arquitetura projeto e identidade, práticas de salvaguarda

241
Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda do Património Arquitetónico em Cabo Verde Ailton António Ramos Correia M 2019 MESTRADO INTEGRADO ARQUITETURA

Upload: others

Post on 22-Oct-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

FAC

ULD

AD

E DE A

RQ

UIT

ETU

RA

Ailton A

ntónio Ram

os Correia. Projeto e Identidade, Práticas

de Salvaguarda do Património Arquitetónico em

Cabo Verde

Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda do Patrim

ónio Arquitetónico em

Cabo Verde

Ailton António Ramos Correia

Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda do Património Arquitetónico em Cabo Verde

Ailton António Ramos Correia

M 2019

M.FA

UP

2019

MESTRADO INTEGRADO

ARQUITETURA

Page 2: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda do Património Arquitetónico em Cabo Verde

Ailton António Ramos Correia

Dissertação de Mestrado Integrado em ArquitecturaOrientador: Professor Doutor Nuno Valentim LopesCo-orientador: Arquiteto Miguel ToméFaculdade de Arquitectura da Universidade do PortoPorto 2019

Page 3: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 4: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

Nota Prévia

A presente dissertação encontra-se ao abrigo do novo acordo ortográfico.

Page 5: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 6: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

Em memória do meu avô Leão Lopes e do meu tio Jacinto Lopes.

Page 7: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 8: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

“Do we know why “island” is the unconditional poetic word? It only needs be mentioned from afar and we mobilize everything in us that wishes to flee. From banality to entrancement, from worry to meditation, from terra firma to controlled waters. Before the bird, the angel, the demon, the island is the key term that describes the human essence.”1

Peter Sloterdijk

1 THE DRUNKEN ISLE – Peter Sloterdijk in INSULAR INSIGHT – Where Art and Architecture Conspire with Nature – NAOSHIMA, TESHIMA, INUJIMA – Fukutake Foundation, Lars Müller Publishers, 2011. p.33

Page 9: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 10: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

SUMÁRIO

Page 11: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

Agradecimentos

Resumo

Abstract

INTRODUÇÃO20 Um Território, Várias Motivações 21 Objeto, Objetivos 22 Inquietações e Pertinência 26 Metodologia e Estrutura

CAPÍTULO 1 – ENQUADRAMENTO30 1.1- Património, Identidade e Valor39 1.2- Cabo Verde, Geografia e Arquitetura Vernacular49 1.3- Temáticas de Salvaguarda do Património Arquitetónico em Cabo Verde 83 1.4- Património, Turismo e Desenvolvimento

CAPÍTULO 2 – ANÁLISE e INTERPRETAÇÃO95 2.1- Caracterização da Amostra 2.2- Cidade Velha, o impulso para a salvaguarda do património cabo-verdiano99 Da Ribeira Grande à Cidade Velha105 Plano de Recuperação e Transformação119 Salemi versus Cidade Velha

2.3- Museu da Resistência, o despertar do museu da memória127 Uma colónia penal isolada135 O Museu da Resistência149 Memórias difíceis

2.4- Spinguera Ecolodge, um modelo alternativo possível155 Espingueira, entre o calcário e as dunas161 Uma aldeia alternativa169 Um continuar inovando

2.5- Ribeira da Torre, o lugar, a habitação tradicional na atualidade175 Um belo vale181 Um projeto para a comunidade189 De Lagedos para Ribeira da Torre

Page 12: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

2.6- Sede do Parque Natural do Fogo, entre a tradição e a inovação193 Um lugar singular197 Da construção tradicional ao edifício contemporâneo207 Centros interpretativos

CONCLUSÃO217 Contribuições para a Valorização da Identidade Arquitetónica Cabo-verdiana225 Perspetivas

227 Bibliografia 235 Lista de Imagens 241 Lista de acrónimos

Page 13: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 14: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

AGRADECIMENTOS

Ao professor Nuno Valentim pela disponibilidade, pertinência e pragmatismo que mostrou ao longo do trabalho, também pelas sábias palavras que partilhou em momentos de algumas inquietações.

Ao Miguel Tomé pela disponibilidade, pelo interesse, e principalmente pelo apelo a um pensamento crítico sobre o trabalho.

Aos inúmeros que contribuíram ao longo do trabalho, entre os quais Leão Lopes, Ângelo Lopes, José Paiva, Larissa Lazzari, Ricardo Barbosa Vicente, Jaylson Monteiro, Adalberto Tavares, Egas Vieira, Helena Albuquerque, Ana Filipa Marques, Francisco Moreira e muitos outros.

Aos que disponibilizaram o seu tempo e aos me acolheram durante as visitas realizadas.

Aos amigos pelo apoio e a minha família por tudo, especialmente a minha mãe pela constante motivação.

Ao Lucas e a Inês pela alegria.

Page 15: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

RESUMO

A presente dissertação faz uma contextualização histórica da salvaguarda patrimonial no arquipélago de Cabo Verde. Uma reflexão sobre as práticas construtivas contemporâneas no confronto com as tradições culturais e construtivas dos lugares, estimulando o debate em torno dos valores de permanência e transformação.

Reconhecendo a singularidade da arquitetura vernacular, acentuada pela condição de insularidade, considera-se que esta poderá constituir um importante meio de aprendizagem e de desejado enriquecimento cultural.

Assim sendo, realiza-se uma análise de algumas caraterísticas das construções de raiz tradicional e vernácula, estabelecendo pontos de relação com cinco casos de estudo, que constituem exemplos de intervenções no construído que materializam programas de turismo cultural associados a ações de salvaguarda patrimonial numa perspetiva de desenvolvimento.

Esses casos incluem temas de reabilitação, restauro, valores patrimoniais, processos de musealização, tradições construtivas e arquitetura contemporânea.

A operação de análise destes projetos procura estudar os processos construtivos tradicionais e verificar a forma como esse modus operandi foi retomado nos casos estudados, considerados exemplares e potencial matéria para o enriquecimento disciplinar e para afirmação dos valores da identidade arquitetónica cabo-verdiana.

Cabo Verde; Arquitetura; Património; Vernacular; Reabilitação; Salvaguarda; Identidade; Musealização;

Page 16: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

ABSTRACT

This thesis makes an historical contextualization of the patrimonial protection of Cape Verde’s islands. It’s a reflection on the contemporary practices against the cultural traditions, encouraging the debate around the values of continuity and transformation.

Recognizing the singularity of traditional architecture, emphasized by the island’s isolation, one can consider that this might be an important way of learning and cultural enrichment.

Therefore, an analysis of some construction’s characteristics, developed within the traditional and vernacular criteria was made, establishing a connexion between the five case studies. These case studies are examples of interventions that represent tourism programs, linked by patrimonial protection actions in a development perspective.

The case studies include rehabilitation, renovation, heritage, musealization processes, building traditions and contemporary architecture.

The analysis of these projects aims to study the traditional building processes and to see how the modus operandi was revived on the case studies, considered an example and a potential source for the subject’s development as well as an affirmation of the identity heritage of Cape Verde architecture.

Cape Verde; Architecture; Patrimony; Vernacular, Rehabilitation, Protection, Identity, Musealization

Page 17: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 18: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

INTRODUÇÃO

Page 19: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

20

Um Território, Várias Motivação

Após a independência de Cabo Verde, as elites intelectuais e políticas promoveram um amplo debate em torno de questões ligadas à história e às memórias do seu povo, na tentativa de refundar a sua identidade cultural. Essa inquietação estava já presente durante o período de luta pela descolonização, como se deduz da afirmação de Amílcar Cabral: “No quadro da conquista da Independência Nacional, na perspectiva da construção do progresso económico do povo, o desenvolvimento de uma cultura popular e de todos os valores positivos autóctones é um objectivo a atingir.”2 Para Cabral, este objetivo não se esgotava na exaltação da cultura do seu povo, mas também na redescoberta do passado do país, o que implicava a concretização de políticas de conservação e preservação de vestígios materiais que representassem esse processo histórico.

A presente dissertação pretende desenvolver uma reflexão em torno da problemática da salvaguarda do património arquitetónico e da identidade arquitetónica em Cabo Verde. Esta temática é, especialmente relevante por duas razões fundamentais: Primeiramente, responde à vontade de conhecer melhor a cultura arquitetónica e as práticas de projeto concretizadas na multiplicidade das paisagens insulares de onde é oriundo o autor do trabalho. Por outro lado, o facto de se tratar de um universo cultural tão distinto, permite um distanciamento em relação ao objeto de estudo, pertinente para consubstanciar uma perspetiva crítica e multicultural relativamente ao confronto dos valores locais e globais que agem naquele território.

A singularidade da arquitetura vernacular, das tradições construtivas e da utilização dos materiais endógenos, acentuada pela condição de insularidade manifestada no modo de vida, motivou e poderá constituir um importante meio de aprendizagem e de desejado enriquecimento cultural. Nesse sentido, o desenvolvimento desta dissertação constituiu uma oportunidade para redescoberta do arquipélago, das suas paisagens e das suas gentes.

2 LOPES FILHO, João - Defesa do Património Sócio - Cultural de Cabo Verde, Lisboa: ed. Ribeiro, José A. 1985. p.10

Page 20: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

21

Objeto, Objetivos

O trabalho foi desenvolvido com base num estudo exploratório sobre a história da salvaguarda patrimonial em Cabo Verde, com particular enfoque em acontecimentos marcantes, assim como nas personalidades que protagonizaram essas ações. Além desta abordagem mais global, foram abordados cinco casos de estudo, exemplares de processos que fomentaram o debate e reflexão sobre a salvaguarda do património arquitetónico cabo-verdiano na contemporaneidade. Foram então selecionados os seguintes projetos: o Plano de Recuperação e Transformação da Cidade Velha, o Museu da Resistência, o projeto de reabilitação e adaptação a hotel da antiga aldeia de Espingueira, o projeto de Valorização Turística do Habitat Tradicional na Ribeira da Torre e o edifício da Sede do Parque Natural do Fogo.

Tendo como título Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda do Património Arquitetónico em Cabo Verde, a dissertação aponta os seguintes objetivos:

- estudar casos que concretizem a renovação de tradições construtivas e a integração de valências contemporâneas, nomeadamente ao dos dispositivos formais ou das instalações técnicas, por forma a responder às novas necessidades programáticas;

- reconhecer processos e metodologias de trabalho fundadas no diálogo entre agentes diversificados, entre os quais se podem identificar instituições locais e atores estrangeiros, portadores de culturas exógenas capazes de induzir o necessário desenvolvimento económico e cultural;

- identificar de que forma os projetos assinalados promoveram discursos sobre a identidade cultural, qual o impacto na cultura arquitetónica do país e como foram assimilados pela população local;

- esboçar uma posição crítica em relação a algumas opções de projeto, apontando os aspetos mais interessantes e com possibilidades de aplicação noutros contextos;

- inferir, a partir da análise dos projetos, também os processos de negociação entre impulsos de transformação e vontades de permanência dos valores identificados.

- propor comparações com projetos semelhantes a nível de programa, tipologia e contexto.

Page 21: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

22

Inquietações e Pertinência

A defesa do património e sua reabilitação, em Cabo Verde, são problemáticas complexas que se afirmaram ainda antes da independência, durante a década de vinte de novecentos, momento em que personalidades começaram a demonstrar preocupações com a salvaguarda de edifícios ou de territórios dotados de especial significado coletivo. Sem grandes consequências, a estes movimentos embrionários seguiram-se algumas ações concretas, encetadas pelo governo português nos finais da década de sessenta 3, ainda que circunscritas a um único aglomerado. Em paralelo, o eclodir dos movimentos independentistas, desencadeou uma reflexão, de teor nacionalista, sobre os valores culturais específicos daquele povo, expressos não só nos bens construídos, mas também no património imaterial. Com a independência, a nação depara-se com questões prementes de (re)encontro com os valores identitários desse povo, então entendidos como sendo o resultado da miscigenação orgânica de culturas de raiz europeia e africana 4. A preocupação pela sua preservação, apesar de constantemente invocada pelos vários governos, só ganha efetiva expressão quando alguns representantes da UNESCO visitaram Cabo Verde na década de oitenta 5 e reconheceram o valor especial da Cidade Velha 6, a primeira fundação urbana em Cabo Verde e porto importante nas transações atlânticas na época esclavagista. Data de 1992 a primeira tentativa de candidatura dessa urbe a património da humanidade. Só alguns anos depois, após terem sido criadas condições para a realização do plano de gestão, que envolveu a participação do arquiteto Álvaro Siza no desenvolvimento do projeto de revitalização urbana, trabalho esse que passou pelo envolvimento da população local na definição das premissas gerais. A candidatura foi aceite e a antiga cidade de Ribeira Grande, passou a pertencer à lista do património mundial da humanidade. Como afirma José Manuel Fernandes: “Em termos de património construído, a classificação da Ribeira Grande / Cidade Velha de

3 AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana – Mindelo”. edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007). p.164 “A nação cabo-verdiana é o resultado da mistura étnica e cultural de portugueses com mais de vinte nações africanas.” Idem, ibidem.5 “Esta primeira missão da UNESCO no campo da preservação dos bens culturais teve como objectivo avaliar os bens de Cabo Verde e formular sugestões para a elaboração de um plano de valorização do mesmo. A missão realizou-se de 27 de Novembro a 27 de Dezembro de 1980 e permaneceu a maior parte do tempo na ilha de Santiago, mas visitou também as ilhas do Fogo (4 dias), de S.Vicente (4 dias), e de Santo Antão (2 dias).” Idem, ibidem.6 “A Ribeira Grande, hoje conhecida como a “Cidade Velha" de Santiago (classificada pela UNESCO como Património da Humanidade), que constituiu a primeira cidade europeia em África, desenvolveu-se a partir do século XV ao longo de uma ribeira escavada entre vales, espaço propicio para protecção e obtenção de água - num território geralmente árido e inóspito.” in FERNANDES, José Manuel - Luso Africana – Arquitecturas e Urbanismo na África Portuguesa, Lisboa: Caleidoscópio, 2015. p.35

Page 22: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

23

Santiago como património mundial / World Heritage pela UNESCO, em 2009, foi sem dúvida um marco de dimensão internacional para a vida cultural do arquipélago 7.” Depois de atingir esse objetivo, tem-se trabalhado de forma mais intensa e abrangente na valorização, preservação e classificação do património nas suas diferentes tipologias (tanto materiais como imateriais), sendo algum destes monumentos recuperados. Um dos exemplos mais recentes é o atual Museu da Resistência, instalado no antigo Campo de Concentração do Tarrafal. Estas ações trazem esperança numa melhor abordagem desse tema, no entanto é possível identificar ainda algumas lacunas, nomeadamente no que se refere a alguns casos de arquitetura vernacular.

Para além da investigação concretizada no âmbito académico, a administração pública nomeadamente o Instituto do Património Cultural, órgão do ministério da cultura, tem realizado trabalhos de salvaguarda do património arquitetónico cabo-verdiano. Por sua vez, entidades privadas como o Atelier Mar 8 tem trabalhado tanto na sensibilização para o reconhecimento de valores culturais, como na dinamização e preservação de técnicas ligadas a construções tradicionais, artes e ofícios do país. A ONG dispõe de um Centro de Formação na cidade do Mindelo onde forma artesãos oriundos de várias ilhas do país, nas mais variadas tecnologias 9.

Partindo do reconhecimento da pertinência do tema e das lacunas existentes nos trabalhos que abordam o património arquitetónico cabo-verdiano, a dissertação irá procurar desenvolver os seguintes pontos:

1- fazer o enquadramento histórico do processo de salvaguarda de bens culturais, apresentando alguns dos seus protagonistas e das suas iniciativas. Procuramos colmatar algumas das lacunas identificadas em trabalhos anteriores da mesma natureza, que restringem a abordagem ao período histórico da colonização portuguesa, pelo que a diacronia contemplada nesta dissertação se

7 FERNANDES, José Manuel; JANEIRO, Maria de Lurdes; MILHEIRO, Ana Vaz - Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa, Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA, 2014. p.13 “Em 2013 o governo assinalava, no quadro do património cultural e construído, a existência de cinco urbes classificadas como Património Nacional: O Plateau (núcleo histórico) da Praia, o Mindelo, São Filipe, Ribeira Brava e Nova Sintra (esta reconhecida em Outubro de 2013) – para além dos dois sítios classificados, a Pedra de Lume e o “Campo” do Tarrafal.” Idem, p.138 “O ATELIER MAR - Mais do que recuperar e promover as artes e ofícios de Cabo Verde, o Atelier Mar (onde Leão Lopes é um os mentores desde o seu inicio) desenvolve um trabalho exemplar junto da população mais carenciada, não só de São Vicente mas também na ilha de Santo Antão, no Concelho de Porto Novo, em Lajedos. A formação, integração social, preservação dos recursos hídricos e ambientais e a preservação da cultura e identidade das populações rurais são algumas das iniciativas que esta ONG desenvolve. ‘Atelier Mar – Centro de Artes e Ofícios.” in SILVA, José Carlos de Paiva e - ARTE/desenvolvimento. Porto: FBAUP, 2009. p.1119 Idem, ibidem.

Page 23: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

24

estende até à atualidade 10.

2 – fundamentar a análise da práxis de intervenção patrimonial anterior ao momento da independência nacional em estudos exemplares, conhecer e analisar os dinamismos anteriores à independência e expor acontecimentos da pós-independência, as dinâmicas e os contributos que guiaram a exaltação da cultura e a preservação do património cabo-verdiano. Investigadores como José Manuel Fernandes, Ana Vaz Milheiro e Vera Mariz têm vindo a desenvolver um vasto trabalho, que engloba temas como o urbanismo e a arquitetura no ultramar, que incluem algum enfoque sobre Cabo Verde 11. Para a fase pós-independência recorreu-se aos inúmeros trabalhos produzidos em contexto académico que focam temas como a arquitetura doméstica, o património monumental e os museus em Cabo Verde 12.

3- mostrar alguns dos traços da arquitetura vernacular de matriz popular, no sentido de expor as suas características e o seu contributo para a identidade arquitetónica tradicional. Também são exibidos projetos de reabilitação com análises aos métodos utilizados, as tradições recuperadas, as permanências,

10 Os estudos teóricos desenvolvidos, nomeadamente por intelectuais que, de certa forma, contribuíram para a definição da cultura local e ao mesmo tempo para a valorização patrimonial no arquipélago. A nível teórico é de destacar que existem abordagens diversas de forma a enaltecer os valores da cultura cabo-verdiana. Luís Benavente para além de dirigir dos trabalhos de reabilitação dos monumentos da Cidade Velha na década de sessenta, também produziu alguns trabalhos teóricos acerca dos monumentos e do património cabo-verdiano, por sua vez, Orlando Ribeiro no seu livro “A ilha do Fogo e as suas erupções” deixou um legado importante sobre a cultura e arquitetura da ilha do Fogo, do mesmo modo, o geografo Ilídio Amaral produziu um trabalho de investigação exaustivo sobre a ilha de Santiago reproduzido na monográfica “Santiago de Cabo Verde, A Terra e os Homens” publicado em 1964. Na pós-independência João Lopes Filho, antropólogo cabo-verdiano, contribuiu de forma ativa com a produção de estudos sobre a antropologia cultural e o património sociocultural do arquipélago.11 Exemplos de livros desses autores: - Cidades e Casas da Macaronésia, José Manuel Fernandes (1993) - NOS TRÓPICOS SEM LE CORBUSIER, Ana Vaz Milheiro (2012) - Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, José Manuel Fernandes, Maria de Lurdes Janeiro, Ana Vaz Milheiro (2014); - Luso Africana – Arquitecturas e Urbanismo na África Portuguesa, José Manuel Fernandes (2015); - a “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguarda do património arquitectónico português ultramarino (1930-1974), Vera Félix Mariz (2015)12 Exemplos de trabalhos académicos: - Construir e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde na Cidade Velha, Ana Filipa Marques (2001) - Habitação rural em Santo Antão, Catarina Sampaio (2006) - Áreas protegidas e/ou zonas de desenvolvimento turístico em Cabo Verde: o caso da Boa Vista, L. LIMA (2008) - Arte / desENVOLVIMENTO, José Carlos Paiva Silva (2009) - O Museu da Resistência: Museutransnacional, Carlos Mendes (2010) - Reconversão da penitenciária e a sua reinserção urbana: Museu da Resistência, Paulo Alexandre Monteiro Lima (2010) - A prática de uma aprendizagem, Ângelo Lopes (2014) - Uma Proposta de Valorização para o Museu da Resistência do Tarrafal, Claudino Borges (2014)

Page 24: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

25

como também as inovações introduzidas.

4- mostrar como algumas manifestações do turismo cultural podem constituir um caminho alternativo de desenvolvimento e salvaguarda do património arquitetónico, capaz de assegurar a preservação do espírito dos lugares e das suas identidades.

5- mostrar como as construções contemporâneas ligadas ao turismo, maioritariamente de massas, que, perseguindo modelos globalizados, configuram identidades e imaginários estranhos à essência cultural do arquipélago, podem constituir um entrave à preservação do legado patrimonial, contrariamente às arquiteturas que reinterpretam as características construtivas tradicionais.

Page 25: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

26

Metodologia e Estrutura

O estudo empírico baseia-se na análise de intervenções arquitetónicas recentes, concretizadas em diversas ínsulas, e considerados exemplares. Para isso foram selecionados cinco casos de estudo, resultantes de projetos com naturezas, programas e modus operandi díspares, têm em comum o facto, em conjunto, materializarem um amplo espectro de questões e um quadro teórico mais abrangente, tais como, a reabilitação urbana, reabilitação de edifício e equipamento, restauro, musealização e construção nova.

A abordagem aos casos de estudo propõe, numa primeira parte, a exposição descritiva de cada situação, após o que será feita uma reflexão crítica individual, apoiada pelo confronto com outros projetos de natureza similar. Objetivamente, a observação analítica dos casos procura dar a conhecer a geografia, os contextos físicos e sociais e o processo de desenvolvimento dos trabalhos, pela identificação dos intervenientes e das características do projeto. A caraterização social e física do território onde o edifício se insere é estruturada de forma a contemplar questões que vão do macro espaço até à envolvente próxima, procurando transmitir nuances da experiência real dos espaços. A apresentação dos programas de ação é feita através da descrição das motivações e negociações entre atores, mostrando a especificidade de cada situação. A abordagem ao projeto de arquitetura é formulada no sentido analítico da forma, exibindo as opções de projeto, as dificuldades e descortinando os valores promovidos. Nesse sentido, também procura conhecer a fase de construção da obra e, consequentemente, os resultados atingidos. Contudo, a abordagem aos casos de estudo procura expor os contributos para a salvaguarda patrimonial inerentes a cada um, como também verificar possibilidades de uso dos valores reconhecidos na arquitetura contemporânea.

Neste sentido, o estudo implicou a realização de tarefas distintas, mas complementares, tais como: análise de fontes bibliográficas (monografias e ensaios); abordagem dos casos de estudo, recorrendo a referências monográficas, periódicos, fontes arquivísticas, desenhos técnicos e informações orais; realização de entrevistas aos protagonistas dos casos a analisar, a partir das quais foi possível reunir dados objetivos. Foram ainda recolhidas fontes primárias na investigação de campo com registo dos objetos de estudo através de diferentes meios, tais como, visita às obras, fotografia e desenhos.

A dissertação está estruturada em quatro partes interdependentes. A primeira faz a exposição das motivações, objeto e objetivos, pertinência e a metodologia do estudo.

No primeiro capítulo expõe-se o quadro teórico e tenta-se caracterizar os principais conceitos associados às temáticas da dissertação e faz-se o enquadramento histórico da salvaguarda do património em Cabo Verde, a

Page 26: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

27

caracterização geográfica do arquipélago e da sua arquitetura vernacular.

No segundo capítulo será feita a análise e a interpretação de cada um dos casos de estudo, identificando-se alguns modelos que lhes serviram de referências ou que por elas foram informados. Será assim feita uma reflexão sobre o projeto e uma comparação com outros casos, em contexto nacional ou internacional. Em modo de conclusão, a última parte da dissertação expõe uma consideração final e lança algumas perspetivas para futuros trabalhos.

Page 27: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 28: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

CAPÍTULO 1ENQUADRAMENTO

Page 29: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

30

1.1 - Património, Identidade e Valor

“Pouco ou nada vem do génio ou do acaso. Aquilo que somos é daquilo que fomos construindo ao longo do tempo, e é sempre, inequivocamente, uma construção da história. Em todos os tempos e em todas as épocas, houve sempre quem considerasse que, antes de si o caos…Estultícia apenas, menoridade dos humanos. Os chamados «génios» foram sempre, de um modo geral, os primeiros a reconhecê-lo. E em património, enquanto disciplina, impõe-se desde logo, como estética profissional, uma atitude de humildade e respeito perante o legado que devemos trabalhar.”13

Elísio Summavielle

O moderno conceito de património14 cultural, cuja origem remonta aos finais do século XVIII, evoluiu bastante no seu recorte conceptual, ganhando maior abrangência e diversidade. Inicialmente centrado no monumento isolado ou em pequenos setores da sua envolvente, posteriormente passa a integrar conjuntos edificados, espaços urbanos e, por fim, o território, nas suas dimensões material e imaterial.

