma cruz. Antes que qualquer palavra pudesse ser dita, uma luz
branca surgiu no meio deles. O brilho foi se intensificando até resplandecer
em todo o ambiente. Mais uma vez, João viu-se sozinho e, ofuscado pela
claridade, fechou os olhos e foi tomado por imenso frio. Seu corpo começou a
tremer e ele entrou em uma crise de pânico. “Jesus, Jesus, Jesus, o maravilhoso
nome de Jesus...”, repetiu incontáveis vezes. Vagarosamente os batimentos
cardíacos foram voltando ao normal. Nesse momento despertou, mas de olhos
fechados. Enquanto pensava em tudo que acontecera, sentiu que sua mão era
envolvida por outra. A sensação foi de profunda paz e o professor ouviu uma
voz familiar a lhe sussurrar no ouvido: “Não tenha medo, meu amor. Eu estou
contigo”.
7
Embora convicto de que estava acordado, João Guilherme não conseguia
abrir os olhos ou mover qualquer parte do corpo. “Eu sou o fogo violeta com a
chama do sétimo raio; eu sou a elevação na libertação da minha alma”, repetiu
mentalmente durante alguns minutos na tentativa de consolar seu espírito.
Também lembrou-se dos hinos do Santo Daime que mais gostava, inclusive alguns
que ele próprio havia recebido. Em seguida vieram-lhe à mente a lembrança da
amada Mãe Oxum e do protetor Rei Ogum. São Miguel Arcanjo, Nossa Senhora da
Conceição e por fim, da Virgem Mãe Maria Santíssima. Sob as bênçãos de todos
esses seres divinos, o poeta adormeceu novamente. O sono que o havia dominado
era pesado e sem sonhos. Somente depois de algumas horas é que o primeiro
deles veio. Nele, via a si mesmo ainda criança ao lado do avô Floriano. Na
primeira infância, fora ele o seu verdadeiro pai, até João ser adotado pelos
tios e mudasse de casa. Ao ver o amado avô e pai, começou a chorar. Inútil a
tentativa de tentar se comunicar com o velho de cintilantes olhos azuis. O
poeta não estava desdobrado. Era um sonho tradicional. Nele, revia uma cena
ocorrida há muito tempo quando jogava damas com o patriarca da família na
calçada da humilde casa em que moravam com o resto da numerosa parentalha.
Ao olhar para si quando menino, João Guilherme lembrou-se de uma frase
atribuída ao escritor português José Saramago de que “fiz tudo na vida para
me tornar um homem que não envergonhasse a criança que fui”. O professor
ainda gastou um tempo olhando para as mãos de seu pai. Garimpeiro de
profissão, o homem robusto que tinha vindo sozinho do longínquo estado do
Pará, tinha as mãos nodosas e calejadas, exatamente como as descritas pelo
poeta Mário Quintana no poema “Meu velho pai”. João Guilherme sentia a alma
repleta do mais puro amor e paz. Erguendo a cabeça, olhou para o céu nublado
e quando retornou o olhar a cena havia se desfeito. Ele estava sozinho na rua
deserta. Tontura, tremores pelo corpo, visão turva, sequidão na garganta e por
fim João despertava. Desta vez, ainda que de olhos fechados, conseguiu notar
alguns vultos diante de si. Estranhou que a luz estivesse acesa e, ato contínuo,
não conseguia falar.
8
Em sua busca espiritual, o professor João Guilherme Ribeiro era um voraz
consumidor de livros e filmes. Em um dos filmes que tinha assistido, o
protagonista vivia em constante estado de sonho e, como não conseguia nunca
despertar, julgou estar morto. Este era o pensamento que lhe ocupava a mente
agora. Além dos vultos, ele conseguia notar o som de vozes, embora não fosse
possível discernir o que diziam. Impotente diante da situação, o jornalista
resolveu tentar dormir e fazer a projeção astral. Durante quase uma hora,
usou as técnicas que aprendera nas várias oficinas que tinha participado. O
sono chegou lenta e suavemente. Quando a sensação de balonamento
intensificou-se, soube que já podia deixar o corpo. Para vencer a escuridão,
repetiu o comando mental de luz. Ele ficou surpreso e não menos frustrado ao
notar que não estava no Rio de Janeiro, como tinha sido até o momento, e sim
na própria cidade natal – Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. O professor
estava no centro histórico, no chamado Calçadão. Pela total ausência de pessoas
na rua, julgou que deveria ser de madrugada e pôs-se a caminhar lentamente.
“O sinhô é um anjo?”, a pergunta inusitada foi feita por um menino maltrapilho
que estava deitado entre papelões embaixo de um toldo. “Por que você acha que
sou um anjo”, respondeu João de forma simpática. “É que o sinhô tá tudo de
branco. Tirano o chapéu e a camisa”, replicou o garoto.
Quando o menino levantou-se é que o jornalista percebeu nele a ausência
do cordão de prata. Tratava-se de um espírito desencarnado. “Não, eu não sou
um anjo. Mas me fala, o que você está fazendo sozinho aqui, meu filho?”,
questionou. “Eu num tô sozinho, dotô. Eu tô com meus amigo. Qué vê eles?”,
rebateu a criança.
Levantando as outras partes da barraca improvisada de papelão, a
irrequieta figura cutucou outros dois garotos que dormiam. “Ô, nóis tem
visita”. Esquálidos e sujos, os três pareciam irmãos. “E então, desde quando
vocês estão aqui?”, quis saber João Guilherme. “Nóis num sabe, dotô”, respondeu
o que aparentava ser o mais velho. “E como vocês vieram parar aqui?”,
perguntou tomando o cuidado para não deixar transparecer que os garotos já
tinham morrido, pois havia a possibilidade de eles não saberem disso. “Nóis
num se alembra”, replicou o mesmo guri.
– E quantos anos vocês têm?
- Nóis num sabe.
Aquela situação começou a causar uma profunda angústia no coração de
João. Não ter ciência da morte e não se recordar da própria identidade era
deveras cruel com qualquer um – muito mais com uma criança. Sem ter mais o
que perguntar, decidiu ficar calado. Havia um misto de encanto e devoção no
olhar que os meninos lhe dirigiam. O professor pensou em convidá-los para
fazer uma prece, mas antes que o fizesse, ouviu uma forte freada de carro,
vindo da avenida paralela. Os moleques também ouviram e seus olhos foram
tomados de um terrível pânico. “Corre, corre, corre. Eles tá vino! Eles tá
vino!”, gritava o mais velho enquanto sumiam na escuridão. O poeta ainda
esperou para ver de quem se tratava, porém, ninguém apareceu. Novamente
sozinho, volitou até o terraço de um alto prédio comercial a menos de 200
metros. Lá de cima, podia ver toda a cidade. Embora sabendo que já tinha sido
carioca, era pela amada Cuiabá que seu coração batia mais forte.
“Saudosista, hein seu Jão das Letras?”. Só existia uma pessoa no mundo
que o chamava assim. Claro, Zé Pelintra tinha voltado. “Por onde andou, amigo?
Senti a tua falta”, disse João abrindo um sorriso. “Eu venho daqui, dali, de
todo lugar”, respondeu o orixá simulando um passo de samba.
- Por acaso você sabe quem eram aqueles meninos que encontrei agora há
pouco?
- Claro que sei. E você também sabe – e muito bem. Mas não se preocupe
que no momento certo você vai se lembrar.
O poeta não disse mais nada. Apenas ficou olhando para as luzes que
brilhavam pequeninas lá embaixo na rua. Depois, respirou fundo, e disse: “Meu
amigo, meu irmão, José Gomes, vulgo Zé Pelintra, humildemente peço o vosso
perdão”.
- Mas do que você está falando, homem?
- Eu tive uma grande parcela de culpa com o que lhe aconteceu. Na maneira
como você desencarnou. Eu deveria ter lhe avisado desde o início sobre Amparo.
Na verdade, naquela noite, o marido dela foi à Lapa procurando por mim e não
por ti.
- Não, meu irmão. Ele estava atrás de mim mesmo. Tudo bem que ele
desconfiava da mulher, mas ele não sabia de você. Além do mais, Jão, e você
sabe muito bem disso, tudo o que acontece na Terra só acontece porque assim
permite nosso Divino Pai Eterno. Você não tem culpa de nada.
- E você não encarnou mais depois?
- Não. Mas enquanto não recebo essa dádiva, vou me dedicando à missão
que me foi confiada pelo nosso bom Deus.
- E que missão é essa?
- Cuidar de você, meu irmão. De você e de outros poetas boêmios.
João Guilherme riu da última frase de Zé Pelintra e com a mão no ombro
do amigo confessou: “Eu não sou mais boêmio, seu Zé. Há seis anos que não boto
uma gota de álcool na boca. Até na roda de samba parei de ir”. “E eu não sei?
O ex-rei da noite carioca agora só quer saber de tomar Daime e expandir a
consciência”, disse seu Zé soltando uma gargalhada que ecoou no coração da
noite. Diante da resposta hilária, João não resistiu e caiu na risada também.
Os dois espíritos ficaram juntos no alto do prédio durante o resto da
madrugada relembrando os velhos tempos. “Hora de cantar pra subir”, disse Zé
Pelintra quando o sol começou a insinuar-se no horizonte. “Você precisa
descansar, poeta. Ainda vem muita demanda por aí. Feche os olhos, por favor”,
completou. Os amigos se abraçaram e, quando João Guilherme abriu os olhos,
Seu Zé tinha sumido no meio dos primeiros raios do astro rei. Havia muita
coisa a ser esclarecida e a mais importante era: o que teria acontecido a
Amparo? E à sua filha? Mas se tinha algo que ele tinha aprendido nos últimos
dias era que tudo tem seu tempo. Consolado por esta certeza, o jornalista
fechou os olhos novamente e voltou ao corpo físico.
9
Ao contrário do que vinha acontecendo nas últimas vezes em que
despertava do estado de projeção, desta vez, ao invés de estar de olhos fechados
e envolto de escuridão, João Guilherme estava de olhos semicerrados e tinha
diante de si uma suave luz que mesclava as cores azul, branca, violeta e
laranja. Ainda sem conseguir levantar-se, ergueu as mãos na tentativa de vê-
las. Porém, tudo que viu foram figuras disformes. Para João Guilherme não
havia mais dúvida: ele havia desencarnado. A princípio a sensação foi de
tristeza, depois de profunda gratidão por tudo que tinha conseguido aprender
em sua busca espiritual na Terra. Talvez agora pudesse juntar-se, até a
próxima encarnação, aos dois irmãos espirituais - Vinícius de Moraes e Zé
Pelintra - e auxiliar outras almas encarnadas ou desencarnadas. Sem saber
exatamente o que fazer naquela hora em particular, apenas esperava. A
expectativa era de que cedo ou tarde algum espírito viesse resgatá-lo.
Enquanto isso, rezou mentalmente por muitos de seus familiares e amigos.
Todavia, à medida que o tempo passava e nada acontecia, sua aflição
começava a aumentar. Ele tinha aprendido que o desprendimento da alma do
corpo, após a morte, estava diretamente relacionado ao grau de apego à matéria.
Havia relatos de que, em alguns casos, esse processo durava até anos. Outra
coisa que o incomodava em demasia é que, por mais que se esforçasse, não
conseguia lembrar-se rigorosamente de nenhum acontecimento dos últimos dias
– muito menos como tinha sido a sua passagem. A hipótese mais palpável era de
ter sido um acidente de moto, pois, apesar de estar prestes a completar 45 anos,
a saúde estava em excelentes condições. Por causa desse pensamento, João chorou
mais uma vez e ficou a imaginar o quanto os pais adotivos, familiares e amigos
teriam sofrido. Enquanto divagava a respeito de seu infortúnio, o poeta
adormeceu. Pouco, ou muito tempo depois, ele não tinha essa noção, despertou.
Ele estava sentado em um banco de madeira, em um grande salão, no que parecia
ser uma espécie de igreja. Não foi difícil reconhecer o lugar. O salão ficava
na mesma rua onde tinha encontrado os três meninos. Aquele era o prédio do
centro espírita mais antigo de Cuiabá. Mesmo não sendo daquela linha
espiritualista específica, tinha estado ali por muitas vezes para assistir as
palestras.
Embora o local estivesse vazio, João Guilherme conseguia ouvir vozes de
crianças. Elas falavam rápido e ao mesmo tempo e o jornalista ficou feliz ao
reconhecer a voz do garoto mais velho. Depois de atravessar várias paredes,
chegou à uma sala onde se encontrava o trio. Eles estavam em pé, atrás de um
homem sentado à mesa, junto com outros quatro. O senhor tinha lápis e papel à
mão e apenas ouvia a tagarelice dos guris. O professor compreendeu que tinha
ido parar em uma seção mediúnica e, receoso a princípio, decidiu tentar ajudar,
obedecendo a intuição. “Meus queridos, vocês têm que falar um de cada vez e
devagar, se não eles não poderão ajudar”, disse chamando a atenção dos
pequeninos. “Nóis num sabe falá cum eles. Eles é dotô e nóis é burro”, disse o
mais velho, demonstrando alegria ao ver de quem se tratava. “Não, meu querido.
Não é assim. Estes homens têm uma missão muito bonita e importante. Basta você
falar com calma que eles vão te compreender e levar a mensagem até quem você
quiser. Para quem você gostaria de mandar um recado? Sua mãe?”
Ao ouvirem a palavra mãe, os três meninos abraçaram-se e puseram-se a
chorar. Novamente seguindo a intuição, João teve uma ideia que talvez
resolvesse o problema. Aproximando-se do médium escrevente, disse: “Com a
devida licença, amado irmão, peço permissão para falar”. Autorização
concedida, o poeta continuou: “Antes de mais nada, eu saúdo a todos em nome do
soberano Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo. Estão aqui os espíritos de três
meninos que perambulam por estas ruas. Eu os encontrei por acaso outro dia.
Pelo que pude compreender, eles desencarnaram e ainda não sabem. Estão muito
assustados, demonstrando medo de alguém que supostamente os estaria
perseguindo. Digo isso porque quando estive com eles, ouvimos uma forte freada
de carro e isso despertou pânico nos pobrezinhos, a ponto de saírem correndo.
Entrei nesta abençoada reunião também por acaso e humildemente ofereço-me
para falar com eles, caso tenham alguma pergunta”. “Revela-nos primeiro a
tua identidade”, disse o médium em tom austero. A réplica pegou o professor de
surpresa. Não era sua intenção identificar-se. Contudo, ele sabia que essa era
uma medida de praxe, pois muitos espíritos inferiores intrometiam-se nas
reuniões com o único propósito de semear a confusão e a discórdia. “Meu nome
é João Guilherme Ribeiro, nascido e criado em Cuiabá. Na Terra fui professor,
jornalista e escritor. Minha passagem aconteceu recentemente. Quando em vida,
tive a honra de, por muitas vezes, vir a esta Casa para aprender sobre a
Doutrina”, respondeu calma e firmemente. “O senhor poderia, por gentileza,
perguntar aos meninos os seus nomes?”, solicitou o espírita. João repetiu a
pergunta mas, outra vez, as crianças não conseguiram lembrar-se. Quando
preparava-se para explicar a situação, elas saíram correndo. Rapidamente o
poeta colocou os médiuns a par da situação e pôs-se a seguir os três garotos.
Quando chegou ao calçadão, conhecido como Rua de Baixo, reparou que eles
corriam em direção ao chamado Beco do Candeeiro – a primeira rua da cidade –
fundada pelos bandeirantes. Quando os alcançou, foi com um aperto no coração
que viu os meninos encostarem-se, retraídos e abraçados, contra a parede. “Num
mata nóis, num mata nóis, num mata nóis”, imploravam aos berros. Diante da
cena, João Guilherme compreendeu plenamente do que se tratava. Dez anos antes,
as crianças - que eram meninos de rua - tinham sido assassinadas naquela
viela histórica. Ele mesmo já tinha escrito uma matéria sobre a chacina. Com
muito esforço, o jornalista conseguiu conter o choro. “Meninos, eu sou do bem.
Eu sou amigo. Eu não vou machucar vocês. Juro por Deus”, disse lentamente.
Depois de certa hesitação, foi o garoto mais velho que tomou a dianteira: “Se
o sinhô é amigo, intão leva nóis pá nossa casa. Nóis num qué mais ficá na rua”.
Ciente da inutilidade de perguntar onde ficava a casa, o poeta fez
mentalmente uma prece e pediu ajuda aos espíritos de luz. Ele aguardou a
resposta de olhos fechados e ela veio. Sentando-se entre os guris, abraçou-os
e pediu para que pensassem em Deus. Os quatro ficaram quietos por um longo
tempo até que uma forte luz começou a brilhar e João Guilherme os viu
dormindo, de madrugada, na pracinha, a poucos metros dali. Os três estavam
amontoados, embrulhados em papelões e sob um cobertor velho. Eles não
despertaram com a freada estridente que se fez ouvir. Do interior do automóvel
desceram três homens, todos três revólveres à mão. Quando chegaram bem perto,
cada qual escolheu um dos meninos como alvo e disparou duas vezes. Sem pressa,
certificaram-se de que as vítimas tinham morrido e depois de entrar no carro,
saíram cantando os pneus. Por mais esforço que tenha feito, João não conseguiu
ver nem os rostos dos homens e nem a placa do carro. Profundamente chocado,
sentiu os corpos franzinos tremerem de frio contra o seu e rogou a Deus pela
alma dos novos amigos. Quando saíram do transe, João Guilherme perguntou se
tinham visto o mesmo que ele. Resposta afirmativa, estava na hora de os
meninos continuarem a jornada espiritual. Colocando-os em pé, o professor
pediu que fechassem os olhos e pensassem em suas mães, posto que não eram
irmãos. Em seguida, o quarteto sobrevoou a cidade por uma longa distância. A
casa do primeiro, o mais velho, era muito humilde. No quarto, dormindo junto
com a mãe, estavam três adolescentes. O garoto beijou o rosto de cada um deles.
Demorou-se com a mãe e depois de também beijá-la, sussurrou-lhe no ouvido
coisas que João não conseguiu escutar. Quando estavam saindo, o jornalista
ouviu os gritos de desespero da mulher, desperta após a visita do filho: “Eu
sabia. Eu sabia. Eu sabia que foi ele que matou meu guri. Aquele desgraçado
matou meu guri!” Nas duas casas seguintes cumpriu-se basicamente o mesmo
ritual. A diferença estava no número de parentes. O cochicho às mães era igual
e o poeta compreendeu que qualquer que tivesse sido a revelação, não lhe dizia
respeito.
Cumprido o itinerário, os quatro espíritos ainda andaram por quase cem
metros na rua deserta e esburacada. A luz da lua os guiava. “Deus lhe pague
por sua ajuda, irmão João Guilherme. Está na hora de esses meninos descansarem
em paz”, disse a senhora negra que os aguardava na esquina. Ela aparentava
ter 60 anos, tinha um manto azul sobre a cabeça e usava um vestido cor de
cana. Atrás de si, uma esfera de luz branca começou a surgir e aumentar de
tamanho, até atingir aproximadamente três metros. Com um sorriso de enorme
ternura, a anciã convidou os garotos a entrar no portal. O professor tentou
fazer o mesmo, mas foi impedido. “Não filho, a tua hora ainda não chegou. Você
é um moço tão inteligente... mas pensando que já desencarnou, esqueceu de tirar
a prova da forma mais simples. Lembra como é, meu querido?”, questionou com
voz cheia de bondade. “Claro, o cordão de prata! Como pude me esquecer?”, pensou
João. E passando a mão pela nuca sentiu a vibração de pura energia do feixe.
Um pouco acanhado, olhou para a anciã como que a desculpar-se pelo vacilo.
Novamente, ela apenas sorriu e, abençoando-o, também entrou no portal. O
jornalista estava novamente sozinho, mas um sentimento de gratidão vibrava
em cada minúscula parte de seu ser. O coração exultava de amor a Deus e a
todos os seres viventes. Ele olhou para a lua, que brilhava radiante no céu,
agradeceu ao Cristo pelo dom da vida e rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria
pelas almas dos garotos.
O que vivia agora, na prática, excedia a tudo o que tinha lido em termos
de espiritualidade. Totalmente conectado ao momento presente, já não
necessitava compreender o mistério das coisas, uma vez que ele mesmo
encontrava-se em unicidade com o Universo, portanto também era parte desse
mistério. A mente, enfim, tinha sido superada pela Consciência. Vencido o
pensamento, nada mais do que um dos sentidos, João Guilherme finalmente havia
encontrado o Eu Sou – a centelha divina que pulsa no interior de todas as
coisas.
10
O murmúrio fez com que João Guilherme acordasse. Sem poder abrir os
olhos, ainda não conseguia discernir o que duas ou três pessoas à sua volta
diziam. Aquela situação o incomodava sobremaneira. Quem seriam aqueles
espíritos? O poeta decidiu não se preocupar mais e começou a reconstruir
mentalmente todas as experiências vividas no astral na noite anterior.
Lembrou-se da triste história dos três meninos. Eles supostamente tinham sido
assassinados a mando dos comerciantes da região cansados dos inúmeros assaltos
e da inércia da polícia. A chacina teve grande repercussão midiática e pressão
popular por justiça. Mesmo assim a polícia jamais encontrou os autores do
crime. Em homenagem à memória das crianças, grupos de direitos humanos
fizeram um monumento em tamanho natural que foi colocado na rua em que
foram covardemente mortos. Na estátua, dois dos meninos estão agachados,
encolhidos e se protegendo com os braços e o terceiro estirado sem vida no
chão, exatamente como visto pelo jornalista. Nesse instante, teve a ideia de,
assim que possível, procurar a mãe do menino mais velho, pois tinha reparado
bem em sua fisionomia e não teria muita dificuldade em reconhecê-la.
Se sua vida tinha mudado totalmente nos últimos dois anos, agora então
é que jamais seria a mesma novamente. Sabia que tinha de ler, estudar e
principalmente amar mais. No grupo de estudos esotéricos que frequentava, o
professor tinha ouvido de uma amiga muito sábia, que o Daime ensinava as
pessoas a sonhar. Aí estava a chave de tudo: era preciso despertar dentro do
sonho e o poeta estava vivendo tudo isso em uma intensidade que jamais
cogitara. Aquilo tudo não podia ser simplesmente fruto de sua mente. Mais do
que nunca se mantinha atento ao estado de presença, de viver o único momento
que realmente existe: o agora. As agruras do passado e as expectativas do
futuro não tinham mais influência em seu estado de espírito. Enquanto
meditava sobre essas coisas, adormeceu e repentinamente sentiu um enorme
incômodo na altura do peito. Novamente desdobrado, viu-se deitado em uma cama
e com o olhar fixo em si mesmo, entrou no próprio corpo, percorrendo cada
parte dele. Logo em seguida, o psicossoma do professor estava de novo ajustado
ao corpo físico, ou pelo menos quase. Havia um desnível, como quando a imagem
da televisão está desfocada e apresenta uma espécie de sombra. João Guilherme
sentiu como se seu coração estivesse sendo aberto por uma espécie de bisturi.
Mas o que teria acontecido ao seu coração? Sem encontrar uma resposta
plausível, apenas aguardou pelo fim do procedimento.
Nas mirações provocadas pelo Daime, não era raro João ver-se em lindos
jardins cercado de muitos tipos de flores. Quando abriu os olhos, percebeu que
estava desdobrado e em um desses jardins, muito provavelmente no fim da tarde.
Lembrou-se do soneto de Shakespeare que dizia “quando a hora dobra em triste
e tardo toque...” O jornalista examinava minuciosamente tudo o que estava a
sua frente. As orquídeas roxas que brotavam dos troncos das árvores, as rosas
vermelhas e brancas que bailavam ao sabor da doce brisa. O canto dos
passarinhos. A relva verde. A água cristalina do riacho que corria
preguiçosamente. O céu era um espetáculo à parte. A luz dourada do sol dava
ao firmamento um tom laranja inexistente em todos os pores-do-sol que já
tinha visto. O cenário diante do qual estava era uma linda declaração de amor
da natureza ao Pai criador. À medida que caminhava, ia percebendo novos e
lindos detalhes. Borboletas, abelhas, beija-flores, formigas, cigarras,
lagartixas – cada coisa tinha o devido encanto e mistério. O poeta entrou no
pequeno rio de águas rasas e foi seguindo o curso. Quando parava e olhava pra
baixo, podia perceber uma infinidade de peixinhos a seguir seu passeio.
Depois de caminhar por algumas dezenas de metros, saiu da água e chegou
a uma espécie de clareira. Ali a mata era mais fechada, mas mesmo durante o
lusco-fusco, a luz do sol ainda era intensa. Sentou-se em uma grande pedra,
ficou imóvel e em silêncio, tornando-se, também, parte do cenário. Ele tinha
se fundido à natureza e sentia toda a energia que emanava do lugar. Por causa
desse estado de transmutação, não percebeu que era observado atenta e
ternamente. Só depois de algum tempo é que teve a sensação de que não estava
sozinho. Embora sem poder vê-la, a presença que se manifestava lhe fez com
que o espírito exultasse de felicidade. Uma onda de alegria agitou seu coração
e não foi possível conter as lágrimas. Era ela que estava ali! Ele tinha
certeza! João Guilherme não se conteve e levantou-se. Girando o corpo em todas
as direções, procurou ansioso pelo rosto da alma gêmea. “Amparo, meu amor,
finalmente”, disse em voz alta.
Porém, o êxtase inicial deu lugar à frustração, pois, por mais que a
chamasse, ela não aparecia. De súbito, recuperou a lucidez e compreendeu que
teria de conter os sentimentos e os pensamentos se quisesse se comunicar com
a amada. De volta à pedra, fechou os olhos e calou a mente e o coração.
Novamente em harmonia, apenas aguardou. A luz do sol não era mais do que uma
centelha dourada no horizonte, quando uma doce e suave voz se fez ouvir em
seu coração: “Meu amado, há tanto tempo que te espero. Já nos encontramos e
nos separamos tantas vezes no curso reencarnatório. Mas tende bom ânimo, a
eternidade nos aguarda de braços abertos. Sê forte. Recorda-te de mim.
Recorda-te da nossa filha. Recorda-te de ti. Não passará muito tempo até que
estejamos juntos novamente. Tu tens uma grande missão diante de si, confiada
pelo Pai Celestial e pela Mãe Terrena. Complete-a com amor e devoção. Estarei
sempre contigo. Nos momentos de angústia e sofrimento, pense em mim que eu
virei para acalentar-lhe o coração. Minha alma e tua alma são uma só. Eu amo
você”.
Quando percebeu-se sozinho novamente, o poeta viu que o manto negro da
noite havia sido esparramado sobre o céu trazendo a lua e suas milhares de
estrelas. Havia paz em seu coração. Com novo ânimo e transbordando de
felicidade, levantou-se e dançou sob a luz do luar. Em seguida, tomado por um
grande torpor, recostou-se na grande pedra e dormiu.
11
Quando João Guilherme abriu os olhos dentro do sonho e olhou para si
mesmo, não se viu. O corpo astral havia se diluído num feixe de luz dourada.
À sua volta, centenas de milhares de pontos luminosos vagavam
harmoniosamente. Não havia nenhuma pergunta em seu coração, pois ele estava
além da mente e dos pensamentos. Ele apenas pertencia; estava entre as
estrelas. Ao longe, viu o sol. Impossível resistir ao brilho incandescente.
Incontáveis esferas de energia de diferentes matizes vinham dele e voltavam
para a estrela de primeira grandeza. O jornalista sentiu como que todas as
moléculas do corpo se expandirem quase que ao ponto de explodir, para depois
diminuírem novamente. João tinha muitas músicas prediletas. Composições que
lhe tocavam no mais íntimo da alma. Contudo, nem mesmo os maestros Heitor
Villa-Lobos, Wolfgang Amadeus Mozart e Ludwig Von Beethoven – seus
compositores favoritos – jamais poderiam conceber melodia tão sublime como a
que ouvia agora. Ele ouvia na fonte a mais pura expressão do amor divino. A
sílaba que contém em si o mundo inteiro – o presente, o passado e o futuro.
Era como se todos os astros entoassem o “om”, o primeiro e o último acorde da
perfeita sinfonia cósmica que se chama Universo. Finalmente entendia o
pedido de Pablo Neruda ao carteiro que sonhava em ser poeta: “E se ouvir o
som das estrelas, grave”. Depois de vagar disforme pelo espaço sideral, seu
corpo astral começou a se recompor e ser puxado de volta à órbita da Terra. O
destino, enfim, era o Rio de Janeiro.
Quando chegou ao Corcovado, estava sozinho. Após um tempo de meditação,
seguiu a intuição e volitou até Ipanema. Embora fosse início de noite, a praia
estava lotada. Demasiadamente lotada por sinal. Uma multidão sem fim, como
em um imenso formigueiro, indo e vindo em todas as direções. Não foi difícil
notar que, separados pela morte, o que via a frente era uma interação
inconsciente de espíritos encarnados e desencarnados. João não sabia qual
grupo lhe causava mais compaixão. Os vivos exalavam uma nauseante energia
negativa e pensamentos egóicos que contaminavam toda a atmosfera. Os mortos
choravam, gritavam, implorando misericórdia. Muitos estavam desfigurados. Um
moço negro com o peito todo ensanguentado bradava: “É certo isso, meu Deus?
Um trabalhador, um pai de família como eu morrer feito um cachorro?” Um
grupo de espíritos desencarnados mantinha, ali mesmo no calçadão, relações
sexuais da forma mais depravada possível. Diante da cena deprimente, o
jornalista decidiu virar as costas, mas algo lhe chamou a atenção. Entre as
dezenas de pessoas que participavam da orgia, havia algumas encarnadas, pois
era possível ver seus cordões de prata. Isso fez com que o professor se
lembrasse que havia lido que a frequência dos nossos pensamentos quando
despertos nos atrai, no sono, para perto de outros que estejam nessa mesma
frequência. A bem da verdade, havia muitos outros vivos em estado de sono
profundo perambulando pela orla. Eles lembravam sonâmbulos caminhando às
cegas. Para seu consolo, João Guilherme notou que cada um deles era escoltado
por uma aura de luz.
O professor também notou um senhor desencarnado de aparentemente 70
anos que chorava convulsivamente. Apiedado da pobre alma, João aproximou-se.
”O senhor me dê licença”, disse em tom respeitoso. Diante do olhar surpreso do
homem, o poeta prosseguiu: “Graça e paz por parte do Nosso Senhor Jesus Cristo.
Perdoe-me pela indiscrição, mas como o vi chorando, julguei que talvez eu
pudesse ser de alguma serventia”. “Você por acaso é um anjo que veio me dizer
que obtive autorização para reencarnar? Se sim, é bem-vindo. Se não, me deixe
em paz”, respondeu com voz carregada de rancor. “Não, meu senhor. Eu não sou
um anjo. Perdoe-me pelo aborrecimento”, replicou João. O velhinho olhou na
direção do mar. As águas estavam escuras naquela noite e não havia estrelas
no céu. “Meu dinheiro! Tudo que eles querem é meu dinheiro. Mas isso eles nunca
vão ter. O dinheiro é meu! Meu!”, resmungou. Ele repetiu o desabafo por várias
vezes. Seus braços estavam postos em forma de xis contra o peito, como se
abraçasse fortemente alguma coisa, mas não havia nada. “O que você está
olhando? Eu sei muito bem que você está dando uma de bonzinho pra ficar com
o meu dinheiro. Mas o dinheiro é meu! Entendeu? Meu!”, esbravejou o ancião. E
continuou a gritar “ladrões, ladrões, só tem ladrão nesse mundo”, correndo sem
rumo pela praia.
Enquanto observava o homem ainda tão preso à matéria, ou aquilo que na
espiritualidade chamava-se de ilusão, o jornalista fez uma prece em favor da
pobre alma sofredora. Em meio àquele cenário de tamanha tristeza que via em
um dos principais pontos turísticos da amada Rio de Janeiro, João colocou em
xeque o título de “cidade maravilhosa”. Ele locomoveu-se por três ou quatro
quilômetros até ter a nítida impressão de que estava sendo seguido. Depois de
parar, lentamente virou-se e notou um adolescente com um semblante que
misturava encanto e medo. Nessa hora, o rapaz fez menção de voltar e, fazendo
isso, o poeta percebeu – pelo cordão de prata - que se tratava de um encarnado
em estado de projeção astral, exatamente assim como ele. “Ei, espere!”, disse
João Guilherme com firmeza. O moço parou. “Pelo amor de Deus, o senhor pode
me ajudar? Eu não sei como vim parar aqui. Acho que eu morri”, falou o rapaz
evitando encarar o poeta.
- Calma, meu filho! Em primeiro lugar, você não está morto. Você está
acordado dentro do sonho. Alguns chamam isso de viagem astral. É a primeira
vez que lhe acontece?
- Não! Mas nunca tinha sido tão forte assim. Eu quero voltar pro meu
corpo. Eu tenho medo de não conseguir mais. Me ajuda, por favor.
João pediu para o jovem se acalmar e, aproximando-se, ministrou-lhe um
passe energético. Depois disse: “Encare o que está acontecendo como uma dádiva.
Veja só quantas pessoas estão aqui, andando de olhos fechados, feito cegos.
Qual é a tua graça?”
- Meu nome é Saulo.
- Prazer Saulo. Eu sou o João Guilherme. Você é daqui do Rio mesmo?
- Sim, sou.
Agora que o adolescente estava mais tranquilo, o professor prosseguiu:
“Então Saulo, pouquíssimas pessoas conseguem acordar dentro do sonho. Isso
ainda é raro, mas daqui um tempo será muito comum. A humanidade está passando
por um despertar espiritual muito forte. Sinta-se honrado por esta
experiência”.
- Mas eu nunca pedi por isso. Minha família acha que estou ficando louco.
Já estão falando até em me internar.
- Não se preocupe que isso não vai acontecer. Há muitos livros que podem
lhe ajudar. Faz assim: na próxima vez que você for dormir, reze para o teu
anjo da guarda para que ele te guie no mundo astral. Você pode não ver, mas
ele está aqui neste exato momento.
- E você consegue vê-lo?
