analise contos gauchescos

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142 RevLet Revista Virtual de Letras, v. 05, nº 02, ago./dez, 2013 ISSN: 2176-9125 A DIALÉTICA E O ENTRE-LUGAR EM CONTOS GAUCHESCOS, DE SIMÕES LOPES NETO THE DIALECTIC AND THE IN-BETWEEN IN CONTOS GAUCHESCOS, BY SIMÕES LOPES NETO Cristine Zirbes Severo 1 Graduada em Letras-Literatura Universidade Federal do Rio Grande do Sul ([email protected]) 2 RESUMO: O artigo objetiva realizar a análise da obra Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto, focalizando o caráter dialético construído pelo autor na construção do discurso do narrador. As relações dialógicas apresentadas ao longo do artigo partem da teoria de Bakhtin e da crítica especializada. Com isso, foi possível perceber que perpassa pela obra um constante diálogo entre o regional com o universal, o passado com o presente, a idealização do gaúcho e a desconstrução desse heroi. Vozes dissonantes que se chocam em um discurso único e refletem o momento de escrita dos Contos Gauchescos, momento de transição entre o passado e suas tradições e a modernização das cidades. Palavras-chave: Simões Lopes Neto; Contos Gauchescos; Dialogismo ABSTRACT: The aim of this paper is to analyze the book Contos Gauchescos, written by Simões Lopes Neto, focusing on the dialectical character built by the author in the construction of the narrator’s discourse. The dialogical relations presented throughout the paper start from Bakhtin’s theory and the specialized critic. With this, it was possible to perceive that the book is filled with a constant dialogue between the regional and the universal, the past and the present, as well as the gaúcho idealization and the deconstruction of that hero. Dissonant voices that collide in a single discourse and reflect the time of writing of the Contos Gauchescos, a moment of transition between the past and its traditions and the modernization of cities. Keywords: Simões Lopes Neto; Contos Gauchescos; Dialogism Introdução Ao estudarmos Simões Lopes Neto, percebemos que a palavra escrita está impregnada de marcas da oralidade, ou seja, a realização plena do discurso enquanto enunciação de um sujeito a outro. Para Bakhtin, somente nessa instância materializada da língua é possível haver relações dialógicas, ou seja, quando esta se torna enunciado: Para tornarem-se dialógicas, as relações lógicas e concreto- semânticas devem, como já dissemos, materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ela expressa. (BAKHTIN, 1981, p. 159) 1 Mestranda em Literatura Brasileira 2 Agência de fomento CAPES

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    RevLet Revista Virtual de Letras, v. 05, n 02, ago./dez, 2013 ISSN: 2176-9125

    A DIALTICA E O ENTRE-LUGAR EM CONTOS GAUCHESCOS, DE SIMES LOPES NETO

    THE DIALECTIC AND THE IN-BETWEEN IN CONTOS GAUCHESCOS, BY SIMES LOPES NETO

    Cristine Zirbes Severo1 Graduada em Letras-Literatura

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul ([email protected])2

    RESUMO: O artigo objetiva realizar a anlise da obra Contos Gauchescos, de Simes

    Lopes Neto, focalizando o carter dialtico construdo pelo autor na construo do discurso do narrador. As relaes dialgicas apresentadas ao longo do artigo partem da teoria de Bakhtin e da crtica especializada. Com isso, foi possvel perceber que perpassa pela obra um constante dilogo entre o regional com o universal, o passado com o presente, a idealizao do gacho e a desconstruo desse heroi. Vozes dissonantes que se chocam em um discurso nico e refletem o momento de escrita dos Contos Gauchescos, momento de transio entre o passado e suas tradies e a modernizao das cidades. Palavras-chave: Simes Lopes Neto; Contos Gauchescos; Dialogismo

    ABSTRACT: The aim of this paper is to analyze the book Contos Gauchescos, written by