As diferentes cartas doutrinárias e convenções internacionais que versam sobre as problemáticas patrimoniais foram contribuindo para a contínua revisão da definição de monumento e das respetivas ferramentas de gestão e salvaguarda15.

A Carta de Atenas, que fixa as conclusões da Conferência Internacional sobre o Restauro dos Monumentos, realizada em 1931, procurou estabelecer critérios gerais de intervenção no património arquitetónico, de entre os quais se pode destacar o apelo para a importância do uso e da preservação da função do monumento, associadas à sua manutenção regular, de modo a garantir a conservação e assim evitar as tão prejudiciais reconstituições integrais. O apelo ao respeito pela dimensão autoral da obra e pela necessidade de preservar e respeitar o carácter não só do monumento como da sua envolvente. Retomando alguns dos princípios doutrinais de autores consagrados, nomeadamente de Camillo Boito, reconhece-se a pertinência de suprimir partes do edifício que constituam ruídos e ofusquem a sua leitura, ou então de acrescentar novos

13 SUMMAVIELLE, Elísio - “Memória e identidade”. in Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arquelógico, I,P. - 100 Anos de Património Memória e Identidade. Portugal 1910-2010, Lisboa: IGESPAR, 2010. p.514 “Património (Bem de herança que passa, de acordo com as leis, dos pais e das mães para os filhos). Esta bela e muito antiga palavra estava, na origem, ligada às estruturas familiares, económicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo.” in CHOAY, Françoise – A Alegoria do Património. Lisboa: Edições 70, 2016. p.1115 “A primeira Conferência Internacional para a Conservação dos Monumentos Históricos, realizada em Atenas em 1931, reuniu apenas europeus. Na segunda, realizada em Veneza em 1964, participaram três países não europeus: a Tunísia, o México e o Perú. Quinze anos mais tarde, oitenta países pertencendo aos cinco continentes tinham assinado a Convenção do Património Mundial.” Idem, p.14

Page 30: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

31

elementos, mas sempre garantindo a diferenciação entre o novo e a matéria original. No caso de restauros de ruínas preconiza a colocação no primitivo lugar das partes do edifício que estavam derrubadas, através dum processo de anastilose. Para além dessas recomendações especificas e de caráter eminentemente operativo, os técnicos lançaram um apelo generalizado a todos povos para respeitarem e cuidarem dos monumentos 16, numa antevisão do que seria o conceito de património da humanidade.

Em 1964 teve lugar a segunda conferência internacional, da qual resultou a Carta de Veneza. É de destacar que nesta edição do congresso houve uma ampliação do objeto de estudo relacionado com o património pois a carta refere-se não só a monumentos, mas também a sítios. A própria definição de monumento histórico ganhou maior amplitude, englobando agora todo o “testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de acontecimento histórico”, onde cabem também as obras modestas e anónimas, que tenham adquirido com o tempo um significado cultural. Nesse sentido, ficam abrangidas as arquiteturas vernaculares. Também foram feitos apelos a uma mais cuidada salvaguarda do valor de documento histórico do monumento, convocando diferentes áreas científicas e tecnológicas para participarem no processo de salvaguarda. Quanto à intervenção material, surgiram as seguintes recomendações:

- proceder a estudos arqueológicos e históricos antes da intervenção;

- conservar os estilos das diferentes épocas encontradas no edifício;

- respeitar os materiais originais;

- estabelecer processos de distinção e reversibilidade, no caso de ser necessário introduzir novos elementos na composição;

- como também todos os elementos novos têm de respeitar a composição original;

- cuidar da salvaguardar não só da integridade do edifício isolado, mas igualmente do contexto físico onde se inserem

- preservar a função do edifício, ou introduzir novos usos, desde que compatíveis, de modo a que este se possa manter útil à sociedade 17.

Após o encontro de Veneza, aconteceram inúmeros momentos de debate e reflexão sobre a salvaguarda patrimonial, embora se pressinta uma cada vez maior especialização dos assuntos. O reconhecimento do valor das arquiteturas

16 Carta de Atenas sobre o Restauro de Monumentos , Atenas (Grécia), 1931.17 Carta de Veneza sobre a Conservação e o Restauro de Monumentos e Sítios, Veneza (Itália), 1964.

Page 31: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

32

anónimas e, por vezes, da arquitetura popular fora já afirmado no século XIX, por Ruskin que “teorizou a inclusão no património edificado a preservar, dos conjuntos urbanos históricos, da arquitectura anónima que, ao longo de inúmeras gerações, construiu a cidade” 18, essas arquiteturas constituem valores que englobam a identidade, as tradições e as vivências de um povo. Neste sentido, no caso específico deste trabalho, para nos dar uma apreciação dos valores inerentes a arquitetura vernacular poderá ser importante, e tal como foi observado na convenção sobre a arquitetura vernacular no México em outubro de 1999,

“The built vernacular heritage occupies a central place in the affection and pride of all peoples. It has been accepted as a characteristic and attractive product of society. It appears informal, but nevertheless orderly. It is utilitarian and at the same time possesses interest and beauty. It is a focus of contemporary life and at the same time a record of the history of society. Although it is the work of man it is also the creation of time. It would be unworthy of the heritage of man if care were not taken to conserve these traditional harmonies which constitute the core of man's own existence.”19

Será ainda de referir a Carta da Cracóvia, publicada no ano 2000, que lança o desafio de se estabelecer planos para a gestão integrada e sustentável dos bens, fundamentada no reconhecimento dos impactos futuros e mudanças de paradigmas de as ações poderão ser objeto, de modo a prever riscos de degradação física ou destruição do significado cultural do património. Para isso, defendem que deve haver maior preocupação com o fator humano, no sentido de garantir a preservação da autenticidade e da identidade culturais. A formação e a educação generalizada da população é fundamental para se assegurar maior envolvimento dos diferentes grupos sociais no processo de atuação. No caso de ser necessária a realização de intervenções, alerta para a importância do conhecimento prévio dos bens a proteger e para a necessidade de mobilizar equipas multidisciplinares ao nível dos processos de avaliação e de reflexão sobre os valores socioculturais e os contextos socioeconómicas dos lugares, para promover a preservação dialética dos diferentes estratos históricos. Também houve um apelo para a necessidade de compreensão e respeito pelo carácter das paisagens nos processos de intervenção, pois “as paisagens reconhecidas como património cultural são o resultado e o reflexo da interacção prolongada nas diferentes sociedades entre o homem, a natureza e o meio ambiente físico. São testemunhos da relação evolutiva das comunidades e dos indivíduos com o seu meio ambiente.”20

18 AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do património. Porto: FAUP, 2002. p.8119 CHARTER ON THE BUILT VERNACULAR HERITAGE (1999), México20 Carta de Cracóvia sobre os Princípios para Conservação e o Restauro do Património

Page 32: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

33

Reportando a um paradigma no qual as identidades demonstram ser importantes, uma das conclusões da conferência afirma que “o objectivo da conservação dos monumentos e dos edifícios com valor histórico, que se localizem em meio urbano ou rural, é o de manter a sua autenticidade e integridade, incluindo os espaços interiores, o mobiliário e a decoração, de acordo com o seu aspecto original.” A conservação pode ser efetuada através de diferentes modalidades operativas diferenciadas e, porventura, complementares, tais como: o controle do meio ambiental, a manutenção, a reparação, o restauro, a renovação e a reabilitação.

Hoje, é geralmente reconhecido que a atuação sobre o património e o vasto espectro de questões que esta comporta, exige um trabalho consciente, contínuo e pluridisciplinar, em que haja uma permanente atualização de conhecimentos e debate crítico sobre os princípios teóricos. O reconhecimento e a salvaguarda do património, nas suas dimensões material e imaterial, envolvem decisões por parte das entidades reguladoras, tendo em vista não só a conservação dos valores herdados, mas a criação de novos valores para o futuro. Embora complexo, poderá ser a forma mais prudente para informar o trabalho de salvaguarda e preservação desses bens. As questões nunca se esgotam nem existem soluções definitivas, sendo necessário enfrentar constantemente novos desafios, através dum processo contínuo de autorreflexão, de teor coletivo e interdisciplinar. Como afirma Nuno Valentim:“Os problemas do património despertam “…nos nossos dias, um interesse sem precedentes, afectando decisões políticas e grandes correntes culturais”. Este interesse e a perceptível mediatização do tema necessitam de ser acompanhados por reflexão sobre as práticas, investigação e produção de conhecimento.” 21

Um dos temas que mais tem mobilizado o esforço intelectual é a questão das identidades, num momento em que se assiste a uma mais intensa e rápida metamorfose cultural, por processos globalizados de contaminação, aos que se opõem geralmente reações locais.

“A questão das identidades – pessoais ou coletivas, sociais, locais ou nacionais – é sem dúvida das mais controversas, levantando problemas filosóficos e epistemológicos demasiadamente mal resolvidos até hoje, na minha opinião, por resvalarem com excessiva frequência para o essencialismo identitário. Foi por isso, creio eu, que a historiografia convencional se manteve cética e mesmo distante perante a questão das identidades.”22

Construído, Cracóvia (Polónia), 2000.21 LOPES, Nuno Valentim - Projecto, Património Arquitectónico e Regulamentação Contemporânea. Sobre Práticas de Reabilitação do Edificado Corrente. Porto: FAUP, 2016. p.222 CABRAL, Manuel Villaverde - A Identidade Nacional Portuguesa: Conteúdo e Relevância. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2003. p.513

Page 33: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

34

Manuel Vilaverde Cabral expõe assim a complexidade que envolve a questão da identidade cultural, apontando o essencialismo identitário como um caminho que leva ao impasse, pois reporta para um entendimento rígido e fixo dos valores em causa. No mesmo sentido, podemos afirmar que “as identidades colectivas nunca são, portanto, nem definitivas nem sempre estáveis (embora muitas vezes estáveis), mas frequentemente, works in progress. São, quase por regra, constitutivamente incompletas: daí a sua plasticidade, o seu dinamismo, a sua contingência, a sua impureza.”23

Assumir a nossa origem e dizer que pertencemos a um lugar faz parte da nossa identificação, não ter isso faz com que alienemos da realidade 24. Sabendo que a identidade é construída por meio do reconhecimento das semelhanças e da diferença em relação ao outro, nesse sentido, podemos assumir que

“a identidade é, por isso, um processo dinâmico de negociação radicado no presente, sugerindo a constante construção e reconstrução das suas fronteiras simbólicas […]. A identidade não é, portanto, uma propriedade natural e essencial inscrita nas coisas e nas pessoas. É, antes, algo que os indivíduos ou os grupos decidem voluntária e estrategicamente construir […]. Neste sentido, toda a formulação da identidade é apenas uma versão da mesma, podendo coexistir diversas versões de uma mesma identidade, sendo que toda a versão da identidade é sempre ideológica, pois estabelece uma relação dialéctica entre a realidade, as ideias, os valores e os interesses de quem a propõe e activa.”25

No caso das identidades culturais e urbanas, onde existe um coletivo a formular as suas identificações, tudo poderá ser mais complexo pelas entidades envolvidas e pela maneira difusa que as coisas podem suceder. Como refere Boaventura Sousa Santos,

“sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a mulher, o homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis

23 MOREIRA, Carlos Diogo – “Prefácio”. in PERALTA, Elsa; ANICO, Marta, [et al.] Patrimónios e Identidades: Ficções Contemporâneas. Oeiras: CELTA EDITORA, 2006.24 “Ter uma identidade significa, de facto, ter tomado posse de um mundo, compreendido com um acto de idenficação. Somente quando se alcançar essa identificação, poder-se-á dizer que se habita no verdadeiro sentido da palavra (…) Assim, dizemos como auto - identificação: sou 'florentino', ou sou “romano”. Se este aspecto do viver for perdido, surge a alienação, o alheamento e, na sua relação com o mundo, o Homem perde a sua base existencial.” in AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do património. Porto: FAUP, 2002. p.11525 PERALTA, Elsa; ANICO, Marta, [et al.] - Patrimónios e Identidades: Ficções Contem-porâneas. Oeiras: CELTA EDITORA, 2006. p.2

Page 34: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

35

em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades, são, pois, identificações em curso.”26

Tentado direcionar estes pressupostos para o campo das identidades urbanas, e sabendo que as cidades estão em permanente transformação, tanto das suas gentes como das suas arquiteturas e paisagens, podemos afirmar que a interpretação das suas identidades pode ser aferida a partir das permanências, sobre os elementos que asseguram alguma continuidade de sentido aos lugares. Ou seja, entendemos que as características mais estáveis de um lugar podem ser reconhecidas durante mais tempo, enquanto que as características fugazes podem não permanecer nas nossas memórias, por outro lado, a identidade pode também ser reconhecida nesse dinamismo de transformações e nas novidades que uma cidade ou um lugar pode oferecer. A identidade pode assim ser forjada pelo aspeto mutante que a realidade carrega. Tema de grande complexidade pelo seu carácter polissémico, os processos de construção identitária implicam o constante acompanhamento das dinâmicas culturais.

Um outro conceito, intrínseco à própria noção de património, que implica uma abordagem atenta por conter possibilidades de interpretação carregadas de subjetividades é o de valor. Nós atribuímos valores aos objetos, aos lugares e às coisas em geral, através de juízos que possuem uma carga relativa e que, como tal, obrigam a que sejam estabelecidos processos de negociação intersubjetiva de que resultem critérios comuns que informem uma apreciação objetiva e coerente dos bens patrimoniais.

O reconhecimento dos mecanismos de afirmação dos valores, sua estratificação e coexistência por vezes conflitual deve-se ao trabalho do historiador vienense Aloïs Riegl (1858-1905), publicado em 1903, “O Culto Moderno dos Monumentos”. Ainda hoje este documento constitui a base para a reflexão sobre a identificação dos valores da obra arquitetónica.

“Riegl entendeu como valores contemporâneos dos monumentos os seguintes: (i)valores artísticos relativos, referentes a uma sensibilidade contemporânea; (ii) valor de novo, que a sociedade sempre atribuiu a uma aparência fresca, de récem-acabado, no apresso ou preferência da coisa nova sobre a coisa velha (iii) finalmente, o valor de uso, tomado sobretudo como critério de distinção entre o monumento histórico e as ruínas, as quais não possuem valor de uso, mas apenas valor memorial e histórico.”27

26 SANTOS, Boaventura de Sousa - Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-modernidade. Porto: Edições Afrontamento, 1994. p.11927 AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do património. Porto: FAUP, 2002. p.48

Page 35: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

36

É de salientar que os valores expostos por Riegl estão presentes não só nos monumentos 28, mas também num campo mais difuso que pode incluir a arquitetura popular, a arquitetura corrente, os equipamentos urbanos. Os critérios estabelecidos por Riegl alertam-nos para o facto de algumas categorias de valores se oporem entre si, o que gera situações de grande complexidade quando se pretende atuar sobre esses organismos. Segundo Nuno Valentim,

“a análise e a percepção precursoras de Riegl põem ainda a descoberto as exigências simultâneas e contraditórias dos valores que envolvem o edificado patrimonial – também estes dependentes das circunstâncias e por isso negociáveis caso a caso: “0 valor de antiguidade opõe-se ao valor de novo e ameaça o valor de uso, enquanto este, por sua vez, pode criar incompatibilidades com o valor artístico e o valor histórico. Estes valores contraditórios produzem compromissos que, na óptica do autor [Riegl], são negociáveis caso a caso, em função do estado do monumento e do respectivo contexto social e cultural. (…) A percepção dos conflitos latentes no interior da noção de monumento histórico explica, de certo modo, a ambiguidade em que, por vezes, caem os doutrinadores e práticos do restauro e que assombra, de forma geral, as iniciativas de salvaguarda do patrimônio histórico no século XX.”29

28 Os valores de monumento e seu desenvolvimento histórico - “Por monumento no sentido mais antigo e originário compreende-se uma obra de mão humana, construída com fito determinado de conservar sempre presentes e vivos na consciência das gerações seguintes feitos ou destinos humanos particulares (ou conjuntos de tais feitos e destinos). Pode ser um monumento artístico ou escrito, conforme se dá a conhecer ao espectador o acontecimento a imortalizar com os meros meios expressivos da arte plástica ou valendo-se de uma inscrição; o mais frequente é encontrarem-se unidos em igual grau em dois géneros.” in RIEGL, Alois - O Culto dos Modernos dos Monumentos. Lisboa: Edições 70, 2016. p.929 LOPES, Nuno Valentim - Projecto, Património Arquitectónico e Regulamentação Contemporânea. Sobre Práticas de Reabilitação do Edificado Corrente. Porto: FAUP, 2016. p.19. - Citando: NETO, Maria João Baptista. Memória, Propaganda e Poder: O Restauro dos Monumentos Nacionais (1929-1960). Porto: FAUP, 2001. p. 51.

Page 36: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 37: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

38

500 km 500km

01 Cabo Verde, situação geográfica

Page 38: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

39

1.2- Cabo Verde, Situação Geográfica e Arquitetura Vernacular

Cabo Verde é um país insular formado por dez ilhas vulcânicas. Situa-se a cerca de quinhentos quilómetros de distância da costa ocidental de África 30. “Pela sua situação geográfica na zona tropical atlântica, o Arquipélago de Cabo Verde é tipicamente um estado do «Sahel»: «Le Sahel en pleine mer»”,31 facto que lhe confere um clima tropical seco de aridez acentuada. As ilhas compõem paisagens diversificadas, entre a tropical e a aridez desértica,32 e, “tal como os países do Continente Africano, o Arquipélago conhece um longo período de seca de 9 meses e um período irregular de chuvas no Verão/Outono de 5 meses.”33

As ilhas de Cabo Verde foram descobertas durante as expansões portuguesas “entre 1460 e 1462, por António da Noli, Diogo Gomes e Diogo Afonso, constituídos lugares inicialmente desabitados, que foram seguidamente povoados pelos portugueses” 34. Encontradas desérticas e sem condições favoráveis para constituição de povoados, o certo é que estavam numa posição favorável de ligação aos novos portos mirados pelas frotas portuguesas, o que impulsionou a fixação humana. Anos após o descobrimento, a ilha de Santiago foi o principal porto de escala e tráfego esclavagista,35 constituindo uma paragem obrigatória nas ligações marítimas transatlânticas 36. Fundaram-se aqui

30 “As Ilhas de Cabo Verde ficam situadas a cerca de 500 Km a ocidente da ponta mais ocidental de Africa - o «Cap Verd» (Senegal), do qual as ilhas receberam o nome. Situando-se entre 14° 48' e 17° 12' de latitude norte', assim como entre 22° 41' e 25° 42' de longitude oeste, são as componentes mais a sul do grupo de ilhas constituídas pelas ilhas dos Açores, Madeira, Canãrias e Cabo Verde. Na direcção do principal vento dominante de nordeste, o Arquipélago é dividido em Ilhas do Barlavento a norte, que são compostas pelas Ilhas de Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal e Boa Vista e os Ilhêus Branco e Razo, e a sul pelas Ilhas de Sotavento, que se compõem das Ilhas de Maio, Santiago, Fogo, Brava, às quais se juntam os Ilhéus Secos: Grande, Luís Carneiro e Cima.” in KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecológicos e económicos: tentativa de análise. Instituto Caboverdiano do livro, 1987. p. 13-1431 Idem, p.2432 “Sub-tropicais e áridas, escassamente povoadas desde a sua descoberta na segunda metade do século XV, as dez ilhas de Cabo Verde representaram por séculos uma escala útil nas longas viagens transatlânticas, e na articulação com a costa africana.” in FERNANDES, José Manuel - Luso Africana – Arquitectura e Urbanismo na África Portuguesa, Casal de Cambra; Caleidoscópio, 2014. p.3533 KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecoló-gicos e económicos: tentativa de análise. Instituto Caboverdiano do Livro, 1987. p.2434 FERNANDES, José Manuel; JANEIRO, Maria de Lurdes; MILHEIRO, Ana Vaz - Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa, Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA, 2014. p.735 Idem, p. 836 “O arquipélago serviu de apoio às passagens marítimas transatlânticas ao longo dos séculos, criando-se em várias das suas ilhas diversos núcleos urbanos, o mais antigo dos quais constitui hoje um precioso vestígio em ruínas (Cidade Velha de Santigo), classificado como

Page 39: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

40

02 A Ribeira Grande vista do mar, gravura holandesa de 1635

Page 40: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

41

vários núcleos urbanos, sendo o primeiro a cidade da Ribeira Grande. Depois da fixação nesta, num processo lento, os ocupantes foram explorando as outras ilhas 37, não havia quem se disponibilizasse para habitar nas outras ilhas mais isoladas e com escassez de recursos. A ilha do Fogo foi a segunda a ser povoada e estabeleceu-se com atividades ligadas à agricultura. A confluência de várias culturas, motivadas pelo tráfego esclavagista de que o arquipélago foi palco, implicou uma readaptação do modo de vida das comunidades, num lugar climática e geograficamente diferente. A consolidação de uma cultura local resultou desse fenómeno de adaptação, e a identidade do país foi construída a partir daí. A ideia seguinte traduz certamente esse processo de miscigenação:

“Cabo Verde parece ser um lugar onde dois mundos conluiram para se encontrarem, onde duas raças se esforçaram por se cruzar e onde a história é feita mais de estórias de sofrimento do que de alegria. A realidade, porém, é outra: há um só mundo, e é novo, não há raça, existe o cabo-verdiano, e as histórias são estórias de esperança.” 38

Cada uma destas ilhas tem as suas particularidades físicas, do que resultam quadros socioeconómicos específicos, determinados pelos recursos disponíveis. Pela diversidade das atividades produtivas, Santiago é a ilha que se apresenta como a mais polivalente. Santa Luzia permanece despovoada e tem sido preservada praticamente no seu estado natural, constituindo uma reserva ecológica. Atualmente, estas ilhas da “morabeza” já não representam uma escala indispensável para as frotas que atravessam o atlântico, mas possuem um encanto que atrai visitantes, principalmente na procura de refúgio e descanso no aconchego e calor do povo e das ilhas.

Relativamente às expressões de arquitetura cabo-verdiana, verifica-se que, num momento inicial, as construções seguiam modelos semelhantes aos da metrópole, o que parecia corresponder às necessidades dos colonizadores, no entanto, com o tempo e acompanhando a mudança das circunstâncias, os nativos foram criando tipologias arquitetónicas e processos construtivos próprios. Em Cabo Verde, a edificação vernácula de cariz popular é o resultado

Património da Humanidade pela UNESCO.” in FERNANDES, José Manuel; JANEIRO, Maria de Lurdes; MILHEIRO, Ana Vaz - Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa, Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA, 2014. p.737 “A colonização de Cabo Verde faz-se lentamente. Meio século depois de descobertas, ainda a maior parte das ilhas eram despovoadas”. in RIBEIRO, Orlando - A Ilha do Fogo e suas Erupções; Comissão Nacional Para As Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; (1ª Edição de1954); Lisboa, 1997. p.15338 Marques, Ana Filipa. (2001), Construir e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde na Cidade Velha. Prova Final, Porto, FAUP. p.25 – in “O erro de A. Carreira” de Humberto Cardoso, artigo publicado em “Cultura, Cabo Verde”, Publicação Semestral, nº2, julho de 1998, p.33.

Page 41: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

42

03 Esquema de planta da casa rural cabo-verdiana por Ilídio Amaral

Page 42: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

43

do processo enraizamento do homem às circunstâncias daquela geografia, constitui uma resposta ao clima, à topografia e às necessidades primárias da habitação. Com base nos escassos recursos oferecidos por aquelas ínsulas, o engenho utilizado para a construção procurou adaptar os materiais endógenos, em construções de volumetrias simples, que procuram coabitar com as topografias acidentadas dos lugares. Estas arquiteturas desempenham maioritariamente funções habitacionais e integram a paisagem rural das ilhas. São construções de pequenas dimensões, de volume único na sua génese e que, ganhando vizinhança, acabam por compor pequenos aglomerados.

A materialidade da construção é definida por materiais endógenos: a pedra - basalto ou calcário, dependendo da ilha; o colmo (constituído por folhas de cana-sacarina, folhas de coqueiro ou de tamareiras); o sisal e a madeira de coqueiro, para a armação da cobertura e para a construção das portadas dos vãos.

Construtivamente, a habitação vernacular cabo-verdiana apresenta-se de forma robusta. As suas paredes em alvenaria de pedra, têm espessuras generosas (entre 40 a 60cm), o que permite dar estabilidade e a inércia térmica necessária à adaptação ao clima quente. Essas paredes geralmente são de junta seca, embora, em casos mais raros, possam integrar o barro como elemento aglutinante. Habitualmente não têm revestimento, nem exterior nem interiormente, excetuando-se casos em que os recursos económicos dos seus proprietários, ou os recursos físicos da ilha em que se encontra, possibilitam a sua utilização. Este é o caso da ilha da Boavista, onde é comum a produção da cal como inerte para a composição de rebocos e para acabamento das superfícies.