- Não, não consigo. Mas posso sentir a sua presença.
- E como eu faço pra acordar? Pra voltar ao corpo?
Desta vez a resposta do jornalista não foi imediata. Como poderia dizer
algo que nem mesmo ele sabia, uma vez que não se lembrava da última vez em
que estivera desperto? João pensou, pensou e por fim disse: “Meu amigo, o teu
anjo da guarda te conduzirá de volta quando isso for necessário. Mas você pode
voltar, por exemplo, estalando os dedos e visualizando o teu corpo físico”.
- Como? Assim?
Ao estalar o dedo o moço sumiu da vista do professor. Com um sorriso no
rosto, João Guilherme percebia a ironia da cena. Ora, se tinha dado certo com
o menino, por que não daria consigo? Todavia, mesmo depois de estalar o dedo
uma, duas, três, quatro, cinco vezes, ele continuava no mesmo lugar. João não
resistiu e soltou uma imensa gargalhada. “Agora deu pra rir sozinho, Seu Jão
das Letras?”, gracejou Zé Pelintra. “Deixa o homem, compadre Zé. É melhor ser
alegre que ser triste”, intrometeu-se Vinícius de Moraes. O trio estava
novamente reunido. O poeta ficou a encarar os amigos como que a esperar a
instrução de qual seria o próximo passo. Em função da insistência do silêncio
dos boêmios, João Guilherme cobrou: “E então, o que faremos agora? Para onde
iremos? Quando me encontrarei com Amparo?”
“Êita homem, aquieta este espírito”, repreendeu seu Zé. “Tudo a seu tempo”,
finalizou. “Joãosinho”, começou Vinícius, “a cidade inteira ficou sabendo do
ocorrido daquela noite. Saiu em todos os jornais. Marina ficou louca de ódio.
Como vingança, ela quis tomar a filha de Amparo”, acrescentou. “Mas me fala
logo de uma vez, o que aconteceu com elas?”, disse o professor rispidamente
para logo em seguida desculpar-se: “Perdoe-me, meu amigo, você tem sido um
verdadeiro irmão. Eu não tenho o direito de falar assim contigo”. “Calma, Jão”,
disse seu Zé abraçando o compadre. “Com o escândalo, Amparo foi despedida e os
pais não a aceitaram de volta, mesmo com uma filhinha pra criar. Ela batizou
a menina com o nome de Julieta, por causa da peça que vocês costumavam ler
em voz alta. Para não passar fome, foi trabalhar como doméstica em casas de
família, mas por causa do bebê, sempre acabava despedida. Ela nunca conseguiu
dar as aulas de piano que queria”, explicou o mentor espiritual. Com muito
esforço para não chorar, João ouvia a tudo em silêncio. “Sem ter pra onde ir,
ela veio me procurar. Falou que vocês planejavam mudar-se para a Inglaterra
depois que você se separasse de Marina. Ela tinha umas economias e pediu minha
ajuda para ver se conseguia alguma família para recebê-la em Londres até que
arrumasse trabalho e pudesse pagar um aluguel. Pela graça do nosso bom Deus,
consegui entrar em contato com os Stewart, o mesmo casal que te recebeu no
tempo em que viveu lá, lembra?”, disse Vinícius de Moraes. “Sim, sim! Os Stewart!
O casal de ativistas escritores”, recordou-se João. “Eles adotaram Amparo e
Julieta como filhas”, acrescentou Vinícius olhando para Zé Pelintra como que
a pedir para continuar com o relato. “Jão, depois de três anos, Amparo caiu
gravemente doente e veio a falecer logo em seguida. Os Stewart continuaram a
cuidar de criança, claro”.
João Guilherme não podia mais conter as lágrimas. Sentando-se na areia,
diante do mar silencioso e debaixo da noite escura, entregou-se a um pranto
que lhe doía em cada recanto do ser. Vinícius e Zé Pelintra não ousaram dizer
nada. Depois de um longo tempo é que ele quis saber como tinha sido a vida da
filha que nunca conheceu. “Ela tornou-se escritora, casou-se com um músico e
veio morar aqui no Rio outra vez”, contou Vinícius. “E quando poderei
encontrar-me com Amparo?”, questionou João quase que a implorar aos amigos.
“Em breve, irmão. Mas antes você deve encontrar-se com outra pessoa”, afirmou
Zé Pelintra. “Que o nosso divino Pai Eterno lhe conceda a coragem e a
humildade de fazer o que é necessário”, disse o exu abraçando o amigo. Ao ouvir
pela terceira vez a mesma orientação, o professor não teve dúvida de quem o
esperava.
Não havia mais nada a ser falado. O grande reencontro havia chegado ao
fim e os três homens sabiam disso. João Maria de Albuquerque, Marcus Vinícius
de Moraes e José Gomes da Silva elevaram os olhos para o céu e foram saudados
pelo brilho da lua que finalmente havia surgido. João e Zé tiraram os chapéus
e juntaram-se a Vinícius em uma prece de louvor e agradecimento à Virgem Mãe
Maria Santíssima. Não houve palavras de adeus. Eles somente se olharam e
estava tudo dito. João Guilherme fechou os olhos e quando os abriu viu, à meia
distância, uma figura feminina com vestes azuis a pairar por sobre as águas.
Respeitosamente, o poeta curvou-se e sussurou: “Alodê, Iemanjá, odoiá”.
Graciosamente a deusa das águas acenou a lhe abençoar e elevou-se em direção
à lua.
12
João Guilherme foi acordado por um choro abafado. Ele estava de volta
ao corpo físico quase que da mesma forma de sempre: de olhos fechados e em
estado de catalepsia. Embora não pudesse mover um só músculo, desta vez
conseguia ouvir pequenos soluços bem ao seu lado. Eles balbuciavam algumas
palavras que, com muito esforço, o poeta conseguiu interpretar. “Me perdoa, me
perdoa, me perdoa”, clamava o pranto feminino. Esforço inútil tentar
reconhecer a voz. Ela lhe chegava toda distorcida. João procurou projetar-se
novamente para fora do corpo e pôr fim àquele mistério. Mais um esforço
inútil. Quem quer que fosse, recebeu sinceras vibrações de amor fraterno.
Feito isso, o choro cessou. Silêncio. Aquela visita deixou o jornalista deveras
intrigado. Como morava sozinho e não estava morto, então ele só podia ter sido
visitado por um espírito. A intuição lhe dizia que não era a presença nem de
Amparo e nem de Marina. Ainda que recém-desperto, o professor sentia o corpo
exausto e, vencido pelo cansaço, adormeceu novamente.
Mesmo que visivelmente precisando de uma pintura, externamente o velho
casarão continuava imponente. De estilo clássico, tinha sido construído quando
da chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro. João demorou a entrar. A
vibração que saía do interior do antigo lar estava carregada de uma intensa
energia negativa. E ele sabia quem lhe esperava lá dentro. Ao olhar para si,
foi com espanto que notou que tinha novamente a aparência do tempo de João
Maria. O bigode cuidadosamente aparado, os cabelos penteados para trás e
impecáveis com a ajuda de gomalina. Porém, se ele estava igual ao passado, o
mesmo não se podia dizer da cidade. Os carros que trafegavam pela avenida
Atlântida revelavam que o ano era mesmo o de 2014. “O que está em cima é como
o que está embaixo”, pensou em voz alta, relembrando um dos princípios do
hermetismo. Ao entrar na ampla sala de visitas viu um casal de idosos
prestando atenção ao que dizia um homem de aproximadamente 30 anos. João
procurou pelos cordões de prata e os viu. “Alguns espíritos ficam tão apegados
a um lugar que mesmo depois de desencarnados continuam morando nele. Eles se
recusam a acreditar que morreram e passam a viver em uma espécie de realidade
alternativa”, explicou o homem. Sua fala deixou o poeta com o coração apertado.
“Pobre Marina”, pensou. “E o que nós podemos fazer? Eu não aguento mais ouvir
barulhos macabros durante a noite, principalmente o ranger de madeira como
de uma cadeira de balanço”, reclamou um dos velhinhos. “Rogar aos espíritos
de luz que os convençam a aceitar que desencarnaram e seguir seu caminho”,
respondeu o orientador espiritual.
Dando as mãos, os três leram a Consagração do Aposento e a Prece de
Cáritas. O poeta tinha uma profunda reverência por essas orações. Elas faziam
parte de um cd que ele havia gravado na sua voz e distribuído aos amigos mais
próximos. “Gratidão, meus irmãos”, disse João ao término do momento devocional.
“Vocês ouviram isso?”, perguntou sobressaltada a idosa. “Isso o quê?”, quis
saber o marido. “Alguém disse ‘gratidão, meus irmãos’”, respondeu. Eles deram
as mãos novamente e se concentraram. “Estou sentindo uma presença aqui. Não
é o mesmo espírito que habita esta casa. É outro. Sua energia é boa. Ele está
em paz”, revelou o amigo que visitava o casal. O professor ponderou por alguns
instantes continuar com a comunicação, mas preferiu subir para resolver a
situação pendente de uma voz por todas.
A porta de madeira maciça do quarto estava fechada e João Guilherme
passou através dela e considerou surreal a sobreposição de imagens. Ele via
ao mesmo tempo o quarto com a antiga e a nova decoração. Marina estava sentada
na cadeira de balanço na qual costumava bordar, à beira da porta. A cama do
novo casal de inquilinos estava bem do lado. A princípio, a esposa não percebeu
que não estava só. Depois, sentiu um arrepio e inferindo ser por causa do
vento, fechou a enorme janela que possuía uma sacada que dava de frente para
o mar. João apenas a observava. O incômodo do arrepio repetiu-se e ela
levantou-se subitamente da cadeira. “O que é que você quer, alma penada? Eu
já disse que não vou sair da minha casa. Vai embora daqui. Você não tem o
direito de perturbar a paz dos vivos”, bradou a mulher a esmo. Antes de
qualquer coisa, o poeta fez uma prece ao seu mentor espiritual na esperança
de que Vinícius de Moraes aparecesse – o que não aconteceu. Porém, sua
sensitividade lhe dizia que estava sendo assistido por espíritos superiores.
“Marina, sou eu, o João Maria”, disse da forma mais carinhosa que conseguiu.
A ex-esposa parou de costurar e fitou o enorme quadro na parede. Nele
estava pintado o retrato do casal em trajes de gala. “Por que você me
abandonou? Por que não fui merecedora do teu amor? Só porque não podia lhe
dar um filho? Agora estou aqui, viúva, sozinha e humilhada. Sua morte foi tão
trágica, meu bem...”, lamentou-se entre lágrimas. João Guilherme elevou o
pensamento em prece e pediu a Deus que permitisse tornar-se visível para a
ex-mulher. Nesse instante, ela levou um choque e como que adormeceu por alguns
segundos. Quando abriu os olhos, soltou um grito de pavor. “João Maria! Então
era você o fantasma que ficou me assombrando todos esses anos? Que fazia todos
aqueles barulhos estranhos? Mesmo depois de morto você ainda não me deixa em
paz, pelo amor de Deus?”, desabafou. O descontrole emocional fez com que ela
derrubasse a caixa de costuras e a cadeira de balanço. Na tentativa de
defender-se, abriu as janelas julgando que a luz do sol afugentaria o espírito
intruso. No andar de baixo, o casal e o visitante ouviam todos esses sons, com
exceção da voz da mulher prestes a entrar em estado de histeria.
Sem dirigir-lhe uma só palavra, João se concentrava para que o espírito
de luz que o assistia usasse seu fluido universal para acalmar a mulher. Por
muitos minutos, Marina ficou encolhida sob o dossel da cama com o travesseiro
sobre a cabeça até finalmente resolver encarar o que considerava ser o
fantasma do ex-marido. “Por que você está fazendo isso comigo, João? Você já
me fez sofrer demais. Deixa pelo menos eu viver a minha vida em paz”, disse
com os olhos banhados de lágrimas. “Marina, por favor, me escute. O que tenho
a lhe dizer é muito importante”, começou o professor. “Eu não sou mais o homem
com quem você se casou. Depois da minha morte, eu reencarnei em outra vida,
em outra cidade. É de lá que eu vim para lhe dizer que é você que não está
mais no mundo dos vivos. Ao não aceitar a morte, você criou uma espécie de
universo particular, que só você vê. Você nunca estranhou que ninguém – nem
mesmo os teus pais – vem lhe visitar?”
- Todo mundo me odeia, até mamãe e papai. Por isso que eles não vêm aqui.
E eu não preciso deles também. Estou muito bem sozinha. O que não suporto são
esses barulhos que você fica fazendo pela casa para me assustar.
- Não, Marina. É justamente o contrário. É você que está assustando as
pessoas que agora estão morando aqui no casarão. Elas estão lá embaixo rezando
pela tua alma.
- Você está querendo me deixar louca! Não basta a humilhação de ser
trocada por uma empregadinha de padaria? Não basta? Que culpa tenho eu de
não poder gerar filhos? Como fui cega em acreditar que um dia você me amou.
Você estava era de olho no dinheiro da minha família. Você estava de olho
neste casarão. Agora me diga, onde você teria chegado sem mim? Você acha que
as tuas poesias chinfrins te levariam a algum lugar? Você nunca passou de um
bêbado metido a intelectual que passava as noites enchendo a cara na companhia
de um negro sujo. Até os teus estudos na Inglaterra foram pagos pelo meu pai.
Eu te amei, João. Eu te amei do fundo do meu coração. Mas você nunca gostou
de coisa boa, não é mesmo? Nunca deixou de ser o suburbano que conheci
declamando poesia na rua.
Depois do desabafo, Marina sentou-se à beira da cama e com a cabeça entre
os joelhos, começou a chorar. João Guilherme continuava calado. Achando que o
espírito do poeta havia partido, a mulher abriu os olhos e o descobriu chorando
de joelhos à sua frente.
- Sim, Marina. Eu fui um canalha contigo. Maltratei o coração de uma
mulher que me amava e só queria ser amada. Essa parece ser a minha sina até
hoje. Meus relacionamentos nunca deram certo e parece que nunca vão dar. A
eterna solidão é o meu destino. Mas eu te amei sim. Do meu jeito esquisito,
confesso, mas amei. Quando estávamos juntos parecia haver um rombo na minha
alma que só foi preenchido quando conheci Amparo. Era ela quem eu procurava
em todos os relacionamentos e não achava. Eu jamais deveria ter me casado
contigo sabendo que você não era a mulher da minha vida. Eu fiz você sofrer
e, acredite, fui severamente castigado por isso. A solidão é como um veneno
que vai corroendo o espírito lentamente, até não existir mais nada. Mas agora
estou aqui para implorar pelo teu perdão. O ódio e o rancor dilaceram a alma
e nos impedem de evoluir. Olhe em volta e veja o que aconteceu contigo.
Incomodada com a última frase do poeta, Marina virou-se e viu, pela
primeira vez desde sua passagem, as imagens sobrepostas do quarto. Apavorada,
saiu do cômodo e descendo a escadaria deparou-se com o pequeno grupo que
rezava. Confrontada com a inevitável verdade, gritou tão forte a ponto de
quebrar um cálice de cristal que estava sobre a prateleira. De volta ao andar
superior, ofendeu o ex-esposo com todos os palavrões que conhecia. João
Guilherme era só pranto. Ela ainda encontrou forças para, com uma tesoura,
rasgar totalmente o retrato daquele que um dia tinha sido um casal feliz. O
jornalista recompôs-se e ensaiou nova interpelação. “Não se atreva a falar
comigo, seu patife! Suma da minha frente de uma vez por todas. Espero que você
queime no fogo do inferno quando morrer de novo”, antecipou-se. Ao dizer isso,
atirou-se na cama e voltou a chorar convulsivamente. O poeta decidiu no fundo
do coração que não sairia dali sem resolver definitivamente aquela situação.
Dominado por esse sentimento, colocou a cadeira de balanço à beira da janela,
sentou-se e ficou a olhar o céu. Fechando os olhos, concentrou-se e imaginou
uma luz dourada que descia do alto, envolvia a Terra e preenchia todo o
ambiente. E ficou assim por horas.
O casal de velhinhos e o amigo passaram o dia em vigília. Quando a noite
chegou, João despertou do transe e procurou por Marina. Ela estava sentada
na cama e o observava. Não havia ódio ou rancor em seus olhos e os dois se
olharam ternamente. Por fim, foi ela quem tomou a iniciativa de levantar-se
e caminhar em sua direção. Ele também levantou-se e, de mãos dadas, assistiram
ao restinho do pôr do sol. “João, eu sonhei com a minha mãe. No sonho, ela
rogava que eu lhe perdoasse, pois só assim eu teria paz, porque o perdão é
divino. E eu também deveria pedir perdão. Somos todos irmãos, filhos do mesmo
Pai Divino. Que o perdão mútuo nos recoloque na estrada do amor de Deus. Siga
o teu caminho em paz. Eu vou seguir o meu”.
Ao concluir a fala, ela abraçou ternamente o antigo companheiro. À porta,
estavam seu pai e sua mãe vestidos de branco. “Estou pronta, amados”, falou
juntando-se a eles. Entre lágrimas, João sorriu de contentamento diante da
beleza do momento. Os três espíritos lhe acenaram adeus. Mais uma vez, o poeta
tinha tido a coragem e a humildade de fazer o que era necessário e agradeceu
ao Cristo por isso.
13
O relógio marcava meia-noite quando João acordou. Embora não
conseguisse vê-lo, ele sabia que era este o horário quando voltou ao corpo
depois do encontro com Marina. A princípio, com a mente vazia de pensamentos,
o professor decidiu conversar com seu mentor espiritual, ou como o chamava às
vezes, anjo da guarda. Ainda que desconhecesse a existência da palavra “anja”,
tratava o espírito guardião como mentora. Na força do Daime, ele sempre sentia
uma presença feminina a lhe instruir sobre as coisas espirituais. Por vezes,
essa presença era tão palpável que ele quase ouvia a sua voz, como se fosse
uma pessoa a lhe falar ao pé do ouvido. Era uma voz serena, ritmada, contudo
jovem. O professor considerava que a mentora parecia ter pouco mais do que
vinte anos de idade. Sua identificação com ela era tanta que decidiu chamá-
la de Eleanor, em referência à uma canção dos Beatles em que a personagem
padecia com a dor da solidão, pois era assim que o poeta se sentia. Aos 44 anos,
nunca tinha sido casado e nem tinha filhos. Durante a vida colecionara
incontáveis casos fugazes de amor. A fama de conquistador lhe fazia jus, mas
desde que abraçara a doutrina daimista tinha mudado radicalmente o estilo de
vida. Sumiu da boêmia e passou a se dedicar com admirável afinco ao que
chamava de “processo de evolução espiritual, moral e intelectual”. De um
espírito agitado e hiperativo, agora o professor irradiava tranquilidade,
doçura e amor. Sem perder com isso o bom humor que lhe era peculiar. Ainda
gostava de alegrar os amigos com histórias engraçadas, de cantar músicas
populares, de dançar e de declamar poemas.
João Guilherme pensava em tudo isso quando começou a falar com Eleanor.
Ele pediu serenidade para que não se perdesse na torrente de extraordinárias
experiências que estava vivendo. Insistiu para que ela explicasse porque não
conseguia se lembrar do que lhe acontecia no plano físico enquanto estava
desperto e agradeceu por sua companhia nos momentos mais difíceis desse novo
momento da vida. Com pureza de coração, finalmente confessou-se com medo. Ele
evitava usar aquela palavra, pois sabia da fortíssima energia negativa que
emanava dela. Mas era assim mesmo que se sentia, em meio ao silêncio e à
escuridão. Tomado de súbito pavor, começou a chorar. Gritou que precisava de
alguma orientação que lhe abrandasse a angústia da alma por não compreender
a profundidade do que vivia. Nada aconteceu. E agora a sensação que lhe
sobrevinha era de vergonha por ter se comportado como uma criança que,
deixada na escola para estudar, choraminga pelos braços da mãe. O jornalista
entendia que era preciso uma postura nova. A postura de um homem adulto que
aceita que a vida espiritual é cheia de fatos complexos, muitos dos quais ainda
ficariam envoltos sob o manto do mistério por muito tempo. Como um buscador
que havia deixado o leite espiritual e agora se nutria de alimentos
consistentes, era preciso entender definitivamente que este é um mundo de
expiação e evolução.
“Levante-se João”, ouviu nitidamente. Comando obedecido, olhou à sua
volta e viu-se na igreja daimista que frequentava. Estava tudo perfeitamente
arrumado para mais uma sessão. As cadeiras estavam colocadas de forma
impecável, formando a figura de um retângulo em volta da mesa - adornada
com as velas, as pedras de energia, a imagem de Nossa Senhora Aparecida e a
foto de Mestre Irineu. As flores no altar, postas ao lado da jarra com o Daime,
exalavam um finíssimo aroma que perfumava todo o salão. João Guilherme
sentiu-se imensamente reconfortado ao olhar para o lugar que sempre ocupava
na primeira fileira do batalhão masculino.
Saindo pela porta lateral, o poeta foi dar no jardim carinhosamente
iluminado pela lua e pelas estrelas. Caminhou mais um pouco e chegou ao lugar
onde costumava harmonizar-se após os trabalhos. Ali, debaixo da vegetação da
mata nativa, fazia suas últimas preces antes de juntar-se aos outros irmãos
na confraternização na cozinha ao lado. Sentou-se em um dos vários tocos da
madeira e ficou em silêncio. Ao olhar para cima, percebeu a lua entre as
frestas das copas das árvores. Ao redor dela havia uma espécie de anel cujas
bordas variavam entre as cores roxa e vermelha. Na parte interna do círculo,
havia um amarelo fosco. “Você sempre gostou deste cantinho, não é mesmo?”,
disse a voz que lhe tinha pedido para levantar-se. O poeta olhou para trás e
viu uma pequena esfera de luz branca pairando cerca de dois metros do solo.
“Eleanor?”, quis saber João. “Sim, amado irmão, sou eu”. Aquelas palavras foram
de uma alegria indescritível para quem imaginava às vezes que, julgando falar
com um espírito, falava somente consigo mesmo. Diante da hesitação do daimista,
ela acrescentou: “Há muito tempo que lhe acompanho. Mas só há pouco você passou
a notar minha presença. A energia negativa de seus pensamentos lhe impedia”.
O professor sentiu um certo constrangimento com a declaração da mentora,
mas concentrou-se na felicidade de estar falando com ela. “O que acha do meu
cantinho?”, perguntou meio sem jeito. “Eu também gosto. Já cantamos muitos
mantras juntos aqui, lembra?” João Guilherme sorriu de contentamento. A
esfera parecia agora assumir uma silhueta humana e o jornalista ficou ansioso
por julgar que ela se materializaria – o que não ocorreu. Pedindo perdão pela
impertinência, perguntou se Eleanor poderia se mostrar. “Ah, irmãozinho, temos
tantas coisas bonitas pra conversar e você está interessado em me ver? Não
basta nos falarmos?”, respondeu ternamente. A resposta não deixou de
incomodá-lo, pois deixava claro que ele ainda estava preso à aparências, mesmo
tendo vivido tantas experiências transcendentais nos últimos dias. “Perdoe-
me pela indiscrição, amada irmã”, resignou-se o professor. “Há muito abandonei
a forma física, João. Ela foi somente uma vestimenta durante minhas passagens
pelo mundo. Apegar-se à matéria retarda nossa evolução espiritual”,
esclareceu. O jornalista esboçou mudar o rumo da conversa e foi interrompido.
“Façamos o seguinte: feche os olhos e pense em alguma mulher que tenha sido
importante na tua atual encarnação, que você tenha amado e pela qual possua
um profundo sentimento de amizade e respeito”. João Guilherme fechou os olhos
e imediatamente lembrou-se de uma namorada de oito anos antes. Ela tinha
saído do país para fazer mestrado e, após a conclusão, decidiu não voltar. Eles
ainda se falavam esporadicamente pela internet. O namoro havia acabado de
forma conturbada, mas depois de alguns anos se reencontraram e reataram a
amizade. Agora longe, ela havia encontrado o amor nos braços de outra pessoa
e isso deixou João feliz. Cumprida a sugestão, o poeta abriu os olhos e tinha
diante de si, para seu espanto, a antiga namorada. Sua beleza, agora vista no
astral, era ainda mais suave. A pele branca como porcelana; os olhos castanhos;
o nariz pequeno e afilado; as sobrancelhas finas; os lábios rosados e carnudos;
os cabelos longos castanho-claros – estava tudo lá. Até a voz era idêntica
quando ela falou com certo tom irônico: “Pois então, senhor João Guilherme
Ribeiro, eis-me aqui”.
O professor achou graça e depois de um curto tempo interpelou: “Minha
amantíssima irmã, antes de mais nada, quero expressar toda a minha gratidão
pelas instruções, por tua amizade, pelo carinho e paciência. Não deve ter sido
fácil pra lidar com um sujeito teimoso como eu”. “Hum, reconhecendo a teimosia?
Estou vendo que tivemos algum progresso”, respondeu Eleanor em meio a uma
gargalhada. Aquela demonstração de descontração alegrou o coração de João e
confirmava, como havia lido, que é preciso bom humor no plano astral e ele
também riu.
- Pois bem, eu busquei durante meses a fio, sem sucesso, realizar uma
projeção astral cem por cento consciente. Até consegui alguma coisa, mas sempre
muito rápido. O que me abriu muito nos últimos tempos foi a clarividência.
Tive visões muito bonitas e outras nem tanto. Mas ultimamente passei a viver
desdobramentos de proporções fantásticas. Claro que estou muito feliz, mas
devo me confessar muito preocupado com o fato de não lembrar nada do que
tenha feito recentemente no plano físico. Você pode me ajudar a esclarecer
isso, Eleanor?
- Certo, mas antes deixe-me agradecer pelo nome que você escolheu para
mim. Eu realmente me chamei assim em uma das minhas encarnações e também
gosto muito dos Beatles. Por falar nisso, o John pediu-me para lhe agradecer
por ensinar “Imagine” aos teus alunos nesses anos todos. Mas vamos lá: essas
experiências de desdobramento sempre ocorreram contigo. Você é que não se
lembrava delas depois que acordava. Quando saía do corpo durante o sono, você
tanto recebia instruções quanto nos auxiliava em trabalhos de cura espiritual
para outros irmãos encarnados ou desencarnados. Eu sou a tua tutora
espiritual há muitos anos e, junto com outros espíritos da nossa falange,
guiava os teus passos aqui no astral. Foi somente com muita insistência minha
e de meus irmãos, que você passou a praticar na Terra o que aprendia aqui.
Você está indo bem, mas pode e deve melhorar muito ainda. Estamos vivendo um
momento de excepcional abertura cósmica, João. Os seres humanos estão dando
um grande passo na evolução espiritual. Nosso Cristo Planetário está ansioso
por nos receber. Mas, em função de alguns problemas inesperados, foi preciso
fazer reajustes na jornada evolutiva de milhares de pessoas para otimizar a
ascensão espiritual da humanidade. Você é uma dessas pessoas. Lembra-se de que
nos momentos de maior força no Daime, o que você mais pedia à Virgem Mãe era
amor pelos teus irmãos? As tuas preces foram ouvidas e a Divina Senhora lhe
abençoou com a maior dádiva que um homem pode receber: o amor desinteressado
– fazer o bem sem esperar nada em troca. Mas tome cuidado para não cair na
armadilha do orgulho com o que estou lhe dizendo. A responsabilidade é muito
grande e você terá de pagar um preço altíssimo por essa bênção. Quanto ao fato
de ter perdido a memória curta, este é um assunto do qual não tenho permissão
para falar agora. No momento certo você ficará a par de tudo. Não se preocupe,
meu irmão. Você não está só nesta jornada. Como já te disse, além de mim, há
outros espíritos lhe assistindo, inclusive Vinícius de Moraes e Seu Zé
Pelintra.
Maravilhado com o que acabara de ouvir, o poeta aquietou o coração.
Sentada ao seu lado, Eleanor estendeu-lhe a mão esquerda e pousou-lhe a
direita sobre a cabeça e fez uma prece em uma língua que, embora João não
falasse, reconheceu de imediato. Era o Gayatri mantra, em sânscrito - a prece
citada por Krishna no épico Bhagavad Gita:
“Om bhür bhuva svah
tat savitur varenyam
bhargo devasya dhïmahi
dhiyo yo nah prachodayät”
Em todos os três mundos – terrestre, astral e celestial, que possamos meditar
sobre o esplendor daquele sol divino que nos ilumina. Que toda a luz dourada
acalente nosso entendimento e nos guie na jornada para a morada sagrada.
Após a terceira entoação falada, a mentora convidou o poeta para que
cantassem juntos, como já haviam feito antes, naquele mesmo lugar, sem que ele
soubesse. Ao término do mantra, Eleanor havia retornado à forma de luz. João
Guilherme compreendeu então que o encontro tinha acabado. Embora
reconfortado, ele ainda não sabia qual deveria ser o próximo passo. Ao ter
esse pensamento, ouviu Eleanor dizer em tom divertido: “Está na hora de
reencontrar teu grande amor. Não era isso o que você queria o tempo todo?”.
“E onde irei encontrá-la?”, replicou João. “Onde quiser. Apenas imagine um
lugar e você estará lá”, acrescentou o espírito. Da euforia inicial, João
Guilherme ficou apreensivo com o iminente reencontro com a alma gêmea.
Respirando fundo, recordou-se da última vez que estivera com Amparo na
clareira da grande pedra, ainda que não tenha conseguido lhe ver. Sim, aquele
lugar deveria ter algum significado especial. O poeta fechou os olhos,
visualizou-o e no mesmo instante teletransportou-se.
Pela posição do sol, o dia devia estar nascendo e muitas estrelas ainda
piscavam no céu. A natureza entoava seu canto em esplendor. Grilos, cigarras,
sapos, corujas, macacos, toda espécie de pássaros. Naquela orquestra matinal, o
rio era o solista que, com a voz doce e suave, anunciava o raiar de um novo
dia. Com devoção, João Guilherme ajoelhou-se, molhou o rosto e bebeu da água
cristalina. Depois, caminhou para dentro da mata em direção à clareira onde
estivera antes. Não havia ninguém a lhe esperar. Mas isso não o perturbou e
lentamente sentou-se na grande pedra e aguardou. De olhos fechados e com um
sorriso na face, entoou mais uma vez o Gayatri mantra. A cada repetição, sua
alma exultava de amor por todas as coisas vivas. Os bichos e o rio pareciam
lhe seguir na adoração ao Pai Celeste e à Mãe Terrena. Somente quando já
tinha perdido a noção do tempo é que sentiu que era observado. Era ela. O
perfume delicado a denunciara. Sem levantar-se, João virou-se e contemplou a
metade de si afastada há tanto tempo. Ela usava um chapéu bege enfeitado com
florzinhas. Os cabelos loiros estavam divididos em duas tranças sobre os
ombros. O vestido branco tinha um laço azul turquesa na altura da cintura e
ela segurava uma sombrinha cor-de-rosa. O reflexo das águas fazia com que
seus olhos azuis parecessem dois pequenos diamantes recém-descobertos. O poeta
era o eufórico garimpeiro que acabava de encontrar um tesouro na mina escura
e funda de sua alma.
“Não é engraçado você estar cantando o Gayatri mantra aqui neste mesmo
lugar, meu amor?”, disse Amparo quebrando o silêncio. Discreta e delicadamente
ela riu-se do fato de ele demonstrar não ter compreendido o que acabara de
ouvir. João levantou-se. Ela aproximou-se e tomando-lhe as mãos, beijou-as
suavemente. Depois beijou-lhe a testa, os olhos e por último a boca. Em seguida,
convidou-o a sentar novamente sobre a grande pedra. Agora lado a lado após -
na concepção do professor – uma eternidade de separação, ele quis falar. Ela
não permitiu. “Você não se lembra deste lugar, meu príncipe?” João Guilherme
tentou, mas não conseguiu. Pousando a cabeça do amado em seu regaço,
gentilmente pediu: “Feche os olhos e busque no recôntido do teu coração”.
14
Naquela manhã o sol não deu o ar da graça. Nuvens cor de chumbo brotavam
do chão e pairavam austeras sob o céu vermelho. No ar, o inconfundível cheiro
da morte. Da terra, o pranto de pais pelos filhos mortos e o pranto de filhos
pelos pais mortos eram ignorados por Krishna – a encarnação de Vishnu - nas
alturas. O mundo havia conhecido Sua pesada mão de justiça por causa da
iniquidade dos homens. O fim anunciado durante séculos havia chegado. Esse
foi o pensamento de Jahnu Mahajan, filho do vaixá Sudhir Mahajan, grande
fazendeiro e comerciante. Com 25 anos de idade, Jahnu era filho único. De
exuberante aparência, voz grave, tinha sido educado pelos melhores
preceptores, que lhe ensinaram os textos védicos, o Bhagavad Gita, astronomia,
filosofia e poesia – área na qual havia se destacado.
O coração de Jahnu estava pesado. Desde que despertara, ainda de
madrugada, não pronunciara uma única palavra. No íntimo, não desejava nunca
mais falar com ninguém, tamanha era a agonia que lhe atormentava a alma. Nos
últimos quatro anos tinha estudado na renomada universidade de Oxford, em
Londres, na Inglaterra. E agora que retornava aos braços da adorada Índia,
encontrava-a ardendo em chamas, humilhada ante a maldade dos invasores
ingleses. E pensar que um dia chegou a amar aquele país estrangeiro. Sua
língua, seus poetas, sua gente. Com o confisco das terras da família pela coroa
britânica, de nobre e rico, tinha passado à condição de pária. O pai morrera
defendendo a propriedade e a mãe pela fome que vitimou outras centenas de
milhares de pessoas no país ante a política econômica recessiva imposta pelo
governo ditatorial. Sentindo a boca seca e a cabeça pesada, o vaixá olhou para
si mesmo e teve vergonha. As roupas estavam rotas e imundas. Havia sujeira
nas mãos e debaixo das unhas. Como tinha vindo parar ali naquela choupana?
Tocou a cabeça e descobriu que ela estava envolvida por uma faixa. Ao sair
pela pequena porta e deparar-se com a lua, baixando a mão, viu sangue.