    Simes Lopes Neto, focusing on the dialectical character built by the author in the construction of the narrators discourse. The dialogical relations presented throughout the paper start from Bakhtins theory and the specialized critic. With this, it was possible to perceive that the book is filled with a constant dialogue between the regional and the universal, the past and the present, as well as the gacho idealization and the deconstruction of that hero. Dissonant voices that collide in a single discourse and reflect the time of writing of the Contos Gauchescos, a moment of transition between the past and its traditions and

    the modernization of cities. Keywords: Simes Lopes Neto; Contos Gauchescos; Dialogism

    Introduo

    Ao estudarmos Simes Lopes Neto, percebemos que a palavra escrita

    est impregnada de marcas da oralidade, ou seja, a realizao plena do discurso

    enquanto enunciao de um sujeito a outro. Para Bakhtin, somente nessa instncia

    materializada da lngua possvel haver relaes dialgicas, ou seja, quando esta

    se torna enunciado:

    Para tornarem-se dialgicas, as relaes lgicas e concreto-semnticas devem, como j dissemos, materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da existncia, devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado e ganhar autor, criador de dado

    enunciado cuja posio ela expressa. (BAKHTIN, 1981, p. 159)

    1 Mestranda em Literatura Brasileira 2 Agncia de fomento CAPES

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    RevLet Revista Virtual de Letras, v. 05, n 02, ago./dez, 2013 ISSN: 2176-9125

    Para Bakhtin, as relaes dialgicas somente so possveis na linguagem

    concreta, na linguagem em ao, ou seja, no discurso. Bakhtin no compreende a

    linguagem como algo externo realidade social e histrica dos sujeitos que a

    enunciam, logo o discurso no individual, j que se realiza entre seres sociais e

    histricos. Para alm disso, Bakhtin afirma ainda a existncia de um dilogo entre

    discursos, ou seja, as relaes que os diversos discursos presentes em um

    enunciado mantm entre si. Assim, o dialogismo compreende o dilogo entre

    discursos disponveis aos interlocutores.

    Nos Contos Gauchescos, encontramos um dilogo face a face, entre o

    narrador Blau Nunes e seu interlocutor (embora este no se expresse verbalmente,

    suas falas so intudas pela voz do narrador). Mas encontramos tambm um dilogo

    entre discursos, presente na enunciao do narrador Blau. Todos os personagens,

    atravs da linguagem, constituem elementos sociais e histricos e so capazes de

    expressar significados sobre a realidade e pontos de vista prprios. Logo, um nico

    personagem capaz de expressar vrias vozes discursivas em seu enunciado. o

    caso de Blau Nunes. O discurso narrativo de Blau est permeado de relaes

    dialgicas que constituem a dialtica da obra. Observamos que Blau contm em

    seus enunciados um discurso ambguo, que oscila entre uma consagrada tradio

    regionalista e um vis mais universalizante, ou humano. O mesmo percebe-se

    quanto idealizao ao gosto romntico do gacho e um olhar crtico e reflexivo

    voltado ao carter realista com o qual identifica a perda das tradies, do passado

    mtico e da figura lendria que habitava o pampa. Essa constatao leva o narrador

    a opor esse passado ao presente da escritura ou da enunciao do narrador,

    marcada pelas inovaes urbanas.

    Uma vez que a linguagem est atrelada s relaes sociais e histricas

    dos sujeitos que a enunciam, a ambiguidade do momento histrico vivido por Blau

    acaba por impregnar seu discurso. Momentos de transio entre um passado

    tradicional e um presente modernizador confundem-se em suas palavras. a partir

    dessas relaes dialticas que a obra de Simes se constri e constitui um

    enunciado que se localiza no entre-lugar desses discursos. Ao ser o portador de

    diversas vozes, cria a possibilidade para formar uma unidade discursiva nova.