No geral, as habitações apresentam poucos vãos, que se concentram nos alçados frontais, organizados por porta central (com dimensão de dois metros de altura por um metro de largura) e duas janelas laterais (com um metro por setenta centímetros) dispostas simetricamente. Nos alçados tardozes existem dominantemente vão único, correspondente a uma porta, posicionado em linha com a porta da fachada oposta. Só excecionalmente existem vãos nos alçados laterais, o que depende da existência ou não de volumes adjacentes na composição, porém, são sempre de pequenas dimensões. As caixilharias, em madeira, podem ser pintadas, o que também depende dos meios de cada proprietário.

A cobertura geralmente é de duas águas com inclinações de aproximadamente 45º. A sua estrutura é feita em barrotes de madeira sobre o qual apoia o revestimento em colmo, composto por ripados em cana de carriço que contém as camadas de palha, amarradas entre si com sisal.

O interior organiza-se em dois espaços apenas, uma sala e um quarto. As duas portas que se rasgam na fachada e no tardoz permitem o acesso e o atravessamento da sala, espaço que poderá acolher tanto a função de estar como de serviço, caso não existam outras dependências, como a cozinha ou a despensa, esse espaço poderá ser adaptado de modo a permitir essas ocupações. O quarto é um espaço de dimensão menor, tem uma entrada central perpendicular à sala e está reduzido a esse acesso. Os pavimentos, na sua génese, seriam em terra batida, mas posteriormente começou-se a utilizar a pedra como acabamento para o piso.

Page 43: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

44

04 Aglomerado de casas em ambiente rural anos 60

Page 44: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

45

A habitação “prima pela simplicidade da sua planta e da construção, exprimindo bem o nível social e económico daqueles que a habitam” 39. Como foi já referido, a construção tem volumetria elementar, de piso único e cobertura de duas águas. O núcleo fundamental tem planta retangular, com dimensões que variam de 6 a 8 metros de comprimento por 3 a 4 metros de largura, contudo, há situações em que são adicionados outros corpos, que poderão ter diferente volumetria, dependendo da função e das condicionantes e geometria do terreno.

A implantação das partes que compõem a habitação exige algum cuidado, pela disposição em relação à incidência da luz solar. Habitualmente evitam-se as grandes aberturas viradas para sul e procuram-se garantir efeitos de sombreamento, recorrendo à plantação estratégica de árvores. Em complemento, o uso de sistemas passivos de ventilação, garantidos pela inteligente distribuição dos vãos, contribui para o nível de conforto deste tipo de construções. As habitações possuem geralmente um logradouro, organizado em dois espaços, um frontal em relação ao edifício e outro posterior, designados localmente por pátio e quintal, respetivamente. O núcleo da habitação unifamiliar tradicional, nas situações mais simples, é formado por sala e quarto, aos quais podem ser adicionados, de acordo com a necessidade e possibilidade do proprietário, a cozinha, a dispensa, a casa de banho.

Em contexto rural, verifica-se uma complementaridade entre o habitar e laborar, sem que haja uma clara segregação espacial destas funções. A habitação elementar, enquanto extensão do espaço de trabalho e produção, que é o campo, acrescentam-se outros corpos, funcionalmente especializados e autónomos, interligados por espaços exteriores polivalentes, resultando num conjunto mais ou menos complexo de volumes que se adequam, organicamente às características orográficas formando uma composição orgânica. Entre essas áreas está o quintal, o pátio frontal, espaços de apoio à cozinha e às atividades agrícolas. A junção dos vários núcleos permite a formação de aldeamentos com base em arquiteturas vernaculares.

A implantação, de modo a rentabilizar a reduzida área fértil, procura geralmente lugares periféricos aos terrenos agrícolas e inapropriados ao cultivo, devido à topografia acidentada ou ao difícil acesso. Estes fatores estimulam o engenho dos construtores que promovem uma integração, muitas das vezes, bem conseguida pelo respeito à orografia do terreno. São construções que dialogam fortemente com os aspetos geomorfológicos do lugar, o artificial e o natural parecem fundir-se num só organismo, o que cria uma harmoniosa ligação do edifício com o terreno, acrescentando valor ao lugar e compondo paisagens de beleza singular.

39 AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de Investigações do Ultramar; Lisboa, 1964.

Page 45: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

46

05 Paisagem rural Cabo Verde anos 60

Page 46: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

47

A arquitetura vernacular popular cabo-verdiana está a perder caráter e presença na paisagem, devido às transformações dos sistemas de produção, do quadro socioeconómico das ilhas, dos sistemas construtivos trazidos pela contemporaneidade e das práticas do habitar, factos que determinam uma perda irreparável do património arquitetónico nacional 40.

A pertinência da preservação dessas construções, tal como aponta Ana Filipa Marques no estudo que efetuou sobre a casa tradicional da Cidade Velha, “[…] também da arquitectura vernácula cabo-verdiana, “podem-se extrair lições de coerência, de seriedade, de economia, de engenho, de funcionamento, de beleza.” 41

40 “As tradições são postas em causa pela modernidade mas, no momento em que se anuncia um mundo novo, (re)descobre-se o valor do que se perde.” in AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do património, Porto, FAUP, 2002. p.3841 (interesse de recuperar as técnicas tradicionais) in MARQUES, Ana Filipa - Construir e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde na Cidade Velha. Prova Final, Porto: FAUP, 2001. p.74

Page 47: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

48

06 Ruínas da Sé Catedral da Cidade Velha anos 60

Page 48: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

49

1.3 - Temáticas de Valorização do Património Arquitetónico em Cabo Verde

Diferentes momentos marcaram o processo histórico de reconhecimento, valorização e atuação sobre o património arquitetónico no arquipélago, os quais, informados pelas diferentes conjunturas políticas e ideológicas. Apesar de submetidos a um quadro jurídico e administrativo comum, durante o período colonial, os territórios ultramarinos assimilaram e adequaram as diretivas emanadas pela metrópole, no entanto, aquilo que se constata é que as ações relativas a identificação e a salvaguarda dos monumentos suscitaram preocupações em momentos distintos nos dois territórios.Uma das primeiras medidas jurídicas para proteção de vestígios documentais do passado do reino 42, data do reinado de D. João V e traduz uma prática comum às monarquias europeias, que tinha como propósito reafirmar as vetustas origens da nação e a importância do seu devir histórico. De acordo com Ana Cristina Martins,

“foi D. João V (1706-1750) a personificar este movimento cientifico-cultural que fecundava as vivências intelectuais de Setecentos e assumia o património histórico-artístico como riqueza de toda uma colectividade, num exercicio de despotismo ilustrado e de acção exercida directamente pelo Estado sobre a sua salvaguarda.”43

Entre as medidas tomadas por este monarca, contam-se a criação da Academia Real de História em 1720 e, no ano seguinte, a publicação dum alvará que defendia a preservação das memórias do passado 44. O registo e a preservação da memória das antiguidades nacionais passaram então a ser concretizados, não apenas através da redação de memórias descritivas, mas sobretudo pelo registo gráfico através do desenho 45. Apesar desta iniciativa precoce, é somente no século seguinte, após a instalação do regime liberal, que são desenvolvidas as primeiras reflexões em torno do

42 RODRIGUES, Paulo Simões “O longo tempo do património. Os antecedentes da República (1721-1910)”. Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arquelógico, I,P., - 100 Anos de Património Memória e Identidade. Portugal 1910-2010, Lisboa, 2010. p.2043 MARTINS, Ana Cristina - Património histórico-cultural: a emergência das reformas (do Liberalismo ao Republicanismo) - 1.ª parte. Património Estudos nº5, 2003. p.4144 Idem, ibidem.45 Idem. p.42

Page 49: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

50

07 Mosteiro da Batalha 08 Mosteiro dos Jerônimos

Page 50: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

51

conceito moderno de “monumento nacional” e das modalidades teóricas para a sua salvaguarda e valorização, em boa parte impulsionadas pelo pensamento romântico de Almeida Garrett. Alexandre Herculano, bibliotecário-mor do reino, deu uma significativa contribuição para a disseminação destas questões, com a criação, em 1840, da Sociedade Conservadora dos Monumentos Nacionais e a publicação, na revista O Panorama, da coluna sobre os “monumentos pátrios” 46. A fundação da Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portuguezes (AACAP) e da mais tardia Comissão dos Monumentos Nacionaes, instituições imbuídas da missão de salvaguarda do património arquitetónico e arqueológico, em convergência com instituições congéneres anteriormente fundadas em França, Espanha, Alemanha e Inglaterra, assinala a participação pioneira da sociedade civil neste campo de ação.

Este movimento associativo permitiu construir e consolidar um património teórico no campo disciplinar, nomeadamente através dos textos e dos exemplos que publicavam no Boletim de Architectura e Archeologia. No início, informado pelas teorias experiências práticas do arquiteto francês Viollet-le-Duc, que desde 1830 vinha aferindo os critérios de restauro estilístico no estaleiro da catedral de Nôtre Dame de Paris, a práxis do restauro em Portugal tem particular expressão em dois dos mais celebrados monumentos pátrios: os Mosteiros da Batalha e dos Jerónimos 47. Desenvolvido ao longo de um século, este processo embrionário, culmina, já após a implantação da república, na publicação dos primeiros instrumentos jurídicos de proteção, nomeadamente da lista de classificação dos Monumentos Nacionais em 1910. Neste grupo não estava contemplado nenhum exemplar localizado em território africano.Apesar da distância geográfica e cultural, em Cabo Verde, que nessa altura era colónia portuguesa, não deixaram de ter expressão algumas destas preocupações relativas à salvaguarda patrimonial. Foi o risco de desaparecimento dos vestígios de antigos monumentos abandonados que levou o bispo radicado no arquipélago, em meados do século XIX, a alertar as autoridades para o estado de conservação em que se encontravam as

46 “… também na senda do modelar periódico O Panorama, da responsabilidade da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, em cujas colunas ganhou forma a versão portuguesa das antiquitées nationales - os “monumentos pátrios” -, por mão de A. Herculano, para quem a filosofia Kantiana deveria sobrepor-se à aristotélica, num primado do mundo “interior”, introspectivo, sobre o exterior, mais próximo da Natureza, que o estilo gótico tão bem soubera traduzir.” in MARTINS, Ana Cristina - Património histórico-cultural: a emergência das reformas (do Liberalismo ao Republicanismo) - 1.ª parte. Património Estudos nº5, 2003. p.5047 MARTINS, Ana Cristina - Património histório-cultural: a emergência das reformas (do Liberalismo ao Republicanismo) - 1.ª parte. Património Estudos nº5, 2003. p.33-50

Page 51: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

52

09 Cidade Velha, vista sobre a Sé anos 60

Page 52: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

53

construções da Cidade Velha:

«Algumas igrejas e capelas pareciam-lhe cavalariças, cobertas de palha, com chão de terra, sem portais nem reboco. A Ribeira Grande, actual Cidade Velha, com “edifícios quase destruídos e os que restavam cobertos de palha”. Os objectos de prata da Sé Catedral foram, nessa época, fundidos e transformados em moeda. Os grandes edifícios desabitados eram demolidos e as suas pedras de cantaria enviadas por barco a Praia. Nem se quer a Sé foi poupada. Em 1875, O Secretário-geral do Governo solicitava ao bispo autorização para demolir e para aproveitar o seu material.» 48

A perda de importância económica do arquipélago, em consequência da interrupção do tráfego esclavagista, associado à falta de recursos naturais e à inospitalidade daquele território, determinou a secundarização deste território, em relação às demais colónias que possuíam recursos naturais com valor económico. A fragilidade política da I República, envolvida em constantes problemas financeiros que se viram agravados com a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial, limitaram bastante a capacidade de intervenção nas colónias, algumas das quais foram também cenário de guerra. Por outro lado, as instituições administrativas locais não tinham condições financeiras nem autonomia política para a implementação duma estratégia concertada de salvaguarda do “património histórico e artístico”. Apesar disso, assinala-se a tentativa do governador de Cabo Verde, Filipe Carlos Dias de Carvalho, de proteger os vestígios monumentais da Cidade Velha, através do seu estudo e pela intervenção arquitetónica: atribuindo à Direção de Obras Públicas o ónus da sua conservação 49. Uma década mais tarde, no âmbito da celebração dos 400 anos da criação da Diocese de Cabo Verde e Guiné, o Deão da Sé de Cabo Verde, António José de Oliveira Bouças, escreveu uma carta aberta à população, intitulada “Apelo em Pró das Ruínas da Antiga Cidade da Ribeira Grande em Santiago – C. Verde 1533-1933”, onde demonstrava a sua insatisfação perante a ineficiência das ações de salvaguarda desse património 50. Associado a esta carta, o manifesto de João Lopes, alerta

48 Ofício de maio de 1850 do bispo D. Patrício Xavier Moura. in AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana – Mindelo”. edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007). p.1649 através da Portaria nº40, [Boletim Oficial da Província de Cabo Verde], citado por MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974) - LISBOA, 21-23 de Junho de 2012, IICT - Instituto de Investigação Científica Tropical e ISCSP-UTL - Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, 2013. p.250 MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património portu-

Page 53: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

54

10 João Lopes em Ribeira Grande

Page 54: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

55

para o valor histórico da Sé Catedral da Cidade Velha, no contexto patrimonial do império, acentuando que a ruína desse edifício “é o principal monumento da primeira cidade da primeira ilha da primeira Colónia Africana Portuguesa!”, assinalando em simultâneo o desconhecimento que a população local, nomeadamente a elite intelectual, tinha deste local. Produtos duma educação que privilegiava o conhecimento da realidade metropolitana em detrimento da especificidade geográfica e histórica dos contexto local, bem traduzido na expressão:

“Como bom cabo-verdiano, naturalmente desconheces a histórica Cidade Velha, pois levaste 6 anos nos Liceus a estudar Geografia e não estudaste a Corografia da tua terra em 7 meses! Que importa isto, se conhecer todos os ramais dos caminhos-de-ferro da Metrópole e os afluentes de todos os rios espanhóis que passam por Portugal!!!” 51.

A ação de João Lopes em torno da causa da reabilitação da Cidade Velha prolongou-se, ele fundou em 1936 a revista Claridade, editada em Mindelo, que “marca como que o início de uma tomada de consciência com o propósito de se interessar pela terra, defendendo o cabo-verdiano como uma entidade social e psicológica e dedicando-se ao estudo do meio sócio-economico e cultural do arquipélago.”52 De forma algo camuflada, o manifesto de João Lopes denuncia a “politica de sujeição”, dominante até à II Guerra Mundial, em que a colónia era um mero espaço de exploração e em que as populações locais eram mantidas em regime de menoridade e marginalidade cívica, controladas por um apertado funcionalismo administrativo dependente da metrópole 53.A partir da década de 1950, a pressão da ONU para que as potências imperiais abandonassem os territórios ocupados obrigou, como reação, a que Portugal revisse a sua política colonial, no sentido de tentar integrar das colónias num todo nacional, sempre governado a partir da metrópole. Em 1952, o ato colonial é revogado e revisto o estatuto dos indígenas. As colónias passam então a ser

guês ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974) - IICT - Instituto de Investigação Científica Tropical e ISCSP-UTL - Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, 2013. p.251 FUNDAÇÃO JOÃO LOPES, CIDADE VELHA – RIBEIRA GRANDE DE SANTIA-GO. Praia: Publicom, 2015. p.1552 LOPES FILHO, João - Defesa do Património Sócio - Cultural de Cabo Verde, Lisboa: ed. Ribeiro, José A. 1985, p.154. (in “Presença Cabo-verdiana” – nº 19/20. Lisboa, Julho / Agos-to, 1974)53 Idem, ibidem.

Page 55: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

56

11 Bairro Craveiro Lopes, Cidade da Praia terceiro plano anos 60

Page 56: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

57

designadas de “Províncias Ultramarinas” 54, e o estado português incrementa os investimentos nesses territórios nomeadamente com a construção de infraestruturas, equipamentos e habitação para as populações indígenas. Cabo Verde usufruiu dos programas de fomento lançados pelo governo a partir de 1953 55. Dois anos depois, aquando a deslocação do chefe do estado português ao arquipélago, o programa de visita envolvia a inauguração de um conjunto de equipamentos administrativos, do bairro habitacional Craveiro Lopes, de algumas obras de fomento agrícola e industrial, numa clara manifestação dum ideal de progresso económico em detrimento da valorização cultural 56.A oportunidade para a afirmação do valor patrimonial dos vestígios da ocupação colonial existentes no arquipélago sucedeu mais tarde, e por impulso dum evento externo, as comemorações do V centenário da morte do Infante D. Henrique, cujos festejos estavam centrados na cidade de Lisboa e no Algarve. A coincidência desta data com a do V Centenário da Descoberta das ilhas de Cabo Verde, em 1960, foi um motivo para que o Ministério do Ultramar desse início a um processo concertado de salvaguarda do património local, pois os monumentos foram chamados a participar, como testemunhas de factos históricos, integrados num programa assumidamente de defesa do império e que procurava manipular a opinião pública 57.O facto dessas comemorações preconizarem a glorificação da nação portuguesa permitiu que a colónia beneficiasse de apoio logístico por parte da entidade pública responsável pela salvaguarda do património em Portugal: a Direcção Geral dos Monumentos Nacionais. Foi esta instituição que cedeu o técnico responsável pela coordenação das intervenções nos monumentos que integraram às cerimónias comemorativas, o arquiteto Luís Benavente, o qual mobilizou uma equipa local para desempenhar de tarefas diferenciadas, entre as quais a identificação e inventariação do património, a elaboração de estudos

54 Lei orgânica do Ultramar Português - Lei n.° 2.066, de 27 de Junho de 1953.55 II Plano de Fomento 1959-1964 - Agência Geral do Ultramar (1961) - II Plano de Fomento 1959-1964 atribui a Cabo Verde cerca de 250 milhões. Mais de metade para comunicações e transportes seguindo-se fomento da agro-pecuária, instrução e saúde. in Cabo Verde, pequena monografia. Lisboa. p.3556 -1955 16 maio - O Chefe do Estado inaugurou o bairro de moradias para funcionário na Cidade da Praia – 62 residências com 2 divisões, cozinha e quintal; in Jornal O Século -1955 17 maio - O Chefe do Estado inaugurou um posto de fomento pecuário em Santa Catarina, Ilha de Santiago. Tem uma exposição de produtos agrícolas e artesanato com “Uma casa típica da região, com pocilga e nora, especialmente construída na exposição, representa a vida nesta província. É a casa do “badiu”, o camponês cabo-verdeano.” in Jornal O Século, 25 de Maio 195557 MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património portu-guês ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974), 2013. p.3

Page 57: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

58

12.1 Levantamento Luís Benavente - Igreja Nossa Senhora do Rosário12.2 Projeto de restauro Luís Benavente - Igreja Nossa Senhora do Rosário

Page 58: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

59

prévios e a participação nas ações construtivas 58. Também esse impulso promoveu a criação de uma legislação protetora para esses bens patrimoniais. A iniciativa teve especial impacto na Cidade Velha, localizada na ilha de Santiago, do que resultou a concretização de um conjunto de intervenções de conservação e restauro dos monumentos mais antigos, mais representativos e que estavam em melhor estado de integridade, caso da Fortaleza de S. Filipe e da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, considerada o templo mais antigo do arquipélago.

Ainda, no âmbito das comemorações, foi realizada uma exposição fotográfica dedicada às ruínas da Ribeira Grande, promovida e organizada pelo “Grupo de Amigos da Cidade Velha” 59 . A importância científica e documentais dos exemplares apresentados, pelas informações que davam das ruínas, determinou que as mesmas fotografias fossem posteriormente postas ao serviço do governo da província 60. Depois das comemorações, mais sensibilizadas para a importância dos bens patrimoniais do arquipélago (neste caso, dos mais antigos vestígios da ocupação e da soberania portuguesa), as instituições públicas intensificam as ações de salvaguarda do património na província, num processo que se prolongou por mais de uma década, pois a maioria das intervenções físicas datam do final dos anos sessenta. O arquiteto Luís Benavente, que dirigiu todos os trabalhos de restauro, foi o protagonista desta ação. Entre 1960 e 1970, Benavente deslocou pelo menos quatro vezes ao arquipélago 61, promoveu a formação de moradores locais para as intervenções de restauro, acompanhou o processo de restauro e desenvolveu vários trabalhos teóricos acerca dos monumentos e do património cabo-verdiano 62.

58 NETO, Maria João Baptista - Monumentos Nacionais - Memória, proganda e Poder (1929-1960). COSTA, Marisa (coord.) - Propaganda e Poder. Lisboa, Edições Colibri, 2001.59 “Acerca das actividades promovidas no âmbito das celebrações centenárias de 1960 interessa-nos destacar a exposição fotográfica dedicada às ruínas da Ribeira Grande, cuja organização foi assumida pelo “Grupo de Amigos da Cidade Velha”, nomeadamente por Aníbal Barbosa da Silva, José Delgado Freire, Luís Pires de Bastos, Mário Lima Furtado e pelo fotógrafo Francisco Delgado Freire, também conhecido como “FRANK”.” in MARIZ, Vera Félix - A “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguarda do património arquitectónico português ultramarino (1930-1974). Doutoramento. Lisboa: FLUL, 2016. p.28760 Idem, ibidem.61 “[…] arquitecto Luís Benavente que, em missão para o Ministério do Ultramar, foi quatro vezes a Santiago, entre 1960 e o principio da década seguinte.” in AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana – Mindelo”. edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007). p. 1662 -1967 - Luís Benavente: “Relatório acerca dos monumentos de Cabo Verde” -1969 - Luís Benavente: “Relatório acerca da salvaguarda e protecção do património de Cabo Verde” -1971 - Luís Benavente: “Processo para a classificação da Antiga Cidade da Ribeira Grande”

Page 59: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

60

13 Pelourinho em ruína 14 Pelourinho após restauro

Page 60: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

61

Apesar das dificuldades financeiras e técnicas que limitaram o alcance das intervenções, os trabalhos denunciam a tentativa de assimilação de alguns dos critérios estabelecidos pela Carta de Veneza 63 , recentemente redigida. Segundo o depoimento do arquiteto:

“Todos os trabalhos serão executados dentro das normas seguidas neste género de obra de acordo com a Carta Internacional para o Restauro e Conservação de Monumentos outorgada em Veneza em Maio de 1964 pela comissão internacional de que o signatário fez parte, documentando-se as respectivas fases do trabalho no sentido de uma publicação demonstrativa da obra realizada.”64

A capacidade do arquiteto de interpretar e adequar metodologicamente as ações às particularidades da circunstância geográfica e social do arquipélago, nomeadamente no que se refere à inexistência de recursos humanos qualificados para a execução dos trabalhos, levou-o a promover a sua formação nos próprios estaleiros. A intervenção na Igreja Nossa Senhora do Rosário foi pioneira neste aspeto, pois possibilitou não só o envolvimento da população local em diversas atividades de salvaguarda, mas também criação dum grupo habilitado para cooperar em futuros trabalhos de restauro e de consolidação dos monumentos, não apenas da Ribeira Grande, mas também noutros edifício localizados nas diferentes ilhas 65. Os benefícios obtidos com a integração da comunidade local nos trabalhos de restauro, serviria para estimular o apreço pelos monumentos da urbe 66 e habilitava-os a realizar tarefas regulares de manutenção. O que, mais uma vez, denuncia a tentativa de aplicação na prática dos princípios da Carta de Veneza.

63 MARIZ, Vera Félix - A “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguar-da do património arquitectónico português ultramarino (1930-1974). Doutoramento. Lisboa: FLUL, 2016.. p.32964 Idem, p.32465 Idem, p.32766 - Para Benavente, a salvaguarda do património arquitectónico de Cabo Verde não implicava apenas a protecção e divulgação dos edifícios mas, também, o benefício da comunidade local, a sua integração nos trabalhos como forma de travar a emigração e de fomentar o desenvolvimento de uma consciência patrimonial que travasse o recorrente problema da “caça à cantaria”, valendo-se, por exemplo, da realização de visitas guiadas aos monumentos. Nesta tentativa de estimular o apreço da comunidade pelos monumentos da Ribeira Grande, de garantir a sua fixação e de potencializar os resultados alcançados pelas obras de restauro, Benavente propôs, também, a instalação de redes de esgotos, de água e de electricidade, a pavimentação das ruas e o desenvolvimento do artesanato. Estamos, portanto, tal como afirmámos anteriormente, perante uma tentativa de estabelecimento de um desenvolvimento sustentável na Cidade Velha, local ao qual Luís Benavente reconheceu, também, um extraordinário potencial turístico. Idem, p.296

Page 61: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

62

15 Fortim Del Rei, ilha da Boavista

Page 62: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

63

As tarefas do arquiteto Luís Benavente não se esgotariam nos trabalhos em torno dos monumentos da Cidade Velha, sinal de que já existia uma preocupação com outras ilhas para além de Santiago. Também visita a ilha da Boavista com intenção de promover ações concretas de salvaguarda dos fortins, demonstrando o reconhecimento dos valores inerentes ao território. Durante a sua estadia, para além de dois relatórios de trabalho que serviriam como documentos de gestão, o “Relatório acerca dos monumentos de Cabo Verde” e o “Relatório acerca da salvaguarda e protecção do património de Cabo Verde”, elabora, ainda nos finais da década de sessenta e no início da seguinte, uma proposta para a criação de legislação mais apropriada às necessidades de proteção do património histórico artístico das ilhas 67.