Lembrou-se então do que tinha ocorrido. Quando chegou à casa de seu pai,
uma luxuosa mansão de muitos aposentos e servos, foi informado da
expropriação. Ela agora pertencia a um militar inglês. Assim como o genitor,
Jahnu protestou e ofereceu resistência. Gravemente ferido por soldados de
farda vermelha, foi jogado inconsciente na estrada, de onde foi resgatado em
seguida por seu servo e melhor amigo Jay – o sudra adotado ainda bebê por sua
mãe Induma.
O acampamento onde agora se encontrava abrigava centenas de homens,
mulheres e crianças miseráveis – os cordeiros - que segundo a crença, tinham
vindo da poeira debaixo dos pés de Brahma, e por isso malditos. O antes vaidoso
vaixá era assim, ele mesmo, um “intocável” – seres desprezíveis a quem cabiam
os trabalhos mais deploráveis.
As pessoas em volta olhavam o vaixá com um misto de desprezo e compaixão.
Ainda que encardida, a indumentária denunciava-lhe a casta. Temendo por sua
integridade física, Jay o recolheu para dentro do casebre. “Jahnu Ji não deve
se expor. É perigoso”, alertou o servo oferecendo-lhe um pedaço de pão. “Eu
preciso retomar a casa de meu pai. Preciso vingar a honra da família”, bradou
o poeta. Diante do olhar de incompreensão do amigo de uma vida toda, ele
conteve a fúria por instantes. “Meu amigo, não nascemos do mesmo ventre, mas
para mim sempre sereis como um irmão. Tens a minha eterna gratidão por ter-
me salvo a vida. Estou em débito contigo”, falou em tom protocolar. “De forma
alguma, Jahnu Ji. Eu é que devo a vós e a vossa família pela benevolência
desses anos todos. Não fiz mais do que a obrigação. Agora procure repousar, o
senhor ainda está muito fraco”.
Jahnu seguiu a orientação e recostou-se no pedaço de pano estendido
sobre o chão. Foi quando lembrou-se que, pela primeira vez na vida, não tinha
feito as orações matinais. A reação natural foi levantar-se para cumprir a
obrigação, mas tomado de um torpor repentino, fechou os olhos e adormeceu. Em
seu sonho, vestia uma armadura de guerra dourada. Ele usava um elmo de prata,
seu escudo trazia a insígnia de um leão e a espada reluzia com o brilho do sol
escaldante. Montado em um corcel negro, assim como outros comandantes,
aguardava as ordens do general, que se mantinha em silêncio em uma biga na
encosta de um monte próximo. Jahnu olhou em volta e viu que estava
acompanhado de milhares de guerreiros. Entre eles, seu pai, avô, tios, primos
e outros amigos empunhando arcos e lanças. Apesar de ser de dia, uma imensa
lua cheia brilhava no céu azul. Promovido à casta dos xátrias – os guerreiros
nascidos dos braços de Brahma – Jahnu Mahajan brandiu a espada no ar
entoando um grito de guerra. Então ouviram-se grandes estrondos, como sons
de trovão, vindos do alto do monte e o céu verteu-se em sangue.
A primeira coisa que o poeta viu, quando acordou, foram os grandes olhos
castanhos e amendoados de Jay, que lhe passava um pano úmido na testa. “O
senhor teve um pesadelo, mas já acabou”, explicou o sudra. Jahnu ainda
permaneceu um tempo deitado a meditar sobre o estranho sonho. Quando
levantou-se, tirou a parte superior da roupa, os sapatos e pediu que o amigo
os queimasse. Em seguida, saiu do casebre e foi juntar-se à multidão de
miseráveis que se espalhava pelas ruas. Tal qual um anjo destituído de luz e
forçado a viver na Terra, Jahnu aceitava a nova condição de desgraçado,
cônscio de que tinha alguma lição a aprender e uma missão a cumprir.
15
Sempre seguido de perto por Jay, Jahnu percorreu as vielas malcheirosas
do vilarejo. Por onde passava, atiçava olhares curiosos. Seu coração condoeu-
se ao ver crianças de todas as idades revirarem o lixo em busca de comida. Na
caminhada de reconhecimento do lugar, ele só se deteve uma vez, incomodado
com o olhar de um ancião sentado à porta de sua choupana. Ainda que cercado
pela miséria, o homem tinha um aspecto sereno. Ninguém nunca tinha o encarado
com tamanha firmeza como fazia aquele estranho. Depois de caminhar alguns
quilômetros, o vaixá chegou ao limite do assentamento. Vendo a despedida
melancólica do sol e a chegada sombria da lua, em uma deprimente combinação
de beleza, o jovem lembrou-se dos primeiros versos de um dos sonetos de seu
poeta inglês favorito, “quando a hora dobra em tardo e triste toque e em noite
horrenda vejo escoar-se o dia...”
O filho de Sudhir Mahajan caminhou ainda mais uma distância até
alcançar o pico de um pequeno monte. Chegando lá, sentou-se, fechou os olhos
e pôs-se a meditar no sonho que tivera naquela manhã. Contaminado pela
revolta que sentia no coração, interpretou que os príncipes da Índia se
uniriam em um grande exército para expulsar o invasor, sob a liderança do
próprio Lorde Krishna. Era imperativo agora começar a arregimentar
guerreiros para a grande batalha. Diante dessa perspectiva, sentiu um alento
de esperança na alma fatigada e continuou em atitude meditativa por mais
algum tempo. Quando levantou-se, era noite alta e o céu resplandecia com a
luz de milhares de estrelas. Ao olhar para baixo, contemplou sua nova cidade.
As centenas de lamparinas acesas pareciam velas a iluminar o velório daquela
que outrora tinha sido uma grande civilização, berço de uma cultura
extraordinária e abençoada por excelsas divindades. Com os olhos cheios de
lágrimas, rogou a Krishna: “Ó Pai da Luz, glorificai-nos em vosso próprio ser
e mostrai-nos toda a glória da qual no começo participamos Convosco, antes
que o mundo fosse feito”. Jay, o súdito fiel, mantinha-se a uma distância
respeitosa, mas não pôde deixar de ouvir e emocionar-se com a prece proferida
pelo seu senhor – que com apenas um olhar o fez compreender que estava na
hora de descer. Era preciso começar a agir.
“Quem era aquele homem de aparência nobre que me olhou longamente
quando vínhamos para cá?”, perguntou Jahnu quando entraram na aldeia. “Penso
que o senhor refere-se a Vivek”, o sudra apressou-se em responder. “Por
gentileza, solicite permissão para que eu lhe visite a fim de uma conferência
de suma importância”, completou Jahnu Mahajan dirigindo-se para a choupana
que agora lhe servia de lar. Na mesma noite Jay tratou de obedecer a ordem.
O espectro da morte rondava o acampamento, a ponto de não se ouvirem vozes
nas ruas. Os poucos sons que saíam das casas eram de choro pelos mortos ou
orações rogando a misericórdia dos deuses. “Namastê!”, disse o servo ao deparar-
se com Vivek à porta de sua casa. Com as duas mãos postas à altura do peito e
com um sutil movimento de cabeça o ancião retribuiu a saudação. O velho tinha
longos cabelos brancos e barba hirsuta. A pele estava duramente castigada
pelo forte calor – o que lhe dava uma certa coloração de verniz. A figura
mirrada denunciava a precariedade de suas condições de vida. Com um movimento
de mãos, Vivek fez entender que convidava o visitante para entrar. Sob a opaca
luz da lamparina, Jay viu um amontoado de olhos em um canto do cômodo. Como
gatinhos acuados, os olhares mesclavam assombro e curiosidade. “O mestre a
quem sirvo, Jahnu Mahajan, filho de Sudhir Mahajan, respeitosamente requer
uma audiência”, esclareceu o sudra com orgulho. O velho não esboçou nenhuma
reação. Após uma longa pausa, sentenciou: “Aqui onde estamos, entregues à
própria sorte, não existem mestres ou servos. O infortúnio abateu-se sobre
todas as famílias. Agora não há nem grande nem pequeno. Se vosso amigo deseja
ser ouvido, ele mesmo que venha apresentar-se”. Espantado com a tranquilidade
com que Vivek expressara o que considerou ter sido um atrevimento, o sudra
agradeceu pela atenção e despediu-se.
Quando retornou ao casebre, encontrou Jahnu escrevendo com os dedos na
terra. Seu olhar demonstrava uma curiosidade inédita. Temendo aborrecer o
mestre, o servo comunicou-lhe - sem repetir as palavras - que o ancião o
receberia na manhã seguinte. “O que Jahnu Ji viu em seu sonho esta manhã?”,
atreveu-se em perguntar depois de breve silêncio. Sem olhar para o amigo, o
vaixá respondeu: “Eu vi um poderoso exército se formando para a grande
batalha. Os invasores pagarão caro por tamanha insolência”. Ao ouvir isso,
Jay respirou fundo e não disse mais nada. Estava na hora de dormir. O poeta
demorou a pegar no sono. Quando ele veio, chegou truculento e cheio de sonhos
com imagens desconexas. Passado um tempo, Jahnu Mahajan mais uma vez via-se
no front. Como que ignorando o furor dos soldados, o misterioso general
mantinha-se impassivo em sua biga no alto do monte. Como no outro sonho, a
lua disputava com o sol a primazia pelo céu azul.
Desta feita, o poeta não acordou sobressaltado. Pelo contrário, dormiu
profundamente e só despertou pouco antes do nascer do sol. Debaixo da leve
garoa que caía naquele fim de madrugada, Jahnu ajoelhou-se e, virando-se para
o sudoeste, começou a prática devocional entoando o Gayatri mantra. Quando
terminou as orações, o jovem entrou, sorveu o pouco de chá que tinha à
disposição, comeu um pedaço de pão e conclamou Jay a acompanhá-lo na missão
diplomática. A garoa tinha se transformado em chuva e os amigos chegaram
ensopados à casa de Vivek. Saudações iniciais proferidas, os dois foram
convidados a entrar. Ainda que com a luz do sol ofuscada pelas densas nuvens,
Jahnu pôde constatar que o velho e família viviam em situação mais precária
que a sua. Após secar-se e tomar um gole do chá oferecido pela esposa do
anfitrião, tomou a iniciativa da conversa: “Vivek Ji, por algum motivo que
não me é conhecido, os Pais Celestiais permitiram que nossa amada nação fosse
tomada de assalto pelos usurpadores ingleses. Como filhos de Brahma, não
podemos tolerar tamanha afronta. Urge formarmos um exército para retomarmos
o poder do país. Não podemos aceitar sermos humilhados em nossa própria terra”.
O velho não respondeu de imediato. A voz grave do visitante causara um
total silêncio no casebre. “Jahnu Ji demonstra habilidade com as palavras”,
finalmente começou Vivek, referindo-se à eloquência do jovem. No fundo, a
insinuação tinha como alvo o inglês perfeito falado pelo poeta. Nos primeiros
meses na Inglaterra, Jahnu havia se aborrecido com as insistentes chacotas
dos colegas europeus por causa de seu jeito de falar. Com uma disciplina de
monge, o vaixá empenhou-se, a partir de então, em eliminar totalmente o
sotaque indiano. Para o sucesso dessa empreitada, aulas de teatro e canto
foram de suma importância. Porém, jamais lhe passara pela cabeça que um dia
seria molestado em situação oposta. O jovem engoliu a provocação e continuou
prestando atenção. “O senhor parece ter passado muito tempo em terras
estrangeiras e fala como se os invasores tivessem chegado aqui no mês passado,
quando chegaram há muitos anos, antes mesmo do vosso nascimento. O que os
ingleses fazem com o país não é nada diferente do que homens como vosso pai
fizeram com meu povo, com minha casta. A mesma exploração, a mesma arrogância,
o mesmo desprezo”, completou olhando firme nos olhos de Jahnu Mahajan.
O vaixá não se conteve diante de tamanha afronta. “Como um pária como
o senhor atreve-se a insultar a memória de um homem honrado como o meu pai?
Não fosse por sua idade avançada...”, replicou em alta voz. “Vosso pai? Sim...
eu o conheci. Sudhir Mahajan, o agiota implacável. O homem que nunca
demonstrou clemência por ninguém. Nem quando o devedor implorava por
misericórdia por não ter pago a dívida por causa da má colheita. Você nunca
se perguntou como ele conseguiu tantas terras em tão pouco tempo? Isso mesmo,
meu jovem! Tomando as propriedades de homens indefesos como eu. Mas Shiva é
justo e agora, assim como nós, o adorável filho de Sudhir, que foi mandado ao
estrangeiro para não ter de conviver com a ralé, é também um intocável”,
bradou Vivek colocando-se em pé. A cólera subiu à cabeça de Jahnu e não fosse
pela firme intervenção de Jay, teria cometido um assassinato. Os gritos
exaltados chamaram a atenção dos transeuntes que, atiçados pela curiosidade,
aproximaram-se na tentativa de se colocar a par do que se passava. Temendo
pela integridade física de seu senhor, Jay o arrastou para longe. O poeta, por
sua vez, nem fazia ideia que era observado por olhos ardentes de paixão.
“Insolentes! Ingratos!”, esbravejou o vaixá assim que chegaram de volta
à choupana onde moravam. “Quantas vezes Sudhir Mahajan deu esmolas a esses
preguiçosos? Não fosse pela benevolência de homens como meu pai, eles já teriam
se matado ou ainda estariam disputando comida com os animais”, prosseguiu.
Embora cada palavra proferida fosse como um açoite, Jay apenas ouvia.
Quando finalmente o mestre demonstrou estar mais calmo, aconselhou: “Aqui
não é mais seguro para Jahnu Ji. Precisamos procurar outro lugar”. Meio que
a contragosto, o poeta concordou com o sudra e determinou que partissem
imediatamente. Sem destino certo, fizeram uma pequena trouxa, pegaram a
estrada e só se detiveram depois muitas horas de caminhada e já noite, quando
se depararam com um rio. Tenda improvisada, Jahnu deitou-se na esperança de
adormecer e ter novamente o sonho que representava a redenção. O galo cantou
pela primeira vez quando o poeta conseguiu dormir. O sonho veio rápido – mas
não o que esperava. Agora ele estava amarrado em cima de uma mesa de mármore.
Somente uma pequena luz brilhava na penumbra do local. Repiques de tambores
eram o único som audível. Com muita dificuldade, conseguiu ver, à média
distância, uma passagem na parede. Quando os tambores cessaram o concerto
macabro, a figura que se revelou instalou-lhe pavor na alma. De língua de
fora e olhos esbugalhados, com seus quatro braços e o rosto azul, cabelos negros
como carvão até a cintura, surgia Kali, a deusa da morte, armada de um punhal
e andando em sua direção. Jahnu tentou uma, duas, três, inúmeras vezes gritar,
mas o grito ficou entalado na garganta. Diante da iminência da morte, pensou
em Krishna.
O breu ainda insistia quando o vaixá despertou do terrível pesadelo.
Apesar de não ter comido quase nada durante o dia todo, vomitou repetidas
vezes. Mesmo com o calor da madrugada, seu corpo tremia em calafrios.
Desesperado, Jay amparava o homem ao qual havia jurado lealdade. O galo
cantou a segunda vez quando Jahnu deu sinais de que estava se restabelecendo.
Agora desperto, olhou para as estrelas e clamou com o coração compungido: “Ó
Vós, Infinita e Sagrada Presença Divina, não permitas que a morte me tome sem
que antes eu faça aquilo que é preciso ser feito”. Comovido com a fragilidade
do amigo, o sudra chorou.
“Inevitável é a morte para os que nascem; todo nascer é um morrer“,
profetizou a voz vinda do meio da escuridão e Jahnu pensou ter ouvido o
próprio Krishna a anunciar do alto céu sua sentença final. Mais pragmático,
Jay vasculhou o local com os olhos em busca da companhia inesperada. “Aquietai
o vosso coração, nobre irmão, ainda não será desta vez que receberás o beijo
mortal de Kali”, falou novamente a voz, cujo dono tinha estado o tempo todo
bem em frente à dupla.
Com muito esforço, Jahnu Mahajan conseguiu colocar-se em pé. Só então
viu nitidamente o ancião de cabeça raspada sentado em cima de uma grande
pedra. “Quem sois vós?”, quis saber o jovem. “Eu já tive muitos nomes, mas podeis
me chamar de Jyotish”, respondeu o velho. “E o que fazes sozinho aqui no meio
da floresta a esta hora?”, intrometeu-se Jay.
- Eu estava a lhes esperar – disse olhando para Jahnu.
- Com que intenção? – perguntou o vaixá.
- Não se turbe o vosso coração, meu irmão. Jyotish vem em paz.
Recomposto, o poeta aproximou-se mais da exótica figura. “Como sabes que
sonhei com Kali?”, inquiriu. “Eu também estava em teu sonho”, rebateu o ancião,
deixando-o perplexo. “Tenho uma grande missão a executar. Não posso morrer
agora”, confidenciou o filho de Sudhir. “Quanto a isso, não deveis temer. Muito
embora vossa missão seja bem diferente daquela que imaginas”, disse Jyotish
em tom evasivo para em seguida completar: “Um novo mundo está prestes a se
revelar a vós”. “E quando será isso?”, perguntou Jahnu sem disfarçar a
ansiedade. “Tudo começará amanhã, com a lua cheia”, replicou o misterioso
velho. A sentença fez o poeta olhar automaticamente para o céu em busca da
lua. Ao fazer isso, o mundo girou aos seus pés e ele desmaiou. O galo cantou
pela terceira vez.
Como quando despertamos abruptamente de um sonho após sofrermos uma
enorme queda, João Guilherme voltou ao corpo físico. Pensando em toda a beleza
e horror que vivenciara nessa última projeção astral, o professor, mais uma
vez, tinha uma intuição confirmada. Os mantras ouvidos e entoados
diariamente; as batas que tanto gostava de vestir; as tatuagens com motivos
hindus; a insólita devoção por Krishna; a opção pelo vegetarianismo; os
incensos, a prática do yoga e da meditação... então era isso! Ele já tinha vivido
uma encarnação na Índia. O jornalista respirou fundo e concentrando-se,
relaxou totalmente o corpo e a mente e voltou a dormir.
16
Os dedos de Amparo tocavam suave e carinhosamente o rosto e os cabelos
de João Guilherme. Solfejando uma antiga canção de ninar que havia aprendido
na infância, ela velava pelo sono do amado. O homem da voz forte e gestos
viris, agora não passava de um menino, encolhido e indefeso no colo da mulher
em cujos olhos descobrira o amor. Tudo era tranquilidade. Até mesmo a floresta
parecia ter diminuído seus ruídos para garantir-lhe a paz do repouso.
Ainda demoraria até que a lua cheia chegasse. Nesse ínterim, Jahnu e Jay
foram instruídos por Jyotish a se dedicarem ao jejum e às preces. As primeiras
horas da manhã transcorreram tranquilas. Somente quando o sol estava no
ponto mais alto é que o poeta deu o primeiro sinal de fadiga. A sensação era
que as formigas e os mosquitos iam devorar-lhe o corpo, que suava em bicas. O
vento parecia ter se escondido em algum canto remoto do planeta, tamanha a
aridez que reinava. A cãibra que sentia nas pernas lhe dava um nó nos
músculos. A dor era insuportável. Mesmo assim, Jahnu Mahajan manteve-se
firme. Foi só depois de ter clamado em pensamento por forças ao seu adorado
Lorde Krishna, que ele começou a experimentar, vagarosamente, um bem-estar
que partiu da ponta dos pés e subiu pelo corpo até atingir o cume da cabeça.
Olhos fechados; sentado com as pernas cruzadas uma sobre a outra; espinha
ereta; respiração imperceptível, porém ritmada; língua ligada ao céu da boca;
mão direita pousada sobre a esquerda e os dedões se tocando levemente, o vaixá
começava uma imersão para dentro de si mesmo.
O estado de presença era tamanho que a mente parecia ter parado por
completo, ante a ausência do mínimo pensamento que fosse. Separado por uma
distância regulamentar ditada pela relação servo/senhor, Jay experimentava
semelhante sensação. Inadvertidamente, o sudra abriu os olhos e viu o poeta
impassível ao seu lado. “Perdão pela falta de firmeza”, já ia dizendo em
pensamento quando avistou algo surpreendente. Viu a si mesmo ainda em
concentração. Ele não entendia como tinha saído do corpo, mas a sensação de
liberdade dispensava explicações. Seu peso parecia ter sido reduzido ao de uma
pluma e tal qual uma, foi sendo conduzido por um sopro invisível. Flutuando
sobre o rio, foi deixado à entrada daquela que tinha sido a sua casa durante
anos, enquanto serviçal de Jahnu. Jay examinou o lugar e diante da casa
grande, viu um casal de sudras a discutir com o dono da propriedade. Esposo e
esposa estavam de joelhos e choravam copiosamente ante a indiferença do vaixá
de trajes finos. A mulher segurava um bebê e em um gesto de total desespero,
estendeu-o implorando por misericórdia – pelo menos para a criança. Mais uma
vez o homem não fez nada. O drama só terminou quando uma senhora elegante
saiu de dentro da casa e tomou o rebento para si. Humilhado, o casal levantou-
se e saiu da propriedade sem olhar para trás.
Jay, que nunca conhecera os pais, tinha acabado de assistir a história
de sua vida e soube disso. Apesar de bem mais jovens, o moço sudra não teve
dúvida da verdadeira identidade do casal. Vivek - o ancião que por pouco não
encontrou a morte nas mãos de Jahnu era um. Somente da mãe ele não sabia o
nome. Mas isso era uma questão de tempo. Aflito, não fazia a menor ideia de
como voltar ao corpo físico, até lhe ocorrer o óbvio. Se a saída tinha se dado
pelo estado de relaxamento total, a volta só poderia ocorrer da mesma forma.
E assim foi. Quando saiu da projeção e voltou ao estado de vigília, Jay estava
em paz. Não havia ódio em seu coração. Mesmo diante da revelação de que Sudhir
Mahajan tinha sido o responsável pela perda das terras de sua família,
continuou a respeitar aquele homem austero a quem aprendera a amar como pai.
E mais do que nunca, tinha a convicção de que precisava tomar conta de Jahnu.
O jovem poeta, por sua vez, não foi a nenhum lugar no plano astral desta
feita. O que ele experimentava enquanto meditava e esperava, era um forte
estado de presença. O ontem - nada mais que o passado - não lhe atormentava
mais; o amanhã – o futuro não vivido – perdera todo o aspecto sombrio. Só
existia o presente, o agora. O único momento real da vida.
Quando a noite caiu, o misterioso Jyotishi surgiu das sombras. Ele trazia
nas mãos algo que se assemelhava a uma sacola e uma moringa e várias plantas
da mesma espécie. Elas tinham caules longos e uma coloração verde-clara. Assim
que notaram sua presença, Jahnu e Jay vieram ter com ele. Ambos ficaram
curiosos com o que o velho segurava, mas não fizeram perguntas e puseram-se
a observar. Sempre taciturno, o ancião passou a ocupar-se da retirada da seiva
das plantas, socando-as com uma pedra. Quando terminou o processo, filtrou o
líquido em lã de ovelha e misturou com outros ingredientes em uma cuia. Desses
ingredientes exóticos, Jay só conseguiu identificar o leite de vaca.
Finalmente, Jyotishi virou-se para os dois jovens e disse com um leve sorriso:
“Está pronto!” Jahnu Mahajan lembrou-se de menções sobre uma bebida sagrada
em inúmeros versos do Rigveda. Recordou-se também de seu poder enteógeno e
da alegada personificação de um ser divino. A reação natural do vaixá foi
abster-se de participar daquele ritual védico. Contudo, a intuição lhe dizia
claramente que o que estava prestes a ocorrer fazia parte de um plano
superior. O poeta manteve-se em silêncio e havia um tênue sentimento de medo
em seu coração. Momentos depois, o brilho da lua cheia enfim iluminou a
clareira onde os homens tinham se sentado formando o desenho de um triângulo.
Com os olhos firmes no corpo celeste, Jahnu viu descer dele como que uma fina
névoa dourada. O espectro pairou um instante acima da pequena egrégora e
fundiu-se ao elixir que Jyotish tinha acabado de preparar. Tomando a cuia
com as mãos, o velho ergueu-a e recitou uma pequena prece incompreensível.
Depois sorveu uma quantidade generosa e passou-a a Jay. Este, temeroso, bebeu
somente um pouco. A maior parte ficou para o poeta que, resoluto afinal, tomou-
a com um gole só. De início nada aconteceu. Só depois da centésima oitava
repetição do mantra “om mane padme hum” é que a bebida começou a fazer efeito.
Quando a beberagem corria por todo o corpo, Jay não resistiu e levantou-se.
Mesmo cambaleante e prestes a perder o controle do intestino, conseguiu correr
para trás de uma grande árvore. Enquanto se aliviava, também vomitava
repetidamente.
Jahnu Mahajan mantinha-se na posição de lótus. De repente, sentiu uma
pontada na cabeça, que rapidamente se transformou em um formigamento no lado
esquerdo do rosto. Ele sentia o pulsar intenso do sangue nas veias como lavas
de um vulcão recém-desperto a abrir caminho pelo chão. O formigamento
espalhou-se para o corpo inteiro e intensificou-se no coração. Os seus chakras
giravam em espiral e deles saíam fortes matizes de luz. As vísceras pareciam
entrelaçar-se e o poeta ouviu pequenos estalos dentro da cabeça, como se o
crânio estivesse sendo esmagado por uma gigantesca mão invisível. Em estado
de consciência, em plena comunhão com o Eu Superior, Jahnu tinha se elevado
acima do ego, esse formidável sabotador da divina natureza humana. Agora o
pensamento estava colocado no devido lugar. Ele era apenas mais um sentido -
como o são a visão, o paladar, o olfato, a audição e o tato. Com os olhos da
alma ele percorria a mente como quem olha uma cena externa e vê com perfeita
nitidez tudo o que não está de acordo.
Por fim, foi tomado por uma enorme leveza. A impressão que tinha é que
o corpo girava suspenso no ar. Ainda assim manteve-se de olhos fechados.
Envolto por uma fortíssima onda de energia, abandonou o corpo físico e quando
abriu os olhos, estava na órbita lunar. Seu coração regozijou-se de alegria
quando um rosto gigantesco de Krishna apareceu diante de si. A encarnação de
Vishnu abriu a boca e, como se olhasse para um imenso buraco negro, o vaixá
viu milhares de sóis, planetas, estrelas e astros. Em um movimento veloz, a
divindade literalmente engoliu Jahnu, que só conseguia repetir mentalmente
a louvação “Hare Krishna, Hare Rama”. Lumes cintilantes de todas as cores iam
e vinham dentro daquele universo extraordinário. Ele sentiu-se dentro de um
grande caleidoscópio. Percorrendo uma ponte dourada, foi parar em um palácio
com paredes cravejadas de diamantes. As portas descomunais estavam abertas e
ele entrou. No interior, ouvia-se uma música alegre. No centro de um grande
salão, dançavam dezenas de pessoas trajadas com vestes alaranjadas.
“Finalmente você chegou”, ouviu Jahnu, sem, contudo, conseguir localizar
de onde partira a fala. Andando por entre os homens e mulheres, ele procurava
e procurava. “Meu amor, você terá de fechar os olhos para me ver”, falou
novamente a voz, que tinha um tom de irresistível candura. Assim que o vaixá
fechou os olhos, o salão ficou totalmente vazio. A música ainda continuava e
o jovem deparou-se com um ser que irradiava intensa luz. Pensando estar
diante de um anjo ou de uma divindade, ajoelhou-se demonstrando reverência.
O espírito, tomando Jahnu pelas mãos, o fez levantar-se. Lentamente seu brilho
foi diminuindo, até que o poeta pôde vislumbrar a mulher mais linda diante
da qual já tinha estado. Ela trajava um ghagra choli cor-de-rosa com detalhes
bordados em branco e azul. Os cachos dos cabelos loiros caíam-lhe até a cintura;
os olhos azuis eram como pétalas de violeta bailando ao sabor do vento; o rosto
tinha tons como de pequenos morangos silvestres e os lábios a delicada sedução
de uvas prontas a serem colhidas da videira e suas mãos – pequenas e delicadas
– tinham o perfume de todas as rosas.
O poeta desviou o olhar, constrangido pelos farrapos que vestia. Ela
sorriu com indulgência. Quando olhou para si de novo, Jahnu percebeu
maravilhado que estava dentro de uma belíssima calça branca de linho e seu
sherwani era adornado com bordados prateados com fundo azul marinho. Ela
sorriu e, tomando-lhe as mãos novamente, beijou-as com ternura. Beijou-lhe
também a testa, os olhos e a boca. Como que em um passe de mágica, o casal já
não estava dentro do salão dourado. De mãos dadas, percorreram as estrelas
até pararem em cima de um asteróide. “Meu príncipe, sinto tanto a tua falta.
Estamos separados há muito tempo”, confidenciou. E Jahnu Mahajan compreendeu
o significado daquelas palavras em toda a plenitude. Tudo estava claro. Mas
apesar do êxtase de estar na eternidade junto com a alma gêmea, o poeta aceitou
quando ela disse que era preciso ele voltar para cumprir sua missão. E um
longo e apaixonado beijo marcou a despedida do casal.
O vaixá sentiu um choque e, ao abrir os olhos, demorou a reconhecer
Jyotishi e Jay. Ambos estavam em concentração. Ainda sentindo o efeito do
elixir sagrado, sob o olhar de Jahnu, as figuras dos dois homens tremulavam
como a chama de uma vela. O mesmo ocorria com a floresta. O chão, coberto pelo
mato rasteiro, movimentava-se tal qual as ondas do mar. A lua estava
totalmente azul. Repentinamente, a atenção do poeta foi atraída para dentro
da floresta, envolvida pela escuridão total. Na clareira, as sombras das
árvores pareciam ter vida própria, aumentando e diminuindo de tamanho mesmo
sem os galhos e folhas serem conduzidos pelo vento. O filho de Sudhir Mahajan
tinha a impressão de estar cercado por centenas de espíritos curiosos – que
só não chegavam mais perto por causa do círculo de proteção que havia se
formado em torno dele e dos amigos. Ao olhar de novo, assustou-se por não
conseguir enxergar seus rostos. Era como se houvesse um borrão no lugar.
Intrigado, o poeta concentrou-se o máximo que pôde. Continuou sem ver nada,
até que como que sobreposta à face de Jay, viu a figura de um homem negro,
com vestes e pinturas tribais a sorrir larga e cordialmente. No caso de Vivek,
quem aparecia era um homem de olhos azuis, trajes europeus e ralos cabelos
brancos.
O vaixá voltou a atenção para o serviçal. Pela primeira vez desde que
retornara da Inglaterra, percebeu o ridículo da situação: ele - um miserável
- ter um servo. Na verdade, achou inconcebível qualquer homem servir a outro,
como se fosse uma propriedade. Foi quando lembrou-se de momentos felizes de
uma vida inteira passada ao lado do amigo e fiel companheiro. Jay, o sudra
que havia lhe salvado a vida quando foi expulso a socos e pontapés de sua
própria casa pelos ingleses e abandonado para morrer na estrada, sem ao menos
ser ouvido. Jahnu Mahajan então estremeceu. Como em um relâmpago e mesmo sem
ter estado presente fisicamente, a visão da expulsão do casal pelo seu pai lhe
veio à mente. Jay era a criança cujos pais optaram por deixá-la com outra
família para que não morresse de fome. Em seguida, seu coração foi invadido
por um terrível remorso quando percebeu que quase matara o pai do amigo.
Jahnu chorou de vergonha, pois a intuição lhe dizia que o companheiro também
recebera a mesmíssima revelação.
O choro despertou Jay e Vivek do transe. Devagar, o efeito da bebida ia
diminuindo, embora permanecesse intenso. Sem saber porque o mestre chorava,
o serviçal veio e envolveu-lhe com o que um dia tinha sido uma capa.
Sensibilizado pela atitude, o poeta abraçou-lhe demoradamente e depois
declarou: “Perante a luz augusta de Krishna, determino que, doravamente, não
mais serás meu servo e sim meu amigo e irmão”. Depois de proferir as palavras
que assustaram Jay, Jahnu olhou-o nos olhos e disse: “Meu irmão, tive a mesma
revelação que tivestes sobre teus pais. Humildemente eu peço perdão por todas
as ofensas que lhe causei nesta ou em outras vidas, tanto passadas como
futuras. Não tenho ouro nem prata, mas divido contigo aquilo que tenho de
mais valioso: o amor ao Nosso Divino Pai Eterno”. Jay não soube o que responder
e com lágrimas nos olhos limitou-se a dizer: “Gratidão, Jahnu Ji”.
Quietos e com o coração pulsando de amor fraternal, os irmãos ouviam o
barulho preguiçoso e melódico do rio. “Será que Jyotishi é um asceta?”, por
fim perguntou Jahnu. Ao virarem para procurar pelo xamã, ele havia sumido.
Sozinhos novamente, os moços sentiram fome e se alimentaram de uma diminuta
porção de arroz e bananas. Recostado à grande pedra, o vaixá olhava fixamente
o céu, pululando os olhos entre as estrelas, dando a impressão de que buscava
o asteroide em que estivera junto da alma gêmea. Seus olhos então se fecharam
e Jay não se atreveu a pertubá-lo de tão tranquilo sono – mesmo o irmão tendo
como leito a grande pedra.
17
Embora fino e intermitente, não era o zunido de um mosquito que
João Guilherme ouvia quando despertou. Também não era um som mecânico. De
todo modo, incomodava. Os olhos insistiam em não se abrir. Porém, desta vez,
ele conseguiu mover sutilmente o dedo mínimo da mão direita. Sentindo-se
exausto, mas com o coração tranquilo, não se assustou quando percebeu o colchão
se afundar no lado esquerdo. A presença que se manifestou, tocou-lhe a mão
esquerda com gentileza e disse: “João, amado irmão, estou aqui para pedir-lhe
que tenha bom ânimo. Tudo está correndo conforme acordado no astral superior.