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    RevLet Revista Virtual de Letras, v. 05, n 02, ago./dez, 2013 ISSN: 2176-9125

    O dialogismo de Contos Gauchescos

    A obra do escritor gacho Simes Lopes Neto inserida pela crtica e

    pela historiografia literria dentro do campo geral denominado regionalismo. Os

    Contos Gauchescos foram publicados em 1912, momento em que as cidades, em

    processo de modernizao, tornam-se o centro da cultura e criam um novo sistema

    para viver em sociedade, anteriormente associado ao ambiente do campo. Com a

    perda do vnculo identitrio baseado no meio rural, surge um sentimento saudosista

    em relao aquele passado, que passa a ser visto, em contradio com a cidade,

    como um espao paradisaco. O reflexo disso na literatura do incio do sculo XX fez

    surgir uma srie de obras que retratavam o universo interiorano, bem como o

    indivduo, a linguagem e os costumes pertencentes aquele local, muitas vezes sob o

    vis da nostalgia e da memria. Classificadas como regionalistas, essas obras

    representam, de maneira geral, um mundo em decadncia. No Rio Grande do Sul,

    nomes como Alcides Maya e Simes Lopes so considerados os grandes

    exemplares dessa vertente literria.

    O regionalismo no Brasil tem suas primeiras manifestaes no sculo XIX,

    consolidando-se como matria narrativa com os escritores romnticos. Sua inteno

    era valorizar o cenrio e a cor local, construindo uma identidade e nacionalidade que

    se desvencilhasse da influncia europeia e formasse uma tradio literria e artstica

    prprias. Jos de Alencar, com O Gacho e O Sertanejo, ou as poesias indianistas

    de Gonalves Dias so tentativas de cumprir a misso de fundar uma origem

    autctone ao pas recm independente.

    No Rio Grande do Sul, os intelectuais aderiram a essa ideia, mas sob

    uma nova roupagem. Como o indivduo do Sul no criara identificao com o ndio

    exaltado pelos romnticos do centro do pas, os escritores sulistas representaram de

    forma idealizada e super valorizada o habitante rural da Provncia. O passo inicial foi

    dado pela Sociedade Partenon Literrio e seu mentor, Apolinrio Porto Alegre. Foi

    com a criao da Sociedade que se difundiu, na literatura, a figura do gacho e a

    valorizao dos costumes locais, bem como do folclore e dos mitos e lendas da

    regio. Assim, sob forte influncia do romantismo, que idealizou um heri nacional

    no ndio, o escritor do Rio Grande, no se identificando com esse personagem,

    encontra no homem rural, no peo de estncia, que ao mesmo tempo atua como

    soldado nas diversas guerras de fronteira, seu heri local.

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    RevLet Revista Virtual de Letras, v. 05, n 02, ago./dez, 2013 ISSN: 2176-9125

    Em Simes Lopes, juntamente a esse regionalismo marcante,

    percebemos que os causos contados por Blau superam a simples descrio de

    cenrios e costumes locais para apresentar uma viso de mundo peculiar, que

    revela sua psicologia enquanto ser humano. Blau rememora, analisa, opina e

    interpreta os fatos narrados a partir de seu prprio olhar, fazendo com que prevalea

    o eu do personagem/narrador sobre os fatos histricos e a cor local apresentados. A

    narrativa est voltada para a abordagem da psicologia dos indivduos, seus dramas,

    suas aes, seus questionamentos, enfim, sua viso de mundo. Isso garante obra

    de Simes Lopes Neto um patamar para alm do regionalismo. Flvio Loureiro

    Chaves afirma que Simes Lopes Neto o maior dentre todos os regionalistas da

    sua poca no porque tenha sido regionalista mas, ao contrrio, porque nele o

    regionalismo nada mais foi seno uma forma ideal de expresso artstica dentro da

    literatura (CHAVES, 2001, p. 17-18). Esse aspecto da obra simoniana constri uma

    dialtica constante entre o carter regional da obra e sua expresso humana

    totalizante.

    No entanto, o regionalismo praticado pelos romnticos diferencia-se

    daquele praticado pela gerao de Simes e Alcides Maya. Nestes, a idealizao

    dos caracteres compete com uma viso mais realista e crtica do ambiente rural e do

    tipo social representado, sucedida, mais tarde, pelos romances regionalistas da

    dcada de 30.