A partir da década de 1950, em oposição às forças de unificação nacional, promovido pelo governo do Estado Novo, assiste-se ao início dum processo de desagregação do império, com o surgimento de sentimentos protonacionalistas que levam ao despoletar dos movimentos descolonizadores nas várias colónias. Apesar autonomia que os diferentes grupos políticos assumiram, havia um aspeto ideológico agregador: as várias colónias tentam a independência e para isso procuram reforçar os laços africanos, configurando um ideal de “pan-africanismo”. O momento, geralmente designado por “fase da tomada de consciência”, caraterizou-se pela atividade pioneira de algumas elites culturais, a partir da qual surgiram núcleos que deram origem às futuras estruturas políticas 68. Em 1951, um conjunto de estudantes universitários africanos que estudavam em Lisboa e se reunia na Casa dos Estudantes do Império, interessados no conhecimento da identidade dos países de onde eram originários, fundaram o Centro de Estudos Africanos 69. A tomada da consciência da situação em que estavam as suas pátrias promoveu a afirmação do espírito “nacionalista” por parte dos estudantes africanos que frequentavam esse local, contaminando as futuras gerações de alunos. Após o regresso a Cabo Verde, os inúmeros estudiosos que concluíam os estudos nas universidades estrangeiras, sentiam-se no dever de contribuírem com os seus saberes para o progresso do país.

67 MARIZ, Vera Félix - A “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguarda do património arquitectónico português ultramarino (1930-1974). Doutoramento. Lisboa: FLUL, 2015. p.29868 CORREIA, Pedro Pezerat - A descolonização. in REIS, António(coord.) – PORTUGAL 20 ANOS DE DEMOCRACIA, Círculo de Leitores, 1994. p.4369 Contributos históricos para a Independência de Cabo Verde [consultado em: 23 08 18] Disponível em http://nosgenti.com/contributos-historicos-para-a-independencia-de-cabo-verde/

Page 63: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

64

16 Amílcar Cabral e Pedro Pires

Page 64: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

65

Enquanto estudante em Lisboa, Amílcar Cabral também frequentou a Casa dos Estudantes do Império e mobilizou um grupo entre guineenses e cabo-verdianos que, em conjunto, criaram os fundamentos para a luta pela independência das duas colónias.

“Após uma análise científica do colonialismo português, Cabral defendeu que a política de assimilação e alienação imposta por Portugal tinha levado a população cabo-verdiana, principalmente a “pequena burguesia”, culturalmente desenraizada, alienada ou mais ou menos assimilada, a renegar a sua herança cultural africana e a desenvolver um certo complexo em relação à sua origem negra. Além disso, a classe assimilada passou a manifestar uma atitude de distanciamento e desprezo em relação à cultura das massas populares. Perante tal realidade, tornava-se necessário libertar a população assimilada desse complexo e levá-la a tomar consciência da dimensão africana da sua cultura e assumir esta sua africanidade. Para isso acontecer, era primordial um “regresso às origens”, que Cabral designou de “reafricanização dos espíritos”, que consistia na negação da cultura assimilada da potência dominante e, por conseguinte, na busca e valorização dos traços culturais de origem africana que caracterizam o homem cabo-verdiano.” 70

Outros intelectuais cabo-verdianos 71 e guineenses juntaram-se e constituíram uma força mental e física que partilhava das mesmas estratégias e ideologias para combater a força colonizadora. Existia a consciência de que essa luta não se ficava apenas na exaltação da independência, mas havia que definir o rumo para o futuro. Cabral projeta então um caminho próspero para o país, afirmando que, “no quadro da conquista da Independência Nacional, na perspectiva da construção do progresso económico do povo, o desenvolvimento de uma cultura popular e de todos os valores positivos autóctones é um objectivo a atingir.”72 Para Amílcar Cabral, este objetivo não se esgotava na exaltação da cultura viva do seu povo, mas também na redescoberta do passado do país e das suas memórias, que se concretizava em políticas de salvaguarda dos vestígios materiais que representavam esse processo histórico. Embora existisse a intenção/vontade de preservação da tradição cultural cabo-verdiana, Cabral estava ciente de que o caminho para o desenvolvimento do país passaria

70 Contributos históricos para a Independência de Cabo Verde [consultado em: 23 08 18] Disponível em http://nosgenti.com/contributos-historicos-para-a-independencia-de-cabo-verde/71 Desse grupo fazia parte a elite intelectual cabo-verdiana: Amílcar Cabral, Aguinaldo Fonseca, Gabriel Mariano, José Leitão da graça, Onésimo Silveira, entre outros.72 LOPES FILHO, João; Defesa do Património Sócio - Cultural de Cabo Verde, Lisboa: ed. Ribeiro, José A. -1985, p.10.

Page 65: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

66

17 Amílcar Cabral com grupo da Casa dos Estudantes do Império

Page 66: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

67

igualmente pela sua abertura ao mundo 73.Os traços culturais cabo-verdianos foram sendo delineados ao longo dos séculos que se seguiram à descoberta do arquipélago. Apesar da existência de uma identidade cultural consolidada, na sequência da luta pela independência, os seus protagonistas foram chamados a refletir sobre aquilo que seriam os valores culturais a assumir. Com a independência de Portugal, obtida oficialmente em 5 de julho de 1975, o país entrou numa fase de restruturação, que implicou a criação das condições para a afirmação de um estado de direito que garantisse o funcionamento de um governo próprio e para a exaltação do carácter da cabo-verdianidade. Num processo coletivo, conduzido por intelectuais, tanto locais como ligados à Guiné, em boa parte formados no estrangeiro e imbuídos de ideais atualizados, procuraram reconhecer e identificar os traços e os valores essenciais que poderiam suportar uma nova identidade, fundamental para a afirmação do país como uma nação única e independente. Daqui resultou a exaltação dos valores mais diretamente relacionados com as tradições africanas daqueles povos em detrimento daquilo que poderia representar era a cultura do colonizador.O processo de estruturação do novo governo cabo-verdiano decorreu quase que em simultâneo com a rutura das relações com a Guiné, pelo que, a partir de 1980 o partido que tinha suportado as ideologias da luta nos dois territórios acabou por se separar e o caminho seguido pelo dois países divergiu, condicionados pelas circunstâncias históricas de cada uma das nações, uma vez que o passado pré-colonial de ambos era distinto pois em Cabo Verde não existiam antecedentes à época colonial 74. Nesse sentido, nunca houve uma rutura com a matriz deixada no território, independentemente se provinham de épocas de escravatura ou da ditadura política, edifícios relativos a essas épocas tinham as suas histórias na memoria do povo, no entanto, a visão sobre esse legado foi sendo desmitificada e tais construções ganharam uma importância histórico-cultural. Nessa fase de consolidação da jovem nação, em que se mostrava determinante a promoção de novos valores e da identidade histórica

73 “Temos que criar uma cultura nova baseada nas tradições também, mas respeitando tudo quanto o mundo hoje tem de conquista para servir o homem” in LOPES FILHO, João - Cabo verde – subsídios para um levantamento cultural. Lisboa: Plátano Editora, 1981. p.5274 “No memorando que endereça ao Governo português, a 15 de Novembro de 1960, o PAIGC na pessoa do seu líder, Amílcar Cabral, propõe um conjunto de medidas com vista à libertação pacífica de Guiné e Cabo Verde. Assim, após a independência, Guiné e Cabo Verde passaram a ser dirigidos pelo PAIGC. No dia 14 de Novembro de 1980 o projecto de unidade caiu por terra por causa de um golpe Estado na Guiné, empreendido pelo Movimento Reajustador, liderado pelo então primeiro-ministro João Bernardo Vieira. Contrariamente a Cabo Verde, a vida democrática em Angola e Guiné-Bissau experimentou momentos de grande agitação.” in MENDES, Carlos Jorge Silva - o Museu da Resistência: museu transnacional. Mestrado em Museologia. Porto: FLUP, 2010. p.59

Page 67: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

68

18 Independência nacional de Cabo Verde 5 de julho de 1975

Page 68: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

69

e cultural do país, houve o contributo dum conjunto de atores sociais, entre os quais diferentes departamentos do aparelho de estado, algumas organizações não governamentais afetas à cultura, agentes intelectuais e, finalmente, entidades com origem externa. Foram vários os momentos que marcaram esse processo de promoção da cultura nacional e sua difusão internacional. Desde a independência e até ao início da década de 90, o quadro institucional e jurídico que estruturara o campo cultural sofre um grande incremento e complexificação. Logo em 1975, foi criado o Instituto de Nacional de Promoção da Cultura, incumbido da valorização do património cultural e da consolidação da identidade cultural nacional, a que se seguiu a constituição da Comissão de Investigação e Divulgação Cultural, em clara demonstração de interesse pelo enriquecimento e valorização da cultura local. Em maio de 1975 foi criada a Comissão de Investigação e Divulgação Cultural, cujos objetivos compreendiam a inventariação do património cultural e a sua divulgação, de modo a promover o envolvimento ativo da população. Data de 1978 a criação da “Comissão Nacional para promover o restauro, a reabilitação, defesa e a conservação dos monumentos nacionais e de outros valores do património artístico e cultural do país”75 e da Direcção-Geral, responsável pelas áreas de investigação, linguística, tradições orais, animação cultural, audiovisual e levantamento do património cultural 76.A Constituição Nacional, elaborada em 1980, atribuiu ao Estado um papel fundamental na promoção de condições favoráveis à salvaguarda da identidade cultural à preservação, defesa e valorização do património cultural do povo cabo-verdiano 77. Na década seguinte, a legislação procura integrar a preservação do património imaterial, preconizando uma visão integrada dos valores culturais 78. Na prática, uma vez que a área patrimonial se integrava num ministério que tutelava igualmente as pastas da educação, cultura, juventude e desporto, a política de salvaguarda viu-se secundarizado em função de um enfoque prioritário na promoção da educação.Este fator explica porque foi tão tardia a constituição dos museus nacionais, de que é exemplo o processo de criação do Museu Etnográfico da Praia. Apesar da sua criação ter sido, pioneiramente, proposta pelo antropólogo Mesquitela

75 AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana – Mindelo”. edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007). p.32.76 [consultado em 26 08 18] http://www.ipc.cv/index.php/sobre-ipc77 Constituição da República de Cabo Verde (1980) – artigo 16º78 TAVARES, Osvaldo dos Reis - Subsídios para o Estudo do Espaço Rural da Ilha de Santiago: Picos e o seu Património. Praia: Universidade de Cabo Verde. p.25

Page 69: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

70

19 Ruína da Igreja da Misericórdia, Cidade Velha

Page 70: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

71

Lima em 1965 79, o projeto não foi posto imediatamente em prática, havendo nova tentativa por iniciativa do governo em 1979, igualmente sem resultados. Somente na década de 90 o governo providenciou a recolha de objetos etnográficos para atingir esse fim 80, até que o projeto é concretizado no ano de 1997 com a constituição do Museu Etnográfico da Praia, agora com outros protagonistas. Após a fundação deste primeiro museu nacional, na viragem do século, assiste-se à cração de várias instituições museológicas orientadas para diversas temáticas, caso do Museu da Resistência, do Museu da Arte Tradicional ou do Museu da Água 81, em boa parte concentrados na ilha de Santiago. As dificuldades financeiras e a falta de recursos humanos qualificados têm limitado a sua proliferação e distribuição mais equitativas por todo o território nacional. Na atualidade é o Instituto do Património Cultural – IPC 82 que regula a salvaguarda do património em Cabo Verde 83.As questões patrimoniais envolvem diversas áreas e uma certa complexidade, e que pelas debilidades do país muitas vezes não existem meios técnicos suficiente para orientar esses trabalhos. Para além da ação pública estatal, ativa praticamente desde o momento da independência, Cabo Verde contou com o interesse de organismos de caráter internacional ou de outras nações. Logo, em 1978, aconteceu a primeira consultoria da UNESCO à Cabo Verde, que não foi bem-sucedida 84. Mas, dois anos mais tarde, o arquiteto Paulo Ormindo de

79 “Em 1965, Mesquitela Lima, numa conferência proferida nas cidades do Mindelo e da Praia, lança o repto às autoridades locais para a criação de um museu em Cabo Verde. Após a independência de Cabo Verde, em 1979 havia interesse por parte das autoridades cabo-verdianas em criar um Museu Nacional que representasse a alma cabo-verdiana. O projecto museológico foi encomendado ao antropólogo Mesquitela Lima. Por razões várias o projecto não foi materializado, sobretudo devido a falta de recursos materiais e humanos, associada ao conformismo ligado aos aspectos sociopolíticos.” in MENDES, Carlos Jorge Silva - o Museu da Resistência: museu transnacional. Porto: FLUP, 2010. p.9080 MENDES, Carlos Jorge Silva - o Museu da Resistência: museu transnacional. Porto: FLUP, 2010. p.9181 MENDES, Carlos Jorge Silva - o Museu da Resistência: museu transnacional. Porto: FLUP, 2010. p.8982 “O Governo de Cabo Verde aprovou o estatuto do Instituto do Património Cultural (IPC), pelo Decreto-lei nº 22/2014, de 18 de março. Um decreto que revogou, portanto, o Decreto-Regulamentar nº 2/2004, de 17 de maio. Um decreto que o definiu como um instituto público criado com a finalidade de identificar, inventariar, investigar, salvaguardar, defender e divulgar os valores da cultura, o património móvel e imóvel, material e imaterial do povo cabo-verdiano. O IPC sucede na universalidade dos direitos e obrigações, sem necessidade de quaisquer formalidades, ao Instituto da Investigação e do Património Culturais (IIPC). Entrando em vigor, após aprovação em Conselho de Ministros do dia 22 de maio de 2014.” [consultado 26 ago 18] Disponível em http://www.ipc.cv/index.php/sobre-ipc83 A instituição tem como finalidade “identificar, inventariar, investigar, salvaguardar, defender e divulgar os valores da cultura, o património móvel e imóvel, material e imaterial do povo cabo-verdiano.” [consultado em 26 08 18] Disponível em http://www.ipc.cv/index.php/sobre-ipc84 “An initial UNESCO mission took place in 1978. This was, however, not taken further because of a lack of human and financial resources.” in UNESCO - evaluations of cultural

Page 71: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

72

20 Projeto financiado pela União Europeia

Page 72: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

73

Azevedo empreende uma nova missão às ilhas, agora com resultados efetivos, de que se destacam a publicação, em 1981, do primeiro inventário sistemático do património cultural, designado por “Preservação do património cultural e arquitectural histórico de C.V.”. A cooperação portuguesa foi facilitada pelo facto de não ter havido uma ruptura das relações bilateriais, talvez pelo facto do processo de descolonização não ter envolvido um conflito armado. Entre os diversos apoios institucionais obtidos, contam-se, para a área da cultura, a promoção de ações de preservação do património através do trabalho em parceria com o Instituto Português de Património Arquitectónico (IPPAR), que apoiou a criação de uma instituição congénere, a Comissão Nacional para a Salvaguarda do Monumento Cabo-Verdiano. Esta tinha como objetivo a conservação e restauro dos monumentos em estado de degradação a fim de evitar a sua ruína completa, como foi o caso da consolidação das ruínas da Sé Catedral 85. Para além da cooperação com Portugal, são também de referir as parcerias com instituições espanholas, alemãs, inglesas, entre outras. Já antes da independência, o arquipélago havia recebido apoio através da cooperação helvética, e dois anos depois da independência foi apoiado nos trabalhos de contenção das dunas e no desenvolvimento da pesca artesanal na ilha da Boavista pela SWISSAD 86.As atividades de salvaguarda do património arquitetónico em Cabo Verde não se esgotaram na esfera governamental. Durante um longo período algumas das mais significativas iniciativas nesta matéria partiram de organizações não governamentais, constituídas no período pós-independência, e orientadas para a defesa e valorização das tradições culturais do país. Foi prática corrente a intervenção de individualidades ou de associações culturais alertando para a necessidade de preservação de alguns bens patrimoniais fundamentais para a afirmação identitária do país. Embora com manifestações mais centradas em individualidades detentoras de níveis de formação académica mais elevada, verificou-se uma participação efetiva da população em geral nestes assuntos, no entanto, uma vez que estas entidades estavam geralmente implantadas em espaços urbanos, nomeadamente na cidade de Mindelo, o seu impacto no seio das comunidades rurais foi mais reduzido.Em Cabo Verde, um território culturalmente e etnicamente homogéneo o pós-independência não envolveu situações de rutura absoluta e conflitual com o

properties. 2009. p. 2985 MENDES, Carlos Jorge Silva - o Museu da Resistência: museu transnacional. Mestrado em Museologia. Porto: FLUP, 2010. p.9086 KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista Cabo Verde Aspectos Históricos. 1987. p.7

Page 73: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

74

21 Capa do livro Defesa do Património Socio-Cultural de Cabo Verde

Page 74: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

75

passado, não houve a necessidade de se fazer “tábua rasa” ou de apelar a um regresso às origens, como se verificou noutras ex-colónias portuguesas. As diferentes atividades, dinamizadas por associações ou intelectuais nacionalistas, conduziram a uma revisitação dos aspetos culturais mais enraizados nas tradições, nos hábitos e nos costumes do povo, afirmando-os como plataforma para construir um país novo. Nesse período de consolidação da jovem nação, as dinâmicas e o ideário construído durante a luta pela libertação ainda estavam presentes. A consciência dos intelectuais e dos artistas cabo-verdianos da limitada capacidade de atuação do governo, fez com que se manifestassem em prol do desenvolvimento cultural do povo. Os diferentes teóricos estariam em completa liberdade de expressão para exporem as suas teses e pesquisarem sobre histórias da cultura cabo-verdiana, e nos anos que se seguiram após a independência já haviam sido publicadas estudos variados, principalmente afetos à cultura do país. De entre este grupo de intelectuais, destaca-se, pela abrangência da sua intervenção, o antropólogo João Lopes Filho. Com a sua personalidade ativa, Lopes Filho dedicou-se à escrita sobre a antropologia cultural cabo-verdiana, escreveu vários livros sobre o tema. Na década após a independência escreveu cinco livros com temas relacionados com a cultura cabo-verdiana, as tradições, a etnografia, o património. Em 1976 publica o livro, “Cabo Verde – Apontamentos Etnográficos” que inclui alguns textos mais interventivos, no sentido de chamar a atenção sobre alguns casos preocupantes, de modo a consciencializar a população e os poderes públicos para despoletar processos de salvaguarda. Além do caso da Cidade Velha, denunciou situações de degradação ou destruição intencional de monumentos e sítios em estado de abandono e de ruína. Entre os casos referidos estão: a igreja Nossa Senhora do Rosário e o Fortim Príncipe Real ambos em São Nicolau 87. Do mesmo modo a arquitetura corrente, e os aglomerados urbanos como centros históricos eram objetos que incentivavam preocupações secundadas por outros inteletuais e intervenientes na cena política. É exemplo a afirmação do deputado Rolando Lima Barber referente a São Filipe:

“demos ordens claras para ninguém tocar na arquitectura das casas e das praças, que têm muitas semelhanças com as aldeias de Portugal. As próprias casas, feitas de novo, as varandas e as janelas se reconstruídas, têm de obedecer rigorosamente ao risco original. Não queremos deixar perder esta relíquia e este museu.”88

87 LOPES FILHO, João – Defesa do património sócio-cultural de Cabo Verde. Lisboa: Ulmeiro, 1985. p.16288 Idem p.71

Page 75: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

76

22 Logotipo Atelier Mar23 Capa Facsmile da revista Ponto & Vírgula

Page 76: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

77

Além da preocupação expressa com esta urbe o governo demonstrou interesse na preservação de outros centros urbanos do arquipélago. Mesmo com essas forças ativas, existiram resultados negativos na salvaguarda do património. Lopes Filho denuncia esses males manifestando-se contra as incúrias com o património arquitetónico e o falso progresso que muitas das vezes foram conduzidas pelo próprio governo. Ele afirma que, “com a degradação dos edifícios-monumentos, grave é o estado a que se deixou chegar o nosso “património arquitectónico”,89 e apela ao zelo pela manutenção e recuperação do património arquitetónico, segundo um modelo de recuperação integrada em conjunto com o desenvolvimento urbanístico.O livro “Defesa do Património Sócio-Cultural de Cabo Verde” data de 1985, e aborda de forma mais incisiva a preservação do património imaterial, sempre associado ao seu contexto físico e social 90. Considera fundamental convocar a participação de toda a população na missão de valorização cultural, capaz de construir uma síntese entre passado e vontade de devir:

“é preciso, pois, despertar nas populações o interesse e a confiança nos seus valores culturais, estimular a sua capacidade criativa e entregar-lhes a responsabilidade de preservarem as suas raízes e, desta forma, afirmar a “Identidade Nacional Caboverdiana”. 91

Associaram-se ao referido movimento cultural outros criadores e pensadores que, intervindo em diferentes domínios, por ativa participação de jovens que se formaram no exterior e dentro de uma linha política definida. Entre estes conta-se Leão Lopes, formado pela ESBAL e que, regressando em 1979 a Cabo Verde, fundou o Atelier Mar 92, uma associação cultural que trabalha em contacto com populações de diversas ilhas e promove ativamente a tradição e a cultura

89 LOPES FILHO, João – Defesa do património sócio-cultural de Cabo Verde. Lisboa: Ulmeiro, 1985. p.7190 “Assim, um conjunto mais alargado de circunstâncias impõe a Cabo Verde independente a necessidade de vivificar a sua “cultura” e, ao mesmo tempo, preservar os testemunhos e valores do seu próprio Património.” in Idem, p.1291 Idem, p. 2192 “O Atelier Mar é uma organização autónoma criada em 1979 na ilha de S.Vicente, vocacionada para a promoção da cultura caboverdiana, centrada, na sua fase inicial, na revalorização da cerâmica. Através de iniciativas de animação cultural e de formação profissional, desde sempre se vinculou ao estímulo de jovens, interligando em práticas interculturais a arte, a cultura e o desenvolvimento. Em 1987 foi reconhecido como organização não governamental (ONG) sem fins lucrativos, e alargou a sua área de actividades, estreitando a sua ligação com o desenvolvimento comunitário, ampliando a sua vocação formativa e abraçando novas tecnologias (serigrafia, carpintaria, audiovisual, design gráfico e de equipamento, design de habitação e fabricação de materiais de construção com tecnologias adaptadas). Dispondo de um Centro de Formação na cidade do Mindelo, aí tem formado, ao longo da sua actividade, dezenas de artesãos oriundos de várias ilhas do país, nas mais variadas tecnologias.” in SILVA, José Carlos de Paiva e - ARTE/desenvolvimento. Porto: FBAUP, 2009. p.110

Page 77: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

78

24 Revista ponto & vírgula nª6 dezembro de 1983

Page 78: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

79

cabo-verdiana numa vertente de preservação do património artístico cultural, preservação da arquitetura tradicional, turismo e desenvolvimento através da exploração e promoção de materiais endógenos. O empenho da associação é visível também na amplitude das suas atividades, existe tanto a formação ligada às artes, como o empenho na promoção de comunidades empreendedoras tanto desenvolvimento de produtos como no acolhimento turístico.Quatro anos mais tarde, num ato de iniciativa privada e numa tentativa de partilha de conhecimento, Leão Lopes - artista plástico, Rui Figueiredo - psicólogo, e Germano Almeida -advogado que se iniciava como escritor, decidiram criar uma revista de intercâmbio cultural, fundaram a revista ponto & vírgula - revista de intercâmbio cultural (1983). A revista foi lançada de modo a exaltar a cultura do povo dessas ilhas, de certo modo herdando a missão que motivou a criação da revista Claridade, quase meio século antes. Segundo Vera Duarte, na altura

“havia uma ideia de corte com o passado, jovens a quererem conhecer e inovar alguma coisa e P&V começou também sobre este prisma inovador. Até aquela altura a única revista que nós tínhamos tido com alguma publicidade tinha sido a Claridade, as outras tentativas de revistas, a Certeza, o Seló, tinham sido extremamente precárias.” 93

A revista constituiu uma alternativa e um meio de expor ideias, identificar, reunir, exibir valores da cultura do arquipélago, por isso, muitos artistas, intelectuais e políticos aderiram à revista. Foi um meio para se expressarem várias opiniões, acolher vários novos talentos e constituir uma grande fonte de informação, saudando e criticando acontecimentos do arquipélago. A revista serviu como meio para diversos apelos em relação à salvaguarda do património, no sentido de preservação do legado histórico, também a vertente educativa da revista se manifestou nesse sentido, definindo diversos temas.