Só mais um tempo e o véu da dúvida será descortinado”. O professor ouviu as
palavras de alento no plano físico, como se ouve quem está diante de nós em
uma conversa. A voz era de Eleanor. Ela ficou mais um tempo transmitindo
energias positivas pelo toque das mãos. Depois de despedir-se, partiu com a
mesma graça e leveza com que tinha chegado e o jornalista adormeceu novamente.
Sem sonhos, o sono foi profundo e restaurador. Horas depois acordou e,
novidade, conseguiu abrir os olhos por uma fração de segundos. Entretanto, o
corpo ainda continuava subjugado pela catalepsia. João tinha lido que nas
esferas mais sutis, a relação tempo/espaço desenvolve-se de forma totalmente
diferente do que acontece no plano físico. Por exemplo, às vezes adormecemos
às 22h e temos um sonho prolongado, mas quando despertamos e olhamos no
relógio, constatamos estupefatos que são apenas 22h05. Nessa perspectiva,
considerou que havia se passado por volta de uma semana desde que a projeção
astral começara, com seu pedido de luz. A bem da verdade, não era a falta de
referência temporal que incomodava João Guilherme e sim o fato de as projeções
não serem voluntárias, uma vez que ele não saía e retornava ao corpo por
vontade própria. Escarafunchando a mente, procurou recordar do conteúdo
teórico das oficinas de que tinha participado. Devia existir alguma coisa que
não estava sendo feita da maneira correta. Lembrou-se então da técnica mais
utilizada pelos praticantes do desdobramento astral: a elevação do estado
vibratório. O projetor visualiza uma esfera de luz branca sobre a cabeça e,
com a força do pensamento, vai deslizando-a devagar até a ponta dos pés. O
processo deve ser repetido aumentando-se a intensidade e velocidade da esfera
até que ela extrapole o corpo. A prática dura em torno de uma hora, que é
quando a pessoa começa a sentir o estado de balonamento, como se estivesse
flutuando e orbitando ao redor do próprio corpo. Esse é o momento mágico da
saída. Era aí que as coisas não davam certo para o poeta. Depois dessa quase
uma hora, ele acabava dormindo e acordava no outro dia com uma remota
lembrança dos lugares por onde seu psicossoma tinha estado. Somente o último
sonho da manhã permanecia-lhe claro na mente. Como de hábito, antes de iniciar
o exercício, João fez uma prece à sua mentora espiritual – que agora conhecia
melhor – para que o guiasse pelos caminhos nem sempre agradáveis do astral.
Com paciência de Jó, pôs-se a colocar em prática o que havia aprendido.
Esforçou-se para ter bons pensamentos e emanar amor no coração, pois era isso
que determinava qual seria o destino no astral. Cumprida essa etapa e o
posterior aumento do estado vibracional, imaginou-se desprendendo do corpo
primeiro pela ponta dos pés - como se estivesse sendo elevado - depois pelas
pernas, tronco e braços e por último pela cabeça. Finalmente havia dado certo.
O corpo astral de João Guilherme rodopiou no ar, como os astronautas fazem
na gravidade zero, e foi imediatamente alçado às alturas. Tudo foi tão rápido
que o poeta nem conseguiu ver de que ambiente saíra, se de sua casa mesmo ou
de algum outro lugar.
“Jão das Letras, quer dizer, João Guilherme. As minhas escusas, meu
querido irmão. É a força do hábito”, disse Zé Pelintra com o sorriso maroto de
sempre. O professor ficou feliz em rever o amigo de longa data. “E bota longa
data nisso”, pensou em meio a um sorriso, lembrando-se de Jay.
- Salve mestre Zé!
- Salve mestre Jão.
- Então...
“Não, não, não. Nem me pergunte nada que Eleanor deixou instruções
claríssimas para que eu não respondesse a nenhuma das tuas perguntas. Que
mania que jornalista tem de ficar perguntando sem parar, oras”, revelou Seu
Zé utilizando toda a irresistível canastrice. “Eu requisitei vossa ajuda junto
a mentora para que o amigo me auxiliasse em um trabalho. Topas?”, completou
o exu. João sorriu e assentiu com a cabeça. “Mas vamos ter de esperar um pouco
ainda. Enquanto isso, o compadre bem que podia cantar uma musiquinha pra
ajudar a passar o tempo”, sugeriu malandramente Zé Pelintra. João Guilherme
conhecia alguns pontos e chamadas, mas nenhum daquele orixá específico, então
cantou um hino de louvor a Iemanjá. Quando terminou, foi aplaudido pelo
companheiro que, com um sorriso, pedia por outra canção. Deixando a timidez
de lado, o poeta cantou mais uma, duas, três músicas de Dorival Caymmi. Novos
aplausos. “Para ficar perfeito, só está faltando dançar. Se solta homem, eu
sei que você sabe. Fui eu quem te ensinou. Sacode esse esqueleto”, provocou Seu
Zé. Baden Powell, Ney Matogrosso, Clara Nunes, Chico César e naturalmente,
Vinícius de Moraes. João cantava e dançava, girando e girando o corpo pelo
ar. De repente, passou a cantar músicas até então desconhecidas por ele, que
reconheceu como pontos de Umbanda. Zé Pelintra agora cantava junto. Os dois
amigos se divertiam feito meninos como nos velhos tempos da Lapa. Passado
mais algum tempo, fez-se um clarão, como de relâmpago, e a dupla foi parar em
um grande salão repleto de gente vestida de branco. As pessoas dançavam e
havia sons de atabaque no ar. A sala tinha o formato retangular e na parede
do lado oposto à porta, um altar enfeitado com muitas imagens e velas e um
senhor trajado igual a Seu Zé sentado em um banquinho posto em frente.
O professor precisou de um tempo para conseguir fazer a cabeça parar de
girar. Seu corpo respondia instintivamente ao ritmo da música. Enquanto
andava pelo salão, reparou o rosto de pessoas vestidas com roupas comuns
sentadas em bancos e cadeiras no fundo do terreiro. Uma moça em especial
chamou-lhe a atenção. Nem tanto pela beleza – estonteante - e sim pela
melancolia que se sobrepunha ao olhar atento e sensual. Ao contemplar a jovem,
João Guilherme sentiu na própria alma a dor que afligia o espírito daquela
filha de Deus. Dominada pela baixa auto-estima, ela prestava favores sexuais
em troca de dinheiro. O jornalista lembrou-se de mulheres com as quais já
tinha estado na mesma situação. Seu sentimento foi de compaixão e ao mesmo
tempo de tristeza por ter usado de expediente tão vil para satisfazer aos
desejos da carne, em detrimento do amor. Diante da fragilidade da praticamente
adolescente que tinha diante de si, João derramou uma lágrima por aquelas
que ao invés de oferecer uma palavra de carinho, ajudara a empurrar ainda
mais para o fundo do poço. A vontade foi de abraçá-la, de fazer acender uma
luz qualquer que fosse naquela alma atormentada. “Pois que assim seja”, o
professor ouviu soprarem-lhe no ouvido. Depois de cantar mais um ponto,
fechou os olhos. Quando abriu, estava sentado no banquinho em frente ao altar,
com as mãos repousadas na perna esquerda cruzada sobre a direita, como sempre
gostava de fazer. Ele não percebeu de pronto, mas seu psicossoma havia
substituído o do homem que ocupava o banquinho antes. Estendendo as mãos e
tocando o rosto, o jornalista examinou a nova casa, estranhando estar
habitando temporariamente outro corpo. Este era mais alto, esguio e bem mais
velho que o seu. Ao virar-se para trás, o poeta percebeu o titular em pé, com
a cabeça baixa em sono profundo. Ficava clara a situação de incorporação ou
aparelhamento, como alguns diziam. Com um pouco de dificuldade, João
levantou-se e caminhou até a moça que lhe despertara a atenção. Antes de
chegar onde ela estava sentada, saudou as pessoas presentes, que ficaram
espantadas ao ver o senhor já encurvado pela idade a caminhar com
desenvoltura e a espinha ereta. Quando chegou na jovem, sem dizer uma palavra,
tomou-a por uma das mãos e a conduziu até o meio do terreiro. Depois, pousando
respeitosamente as mãos sobre seus ombros, a cumprimentou com um sorriso. Em
seguida sentou-se de volta no banquinho e deu ordens para que trouxessem
outro para a moça e colocassem de frente ao seu. João levou um susto ao falar
e ouvir sair uma voz que não era a sua. Solicitação obedecida, o poeta pegou a
mão esquerda da senhorita e a envolveu com as suas.
“Minha filha, nosso Senhor Jesus Cristo me concedeu a graça de vir hoje
a esta casa”, disse sussurrando em seus ouvidos. “Quando cheguei notei a
tristeza e a amargura da tua alma. Ao te olhar melhor, eu soube o porquê”,
acrescentou. Ele fez uma pausa e a garota começou a chorar. “Minha menina, o
amor de Deus é remédio para todos os males da matéria. Não se permita ser
menor do que aquilo que Divino Pai Eterno tem reservado para ti. Reconheça-
se como uma mulher capaz, que tem forças para vencer todas as agruras da vida
e dar a volta por cima. Não estou aqui para julgar se o que você faz é certo
ou errado. Isso não cabe a mim. Estou lhe falando estas coisas porque está
perfeitamente claro que essa situação também não lhe agrada, não é mesmo?”,
questionou com a ternura de um pai. Segurando o choro, a garota disse um sim
quase inaudível.
“Pois então, doce criança, Deus está sempre à disposição para ajudar os
filhos que lhe procuram com sinceridade. Você é jovem, inteligente e forte.
Volte a estudar, procure um trabalho pelo qual as pessoas te respeitem. Pense
no teu futuro, pense no teu filhinho. Sempre é hora de recomeçar”, aconselhou,
enxugando com os dedos as lágrimas da jovem. “Eu preciso fazer alguma oferenda
pro senhor?”, quis saber ela. O professor achou a pergunta esquisita, mas
respondeu calmamente: “Não, minha filha. A minha maior recompensa será saber
que você reencontrou, sob o manto misericordioso da Nossa Virgem Maria
Santíssima, a alegria de viver. Nos momentos mais difíceis, erga sua voz à Ela.
Pois Ela é mulher e todas as mulheres têm a Sua pureza e santidade”. João
Guilherme levantou-se e beijando as mãos da moça com carinho e com afeto, a
despediu. Foi quando percebeu que ele, ou melhor, o senhor que usava como
aparelho, era o centro das atenções e uma pequena fila de pessoas também
buscando uma palavra de conforto tinha se formado. Virou-se para Seu Zé
Pelintra como que a pedir orientação. O olhar da entidade foi categórico: era
preciso levar conforto a todos os necessitados. Ciente da seriedade do momento,
João Guilherme recebeu cada um daqueles irmãos e irmãs. O último a ser
atendido era um senhor franzino e de aspecto triste. O homem tinha a cabeça
baixa e quando o professor tentou tocar-lhe a mão, este a retraiu, para logo
em seguida, constrangido, estendê-la de novo. O fato desagradável ainda
repetiu-se mais duas vezes, até que João notasse o que acontecia. Havia um
espírito desencarnado por trás do senhor a comandar-lhe os movimentos, assim
como o titereiro faz com o fantoche. O jornalista levantou-se e abraçando de
lado o homem atormentado, tentou ser o mais discreto possível para não
constrangê-lo ante os olhares curiosos. Falando tão baixo quanto podia,
questionou em tom educado, porém incisivo: “Quem sois vós que estais a obsediar
este pobre irmão, roubando-lhe a paz de espírito?” Não houve resposta. O poeta
preparava-se para repetir a arguição quando o corpo do homem estremeceu e
seu olhar foi de despeito como quando se é obrigado a falar a contragosto. “Eu
sou alguém que este infeliz tirou a vida e não vou descansar enquanto não
acabar com ele. Ele vai sofrer tudo que eu sofri também”, respondeu o espírito.
O tom de voz fez com que João Guilherme se lembrasse do sargento Savério, que
tinha lhe feito a mesma jura de vingança. Ainda que o abraço do poeta fosse
brando, o senhor tentava se desvencilhar e não conseguia, como se subjugado
por uma força superior.
“Meu irmão, quanto maior o ódio, pior será a tua existência fora da
matéria. É certo que este homem tirou-lhe a vida, mas ele assim o fez para
proteger a família. Não é certo que você tentou matar-lhe ao assaltar a sua
casa?”, argumentou o professor. “E quem é você pra me julgar? Você por acaso
sabe alguma coisa da vida desgraçada que levei?”, gritou de volta. Mesmo diante
do tom elevado, João continuou a falar baixo para que só o espírito ouvisse.
“Não, não sei. Mas nada justifica tirar a vida de um irmão, pois ela é um
presente de Deus e só Ele a pode tirar. Por isso eu te digo: busque a luz do
Nosso Senhor Jesus Cristo. É preciso evoluir. Seguir em frente. O amor e o
perdão são as forças mais poderosas do Universo”, disse repetindo o que ouvira
da boca do Rei Ogum. Aquelas palavras tocaram profundamente o espírito que,
após hesitar, suplicou: “E o que devo fazer pra me livrar dessa revolta?”
“Clame pela luz de Jesus Cristo. É essa luz que vai lhe dar a força para
perdoar este irmão. Ele já sofreu demais também. Agora é hora de andar para
a frente. Vamos deixar o passado em seu devido lugar: lá trás!”, afirmou. Tão
logo o poeta terminou de falar, o corpo do homem tombou inerte em seus braços.
Depois de constatar que ele apenas dormia, recomendou aos dirigentes da casa
que lhe assistissem.
Tarefa cumprida, o professor procurou por Zé Pelintra. Quando o
encontrou, quis saber, pelo olhar, como i para sair do corpo do velho. “Olhe
pra cima e pense em Deus”, esclareceu o exu. Acatando a orientação, o jornalista
estava suspenso novamente no ar. Antes de sair definitivamente do Centro,
olhou uma última vez para a moça – agora recomposta - e viu uma luz violeta
a piscar no compasso de seu coração. João sentiu-se em paz e agradeceu a Jesus.
“E então, Zé? Como me saí?”, perguntou colocando a mão esquerda no ombro do
amigo. “Bem, tirando o fato de você ter quebrado quase todos os protocolos da
Umbanda, até que não foi tão ruim”, respondeu o Exu malandro zombeteiramente.
João Guilherme achou graça e brincou: “Deve ser porque Umbanda é coisa de
Preto Velho e eu ainda sou um preto novo”. Percebendo a piada grosseira,
fechou os olhos e desculpou-se com as entidades que trabalhavam naquela casa.
Depois, deu um longo abraço no irmão espiritual Zé Pelintra e ganhou as
alturas novamente.
18
“Shhh!” - ouviu João Guilherme, como se alguém lhe orientasse a continuar
dormindo quando despertou. Não era um pedido difícil de atender, posto que
não conseguia abrir os olhos e nem se mover. Na verdade, achou até cômico o
paradoxo de estar com a mente a trabalhar intensamente enquanto o corpo
permanecia imóvel. E voltou a pensar na estrada percorrida desde que abraçou
o Daime. Agora era um ser espiritual bem mais ciente do papel na Terra. O
estilo de vida, exótico para muitos, refletia a sinceridade na busca pela
evolução. Mais do que nunca sabia que era uma alma vivendo uma experiência
humana e não o contrário. Embora desejasse, compreendeu que sua função não
era doutrinar ninguém e sim emanar uma luz que pudesse inspirar outras
pessoas a buscarem, também, a Consciência que lhes mostraria as maravilhas
reservadas a todos no coração do Pai Eterno. Decidiu que continuaria a
desempenhar a missão sem fanatismo, dogmas ou sectarismo. Ele usaria os
talentos de forma criativa e até mesmo divertida para levar a poesia contida
no pó das estrelas e que havia descoberto dentro de si para o maior número
possível de pessoas. Pensando assim, lembrou-se de dezenas de irmãos
espirituais que faziam o mesmo trabalho, algumas até sem o saber. Que
formidável reconhecer-se com um homem a quem fora confiado um labor tão
digno. Assim, agradeceu humildemente pela luz de todas as pessoas que passaram
por sua vida e confortado por tão doce sentimento, adormeceu.
O primeiro beija-flor chegou quando Jahnu ainda dormia. O segundo logo
depois que abriu os olhos. O terceiro veio tão perto que, por pouco, não foi
parar em sua mão. Os três pequeninos passarinhos, perdoada a redundância,
voaram por um tempo ao redor do jovem poeta e depois, como crianças traquinas
que acabaram de fazer arte, foram se esconder dentro da floresta. “Como nunca
notei a incomparável beleza de um nascer do sol?”, pensou ao ser tocado pelo
brilho da estrela matutina. O vento fez balançar-lhe a vasta e desgrenhada
cabeleira. O moço espreguiçou-se e foi até a beira do rio. De cócoras, diante
da água calma e cristalina, sentiu-se um narciso às avessas. Não era pelo seu
belo rosto que estava apaixonado e sim pelo que havia acima e além dele: a
alma imortal. Jay ainda dormia e Jahnu, pela primeira vez na vida, dentro
das limitações das circunstâncias, preparou um café da manhã para si e para
o irmão. Quando este acordou, encontrou mangas, bananas e metade de uma jaca.
Jahnu Mahajan banhava-se no rio, com o pudor de manter-se submerso até a
altura do peito. Assim que terminou o banho, vestiu-se com a única roupa à
disposição e foi ter com o amigo. Havia assuntos urgentes a serem tratados.
- Jay Ji, amado irmão, nossa Mãe Índia não pode continuar a ser usurpada
pelos ladrões britânicos. Precisamos montar um exército para expulsá-los.
- Mas o que podemos fazer, Jahnu Ji? Eles têm armas e são muitos.
- Nós podemos estar desarmados, mas somos em número bem maior e
conhecemos estas terras melhor do que eles. E armas podem ser fabricadas – ou
roubadas. Eu vi em sonho o grande exército que libertará nosso povo. Nós
fazíamos parte dele.
- E por onde vamos começar?
- As pessoas não me conhecem e provavelmente não me darão ouvidos. Mas
com certeza ouvirão a Vivek.
Com a menção do nome de seu pai, Jay compreendeu o que o poeta estava a
lhe pedir. “Vivek se lembra de Jahnu e de Sudhir, mas não deu sinais de que
se lembra de mim também”, argumentou o sudra. “É por isso mesmo que devemos
procurá-lo. Ele não sabe que é teu pai”, rebateu o vaixá. A caminhada de volta
à vila foi longa e o sol castigou impiedosamente os jovens. Quando chegaram,
a pele queimada estava coberta de poeira. Ainda assim, foram reconhecidos de
imediato pelas crianças que brincavam na rua. Elas começaram a gritar no
intuito de chamar a atenção dos adultos. À algazarra dos pequeninos, somava-
se agora a das mulheres. Resolutos, Jahnu e Jay pararam na porta da casa de
Vivek. Desta vez, quem os atendeu foi Lalita, a filha mais velha. Mesmo em
trajes simples, a beleza da moça impressionava. Os olhos castanhos eram grandes
e amendoados; o rosto desenhava quase que o formato de um triângulo de ponta-
cabeça; as sobrancelhas eram grossas, cabelos escorridos e longos e um decote
generoso insinuava seios fartos. Seu olhar foi firme e tinha um quê de sedução.
Jahnu ficou desconcertado. Jay percebeu e adiantou-se: “Namaskar!
Humildemente pedimos para ser recebidos por Vivek Ji”. Sem olhar para aquele
que não sabia ser seu irmão, Lalita entrou na choupana e chamou pelo pai. Os
moços ficaram do lado de fora sob o olhar atento e desconfiado de quatro
adolescentes, que agora livres da penumbra da outra noite, não deixaram de
notar sua semelhança com Jay.
“Meu pai vai recebê-los”, disse a jovem olhando para Jahnu, assim que
voltou. As visitas entraram na casinha de dois cômodos e encontraram Vivek
sentado no primeiro. Ele não pareceu surpreso. Na verdade, demonstrava
esperar pelos rapazes. Depois das saudações de praxe, o poeta tomou a palavra:
“Vivek Ji, eu estou aqui para, com humildade e respeito, pedir perdão pelas
ofensas cometidas. Elas foram fruto de uma mente turvada pela ignorância e
pelo preconceito. Nós somos todos irmãos, filhos do Grande Pai Krishna e o Seu
Santo desejo é que vivamos em harmonia”. Ainda que impregnadas por um excesso
de formalismo, as palavras do vaixá soaram sinceras ao ancião. “Eu aceito o
pedido de perdão, Jahnu Ji. E também peço perdão pela forma como o tratei,
pois não tens culpa pelas atitudes de vosso pai”, replicou com amabilidade.
– Há um outro assunto de suprema importância que desejo lhe falar, se
me permite.
- Sinta-se à vontade.
- Como filhos queridos desta terra sagrada, temos o dever moral de
protegê-la. Os ingleses não podem vir e saquear as nossas riquezas. Precisamos
reagir.
- E como pretendeis fazer isso?
- Formando um exército.
- Estou velho demais para pegar em armas.
- Vivek Ji é um grande líder, respeitado por todos. Os homens obedecerão
vossa convocação. Da luta cuidamos eu e meu irmão Jay.
O velho olhou para o sudra e este teve certeza de que, ao contrário do
que imaginara, seu pai sabia sim quem ele era. Ademais, a semelhança física
era impressionante. “O ímpeto natural da juventude lhes impede ver as coisas
da maneira correta. É certo que estamos sendo humilhados dentro do nosso
próprio lar por um inimigo impetuoso e ganancioso, mas tudo que acontece aqui
na Terra tem um propósito maior. Até mesmo isso. Meus filhos, nós nos afastamos
da luz divina por causa do pecado e agora os deuses nos punem. Os ingleses
sairão do nosso país da mesma forma que entraram. Não será preciso um exército
armado para expulsá-los. As armas que irão derrotá-los são a paciência, a
mansidão e o amor. Olho por olho e logo estaremos todos cegos”, discursou.
Ainda que muitíssimo transtornado pelo que considerou conformismo de Vivek,
desta vez Jahnu não começaria nenhuma confusão. Ele apenas levantou-se,
saudou o anfitrião e pediu licença para sair. Do lado de fora, olhou para a
pequena multidão que se formara e pensou: “Eu mesmo vou arregimentar um
exército. Se Vivek é um covarde, eu não sou”. Jay não saiu imediatamente. A
sós com o pai, a vontade era de abraçá-lo e pedir-lhe a bênção, mas o velho
mantinha a distância de forma contundente, embora o brilho de seus olhos
demonstrasse que gostaria de fazer o mesmo. No fundo, ele sentia-se
envergonhado por ter abandonado o filho. Quando o jovem se preparava para
sair, Lavanya, a mãe que nunca conhecera, entrou no aposento. Ela chorava
quando abraçou fortemente Jay e lhe cobriu o rosto de beijos chamando-o de
filho sem parar. O pai não resistiu e também o abraçou. Depois pediu-lhe
perdão e o abençoou. Madhu, Nalini, Sahana, Udaya e Lalita também vieram
abraçar o irmão.
De volta à velha choupana de Jay, a única coisa em que Jahnu conseguia
pensar era em como convencer os homens da cidadela a segui-lo em seu intento.
Oferecer dinheiro não podia, pois também não tinha. Quem sabe pudesse pagá-
los depois de reaver as terras? Ou talvez se revelasse o sonho que tivera
sobre o exército? Nenhuma das alternativas pareceu plausível. Enquanto
matutava sobre o assunto, esperava Jay voltar com a lenha para acender o
fogo, pois tinham ficado sem nenhuma quando abandonaram o lugar e fora uma
sorte encontrá-lo ainda vazio.
O vaixá estava nos fundos da choupana quando ouviu barulhos de alguém
entrando. Contente pela volta do irmão, apressou-se em ir ajudá-lo com a
lenha, pois o almoço naquele dia seria por sua conta. O barulho continuou no
segundo cômodo e parou. Tal atitude não era usual de Jay, sempre tão disposto
ao trabalho. Quando foi conferir o que acontecera, Jahnu Mahajan constatou
que não se tratava do sudra, e sim de sua irmã Lalita. O moço conteve qualquer
palavra - não por timidez - mas por não ter ideia do que dizer diante do olhar
ardente de desejo da jovem. Mas se ele não sabia o que fazer, ela parecia saber
muito bem. Aproximando-se, atirou-se em seus braços e, enquanto tentava
beijar-lhe a boca segurando-lhe a nuca com a mão esquerda, tocou-lhe a
virilidade com a direita. Jahnu teve a reação natural de qualquer rapaz na
flor da idade. Com o corpo pegando fogo e prestes a ceder às carícias atrevidas,
o poeta repeliu-a com veemência. A atitude, incompreensível para Lalita, era
porque, para o poeta, tratava-se da irmã do amigo de infância e isso seria um
desrespeito sem tamanho. Segundo, porque lembrou-se da mulher que encontrou
no plano astral depois de ter tomado a bebida sagrada. “Não tenha medo.
Ninguém sabe que estou aqui”, argumentou a senhorita. “Você não entende”,
redarguiu Jahnu. “Não entendo o quê? Que sou uma sudra e você um vaixá? É
isso? Eu não sou digna de tua casta?”, explodiu em revolta. Antes que o moço
pudesse dizer algo, sofreu nova investida. Desta vez, Lalita tinha se
desvencilhado das roupas. “Por favor, não faça isso. Eu não posso. Eu não
quero”, enfatizou o vaixá. “Eu te amo, Jahnu. Eu te amei desde o primeiro
momento em que ouvi a tua voz”, confessou entre lágrimas. Sem olhar para ela,
Jahnu Mahajan limitou-se a dizer “sinto muito”. A sudra vestiu as roupas e
com uma forte convicção no olhar disse: “Você só está confuso. Mas não faz mal,
eu sei esperar. Com o passar do tempo, você vai ver que sou a mulher certa
para ser a mãe de seus filhos”. Assim que passou pela pequena porta de entrada,
defrontou-se com o irmão. Diante da situação embaraçosa, inventou uma
desculpa: “Meu pai mandou convidar você e Jahnu Ji para tomar chai esta
noite”. Dito isto, voltou com pressa para casa. Ao olhar para o amigo, Jay
desconfiou de que algo estava errado, mas ficou calado. Constrangido, o amigo
tomou a lenha de seus braços e tratou de acender o fogo. Feita a refeição, ou
algo parecido com uma, o poeta teve a ideia de voltar à beira do rio onde tinha
passado a noite para meditar. Desta vez sozinho. Ao chegar no local, horas
depois, lembrou-se de que não trouxera a moringa com o resto do elixir
preparado por Jyotishi. Mas isso não tinha importância. Ele só queria ficar
em paz. E foi com enorme contentamento que Jahnu viu que a grande pedra em
que tinha dormido estava totalmente coberta pela sombra de um imenso
carvalho. Posição de lótus. Silêncio. Concentração. Meditação.
A beberagem parecia estar fazendo efeito novamente. O uivo do vento a
vagar no meio das árvores, a voz constante e melódica da correnteza do rio e
a passarada em algazarra lentamente foram deixando o vaixá em transe e ele
viu-se mais uma vez em sonho armado como soldado na antevéspera da batalha.
O general do batalhão insistia em ficar em sua biga em cima do monte. Porém,
desta vez, Jahnu conseguiu enxergar seu rosto. Era um homem belo. O imenso
bigode conferia-lhe um ar de autoridade e intrepidez. Prestando um pouco mais
de atenção, o poeta percebeu que havia uma segunda pessoa no veículo de guerra,
muito embora não conseguisse distinguir-lhe a figura. Do outro lado do monte,
Jahnu viu centenas de homens com fardas azuis. A prova era inequívoca. Um
poderoso exército expulsaria os invasores. A visão durou poucos segundos.
Depois dela, o vaixá não viu mais nada e entrou em um estado de relaxamento
profundo. O sol tocava o horizonte no triste itinerário de todo dia, quando o
poeta abriu os olhos. Imóvel e em silêncio, foi capaz de notar o vai e vem da
respiração. Ele sentia que havia um segundo corpo dentro do seu. Não físico,
palpável, e sim menos denso e disforme. Envolvido pela graça do momento,
entoou – em sânscrito - o Gayatri mantra – a oração universal ensinada por
Krishna.
Sua voz era melodiosa, resultado das aulas de teatro e canto tomadas em
Londres. Quando chegou ao fim da décima quinta repetição, sentiu que era
observado. Novamente julgou ser Jay. Novamente estava errado. Seu coração
vibrou de contentamento quando, ao virar-se, viu a amada. A mulher de beleza
divina de quem beijara a boca durante a projeção astral. O poeta sorriu e seu
sorriso combinava alegria desmedida de menino com a paixão sem limites de um
homem. Ela também sorriu. O sorriso era de recato. Ele fechou os olhos na
esperança de elevar-se novamente com ela. E assim ficou esperando por
instantes. Porém, nada aconteceu. Aflito, abriu os olhos a musa havia partido.
O reencontro não tinha sido como Jahnu queria, mas mesmo assim ele não se
cabia de felicidade e o coração foi tomado pela poesia. Ele tinha que voltar
logo para casa. Era preciso escrever.
Quando chegou à choupana, já de noite, ignorou a pressa de Jay em ir à
casa dos pais para tomar chai, em convite comunicado por Lalita. “Meu amado
irmão, vá sozinho e apresente minhas escusas à tua família. Eu tenho de ficar”.
A reação do sudra foi de decepção e por isso Jahnu resolveu contar o encontro
astral quando foi engolido por Krishna e acabou conhecendo a alma gêmea. Jay
ouviu o relato atento e maravilhado. Quando o amigo terminou de falar,
perguntou: “E como ela se chama?” Dando-se conta de que tinha deixado escapar
detalhe tão importante, Jahnu Mahajan socou a própria cabeça como a dizer:
“Estúpido!” Assim que o amigo saiu, o poeta ficou decepcionado porque não tinha
nem onde nem como escrever o poema. Porém não se deu por vencido e usou a
capa de Jay como papel e um pedaço de carvão que sobrara da fogueira como
lápis.
“Ó doce amada
que meus versos tenham o dom de despertar em ti
as lembranças de outras vidas
quando nossas almas eram uma só
e vagavam em harmonia pelos confins do Universo
Que a noite,
abençoada pela luz da lua
e pelo brilho dos astros,
seja o manto a nos aquecer
neste inverno que não tardará a passar
para dar lugar à mais linda das primaveras
E o nosso lar será a pétala da rosa pequenina
as águas das cachoeiras
as asas do beija-flor
o ventre da Mãe Terra
e a vastidão das estrelas”
Assim que terminou de escrever, dobrou o pano e guardou dentro de um
alforge. Ainda que estivesse sem sono, o desejo era dormir logo para sonhar
com a amada e perguntar-lhe o nome. Como Jay não voltava do chá na casa da
família, resolveu ir até lá. Quando chegou, encontrou o lugar em festa.
Flautas, pandeiros e cítaras marcavam o ritmo dos mantras entoados em louvor
a Krishna, Shiva e Ganesha. “Jahnu Ji, venha dançar conosco”, convidou o amigo
e irmão. “E por que não?”, considerou o poeta. E assim cantou e dançou como há
muito não fazia. A alegria era tanta que podia passar a noite toda naquela
confraternização. Apenas o olhar insistente de Lalita o incomodava. Quando o
brilho da lua atingiu seu ápice, Vivek deu ordens para a música parar e puxou
em voz alta: “Ó vós, infinita e sagrada Presença Divina, altíssima fonte de
toda vida! Abençoado seja o vosso sagrado nome! Nós nos prosternamos aos vossos
pés; nós vos rendemos ação de graças; nós vos glorificamos por vossa majestosa
presença no Universo: porque vós sois Eu Sou o Eu Sou”. Após breve pausa, a
pequena multidão continuou em uníssono a oração de Krishna. Quando o “assim
seja” foi pronunciado, ninguém disse mais nada e todos se retiraram
silenciosamente com o coração em júbilo.
De volta à salinha apertada da choupana, Jahnu Mahajan confidenciou ao
amigo que tinha escrito um poema que entregaria à amada quando finalmente a
reencontrasse. Ao deitar-se, recebeu o tão aguardado sono de braços abertos. O
breu que reinava no ambiente impediu que o poeta enxergasse o que quer que
fosse quando abriu os olhos no sonho. Ele sentiu falta do brilho da lua e com
estranheza percebeu que estava em pé. O ponto de luz que se insinuava à meia
distância era diminuto. Intuitivamente, decidiu caminhar até ele. Não deu nem
dois passos e sentiu como que caindo em um abismo. “Luz!” o grito saiu
automaticamente, sem querer. E todo o ambiente clareou. Melhor teria sido
ficar no escuro. Centenas de corpos estraçalhados jaziam no chão. O odor azedo
de sangue dominava o ar. Em pé, no meio de uma multidão de cadáveres, estava
Jahnu empunhando uma espada coberta de sangue. Cerca de vinte metros à
frente, havia um inimigo de farda vermelha montado em um cavalo branco e
também armado de espada. Golpeado pelas esporas do cavaleiro, o corcel empinou
e relinchou como uma besta fera, partindo enlouquecido na direção do vaixá.
A fúria do golpe do poeta fez com que o oponente despencasse da montaria.
Agora no mesmo plano, a contenda seria mais justa. O ódio no olhar dos dois
homens atestava que aquela era uma batalha particular, que suplantava a luta
pela independência da Índia. O guerreiro indiano urrou como um louco quando
finalmente sua espada atravessou o peito do soldado inglês. Ao examinar
melhor, viu que se tratava de um oficial e sorriu de satisfação.
O sorriso continuou estampado no rosto quando Jahnu acordou. Ao seu
lado, o irmão dormia o sono dos justos. Feliz, ainda que ofegante, saiu da casa
pela porta dos fundos e foi olhar as estrelas. Assim ficou até todas elas
sumirem com a chegada do sol. “Jay Ji, sonhei de novo. Desta vez foi diferente.
A vitória é nossa, querido irmão”, relatou esfuziante, detalhando o sonho,
quando o amigo veio ter com ele. “Se os homens desta vila não querem lutar,
com certeza não será difícil achar quem queira em outro lugar”, completou.