    A conscincia de um universo em extino permeia as narrativas das

    primeiras dcadas do sculo XX. Aquele antigo espao aberto, sem limites, povoado

    apenas pelo gado sem dono, entra em declnio. Sobre isso, Fischer afirma que

    Ao fazer os poemas e as narraes sobre o cavaleiro-guerreiro, os escritores estavam no apenas tomando um assunto disponvel: estavam recolhendo um cadver que a histria estava deixando para trs e transformando-o em smbolo (...). Enquanto tipo social, o gacho estava deixando de existir: ao fim da Guerra, aquele que no morreu pde se integrar ao exrcito imperial, abandonando a vida relativamente margem da lei; pela crescente integrao de mercado que o charque estava experimentando, ele passava a ser mais um empregado na estncia e eventualmente em tarefas prximas da cidade; os campos comeavam a ser cercados, fisicamente, e ao longo do tempo as estradas vo substituindo os caminhos espontneos do campo, e isso tambm vai limitando a mitolgica andana livre, sem restries, a que ele talvez estivesse afeioado. (FISCHER, 2004, p. 40)

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    RevLet Revista Virtual de Letras, v. 05, n 02, ago./dez, 2013 ISSN: 2176-9125

    Os escritores da Provncia, no incio do sculo XX, registram um universo

    em decadncia. Apesar disso, no abandonam totalmente a idealizao da figura do

    gacho, tendo em vista que valores qualitativos como a honra, coragem, valentia,

    lealdade, virilidade, ainda so fortemente exaltados em suas obras, conforme a

    prtica da gerao anterior. A obra simoniana encontra-se, assim, entre dois plos:

    uma viso idealizada do passado e do heri gacho e um olhar realista, que detecta

    sua finitude.

    A idealizao romntica verifica-se, em Simes Lopes, principalmente nos

    Contos Gauchescos, mais especificamente em seu protagonista. Ao introduzir Blau

    Nunes como narrador conseguindo com isso uma virada de foco narrativo at

    ento ainda no explorada com tamanha conscincia esttica passa a palavra ao

    homem local, para que este possa ser o autor de sua prpria histria. O interlocutor

    de Blau o apresenta com as caractersticas exaltadas no tipo gacho pela tradio,

    um Genuno tipo crioulo rio-grandense (hoje to modificado), era Blau o

    guasca sadio, a um tempo leal e ingnuo, impulsivo na alegria e na temeridade,

    precavido, perspicaz, sbrio e infatigvel (LOPES NETO, 2011, p. 16). Em seu

    primeiro conto, Trezentas onas, Blau surge como protagonista. No por acaso

    que esse o conto de abertura do livro, pois nele conhecemos as virtudes tanto de

    Blau quanto do homem do campo em geral. Qualidades como a honestidade tanto

    de Blau, que no foge e pretende enfrentar o castigo por ter perdido o dinheiro,

    quanto dos tropeiros, que recolheram a guaiaca e a devolveram ao dono , a

    solidariedade, a coragem e a hombridade em voltar e responsabilizar-se por seus

    atos, a lealdade e a honra so valores intrnsecos, no necessitando, por isso, de

    explicao ou questionamentos. H, nesse conto, a partir da descrio das aes

    dos personagens e da caracterizao das virtudes acima descritas, a heroificao do

    narrador.

    O processo de idealizao do gacho, herdado dos romnticos, percorre

    o livro de maneira geral. Em contos como Melancia coco verde ou Deve um

    queijo!, embora as qualidades de virilidade, honra, coragem e fora estejam

    presentes, o que est em evidncia sua esperteza e sagacidade. No primeiro,

    atravs do personagem Reduzo, cuja misso impedir que a sia Talapa se case

    com um ilhu, devido paixo entre ela e Costinha. No segundo conto, o Velho

    Lessa, um homem muito sisudo, segundo o prprio Blau, ao quase ser enganado

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    RevLet Revista Virtual de Letras, v. 05, n 02, ago./dez, 2013 ISSN: 2176-9125

    por um castelhano, o qual insiste para que o Velho lhe compre um queijo, obriga o

    estrangeiro a comer o queijo todo at sufocar e vomitar, como forma de castigo pela

    afronta.