“P&V também possui a sua vertente pedagógica e não apenas em desenho. P&V falará também de arquitectura, património arquitectural e artístico. Tratará, por exemplo, do sobrado de Maria Chaves, em Fogo, dos armazéns do cabo submarino, da Cidade Velha, a primeira capital fundada nos trópicos… Não se trata de nostalgia. O objetivo é de sensibilizar para esta riqueza patrimonial que é muitas vezes é destroçada, negligenciada, esquecida. A revista exprime uma vontade de conservar, salvaguardar o que é fruto do passado do arquipélago. Será que pode haver uma verdadeira política cultural sem a preocupação de preservar o que faz parte da memória das ilhas?”94

93 ponto & vírgula - revista de intercâmbio cultural. (1983 - 1987) Facsimile das revistas editadas no MINDELO - PONTO & VÍRGULA, Edições – Cabo Verde, 2006. p.994 Françoise Massa, Rennes, 2006 in ponto & vírgula - revista de intercâmbio cultural. (1983 - 1987) Facsimile das revistas editadas no MINDELO - PONTO & VÍRGULA, Edições – Cabo Verde, 2006. p.14

Page 79: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

80

25 Maria Chaves - O Sobrado de"Ilhéu de Contenda"

Page 80: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

81

Pode-se afirmar que a revista teve um grande enfoque nas artes, fazia incentivo à criação artística e reflexão sobre a arte em Cabo Verde. Temas como arquitetura, artesanato, música, poesia, literatura, faziam parte do conteúdo da revista, mas também a culinária, a saúde pública eram temas habituais, na revista cabia tudo aquilo que servia de benefício para o povo cabo-verdiano não só nas ilhas como na diáspora. Desde o início, já sabiam as dificuldades que poderiam enfrentar, tanto a nível financeiro, como de aceitação do público, porém, apesar da boa aceitação, a revista contou com um público reduzido o que, de certa forma, não permitiu a continuidade do periódico. Ponto & vírgula contou apenas com edição de 17 números, lançados entre março de 1983 e dezembro de 1987. De curta duração, contudo, rica de conteúdos, e inquietações que continuam presentes. O legado deixado faz parte de um contributo amplo sobre o património material e imaterial de Cabo Verde.Um dos aspetos fundamentais da atuação do Atelier Mar está na capacidade de estabelecer redes com alcance simultaneamente locais e internacionais e de atrair pensadores estrangeiros, que enriquecem bastante o debate interno. Um romance de Teixeira de Sousa, Ilhéu de Contenda, despertou a atenção de dois professores da Universidade de Rennes – França, Jean Michel Massa e Françoise Massa, o que levou à descoberta da ilha do Fogo pela intenção de conhecer os personagens e os espaços onde desenrolaram aquelas histórias. Foi em 1986 que visitaram a ilha e procuraram conhecer os sobrados onde se desenvolviam as cenas, tendo encontrado aquelas arquiteturas em ruína. Reconhecendo o valor daquelas construções, tiveram a ideia de recuperação de um dos edifícios, conseguiram apoio do Ministério de Desenvolvimento Rural, que apoiaram a ideia e obtiveram a colaboração do Atelier Mar através de Leão Lopes 95.“Maria Chaves, um projecto que parte do passado para se perspectivar no presente da cultura caboverdiana; um projecto dinâmico que visa a defesa do património cultural como motor de desenvolvimento.”96 O projeto foi então feito a partir da reabilitação do edifício e a implementação de um programa de cariz cultural, incluindo um ecomuseu, circuito turístico e a produção de artesanato. A ideia concretizada neste projeto é um exemplo necessário para expor uma atitude que será preciso perante tantas arquiteturas que fazem parte do património dessas ilhas e que anseiam por ações de salvaguarda.

95 L. LOPES; J. M. MASSA; F. MASSA. in ponto & vírgula - revista de intercâmbio cultural. (1983 - 1987) Facsimile das revistas editadas no MINDELO - PONTO & VÍRGULA, Edições – Cabo Verde, 2006. p.5496 “Maria Chaves - “O Sobrado de “Ilhéu de Contenda” de Teixeira de Sousa, Suporte de um projecto cultural na Ilha do Fogo” – (…) A primeira ideia surgiu: reabilitar um marco histórico-literário da ilha, a partir de um trabalho de restauro de Maria Chaves e transportar o romance de Teixeira de Sousa para um outro plano de vivência cultural.” Idem, p.53

Page 81: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

82

26 Propaganda turístico - Ilha da Boavista 1972

Page 82: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

83

1.5 - Património, Turismo e Desenvolvimento

Desde a década de sessenta que o turismo balnear se vem assumindo como uma das atividades económicas mais viáveis e rentáveis para o arquipélago. Tanto nas ilhas como na metrópole já havia a consciência da possível importância dessa atividade, o que motivou o lançamento de programas de investimento e de ações de planeamento, em boa parte canalizados para os territórios algarvio e madeirense e centrados na construção de grandes equipamentos hoteleiros, que conduziram a uma transformação intensiva da paisagem. Nesse período, as atenções dirigem-se também para Cabo Verde, e ainda numa fase embrionária foram estudados os potencias das ilhas para acolher investimentos similares, com objetivo de tirar partido do crescimento da indústria de turismo internacional. Ainda que menos acarinhado, houve também a vontade e recorrer aos bens patrimoniais do arquipélago para se promover uma modalidade diferentes de turismo, com vocação cultural. A “Pequena Monografia de Cabo Verde”, editada em Lisboa em 1961, destaca como atração as ruínas da Cidade Velha, não tanto pelo seu valor patrimonial, mas associado às “óptimas condições para a prática de pesca subamarina” e acrescenta um elenco de paisagens naturais, tais como “o vulcão do Fogo: as paisagens amenas da ilha Brava, de abundante vegetação; a maravilhosa baía de S. Vicente, que é marginada por um morro enorme cujos recortes lembram uma figura humana…”. É de salientar que a maioria das atrações anunciadas remetiam para a apreciação de elementos naturais, denunciando assim a falta de interesse para os patrimónios urbanos, monumentais ou arquitetónicos 97.

No período da pós-independência, o governo cabo-verdiano, reconhecendo a importância económica do turismo nesta geografia, continuou com a anterior política, no sentido de capitalizar de forma progressiva os investimentos, para o estabelecer vários planos estratégicos para regular o desenvolvimento deste setor. Tratava-se, inicialmente, do intensificar o turismo balnear, devido às óbvias condições climáticas e paisagísticas das ilhas, procurando atrair investidores e público para esse tipo de lazer.

“A indústria do turismo em Cabo Verde tem sido pautada por estas premissas, orientando a promoção do país como um destino turístico alternativo, próximo da Europa, de clima ameno e recursos naturais bem conservados. O Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), elaborado em 1995, considera o turismo um setor estratégico para o desenvolvimento social e econômico do

97 Cabo Verde - Pequena Monografia, 1961. p.39

Page 83: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

84

27 Hotel riu-karamboa - Ilha da Boavista 200928 Hotel riu-karamboa - Ilha da Boavista 2009

Page 84: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

85

país. Esta perspectiva é reforçada no PND 2002-2005. O governo acredita que o setor é capaz de mobilizar e atrair recursos que a longo prazo poderão ser utilizados em outros setores estratégicos no desenvolvimento. Por este motivo, diversos são os incentivos para investimentos nesta área.”98

Para concretizar estes objetivos, foram criadas ferramentas para controlo do ordenamento dos territórios das ilhas com maiores aptidões turísticas, de forma a valorar as áreas abrangidas por essa atividade. Essas Zonas Turísticas Especiais foram desenhadas consoante a potencialidade dos seus solos Zonas de Desenvolvimento Turístico Integral e Zonas de Reserva e Protecção Turística 99.

Na atualidade, o turismo de massas é o que tem maior domínio no arquipélago e, por conseguinte, é o que causa maiores impactos urbanos no ordenamento territorial, induzindo efeitos negativos pela forma como permitem a construção de grandes equipamentos, incapazes de dialogar com as estruturas preexistentes e sobrecarregando a exploração de infraestruturas e dos recursos naturais. Alguns dos investimentos com maior impacto arquitetónico e urbanístico surgem maioritariamente na ilha do Sal e da Boavista, onde se assiste à introdução de modelos exógenos para servir as vontades de um público estrangeiro, projetos que não se enquadram na realidade do país, causando um contraste estético, volumétrico, urbanístico e até uma fragmentação social 100. Andreia Moassab traduz bem este fenómeno, denunciando que

“a política de ocupação do território em Cabo Verde, pautada pelos grandes empreendimentos imobiliários e pela valorização excessiva do cimento e vidro, tem colaborado para uma fragilização identitária. A massificação dos empreendimentos apaga as potencialidades e especificidades locais.”

98 ANDRÉIA MOASSAB (2012) Território e identidade em Cabo Verde: debate sobre a (frágil) construção identitária em contextos recém independentes no mundo globalizado [consultado 12 set 2019] Disponível em http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-em-cabo-verde-debate-sobre-a-fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx99 “O país apresenta 20 áreas classificadas em ZDTI e 12 ZRPT.” in COSTA, João Miguel Caroço da - Plano Detalhado de Chã de Caldeiras na Ilha do Fogo – Cabo Verde. Lisboa, Universidade Nova, 2015. p.41100 “Cabo Verde tem observado nos últimos anos uma gama de projetos pontuais de intervenção urbanística, muitos dos quais feitos por arquitetos estrangeiros que nunca estiveram no país, apresentando propostas fantasiosas, economicamente inviáveis e de alto impacto ambiental e social. Não obstante todos estes problemas, tais propostas são fortemente abraçadas pelo poder público, media e população locais, todos, de um modo geral, ávidos pelo “desenvolvimento”, em sua acepção mais conservadora.” ANDRÉIA MOASSAB (2012) Território e identidade em Cabo Verde: debate sobre a (frágil) construção identitária em contextos recém-independentes no mundo globalizado. [consultado 12 set 2019] Disponível em http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-em-cabo-verde-debate-sobre-a-fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx

Page 85: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

86

29 Batucadeiras

Page 86: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

87

Acrescenta ainda que, “a arquitetura destes hotéis é bastante reveladora deste pastiche cultural: domos árabes misturam-se a máscaras africanas, nivelando, por meio da arquitetura, perspectivas históricas e temporais distintas.”101

Formas alternativas de turismo, de caráter cultural, não tiveram o mesmo investimento por parte do estado, apesar de esse se assistir ultimamente a uma transformação deste quadro, devido à repercussão internacional obtida pela atribuição da categoria de património mundial ao conjunto urbano da Cidade Velha. Existe hoje um crescimento da procura de valores culturais específicos, numa visão integrada do património que concilia as dimensões “material” e “imaterial”. É o caso da música cabo-verdiana que ganhou grande visibilidade com os ritmos de “Mornas” glorificada pela Cesária Évora 102. Atualmente já não se visitam as ilhas apenas para usufruir do clima solarengo e das suas praias, há quem procure conhecer as tradições culturais do arquipélago, o que faz com que haja uma maior preocupação com a oferta cultural.

O estatuto conseguido pela Cidade Velha poderá ter dado um novo ênfase ao trabalho do ministério da cultura, o que se reflete nos lançamento de duas novas candidaturas junto da UNESCO, com objetivo de conseguir a atribuição da categoria de património mundial ao antigo “Campo de Concentração do Tarrafal” e de património imaterial da humanidade à “Morna” 103, factos que demonstram uma mudança do paradigma, relativamente aos investimentos. Para além destas iniciativas de maior alcance, tem sido dada continuidade aos trabalhos de classificação e proteção do património arquitetónico em geral, sendo de referir que este processo tem sido mais dirigido para os edifícios isolados, em detrimento dos centros históricos das cidades, ainda necessitados de programas abrangente de reabilitação e dos aglomerados rurais. Desta forma é possível reconhecer que há ainda um certo défice de atenção, por parte das autoridades públicas, em relação à proteção de exemplares da habitação tradicional e vernacular das ilhas, de que a exceção verificada no conjunto

101 ANDRÉIA MOASSAB (2012) Território e identidade em Cabo Verde: debate sobre a (frágil) construção identitária em contextos recém-independentes no mundo globalizado. [consultado 12 set 2019] Disponível em http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-em-cabo-verde-debate-sobre-a-fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx102 Cesária Évora (1941-2011), cantora cabo-verdiana com maior reconhecimento internacional e responsável pela globalização da música popular do país, mais especificamente da Morna. Ela também é conhecida como “Rainha da Morna” ou “A diva dos pés descalços”, que é como se apresentava no palco.103 Candidatura da Morna já está na UNESCO [consultado em 22 ago 18] Disponível em https://expressodasilhas.cv/cultura/2018/03/26/candidatura-da-morna-ja-esta-na-unesco/57311

Page 87: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

88

30 Cidade Velha

Page 88: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

89

classificado na Cidade Velha, tem pouca expressão. No entanto, a rápida transformação dos paradigmas socioeconómicos tem-se refletido na perda de muitas das estruturas tradicionais, pelo que se torna urgente a valorização pública desta tipologia, que foi a que historicamente respondeu da melhor forma às circunstâncias.

O ecoturismo e o turismo rural, práticas que primam pelo respeito pelo meio ambiente e pela educação ambiental, têm ganho adeptos no arquipélago e apresentam-se como alternativas válidas em relação aos modelos de exploração requeridos pelo dominante turismo de massas. Este fenómeno poderá vir a ter efeitos positivos, num contexto de considerável privação dos recursos naturais, caso da escassez da água. O turismo rural tem vindo a contribuir de forma positiva para a preservação da paisagem. Algumas modalidades deste género de turismo, que têm surgido nas montanhas de Santo Antão, de Santiago ou na ilha do Fogo, constituem práticas que fomentam o estreito contacto com os lugares, os habitats, possibilitando o conhecimento das tradições culturais, expressas na autenticidade dos modos de vida e da arquitetura vernácula. Em tudo divergem da tendência para a criação cenográfica de simulacros, enganadoramente considerados típicos, pelas quais a indústria do turismo de massas é responsável.

O aparecimento, nos últimos anos, de instituições de carácter museológico, configurando novos modelos de gestão cultural, pela abrangência da dimensão territorial em que manifestam a sua tutela, pelo facto promoverem a participação das comunidades e de procurarem articular tematicamente a cultura e a natureza, entrosando as tradições locais com os valores naturais e paisagísticos dos lugares.

Entre essas instituições está o ecomuseu que promove uma abordagem museológica que procura perpetuar hábitos e costumes, nesse sentido as populações são convidadas a envolverem em práticas tradicionais e a darem continuidade a essas atividades 104. Esta tipologia museológica encaminha-nos para uma leitura mais polivalente e fiel àquilo que o território representa,

104 (…) “um espelho onde a população se contempla, para nele se reconhecer, onde ela procura a explicação do território a que está ligada, juntamente com a das populações que a precederam, da descontinuidade ou continuidade das gerações. Um espelho que a população mostra aos seus hóspedes para que eles a compreendam melhor, no respeito pelo seu trabalho, pelo seu comportamento, pela sua intimidade”. Assim o ecomuseu combina o tempo, o espaço e o contexto social, ou seja, tem que ter obrigatoriamente por base um território determinado, no qual vive uma população com uma identidade própria, caso contrário, como atesta Rivière, não conseguirá subsistir. in TEIXEIRA, David José Varela - O Ecomuseu de Barroso. A nova museologia ao serviço do desenvolvimento local. Universidade do Minho, 2005. p.3

Page 89: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

90

ao mesmo tempo promove um desenvolvimento sociocultural comunitário, “pois faz parte do ecomuseu tudo quanto tem valor cultural e tudo o que está vivo e é utilizável pela população” 105. Por sua vez o centro interpretativo, embora associado ao modelo do ecomuseu, procura a disseminação do património cultural o que é positivo porque essas tipologias museológicas escolhem lugares, por vezes, mais remotos no contexto do arquipélago, o que tem um impacto positivo que poderá garantir a sobrevivência e o desenvolvimento dessas comunidades, garantindo, com naturalidade, alguma estabilidade e continuidade das tradições culturais.

Cabo Verde conta na atualidade com o turismo, tanto para o bem como para o mal. A promoção de modelos alternativos de desenvolvimento, associados ao turismo rural, ao ecoturismo, ao ecomuseu e poderá criar dinâmicas positivas na salvaguarda da cultura e das tradições, e consequentemente do habitat tradicional. Exemplos recentemente concluídos poderão ajudar a fundamentar e justificar esta ideia. Alguns destes, apesar da relevância da sua contribuição para o debate destas questões e enriquecimento da cultura arquitetónica nacional, têm conhecido pouca divulgação.

105 TEIXEIRA, David José Varela - O Ecomuseu de Barroso. A nova museologia ao serviço do desenvolvimento local. Universidade do Minho, 2005. p.4

Page 90: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 91: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 92: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

CAPÍTULO 2ANÁLISE e INTERPRETAÇÃO

Page 93: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

94

Brava

Fogo Santiago

Maio

Boavista

São Nicolau

Santa Luzia

São Vicente

Santo AntãoValorização Turística do Habitat Tradicional na Ribeira da Torre

Sal

31 Cabo Verde, localização dos casos de estudo

Spinguera Ecolodge

Museu da Resistência

Plano de Recuperação e Transformação

da Cidade VelhaSede do Parque Natural doFogo

Page 94: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

95

2.1 – Caracterização da amostra

Os casos de estudo escolhidos situam-se em diferentes ilhas do arquipélago cabo-verdiano, entre as quais a ilha de Santiago, Fogo, Boavista e Santo Antão, as duas primeiras pertencentes ao grupo das ilhas de Sotavento e as duas últimas ao grupo das ilhas de Barlavento. Apesar de apresentarem um denominador comum, que é a sua situação insular, a sua seleção responde à vontade de integrar situações com características físicas díspares, decorrentes da forma como se confrontaram com particularidades de cada lugar e ao facto de conformarem programas singulares. Deste modo, acredita-se, poderão induzir uma reflexão plural mais enriquecedora.

Na ilha de Santiago, no município de Ribeira Grande de Santiago, localiza-se um pequeno aglomerado urbano situado, comummente conhecido por Cidade Velha, antiga cidade de fundação portuguesa, que foi um ponto estratégico de escala na ligação Europa, África e América. “Situada entre montes e rochedos tão altos que não tem outra vista se não o mar” 106, a cidade aconchega-se na ribeira verde e extensa, abre-se para o mar e adapta-se à topografia acidentada do vale. O projeto de renovação, designado de Plano de Recuperação e Transformação da Cidade Velha, foi fundamental para o sucesso da candidatura a património da humanidade, conseguida em 2009.

Igualmente situado em Santiago, na localidade de Chão Bom, no extremo norte da ilha, o Museu da Resistência foi instituído na antiga Colónia Penal do Tarrafal. O antigo campo de concentração do Tarrafal, como é normalmente conhecido, é símbolo da ditadura portuguesa e foi classificado como património nacional de Cabo Verde em 2006. Na perspetiva de salvaguarda das memórias desse espaço, desencadeou-se um processo de musealização que contou com a reabilitação do sítio.

Numa das ilhas mais antigas do arquipélago, a Boavista, encontramos o Spinguera Ecolodge, um hotel de caráter alternativo. O aldeamento turístico foi integrado numa antiga aldeia de pescadores, situada na localidade de Espingueira, na costa nordeste da ilha. O projeto contemplou um trabalho intenso de reabilitação e recuperação das ruínas dessa antiga aldeia, reinterpretando os sistemas construtivos tradicionais da ilha. O projeto constitui caso particular e uma exceção, num contexto em que dominam equipamentos hoteleiros que se opõem aos princípios tradicionais de

106 SANTOS, Maria Emília Madeiro [et al.] coord. - História geral de Cabo Verde – Volume II. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical; Praia: Direcção Geral do Património Cultural de Cabo Verde, 1995. p.226

Page 95: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

96

construção e alienados realidade sociocultural.

Na ilha de Santo Antão, na localidade de Ribeira da Torre, o projeto de Valorização Turística do Habitat Tradicional na Ribeira da Torre foi guiado pela ONG cabo-verdiana Atelier Mar. Um projeto de turismo e desenvolvimento implementado nessa ribeira afluente da Ribeira Grande, inseridas nas encostas daquela topografia montanhosa de beleza singular. O projeto procura o envolvimento da comunidade local em processos de salvaguarda da identidade cultural e arquitetónica tradicional daquele vale.

No sopé do vulcão da ilha do Fogo, na localidade de Chã das Caldeiras, o projeto da Sede do Parque Natural do Fogo é produto da relação bem-sucedida entre engenho e circunstância. Um edifício contemporâneo que procurou conciliar tradição e inovação, vocacionado não só para a receção de turistas temporários, mas também para o envolvimento ativo da população local. A sua relevância deriva da forma como reinterpretou as características geomorfológicas do lugar e a cultura construtiva da ilha.

Page 96: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 97: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

98

32 Cidade Velha - Território33 Cidade Velha - Povoado

Page 98: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

99

2.2 - Cidade Velha, o impulso para a salvaguarda do património arquitetónico cabo-verdiano

Cidade Velha foi o primeiro povoado de Cabo Verde. Localizado em Santiago, que é a maior ilha do arquipélago, tipicamente vulcânica, e com algum contraste paisagístico. O lado norte da ilha apresenta orografia mais acentuada, com a presença dominante de algumas elevações, como o Pico de Antónia ou a Serra Malagueta. A sul, os relevos tornam-se menos expressivos. Essa variação da morfologia entre montanhas e vales, ou planaltos e vales, cria contrastes. Por vezes, o leito dos vales é de solos férteis com nascentes de água e paisagens de corpo verdejante, o que diferencia dos solos áridos do território envolvente.

O local onde a cidade se implantou reunia condições naturais particularmente favoráveis, pois, por um lado, oferecia solos férteis que garantiam a subsistência e, por outro, a sua topografia facilitava a implementação de um sistema de defesa. As paredes rochosas que ladeiam o vale, de grande imponência, formam uma proteção natural para a cidade, que, durante alguns séculos se revelou essencial para a sua sobrevivência. O papel de entreposto internacional que rapidamente adquiriu, imprimiu-lhe uma dinâmica de crescimento que lhe deu o estatuto de segunda urbe mais rica do império português 107.

Essa importância económica e estratégica tornaram a cidade suscetível aos ataques de piratas, que foram constantes ao longo dos tempos, o que acelerou o seu declínio e ditou, por fim, o abandono. A vizinha povoação da Praia oferecia melhores condições de defesa e aos poucos foi acolhendo os que abandonavam a Ribeira Grande. Deste modo, em 1858, viu-se consumada a transferência das funções administrativas, com a elevação de Praia a capital da colónia.

A população que permaneceu na Ribeira Grande ficou economicamente mais débil e teve que se adaptar às vicissitudes do lugar, erguendo novas habitações mais modestas entre as ruínas da antiga cidade, para o que utilizaram materiais que recuperados dos antigos edifícios. Atualmente a Cidade Velha é uma pequena vila de agricultores e pescadores, com população reduzida. Segundo os sensos de 2010, possuía perto de dois milhares de habitantes, o que a classifica como uma das vilas mais pequenas da ilha de Santiago.

A chegada à cidade acontece com alguma surpresa, o caminho solitário é interrompido pelo aparecimento de um conjunto de edificado sobre a colina

107 Artigo de Ana Gerschenfeld, [consultado 11 nov 2015] Disponível em https://www.publico.pt/2015/11/11/ciencia/noticia/desenterrada-em-cabo-verde-a-igreja-mais-antiga-dos-tropicos-1713994

Da Ribeira Grandeà Cidade Velha

Page 99: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

100

34 Cidade Velha - Vista da Sé35 Cidade Velha - Vista do Convento São Francisco36 Cidade Velha - Vista da Baía

Page 100: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

101

árida que encima o mar. Ao aproximar, mira-se em baixo o vale, com o seu casario que se ergue por entre um conjunto verdejante e se estende ribeira dentro. O centro histórico da Cidade Velha tem uma densidade de construção pouco expressiva. O seu núcleo principal, onde se localizam os edifícios administrativos, mantém-se ao largo da baía da cidade. Na praça central encontra-se ainda o pelourinho que foi símbolo do tráfico esclavagista 108. É este o lugar que serve de receção aos que chegam, tanto por terra, como vindos do mar, sendo uma característica implícita na estrutura desta malha urbana é de cidade construída para o exterior. Neste lugar dá-se a confluência de diversas ruas, das quais se destacam a Rua Banana e a Rua Carreira, as mais antigas da vila, e que estão ladeadas pelas construções vernaculares mantendo o ambiente típico da vila 109. Entre ruas e becos, surge o edificado, os pequenos quarteirões são de baixa densidade e demarcam-se em relação aos arruamentos confinantes pois formam plataformas com cota mais elevada, onde se fundam as casas. De carácter vernacular, as habitações são tendencialmente unifamiliares e apresentam piso único, construídas em alvenaria de pedra basáltica, a mesma que pavimenta as ruas, mas que aqui é caiada. Os monumentos possuem maior imponência, no entanto, a sua presença não é contrastante em relação ao resto, pois existe um equilíbrio e uma relação de escala entre os vários edifícios. A reduzida frequência de veículos torna as ruas praticamente pedonais e contribuem para a quietude do lugar. Os muros e os bancos em pedra que delimitam essas ruas e fazem a transição para o espaço privado das habitações, são elementos convidativos para o assento e o convívio 110. Todos esses fatores contribuem para a harmonia da vila.