“Jahnu Ji, eu nunca lhe disse não. Mas agora é diferente. Eu reencontrei
minha família e vou ficar com ela”, disse timidamente o sudra. O poeta olhou
qualquer coisa desapontado para o amigo, todavia compreendeu a situação. “Pois
bem, então irei sozinho”, pensou. Com a mão sobre o ombro do irmão quis saber:
“E como vocês farão para sobreviver em meio a esta miséria?” “Eu e Lalita
vamos trabalhar para os ingleses que estão ocupando a casa do teu pai”, revelou
Jay.
- O quê? Você enlouqueceu, homem?
- Não, eu não enlouqueci. Mas há tempo para tudo debaixo da Terra. Tempo
de lutar e tempo de esperar. Este é o momento de esperar.
- Mas logo lá?
- O que se comenta é que eles estão contratando e eu não tenho escolha.
A fazenda não é tão longe e posso vir cuidar da minha família nos dias de
folga.
Jahnu Mahajan não tinha palavras diante do que acabara de ouvir e antes
que contra-argumentasse, o irmão soltou de supetão: “Por que você não vem
comigo?” “Isso só pode ser brincadeira, Jay. Como posso ser um mero
empregadinho na casa onde fui criado como um príncipe?”, vociferou. A proposta
tinha soado tão insana que o poeta nem percebeu a agressividade do destempero
verbal. O clima ficou pesado entre os dois e o vaixá decidiu partir
imediatamente. Foi só o tempo de recolher os poucos pertences e colocar o pé
na estrada. Na rua, consultou alguns homens sobre a localização da vila mais
próxima e partiu sem olhar para trás, desprezando totalmente os apelos de
Lalita para que ficasse. Ao deparar-se com o irmão mais velho, a jovem olhou-
o com ódio.
O poeta tinha andado muitos quilômetros quando a noite chegou. Exausto,
com fome e sedento, resolveu parar e pernoitar debaixo de um grande carvalho.
Uma pequena fonte próxima resolveu o problema da sede. O da fome ficou sem
solução. Nem a moringa com a bebida preparada por Jyotish ele se lembrara de
trazer, tamanho o desgosto com Jay. Sem habilidade para acender uma fogueira,
encolheu-se junto à árvore e se esforçou para dormir, na esperança de ter
alguma revelação. O sono começou agitado. Imagens confusas se alternavam em
sua mente como a luz do vagalume que se acende e apaga. Quando as visões
cessaram, o primeiro golpe foi nas costas, o segundo na cabeça e o terceiro nas
pernas. Sem saber por quem e por quê, Jahnu estava sendo espancado. Pensando
estar novamente na batalha, levantou-se bradando “morram, ingleses malditos”.
Obra do acaso, foi justamente esse rompante que lhe salvou a vida. “Basta!”,
ordenou uma voz de homem. Em seguida, foi acesa uma tocha e colocada próxima
ao rosto do vaixá. “Ah... é apenas um sudra! Essa raça de covardes. Só são
valentes quando estão dormindo”, continuou a voz desconhecida. Somente ao
levantar-se é que o poeta percebeu que não estava sonhando. Era o segundo
espancamento em poucos dias e isso ele não iria aceitar. Muito menos ser
chamado de sudra e de covarde. Com a fúria de um tigre, pulou em cima do
primeiro agressor que viu e o esmurrou. O segundo foi jogado para longe como
um pedaço de pano. O terceiro veio em sua direção com um punhal na mão, mas
foi impedido com veemência por aquele que parecia ser o líder do bando. “Parem!
Este sudra é diferente. É forte e sabe lutar. É de homens assim que estamos
precisando”, disse com voz de comando.
- Estamos formando um exército para expulsar os invasores ingleses. Você
tem coragem de lutar para libertar seu país, sudra?
- Eu não sou um sudra! Sou um vaixá. Meu nome é Jahnu Mahajan, filho
de Sudhir Mahajan. Estou nesta condição porque as terras de meu pai foram
usurpadas pelos ladrões britânicos.
- E onde ficam essas terras?
- A cerca de um dia de caminhada daqui rumo ao norte.
Os homens - cinco ao todo - se entreolharam e ficaram muito felizes com
o que tinham acabado de ouvir. “Eu me chamo Samarjit e estes são Dhiren,
Chaya, Bhadrak e Amish. Você deve estar com fome, não é mesmo?”, disse o líder.
Pouco depois, com a fogueira acesa, comeram pães e frutas. Todos alimentados,
Samarjit - o chefe - quis saber mais detalhes do infortúnio de Jahnu. História
contada, o cabeça do bando propôs: “Meu irmão, as terras de teu pai ficam
justamente entre nosso acampamento e a fortaleza que os ingleses estão
construindo. Se eles conseguirem terminá-la, nossa vitória será impossível.
Por ironia do destino, o comandante deles está instalado justamente na tua
antiga casa. Precisamos saber quantos são e que armas têm. E é aí que você
entra”.
- Eu? Como?
- Ora, pelo que contou, você morou lá quase que a vida inteira e
obviamente conhece o lugar como a palma da mão. Deve saber muito bem entrar
e sair sem ser visto.
O espírito de Jahnu regozijou-se diante da iminente chance de vingança.
“Pois bem, podem contar comigo”, exclamou. O dia ainda não tinha nascido quando
o poeta tomou o caminho de volta e para não passar novamente no vilarejo de
Vivek, teve de dar uma grande volta.
19
Como quando se está lendo um livro com voracidade e se é obrigado a
parar, João Guilherme percebeu que despertara e estava de volta da projeção
astral. As lembranças de cada momento dos desdobramentos estavam tão vivas
na mente, que ele nem se importou com o fato de ainda não ter recobrado a
memória recente do plano físico. Como o repórter que se organiza para escrever
uma grande matéria, começou a fazer um apanhado de tudo que tinha visto de
duas de suas encarnações anteriores. Um detalhe em particular o deixou
sobremaneira incomodado: quando Jahnu encontrou-se com Amparo pela primeira
vez no astral, ela disse que estava o esperando há muito tempo. Mas como? Pelo
que pôde entender, eles – Jahnu e Amparo - ainda não se conheciam, tanto que
ele não soube o nome dela. Isso só podia significar que Amparo estava
desencarnada à espera do amado que, por sua vez, estava no plano físico. Ou
seja, eles se conheceram em uma existência anterior àquela e só ficariam juntos
depois da morte de Jahnu Mahajan. Por algum motivo ainda desconhecido, os
dois reencarnaram no Rio de Janeiro – ele como João Maria e ela como Amparo
- e viveram um tórrido caso de amor que terminou em tragédia. Analisando
tudo isso, João Guilherme sentiu compaixão por Jahnu, só para, em seguida,
dar-se conta de que ele e o indiano eram a mesma alma. O vacilo o fez achar
graça de si mesmo. Contudo, o riso logo foi embora, pois se ele, enquanto João
Guilherme Ribeiro, também não conhecia ninguém com o perfil de Amparo (ela
sempre tinha a mesma aparência e ele não), isso significava que só a conheceria
depois que morresse ou nesta mesma encarnação? E por que ele tinha
reencarnado em Cuiabá e não novamente no Rio? Aflito, clamou em prece pelo
auxílio de Eleanor. Para sua decepção, desta vez ela não veio. Cego, surdo,
mudo e imobilizado pela catalepsia, não lhe restava alternativa senão fazer
aquilo em que tinha se tornado um especialista: esperar.
O tempo passava e o sono não vinha. O poeta estava cansado de saber que
a projeção só acontece em estado de relaxamento total. Mas como relaxar diante
daquela situação de angústia? Lembrou-se então que aprendera em um livro
uma técnica para esvaziar a mente e conectar-se à Consciência. Era simples:
bastava ficar em silêncio e observar a respiração. O truque, se é que se pode
chamar assim, residia no fato de que por ser disforme, ao prestarmos atenção
nela, calamos nossos pensamentos e nos ligamos ao presente, passando a sentir
o chamado corpo interior – o espaço vazio entre as moléculas de nosso corpo
físico. A essência divina. Teoria revisada, João tratou de colocá-la em prática.
Não demorou muito para adormecer. Na verdade, sua conexão com a Consciência
estava tão alta, que pôde perceber os olhos se fechando como que em câmera
lenta.
Quando recobrou a visão, de volta ao plano astral, o jornalista estava
parado em frente à uma porta fechada. Para trás de si havia somente escuridão.
Logo, a única coisa a fazer era seguir adiante. Ele tentou atravessá-la e não
conseguiu. “Então vamos da maneira tradicional”, pensou. Girou a maçaneta,
abriu a porta e entrou. Do outro lado havia um homem sentado e de cabeça
baixa. “Olá, irmão!”, cumprimentou inseguro. “Olá, João Guilherme! Então
finalmente estamos frente a frente”, respondeu o espírito. Por um instante o
professor julgou que era o sargento Savério, mais uma vez buscando vingança.
Julgou errado. Quando o homem levantou a cabeça, João tinha diante de si uma
figura horripilante. “Quem é você?”, tomando coragem, perguntou. “Como quem
sou eu?”, disse a entidade friamente. O poeta olhou de novo. Mesmo naquela
cara carcomida por manchas asquerosas, era impossível não notar o formato da
boca, do queixo e do nariz. E o olhar era inconfundível. João Guilherme tinha
encontrado a si mesmo. “Não precisa dizer nada. Eu sei o que está pensando.
Aliás, eu conheço cada um de seus pensamentos. Quer saber o porquê desta forma
decadente, não é? Pois digamos tratar-se do reencontro entre criador e
criatura. Isso mesmo, mestre. Eu sou o resultado de cada boa ou má ação, cada
bom ou mau pensamento teus em todas as encarnações já vividas. Fique sabendo
que esta aberração aqui lhe fez companhia a vida inteira e você não a via.
Mas fique feliz por ver-me agora. Se minha aparência lhe causa asco é porque
não me vistes em outros tempos. Antes, uma sabedoria intrínseca era o teu guia
e cada passo bem sucedido na evolução espiritual me diminuía
proporcionalmente a feiura e cada má ação piorava ainda mais a minha forma.
E assim será até o dia da tua morte, só que com uma pequena diferença. Antes
você não me enxergava e agora não vai conseguir deixar de me ver. Eu serei o
reflexo vivo e presente de todos os teus atos. E tua missão será transformar-
me em um ser de perfeita luz. Quando isso acontecer - se acontecer - então nos
tornaremos um e o medo da morte não mais existirá”, palestrou. O professor
permaneceu em silêncio até que o espírito continuou: “Vês esta porta atrás de
mim?” “Sim”, respondeu João. “Pois bem, não ouses percorrer a estrada que há
por trás dela se não estiveres disposto a honrar o mais sagrado dos
compromissos, pois terás nas mãos o poder de interromper o ciclo
reencarnatório de tua alma. Mas lembre-se: enquanto não tiveres me
transformado em um ser de luz, por meio de boas ações e expiando no mundo
Terra os pecados, terás de voltar à matéria, sempre em um novo corpo. Se fores
bem sucedido nesta missão, eu mesmo virei como anjo da morte para que renasças
para a eternidade. Mas não se preocupe, pois não terás nenhum medo de
abandonar a vida. Pelo contrário, esse será um dia de júbilo”, acrescentou.
Antes de tomar a decisão, o jornalista olhou firmemente para o seu corpo
cármico materializado e conseguiu enxergar nele traços de beleza e de luz.
Isso lhe deu confiança para seguir em frente. Assim que passou pela segunda
porta, começou a caminhar em um mundo totalmente novo. Sua busca passava a
ser muito mais um processo de retificação de caráter e os primores e
maravilhas que enxergava quando tomava o Daime ficavam agora em segundo
plano. Enquanto caminhava por uma longa estrada, viu centenas de outras
pessoas. Cada uma delas, assim como ele próprio, acompanhada de perto pelo seu
guardião. Embora destemido na maioria das vezes, João Guilherme jamais
imaginara que chegaria naquele nível de evolução ainda nesta encarnação.
“Pedi e abrir-se-vos-á”, lembrou-se da promessa de Jesus.
Foi só pensar no Cristo Planetário que lhe veio à mente que precisava
retomar a regressão até a época em que era indiano e se chamava Jahnu Mahajan.
Havia vários bancos vazios na espécie de alameda pela qual caminhava.
Sentando-se em um deles, fechou os olhos e concentrou-se. Até o momento o
poeta tinha sido uma testemunha ocular e passiva de suas existências
pregressas. Era como se assistisse ao filme da própria vida. Desta vez, contudo,
algo diferente e surpreendente ocorreu: quando abriu os olhos, João era
novamente Jahnu. Sua Consciência estava de volta ao corpo que ocupara há
quase trezentos anos. Ou pelo menos metade dela, pois havia incorporado
parcialmente no corpo do indiano. Ele já tinha passado por essa experiência
diversas vezes no Daime, embora lá tivesse sido o aparelho e não o espírito
visitante. A princípio, essa dualidade lhe causou certa confusão, pois não
sabia se de fato tinha voltado no tempo e com poder de influenciar nos eventos
de uma encarnação anterior ou se ele, João Guilherme, tornara-se, assim como
Eleanor, um mentor espiritual, só que de si mesmo.
Depois de um dia e meio de jornada, Jahnu Mahajan finalmente chegou ao
seu destino. Dali a pouco o sol já iria se por. Era bom estar de volta ao lar,
ainda que na condição de espião. Ele entrou nas terras do pai pelo lado sul,
por onde passava o rio de águas cristalinas no qual se banhara tantas vezes.
Parado na margem, percebeu que estava bem próximo ao local onde tomara o
elixir sagrado e vira a amada pela última vez. Cerca de vinte metros abaixo,
reconheceu a ponte improvisada de pedras que ele e Jay usavam na infância
para atravessar para o outro lado ou para brincadeiras, como para ver quem
conseguia ficar mais tempo equilibrado em uma perna só. A lembrança fez com
que Jahnu risse. João riu também. A primeira missão de reconhecimento teria
de esperar até a noite alta. Enquanto isso, escondeu-se atrás da grande pedra
na clareira e aguardou. Com os olhos de Jahnu Mahajan, João Guilherme olhou
para os lados e viu o misterioso Jyotish em silêncio. Diante da indiferença
do vaixá, o professor constatou que este não tinha visto o xamã. Por causa
disso, passou a considerar que, muito provavelmente, Jahnu ignorava que
carregava dentro de si outro espírito. E de repente, o jornalista foi tomado
por outra curiosidade: será que ele conseguiria olhar em volta sem usar os
olhos de sua encarnação indiana? Girando o pescoço, constatou que sim. Próxima
dúvida: seria possível comunicar-se diretamente com Jahnu Mahajan? “O que
disseres, ele interpretará como sendo pensamento próprio”, esclareceu
Jyotishi, surgindo como que por encanto. “Você até pode tentar alertá-lo de
alguma coisa, mas será sempre dele o julgamento se o conselho da voz em sua
cabeça foi bom ou mau. Ou como acontece na maioria das vezes, por mais sábia
que seja a orientação, a pessoa pode, para desgosto do espírito auxiliador,
simplesmente não aplicá-la em sua vida”. “Eu sei muito bem como é isso”, disse
João, reconhecendo a própria teimosia.
Após algumas horas em vigília, Jahnu decidiu que tinha chegado o momento
de agir. Levantou-se e tomou o rumo em direção à casa grande. O labirinto
formado pela vegetação do jardim que sua mãe Induma idolatrava ajudaria a
conservá-lo no anonimato. Com a desenvoltura do Minotauro na ilha de Creta,
o vaixá percorreu os intrincados corredores e chegou ao primeiro destino.
Quem olhasse assim, jamais diria que o lugar havia se transformado em uma
espécie de quartel. Silêncio absoluto. Apenas três soldados vagavam pela
imensa varanda. Era preciso saber quantos estavam dentro da propriedade e
nos fundos e quantos estavam nos alojamentos dos criados.
Arrastando-se pela grama, o poeta chegou até a parte de trás e, péssima
surpresa, havia dez tendas armadas. Pelo tamanho, calculou que caberiam
quatro homens em cada. Com os três da frente e talvez mais uns dez nas três
dependências dos criados, resolveu arredondar para sessenta a quantidade de
inimigos, incluindo o comandante do batalhão, instalado na casa grande.
Primeira missão completada, era preciso todo o cuidado para fazer o caminho
de volta. Enquanto o vaixá ladeava a casa, arrastando-se de cabeça baixa, João
Guilherme percebeu na calçada lateral, vinda da varanda, a projeção da sombra
de um homem que parecia estar armado de um rifle. “Jahnu, cuidado, tem um
guarda ali na frente”. Diante da indiferença do indiano ao aviso, o brasileiro
gritou com todas as forças que conseguiu reunir. Finamente Jahnu Mahajan se
deteve e viu a sombra. Foi preciso um longo tempo de espera até a sentinela
afastar-se. Caminho livre, o jovem prosseguiu com a saída estratégica. João
olhava em todas as direções procurando por algum guarda. Quando o vaixá
chegou perto do jardim, pensando ter o caminho livre, acelerou os movimentos.
Desaparelhando, o jornalista foi na frente e topou com dois soldados que
fumavam atrás dos arbustos. De lá gritou novamente para o indiano. Como se
não tivesse ouvido, o indiano continuou seu trajeto. João Guilherme berrou
mais uma vez. O vaixá não se deteve e o professor concluiu que a comunicação
só era eficaz quando estivessem aparelhados. João ainda tentou voltar e
retomar a incorporação, mas era tarde demais. Jahnu, ao passar por baixo do
arbusto, entregou-se de mão beijada aos soldados. Espantados com a repentina
aparição, eles prenderam imediatamente o invasor, que não ofereceu
resistência. Não houve agressão física desta vez e o indiano foi levado pelos
braços até uma das casinhas dos empregados. No meio do caminho, o professor
aparelhou novamente, já pensando em como ajudar.
“Tenente, encontramos este miserável se arrastando por baixo dos
arbustos”, disse um dos soldados. Ao ser chamado de miserável, Jahnu esboçou
uma reação. “Calma! Nem pense em reagir ou revelar a identidade”, ordenou
João. Jahnu Mahajan não reagiu. O oficial olhou para o intruso com desprezo
e tédio. Depois de dar uma tragada no cigarro, questionou: “Quem é você e o
que está fazendo aqui a esta hora da noite?” “Diga que é um sudra procurando
por trabalho”, orientou João. “Eu sou um sudra procurando por trabalho”, disse
Jahnu.
- E por que estava se arrastando no chão?
- Diga que estava perdido e resolveu esperar o amanhecer.
- Eu estava perdido e resolvi esperar o amanhecer.
O tenente olhou com surpresa para Jahnu, não por causa da resposta, mas
pelo seu jeito de se comunicar. “Acho que é a primeira vez que ouço um indiano
falar sem aquele sotaque patético. Diga-me, sudra, por que você não fala como
sua gente?”
Mesmo detestando mentiras, João Guilherme antecipou-se: “Diga que o
filho do teu ex-patrão era um ator inglês e você o auxiliava na leitura de
peças teatrais”. “O filho do meu ex-patrão era um ator inglês e eu o auxiliava
na leitura de peças teatrais”, disse Jahnu Mahajan. “Um ator aborígene?”,
exclamou o oficial, provocando risadas nos soldados. O movimento tinha
chamado a atenção de outros guardas que vieram ver o que estava acontecendo.
“Pois bem, senhor ator. Que tal nos dar uma pequena amostra do vosso grande
talento?”, provocou o britânico em tom de sarcasmo. Apesar de muito apreciar
o trabalho do ilustre poeta William Shakespeare, Jahnu tinha imensa
dificuldade em decorar trechos de suas peças e sonetos. Diante do impasse, João
Guilherme entrou em cena - literalmente. Encarando o tenente, o vaixá soltou-
se dos braços das sentinelas e começou a recitar, repetindo o que o professor
lentamente soprava-lhe:
“Ser ou não ser, eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os
dardos e arremessos do fardo sempre adverso, ou armar-se contra um mar de
desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais
nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes
infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-
se. Morrer... dormir... dormir... talvez... é aí que bate o ponto. O não sabermos
que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando ao fim desenrolarmos toda a
meada mortal, nos põe suspensos. É essa ideia que torna verdadeira calamidade
a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo,
a injustiça dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não
retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia
contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um
punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por
temer algo após a morte – terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém
voltou – que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos,
sem buscarmos refúgios noutros males ignorados? De todos os covardes a
consciência. Desta arte o natural frescor de nossa resolução definha sob a
máscara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante dessas
reflexões, e até o nome de ação perdem”
Quando Jahnu Mahajan terminou de recitar o clássico monólogo de Hamlet,
foi ovacionado por dois dos soldados. Apesar da emocionante performance, o
tenente limitou-se a olhá-lo com desdém. Em seguida ordenou: “Ele parece
inofensivo. Deixem-no trancado esta noite e amanhã o comandante decidirá o
que fazer”. Quando Jahnu foi jogado no pequeno quarto improvisado como cela,
ainda não conseguia acreditar no que acabara de fazer. Seu corpo vibrava de
emoção. João Guilherme, por sua vez, finalmente entendia toda a complexidade
do texto shakesperiano que já tinha declamado tantas vezes.
Apesar de ter achado Jahnu somente mais um indiano medroso e
subserviente, o tenente Matthew Donalds viu algo em seus olhos que não gostou.
“Esse miserável vai me causar problemas”, pensou. Contudo, não podia
simplesmente executar o prisioneiro, como bem gostaria, sem a expressa
autorização do major Joseph Wickert. Ainda mais que ficaria noivo de sua
filha no dia seguinte. Bem cedo, Jahnu foi acordado por um soldado, que lhe
ofereceu água e um pedaço de pão. Aproximadamente uma hora depois, chegava o
tenente acompanhado do major. Trazido pelo braço até o lado de fora, Jahnu
foi apresentado ao comandante Wickert. “Ele me parece apto para trabalhos
domésticos”, disse o major sem ligar muita importância. “Você disse que ele
fala bem o inglês, não é mesmo? Sendo assim, poderá servir como mordomo. Estou
cansado de confusão com essa gente que não me entende e que não consigo
entender”, completou tediosamente. “Preparado para hoje a noite, tenente?”,
falou o major mudando o rumo da prosa. “Tudo será perfeito, meu comandante”,
respondeu o oficial Donalds. Quando estava prestes a sair, o major fez uma
pequena pausa e, virando-se para Jahnu, emendou: “Um dos soldados disse que
este pobre moço é capaz de recitar Shakespeare. Talvez ele pudesse nos brindar
com algumas interpretações esta noite. Vai ser no mínimo divertido. Um
chimpanzé tocando violino”. O comentário final arrancou gargalhadas de toda
a tropa reunida ali. Jahnu sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. “Calma, calma,
calma. A ordem agora é ter calma”, falou João Guilherme. Apesar da aparente
tranquilidade, ele é quem tinha se sentido mais ofendido com a humilhação.
Logo em seguida, Jahnu Mahajan foi levado à cozinha para se inteirar das
atribuições. Chegando lá, não ficou surpreso ao encontrar Jay e Lalita,
acompanhados de Jagadamba, sua velha babá. Ela o abraçou longa e ternamente
e chorou. Rapidamente o vaixá colocou os amigos a par do que acontecera na
noite anterior e porque tinha voltado. Explicações dadas, quando viu a
quantidade de comida sendo preparada, quis saber do que se tratava. Foi Lalita
que apressou-se em dizer que a filha do comandante e o tenente ficariam
noivos. Na verdade, a informação não fez diferença para Jahnu, que só pensava
em como dar uma escapada para repassar os informes aos colegas rebeldes. O
melhor momento veio no cair da tarde. Com a desculpa de conhecer um lugar
onde poderia colher flores para a decoração, o vaixá encontrou-se no local
combinado com um dos revolucionários e o pôs a par de tudo. De volta ao ofício,
ajudou Jay a preparar a mesa de jantar.
Quando os convidados começaram a chegar - oficiais de outros regimentos
e algumas autoridades - Jahnu ficou responsável por servir-lhes champanhe.
Ao entrar na grande biblioteca, teve um acesso de fúria. O quadro com o retrato
de seu amado pai havia sido retirado da parede. Enquanto isso, som de violinos,
flautas e violoncelos animavam a festa. A área de atuação do poeta ficou
restrita ao salão e o espaçoso átrio interno a cargo de Jay. Era lá que estava
a maioria das mulheres – inclusive a noiva. Por volta de nove da noite, o
major Wickert dirigiu-se ao salão de festas e bateu levemente duas vezes em
sua taça usando uma colher e todos ficaram em silêncio. Jahnu estava a poucos
metros, atrás de um grande balcão repleto de bebidas. “Senhoras e cavalheiros,
um minuto de sua atenção, por favor. Como todos sabem, hoje minha amada filha
Olivia, está ficando noiva do tenente Matthew, a quem considero como um filho”
– proclamou orgulhosamente. “Olivia, por gentileza, aproxime-se”, solicitou
cerimoniosamente.
O vaixá fez um pequeno contorcionismo para ver a noiva. “Para casar com
um idiota desses, só sendo mais idiota ainda”, pensou. “Concordo plenamente”,
João Guilherme ratificou. À medida que os convidados foram abrindo passagem,
os poetas conseguiram ver um pedaço do vestido branco da nubente. Ela ficou
ao lado do pai e do noivo, de costas para o serviçal. “Garçon, uma taça de
champanhe para a minha filha, por favor”. Assim que ficou de frente para a
moça, o vaixá empalideceu. João Guilherme, sem saber como, assumiu totalmente
o controle do corpo de Jahnu e evitou que ele desabasse no chão, embora seu
susto não tenha sido menor quando constatou que a noiva era ninguém menos
que Amparo, agora chamada de Olivia. Champanhe servido, voltou cambaleante
para o seu lugar. Ninguém, a não ser Lalita – que assistia a tudo maravilhada
de um canto – notou a reação do poeta.
Brinde feito, o vaixá queria sair correndo daquele ambiente
insuportável. Agora nada mais importava. Nem mesmo a independência da Índia.
Assim como Jyotish, ele também se tornaria um asceta, ou seja lá o que fosse.
João Guilherme precisou de muita energia para acalmar a mente de Jahnu.
Enquanto os noivos dançavam a valsa, o jornalista disse à encarnação indiana:
“Eles estão ficando noivos, mas ainda não estão casados. Ela está destinada a
ti. Lembra-te do teu sonho. Não desista da tua alma gêmea”. O ex-nobre não
conseguia parar de olhar para a amada. Embora estivesse linda, seu rosto não
demonstrava alegria. João Guilherme aproximou-se do casal e, como se dançasse
junto, ficou olhando nos olhos da donzela. Então repetiu-se o que acontecera
no terreiro de Umbanda: o professor conseguiu ver a alma de Olivia. E ela,
para sua alegria, estava triste. Era preciso contar isso a Jahnu
imediatamente. Porém, antes que chegasse nele, a música parou e depois dos
aplausos, o major Wickert anunciou: “E agora, senhoras e cavalheiros, um pouco
de diversão. Nosso empregado hindu vai nos brindar recitando Shakespeare com
seu sotaque vitoriano”. O riso foi geral. Jahnu, todavia, decidira no fundo da
alma que não iria se prestar a esse papel ridículo dentro da própria casa.
Rápido como um pensamento, João Guilherme aproximou-se e falou em tom
enérgico: “Os humilhados serão exaltados. Olivia ainda não lhe conhece. Use
este momento para fazer com que ela te reconheça. Recite com paixão, como
nunca fizestes antes”. Impelido por uma inspiração sobrenatural o vaixá
respirou fundo e encaminhou-se ao centro do salão. Curiosos, os convidados
ficaram em silêncio. Então como o ator inseguro que sobe ao palco e é ajudado
pelo colega escondido que sopra o texto, repetiu de olhos fechados o monólogo
de Hamlet ditado por João. Quando terminou, já de olhos abertos, viu uma
atônita Olívia a lhe encarar como se tentasse lembrar de onde o conhecia.
Percebendo o efeito da performance sobre a noiva, apressou-se em partir para
o segundo número. Humilde por fora, mas sarcástico por dentro, dedicou ao
casal um trecho de “Romeu e Julieta”. Se no começo a reação da plateia tinha
sido fria, agora ele foi esplendidamente aplaudido. O desconcerto no rosto de
Olivia era evidente. Era preciso recitar mais e João Guilherme lhe soprou os
sonetos 12, 18, 22 e 66. Sem querer, Jahnu tinha virado a estrela da festa. “Que
tal o jovem cantar uma canção?”, sugeriu alguém. João pensou em deixar a
escolha para o próprio vaixá, uma vez que desconhecia as músicas da época. Mas
para sua surpresa, o indiano não conhecia uma só canção de amor. Foi quando
o jornalista tomou uma decisão inusitada: escolher uma canção de seu tempo.
“E o que poderia soar o menos estranho possível para a época?”, considerou.
“Andrew Lloyd Webber que me perdoe, mas diante das circunstâncias, vou ter
que antecipar uma de suas canções em alguns séculos”, concluiu. E assim,
aparelhou totalmente em Jahnu e começou:
“Basta de falar em trevas
abandone estas lágrimas
estou aqui, nada pode feri-la
meus versos serão teu refúgio e acalanto
permita que eu seja a tua liberdade
que a luz do dia enxugue tuas lágrimas
estou aqui, contigo e ao teu lado
para lhe guiar e lhe guardar
diga que me ama, a cada momento,
mude meu pensamento com palavras de verão
diga que precisa de mim agora e sempre
prometa-me que cada palavra tua é verdadeira
é tudo o que peço de ti
deixa-me ser teu abrigo
deixa-me ser tua luz
estás segura, ninguém te encontrará
os teus temores foram deixados para trás
tudo o que anseio é por liberdade
um mundo sem trevas
e você, sempre ao meu lado,
para me abraçar e proteger
então diga que compartilharás comigo o amor, a própria vida
permita-me tirá-la da tua solidão
diga que precisa de mim contigo, aqui ao teu lado
aonde quer que vá, deixa-me ir também
é tudo que peço de ti”
Assim que cantou o último verso, João Guilherme sentiu-se, literalmente,
o fantasma da ópera. Abrindo espaço para que Jahnu saísse do transe, ambos
notaram a luz violeta que começava a brilhar no coração de Olivia. A semente
do amor havia germinado. Os poetas sorriram de satisfação. Com exceção do
tenente Matthew, todos aplaudiram, até mesmo o pai da noiva. Esta olhou para
o vaixá como jamais havia olhado para outro homem em toda a vida. “Estou
apaixonada”, pensou. Tragédia das tragédias, encontrar o amor de sua vida
quando já era tarde demais. E uma lágrima beijou-lhe o rosto. Quando a festa
acabou, os criados se dedicaram a uma primeira arrumação da casa. De tão feliz
que estava, Jahnu limparia tudo sozinho. A velha Jagadamba, que o conhecia
como ninguém, entendeu perfeitamente o que acontecera e temeu pela vida de
seu eterno menino. Ela pensou em chamá-lo para conversar naquela mesma noite,
mas a alegria do poeta era tanta que ela não teve como. Ao invés, puxou uma
conversa amistosa: “Jahnu Ji, onde é que aprendestes aquela canção? Em
Londres?”. “Não faço a menor ideia. As palavras simplesmente saíram pela minha
boca, como se outra pessoa estivesse cantando em meu lugar”. João Guilherme
ouviu a tudo comovido.
Jahnu Mahajan bem que tentou, mas naquela noite dormir seria muito
difícil. Olivia era ainda mais linda em carne e osso do que vira no astral.
“Olivia, Olivia, Olivia, Olivia, Olivia...”, ficou repetindo mentalmente ao
olhar para o céu estrelado pela janela aberta. Enquanto isso, João, em um
arroubo de atrevimento, esgueirou-se no quarto da donzela. Ela ainda usava o
vestido da festa e se olhava no espelho com ar de melancolia. “Oh minha mãe,
como eu gostaria que estivesses aqui agora. Para a senhora eu poderia abrir o
coração”, disse sussurrando. Ao lado da amada, João viu uma senhora
desencarnada sentada a acariciar-lhe os cabelos. O professor teve vergonha
da intromissão e virou-se para sair do quarto. “Cuide bem da minha filha. Ela
é o meu maior tesouro”, disse o espírito. João Guilherme admirou-se pelo fato
de sua presença ter sido notada. “Eu estou a lhe observar desde quando chegou”,
continuou a senhora, desta vez virando-se para o jornalista. “Por tudo que é
mais sagrado, eu juro que farei dela a mulher mais feliz do mundo”, prometeu
João. A mãe de Olivia não esboçou reação. A conversa foi interrompida pelo
choro da noiva, que nervosamente abriu uma gaveta da cômoda e, depois de pegar
um diário, passou a escrever:
“Ó ventos do amor, quem é este anjo que me trouxestes? É por isso que nunca
consegui me apaixonar por Matthew, apesar de toda a sua dedicação? Quando vi
aquele moço pela primeira vez, a cantar uma oração à beira do rio, eu soube
em meu coração, que ele seria especial. Sua voz, seus olhos tão cheios de vida,
sua paz interior não me saem da cabeça. Minha vida jamais será a mesma depois
desta noite. É como se eu o conhecesse de outras vidas. Mas como isso é possível?
Mas não devo mais pensar nisso. Capricho do destino, estar tão perto e tão
longe do meu amor, de quem não sei ao menos o nome”.
Ao perceber que Olivia começaria a se despir, João Guilherme saiu do
quarto e voltou para junto de Jahnu. Entorpecido pelo amor, o vaixá parecia
levitar. Foi então que se deu conta de que não sonhava na última vez que vira
Olivia, quando cantava o Gayatri mantra, sentado na grande pedra às margens
do rio. Ela realmente tinha estado lá.