    Em Correr eguada, Blau nos apresenta o esprito aventureiro e

    desbravador do gacho. No h, nesse conto, um fluxo narrativo bem definido. H

    uma descrio saudosa e nostlgica da caa ao gado alado praticada em tempos

    passados pelos homens e que no final tornava-se festa e diverso. A gauchada

    vinha para correr atrs do gado solto e captur-lo, porm Blau vai alm da simples

    descrio e nos apresenta uma imagem de festa, aventura, liberdade e conquista

    associada personalidade do tipo gentlico referido:

    A a gente entrava a manguear, aos dois lados, e ento que comeava, de verdade, o divertimento! (...) Barbaridade! Nem h nada como tomar mate e correr eguada! (...) A que era o lindo! Os fletes montados, alevianados, corriam, alados no freio; os tiros de bolas cruzavam-se nos ares e aquilo era largar as trs-marias sobre a paleta do escolhido e o bagual logo rodava, no enleio das sogas. (...) Isto quando era por divertir. (LOPES NETO, 2011, p. 62-63)

    O homem local aparece, ainda, em Chasque do imperador, mas nesse

    caso como contraponto ao outro, o homem da cidade, urbanizado. Durante a Guerra

    do Paraguai, em 65, o Imperador Pedro II veio provncia acompanhado de uma

    comitiva. Blau conta que foi seu homem de confiana por algum tempo e durante o

    perodo em que desempenhou esse trabalho, presenciou algumas cenas que

    descaracterizavam o imperador, diferenciando-o de si e dos demais pertencentes ao

    universo gacho. O conto repleto de pequenos causos que contam alguns fatos

    acontecidos com o imperador durante sua temporada na provncia. Assim, Blau

    narra que

    Havia um que era baro e comandava um regimento, que era mesmo uma flor; tudo moada parelha e guapa. O imperador gabou muito a fora, e a no mais o baro j lhe largou esta agachada: Que vossa majestade est pensando?... Tudo isto indiada coronilha, criada a apojo, churrasco e mate amargo... No como essa cuscada l da Corte, que s bebe gua e lambe a... barriga!... (LOPES NETO, 2011, p. 68-69)

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    Nessa passagem, marcada verbalmente a diferena entre a rudeza e a

    fora do gaudrio em contraste com as pessoas afrancesadas da Corte e do meio

    urbano. Constri-se, dessa forma, a identidade do gacho a partir da comparao

    com o outro. Blau reconhece que existe um ns, delimitado tanto geogrfica quanto

    social e culturalmente, e esse ns diferencia-se do eles, ou seja, aqueles que esto

    fora dessas fronteiras imaginrias. Temos, ento, de um lado, a indiada coronilha

    versus a cuscada l da Corte, o homem pertencente ao universo da linguagem oral

    (Blau) versus o letrado (meio urbano, ou o prprio interlocutor das histrias). Isso vai

    ao encontro do esquema dialgico formulado por Bakhtin, ao analisar o romance de

    Dostoivski: a contraposio do homem ao homem enquanto contraposio do eu

    ao outro (BAKHTIN, 1981, p. 223).

    A ridicularizao do imperador, e por consequncia dos habitantes da

    Corte, aparece ainda na fala de Blau em passagens como O imperador esse era

    meio maricas, era! (LOPES NETO, 2011, p. 70) ou O imperador, com toda a sua

    imperadorice (LOPES NETO, 2011, p. 71). Tambm na prpria fala do imperador,

    quando este nega o fumo do soldado gacho alegando que parece-me forte o seu

    fumo... (LOPES NETO, 2011, p. 68), confirmando o maricas atribudo por Blau.