Podemos enquadrar os edifícios que se encontram na povoação em três grupos: as construções que datam dos momentos áureos, a habitação vernacular,

108 República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008), p.35109 “L’habitat - Petit bourg d’environ 200 maisons aujourd’hui, Cidade Velha comptait 500 maisons en pierres au milieu du XVIe siècle, dont certaines grandes maisons appartenant aux marchands, armateurs et trafiquants qui orchestraient la vie économique de la ville. La plupart d’entre elles ont disparu. L'habitat actuel est dominé par la maison capverdienne typique qui utilise les mêmes matériaux queles maisons d’origine […], c'est-à-dire une maison rectangulaire en pierre d’un étage avec sa grande façade orientée sur la rue, très souvent sans cloisonnement interne. Sa toiture est de deux ou quatre pans couverts de chaume ou de tuiles. La composition de la façade principale se limite à l'ouverture d'une porte, presque toujours centrale, avec sur les côtés une ou deux fenêtres. Cette façade est souvent en recul par rapport à la rue, pour ménager un espace convivial de transition entre la vie privée et l’espace public, qui peut se traduire par un petit pátio entouré de murets, ou par un simple banc de pierre. La maison s’ouvre à l’arrière sur une cour. Les rues Banana et Carrera sont aujourd'hui les meilleurs exemples de cette architecture minérale traditionnelle qui perdure, tant au niveau du plan que de la façade, même si la pierre est aujourd’hui parfois remplacée par les parpaings de sable-ciment.” Idem, ibidem.110 Idem, p.37

Page 101: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

102

37 Cidade Velha - Rua Banana, ano 2000

Page 102: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

103

construída após a perda do estatuto de cidade e, por último, os edifícios de construção recente, que recorrem a materiais e sistemas construtivos contemporâneos.

O primeiro grupo integra casas senhoriais, equipamentos de defesa e edifícios religiosos. Eram dotados de materiais nobres, à luz daquilo que eram as soluções construtivas da época na metrópole. A maioria deles encontra-se hoje em ruínas. Em posição dominante sobre a baía, implantada a meia encosta, os vestígios da antiga catedral; nascente da povoação e no topo da colina, o Forte Real de São Felipe, que se mantém em bom estado de conservação. No vale, o Convento de São Francisco e a igreja Nossa Senhora do Rosário, que, como antes foi referido, beneficiou duma intervenção de restauro de sentido reintegrador, concretizada na década 1960 sob orientação de Luís Benavente.

Com o declínio da urbe a partir de meados do século XIX, consolida-se um modelo de habitação bastante modesto que substitui as anteriores construções. Este modelo, de grande simplicidade e com um único piso, implanta-se a toda a largura do lote, formando frentes contínuas de construção, embora recuadas em relação ao alinhamento das vias. Isto permite a criação de um pátio, delimitado por muros baixos, que antecede a habitação e ao qual se contrapõe um logradouro nas traseiras. Originalmente, as casas eram dotadas de dois compartimentos, sala e quarto, a que corresponde a um alçado sobre a via pública rasgado por porta central axial e duas janelas laterais. A construção utiliza pedra local, por vezes empregando alvenarias retiradas das ruínas de antigas construções. Geralmente, as paredes são caiadas e a cobertura tem estrutura em madeira de coqueiro e acabamento em colmo. A homogeneidade e unidade que resulta da repetição desta fórmula pode ser observado na rua Carreira e Banana 111.

O último grupo referenciado corresponde às construções recentes que recorrem a materiais e sistemas modernos e de origem exógena, tais como a alvenaria de blocos de cimento, a cobertura plana em laje de betão armado, a caixilharia em alumínio. Estas construções denunciam a tendência generalizada para entrar em rotura com as tradições construtivas locais e com o uso de materiais tradicionais, vistos como pobres e pouco eficientes.

111 UNESCO - evaluations of cultural properties (Jun 2009), p.30.

Page 103: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

104

38 Cidade Velha - Planta

Page 104: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

105

A requalificação urbana da Cidade Velha (1999 - 2008), antiga Ribeira Grande, 112 foi fortemente impulsionada pelo objetivo de atingir o estatuto de Património Mundial da Humanidade. A motivação para essa candidatura deve-se ao reconhecimento da importância deste sítio histórico. Os documentos da candidatura identificam valores patrimoniais, de caráter material e imaterial, relacionados com a dimensão multicultural do lugar, uma vez que, enquanto entreposto fundamental do tráfico esclavagista, serviu de lugar confluência de diversos povos, de origem europeia e africana, os quais estiveram na génese do povo e da cultura cabo-verdiana.

Os trabalhos prévios à candidatura convocaram instituições nacionais e internacionais e teve como principal dinamizador o Instituto de Investigação e Património Cultural, em representação do Ministério da Cultura de Cabo Verde. O governo cabo-verdiano estabeleceu parcerias de âmbito internacionais para apoiar o desenvolvimento de distintas tarefas. A Cooperação Espanhola financiou o projeto de requalificação urbana 113, a Cooperação Portuguesa, através da participação de técnicos da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e do Ministério da Cultura, permitiu a elaboração de estudos prévios e de ações de salvaguarda dos monumentos, a Cooperação Inglesa teve particular enfoque na realização de escavações arqueológicas em áreas conotadas com as primitivas ocupações da urbe.

Com o apoio do estado espanhol, o desenvolvimento do projeto de requalificação patrimonial esteve a cargo duma equipa coordenada pelo arquiteto Álvaro Siza Vieira, em colaboração com a arquiteta Helena Albuquerque, que ainda contou com o apoio de um gabinete técnico do município da Ribeira Grande e o envolvimento da população local.

O programa estabelecido para requalificação da atual vila apresentava os seguintes objetivos:

- a consolidação das ruínas e reabilitação dos monumentos;

- a restruturação do espaço público e das principais vias da urbe;

- o apoio aos moradores na reabilitação/construção das suas moradias;

- o projeto de equipamentos, entre os quais um centro cívico, uma escola, um restaurante e uma pousada;

112 UNESCO - evaluations of cultural properties (Jun 2009), p.29113 República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap--Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008), p.85

Plano deRecuperação e transformação

Page 105: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

106

39 Sé Catedral, Cidade Velha - Intervenção IPPAR40 Arquitetos Helena Albuquerque e Álvaro Siza - Cidade Velha

Page 106: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

107

- o apoio ao desenvolvimento de um plano de gestão urbana.

A intervenção nos principais monumentos foi definida como uma das ações primárias, sendo a Sé Catedral o primeiro objeto intervencionado. A consolidação de caráter arqueológico, foi realizada, numa primeira fase, em colaboração com Instituto Português do Património Arqueológico (IPPAR), sendo operações de caráter meramente técnico, foi fundamental a participação do IPPAR, uma instituição com grande experiência na realização desse tipo de trabalhos. Para isso esteve o arquiteto Alexandre Braz Mimoso encarregue dos trabalhos, enquanto que, na segunda fase tratando-se de trabalhos de requalificação do espaço público, foi fundamental o envolvimento do arquiteto Álvaro Siza 114.

Igualmente no âmbito das ações principais, estavam a recuperação das habitações tradicionais, cujo processo de trabalho implicava a colaboração dos proprietários no desenvolvimento do projeto.

A tipologia tradicional de habitação estava a cair em desuso, adulterada com a mudança da volumetria, do sistema construtivo e a introdução de novos materiais. A população alegava que esses tipos de habitações não proporcionavam conforto, implicavam a realização de obras regulares de manutenção, além disso, associavam-nas a uma ideia de pobreza. Porém, para o processo de candidatura a Património Mundial seria fundamental salvaguardar e valorizar essas construções, pelo que, através da intervenção do arquiteto e da equipa técnica, foi desenvolvido um trabalho junto a população, de modo a sensibilizar e apoiar os trabalhos de construção e reabilitação. No entanto, no decorrer dos trabalhos de reabilitação desencadeou um processo turbulento, houve um desfasamento entre objetivos da população em relação aos estabelecidos pela entidade reguladora.

Os moradores pretendiam casas modernas com outros tipos de materiais, como blocos de betão em substituição da pedra, cobertura em laje de betão ou em telha em vez de palha, reboco em vez de pedra à vista, dois pisos em vez de um. Acreditando que ficava mais barato a execução de uma casa com materiais modernos, contrariam a cobertura em colmo por não existir matéria-prima (palha da cana sacarina), e por exigir mão-de-obra artesanal em que os artesãos já são escassos e precisa de manutenção 115. E, no entanto, defendem a cobertura em laje de betão na ideia de que fica mais barata a execução, ficam

114 MIMOSO, Alexandre Brás – Sé da Cidade Velha de Santiago (Cabo Verde). PATRIMÓNIO, estudos. Salvaguarda Patrimonial. Lisboa. n.6 (mai 2004) p.208115 MARQUES, Ana Filipa – Construir e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde na Cidade Velha. Porto: FAUP, 2001. Prova Final, p.73- 74

Page 107: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

108

41 Esquisso Álvaro Siza - Cidade Velha42 Perfil e planta - Plano de Recuperação e Transformação Cidade Velha

Page 108: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

109

melhor abrigados e conseguem com o processo de “djunta-mon” (entre ajuda) gastar menos do que se optarem pela cobertura em colmo. Também a telha é defendida por ser mais impermeável que a palha, mas é um material que não é local. Toda essa vontade fez contrariar o processo de reabilitação da cidade. Como se constata no documentário “O Arquitecto e a Cidade Velha” 116. Quem estava a construir a sua habitação teve de esperar pelo apoio técnico e submeter-se às burocracias do estado e às sucessivas mudanças governamentais o que provocou reações de desconforto e a constatação de que “os pobres não ganham com o histórico”, como afirmou um dos residentes. Por sua vez, o arquiteto defende a intenção de manter as características construtivas e a imagem da arquitetura vernacular local, entendendo que estas definem a identidade do lugar e a especificidade que o distinguem como um bem patrimonial único. Seria preciso manter os materiais, a tipologia existente, a cércea, o método construtivo, o que permite estabelecer ou manter o equilíbrio dos grandes monumentos em ruína com o casario. A ideia do arquiteto foi sempre no sentido de manter o legado histórico local, como se pode ler no seguinte excerto:

“É claro que podemos perguntar se é certo manter este tipo de ambiente, este tipo de vida, porque as cidade evoluem, agora o que penso é que se pretende manter o património, recuperar, consolidar as ruínas, dos conventos, das igrejas, etecetera, sem manter o tecido tal como ele ainda é…desenvolvendo de forma limitada, perde-se tudo, quer dizer os monumentos sem estarem rodeados por esse tipo de casas perdem completamente escalas e… Agora pôr em ações as decisões tem-se mostrado muito difícil, e tem-se mostrado muito difícil de ambos os lados, cooperação portuguesa/espanhola e governo de Cabo Verde. De resto houve mudanças políticas que motivaram paragens, enfim, tempo…tempo de reorganização, quer em Portugal, quer em Cabo Verde. E é isso, é muito simples, mas pelos vistos muito complicado de realizar.”117

A dicotomia criada nesse processo é interessante, pois coloca em confronto o arquiteto e o interesse das instituições ligadas a salvaguarda e, por outro lado estão os habitantes que anseiam por melhores condições de habitabilidade do local. O diálogo entre os envolvidos teve o seu resultado, mas o processo vagaroso gerou algum desconforto para a população.

116 O Arquitecto e a Cidade Velha. [filme] Realização de Catarina Alves Costa. Portugal: midas, 2003. (DVD)(72 min)117 Álvaro Siza Vieira in O Arquitecto e a Cidade Velha. [filme] Realização de Catarina Alves Costa. Portugal: midas, 2003. (DVD)(72 min)

Page 109: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

110

43 Planta, alçados e corte da Pousada São Pedro

Page 110: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

111

Como referido, o programa de ação previa o projeto e construção de vários equipamentos, dos quais apenas a pousada foi executada e concluída em 2003, ficando os outros projetos, um restaurante, o centro cívico, uma escola, em papel. A par das ações de requalificação de elementos preexistentes, o arquiteto considerou necessário construir alguns edifícios de raiz, cirurgicamente localizados em diferentes lugares da povoação. Em todos houve a preocupação em manter uma relação de escala com as construções existentes. Os equipamentos propostos são de pequenas dimensões, procurando responder as necessidades dos residentes e do turismo. O arquiteto sempre quis manter o carácter do lugar, por isso não pretendeu criar equipamentos que chamassem grandes multidões, ele manteve sempre uma postura em prol do equilíbrio do carácter do lugar. Isto, apesar dos promotores, o governo e os financiadores, terem outras expetativas 118.

A Pousada São Pedro foi implantada num lugar afastado da foz e isolado em relação às demais construções. O projeto do arquiteto Siza Vieira exibe traços construtivos sinónimos da arquitetura tradicional existente. A construção do edifício procura conciliar o desenho dos espaços ao estilo de vida da população, a descrição seguinte explica a composição do equipamento:

“A pousada é construída por quatro pequenos pavilhões, dispostos em torno de um páteo quadrangular. Este páteo é a zona de estar protegida e espaço de distribuição entre quartos, a recepção, o restaurante e a cozinha. A articulação das edificações, bem como a escolha dos materiais e das técnicas de construção, têm como referência o tipo de ocupação a as dimensões e aparência das casas tradicionais existentes. Foram feitas as adaptações necessárias para a utilização destes espaços como pousada. Pretendeu-se construir um exemplo para outras realizações, seguindo a construção tradicional, a mais adaptada ao meio e aos meios.” 119

De pedra talhada e sem reboco no exterior, cobertura em telha, esses volumes que confinam espaços entre eles e na relação com a envolvente, refletem um adaptar aos costumes do lugar, bem como uma resposta as condições climáticas do sítio, tanto pela definição da sua volumetria como pelo cuidado tido na abertura dos vãos.

De modo a proteger o núcleo histórico foram definidos limites de afetação.

118 Conversa com a arquiteta Helena Albuquerque.119 arqa nº25 – Pousada, Plano de Recuperação e Transformação da Cidade Velha, Cabo Verde. p.33

Page 111: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

112

44 Maqueta Escola - Plano de Recuperação e Transformação Cidade Velha45 Maqueta Pousada São Pedro - Plano de Recuperação e Transformação Cidade Velha

Page 112: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

113

A área definida como património nacional foi de 50 hectares, que incluem o sítio histórico, por sua vez esta área está protegida por uma zona de tampão de 250 hectares. Além dessas áreas terrestres, parte da costa marítima foi definida como área protegida, por possuir vestígios de naufrágios, que poderão vir a ser explorados e que pertencem ao legado histórico da antiga cidade.

Foi estipulado um plano de gestão do sítio histórico num período de quatro anos, com objetivo de dar continuidade ao processo iniciado. A gestão do sítio histórico ficou a cargo da agência privada Poim-Tur, que teve a concessão através do Estado, por intermédio do IPC. Tinha como principais atividades a manutenção dos monumentos, a organização de visitas ao sítio histórico, a exploração da Pousada São Pedro e de um serviço de restauração na Praça do Pelourinho.

O plano urbano e os projetos de arquitetura aconteceram entre 1998 a 2003, enquanto que os trabalhos foram desenvolvidos até ao ano de 2008. Nessa altura, o dossier de candidatura a património mundial exibiu o relatório dos trabalhos feitos e apresentou um plano de gestão do sítio que prolongava até 2012. No final das intervenções, foi preparado um dossier de candidatura pelo Instituto de Investigação e do Património Cultural, um departamento do Ministério da Cultura, apresentada à UNESCO em 2008 de modo a ser avaliada por essa comissão. A avaliação feita foi positiva, o sítio histórico que tinha sido declarado Património Nacional em 1990 ganhou o status de Património Mundial da Humanidade a partir do ano 2009. O relatório da ICOMOS transmitiu que houve a preservação das ruínas da cidade, dos vestígios arqueológicos e da própria topografia, sendo que este último permite o entendimento da implantação da antiga urbe que preserva a sua autenticidade e integridade 120.

O plano de recuperação da área urbana antiga estabeleceu alguns critérios de intervenção e transformação das construções tradicionais e, além disso, com vista à preservação arquitetónica, e de modo a evitar impactos negativos de futuras transformações, delinearam um plano para a zona de expansão da cidade circunscrita a parte da área envolvente, como também uma vasta área denominada de zona de tampão, que constitui uma faixa livre de construção. Esta estratégia permite preservar a paisagem urbana do local, tanto na dimensão da urbe, como na relação com o território da sua envolvente que, por sua vez, mantém o seu aspeto característico de território árido e livre de construção, com um vale verdejante rasgado na sua superfície.

120 UNESCO - evaluations of cultural properties (Jun 2009). p.32

Page 113: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

114

46 Pousada São Pedro, vista do pátio47 Pousada São Pedro, vista lateral do conjunto48 Pousada São Pedro, vista a partir do vale

Page 114: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

115

A reabilitação urbana da Cidade Velha e a consequente salvaguarda do seu património arquitetónico teve um impacto bastante positivo na valorização do património no arquipélago. Houve um incentivo à preservação patrimonial que dinamizou processos semelhantes a nível nacional.

A posição crítica assumida pelos arquitetos relativamente ao programa de intervenção, elaborado pelas instâncias administrativas foi determinante para a proteção da identidade arquitetónica, paisagística e cultural do sítio. A tentativa de preservar o delicado equilíbrio existente entre natureza, construção, ambiente humano e vivência do espaço, o que compõe a beleza do sítio foi uma atitude importante que contrariou as ambições das entidades envolvidas. O diálogo entre o arquiteto e os promotores permitiu definir os critérios de projeto, que além da consolidação das ruínas e da reabilitação urbana, definiu a elaboração de projetos de pequenos equipamentos necessários ao funcionamento da povoação e ao acolhimento dos seus visitantes. Houve uma contradição, por parte dos arquitetos, em relação a espectativa de criar equipamentos de grandes dimensões que pudessem atrair um maior número de turistas, o que poderia vir a perturbar o equilíbrio e autenticidade que a pequena vila preservava.

Os processos de trabalho na urbe envolveram a população local e no caso da reabilitação da habitação tradicional houve um contacto direto com cada proprietário. Esse trabalho conjunto serviu para informar e transmitir as ideias e os objetivos do governo que esmerava uma candidatura a património mundial. Embora se tenha tornado num processo conturbado por causa da inércia encontrada na execução do projeto, interrupção da construção forçada por mudanças políticas, o diálogo estabelecido serviu para expor os valores das arquiteturas locais, como também criar um espírito comum para a preservação de toda a urbe com os seus valores e costumes.

Conseguiram preservar a arquitetura tradicional local na sua volumetria, linguagem e materialidade, o que beneficiou não apenas o lugar, mas também teve um impacto importante para valorização da arquitetura vernacular cabo-verdiana na qualidade da casa popular.

Atualmente o sítio já não oferece os mesmos recursos naturais que permitiram a criação da habitação vernacular, é o caso do colmo utilizado na cobertura que era concebido com base nas folhas de cana-sacarina, que já não abunda neste vale. Esse tipo de cobertura necessita de uma manutenção regular o que atualmente não consegue ser suportado pela matéria-prima produzida localmente. Porém, já são visíveis nas construções locais uma adaptação do sistema construtivo da cobertura que passa pela introdução de uma chapa metálica inferiormente ao colmo. A introdução desse elemento, algo que também já é aplicado em construções similares noutros contextos, possibilita uma impermeabilização eficaz da cobertura, que reduz substancialmente a

Page 115: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

116

49 Pousada São Pedro, vista de uma porta50 Pousada São Pedro, vista de um espaço interior

Page 116: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

117

camada de colmo e prolonga a manutenção desse elemento.

A construção da Pousada São Pedro foi idealizada tendo em conta a tradição construtiva e os recursos naturais do lugar, de modo a criar um edifício que respondesse às vicissitudes do lugar e que servisse de modelo para futuras construções. É de salientar que o projeto constitui tanto uma síntese do modo de habitar e apropriação dos espaços da população local, como traduz uma escolha sensata dos materiais com base nos recursos do sítio. Este modelo idealizado e construído segundo as circunstâncias atuais do lugar já influencia as construções recentes, que seguem o sistema construtivo e a linguagem do edifício. Além da abordagem construtiva à imagem das tradições locais, a tipologia do projeto implica uma atuação consoante modelos globais, no entanto, a atuação do arquiteto procurou um aproximação ao sítio e às suas características, o que vai de encontro a uma ideia de projeto defendida pelo arquiteto, o que pode ser interpretado na seguinte afirmação do arquiteto:

“Outro hábito que também senti foi o de quando se concebe um hotel, e sendo da mesma cadeia, ter de se fazer o mesmo ambiente em Paris, Tóquio, Porto… Parece-me uma tristeza, porque qualquer pessoa em negócios ou sem ser em negócios, se vai para outro país ou outra cidade, pretende inserir-se no ambiente dessa cidade.”121

A ideia de ambiente da cidade referido pelo arquiteto está certamente implícita no projeto da pausada, que representa a atmosfera desse lugar.

O trabalho desenvolvido no processo de candidatura a património mundial é notável, no entanto, sabemos que existe uma exigência para a preservação e manutenção do sítio histórico, bem como uma necessidade de salvaguarda que poderá abranger aspetos ainda não explorados. São sabidas as dificuldades financeiras existentes no país que impossibilitam dinâmicas tanto de proteção como de potencialização do sítio histórico. Apesar desse entrave, podemos reconhecer que existem lacunas que poderão ser colmatadas as quais poderão beneficiar tanto os locais como os seus visitantes. A nível da proteção do património arquitetónico e do contexto urbano local, podemos afirmar que será necessário promover incentivos para a reabilitação, vários edifício típicos encontram se em ruína, por outro lado, deve existir especial atenção na linguagem das construções novas aprovadas para a urbe e sua envolvente,

121 Álvaro Siza Vieira in PEREIRA, Luís Tavares - Reacção em Cadeia – Transformações na Arquitectura do Hotel. Algarve. 2008. p.159

Page 117: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

118

51 Bairro São Victor, Porto52 Álvaro Siza, Haia

Page 118: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

119

tanto os materiais como a volumetria poderão influenciar o ambiente do lugar, pelo que tem de haver regras estabelecidas que ajudem a manter a integridade, a autenticidade e a identidade do lugar, o que vai de encontro às demandas deixadas pela avaliação da UNESCO 122.

Por sua vez, podemos apontar algumas perspetivas mais especificas que poderão contribuir para a preservação e potencialização deste sítio histórico. A criação de um museu da cidade constitui uma ação que poderá ser de “fácil” implementação e que pressupõem um trabalho aberto e com um desenvolvimento progressivo. Existem bases para essa criação e grandes viabilidades para a potencialização de tal criação que poderá passar pela exploração da riqueza histórica do lugar e das suas relações com o exterior. Igualmente as diversas escavações arqueológicas feitas no local constituem documentos úteis para um futuro museu da cidade, além disso, já havia sido apontada a proteção de uma vasta orla costeira no sentido de proteger os vestígios dos naufrágios. Essas áreas subaquáticas possuem centeúdos que poderão vir a ser explorados, e que certamente reúnem elementos de grande interesse para o espólio esmerado. Em conjunto com os apontamentos feitos previamente, a cultura deste lugar, que foi o berço da cabo-verdianidade, contém traços singulares que certamente serão transmitidos com agrado num futuro museu da cidade.

Antes de ter sido convidado para desenvolver os trabalhos para a Cidade Velha, o arquiteto Álvaro Siza Vieira já contava com uma vasta experiência em programas e circunstâncias de trabalho semelhantes. Um dos momentos mais significativos foi a experiência no SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), um programa de construção de habitações económicas para a população mais carenciada de diversos espaços urbanos do país, lançado na sequência da revolução de abril, orientado pela tentativa de manutenção das populações no local de origem, garantindo a preservação dos seus hábitos, redes familiares e sociais. Primavam os processos participativos com base no diálogo próximo com os futuros moradores, principalmente no projeto do Bairro São Victor, no Porto. Este projeto procurou integrar os novos edifícios numa malha densa de memórias, preservando algumas ruínas que assinalavam o anterior cadastro e ajudavam a caracterizar os espaços exteriores comuns.