Pela manhã, Lalita foi encarregada de servir o café da senhorita no
quarto. Ela recebeu a criada com um sorriso afável e teve de volta um olhar
frio e indiferente. Naquele momento, o que incomodava a sudra não era a beleza
da inglesa, já que ela mesma era tão bela quanto, mas o inconfundível brilho
da paixão em seus olhos. Olivia estava tão radiante que parecia ter acabado
de despertar depois de uma noite de amor. Isso deixou a moça indiana
enlouquecida de raiva. A gota d’água que transbordou o copo foi quando a jovem
inglesa suspirou profundamente e sussurrou: “a um dia de verão, como hei de
comparar-te?”, verso de um dos sonetos que Jahnu tinha declamado. Sobre a
cômoda, Lalita viu algo que lhe chamou a atenção. O diário da rival estava
aberto em uma página com algumas linhas escritas. Embora analfabeta,
esforçou-se ao máximo e conseguiu reconhecer a palavra “amor”. Imediatamente
a sudra intuiu que aquele caderno poderia ser-lhe útil no futuro.
Café da manhã tomado, Olivia saiu do quarto, passou pelo grande corredor
e parou no átrio interno. O sol brilhava forte e a luz refletiu em seus olhos.
Momentaneamente cega, não percebeu Jahnu que estava a poucos metros
recolhendo uma cadeira. Assim que achou uma sombra, a donzela sentou-se. Nas
mãos estava o diário. Ela o abriu na página em que tinha escrito na noite
anterior e sorriu discretamente. Distraída, assustou-se com o “bom dia,
senhorita”, de Jahnu. “Ah, bom dia”, respondeu gentilmente. O vaixá preparava-
se para deixar o ambiente quando ela falou: “Espere um instante, por favor.
No tumulto da festa de ontem à noite, eu nem lhe agradeci pelas recitações.
Devo dizer que gostei muito. Você é bem talentoso”. Sem demonstrar, o poeta
quase explodiu de contentamento com o elogio. “Não há de quê. A poesia de
Shakespeare é que é maravilhosa”, replicou.
- Bem, como deves saber, meu nome é Olivia. Qual é o teu?
- Jahnu Aruna.
A troca do sobrenome foi proposital. Se dissesse o verdadeiro, correria
grande risco de ter a identidade revelada.
- E como conheces tão bem a obra de Shakespeare?
Meio a contragosto, o jovem já se preparava para contar a mesma mentira
que dissera ao tenente Matthew, quando este surgiu pelo corredor requisitando
a companhia da noiva. Ela pediu licença e saiu. Assim que chegaram à sala de
jantar, o oficial demonstrou contrariedade com o que acabara de testemunhar.
“Meu amor, não considero que seja prudente perder tempo dando atenção aos
criados. Eles são mestres em tirar vantagem da bondade alheia”, asseverou. “Eu
só estava agradecendo a gentileza do rapaz de ter feito as declamações”,
esclareceu Olivia. “Ah, aquela bizarrice, você quer dizer. E que canção
horrorosa era aquela?”, retrucou o oficial.
O casal encaminhou-se até o jardim e foi seguido por João Guilherme.
Sentados em um banco, diante de uma fonte em forma de peixe, adornada pela
escultura de um menino, o tenente tomou as mãos de Olivia e revelou: “Assim
que a construção da fortaleza for concluída, dentro de no máximo seis meses,
nós voltaremos para Londres, para o nosso casamento. Isso não é maravilhoso?”
Atento a tudo, o professor olhou bem nos olhos da amada e tanto alegrou-se
como entristeceu-se com a resposta. Alegre porque foi um sim evasivo, sem
convicção. Triste porque era assim que a senhorita sentia-se naquele momento.
Nada era mais penoso para ela do que mentir para alguém. O tenente Matthew
era um homem educado, gentil, dedicado ao comandante Wickert e leal ao seu
país. Ele não merecia ser enganado. Requisitado em suas obrigações, o oficial
beijou leve e respeitosamente os lábios da noiva e saiu.
Ela continuou sentada. Olhando em volta e tocada pela beleza do jardim,
pensou: “Aqui deve ter morado um jardineiro muito dedicado”. De fato – Induma
- a mãe de Jahnu, tinha na jardinagem uma espécie de sacerdócio. Para ela, as
flores eram um portal de entrada para seres divinos que vinham à Terra nos
trazer luz, amor, bondade, pureza e sabedoria. Enquanto pensava isso, seu corpo
foi cercado por pequeninos pontos de luz azulada. Ela não os viu, mas João
Guilherme sim. Ela os sentiu e João Guilherme também. O jornalista aproximou-
se e sentou-se ao seu lado. Ele fechou os olhos, concentrou-se a passou a
imaginar que um feixe de luz dourada vinda das estrelas preenchia-lhe todo
o coração. Intensificada, de lá ela se dirigia ao coração de Olivia. E seus
corações vibraram na mesma energia, unidos pelo mais puro amor. A donzela
abriu o livro de sonetos que tinha em mãos, marcado em certa página. Havia um
coração desenhado a lápis no início e no fim do verso de um dos sonetos
recitados por Jahnu na noite anterior: “Pois toda essa beleza que te veste,
vem de meu coração – que é teu espelho”. A lembrança do poeta recitando com
tanta paixão não lhe saía da cabeça, e ela pensou ter ouvido a voz dele quando
João Guilherme lhe sussurrou: “Meu amor, a força que nos une é a mesma força
que move o Universo. Nossas almas são como uma só e é chegado o momento do
reencontro. Por isso vos rogo: não desista de mim. Não desista de ti. Não desista
do nosso amor. O Pai Eterno há de nos abençoar com a felicidade”. Imediatamente
após dizer isso, o poeta sentiu o corpo astral se elevando, como se conduzido
por uma força desconhecida. O azul do céu tornou-se como que alaranjado e
João percebeu que não estava mais no mesmo lugar. Apesar do desconforto de
ter saído de perto da amada, ele sabia que o que acabara de acontecer tinha
algum motivo – que veio na figura de uma moça de aproximadamente vinte anos.
Ela era negra - como seus olhos - e tinha uma tiara nos cabelos. Usava um
vestido vermelho com detalhes pretos e amarelos. No pescoço fino havia um
colar de pérolas e nos braços muitas pulseiras e braceletes. Os brincos eram
grandes, feitos de algum tipo de madeira e adornados com penas azul turquesa.
Ao chegar perto do professor, o espírito sorriu cordialmente. “Olá João
Guilherme! Ou devo dizer João Maria? Ou quem sabe Jahnu Mahajan?” disse com
bom humor. Não sabendo de quem se tratava inicialmente, a recepção do poeta
foi tímida: “Saudações, minha irmã! Em que posso ser útil?” A jovem divertiu-
se com o formalismo na fala de João.
- Minha nossa, falando assim, você fica parecendo um garçon. Sou eu,
irmãozinho querido. Eleanor.
- Eleanor? Perdoe-me, é que você está tão diferente...
- Não, não, não, moço. Esta é a forma que assumi definitivamente aqui no
astral. Naquela outra vez você que escolheu qual seria a minha aparência,
lembra?
João Guilherme fez um pequeno movimento com os olhos e com a boca como
a dizer “ah, sim...” Eleanor pegou a mão direita do jornalista e disse: “Eu
preciso que você me acompanhe em uma tarefa espiritual. Mas devo alertar que
não é nada agradável. Você não precisa vir se não quiser”, explicou. João
Guilherme jamais diria não ao espírito que sempre lhe acompanhou nos piores
momentos. “Claro que sim, minha irmã. Do que se trata?”. “Pois bem, uma pessoa
que você conhece está prestes a fazer a passagem. É preciso que alguém de sua
confiança a receba aqui nas esferas mais sutis e os espíritos superiores
escolheram você para esclarecer que ela deixou a matéria”. A princípio
temeroso da grande responsabilidade que tinha diante de si, João elevou o
pensamento ao Cristo e pediu amor e sabedoria para cumprir a missão. A mentora
passou a segurar também a sua outra mão e ambos foram envoltos por um feixe
de luz branca. Quando a luz começou a desvanecer-se, eles estavam ao lado de
um leito de hospital. João Guilherme olhou para a pessoa amiga que agonizava
e a reconheceu de imediato. Reconheceu também as outras pessoas ao redor da
cama. Na cabeceira, havia um espírito de aparência sombria a emanar uma fraca
luz fosca. Quando notou a chegada de João e Eleanor, cessou o que estava
fazendo. “Está na hora”, disse o ser com respeito e humildade. Tomando a pessoa
pela mão, fez com que ela deixasse o corpo físico. João Guilherme olhou para
o anjo da morte com temor. Este, por sua vez, olhou-o calma e firmemente nos
olhos e o jornalista viu como e quando seria o seu próprio encontro com ele e
sentiu-se reconfortado. Embora não pudessem ver os espíritos visitantes, os
parentes e amigos próximos da pessoa que acabara de deixar a vida, entenderam
o que se passara e o pranto foi automático. Quando desencarnou, a pessoa amiga
de João Guilherme caminhava lentamente de olhos fechados, como faz o
sonâmbulo que anda a esmo. Incentivado por Eleanor, o poeta segurou-lhe mão
e os três passaram por um grande portal de luz que se formara na altura do
teto do quarto. Do outro lado, o professor viu muitas outras pessoas dormindo
em um imenso e lindo jardim. Algumas estavam despertas, chorando ou em
silêncio introspectivo. Com a ajuda de sua mentora espiritual, o poeta
depositou o corpo astral da pessoa amiga na relva verde e ficou velando pelo
seu sono. Passado um tempo que João não saberia precisar, ela acordou. Quando
abriu os olhos, sua reação foi de alegria ao deparar-se com o velho amigo.
“Que gentil vir me visitar. Sei que não tenho mais muito tempo, mas é sempre
muito bem vê-lo, meu querido”, confidenciou. Segurando fortemente as mãos da
alma tão querida, o professor não conseguiu conter as lágrimas e com toda a
doçura e carinho que conseguiu juntar, disse: “Você não está mais na matéria.
Agora você caminha em direção ao coração do nosso Divino Pai Eterno. Seu
tempo na Terra acabou. É chegado o momento de avaliar como foi a experiência
terrena e planejar a próxima encarnação. A luz da nossa Virgem Mãe irá lhe
abençoar e proteger. Busque no Cristo o consolo para as tuas dores e não te
esqueças dos momentos felizes que passamos juntos dos nossos amigos. Que essas
lembranças lhe sejam como um bálsamo para o espírito. Nossa separação é apenas
temporária. Não demorará muito até que estejamos reunidos para sempre sob a
luz redentora do Pai Soberano”.
Dito isto, houve um demorado abraço e a pessoa amiga pediu para que o
jornalista se juntasse a ela em um momento de oração. De mãos dadas, rezaram
a prece de Cáritas, o Pai Nosso e a Ave Maria. Após um instante de silêncio, a
alma desencarnada, como que se lembrando de algum fato do plano material e
com certo espanto pela presença de João Guilherme, quis saber: “Mas meu irmão,
como é possível que você esteja aqui? Você...” Antes que continuasse o
raciocínio, o espírito foi gentil e educadamente interrompido por Eleanor.
“João, é preciso voltar”. Novo abraço de despedida e, amparado pela mentora, o
poeta atravessou novamente o portal.
20
Quando João Guilherme e Eleanor voltaram à casa dos Mahajan, o poeta
estava calado e pensativo. A pessoa amiga que desencarnara estava prestes a
lhe revelar algo da vida na Terra e a guia espiritual não permitiu. Notando
seu desconforto, ela apiedou-se de sua angústia. “João, amado irmão, eu
gostaria imensamente de poder lhe ajudar. Sei que você tem inúmeras dúvidas
e que lhe incomoda muito não ter as respostas. Contudo, não tenho autorização
superior para isso. Mas confie em mim, querido. Nosso Pai Celestial jamais lhe
deixaria desamparado. Concentre-se em tudo que tem aprendido desde que chegou
aqui ao astral. Pense nos irmãos encarnados e desencarnados que você tem
ajudado. Nada é mais doce aos olhos de Deus do que a abnegação daqueles que se
colocam a serviço do próximo. Você buscou do fundo de seu coração e o Cristo
lhe ouviu. Todos os anjos do céu choram de alegria quando vocês humanos são
bem-sucedidos na sagrada missão de semear o amor, vencer a ilusão da matéria
e reconciliar-se com o Pai. Cada vez que uma pessoa emite um pensamento puro
em direção ao Universo, isso produz uma energia que propicia a muitos irmãos
terem acesso a essa luz e assim também encontrar o próprio caminho da evolução.
Cada poema, cada música, cada livro, cada dança, cada peço teatral, cada filme
– cada manifestação de arte genuína nascida dessa comunhão entre o Eu
Inferior e o Eu Superior, espalha na atmosfera terrestre uma poesia cujo
aroma inspira as pessoas a buscarem a Essência Divina que têm dentro de si.
Você, assim como Vinícius de Moraes e Seu Zé Pelintra – teus dois amigos e
irmãos – vêm de uma falange espiritual cujo trabalho é justamente esse:
impregnar o coração dos homens com a poesia que lhes tira da escuridão e
acende a luz que lhes conecta novamente com aquilo que têm de melhor”.
“Perdoe-me pela minha fraqueza, Eleanor. Estar neste plano, vendo e fazendo
todas essas coisas é muito mais do que sempre sonhei”, respondeu o professor.
“Não há por quê pedir perdão, João Guilherme. Você não teria sido trazido até
aqui se não considerássemos que estava apto. Durante alguns anos de sua
adolescência, primeira juventude e principalmente na fase adulta, você
desviou-se muito do caminho traçado por si mesmo e pelos arquitetos
espirituais; das coisas que comprometeu-se a fazer e da evolução moral e
intelectual que prometeu cumprir. Com muita dor no coração, fomos obrigados
a nos afastar para que, através do sofrimento, você pudesse retomar o caminho.
Ainda assim, por mais que tentássemos lhe ajudar, a energia negativa de seus
pensamentos e de atitudes impedia que qualquer luz chegasse à sua pessoa.
Foram preciso anos de privações, humilhações e sofrimento para que você
finalmente despertasse dessa letargia. E, desse caminho que agora trilhas, não
há volta. Você não conhece, nunca viu ou ouviu, mas há muitas pessoas
encarnadas fazendo o mesmo trabalho. Vocês estão ligados pelo fio invisível
do amor incondicional. Olhe para ele, seu aspecto mais tenebroso já esvaiu-
se”, falou Eleanor apontando para o corpo cármico de João Guilherme que,
conforme prometera, não havia se afastado nem por um segundo. Dizendo isso,
a mentora abraçou ternamente o poeta e despediu-se.
Jahnu foi procurado durante a noite por Jagadamba. Ela estava
preocupadíssima com o que julgava ser uma atitude tresloucada. “Menino, você
tem noção da confusão em que está se metendo? Essa moça é estrangeira, rica e
para piorar, está noiva. Esqueça Olivia. Ela é diferente dos outros ingleses,
mas jamais terá a coragem de enfrentá-los por tua causa. Procure uma mulher
com quem você possa se casar, ter filhos, ter um futuro”, aconselhou apontando
para Lalita com os olhos. Depois completou: “Você tem estudo, é inteligente.
Logo as coisas vão se ajeitar e muitas oportunidades de trabalho surgirão”.
Em respeito à velha amiga de sua mãe, Jahnu nada disse. Parecia-lhe
claro que havia o dedo da irmã de Jay nessa conversa. Quanto ao amigo e irmão,
este também manteve-se calado. Sua principal preocupação era evitar que o
poeta sofresse ou, no pior dos casos, morresse por causa desse amor avassalador
que havia se instalado em seu coração. João Guilherme apenas assistia à
pequena assembleia familiar. Ele havia decidido que só voltaria a intrometer-
se em algum caso extremo. Enquanto os três confabulavam, o jornalista foi
visitar Olivia.
Quando chegou à casa grande, encontrou a amada no salão de festas e
rapidamente reconheceu a melodia que ela tocava ao piano. Eram os acordes da
canção que ele cantara durante a festa de noivado. Pela destreza dos seus
dedos, ficou claro que a jovem era talentosa. “Tomara que ela não passe as
notas para uma partitura”, torceu João. Com um toque de inconsequência,
considerou a catástrofe que seria a ópera de Andrew Lloyd Webber, adaptação
da obra do romancista francês Gaston Leroux, sem a peça principal.
Repentinamente, como se sentisse a presença do professor, Olivia parou de
tocar. Ela olhou apreensiva em volta procurando alguém, mas não havia medo
em seu coração. Depois de uma breve pausa, a donzela voltou a tocar a melodia
de “All I ask of you” e, sensibilizado pela beleza da composição, João Guilherme
cantou a letra. “Eu realmente sou um cantor de outro mundo”, disse o poeta a
si em meio a um sorriso.
As semanas se passaram e Jahnu e Olivia já não conseguiam esconder o
clima de paixão que brotara entre eles. Como o tenente Matthew havia viajado
para vistoriar a construção da fortaleza, o vaixá teve toda a liberdade para
fazer a corte. Em momentos estratégicos do dia, embrenhava-se na mata para
por os amigos rebeldes a par da evolução dos fatos. Jahnu Mahajan era
frequentemente chamado ao salão de festas para conversar com Olivia sobre
literatura, filosofia e religião. Juntos, passavam horas lendo em voz alta as
peças de Shakespeare. Ela se divertia com a variedade de sotaques e inflexões
de voz que o indiano conseguia fazer. Em um arroubo de ousadia, Jahnu propôs
que fizessem uma cena de “Romeu e Julieta”. Ela concordou. A enorme
escrivaninha, debaixo de onde se escondera tantas vezes quando criança, serviu
como o balcão dos aposentos da Capuleto. Os jovens atuaram com desenvoltura e
leveza. No momento do beijo Olivia hesitou, mas diante da intrepidez do poeta,
não resistiu e se beijaram apaixonadamente. Quando os lábios se tocaram, foi
como se seus corpos tivessem sido tomados por uma força que transcendia o
tempo, que os tornava inseparáveis desde o momento em que suas almas receberam
o sopro divino do Criador. Não houve sentimento de culpa quando finalmente
as bocas se despediram. Pelo olhar, os jovens concordaram que era preciso
guardar segredo e ter paciência. Então, como o menino tímido que entrega uma
flor para a namoradinha, Jahnu entregou a Olivia o poema que escreveu quando
a viu na clareira da grande pedra. Ela quis ler de imediato, mas ele insistiu
que só o fizesse quando estivesse sozinha.
Quando chegou ao jardim, depois de sair da casa, Jahnu Mahajan olhou
para o céu e era como se ele se movesse em círculos e o número de estrelas
tivesse sido multiplicado por dez, por cem, por mil. Dentro da casinha dos
empregados, Jay o esperava preocupado e todas as tentativas de abrir-lhe os
olhos foram frustradas. “Jay Ji, ainda que eu tenha de morrer mil vezes, nada
me fará desistir do amor da minha doce Olivia”, disse com a típica fisionomia
dos jovens apaixonados. Conformado com o que considerava loucura, o sudra fez
com que Jahnu jurasse que pelo menos não cometeria nenhuma insanidade. “Sinto
muito, amado irmão, mas estou disposto a tudo”, respondeu enfaticamente.
Logo que o sol nasceu, os dois criados foram bruscamente acordados por
um dos soldados. “Levante-se sudra metido a poeta, o tenente Matthew quer lhe
ver”. Do lado de fora o oficial esperava com um chicote na mão. Todos os outros
empregados – quinze no total – tinham sido convocados para testemunhar a
lição. Jahnu olhou para Matthew com frieza e desprezo. Isso deixou o britânico
ainda mais irritado. A ponta do chicote sibilou no ar e foi em direção ao
vaixá. Ele desviou-se. A segunda chibatada acertou-lhe em cheio as costas. Com
uma força descomunal e até então desconhecida por ele próprio, Jahnu segurou
o instrumento de punição com as duas mãos e com um puxão vigoroso, tirou-o
do tenente. Todos assistiam em silêncio. Enlouquecido de cólera pela situação
vexatória, o oficial partiu para cima de Jahnu Mahajan. Os soldados britânicos
não acreditaram quando viram o superior ser suspenso no ar feito um boneco
de porcelana e atirado ao chão e partiram em seu auxílio. O vaixá reagiu como
um leão acuado, rangendo os dentes e urrando de fúria. Finalmente contido
pelos soldados, foi amarrado a uma viga que serviu de tronco. A cada chibatada,
o tenente proferia ofensas e enfatizava aos berros: “Nunca mais chegue perto
da minha noiva, seu selvagem”. Embora não tivesse visto o beijo nem soubesse
do poema, Lalita – em um acesso de ciúme – fizera saber a Matthew dos saraus
particulares. A gritaria do britânico fez com que Olivia acordasse. Abrindo a
janela, desesperou-se com o que estava acontecendo. Rapidamente vestiu-se com
um roupão e saiu descalça em direção ao local da confusão. “Matthew, pelo amor
de Deus, estás louco? Pare com isso imediatamente”, disse em meio a lágrimas.
Foi como se ela não estivesse ali. O oficial estava surdo aos seus apelos. “Mas
que diabos está acontecendo aqui?”, questionou energicamente o comandante
Wickert, também despertado pela algazarra. “Este miserável anda se
aproveitando da ingenuidade de Olivia para tentar seduzi-la”, acusou o futuro
genro. “Eu já estava mesmo preocupado com o excesso de liberdade que minha
filha concedia a ele. Vistam esse homem, deem alguma coisa para comer e o
expulsem das minhas terras”, foi o veredicto do major.
Nenhuma das chicotadas causou mais dor a Jahnu do que ter ouvido “minhas
terras” da boca de quem considerava um ladrão. Com um movimento que lhe fez
gritar de dor, o vaixá conseguiu desvencilhar-se das cordas. Nada mais se
interpunha entre ele e o comandante. Nada, a não ser João Guilherme. “Se você
atacar esse homem, perderá Olivia para sempre”. O grito de João Guilherme na
cabeça de Jahnu Mahajan foi tão forte que quase o derrubou. O indiano olhou
para Olivia, que com os olhos fez a mesma súplica desesperada. Depois olhou
para o tenente Matthew como a dizer “isso não vai ficar assim”.
21
Quando Jahnu chegou à clareira da grande pedra, as costas ainda
sangravam e latejavam de dor. Ele precisava descansar antes de se reunir com
os companheiros revolucionários. Movido por um código de honra particular,
tinha preferido sair seminu e faminto das terras do pai a receber algo das
mãos dos ingleses. Pela segunda vez tinha sido expulso da própria casa. Não
haveria uma terceira. De repente, um movimento como de alguém caminhando
entre o mato, o colocou em alerta. Se tivesse sido seguido, desta vez não teria
piedade. O poeta aliviou-se e no fundo ficou contente quando viu que quem se
aproximava era Jyotish. Sem dizer uma palavra, o xamã fez-lhe entender que
cuidaria de suas feridas com um unguento que trazia nas mãos. Enquanto
recebia atenção por parte do velho, Jahnu recostou-se na pedra e, sob o efeito
das ervas medicinais, adormeceu. Quando acordou, horas mais tarde, os
primeiros sinais da noite se faziam notar e o ancião mais uma vez desaparecera.
A seus pés, estava uma cuia cheia até a metade com a bebida sagrada. O poeta
colocou-se na posição de meditação e esperou. Quando a noite chegou em toda a
plenitude, não havia nuvens no céu e a promessa era de chuva. Sem paciência
para as 108 repetições do “om mani padme hum”, Jahnu tomou o elixir de uma
golada só e ficou em silêncio. Quase duas horas depois, nenhum efeito havia se
manifestado. Desorientado, a única referência espacial que tinha era o som do
rio passando a poucos metros. A escuridão – agora absoluta - somada aos sons
das criaturas da noite lhe encheu a alma de pavor. Ele não sabia se estava de
olhos abertos ou fechados quando viu a figura de uma salamandra descomunal
se arrastando pela floresta em sua direção. A primeira reação foi correr. Mas
era preciso dar um basta nisso. Ele nunca mais fugiria de nada. Em pé, sobre
a pedra, pôs-se em posição de combate. O Elemental do Fogo foi rápido e
impiedoso. Com apenas um golpe engoliu o poeta. Ele sentiu-se como que no meio
de uma labareda. Da mesma forma que o lingote de ouro é derretido pelo calor
das chamas no processo de fundição, seu corpo foi lentamente sendo
desconstruído em centenas de partículas. Feito faca afiada, a foice da morte
cortava-lhe o cordão de prata e sua vida chegava ao fim. O eco do grito de não
que saiu da garganta de Jahnu Mahajan fez calar a floresta e ele foi cuspido
no chão pela salamandra, que partiu tão veloz quanto viera. Devolvido à
escuridão, o poeta tateava o solo em busca da grande pedra, feito o bebê que
de gatinhas, busca a segurança do colo materno.
Com a visão entorpecida pelo efeito da bebida sagrada, como o ébrio que
vê o mundo girar em torno de si, Jahnu viu um homem de elmo prateado apeando
de um estranho cavalo negro e indo em direção a uma igualmente estranha
carruagem, de onde, ameaçada por outro homem, uma jovem gritava em uma língua
incompreensível. O cavaleiro arrancou o agressor de dentro do veículo e
tomando-lhe uma espécie de punhal com o cabo em forma de ele, dominou-o, mas
não o atacou. O aparente ato de misericórdia fez com que ele não percebesse
um segundo inimigo por detrás da carruagem, portando o mesmo tipo de punhal.
De sua ponta saíram duas chamas de fogo. Atingido pelas costas, o guerreiro
tombou e o vaixá contorceu-se de dor ao sentir a pele rasgada no mesmo lugar.
Assustados com a chegada de um dragão de olhos amarelos, os agressores
correram para a escuridão e a visão se desfez.
Novamente na clareira, uma explosão de luz fez com que Jahnu visse
dezenas de macacos com cabeça de homem se aproximar. Sem forças para qualquer
reação, implorou pela misericórdia de Krishna. Com os olhos quase fechados,
viu um facho de luz azulada a ricochetear por entre as árvores e todos os
macacos-homem fugiram assustados. Antes que seus olhos se fechassem por
completo, o poeta olhou para o céu e viu a lua saindo radiante por trás da
nuvens. E pensando ter morrido, adormeceu.
Já perto do meio-dia, foi o rufar das asas de três beija-flores que
despertou Jahnu Mahajan. O sentimento em seu peito era, ao mesmo tempo, de
alegria e de tristeza. Alegre por estar vivo e triste por ter perdido Olivia.
Com o coração dilacerado pela dor, chorou profundamente. “Meu Romeu!” Mesmo
ouvindo a voz da amada, o poeta não abriu os olhos. “Por favor, espírito das
trevas, me deixe em paz. Eu vos imploro”. “Meu amor, sou eu que estou aqui”. De
olhos abertos, o vaixá sentiu a alma estremecer diante da visão de sua estrela
matutina. Ela correu e, atirando-se em seus braços, beijou-lhe a boca com
volúpia. Ardendo de desejo, ele começou a desfazer os laços do vestido branco
dela e, instantes depois, surgiram-lhe diante dos olhos os seios rijos da amada.
Quando a última peça de roupa foi tirada, o corpo alvo da inglesa e o corpo
moreno do indiano gentilmente se entrelaçaram, tendo a grande pedra como
leito de núpcias. Os cabelos loiros da moça se assemelhavam a um véu dourado
que se estendia até tocar a relva. Quando suas intimidades se fundiram, os
jovens sentiram o prazer consumado no Amor Divino. E Jahnu viu a presença
de Deus nas entranhas dela e Olivia viu a presença de Deus na espinha dorsal
dele. Quando chegaram ao clímax da paixão, como são idênticos os tons do azul
do céu e do azul do mar, suas almas voltaram a ser uma e assim ficaram pela
eternidade de uma batida do coração.
Extasiados, os amantes entraram em um longo período de silêncio,
contemplando as poucas nuvens no céu e com a luz dourada do sol a banhar seus
corpos entrelaçados e nus. Como o artista que escolhe criteriosamente as cores
que irão compor a tela, o poeta mediu as palavras que estavam prestes a ser
ditas. “Meu amor, eu ansiei muito por este momento. Ter você aqui do meu lado,
é a realização do sonho de uma vida inteira”, começou. Ao ouvir tão tocante
declaração de amor, Olivia apertou forte a mão de Jahnu Mahajan e, virando o
rosto, beijou-lhe o peito. O vaixá suspirou e depois continuou: “Antes que
tomemos qualquer decisão sobre o nosso futuro, é preciso que você saiba algumas
coisas sobre mim”. Olivia assustou-se com a ressalva do amado, mas aguardou
em silêncio. E o poeta contou-lhe de quem era filho e onde morava. Falou
também do tempo em que estudou na Inglaterra, descreveu minuciosamente os
sonhos que tivera antes e depois da experiência com o elixir santo e por fim
revelou os planos dos exércitos insurgentes que se formavam por todo o país.
A donzela então lhe agradeceu pela sinceridade e confidenciou-lhe o
desconforto em relação à ocupação britânica. Ciente da determinação de Jahnu,
pediu-lhe que não causasse nenhum mal ao pai. Relutante, o vaixá concordou.
“Quando os ingleses forem embora, eu retomarei a propriedade da minha família
e lá poderemos construir um lar e cuidar de nossos filhos. Mas até que isso
aconteça, é preciso que você tome muito cuidado. Preste atenção no que fazer
quando notar que a propriedade está sendo atacada. No guarda-roupa do meu
quarto – que agora você ocupa - há uma passagem secreta. Para acioná-la, você
deve girar uma alavanca que fica no meio da parte dos fundos. Essa passagem
dá acesso a um pequeno cômodo. Meu pai mandou construir para o caso de alguma
emergência. Não se preocupe, porque ela é ventilada por várias correntes de
ar. Leve cobertor, água e comida e só saia de lá quando eu lhe chamar.
Entendeu?” Olivia disse que sim e ele acrescentou: “Outra coisa vos peço: diga
a Jay que volte imediatamente com Lalita e Jagadamba para a casa de seu pai”.
Procedimentos combinados, quando Olivia levantou-se para ir embora, o poeta
solicitou que ela não se vestisse imediatamente. Ele ainda queria contemplar
aquele corpo, guardar na memória cada curva e o cheiro de flores que exalava
de sua pele. A moça reagiu com certo recato, mas, depois, consentiu com um
sorriso insinuante e, pegando o poema que recebera de presente do bolso do
vestido, pediu a Jahnu que o lesse. Ele leu com alma. Foi o suficiente para
que o coração da Julieta apaixonada se incendiasse de desejo e eles se amaram
mais uma vez.
A tarde encaminhava-se para seu fim e Lalita estava na varanda da casa,
ajeitando alguns vasos de flores, quando Olivia chegou. Imediatamente a criada
correu para a biblioteca e avisou o tenente Matthew. Este a orientou para que
chamasse a noiva à sua presença. O pedido foi atendido a contragosto pela
donzela.
- Pode-se saber onde você se meteu durante toda o dia?
- Eu fui passear na beira do rio e ler.
Em suas mãos havia o livro de sonetos de Shakespeare. Melhor não tê-lo
mostrado. O oficial o tomou com rispidez e atirando-o ao chão, disparou:
“Maldita poesia! Aquele selvagem envenenou sua alma com essa porcaria”.
“Jahnu não é um selvagem”, replicou com firmeza. A atitude inusitada da noiva
só fez piorar o estado de nervos do tenente. “Então é assim? Quer dizer que
agora você o defende? Você está apaixonada por ele?”, interrogou apertando-
lhe com força o braço. Diante do olhar desafiador de Olivia, o militar deu-
lhe um tapa no rosto. “Nunca mais ouse me tocar”, disse com veemência sem,
contudo, elevar o tom de voz. Caindo em si, Matthew Donalds apressou-se em
pedir desculpas, abraçando-a e tentando a todo custo beijar-lhe a boca. Cada
negativa da noiva aumentava-lhe ainda mais o furor. Não fosse pela chegada
inesperada de Jay, o oficial a teria tomado à força. “O que você quer,
selvagem?” reagiu nervosamente. “O major deseja lhe ver no átrio interno”,
esclareceu o sudra, de cabeça baixa. “Nossa conversa ainda não acabou”, disse
o homem em tom ameaçador à donzela.
Sozinha com o criado, Olivia revelou que estivera com Jahnu,
naturalmente omitindo alguns detalhes. O servo ouviu pacientemente o relato
e, assim que ela terminou de falar, limitou-se a pedir humildemente: “Por
favor, senhorita, não o faça sofrer”. Disse isso e saiu. Olivia foi para o seu
quarto banhar-se. Despida, notou na roupa íntima, a mancha rubra de sangue
da inocência perdida. Dobrando-a, guardou com cuidado e devoção junto com o
poema. Já dentro da banheira, reviveu com carinho cada instante daquela manhã
passada com o amor de sua vida. Com a cabeça apoiada por uma toalha, fechou
os olhos e adormeceu. Em seu sonho, estava de volta à clareira da grande pedra.
As árvores, o céu e a terra tinham uma coloração que unia diferentes tons de
azul, laranja e violeta. Sentado na grande pedra, um homem de cabelos
cacheados entoava a mesma canção que Jahnu havia cantado na noite do noivado.
Sem parar de cantar, o homem virou-se e sorriu. A voz era a mesma do amado
mas, não reconhecendo-lhe o rosto, a moça permaneceu calada. Ele então se
aproximou e quanto mais perto chegava, ela notava nele – ainda que anos mais
velho - as linhas inconfundíveis do rosto de seu príncipe. Ele beijou-lhe as
mãos, testa, olhos e boca. “Minha estrela matutina, o nosso amor resistirá ao
tempo e ao espaço. Ainda nos encontraremos em outras vidas até que por fim
fiquemos juntos por toda a eternidade”, disse ternamente enquanto deslizava
os dedos sobre o rosto da senhorita, enxugando-lhe as lágrimas. Depois a
abraçou delicadamente e sussurrou bem baixinho: “Amo-te”.
“Olivia!”, o chamado enérgico à porta trouxe-a de volta ao plano físico.