    No entanto, para alm do herosmo idealizado, em certos momentos dos

    Contos, encontramos a subverso desta caracterstica. Como ocorre em O jogo do

    osso e Negro Bonifcio, nos quais narrada a extrema violncia e o carter

    guerreiro do gacho, realidades fortemente presentes no universo retratado. No

    primeiro, a gratuidade e naturalidade da violncia so expressas no final do conto,

    na fala do dono da venda: Pois ... jogaram o osso, armaram a sua paranda... mas

    nenhum pagou nada ao coimeiro!... Que trastes!... (LOPES NETO, 2011, p. 115). O

    mesmo se d em Negro Bonifcio, conto em que ocorre uma verdadeira chacina.

    Novamente, o estopim da briga uma mulher, nesse caso a Tudinha, descrita como

    sendo muito linda e de boas formas, com um diferencial das demais: o poder dos

    olhos.

    Blau revela as contradies do homem representado. As mesmas

    qualidades reiteradas ao longo dos Contos, nesses casos, levam violncia, ao

    machismo, ao uso da fora bruta, disputa nas armas como resoluo dos conflitos,

    etc. A honra e o orgulho feridos desencadeiam batalhas sangrentas, com as quais o

    narrador no compactua. No entanto, apesar de posicionar-se contrrio a essas

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    RevLet Revista Virtual de Letras, v. 05, n 02, ago./dez, 2013 ISSN: 2176-9125

    atitudes, as enxerga como um elemento pertencente aquele homem heroificado em

    outros contos, presentes no seu universo primitivo, anterior civilizao. O gacho

    exemplar cede lugar ao seu reverso, e essa ambivalncia tambm o constitui.

    Essa dialtica entre o olhar idealizado e o olhar crtico de Simes, faz

    oscilar entre a exaltao romntica do heri e a percepo realista do ambiente ao

    qual pertence, ou seja, da mesma forma que mantm valores da tradio,

    contribuindo para a construo da figura mtica do gacho, capaz de refletir

    objetivamente sobre o universo descrito e enxergar suas contradies. Quanto ao

    destino do gacho antigo monarca das coxilhas em tempos de bonde e luz

    eltrica, automveis, grandes avenidas e trem a vapor, Simes tambm apresenta

    um olhar dbio, compondo uma nova dialtica, dessa vez entre a nostalgia do

    passado e o presente to modificado. H, nos Contos Gauchescos, um intervalo

    entre o Blau jovem, protagonista ou testemunha dos causos, e o Blau velho,

    narrador, conforme o prprio texto j anunciava:

    Entre o Blau moo, militar e o Blau velho, paisano , ficou estendida uma longa estrada semeada de recordaes casos, dizia , que de vez em quando o vaqueano recontava, como quem estende, ao sol, para arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca. (LOPES NETO, 2011, p. 16-17)

    Nesse intervalo entre o moo e o velho esto localizados os fatos

    narrados, que so recuperados na velhice pela memria. visvel que, poca do

    Blau velho, os tempos no so mais os mesmos:

    Tudo era aberto; as estncias pegavam umas nas outras sem cerca nem tapumes; as divisas de cada uma estavam escritas nos papis das sesmarias; e l um que outro estancieiro que metia marcos de pedra nas linhas. (LOPES NETO, 2011, p. 59)

    O espao descrito nos Contos Gauchescos o territrio sem fronteiras

    da antiga Provncia. Como j dito anteriormente, o presente de Blau modificou-se e,

    nos Contos, adquire aspectos de negatividade, em contraposio com o passado,

    positivado pelo olhar saudoso do narrador.

    Embora Simes mantenha a tradio literria romntica ao idealizar a

    figura do gacho, percebemos em sua narrativa que seu olhar realista identifica o fim

    de uma era. Isso se deve pelo fato de, no momento em que o escritor compe seus

    contos, lendas, e causos, aquele passado inexista como realidade, substitudo pela

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    civilizao progressista e pela ascenso da classe burguesa, citadina e urbanizada.

    Dessa forma, da mesma maneira que Simes Lopes reafirma e reconstri o passado

    mtico, tambm percebe sua decadncia e a impossibilidade de reviv-lo. Contos

    como O boi velho e Contrabandista expressam essa dualidade.