122 “Preserve in the future management of the property the relationship between the city and the rural and natural space of the valley, in order to conserve the spirit and, if possible, the evidence of the rich agricultural history of Cidade Velha.” in UNESCO - evaluations of cultural properties (Jun 2009). p.38

Cidade Velhae Salemi

Page 119: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

120

53 Salemi

Page 120: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

121

As experiências de trabalho que se seguiram, concretizadas em Berlim e Haia e que previam da mesma forma a construção de habitações sociais em tecidos urbanos históricos, também contaram com o diálogo com as comunidades locais. Programas de requalificação de espaço público e de reestruturação de redes pedonais de circulação foram determinantes no desenvolvimento do projeto de recuperação da zona ardida do Chiado, em Lisboa, e do centro histórico de Salemi.

Localizada na província de Trapani, na Sicília, Salemi foi parcialmente destruída por um terremoto ocorrido em 1968. A igreja matriz foi das estruturas mais afetadas e permaneceu em ruínas até à intervenção de reabilitação. O projeto de “Riqualificazione del centro storico di Salemi” decorreu entre 1991-1998 e foi coordenado pelos arquitetos Álvaro Siza Vieira e Roberto Collovà, teve como principais objetivos a requalificação do espaço público e a consolidação das ruínas. Foram estabelecidas ações especificas para a intervenção, que compreenderam a restruturação dos percursos através do redesenho dos pavimentos, a introdução de rampas e escadas, também elementos auxiliares como corrimãos, guarda-corpos e lâmpadas de iluminação pública. As ideias que vieram a ser desenvolvidas com o projeto foram lançadas num workshop promovido pela faculdade de arquitetura de Palermo em 1980. Dois anos depois a câmara de Salemi interessa-se pelo projeto que o Siza e o Colová desenvolveram, então encomendaram a recuperação da igreja matriz quase completamente demolida pelo terremoto de 68. O projeto da Piazza Alicia foi desenvolvido em 1991, está praça forma uma verdadeira acrópole no cimo da colina, juntamente com o castelo e a igreja. Entre 1992 a 1997 o terceiro projeto foi lançado, promovia a reconstrução do quarteirão de Piano Cascio, que fica nas traseiras da igreja, no entanto não foi construído. O impulso dado pela reconstrução da igreja levou também ao desenvolvimento de plano para o centro histórico.

A intervenção na igreja procurou aflorar dois aspetos, a anatomia construtiva, porque além do sistema, podia ver-se a consistência da estrutura, o segundo aspeto refere a uma abordagem romântica e nostálgica sobre a ruína. O objetivo era fazer conviver a excecionalidade da ruína e a nova identidade da sua transformação por subtração. A esta operação opunha-se a simplicidade do trabalho de recuperação das casas adossadas à abside, com alterações tipológicas mínimas, necessária para acolher um programa mais articulado e complexo. Procedeu-se à libertação da ábside, sem perder a compacidade do quarteirão que contém a igreja 123. Depois do projeto da igreja, o clima da

123 CREMASCOLI, Roberto - Álvaro Siza – Inside the Human Being – Mart, Quaderni di architettura, Nouva serie 02 – Electa. Trento e Rovereto, 2014. p.81 – 87

Page 121: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

122

54 Salemi -axonometria igreja matriz e Piazza Alicia55 Salemi -axonometria conjunto

Page 122: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

123

administração mudou, devido à mudança do presidente da câmara, havendo então uma ausência de interlocutores para o projeto.

Para o projeto da Piazza Alicia e para as ruas do centro histórico as lições do workshop inicial foram fundamenais, devido ao levantamento e reconhecimento do sítio, em que foram produzidos imensos desenhos, minuciosamente. Foi desenvolvido um trabalho de ordenamento das superfícies pavimentadas e das diversas tipologias de acessos às casas e lojas em formas de escadas e rampas. Essas intervenções fazem parte de um complexo sistema de vias, que englobam escadas, rampas e pequenos espaços públicos que ligam a Piazza della Libertà no vale à Piazza Alicia no topo.

Toda a transformação tende a modernizar a cidade sem esquecer o sucedido, sendo a aceitação do desastre como matéria do projeto de transformação. O projeto para Piano Cascio previa uma reconversão de uma espécie de esventramento natural causado pelo terramoto numa nova praça, em volta da qual se recuperariam os edifícios. Os trabalhos da igreja e praça foram concluídos em 1998.

A consolidação das ruínas foi feita de forma estratégica, nem todas as ruínas foram reabilitadas, por vezes apenas limitaram os espaços e consolidaram os muros em risco de desabamento, enquanto que noutros casos promoveram a reabilitação funcional dos espaços. Foi um critério de projeto distinguir o novo do velho, o que foi conseguido através do uso de materiais com cores contrastantes em relação cor à bege característica desse tecido urbano. Manter a atmosfera local e delinear percursos com ritmos simultâneos de continuidade e interrupções, foi a intenção do projeto, o que permite uma maior dinâmica para quem visita.

A abordagem na antiga igreja matriz foi particular. A construção encontrava-se em ruína, apenas a zona envolvente a abside continha a estrutura das paredes, enquanto que a nave estava arruinada por completo. A igreja foi reabilitada de forma parcial, a sua ábside foi reconstruída, a nave permaneceu descoberta com a sua plataforma elevada definindo o perímetro da mesma. Foi marcada a disposição anterior das colunas, essa marcação foi feita com a introdução da base, sendo em dois casos introduziram-se os elementos que compõem a coluna no seu todo até ao capitel. Essas duas colunas ficaram dispostas em ambos os lados da nave desfasadas entre si, é percetível o uso das colunas como pontos de referência com grande relacionamento geométrico entre si. A intervenção na igreja ficou reduzida a isso e a sua disposição atual, sem involucro na parte da nave, possibilita uma maior ligação com a Piazza Alicia. A praça também foi objeto de intervenção, sofreu uma reestruturação e foram definidos os acessos adaptados a envolvente.

Podemos encontrar semelhanças na metodologia de abordagem dos dois projetos. Na Cidade Velha foi estrutural para o projeto a consolidação das

Page 123: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

124

56 Salemi após intervenção57 Salemi, escada em espaço público58 Salemi, vista igreja matriz após intervenção

Page 124: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

125

ruínas dos monumentos, em Salemi a reabilitação e consolidação das ruínas da igreja matriz assemelha ao que aconteceu a antiga Sé catedral da Cidade Velha, embora esta última tenha sido apenas conservada como ruína perdendo o valor de uso.

Em ambos os casos os percursos foram reestruturados e, por vezes restabelecidos, de modo a criar permeabilidade na malha urbana. Os dois projetos podem ser relacionados muito pela forma subtil que foram desenvolvidos, no entanto, existe uma diferença de abordagem, distinta nos dois projetos, enquanto que na Cidade Velha previu-se um processo praticamente de restauro com o uso dos mesmos materiais de modo a consolidar a linguagem existente; em Salemi ficou clara a ideia do uso de contraste nas intervenções na malha urbana, os materiais utilizados para conceber os novos elementos urbanos seriam diferentes, de modo a confrontar com o preexistente. No entanto, pode-se afirmar que as técnicas utilizadas respeitam as tradições construtivas em ambos os lugares.

O projeto desenvolvido em Cabo Verde teve uma forte componente de ação sobre o construído, mais especificamente sobre a habitação tradicional, também foram construídos edifícios de raiz que funcionam como modelos para a construção do novo ou para a reconstrução, o que não se verificou em Salemi. Também é de referir que a componente de trabalho e envolvimento da comunidade local teve maior presença na Cidade Velha.

As dificuldades encontradas nesses projetos são distintas, na Cidade Velha o arquiteto teve de mostrar uma postura conservadora perante as intenções que das entidades, e além disso teve uma relação mais próxima com a comunidade local, enquanto que em Salemi podia já ter existido a intenção por parte do governo para a reabilitação da malha urbana, e com mote dado pelo workshop realizado escolheram uma proposta praticamente estabelecida e que seguiam as ideias esmeradas.

Em ambos os casos concretizaram algumas intenções do projeto, no entanto, também em ambos ficaram projetos apenas em papel. No caso da Cidade Velha as condições financeiras deficitárias ditaram esse desfecho, enquanto que, em Salemi a mudança do governo poderá ter influenciado esse desfecho, contudo, pode-se afirmar que as duas urbes ganharam uma melhor integridade com as intervenções sofridas.

Page 125: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

126

59 Antiga Colónia Penal do Tarrafal

Page 126: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

127

2.3 - Museu da Resistência, o despertar do museu da memória em Cabo Verde

O Museu da Resistência foi fundado no início deste século e funcionou ao longo dos anos com serviços mínimos, estabelecidos num dos edifícios que compõem a Colónia Penal do Tarrafal. Mais recentemente, foi desenvolvido pelo Instituto do Património Cultural (IPC), sob orientação dos técnicos Adalberto Tavares e José Landim 124, um projeto de musealização e reabilitação que tem sido posto em prática de forma faseada. A inauguração das novas instalações do Museu da Resistência aconteceu no dia 20 de janeiro de 2016, transformando a antiga prisão isolada num ponto de referência naquela área remota da ilha.Tarrafal situa-se na costa noroeste da ilha de Santiago. Cercada por elevações de pouca imponência, com exceção da Monte Graciosa que atinge 654 metros de altitude, o pequeno núcleo urbano implanta-se numa encosta de suave declive e termina formando uma baía. Centralizado pela praça onde se localiza a igreja e a câmara municipal, apresenta traçado regular, segundo a matriz de fundações coloniais portuguesas, bem explicada por José Manuel Fernandes. O ambiente árido condicionou particularmente as atividades desenvolvidas, onde predominam a pesca e os serviços turísticos, estando a agricultura dependente do índice de pluviosidade, que é bastante irregular. Um pouco a sul do Tarrafal situa-se a vila de Chão Bom, um povoado de origem espontânea que fica na proximidade do antigo campo de concentração, implantado a menos de um quilómetro da costa. As características climáticas tornam o lugar hostil e configuram uma paisagem com pouca vegetação.A escolha de Tarrafal de Santiago para a construção da prisão seguiu-se a uma primeira experiência, concretizada em 1931, de instalação da unidade prisional na ilha de São Nicolau, curiosamente numa localidade com o mesmo nome 125. Entre os fatores que determinaram a escolha desse lugar para a construção

124 Respetivamente arquiteto e curador. in MONTEIRO, Jaylson - Relatório dos trabalhos realizados no processo de musealização do Ex. Campo de Concentração do Tarrafal. 2015. (IPC, Cabo Verde)125 “São Nicolau foi o primeiro destino escolhido tanto pela Ditadura como também pelo Estado Novo para a materialização do primeiro modelo de prisão especial, metodicamente concebido para o encerramento de presos políticos portugueses que eram enviados para Cabo Verde. Se o ano de 1931 constitui a primeira tentativa de encenação de uma prisão especial em Cabo Verde, é, o ano de 1936 que marca efectivamente a data da sua materialização. […] No local escolhido foram armadas umas barracas de madeira desmontáveis para quatro mil condenados que, posteriormente, foram transferidas para o Tarrafal de Santiago no início da fundação da colónia penal instalada em 1936.” in LIMA, Paulo Alexandre Monteiro - Reconversão da penitenciária e a sua reinserção urbana: Museu da Resistência. Coimbra: FCTUC, p.85

Uma colóniapenalisolada

Page 127: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

128

60 Antiga Colónia Penal do Tarrafal, vista da entrada do setor prisional 61 Antiga Colónia Penal do Tarrafal, vista das casernas

Page 128: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

129

da colónia penal podem-se destacar a condição de isolamento em relação aos principais centros urbanos, a falta de condições de habitabilidade e o afastamento em relação aos meios de comunicação com o exterior, que impedia que testemunhos da vida no campo pudessem ser tornados públicos. Estas características permitiam concretizar o ideal deste sistema penal: a liquidação dos adversários políticos tirando-lhes a liberdade física e de expressão. Assim,

“o presídio foi planeado para servir de isolamento e desterro daqueles que se opunham à ditadura fascista, seja em Portugal, numa primeira fase, ou nas então colónias africanas, com o eclodir das lutas de libertação nacional. Os arquitectos do “campo de morte lenta” pretendiam aniquilar física e psicologicamente aqueles que ousassem desafiar o anacrónico sistema político então vigente.”126

Em 1936, instalaram-se em Chão Bom de forma improvisada, onde correspondia as instalações doze barracas de lona de sete metros de comprimento e quatro de largura, para além disso, para esse primeiro momento limitaram o campo com a escavação de um fosso a volta. A construção, tal como conhecemos hoje, foi conseguida com base na mão de obra dos presos que também executavam trabalhos agrícolas dentro e fora do estabelecimento, trabalhos oficinais e trabalhos de construção civil. O projeto foi desenvolvido em Portugal, não havendo registos da deslocação do arquiteto ao sítio, e executado conforme as tradições construtivas locais. A primeira fase de trabalhos decorreu entre 1936-1938 donde resultou a construção das casernas, da administração, das celas de isolamento, a cozinha, o posto médico, o alojamento dos guardas, etc., sendo posteriormente desenvolvidos outras construções, como aconteceu em 1967 quando foi proposto a melhoria do perímetro de proteção do campo, que até então era composta apenas por arame farpado, a vala e o talude, disso resultou a proposta para a construção da muralha de proteção que foi executada entre 1967 e 1970, incluindo as torres de vigia 127.

126 Pedro Pires, antigo presidente de Cabo Verde in Fundação Mário Soares, Fundação Amílcar Cabral - Simpósio Internacional. 2009. (Tarrafal)127 “Pode-se dizer que a construção do campo conheceu duas fases distintas, sendo a primeira (1936-1938) em que se utilizou apenas a mão-de-obra civil e os trabalhos se reduziram ao mínimo dispensável, devido à grande urgência de albergarem os quatrocentos presos. Construíram a administração, os dormitórios/casernas, as celas de isolamento, as celas disciplinares, a cozinha99, os balneários, o hospital e o alojamento das tropas indígenas, entretanto sem acabamentos”. in LIMA, Paulo Alexandre Monteiro - Reconversão da penitenciária e a sua reinserção urbana: Museu da Resistência. Coimbra: FCTUC. p.87

Page 129: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

130

62 Museu da Resistência, 2016

Page 130: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

131

O equipamento funcionou entre os anos de 1936 e de 1974, tendo uma interrupção de 1954 a 1961. O equipamento foi criado a imagem dos campos de concentração nazis, no primeiro momento funcionou com o nome de Colónia Penal de Cabo Verde 128, sendo no segundo momento designado por Campo de Trabalho de Chão Bom 129 destinado principalmente aos agentes da luta pela independência das colónias portuguesas, o enceramento definitivo do campo aconteceu no dia 1 de maio de 1974. Após o fecho da prisão, o complexo acolheu ainda outras funções: foi centro de recrutamento militar e dependência da antiga empresa abastecimento nacional.O setor prisional ocupa uma vasta superfície, onde se destaca o campo, um quadrilátero murado com dimensões aproximadas de 200 metros por 150 metros. O acesso processa-se pelo lado maior do retângulo, mas excêntrica, voltado a sul, sendo a entrada é definida por um túnel abobadado, inserido num volume que contém também a antiga casa dos guardas. O percurso de acesso prolonga-se retilineamente no interior e organiza, de forma simétrica os principais volumes e remata no posto de socorros. Os dois primeiros edifícios, de menor dimensão serviam de quartos de visita, seguindo-se os dois grandes pavilhões das celas que se estendem por aproximadamente quarenta metros. Dos dois lados do posto de socorros, criando um alinhamento perpendicular ao percurso anteriormente descrito, estão dispostos outros pavilhões. Estas construções definem uma área de desenho mais regular do interior do campo onde estão dispostas as celas, a oficina, a cozinha, o refeitório, o posto de socorros, e para além dos espaços que abrigam essas funções surgem construções pontuais de ambos os lados seguindo a mesma lógica de desenho ortogonal, mas com menor imponência volumétrica.No exterior do campo, dois núcleos de construção, um deles fronteiro à entrada e outro localizado a nascente da estrada. Nesses dois núcleos ficam os serviços administrativos e equipamentos de apoio ao funcionamento do campo e as habitações, criando uma unidade funcionalmente autónoma e completa. A

128 “O Campo de Concentração do Tarrafal foi formalmente instituído pelo regime fascista português, no Tarrafal da Ilha de Santiago, em 23 de Abril de 1936, sob o nome de Colónia Penal de Cabo Verde. Criado à imagem dos campos de concentração nazis, a “Colónia Penal” do Tarrafal ou “campo da morte lenta”, nome por que ficou conhecido por aqueles que por lá passaram, visava então aniquilar física e psicologicamente os opositores portugueses à ditadura fascista de Salazar, colocando-os longe dos olhares do Mundo em condições infra-humanas de cativeiro, maus tratos e insalubridade.” Fundação Mário Soares, Fundação Amílcar Cabral - Simpósio Internacional. 2009. (Tarrafal)129 “A luta contra as forças nacionalistas impele o poder colonial fascista a reutilizar o Campo de Concentração do Tarrafal a partir de 1961, com o nome de “Campo de Trabalho de Chão Bom”, destinado desta vez a encerrar no seu isolamento os militantes da luta anticolonial de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde.” Fundação Mário Soares, Fundação Amílcar Cabral - Simpósio Internacional. 2009. (Tarrafal)

Page 131: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

132

63 Antiga Colónia Penal - construção das casernas64 Antiga Colónia Penal - vista entrada setor prisional

Page 132: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

133

disposição do edificado é simples e de grande clareza, com rigor geométrico e ortogonalidade, pavilhões de volumetria simples, piso único e, na grande maioria, cobertura em duas águas em chapas de fibrocimento, e telha cerâmica nos mais pequenos. Estes edifícios, assim como as casernas exteriores e anexos têm uma linguagem semelhante, no entanto, no interior da cerca construíram-se volumes com diferentes tamanhos e surgiram outros tipos de construções, mas da mesma simplicidade daquilo que existe no exterior.O sistema construtivo dos edifícios é composto maioritariamente por materiais com origem local, à exceção de alguns deles que foram certamente levados da metrópole, caso das telhas cerâmicas e as chapas de fibrocimento. Um dos corpos, que continha a secretaria, foi construído em madeira, assente sobre um alto embasamento. As paredes geralmente são construídas em alvenaria de pedra basáltica seguindo os processos tradicionais – alvenaria de blocos irregulares, com junta em argamassa e acabamento em reboco, enquanto que a compartimentação interior é assegurada por alvenaria de blocos de cimento, igualmente rebocados e pintados. Os muros que delimitam o campo, assim como os que definem os fossos, são densos e foram construídos em betão ciclópico, por sua vez, os torreões de vigia que marcam os quatro cantos do perímetro do campo foram construídos em betão armado. Os pavimentos interiores geralmente são formados por betonilha lisa sobre massame de betão. A cobertura é em telha marselha ou chapa de fibrocimento e são apoiados em vigas de madeira ou de ferro. A caixilharia e portas são em madeira de casquinha, enquanto que os portões e as portas das celas são em formadas por gradeamento ou preenchidos por chapa metálica.Os elementos referidos conjugam materiais e processos de tradição local, implicando a redução dos elementos morfológicos ao essencial, imprimindo às construções um carácter funcional e austero. Pode-se afirmar que o edificado aproxima da arquitetura tradicional cabo-verdiana e possui uma “linguagem moderna”, a composição do plano urbano, a organização funcional do conjunto, o desenho sóbrio do edifício, os detalhes bem resolvidos e o sistema construtivo aplicado contribuem para essa afirmação 130. Os edifícios não demonstram grandes preocupações em garantir condições de conforto para os diferentes ocupantes.Praticamente desde o encerramento da prisão e com as posteriores ocupações, os edifícios começam a apresentar sinais de degradação, estando alguns deles em avançado estado de ruína. No entanto, preservou-se a integridade geral do plano original elaborado pelo arquiteto Cottinelli Telmo 131. A envolvente

130 LIMA, Paulo Alexandre Monteiro - Reconversão da penitenciária e a sua reinserção urbana: Museu da Resistência. Coimbra: FCTUC. p.93131 Arquiteto e cineasta português do Estado Novo, José Ângelo Cortinelli Telmo (Lisboa,

Page 133: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

134

0 25 50

65 Planta do conjunto - Projeto Musealização

Page 134: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

135

próxima mantém-se desprovida de construções apesar da presença de acácias, que formam uma barreira visual e conservam o lugar quase que introspetivo.A qualidade evocativa e simbólica do lugar levou e que, em 2000, se criasse o museu que, numa primeira fase, foi dotado de uma pequena galeria de exposições, instalada na antiga “Secretária do Campo”, foi reabilitada para o efeito. Além do acesso a essa exposição, eram permitidas visitas livres ao interior do campo, onde o “Posto de Socorros” continha outra parte do espólio132.A classificação do equipamento como património nacional aconteceu em 2006, dando maior ênfase ao valor de património reconhecido no equipamento133. Três anos mais tarde foi organizado o “Simpósio Internacional sobre o Campo de Concentração do Tarrafal” que contou com a exposição “Memória do Campo de Concentração do Tarrafal”, alusiva aos trinta e cinco anos do encerramento do campo. Este evento contou com apoio e participação de entidades e instituições nacionais e internacionais, tais como as fundações Amílcar Cabral e Mário Soares. Para o efeito, foi aproveitado o espaço das grandes celas e de salas adjacentes, sem que se alterasse significativamente o seu estado de integridade por forma a manter o espírito do lugar.

Em 2015 foi desenvolvido um projeto global de musealização do sítio, financiado pela Secretária de Estado da Cooperação Portuguesa, com o apoio do Ministério da Cultura local, ficando o IPC responsável pela gestão do processo. Tal como é apresentado na texto de abertura da exposição permanente atualmente instalada,

“O presente “Museu do Campo de Concentração do Tarrafal” trata-se da primeira experiência em Cabo Verde de uma musealização in situ, procurando valorizar e perpetuar a memória, as emoções contidas no próprio local, a passagem do tempo, o passado recente do Campo, colocando a memória no estado atual das coisas, incluindo a apropriação pelos atuais moradores, como principais guardiões da história dinâmica do Campo de Concentração.”134

13 de novembro de 1897 – 18 de setembro de 1948)132 MENDES, Carlos - O Museu da Resistência: Museutransnacional. Porto: FLUP. p.73133 “Uma das mais significativas qualidades destes objectos patrimoniais é precisamente o seu caracter de documento, enquanto fonte de informação histórica, testemunho de dados ar-tísticos, técnicos e culturais.” in Tomé, Miguel - Património e Restauro em Portugal (1920-1995)FAUP Publicações, 2002. p.15134 Exposição permanente Museu da Resistência (sinalética entrada)

O Museu daResistência

Page 135: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

136

66 Museu da Resistência - sinalética rua principal67 Museu da Resistência - após intervenção68 Museu da Resistência - percurso

Page 136: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

137

O projeto foi desenvolvido por uma equipa pluridisciplinar, seguindo um método faseado, e a obra de reabilitação envolveu diversas entidades, de modo a garantir os diversos trabalhos, tanto a nível técnico como construtivo. Num primeiro momento, foram realizadas a inventariação dos elementos e o levantamento arquitetónico de todas as células do complexo, a que se seguiram ensaios e prospeções para avaliar o seu estado de conservação. Para além dos tradicionais estudos históricos de teor arquivístico, os técnicos procederam à recolha de histórias de vida e de depoimentos sobre as vivências dos antigos presos políticos, por forma a melhor preservar as suas memórias. Em complemento, um estudo sociológico das famílias que ainda habitam nas antigas dependências do campo, fundamental para a definição do programa de intervenções.Foram assim estabelecidas as orientações para o delineamento de uma estratégia de distribuição do programa funcional que abrangia todos os edifícios do complexo. Este programa organizava-se basicamente em três grupos de exigências. Um deles definia os requisitos para funcionamento da unidade museológica propriamente dita, contemplando espaços de receção/sala multimédia, salas de exposição, biblioteca/sala de leitura. O outro reportava-se aos arranjos do espaço exterior ao campo e preconizava a definição do circuito de visita e, em complemento, dos acessos, do estacionamento automóvel e duma praça. Por fim, os elementos de comunicação museológica, formados por sinalética, painéis explicativos e suportes para peças.O projeto de arquitetura, adequando-se ao conceito museológico, procurou manter o estado de integridade do sítio e a pátina dos principais elementos construtivos. A partir desta orientação geral, orientou-se por diferentes critérios, aplicados à especificidade das situações que havia de resolver. De entre os trabalhos definidos, contam-se:- a limpeza do interior do campo e seus compartimentos. - a restituição das coberturas em algum dos pavilhões.- a conservação dos caixilhos, que foram parcialmente substituídos por elementos novos, ainda que repetindo o desenho e homogeneizados pela pintura. - adaptação da casa do guarda, localizada no torreão da entrada e composta por dois compartimentos, de ambos os lados do eixo da entrada, a sala multimédia e a núcleo interpretativo da Colónia Penal. Como exceção e por motivos funcionais, a sala multimédia foi pintada a preto.- a reintegração do posto de socorros, sendo tratado o seu interior como galeria de arte típica “white cube”, minimalista, parede branca e chão uniforme cinza. Aqui o texto foi integrado na parede similarmente a uma instalação, como “páginas brancas”, tendo um aspeto “clean”. - a reintegração do pavilhão da sala de leitura, que mantém a sua função;

Page 137: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

138

69 Museu da Resistência - interior do campo 70 Museu da Resistência - vista parcial da muralha

Page 138: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

139

- remodelação do pavilhão das instalações sanitárias;- As estruturas mais arruinadas foram intencionalmente preservadas, mas também reconhecidas como elementos expectantes para possíveis transformações posteriores. - No processo de recuperação do edificado elegeram matérias da mesma natureza da construção original, fez-se a pintura do edificado, repondo as cores originais, como foi o caso dos edifícios anexos que tinham sido alteradas, utilizaram a cal com um pigmento ocre para o efeito. Fizeram também pinturas e reparações de alguns espaços para servirem as instalações do museu, entre outros arranjos técnicos 135.Para o projeto de museologia implementaram uma curadoria local que esteve a cargo do técnico José Landim. O projeto museológico retrata o passado dos presos políticos que passaram pela prisão e das personagens que estiveram envolvidas na “vida do campo”. Com o objetivo de contar a história dessa antiga prisão colonial, o programa estabelecido teve como princípio utilizar os edifícios como espólio museográfico explorando as memórias subjacentes aos espaços da antiga penitenciaria. Os dispositivos museográficos introduzidos foram pensados de modo a coabitarem com o espaço sem interferir na leitura do mesmo, e caso seja necessário podem ser removidos ou alterados, cumprindo o princípio de reversibilidade. Em resposta às necessidades subjacentes ao projeto de comunicação museológica desenvolveram:- painéis informativos e sinalética dos percursos que definem o circuito de visita, estabeleceram elementos mais invisíveis, sendo, por vezes destacados em relação ao plano onde se inserem. - memorial, formado por um prisma em granito preto de Angola, segundo a descrição do arquiteto, “o memorial como podemos constatar, é um elemento novo que, foi construído para enquadrar com as características do complexo prisional, o objetivo é ele não interferir ou afetar em termos visuais o complexo e nem os edifícios individuais. É, um elemento de fácil remoção caso for recomendado a sua remoção.” - além dessas transformações existe também uma exploração sensorial que procura transmitir aos visitantes “sensações” da vida no campo.