Após recompor-se, foi atender a solicitação do major Wickert. “Minha filha,
comece a arrumar as coisas imediatamente. Partirás amanhã mesmo de volta à
Inglaterra até que eu e Matthew cheguemos para o casamento. Enquanto isso,
estás proibida de sair do quarto”. Antes que a jovem pudesse dizer alguma
coisa, o homem saiu apressadamente. Em pânico, ela pensava na melhor forma
de falar com Jahnu e explicar-lhe a situação. Sem outra alternativa, começou
a escrever uma carta que pediria a Jay para entregar. Nervosa, tinha
dificuldade em escolher as palavras. Foi a lembrança da mãe que lhe trouxe a
tranquilidade para concluir com sucesso o intento. Agora aguardaria até que
Lalita trouxesse o almoço para solicitar a presença de Jay. A desculpa seria
pegar as pesadas malas que compunham sua bagagem. O sudra veio assim que
convocado. Após ter ouvido as minuciosas orientações, partiu sem demora em
direção à clareira da grande pedra. Porém, não encontrou o amigo quando lá
chegou. Ele gritou o poeta pelo nome várias vezes e ninguém apareceu. O servo
ainda considerou procurá-lo mais adiante, mas daí se afastaria demais e seu
retorno se tornaria mais demorado.
Por volta de três da tarde, Jahnu Mahajan foi avistado pelo primeiro
sentinela do grupo de resistência. Depois de recebido por Samarjit, colocou os
colegas a par das novidades. Pelo relato feito, a conclusão geral foi de que
não havia melhor momento para um ataque surpresa. Com o coração saltando de
entusiasmo, o vaixá ficou sabendo que semelhantes ações estavam programadas
para diversas províncias. Finalmente a visão de seu sonho se tornaria
realidade. A única diferença é que agora ele não teria uma armadura dourada
ou capacete – muito menos um corcel negro, apenas um escudo e uma espada.
Chamando Samarjit em particular, pediu veementemente que cinco pessoas não
sofressem nenhum mal durante a ofensiva: Jay, Lalita, Jagadamba, Olivia e o
pai dela. Perguntado do porquê da preocupação com a moça e o comandante, o
vaixá confessou o envolvimento amoroso – o que foi interpretado como fraqueza
pelo líder rebelde. Mas diante da inflexibilidade do poeta, acabou cedendo.
Últimos detalhes acertados, a tropa - formada por 70 homens - partiria com o
cair da noite. A intenção era surpreender o inimigo antes do amanhecer do dia
seguinte.
Como se fora um comandante passando o pelotão em revista, João Guilherme
ficou prestando atenção aos soldados que lutavam pela independência da Índia.
Ao olhar mais de perto, contudo, notou que aqueles homens estavam longe de
serem guerreiros. Ainda que corajosos e determinados, que chances teriam
contra um exército altamente treinado para a guerra? Afinal, o que dava a
Jahnu Mahajan tamanha convicção da vitória? Incomodado por essa dúvida, o
professor aproximou-se da encarnação indiana e uniu-se a ela. Buscou nos
pensamentos do vaixá algo que pudesse saciar-lhe a dúvida, mas nada encontrou.
O aparelhamento, somado ao cansaço, fez com que o indiano adormecesse
profundamente e o jornalista passou a ver o que sonhava. Primeiro ele sonhou
que novamente fazia amor com Olivia em cima da grande pedra à beira do rio,
depois sonhou com os pais e por fim com a batalha. João Guilherme viu o vaixá
montado no cavalo negro, trajando a armadura dourada e o elmo prateado e
empunhando espada e escudo. Então os olhos de Jahnu e de João fundiram-se.
Para onde o primeiro olhava, o segundo olhava também. Embora vendo as mesmas
cenas, cada um as interpretava de um jeito diferente. Para o indiano, tratava-
se de um evento futuro; para o brasileiro, de um evento passado. João teve
esse entendimento porque tudo o que via pelos olhos de Jahnu era exatamente
como descrito na epopeia do Bahgavad Gita, quando a Índia era uma gloriosa
nação, unificada política e culturalmente.
A confirmação para a desconfiança do professor veio quando, ainda pelos
olhos de Jahnu Mahajan, viu o general de seu exército no alto do monte em
uma biga. Tendo a agitação do espírito guerreiro do vaixá como adversária,
João conseguiu direcionar o olhar para a figura imponente do comandante. O
que se revelou causou-lhe uma reação de indescritível alegria na alma. O
general era Arjuna, o guerreiro de braços fortes – como Krishna mesmo
costumava descrevê-lo. E era o próprio Krishna, a encarnação de Vishnu, a
divindade que estava ao seu lado confortando-lhe a alma sufocada pela dúvida
sobre se devia ou não lutar. E então, como a luz da vela que é soprada com
vigor, o sonho acabou. Acordado, Jahnu mal podia esperar pela hora da
vingança. E contra esse desejo, o jornalista não poderia fazer nada.
22
Na propriedade dos Mahajan o clima era de tensão. A descoberta da fuga
de três empregados colocara o tenente Matthew em alerta. Enclausurada e
aflita, Olivia rezava para que nenhum mal se abatesse sobre Jahnu e torcia
para que Jay voltasse logo com alguma boa notícia. Foi então que lembrou-se
da passagem que o poeta lhe falara. A descrição da localização e do mecanismo
de abertura tinha sido perfeita. Com extrema cautela, deixou no cômodo secreto
uma coberta, água, pães e algumas frutas. Quando saiu de dentro do guarda-
roupa, a surpresa não poderia ser mais desagradável. O pai e o noivo batiam à
porta. “Meu amor, acabamos de receber um comunicado de que grupos insurgentes
estão se organizando no norte e centro do país”, revelou Matthew assim que
entrou no quarto. Depois completou: “Mesmo sem sinais de qualquer
movimentação por esta região, seu pai e eu decidimos que você estará mais
segura na fortaleza. Um grupamento de soldados irá escoltá-la. Partindo
imediatamente, vocês chegarão em no máximo três horas e, ao amanhecer, poderá
pegar uma embarcação em direção à capital da província”. “Isso mesmo minha
filha. Coloque somente o indispensável em uma valise que a escolta já está
pronta”, concordou o major. O desespero tomou conta de Olivia. Ela nem poderia
esconder-se no cômodo secreto porque, óbvio, o primeiro lugar a ser vasculhado
seria o quarto. Essa estratégia só seria eficiente com a agitação causada pela
chegada dos rebeldes. Obedecendo a ordem paterna, colocou o mínimo de coisas
na pequena mala. Entre elas, o livro de sonetos de Shakespeare e poema de
Jahnu. A despedida do pai e do noivo foi a mais fria possível. Quando entrou
na carruagem que a levaria à fortaleza, deu uma última olhada no lindo jardim
e afundando a cabeça entre as mãos, chorou copiosamente. Cada solavanco da
carruagem aumentava-lhe o martírio. Somente depois de quase duas horas de
viagem, quando o sol começava a se por, é que ela teve disposição de olhar pela
janela. Foi aí que notou que o rio estava próximo. Recordando-se da manhã de
amor que tivera com Jahnu, tentou enxergar a grande pedra. Esforço em vão,
com a mão espalmada, lançou ao ar um último beijo na esperança que ele,
conduzido pelo vento, encontrasse seu grande amor. Depois de mais duas horas
chegaram à fortaleza.
Finalmente havia chegado a hora. Às dez da noite os rebeldes estavam
prontos para o ataque e marcharam rumo à propriedade dos Mahajan. Três horas
depois, ao passar próximo à grande pedra, o coração do poeta apertou-se e foi
preciso um esforço hercúleo para que não chorasse. Mais duas horas depois,
quando os revolucionários estavam a somente dois quilômetros da casa grande,
a tropa interrompeu a marcha. Era preciso certificar-se de que nenhuma
emboscada os aguardava. Novamente Jahnu Mahajan foi o batedor. Com exceção
da grande varanda, todas as luzes da casa estavam apagadas. O vaixá ainda
teve tempo de olhar com carinho na direção do quarto onde pensava estar
Olivia. De volta ao grupamento, relatou não ter notado nenhuma movimentação
estranha. Samarjit determinou então que o ataque começaria uma hora antes do
amanhecer.
A vegetação estava molhada pelo sereno da madrugada quando os rebeldes
chegaram. Por causa das armas de fogo da tropa inglesa, um confronto direto
seria suicídio. Era preciso pegá-los de surpresa, enquanto estivessem
dormindo. Silenciosos como uma serpente, os insurgentes cercaram a casa e o
acampamento que ficava na parte de trás. O plano principal era capturar o
major Wickert e o tenente Donalds e forçar uma rendição. Olivia estaria a
salvo no cômodo oculto. Aliás, essa não era a única passagem secreta. Havia
ainda mais três. E por elas Jahnu conduziria os combatentes. A primeira dava
acesso ao quarto principal – onde estava o comandante inglês; a segunda à
biblioteca e a terceira à cozinha. Dez homens foram destacados para penetrar
na casa e realizar os sequestros. O restante tomaria conta do acampamento.
Uma vez dentro, Samarjit - acompanhado de Amish - não teve problemas
com o comandante. Ele ainda estava de pijamas quando foi surpreendido. A
dificuldade dos outros rebeldes foi saber em qual dos quatro aposentos estava
o tenente, já que Jahnu tinha ido ao quarto de Olivia. Assim que entrou, o
vaixá viu o uniforme do militar pendurado na cabeceira da cama e a
possibilidade do que poderia ter acontecido lhe cegou de ciúme. Com um ríspido
movimento, puxou a coberta e para seu alívio, apenas Matthew dormia na cama.
Surpreso com a súbita invasão, o inglês sacou do revólver que tinha embaixo
do travesseiro e atirou na direção do indiano. O projétil pegou de raspão o
ombro direito e antes que o tenente pudesse fazer o segundo disparo, o poeta
atirou-se para cima dele. O tiro acordou o restante da tropa que dormia nas
barracas. Quando saíram foram surpreendidos pelos soldados rebeldes. A
batalha começou com baixas de ambos lados.
Durante a luta, a arma de Matthew caiu no chão e Jahnu a pegou
rapidamente. Ele não queria correr o risco de uma bala perdida atingir Olivia,
que supostamente estaria no cômodo secreto. Depois de dominar o inimigo, o
vaixá amarrou-lhe e o arrastou para os fundos da casa, onde o major Wickert
estava em poder de Samarjit. Ao ver os dois oficiais dominados, o restante da
tropa depôs as armas. A alegria dos indianos foi imensa pela primeira vitória.
Depois de todos os inimigos imobilizados, o poeta correu para dentro da casa
em busca de Olivia. Para sua decepção, não a encontrou no local combinado.
Como um louco, pegou a espada do pai, que ficava pendurada na parede da
biblioteca, e partiu em direção a Matthew. “Desgraçado! Onde ela está? Diga ou
eu te mato”, ameaçou com a lâmina no pescoço do rival. “Você pode me matar,
mas ela jamais será sua. Você não é digno dela. Você não passa de um selvagem”,
respondeu o tenente com um sorriso sarcástico. Tomado de ódio, Jahnu o golpeou
no rosto com o cabo da espada. “Você é muito corajoso, sudra. Especialmente
contra um inimigo desarmado e amarrado”. A insinuação de que era um covarde
feriu o orgulho do poeta. “Soltem esse miserável e lhe deem uma espada”.
No meio do terreiro, os homens se encararam furiosamente. Os primeiros
movimentos foram cautelosos até que as investidas mais fortes começaram. O
choque nervoso das armas soltava faíscas de fogo no ar. O duelo se estendeu
por longos minutos até que Jahnu atingiu o braço de Matthew e este deixou a
espada cair. “Vamos selvagem, acabe logo com isso”, gritou o inglês reconhecendo
a derrota. Como que em um coral sedento por sangue, os rebeldes bradavam:
“Mata! Mata! Mata!”. João Guilherme assistia a tudo em silêncio. Esta era a
segunda vez que via aquela situação. Em diferentes épocas, eram os mesmos
homens brigando pelo amor da mesma mulher. Antes do golpe fatal, a doce
recordação de Olivia veio ao coração de Jahnu Mahajan. “O amor e o perdão são
as forças mais poderosas do Universo”. Era a voz dela clamando para que ele
não permitisse que a alma fosse contaminada pelo ódio. “Prendam esse homem!”,
o vaixá limitou-se a dizer. Depois entrou na casa, agora novamente sua e,
depois de encontrar o quadro com a imagem do pai, pendurou-o de volta no
lugar devido. A primeira vitória havia sido alcançada. Contudo, o poeta não
estava feliz.
Ele entrou em seu quarto e era como se pudesse sentir ainda a energia
de Olivia. Penetrou no cômodo secreto e, desolado, raciocinou que muito
provavelmente ela tinha sido mandada de volta à Inglaterra. Viu-se então
diante de um dilema: tentar chegar à capital da província antes dela ou
continuar na luta pela libertação do país. O coração falou mais alto que a
obrigação. Depois de colocar Samarjit a par da decisão, Jahnu partiu
imediatamente. Forçando ao máximo o corcel negro que lhe servia de montaria,
foi em busca do grande amor. Por volta de meio-dia parou para dar água ao
cavalo e descansar um pouco. Em seguida, fez uma rápida refeição, limpou o
ferimento do ombro e pegou a estrada outra vez. No fim da tarde, chegou ao
destino. Vestido de acordo com sua verdadeira condição social e com uma
altíssima quantia de dinheiro que pegara no cofre instalado no cômodo secreto
do quarto, dirigiu-se até as docas para informar-se de embarcações com destino
à Europa. “O senhor está sem sorte. Hoje pela manhã um veleiro partiu para
Paris, Escócia e Londres”, informou um velho marujo. “E quando será o
próximo?”. “Este navio que está aportado aqui parte em no máximo quinze dias”,
informou o homem do mar. Mais uma vez, Jahnu Mahajan tinha de tomar uma
decisão: ou ficava e aguardava o navio ou voltava ao grupo de insurgentes. A
obrigação falou mais alto que o coração. Ele partiria na manhã seguinte.
Enquanto isso, procurou uma hospedaria e aproveitou para se inteirar das
notícias sobre os levantes que varriam a Índia. Na casa de chá não se falava
em outra coisa. “Essa situação precisa ser resolvida o mais rápido possível.
Ingleses e indianos podem conviver em perfeita harmonia. Nós estamos aqui
para ajudar”, discursou um senhor britânico. “Sim, esses rebeldes precisam
entender que ninguém pode impedir o progresso”, ratificou um vaixá. O diálogo,
surreal no entendimento do poeta, quase o fez perder a calma, mas ele controlou
a fleuma, pois sabia que qualquer atitude impensada poderia gerar suspeitas
e colocar tudo a perder.
João Guilherme ficou ainda mais um tempo na casa de chá depois que Jahnu
foi para o quarto. Ele também achava inaceitável aquela estranha
confraternização entre oprimido e opressor. Saindo para a rua, olhou para as
estrelas que lotavam o céu. Quanto mais olhava, mais se sentia conectado com
o Universo. “As estrelas são como o brilho dos olhos de nossos antepassados a
velar por nós”, exclamou um yogi sentado no canto da varanda da estalagem.
João surpreendeu-se pelo fato de ter sido notado pelo asceta. “Como o senhor
percebeu que eu estava aqui?”, espantou-se. “Estás a irradiar uma luz muito
forte”, respondeu o ancião sem abrir a boca e o jornalista compreendeu que ele
estava se comunicando via telepatia.
- Como está indo a vossa missão?
- Ainda estou confuso em relação a muitas coisas, mas tudo tem se
encaminhado bem.
- Como é o mundo no futuro?
- A humanidade passou um longo tempo como que adormecida e agora,
lentamente, começa a despertar. Estamos sendo abençoados por uma grande
abertura cósmica em nossa busca espiritual.
O yogi sorriu e completou: “É bom saber que nosso trabalho será bem
sucedido. Que o Augusto Pai Krishna lhe abençoe, meu filho”. Ainda sorrindo,
o ancião convidou-o para que meditassem juntos. João Guilherme achou o
convite gentil e aceitou. Sentado na posição correta e de olhos fechados, foi
envolvido por um sutil fluxo de energia que foi se intensificando até que
simplesmente perdeu os sentidos. Uma sensação de vazio e plenitude tomou conta
do professor. Ele tornara-se o tudo e o nada.
Com extrema dificuldade João Guilherme conseguiu abrir os olhos e foi
saudado pelo sorriso tímido da moça de olhos azuis. Não fosse pelos cabelos
pretos e pele morena, ele diria estar diante de Olivia, tamanha a semelhança.
A garota chorava muito. Por alguns instantes, os dois ficaram se olhando como
dois amigos que se reencontram depois de anos. Meio sem jeito, ela aproximou-
se e, dando um beijo no rosto do professor, disse um surpreendente “muito
obrigada”. João não conhecia aquela voz e tentou dizer alguma coisa, mas não
conseguiu. Segurando a mão direita do poeta, a jovem disse em tom sereno:
“Enfermeira, ele acordou!”
23
Jahnu Mahajan acordou decidido. Ele não podia ficar sem fazer nada
enquanto o país pegava fogo. Todavia, era preciso, primeiro, ir ter com Jay na
vila onde estava com a família e depois voltar à casa de seu pai. O próximo
passo seria engajar-se novamente na luta com o exército rebelde e só então
voltaria à província para pegar o navio que o levaria até os braços da amada.
Porém, por algum motivo que não conseguiu compreender, preferiu ficar mais
um dia na cidade. Na manhã seguinte, partiu bem cedo e horas depois chegou ao
vilarejo onde tudo começara. Embora a miséria fosse a mesma, o ar estava mais
pesado. Foi com desconforto que entrou nas ruas montado em seu cavalo de raça
e com vestes de nobre – o que atraiu os piores olhares para si. “A ostentação
era totalmente desnecessária”, pensou. Assim que chegou à choupana de Jay,
abraçou-o longamente. O sudra retribuiu o afeto, mas não conseguiu esconder
a aflição.
- Há algo errado, irmão?
- Venha comigo até a casa de meu pai - respondeu Jay secamente.
Vivek os esperava na porta do casebre. A notícia da chegada do vaixá
espalhara-se rapidamente. Ao recebê-lo, seu olhar foi de desdém por causa da
exagerada elegância. “Como você consegue vestir-se assim, enquanto morremos
de fome?” Ainda que não tenha dito com a boca, foi o que o ancião disse com os
olhos. “Namastê, Vivek Ji”, disse o filho de Sudhir Mahajan, meio sem jeito.
“Jahnu Ji, eu lhe disse que a nossa vitória não seria através da espada. Olho
por olho, dente por dente, e todos acabaremos cegos e banguelas. Hoje nossas
famílias choram a morte de seus varões. Ontem, depois de sufocar a movimento
revolucionário, os britânicos retomaram o controle da propriedade de vosso
pai. Depois, vieram aqui e, como lição a qualquer nova tentativa de
insurgência, mataram um filho de cada família. Somos pobres e miseráveis, sim,
mas ainda tínhamos uns aos outros. Esses moços morreram na flor da juventude.
Tudo que queriam era viver em paz; casar-se; ter um filho, ser feliz quem sabe.
Eles foram sacrificados para que você, Jahnu Mahajan, pudesse novamente
vestir suas roupas de seda e festejar a riqueza de vosso pai com banquetes.
Maldito sejas tu, imperialista sem coração. Tens as mãos manchadas para sempre
com o sangue do povo sudra. Eu sugiro que pegue o que conseguiu reaver de sua
fortuna e volte para a Inglaterra. Volte para o teu povo. A tua cabeça está a
prêmio e o tenente Matthew jurou não descansar enquanto não vos capturar e
qualquer um que lhe ajudar será punido com a morte. Em consideração a meu
filho, permitiremos que você parta. Vá e não volte”.
As palavras do ancião rasgaram a carne do poeta. Humilhado, sua alma
sangrava em via pública. Jahnu olhou em volta e entendeu que Vivek falava
por todos. O clima se tornara insustentável. Ainda assim, antes de sair, pediu
permissão para falar. Permissão concedida. “Meus irmãos, meu espírito está
profundamente abatido com tudo que ouvi. Humildemente, eu rogo – se possível
– perdão a todos a quem causei sofrimento. Vivek Ji está certo. Inicialmente,
todo o meu empenho nunca teve como objetivo a independência da nossa amada
mãe Índia. Eu fiz isso por meu pai. Pela minha família. Por mim. Mas assim
como é certo que Krishna derrama a Sua bondade e misericórdia sobre nós, foi
aqui que aprendi o significado da lealdade. Foi aqui que aprendi o valor da
amizade, da solidariedade e da cooperação. E, no meio dessa batalha, uma luz
brilhou-me na escuridão da alma. Descobri o amor de uma mulher e não
descansarei enquanto não reencontrá-la. Mas minha vida não terá sentido
enquanto a justiça não for feita e os ingleses sejam expulsos. É certo que
vossos filhos e meus companheiros rebeldes morreram, mas a morte, na luta
pela liberdade, é a mais nobre de todas. Nós viemos livres a este mundo e
livres devemos deixá-lo. Não lutar pela liberdade é desprezar o maior tesouro
que o Augusto Pai Brahma nos deu”.
Em seguida, Jahnu Mahajan tirou as roupas de luxo, ficando apenas com
a parte que lhe tapava a intimidade. Abrindo o alforje, pegou o suficiente
para comprar roupas comuns e pagar o navio que o levaria à Inglaterra.
Ajoelhando-se aos pés de Vivek, implorou, em lágrimas, que aceitasse o restante
como oferta para comprar comida ao povo. Como já acontecera antes, o ancião
percebeu sinceridade nas palavras do jovem e acatou o pedido. Depois, o ergueu
pelas mãos e o abençoou. Jay acompanhou o amigo e irmão até a saída do vilarejo
e, chegando lá, recomendou-lhe uma trilha segura. O abraço de despedida foi
demorado e sentido. Antes que o poeta partisse definitivamente, o sudra
passou-lhe o envelope com a carta que Olivia escrevera e que não tivera a
chance de entregar. O coração de Jahnu pulou de alegria, mas ele não leu a
correspondência de imediato. A intenção era fazê-lo com calma. Montou no
cavalo com ânimo revigorado e em pouco tempo era apenas um pequenino ponto
negro sob a luz do sol do meio-dia na estrada deserta.
“Príncipe,
Mais uma vez, o destino põe o nosso amor à prova. Meu pai determinou que
eu retornasse à Inglaterra o mais rápido possível. Estou escrevendo com
pressa, pois a qualquer momento podem entrar no quarto. Saiba, meu Romeu, que
nunca fui tão feliz em toda a minha vida quanto nos momentos em que passamos
juntos. Eu te esperarei sempre. Não importa o tempo. Assim que chegar a
Londres, irei todos os fins de tarde ao Palácio de Westminter, em frente ao
relógio Big Bem, e lá ficarei a contar os minutos para o nosso reencontro. A
felicidade há de nos sorrir. Por favor, não me deixe.
Com amor eterno,
Olivia
Jahnu leu e releu a pequena carta inúmeras vezes, até que memorizou cada
palavra. Com a alma renovada, saiu da pequena caverna natural, banhada por
uma pequena fresta de sol que lhe servira de lâmpada e continuou a viagem
sem demora. Quando estava quase chegando novamente à capital, deixou o cavalo
em um lugar seguro e entrou a pé na cidade. Depois de comprar roupas modestas,
voltou para buscar o corcel na intenção de vendê-lo. Foi preciso muita
habilidade para barganhar um bom preço. Estava tudo pronto para a partida.
O grande desafio, contudo, era permanecer incógnito durante os dez dias que
ainda faltavam para o próximo navio zarpar. Para tanto, não poderia instalar-
se em nenhuma hospedaria e nem demonstrar que tinha dinheiro. O tenente
Matthew deveria ter colocado agentes com a incumbência exclusiva de procurá-
lo. Sem saber o que fazer, entrou no primeiro templo que encontrou e ficou
meditando no meio da multidão de fiéis. Se pudesse, ficaria lá o tempo todo,
pois certamente os soldados britânicos não ousariam violar um lugar sagrado
para os hindus. “E por que não?”, raciocinou Jahnu. Então decidiu que não
faria outra coisa se não meditar e orar e só comeria o mínimo possível. Assim
foi. Todavia, no terceiro dia de vigília algo inesperado aconteceu. Vestido à
paisana e com a desculpa de querer conhecer os costumes locais, o temido oficial
inglês Matthew Donalds entrou na casa de oração. Jahnu Mahajan não o viu,
todavia sentiu sua presença. Já habituado à concentração, o poeta ficou ainda
mais imóvel, pois qualquer movimento, ainda que mínimo, o denunciaria.
Mentalmente o vaixá rogou pelo socorro de Krishna e abriu os olhos. A
princípio a oração pareceu não ter sido atendida. Muito pelo contrário, pois
o tenente estava a poucos metros. Jahnu pensou em se levantar e sair correndo,
mas João Guilherme soprou em seu ouvido: “Não se mexa! Fique exatamente onde
está!” O filho de Sudhir Mahajan obedeceu o que considerou ser o próprio
pensamento. Encarando o militar britânico, acendeu-se uma estranha suspeita
na mente. Por algum motivo de ordem sobrenatural, apesar de olhar diretamente
para o poeta, o tenente não o via. Era como se tivesse ficado invisível. E foi
o que de fato ocorreu. Aliviado, depois que o inglês saiu, Jahnu Mahajan passou
vários minutos agradecendo mentalmente a Krishna por mais esta bênção.
Por fim chegara o dia da partida. Novo problema. Havia um grupo de
soldados ingleses na plataforma de embarque. Para driblá-los, o vaixá não
pensou duas vezes, comprou trajes femininos e os vestiu. Ainda foi preciso
gastar um pouco mais das parcas economias para subornar o funcionário que
recolhia as passagens na entrada reservada à classe econômica para não checar
seus documentos. Finalmente a bordo, Jahnu aguardava ansiosamente pela
partida. Quando a âncora foi içada, de uma tonelada, sua alma passou a pesar
um grama - tamanho o alívio. Em alto mar livrou-se das roupas de mulher e
ao olhar para o imenso tapete azul que se estendia em todas as direções, chorou
de saudade dos olhos de Olivia. Ao lado do indiano, João Guilherme sentia a
mesma saudade. A diferença era que Jahnu tinha estado com ela no plano físico
e ele não. O dia tinha sido cheio. Era preciso descansar um pouco. Os poetas
voltaram à cabine e dormiram.
“Olá, João”. Acordado dentro do sonho, o jornalista olhou para o lado e
com o coração feliz, viu Eleanor. “Meu irmão, é chegada a hora de algumas
respostas. Feche os olhos e venha comigo, por gentileza”, disse ela com o tom
carinhoso de sempre. O professor obedeceu à orientação e quando abriu os olhos,
estava de volta à chácara onde morava. Espíritos saídos das sombras da noite,
como velhos amigos, vieram lhe saudar.
João e Eleanor pararam em frente à casa do professor. Embora densa,
havia brechas na vegetação que permitiam contemplar o céu enluarado e
estrelado. Inúmeras vezes o poeta tinha passado um bom tempo ali a olhar para
o fino e negro véu da noite. Nem a moto e nem a rede estavam na varanda e a
janela estava aberta. Entrando na sala, João Guilherme surpreendeu-se com
tamanha arrumação. O ambiente estava limpinho e ordenado. As centenas de
livros; os CDs e DVDs; revistas, hinários da doutrina e algumas peças de
artesanato. Estava tudo na estante. O espanto explica-se pelo fato de que, por
mais que tentasse, o professor nunca sido um homem exatamente organizado,
muito embora tivesse progredido bastante. A mentora sentou-se na cadeira de
palha e João Guilherme na poltrona de veludo. Como sempre costumava fazer,
estendeu os pés no banquinho almofadado. Percebendo a grosseria perante uma
senhorita, recolheu-os. “Fique à vontade, amado irmão”. João olhou para as
paredes brancas chapiscadas e, como já ocorrera muitas vezes, viu desenhos que
lembravam figuras humanas e símbolos parecidos com sânscrito e hieróglifos
egípcios. Por trás do sofá onde sentara, primeiro veio Wicca. Depois Orfeu
surgiu do corredor que levava ao quarto. Eles miaram como que a saudar o
companheiro de residência e subiram na poltrona, naquele vai e vem típico.
Contente por rever os gatos, o jornalista lamentou não poder fazer-lhes
cafuné como tanto gostavam. Em seguida, foi até o escritório, sempre seguido
pelos bichanos, onde mantinha um altar com pequenas estátuas de São Miguel
Arcanjo, Buda, Jesus Cristo, Nossa Senhora da Conceição e uma foto de Mestre
Irineu. A estrela de fardado, o maracá indígena e o pequeno cruzeiro de
madeira também estavam lá. Como sempre, havia uma vela de sete dias acesa.
Após fazer o sinal da cruz, rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria. Finalmente o
grande momento chegara. Ele entraria e veria seu corpo em estado de sono
profundo. No quarto, tudo estava perfeitamente arrumado. O laptop, placa de
som externa e os microfones sobre a escrivaninha cor de verniz. A cadeira
giratória; o umidificador de ar; o suporte de madeira para roupas, o
ventilador em cima da mesinha de madeira e a imagem de Jesus Cristo
trabalhada em uma telha e com uma joia vermelha no lugar do coração,
pendurada à parede por um barbante. Como foi dito, tudo estava em seu devido
lugar – menos o corpo de João Guilherme sobre a cama impecavelmente feita.
Foi quando Eleanor interveio. “Querido, deite-se na posição de projeção
astral”. Cumprindo a solicitação, colocou-se de barriga para cima, com as
pernas levemente afastadas e os braços estendidos ao lado do corpo com as mãos
ligeiramente abertas. Amparado pelo espírito de luz, o jornalista caiu em sono
profundo.
O solavanco da moto na estrada de chão batido despertou João. Sonolento,
sabia que era uma temeridade andar naquelas condições depois do anoitecer. A
passagem pela cachoeira tinha sido mais longa do que o planejado e sem
equipamento de camping, não seria possível passar a noite lá e ele também
tinha tomado Daime. A solução era rodar os cerca de dez quilômetros de volta
à cidade de Chapada dos Guimarães para o conforto do hotel. Habituado a
pilotar por aquela rota, não estranhou de imediato o carro parado à beira da
estrada. Muitas pessoas deixavam o veículo assim enquanto pegavam alguma
trilha. Ele só se deteve quando, ao passar do lado, notou um movimento suspeito.
A primeira impressão foi de que um casal mais afoito se divertia ali mesmo. O
grito de socorro foi quase inaudível. Imediatamente o poeta deu meia-volta,
desceu da moto preta, tirou o capacete prateado e aproveitando o farol alto
da Shadow 750 como lanterna, encostou o rosto no vidro do automóvel. Não
poderia haver erro. A moça estava sendo violentada. Seus gritos de desespero
eram sufocados pela mão do estuprador. João Guilherme abriu a porta e puxando
o homem pela camisa, o tirou do carro. Os dois rolaram na terra vermelha e a
garota imediatamente trancou as portas. Em pânico, tentou dar partida e não
conseguiu. O primeiro tiro ricocheteou no capacete e perdeu-se na mata. Quando
foi tentado o segundo disparo, a arma falhou. Tempo suficiente para que João
partisse para cima do homem e o acertasse no rosto. O golpe fez com que o
agressor deixasse cair o revólver calibre trinta e oito. O poeta o pegou e
apontou. “O amor e o perdão são as forças mais poderosas do universo”, foi o
que disse a voz feminina em sua cabeça. João Guilherme hesitou. Com a pistola
segura pela mão direita apontada para o malfeitor, com a esquerda tentou
alcançar o celular no bolso da frente da calça jeans para chamar a polícia.
Esse lapso foi tempo suficiente para que um segundo homem, escondido atrás do
carro, viesse pelas costas e disparasse duas vezes contra o jornalista. Ainda
haveria um terceiro tiro não fosse pela aparição providencial de mais um
carro com as luzes altas – o que fez os homens fugirem.
“É o professor João Guilherme!”, constatou com espanto o rapaz que
ofereceu o primeiro socorro e o colocou imediatamente no carro. O amigo que
estava junto pegou a direção do automóvel da moça – ainda em estado de choque.
Embora receba centenas de turistas aos fins de semana, Chapada dos Guimarães
carece de um posto de saúde equipado para aquele tipo de situação. Havia duas
alternativas: seguir mais 67 quilômetros para Campo Verde ou voltar 64 para
Cuiabá. A polícia preferiu a segunda opção. Os rapazes ficaram detidos para
prestar depoimento e a garota foi encaminhada para receber atendimento
médico. A sirene estridente da ambulância abriu caminho no perímetro da
cidade, enquanto o movimento ainda era intenso naquela noite de sábado. Dentro
da unidade móvel de saúde, Eleanor segurava a mão do poeta. Pela primeira
vez, em muitos anos, ela não demonstrava calma. Aquele acontecimento não fazia
parte dos eventos planejados pelo astral para João Guilherme Ribeiro. “O que
teria saído errado?”, pensou. Quando chegou ao Pronto Socorro de Cuiabá, o
paciente recebeu o primeiro atendimento, mas sem vagas na unidade de
tratamento intensivo, teve de aguardar no box, respirando com dificuldade
entre a vida e a morte. “Ele tem que ser levado para a UTI de um hospital
particular urgente”, explicou a plantonista ao enfermeiro. Dizendo isso, a
médica esforçou-se para segurar uma lágrima, já que ela mesma tenha sido
aluna de João durante o ensino médio. “Aguenta firme professor. Ainda não
está na hora de dizer good bye”, falou ela imitando a despedida que ele sempre
fazia ao final das aulas, esticando ao máximo a palavra “good”. Ao vasculharem
a carteira do poeta, não foi encontrado nenhum cartão de saúde. “Menino
cabeçudo! Quantas milhões de vezes eu já não te disse para comprar um plano?”,
esbravejou Eleanor. “Pegue o celular dele e ligue para o Luiz. É tio dele. Está
registrado como ‘titio’”, gritou a mentora espiritual na mente da médica.
Intuitivamente, a profissional pegou o aparelho e passando nervosamente pelos
contatos, procurou por algum nome que sugerisse parentesco. Já quase no final,
viu o “titio”. Luis demorou a atender e quando atendeu, o fez do modo
brincalhão de sempre: “Faaala negrão!” A médica pediu pela identificação do
interlocutor. “Aqui é o Luiz Mariano Ribeiro. Do que se trata, por favor?”,
perguntou apreensivo, como se prevendo algo trágico com o sobrinho. “Senhor
Luiz, meu nome é Karina Vittori. Sou médica da unidade de emergência do
Pronto Socorro e João Guilherme Ribeiro acabou de dar entrada. O senhor é
parente dele?”, questionou tentando aparentar calma.