    No primeiro, a descrio da famlia remete insero dos novos tipos

    sociais que invadem o espao gaudrio: os Silva, uns Silvas mui polticos, sempre

    metidos em eleies e enredos de qualificaes de votantes (LOPES NETO, 2011,

    p. 55). A figura do poltico, um tanto imprecisa ainda para Blau, usurpa o poder de

    mando do estancieiro, e traz consigo a nova maneira de governar, baseada na

    lgica positivista. O conto relata o abate do boi pelas mos daqueles a quem tanto

    servira, agora apenas interessados no couro que ele haveria de render. A morte do

    boi, apesar de desoladora, no questionada nem sentida pelos membros da

    famlia. Apenas Blau, atravs do seu discurso, demonstra inquietao com a atitude:

    Veja vanc, que desgraados; to ricos e por um mixe couro do boi velho!...

    (LOPES NETO, 2011, p. 58). E em seguida, repete o refro: Cu-pucha!

    mesmo bicho mau, o homem! (LOPES NETO, 2011, p. 58). A insatisfao de Blau

    se d pela dissociao entre homem e natureza que passa a vigorar com os novos

    tempos. Essa uma realidade difcil de compreender para ele, j que em Trezentas

    onas sua integrao com a natureza lhe salva a vida. Essa nova gente cuja

    identificao maior com o ambiente urbano das cidades em construo, agora

    metida em polticas e eleies, desintegra os valores do homem do campo, aqueles

    mesmos valores que o narrador tenta resgatar com seus causos.

    Contrabandista repercute a mesma lgica do conto anterior, mas atravs

    do cerceamento das fronteiras, da fiscalizao dos produtos contrabandeados, da

    represso dos militares representantes do governo brasileiro, ou seja, da lei escrita,

    em contraposio oralidade marcante do narrador e dos personagens. Inicia com a

    apresentao de Jango Jorge ao seu interlocutor:

    Esse gacho desabotinado levou a existncia inteira a cruzar os campos da fronteira: luz do sol, no desmaiado da lua, na escurido das noites, na cerrao das madrugadas...; ainda que chovesse reinos acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada!... (LOPES NETO, 2011, p. 103)

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    um tipo genuno, gacho maneira de Blau e dos de seu tempo,

    participante das principais guerras do sculo XIX. Ao contrrio dos Silvas, de O Boi

    Velho, ainda mantinha uma relao intrnseca com a natureza e com a paisagem

    percorrida, pois identifica os espaos pelo faro e pelo gosto:

    Conhecia as querncias, pelo faro: aqui era o cheiro do aouta-cavalo florescido, l o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limo; pelo ouvido: aqui, cancha de graxains, l os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areo. At pelo gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam guas salobres e guas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo. (LOPES NETO, 2011, p. 103)

    Um homem dos antigos, cuja associao com o ambiente natural era

    sinestsica, em contraposio relao mercantilista que a civilizao citadina

    exige. Passa, em seguida, descrio de sua famlia e ao anncio do casamento da

    filha, esta no mais correspondendo ao mesmo universo do pai ao decidir buscar

    fora de casa o enxoval: Aonde, no sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em

    casa, moda antiga, mas, como cada um manda no que seu... (LOPES NETO,

    2011, p. 105). Assim como em Boi Velho, h um contraste entre o tempo passado

    e o tempo presente, representados tanto nos personagens Blau/Jango versus os

    Silva e a filha quanto nas aes do enredo, j que as fronteiras bem protegidas

    pela guarda nacional no permitiam mais o deslocamento livre do homem do campo

    por esses pagos.

    Consideraes finais

    Se para Bakhtin Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de

    emprego (a linguagem cotidiana, a cientfica, artstica), est impregnada de relaes

    dialgicas (BAKHTIN, 1981, p. 158-159), a obra de Simes no foge regra. A

    dialtica entre o gacho do passado e seu contemporneo, do presente, revelada

    ao interlocutor/leitor atravs do ponto de vista do narrador, nas entrelinhas de sua

    fala ou expresso diretamente em seu discurso. Simes, em certos momentos, utiliza-

    se de artifcios alegricos ou metafricos para express-la (como a morte do boi

    pelas pessoas a quem ele servira, ou na construo de personagens tipos), mas

    pelos comentrios e interrupes ao fluxo narrativo do causo que se evidencia a

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    RevLet Revista Virtual de Letras, v. 05, n 02, ago./dez, 2013 ISSN: 2176-9125

    constatao de um passado no mais possvel, conforme reala em contos como

    Correr eguada, No manantial ou Contrabandista, acima analisados.