- Sim, sim. Eu sou tio dele. O que aconteceu?
- Ele levou dois tiros nas costas. A situação é crítica. Ele precisa ser
removido imediatamente para uma UTI e infelizmente nós não temos nenhuma
vaga.
- Como assim, levou dois tiros? Isso é algum trote?
- Claro que não. É melhor o senhor vir para cá imediatamente. Cada
segundo é precioso. Aqui conversaremos melhor.
Eleanor tinha escolhido Luiz por se tratar do parente com mais condições
de ajudar. Os pais adotivos de João - idosos e doentes - poderiam ter um choque
fatal caso fossem avisados de imediato. Como o próprio poeta costumava brincar
“ele era mundialmente famoso em Cuiabá”. Quando o tio chegou, fez um
telefonema, que foi sendo replicado até que a vaga na UTI de um hospital
particular fosse conseguida. Como João Guilherme perdera muito sangue quando
vinha de Chapada, era preciso conseguir a maior quantidade possível de
doadores. Ciente do alarde que causaria e que fatalmente a família acabaria
sendo informada, Luiz publicou o apelo em uma rede social da internet – que
rapidamente foi sendo repassado a frente. Em pouco tempo, dezenas de pessoas
chegaram à recepção do hospital. A fatalidade também acabou chegando aos sites
de notícia. Agora não eram mais apenas doadores, mas uma pequena multidão
que trancava o trânsito na porta do hospital querendo saber notícias do poeta,
professor e jornalista e correntes de oração foram formadas. Luciana, a
sobrinha de João, leu a postagem e contou à mãe – que achou melhor não dizer
nada aos pais.
No leito da sala fria e levemente iluminada, João Guilherme dormia
profundamente. No seu lado direito, estava Eleanor. Na cabeceira estavam
Antonio, o buscador espiritual com quem fizera o curso de projeção astral pela
primeira vez – ainda encarnado e desdobrado - e Luisa, sua mãe biológica – já
falecida. No seu lado esquerdo, estava Olivia. Todos tinham os olhos fechados
e das mãos saíam feixes de energia que penetravam no corpo de João e o
mantinham vivo. De repente, o coração do poeta parou de bater e um espectro
surgiu flutuando sobre ele. A figura fúnebre causou desespero em Olivia e
Eleanor. Sabedoras que seria inútil qualquer rogo ao anjo da morte, clamaram
ao Cristo. O professor não podia morrer. Não naquele dia. Muitas coisas
precisavam ser reparadas. Os olhos azuis de Olivia se elevaram aos céus e
afogada em lágrimas, orou: “Ó Mestre amado, vós que sois a luz do mundo, atendei
a minha prece. O Senhor mesmo disse que aquele que der a vida pelo seu irmão,
ganha-la-á. Foi o que fez o meu príncipe. Ele ainda não está pronto para
desencarnar. Se ele não voltar à matéria e cumprir sua missão, nós nunca
ficaremos juntos e minha existência não terá mais sentido. Ainda há um sopro
de vida em seu coração. Pelo amor da Virgem Mãe, eu imploro Senhor, dê-lhe
mais uma chance”. Assim que a alma gêmea do poeta terminou de falar, uma
rajada de luz violeta clareou toda a sala e quando se desfez, o espectro havia
desaparecido e João voltou a respirar. Olivia e Eleanor choravam de alegria
e não paravam de agradecer pela misericórdia divina.
Encerrada a regressão de volta à chácara, como quem desperta assustado
de um sonho ruim, João Guilherme abriu os olhos e compreendeu o que se passara.
Finalmente lhe era revelado porque a memória curta tinha sido eliminada e
ele conseguira projeções astrais tão intensas. Ao seu lado, ternamente, Eleanor
se antecipava ao pedido que iria fazer: “Sinto muito, João, mas você não pode
ir ao hospital onde está internado. Ver o teu corpo poderia agravar-lhe o
estado de saúde. As coisas estão caminhando bem. Tenha um pouco mais de
paciência, amado irmão. Em alguns dias você e Olivia se encontrarão e uma
revelação maravilhosa será feita”.
- Alguns dias? Por que não pode ser hoje mesmo?
- Aquieta o coração, menino poeta. O teu psicossoma está debilitado. Agora
é hora de descansar. Antes mesmo que a mentora espiritual concluísse a fala,
João Guilherme caiu em sono profundo.
24
Os macaquinhos da chácara faziam sua algazarra de todas as manhãs, os
passarinhos revezavam-se no canto solo e uma imensa trilha de formigas
formava-se no chão molhado pela fina chuva que caíra durante a madrugada
quando João Guilherme despertou do sono astral – ainda em estado de projeção.
Por mais que tentasse, não conseguia parar de pensar no que lhe ocorrera, pois
nunca cogitara a possibilidade de ser baleado. “E quem pensa uma coisa dessas?”,
perguntou Eleanor, que acabara de surgir ao seu lado. “Bom dia pra você
também”, brincou o poeta refazendo-se do susto. “Bom dia, moço apaixonado”.
- Eleanor, minha amada irmã, responda-me com sinceridade, eu vou
sobreviver?
- Vai sim, irmãozinho. Ou já se esqueceu do que viu nos olhos da morte
quando amparou a passagem daquela pessoa querida?
E João lembrou-se da revelação de como seria seu fim na matéria. E era
bem diferente de morrer vítima de dois tiros.
- O homem que atirou em mim era Savério e Matthew, não é mesmo?
- Sim, o ódio dele por você não tem limites.
- E quem era a moça que vi quando acordei no hospital?
- Eu até poderia dizer, mas prefiro deixar que Olivia mesma lhe conte.
- E onde está ela?
- Você não aprende mesmo, hein?
- Como assim?
- Preste atenção, João-cabeça-de-melão! Apenas pense nela e ela estará
aqui. Lembra que você leu que é possível conjurar o espírito de uma pessoa,
mesmo que ela esteja encarnada? Pois é, isso está correto. Olivia também tem
experimentado projeções astrais no mesmo nível que você. Fisicamente vocês
estão longe um do outro, mas sua alma e a dela estão permanentemente ligadas
e se reencontram frequentemente no plano astral, ainda que nenhum de vocês
se lembre disso quando acordam. A única coisa que fica é aquela sensação de
que existe alguém especial no Universo esperando por vocês. Ela também está
agoniada a sua procura no plano físico, muito embora não saiba quem você é ou
onde está. A minha missão é aproximá-los na Terra e para que nenhum dos dois
desanime e acabe casando com outra pessoa, eu levo você até ela ou vice-versa,
enquanto dormem.
João ficou olhando para sua mentora e comoveu-se de existir alguém com
tamanho amor ao próximo no coração. “Maninha, em breve você vai me deixar,
não vai?”, perguntou o poeta, trocando o sorriso por uma lágrima. “Sim, João
Guilherme Ribeiro. Eu e os outros vamos nos afastar por um tempo para que
você se torne independente, para que aprenda a andar com as próprias pernas.
E você deverá evitar nos chamar. Creia-me, irmão, isso será tão doloroso pra
você quanto para nós”. Em seguida, tomou as mãos do poeta e desta vez foi ela
quem chorou copiosamente. “A tua felicidade e de Olivia é a coisa mais
importante do mundo para mim”, disse afogada em lágrimas. “Oh minha querida,
você é a alma mais bondosa que já encontrei em toda a vida”, disse o professor
a abraçando.
- Você nem imagina o quanto me deixa feliz dizendo isso, João. Mas chegou
o momento que espero há mais de duzentos anos terrestres. Eu preciso que você
me perdoe, amado irmão.
- Eu te perdoar? Do que você está falando, Eleanor?
Ela fez uma longa pausa e olhando nos olhos do jornalista disse: “Sim,
perdoar. Perdoar por tê-lo impedido de ser feliz”. Diante do olhar atônito de
João Guilherme, prosseguiu: “É muito vergonhoso o que vou lhe mostrar agora.
E por causa desse pecado, fui expulsa de casa pelo meu pai e severamente
castigada pelos espíritos superiores quando desencarnei. Feche os olhos,
querido”. João fechou.
Fazia muito frio na manhã em que o navio que Jahnu viajava atracou no
Porto de Londres, depois de quase um mês de viagem. Com pouco dinheiro para
comida e hospedagem, decidiu procurar o casal Gary e Sophia Stewart – o mesmo
que lhe recebera durante a época de estudante. Quando bateu à porta dos amigos,
foi recebido com um misto de alegria e de surpresa. Tanto pelo fato de estar
vestido de forma humilde quanto por ter voltado tão pouco tempo depois de
partir. Após vestir roupas mais apropriadas ao clima e alimentar-se, narrou
toda a saga. Solidários, Gary e Sophia prometeram ajudar-lhe. Jahnu ainda
tinha muito tempo antes do horário que Olivia prometera esperá-lo no Palácio
de Westminter, em frente ao Big Ben, e aproveitou para sair e comprar-lhe
uma joia de presente. Em seguida foi a uma livraria e comprou um lindo caderno
com capa de couro para escrever as poesias que dedicaria a sua musa. A
tranquilidade das pessoas passeando pelas ruas da metrópole nem de longe
combinava com o estado de sítio da colônia ocupada. E Jahnu Mahajan sentiu
vergonha de si mesmo por ter estado tanto tempo alienado.
Por fim, as paredes do tempo do Big Ben marcaram cinco horas. O poeta
escolheu um banco que ficava bem de frente para o cartão postal londrino e
pôs-se a esperar. A cada novo rosto desconhecido que passava, aumentava sua
angústia. “O senhor aprecia Shakespeare?” A pergunta era inusitada, mas a voz
era inconfundível. Quando Jahnu virou o rosto para confirmar a suspeita, foi
como se uma faca afiada lhe atravessasse o coração. Sim, era o tenente Matthew
que viera no lugar de Olivia. Se não estivesse sentado, o poeta teria caído
por causa da falta de ar que lhe acometeu. Com toda a tranquilidade do mundo,
o oficial britânico sentou-se ao seu lado, como um velho amigo.
- Então você realmente pensou que podia me vencer, sudra imundo? Não,
não, nem pense em se levantar. Há quatro homens prontos a agir sob meu
comando, caso você tente alguma coisa. Você só pode ser de outro planeta por
achar que poderia casar-se com Olivia. Eu já te falei, selvagem! Aprenda de
uma vez por todas: você não é digno dela. E por falar nela, olha quem vem
chegando.
Olivia só percebeu a situação quando estava bem próxima dos dois homens
que lutavam pelo seu amor. Com um sorriso de sarcasmo, Matthew convidou a
donzela para também sentar-se. No meio dos dois amantes, continuou com a
ironia: “Não é de partir o coração ver um casalzinho tão apaixonado sendo
obrigado a se separar para sempre?” Jahnu olhou para o tenente como que a
perguntar como ele descobrira tudo. Percebendo a dúvida, o tenente disse: “É,
Shakespeare indiano, você deveria ter mais cuidado ao dizer não a uma mulher.
Uma mulher desprezada pode tornar-se vingativa. Ainda mais uma sudra”.
Depois com um gesto de cabeça, deu sinal para que os soldados à paisana se
aproximassem e o prendessem. “Matthew, eu faço o que você quiser. Eu me caso
com você, mas não faça nenhum mal a Jahnu”, rogou Olivia entre lágrimas.
“Ora, minha noiva, tão certo quanto o sol está para se por em alguns minutos,
você será a minha esposa - quer queira, quer não. E você, animal imundo, será
decapitado por crime contra a Coroa”, falou cheio de contentamento. Antes de
ser levado, Jahnu Mahajan deixou cair propositalmente os presentes que havia
comprado e olhando nos olhos de seu amor, disse com tranquilidade e ternura:
“Nós sempre estaremos juntos, minha estrela matutina. Mesmo que eu morra mil
vezes, mil vezes eu voltarei para lhe procurar. Nosso destino é passar a
eternidade juntos. Eu amo você”.
Assim que Jahnu foi colocado na carruagem, sem que o tenente percebesse,
Olivia pegou os embrulhos que tinham ficado no chão. Depois de dar ordens ao
cocheiro, o ex-noivo veio e, como se nada tivesse acontecido, ofereceu o braço
como que a convidando para passear. “Afaste-se de mim, canalha”, gritou,
chamando a atenção dos transeuntes. O militar apenas sorriu cinicamente e
continuou a caminhar tranquilamente.
Livre da incômoda companhia, Olivia correu para casa. Ela não podia
perder tempo. Era preciso interceder junto ao pai pela vida do homem que
amava. “Minha filha, o que me pedes é inaceitável. Esse rapaz liderou um bando
rebelde contra a Coroa britânica. Sua punição deve ser vista como exemplo a
todos que ousarem desafiar o poder de Vossa Majestade”, foi a resposta que
ouviu. Quando entrou em seu quarto, a donzela tinha toda a dor do mundo no
coração. Aos prantos e em desespero, resolveu rezar a Krishna, o deus hindu
que seu Romeu tanto adorava. “Ó Lorde Krishna, eu vos imploro pela vida de
vosso filho. Não permita que nada de mal lhe aconteça. Permita que eu e Jahnu
possamos ser felizes juntos nesta ou em outra vida”. Ao terminar a oração, a
senhorita caiu em um sono profundo. Horas mais tarde, abriu os olhos e
assustou-se por não estar mais no quarto. Já era dia novamente e ela estava
no meio da multidão que fora assistir em praça pública a execução do
insurgente indiano. Ela entrou em pânico quando viu o poeta sendo conduzido
ao cadafalso onde o carrasco o aguardava e correu em sua direção. A pressa
era tanta que nem reparou que atravessava o corpo das pessoas que gritavam
“morte ao traidor! Morte ao traidor!”
Quando a cabeça de Jahnu foi encaixada na guilhotina, Olivia tentou
ampará-la. Foi só aí que percebeu que isso não era possível. Mas se não podia
tocá-lo, ninguém a impediria de falar. “Meu amor, meu príncipe, meu Romeu. Eu
estou aqui do teu lado. Seja forte. Tenha coragem. Mostre a eles que estão
diante de um homem que não teve medo de lutar pelo que acreditava. Um homem
que não teve medo de amar. Um homem com coragem suficiente para dar as costas
ao mundo. Eu sempre estarei contigo. Como você mesmo disse, nosso destino é
passarmos a eternidade juntos. Eu amo você”. Inspirado pelas palavras de sua
alma gêmea, o vaixá encarou a turba hostil e bradou com toda a força: “A
tirania não durará para sempre. A Mãe Índia será livre outra vez. O amor
vencerá o ódio. Olívia, eu amo você!” No mesmo instante em que Jahnu fechava
os olhos para a vida, a donzela abria os seus, desperta do que julgava ter sido
um terrível pesadelo. Ao olhar pela janela e ver a multidão dispersando, ela
soube, para seu profundo pesar, que tinha estado em espírito ao lado de seu
príncipe no momento da morte.
Um mês se passara desde a execução do poeta e Olivia ainda se recusava a
sair do quarto e mal tocava na comida. Até que o pai resolveu dar um basta. A
primeira providência foi chamar um médico para ver até que ponto a falta de
alimentação adequada lhe havia afetado a saúde. O doutor Henry Muller
assistia a família há quase trinta anos. Quando foi recebido, primeiro falou
a Olivia como um velho amigo e emocionou-se com a história que ouviu da boca
da menina que havia trazido ao mundo. Somente então a examinou. Foi quando
ficou tomado pela aflição e decidiu que, antes de dizer qualquer coisa à
donzela, deveria conversar imediatamente com o pai.
O major Wickert relutou muito em acreditar que a filha pudesse estar
grávida e, para piorar, ao que tudo indicava, de um indiano que acabara de
ser executado por traição. E agora? Como ficaria a sua imagem perante a
sociedade? A carreira militar? E o casamento de sua herdeira com o tenente
Matthew? Depois de breve ponderação, escolheu o caminho previsível para um
homem mais preocupado consigo mesmo do que com a filha. Usando todos os
eufemismos que conseguiu juntar, questionou o médico quanto a viabilidade de
uma “solução alternativa” para a situação. Ninguém precisaria ficar sabendo,
nem mesmo Matthew. “Embora a saúde dela esteja debilitada, o melhor momento
para a solução alternativa é agora”, respondeu o doutor Henry.
“Não se atreva a fazer alguma coisa contra a minha vontade. Eu vou ter
esse filho, o senhor aprovando ou não”, desafiou Olivia ao ser colocada a par
da notícia da qual já desconfiava. No fundo, havia mais alegria do que rebeldia
em sua voz. Krishna havia lhe ouvido a prece. Jahnu ainda estava vivo dentro
dela. “Aqui nesta casa não viverá o filho bastardo de um selvagem”, decretou
o pai. “Pois que assim seja. Eu saio”, revoltou-se a filha.
- E como você pretende ter essa criança? Onde vai morar?
- Krishna não há de me deixar desamparada.
- Krish... quem?
No outro dia cedo, Olivia fez uma pequena mala, pegou as economias, a
caixa de joias que herdara da mãe e, antes de sair, disse ao major Wickert:
“Meu pai, eu tenho aprendido que o amor e o perdão são as forças mais poderosas
do Universo. Eu te amo muito e sempre serei grata por todo o amor, carinho e
cuidado que o senhor me dispensou, especialmente após a morte de mamãe. Peço
perdão pelas vezes em que lhe faltei como filha, mas não posso pedir perdão
por esperar um filho do homem que amo. O que houve entre Jahnu e mim foi um
presente divino. Saio desta casa com o coração entristecido, porém certa de
que esta é a melhor coisa a ser feita. Serás muito bem-vindo o dia em que
quiseres conhecer o teu neto”. Disse isso e beijou a mão do pai, rogando-lhe a
benção, que não veio, e saiu sem dizer mais nada.
Com o dinheiro da venda dos colares, brincos, anéis, pulseiras e
braceletes, a futura mamãe alugou uma parte da casa do senhor e da senhora
Stewart, onde pretendia dar aulas de piano, a única coisa que pegaria do
antigo lar. Quando o instrumento chegou, imediatamente colocou a plaquinha
de aulas particulares na porta da rua. A primeira aluna foi justamente a
dona da casa. Logo de cara, a relação professora/aluna extrapolou para uma
grande amizade. E quando não era mais possível esconder a condição de
gestante, Olivia resolveu contar-lhe toda a história. Mulher madura, Sophia
compreendeu que havia sido usada por Deus para amparar a amada do rapaz
indiano que adorava como um filho, quando este também morou debaixo de seu
teto. As duas amigas choraram muito ao perceber que não tinha sido
coincidência suas vidas se cruzarem e a professora de piano mostrou à amiga
o poema com que Jahnu havia lhe presenteado.
João Guilherme abriu os olhos e ao olhar para Eleanor, por uma fração
de segundos, viu Lalita. A mentora espiritual ficou em silêncio como a esperar
alguma palavra de repreensão. Calma e ternamente, o poeta beijou-lhe as mãos
e a testa. “O amor e o perdão são as forças mais poderosas do Universo, minha
amada irmã. Eu é que peço perdão por ter sido insensível aos teus sentimentos
e tê-la tratado com frieza. E agradeço do fundo do coração por todo amor,
paciência e amizade que você tão abnegadamente tem me dispensado por todos
esses anos”. Disse isso e a abraçou forte. Depois choraram juntos por longos
minutos.
O professor quase não acreditou quando Eleanor disse que estava na hora
de partir e que eles não se veriam mais por um longo tempo.
- E para onde você irá agora?
- Vou reencarnar.
- Onde?
- Não sei. Depois da Índia, eu encarnei por um breve período na África
do Sul e a próxima ainda está em aberto.
- É verdade que são os filhos que escolhem quem serão os seus pais?
- Totalmente!
- Já tem alguém em mente?
- Digamos que sim.
Depois da insinuação e antes que João pudesse emendar mais uma pergunta,
Eleanor sorriu e o abraçou mais uma vez. Em seguida, passou lentamente por
um portal de luz verde-claro que se formou diante dela até sumir
completamente. Sozinho, o jornalista olhou para baixo e viu seu planeta natal.
“Sim Yuri, a Terra é azul”, pensou em voz alta. Ele ficou olhando para aquele
pequeno ponto no universo e foi tomado por uma imensa onda de amor. Em
seguida, notou que milhares de pequenos feixes de luz alaranjados viajavam
em direção à Terra. E então, de dentro dele também, saiu uma luz da mesma cor
e fez igual trajeto. Aquele fluxo de energia foi envolvendo o psicossoma do
poeta, até que ele adormeceu completamente.
25
O lugar era uma espécie de santuário. Havia muitas velas acesas, flores
e estátuas. Centenas de pessoas, quase todas vestidas de branco, rezavam de
joelhos. Foi lá que João Guilherme descobriu-se, quando abriu os olhos. Com a
alma repleta de paz, o poeta ouviu um coral, como de monges beneditinos, a
entoar o Agnus Dei em latim. A cabeça começou a girar no ritmo compassado do
hino e ele pensou que perderia os sentidos. Mas, ao contrário, seu estado de
presença aumentou ainda mais. Era como se a música tivesse se convertido em
sangue e agora lhe corresse por todo o corpo. Junto com o coral, João ouvia
vozes a orar o Pai Nosso, a Ave Maria e tantas outras preces. E ouviu também
o próprio nome sendo repetido inúmeras vezes, algumas em meio a lágrimas. E
o corpo do jornalista foi suspenso no ar e lentamente conduzido de volta à
Terra. “João Guilherme, você consegue me ouvir?”, o professor escutou, sem
identificar a direção de onde partira a pergunta. O mesmo questionamento
ainda foi repetido por mais duas vezes até que se desse conta de que estava
definitivamente de volta ao corpo físico. Havia uma máscara de oxigênio em
sua boca e inúmeros fios conectados nos braços e tórax. “Seja bem-vindo de
volta, meu amigo. Parabéns! Você é um vencedor!”, disse o médico com satisfação.
O jornalista sorriu com humildade. Logo em seguida, alguns parentes e amigos
mais próximos vieram comemorar a saída do estado de coma.
Por mais que estivesse feliz por tudo que ocorrera e grato pelo carinho
das pessoas que estavam à volta, ainda pairavam muitas dúvidas na cabeça de
João. Sem Eleanor por perto, as coisas ficariam um pouco mais difíceis. Quando
todos saíram da sala, o professor decidiu concentrar-se para uma projeção
voluntária. Foi só fechar os olhos que sentiu o corpo astral se descolando.
Projetado, antes de deixar a sala de UTI, foi a cada um dos outros cinco leitos
e passou alguns minutos dando passes energéticos nos companheiros pacientes.
Quando terminou, esticou o corpo para cima e saiu volitando do lugar. O céu
estava especialmente iluminado naquela noite e ele espalhava felicidade pela
amada cidade. Depois de percorrer diversos bairros, resolveu ir à igreja do
Santo Daime que frequentava. Surpresa agradabilíssima, era dia de bailado.
Todos estavam em seu devido lugar, nos lados dos batalhões masculino e
feminino. O hinário daquela noite era “O Cruzeiro”, do Mestre Irineu. João
sentou-se em um dos dois bancos de madeira, fora da corrente. Ainda que já
tivesse cantado muitas vezes aqueles hinos, cada um deles trazia um novo
ensinamento à medida em que era vocalizado. Antes de sair, o professor olhou
com amor para os irmãos fardados e desejou-lhes um bom trabalho.
Do lado de fora da igreja, o jornalista pensou em Olivia e ao dizer
mentalmente seu nome, perdeu os sentidos. João foi despertado pelo leve toque
dos dedos da amada em seus cabelos. Ela solfejava docemente o Gayatri mantra.
Ao abrir os olhos, viu-se deitado com a cabeça sobre o regaço da alma gêmea.
Eles estavam sobre a grande pedra da clareira e a sensação era a de que
despertara de um sono de duzentos anos. A menina dos olhos azuis de Olivia
movimentava-se com a graça das sereias que dançam sobre as ondas do mar em
volta da rainha Iemanjá. Os amantes se olharam com paixão. João Guilherme
ajeitou-se e tomando a mulher nos braços, levou sua boca à boca dela. O beijo
começou de forma ingênua, infantil até. Antigas emoções foram reacesas e agora
seus lábios tocavam-se com a fúria de um maremoto. Sem pressa, como o
agricultor que sabe o momento correto de colher o fruto da terra, o poeta
gentilmente começou a despir sua Julieta. O fluxo intenso e vibrante do sangue
correndo nas veias emprestava um tom escarlate ao corpo de Olivia. Ela o
beijou novamente e com a gentileza típica das mulheres apaixonadas, tirou-
lhe a roupa. Quando se abraçaram, seus corpos eram como duas chamas
flamejantes a arderem em uma fogueira a iluminar a noite escura. Olivia
soltou um leve suspiro de êxtase quando o poeta beijou-lhe a intimidade, que
abriu-se com a delicadeza da rosa ansiosa pela chegada da abelha. Quando João
penetrou no santuário dela, foi como se tivesse sido recebido pela própria
deusa do amor e suas quintessências tornaram-se uma só.
Jahnu e Olivia, João Maria e Amparo, João Guilherme e Olivia. No momento
mesmo do gozo, eles eram todos e nenhum. Após o silêncio cúmplice do momento
do depois, os namorados astrais levantaram-se e foram banhar-se nas águas
cristalinas do irmão riacho. Em seguida, sentaram-se novamente na grande
pedra. Seus corpos ainda estavam nus e neles havia a pureza do amor inocente
de Adão e Eva. Passado um tempo, a voz do professor juntou-se ao canto dos
pássaros. “Meu amor, onde poderei encontrá-la na Terra?”, perguntou qualquer
coisa aflito. “Príncipe, não tenhas pressa. Até aqui nos tem ajudado o Senhor.
Apenas espera e confia. No momento certo, nem antes e nem depois, tal qual no
poema, a Terra girará em torno de si mesma e dentro de nós e nos unirá”.
- Nesta encarnação teu nome ainda é Olivia?
- Não, amado meu. Eu não tenho autorização para dizê-lo agora, mas quando
ouvi-lo, saberás que sou eu.
- Há algo que eu possa fazer para apressar nosso encontro?
Diante da insistência de João Guilherme, Olivia sorriu e o beijou no
rosto.
- Meu menino poeta, sempre tão afoito... Mas há algo que podes fazer sim.
Lance uma luz para o Universo para que ela seja a minha estrela guia até
você.
O jornalista ficou pensativo e como lhe desse alguns cascudinhos na
cabeça, a donzela brincou: “Tem alguém aí?” João riu meio sem jeito.
- Amorzinho, essa luz pode ser um pensamento, uma vibração de energia,
uma oração. Um livro! Por que não escreve um livro, já que gostas tanto de
escrever? Você pode escrever um livro e o Universo se encarregará de trazê-
lo até mim.
- Você também não se lembra do que acontece durante as projeções depois
que acorda?
- Não, não me lembro. A única coisa que me lembro quando acordo é que em
algum lugar do mundo existe um homem para quem guardei o amor de uma vida
inteira. Meu amor por ele é tamanho que eu até disse não ao pedido de casamento
de um marajá.
- Como é que é? Um marajá te pediu em casamento?
A gargalhada de Olivia espalhou-se no ar e tinha o som da chuva quando
beija a terra e as matas.
- Eia indômito Montecchio! Abrandai vosso coração e oferece à tua
Capuleto vosso mais lindo sorriso.
E o poeta riu-se do ridículo da pergunta que acabara de fazer.
De repente, a mata agitou-se e houve grande rebuliço entre os bichos.
Alguém se aproximava. Instintivamente, o professor colocou-se em posição de
defender a alma gêmea. “Não há nada a temer, João. Quem vem lá, vem em nome
de Deus”, observou a senhorita.
Quem chegou primeiro foram os erês. Meninos e meninas batendo palmas,
cantando, dançando, correndo e dando cambalhotas. Em seguida, amparada por
uma moça e um rapaz de olhos de fogo, surgia a Divina Rainha, a bela orixá.
Oxum, a protetora dos velhos, das crianças e dos desamparados trazia em suas
mãos os lírios do amor e da paz. A alma de João Guilherme resplandeceu de
alegria diante da luz da divindade a quem tinha erguido a voz tantas vezes
em oração e por um instante ficou ruborizado pelo fato de estar nu.
- Ôxe, se avexe não, filho querido! Tudo é puro para os puros. O amor
entre dois filhos de Deus que se unem com sinceridade de coração é perfume
por demais gostoso de se sentir.
O poeta e a jovem se levantaram e prostraram-se aos pés da entidade, que
tocou a cabeça de cada um deles e os abençoou. “Saravá, Mamãe Oxum. Ora yê!”,
falou João sem conseguir conter a emoção, no que foi seguido por Olivia.
“Filhinhos, estou aqui para dizer que muito em breve vocês estarão juntos
finalmente. Tende bom ânimo, pois”, exortou. Depois pediu: “Fechem os olhos,
por obséquio”.
E como se tivessem somente um olho, os amantes viram em ritmo acelerado
tudo o que havia acontecido desde a primeira projeção de João Guilherme. A
passagem pelo Rio de Janeiro; a passagem pela Índia. Tudo. Até mesmo o
nascimento da filha de Jahnu e Olivia, que foi chamada de Lucy. Elas moraram
em Londres por dez anos e depois, a convite de Gary e Sophia Stewart, mudaram-
se para a colônia portuguesa na América do Sul, onde pretendiam dar
prosseguimento ao movimento abolicionista já deflagrado na Inglaterra.
Olivia desencarnou alguns anos depois, vítima do surto de pneumonia que
assolou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Lucy tornou-se uma grande
pianista e continuou com a militância política.
Ainda com o olho único, João e Olivia viram uma moça morena de cabelos
longos e olhos azuis de aparentemente vinte anos. Ela dirigia seu carro por
uma estrada escura, em uma cidade de beleza exuberante. Ingenuamente, atendeu
ao suposto pedido de socorro de um homem cujo automóvel aparentava ter
quebrado. Tudo foi rápido como um relâmpago. Quando o homem aproximou-se e
ela baixou o vidro, ele enfiou a mão pela janela e abrindo a porta, invadiu o
veículo. A garota resistiu o quanto pôde e quando o estupro estava quase
consumado, notou o clarão de um farol que se aproximava. Instintivamente
gritou por socorro. Ela não viu, mas quem passava era um motociclista que,
desconfiado de que algo estava errado, parou e foi verificar. Em seguida, a
senhorita sentiu o agressor ser tirado de cima de si e ser puxado para fora
do carro. Imediatamente, trancou as portas e, sem sucesso, tentou ligar o motor.
Então ouviu o som de um tiro e, por uma fração de segundos, cessou-se o barulho
de luta. Atrapalhada pelo vidro fumê, ela não conseguiu discernir quem
apontava uma arma para quem. Até que aquele que tinha o revólver foi atingido
duas vezes pelas costas por um outro homem que ela mesma não tinha notado.
Desesperada, começou a gritar. Os estupradores fizeram menção de entrar no
carro, mas desistiram assim que surgiu a luz dos faróis de um outro automóvel
que se aproximava. De seu interior desceram dois rapazes. Um deles, depois de
dar o primeiro socorro ao ferido, exclamou: “É o professor ...” Ela não
conseguiu entender o nome.
O olho único multiplicou-se por quatro e João e Olivia passaram a
enxergar por si só novamente. Quietos, ouviram a Mãe Oxum falar. “Meu
príncipe e minha princesa, vocês não são da Terra. Vocês vieram de estrelas
distantes para ajudar na evolução espiritual da humanidade. É um sacerdócio
que exige renúncias e sacrifícios. Vocês poderiam ter ficado juntos no astral
depois da etapa na Índia, mas se colocaram como voluntários para retornar à
matéria. Agora, o Divino Pai Eterno, junto com o Cristo Planetário vem coroar
de flores vosso caminho. João, meu filho, tome cuidado com a vaidade, não se
deixe iludir pela intelectualidade. A compreensão de todos os mistérios da
Vida é uma prerrogativa exclusiva de Deus. O conhecimento que você tem
adquirido desde que abraçou a doutrina do Santo Daime deve gerar em teu
coração um amor incondicional por todas as coisas vivas e por todas as pessoas.
Afasta de ti todo o sentimento de rancor, ódio e amargura. O amor e o perdão
são as forças mais poderosas do Universo. Mas isso você já sabe, não é mesmo?
Minha filha, cuide bem do meu menino. Juntos vocês realizarão grandes coisas.
Andem sempre de mãos dadas. Você é ele e ele é você. E como um só voltarão à
Casa Celestial e nela habitarão por toda a eternidade. Agora fechem os olhos
e durmam. Para o bem de vocês, tudo que foi visto por esses dias será esquecido.
Mas antes, meu pretinho, por gentileza”.
E um dos anjos negros que acompanhavam a Orixá veio e esculpiu flores
nos cabelos de Olivia e entregou uma pequena cabaça de coco dividida ao meio
para João Guilherme. Ao abri-la, o poeta encontrou dois anéis feitos de tucum.
E eles foram a aliança do casamento no astral entre o filho da estrela Sirius
e a filha das Plêiades. Depois de se beijar, cerraram os olhos e dormiram
abraçados sobre a grande pedra da clareira. Impondo as mãos sobre o casal, a
rainha Oxum proclamou: “Sejam felizes, minhas crianças”.
Johnny Marcus tem 45 anos e nasceu em Cuiabá. É jornalista, professor e
radialista. Como jornalista trabalhou na TV Cidade Verde e nos jornais
Circuito Mato Grosso, Correio de Mato Grosso e revista RDM. Leciona língua
inglesa desde 1990 e língua portuguesa desde 2010. Passou pelas rádios Clube,
Cuiabana, comunitárias CPA e Alternativa e Centro América FM. Em 2014 foi o
locutor oficial da Copa do Mundo na Arena Pantanal. Johnny Marcus estreia
na literatura com “Almas em Sonho – um romance espiritualista” e está com
outro livro em fase de conclusão.