    A obra simoniana constri-se, assim, a partir de uma srie de relaes

    dialgicas. De incio, encontramos a dialtica entre o olhar romntico, que tende

    idealizao, e um olhar realista, que desmistifica o heri e seu passado glorioso.

    Essa dialtica leva a outras, tais como o carter regional dos contos versus um vis

    mais amplo e universal. Ou entre a lamentao do passado extinto e o presente

    irreconhecvel, paralelamente construo e desconstruo do heri.

    Alm disso, Simes Lopes, em suas obras, se vale do folclore e do mito,

    resgatando a forma tradicional do conto e do ato de contar uma histria. Entretanto,

    h tambm o esforo em traar uma estrutura narrativa elaborada, que se insere no

    gnero moderno denominado Conto. Pode-se afirmar que a modernidade de seus

    escritos se evidencia por essa dialtica entre a tradio oral e folclrica, ou seja,

    uma histria para ser contada, e sua estruturao no gnero moderno de narrativa

    curta, que contm caractersticas prprias, como a extenso, a densidade, a

    brevidade, o recorte em contraposio totalidade da narrativa longa, etc.

    A obra de Simes localiza-se nestes entre-lugares: entre o olhar

    romntico e realista, entre o discurso regional e universal, entre o heri idealizado e

    o homem da urbe, entre passado e presente, entre oralidade e escrita, entre o

    tradicional e o moderno. possvel afirmar, logo, que Contos Gauchescos possui

    um discurso polifnico, uma vez que possui uma multiplicidade de vozes as quais

    expressam pontos de vista e opinies distintas, que geram um embate interno ao

    personagem.

    Blau expressa, em seu enunciado, a dialtica de seu prprio tempo. Com

    a modernizao das cidades, surge o questionamento sobre o lugar que passaria a

    ocupar as tradies, os costumes do passado, o heri glorificado dcadas antes.

    Blau no possui muitas certezas, mas ele reconhece o perodo de transio vivido.

    Carrega consigo os antigos hbitos, mas percebe que estes no so mais

    necessrios no novo ambiente urbano. Assim, seu enunciado est repleto de

    relaes dialgicas oriundas dos discursos conflitantes da poca. Literatura e

    sociedade refletem-se e revelam-se a a partir das mltiplas vozes de um

    personagem.

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    Referncias

    BAKHTIN, M. Problemas da potica de Dostoivski. Rio de Janeiro: Ed. Forense-

    Universitria, 1981. CHAVES, F. L. Simes Lopes Neto. 2. ed. rev. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro: Editora da Universidade, 2001. 296 p. FISCHER, L. A. Literatura Gacha. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004. 160 p.

    LOPES NETO, J. S. Contos Gauchescos & Lendas do Sul. Porto Alegre: L&PM,

    2011. 224 p. Bibliografia complementar: CHIAPPINI, L. No entretanto dos tempos: literatura e histria em Joo Simes Lopes Neto. So Paulo: Martins Fontes, 1988. 416 p.

    FILIPOUSKI, A. M.; NUNES, L. A.; BORDINI, M. G.; ZILBERMAN, R. Simes Lopes Neto: A inveno, o mito e a mentira. Porto Alegre: Movimento: IEL, 1973. 135 p. MEYER, A. Prosa dos Pagos: 1941-1959. Rio de Janeiro: Livraria So Jos, 1960. 327 p. ZILBERMAN, R. A literatura no Rio Grande do Sul. 3. ed. Porto Alegre: Mercado

    Aberto, 1992. 216 p.