135 TAVARES, Adalberto – Memória descritiva do projeto de musealização do antigo Campo de Concentração. 2015. (IPC, Cabo Verde)

Page 139: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

140

71 Museu da Resistência - espólio interior Posto Socorros72 Museu da Resistência - espolio interior cozinha

Page 140: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

141

A instalação do museu não se restringiu apenas ao setor do campo, como afirma o arquiteto Adalberto Tavares: “a musealização do ex. campo de concentração do Tarrafal foi elaborada no intuito de valorizar as infraestruturas e memória do espaço como também incluir todos os anexos ao complexo prisional no circuito da visita.”136 Na praça, o objetivo da intervenção não era promover um espaço de lazer para a população, mas sim “transformá-la” num espaço de memória do sofrimento dos presos, por isso foi colocado a “jorra” com a sua cor negra. Houve a criação de um parque de estacionamento exterior com 30 lugares, como também a recuperação campo de futebol. Entre os trabalhos realizados está a definição de um circuito de visita, um caminho pedonal com pavimento em pedra basáltica formando os percursos com os limites pintados em branco.A reabilitação foi feita de forma pontual, envolvendo os trabalhos essenciais que possibilitassem que o museu funcionasse após a conclusão dessa primeira fase. A reabilitação do conjunto edificado e da zona envolvente fazem parte das premissas do projeto do museu, no entanto, é visível que ainda falta um processo longo para poder atingir esse objetivo por completo. É um processo que depende de vários fatores e que pode envolver outras entidades. Um dos objetivos será recuperar todo o edificado e mantê-lo como espaço de visita, o que implica a expropriação dos morados das casas/casernas, o que poderá envolver outras entidades. Também é de salientar que ainda não existe um projeto definido para a reabilitação dessas construções, permanecendo assim como parte expectante do projeto, não sabendo o poderá vir a abrigar.Houve uma abordagem direta à população que ocupa o perímetro e os espaços do ex-Campo de Concentração do Tarrafal, no sentido de fazer um levantamento de dados estatísticos, sociais, culturais e habitacionais, por forma, a definir melhor estratégia de inclusão da mesma dentro do projeto. Tinham presente o facto que as famílias que ocupam as casas/casernas na sua maioria são famílias extremamente carenciadas e com alguns problemas de higiene e saneamento.Todas essas ações fazem parte da metodologia de estabelecida para o projeto, ainda existe a intenção englobar tudo o que se encontra no campo num circuito da visita pelo que se pressupõe transformações futuras.Como já foi referido, estamos perante um museu da memória, sendo que, de todas as formas de materialização de passados traumáticos, os memoriais são os que mais se destacam, alertam a geração presente e as futuras a não permitirem uma repetição dos horrores. São espaços éticos capazes de afirmarem certas identidades e de proporem reflexões humanistas. Existe um compromisso

136 TAVARES, Adalberto – Memória descritiva do projeto de musealização do antigo Campo de Concentração. 2015. (IPC, Cabo Verde)

Page 141: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

142

73 Museu da Resistência - alguns dos pavilhões

Page 142: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

143

emocional que é conseguido através da experiência de locais reais/autênticos, como, por vezes existe uma encenação contida nos museus de memória, que cria uma certa interação com o público de modo a promover experiências e transmitir certas emoções criando espaços com cenários performativos. Esses géneros de museus procuram autenticidade, contudo a presença física desses tipos de edifícios/complexos tornam o esquecimento mais complicado. Deste modo possibilitam a reflexão, sendo isso parte da identidade museológica.

“Apesar do desafio da constituição de um museu em torno destas temáticas, que evocam algo que não é físico, a memória, e que, por vezes, não encontram um substrato material significativo, no sentido do objeto museológico tradicional, os museus de heranças difíceis tentam constituir os seus acervos através da recolha in sito, aquisição de bens relacionados com o que representam […] e através da doação.” 137

Pode se acrescentar que nessas instalações a arquitetura representa ou conta a própria história do local, enquanto que os dispositivos museológicos como painéis descrevem pormenores de diferentes pontos como as condições a que os presos estavam sujeitos, regras de comportamento no espaço, as fugas, ou seja, retratam a vida desses espaços, como também procuram potenciar a capacidade imaginativa do visitante 138.Os museus de “heranças difíceis”, assentes na memória traumática, vão emergindo em diferentes países como espaços reconhecedores de uma história que não é acarinhada, tiveram grande emergência no século XX e estão relacionados com os grandes flagelos da humanidade como a escravatura e o holocausto. Segundo Sharpley faz parte da história das viagens o gosto por locais, atrações ou eventos que se encontram, de uma forma ou outra, associadas à morte, ao sofrimento, à violência, ao desastre e ao macabro, tendência que tem vindo a aumentar na contemporaneidade e que se define, segundo o mesmo autor, por turismo negro. Os locais mais negros são aqueles em que ocorreram as atrocidades e mortes, como, por exemplo, Auschwitz-Birkenau 139.É bem conhecida a existência de uma “indústria de memória” relacionada com eventos como a Segunda Guerra Mundial, os debates sobre o Holocausto

137 MARTINS, Ana Rita Nunes Lopes – “A musealização de heranças difíceis: o caso do Museu do Aljube - Resistência e Liberdade”. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2015. p.30138 Idem, p.33139 Idem, ibidem.

Page 143: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

144

74 Museu da Resistência - interior do campo75 Museu da Resistência - vista posterior Posto Socorros

Page 144: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

145

e sobre a justiça transnacional. Na Alemanha, Áustria e Polónia, alguns dos campos de concentração utilizados pelos nazis durante a 2ª Guerra Mundial, transformam-se em lugares de peregrinação e isso motivou a sua salvaguarda e musealização. De entre estes, o mais celebrado é o de Auschwitz, cujo núcleo inicial foi criado em 1940, nos arredores de Oswiecim, e dois anos depois complementado com os campos de Birkenau, em Brzezinka, e de Monowitz, um complexo histórico formado pelos edifícios originais 140.

“The purpose of these Memorial Museums is to commemorate victims of State, socially determined and ideologically motivated crimes. The institutions are frequently located at the original historical sites, or at places chosen by survivors of such crimes for the purposes of commemoration. They seek to convey information about historical events in a way which retains a historical perspective while also making strong links to the present.”141

As antigas instituições utilizadas pelos regimes autoritários/fascistas procuram demonstrar as memórias do passado nesses espaços, em Portugal são exemplos o Museu Municipal de Peniche e o Museu do Aljube, sendo fora de Portugal, mas com influência portuguesa os museus da resistência do Tarrafal e do Timor Leste. Em ambos os exemplos apontados, a Fundação Mário Soares tem colaborado, através da salvaguarda e do tratamento de acervos documentais 142.O projeto do Museu da Resistência além de testemunhar uma das facetas do Estado Novo, procurará promover, pelo confronto com uma situação histórica controversa, a vida nos campos de concentração, uma reflexão sobre a sociedade e a política, como também procurar despertar consciência cívica. Condicionado por limitações, tanto financeiras como de recursos humanos qualificados o museu demonstrou fragilidade no dinamismo e visão sobre os processos de trabalho, de certo modo falta de experiência ao nível da criação e gestão de unidades museológicas, por parte da equipa e, mais latamente, pela própria administração central.De um modo geral, procuraram responder às exigências programáticas e implementar um museu com base nos ideais estabelecidos para museus de memória numa relação entre o programa e a forma arquitetónica. Essa

140 MARTINS, Ana Rita Nunes Lopes – “A musealização de heranças difíceis: o caso do Museu do Aljube - Resistência e Liberdade”. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2015. p.23141 ICMEMO, 2019142 MARTINS, Ana Rita Nunes Lopes – “A musealização de heranças difíceis: o caso do Museu do Aljube - Resistência e Liberdade”. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2015. p.55

Page 145: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

146

76 Museu da Resistência - vista interior do campo77 Museu da Resistência - antiga Secretaria do campo parcialmente aruínada

Page 146: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

147

estratégia é positiva porque consegue cumprir com a exigência científica desse tipo de equipamento sem pôr em causa a génese do lugar e preservando da pátina dos espaços mais íntimos a vivência dos presos.Existiu uma boa colaboração entre a equipa de museologia e a equipa de arquitetura, o que deve estar associado ao facto dessas equipes estarem ligadas à mesma instituição. O relatório feito pelo IPC afirma que os trabalhos não foram concluídos por limitação financeira, no entanto, podem aproveitar as dinâmicas já estabelecidas e manter a progressão dos trabalhos provavelmente mais a nível de investigação, o que poderá exigir menos recursos. Sendo um projeto de interesse nacional e não só, os presos que passaram pelo campo eram oriundos de diferentes países, a estratégia de dinamização dos trabalhos também poderá passar pelo envolvimento de entidades como universidades, outras instituições museológicas, de preferência com maior experiência e trabalhos em áreas semelhantes, algo que já aconteceu no simpósio internacional realizado com a participação da Fundação Mário Soares.O funcionamento do museu demonstra algumas debilidades, pois apesar de possuir uma estrutura montada, nem todos os espaços funcionam ativamente, a sala de leitura só é aberta com agendamento, os dispositivos multimédia nem sempre estão a funcionar. Também as visitas guiadas não são possíveis, o que igualmente pode estar associado à conhecida falta de recursos humanos. Por sua vez, segundo os relatórios apresentados, o museu irá incluir o complexo, o que poderá implicar maiores esforços pelo estado avançado de ruína de alguns edifícios. Além disso, pelo processo desenvolvido até agora, observou-se uma falha penalizadora nos trabalhos de reabilitação, que foi a destruição do edifício correspondente a antiga secretaria do campo.No que refere ao conteúdo do museu e ao seu programa, notamos atividades esporádicas que ocupam os espaços do museu, como a exposição montada pela curadora Marzia Bruno, Glimmer of freedom, algo que é positivo pelo dinamismo provocado e pela quebra da monotonia. Explorar esses aspetos poderá servir de meio também para chamar mais público ao museu, visto que não existe ainda uma conquista de visitantes, e os que aparecem são maioritariamente turistas. Será necessário trabalhar primeiramente em conjunto com a comunidade local e possivelmente com habitantes de outras localidades do arquipélago. Também o museu deverá possuir estratégias de comunicação e de atração do público com uma abrangência as diversas faixas etárias e a diversos públicos. É sabida a importância do museu para a cultura, a história e a própria demonstração da identidade do país, sendo a identidade construída a dois é essencial o envolvimento dos locais que, de certa forma, vêm esse equipamento como algo que lhes pertencem. Além disso, seria uma mais valia constituir o museu como espaço de debate, interpretação e salvaguarda da memória, pelo que a participação da população se torna fundamental.

Page 147: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

148

78 Aljube, Lisboa (cerca de 1900)

Page 148: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

149

O Aljube, em Lisboa, foi utilizado desde 1928 como cadeia para presos políticos e, a partir de 1934 passou prisão da PIDE (a polícia política), que construiu o conjunto de celas solitárias, conhecidas por “curros” ou “gavetas”. Com a mudança de regime, após a revolução de 1974, o edifício é ocupado, pela Direcção-Geral da Reinserção Social do Ministério da Justiça, que aí permanece até 2009. A vontade de aí instalar um museu de memória, segue-se ao anúncio de saída desta instituição e foi protagonizada pelo movimento cívico “Não Apaguem a Memória”, preocupado com a intenção de alguns investidores privados em reconverter o edifício num condomínio habitacional de luxo. No mesmo ano, a Câmara Municipal de Lisboa adere à ideia da adaptação do edifício em espaço museológico, para o que organiza, em parceria com o Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e da Fundação Mário Soares, uma primeira exposição, denominada “A Voz das Vítimas”. A exposição desenvolvia-se em três pisos e compunha-se de vários módulos com conteúdos que recriam as vivências dos presos políticos, utilizando diferentes técnicas museográficas. Após o enceramento da exposição, em 2013, foi constituída uma equipa operacional para a definição do programa museológico documentação especializado, simbolicamente o museu foi inaugurado no dia 25 de Abril de 2015, designado Museu do Aljube - Resistência e Liberdade.

O projeto arquitetónico de “Recuperação e Adaptação do Edifício da Antiga Cadeia do Aljube” foi dirigido pelo Atelier Contemporânea e coordenado pelos arquitetos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira, que se confrontaram com um edifício em avançado estado de degradação. Foi realizado previamente um estudo arqueológico que revelou pistas sobre aquilo que poderia ser a história da evolução construtiva do equipamento e que permitiu concluir que o edifício foi sempre uma prisão. O passado complexo do edifício reflete-se na sua construção, feita de sobreposições e mistura de elementos de cronologias muito diversas, como consta na memória do projeto. A antiga prisão política possui traços de distintas épocas, como da cidade romana, islâmica, medieval, barroca e iluminista e ostenta uma fachada austera com traços da época pombalina. Tanto pela sua construção, como pelas diversas funções que abrigou, o processo de reabilitação teve o desafio de respeitar a complexa estratigrafia da construção. Intencionalmente, os arquitetos procuraram mostrar os sinais que contavam esse passado e procuraram "descascar" e mostrar o edifício a cru, como de deduz da memória descritiva do projeto: “foi nossa intenção respeitar e dar a ver os sinais que contavam o passado do edifício.”Os critérios apontados não se restringiram ao respeito pelos traços de antiguidade do edifício, também assumiram o valor de novidade de Riegl, tiveram de ser ajustados à necessidade de responder a um programa que previa a instalação de funções particulares, próprias de uma unidade museológica.

Memóriasdifíceis

Page 149: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

150

79 Museu do Aljube

Page 150: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

151

Foi necessária a definição de dois tipos de ambientes: um que mantinha os traços e a pátina dos espaços, dos elementos construtivos e da própria ruína quase que em sua apologia 143; outro que renovava os interiores, através de uma reabilitação integral, tentando sempre não misturar estes dois universos.No que refere à distribuição do programa funcional, o projeto usa diferentes técnicas que resultaram na criação de um espaço performativo, no piso 0 encontra-se o espaço dedicado às exposições temporárias e nos pisos superiores a exposição permanente. O último piso foi o que sofreu maiores alterações, correspondente à ampliação mais recente segundo indica a memória descritiva, dada a irrelevância espacial e fraca estruturação claramente pela adição desproporcional de que é fruto. Para além das alterações circunscritas a esse espaço, no edifício recuperaram-se ou copiaram-se, em novo, as grades, caixilharias e portadas. Os "curros", destruídos em 1960, mas reproduzidos aquando da exposição Aljube - A voz das vítimas, foram repostos. Além disso o projeto ilustra estes dois caminhos, a reabilitação da arquitetura e o projeto de exposição.

Neste caso a equipa de projeto de reabilitação atuou em conjunto com a equipa de museologia.

“Em todos os pisos, uma leitura "labiríntica" do espaço pretende não só surpreender o visitante como sugerir, a uma museologia exigente, vários trechos não imediatamente "oferecidos", antes "escondidos": por trás, ao lado, em frente dos vários planos que são as paredes existentes ou as novas, driblada a mais óbvia colocação dos vãos que as atravessam.”144

Para além dessa intenção espacial desenvolvida pelo projeto, constatamos que nas zonas expositivas, existe uma sobreposição dos elementos construtivos e compositivos, que contrastam com o rigoroso acabamento da superfície das abóbadas, elementos esses que servem como refletores para a iluminação artificial, o que, de certo modo, ofusca uma leitura desimpedida desses espaços.

As opções de projeto do Museu do Aljube assemelham-se a situação do Museu da Resistência, ambos os projetos procuram expor o carácter do edifício e

143 “é correcto afirmar que as ruínas se tornam cada vez mais pitorescas, quando mais partes suas entrarem em dissolução.” in: Riegl, Alois; O Culto dos Modernos dos Monumentos, Lisboa; Edições 70 – setembro 2016. p.31144 Memória descritiva do projeto, cedida pelo arquiteto Egas Vieira.

Page 151: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

152

80 Museu do Aljube, após intervenção81 Museu do Aljube, após intervenção

Page 152: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

153

a sua história. No exemplo cabo-verdiano essa tarefa mostrou-se mais fácil porque o edifício manteve-se praticamente inalterado após a extinção da prisão, enquanto que, no Aljube o edifício por si só tinha mais tempo de vida e a construção se processou em diferentes épocas, isso implicou um estudo científico para obter esse reconhecimento. No que refere ao projeto de museologia houve em ambos a exploração de conteúdos que exibissem a histórica do lugar, bem como uma tentativa de aproximação a atmosfera que se vivia nesses espaços. Contudo, o projeto de museologia, elaborado após a conclusão das obras de recuperação arquitetónica, por uma equipa de museólogos do atelier Henrique Cayatte “sobrepôs ao projeto de arquitetura”, criou um cenário diferente àquilo que a reabilitação tinha assumido e os arquitetos pretendiam. Evidenciam não ter havido um trabalho/colaboração bem-sucedido entre a equipa de museologia e arquitetura, o que no projeto do Museu da Resistência não foi problema porque as duas equipas, de museologia e de arquitetura, pertenciam a mesma instituição o que permitiu o desenvolvimento do trabalho em conjunto.Por fim, é de salientar que são dois projetos com resultados específicos e adaptados as circunstâncias e condições financeiras que envolveram cada um dos casos, apesar de existirem vários princípios comuns entre os dois. O projeto para o Museu do Aljube teve um orçamento completo, que permitiu suportar tanto o restauro como a musealização da melhor forma, por sua vez, o projeto do Museu da Resistência contou com poucos recursos, o que implicou a não conclusão dos trabalhos.

Page 153: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

154

82 Ilha da Boavista

Page 154: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

155

2.4 - Spinguera Ecolodge, um modelo alternativo possível

O hotel Spinguera Ecolodge, situado em Espingueira, na costa norte da ilha da Boavista, resultou da recuperação de uma antiga aldeia que se encontrava desabitada e em ruína. A reabilitação do conjunto foi orientada pela proprietária e artista plástica Larissa Lazzari, que contou com a colaboração de operários locais, num processo de trabalho que foi desenvolvido entre 1999 e 2003.

A Boavista posiciona-se na área de barlavento no grupo das ilhas do arquipélago cabo-verdiano e é ilha que se encontra na faixa mais oriental, tendo maior proximidade ao continente africano. Possui uma superfície de 620km², um comprimento de 31km por 29km de largura, de forma arredondada, similar à ilha do Fogo, embora esta última tenha uma configuração mais regular. No contexto do arquipélago cabo-verdiano é uma das ilhas em que o processo de erosão do solo demonstra estar mais acelerado. A sua superfície predominante é de baixa altitude, contrariamente à maioria das insulas de origem vulcânica que possuem relevo acentuado. A proeminência máxima da ilha está no Pico de Estância, que atinge os seus 387 metros. O solo é formado por cordões dunares e terrenos áridos, em que as dunas de areia preenchem praticamente toda a paisagem costeira e parte do interior da ilha. A variação cromática da superfície transita do bege à sépia e até ao solo pardo - avermelhados, constituem paisagens que merecem apreço, como afirma Josef Kasper 145. As rochas que compõe as superfícies arenosas e as zonas de transição destas para o interior da ilha fazem parte do processo de criação das dunas, sendo muitos deles compostos por calcários-arenitos. Para além desses solos calcários, existem outros tipos geológicos, mas todos eles pobres em matéria orgânica, exibindo uma vegetação compostas por xerófilas, típica de zonas áridas 146. Apesar disso, o valor paisagístico na ilha é denunciado pela sucessiva constituição de reservas naturais e áreas protegidas, de que é exemplo o Parque Natural do Norte, onde se localiza o Spinguera Ecolodge.

Boavista é das ilhas menos povoadas do arquipélago, com menos de 9 000 habitantes, segundo os censos de 2016 147. Sal Rei é o maior centro urbano e acolhe grande parte da população. A ilha só teve população fixa a partir do

145 KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecológicos e económicos: tentativa de análise. Cabo Verde: Instituto Caboverdiano do Livro, 1987. p.31146 Idem, p.83-84147 http://ine.cv/wp-content/uploads/2017/11/aecv-2016.pdf

Espingueira, entre o calcário e as dunas

Page 155: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

156

83 Vila Sal-Rei, 1986

Page 156: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

157

século XVIII, sendo até então a manutenção da atividade da ilha feita pelo trabalho escravo. O primeiro povoado foi a Povoação Velha e manteve-se como principal centro urbano até 1810, no entanto, perdeu a sua primazia e hoje têm cerca de três centenas de habitantes. Localizada na parte sul da ínsula, a cerca de quatro quilómetros da costa, um lugar que assegurava mais direta ligação com as restantes ilhas então povoadas, e dispostas a sotavento. Como afirma Duncan,

“Em 1650 habitavam na Boa Vista cerca de 150 pessoas e em 1667 a Boa Vista recebeu o primeiro pároco. É provável que uma primeira e verdadeira colonização da Ilha tenha sido efetuada a partir da primeira metade do século XVII. Para além do mais, a partir do princípio do século XVII, os ingleses começaram a exploração do sal […] o que foi sem dúvida uma razão suplementar para o começo de uma ocupação constante.”148

Os povoados da ilha desenvolveram-se de acordo com as possibilidades oferecidas pelo território, normalmente associadas à exploração de recursos materiais. Pelo facto de possuir uma paisagem de pouca vegetação, o que seria adaptável para os caprinos, os primeiros tempos da ocupação deste território foram marcados preponderantemente pela criação de gado e produção de derivados dos animais que seriam exportados para as outras ilhas e para o exterior, consolidando assim uma atividade económica importante. Foram também conhecidas a extração do sal natural, a pesca e a produção de conserva de peixe, o cultivo do algodão, a apanha da urzela, a produção da cal e o fabrico da cerâmica 149. A produção da cal, iniciada na década de trinta do século XIX 150, foi uma atividade que teve um papel importante na subsistência das famílias. A matéria-prima abundava e o produto tinha mercado, tanto a nível nacional como internacional. No entanto, teve o seu declínio com a introdução do cimento na construção em Cabo Verde. O isolamento de alguns dos povoados, associado às dificuldades na deslocação, à escassez de infraestruturas e serviços e á perda dos meios de subsistência ditam muitas a redução do número de habitantes ou mesmo o total abandono. Esta situação verificou-se na antiga aldeia de Espingueira, um desses povoados vocacionados para a pastorícia, a pesca e a produção da cal, sendo esta última a mais rentável. A alteração do

148 Descrição de T. B. Duncan referida por KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecológicos e económicos: tentativa de análise. Instituto Caboverdiano do Livro, 1987. p.38149 Idem, p.109150 Idem, p.151

Page 157: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

158

84 Spinguera Ecolodge, vista geral da aldeia85 Spinguera Ecolodge, vista geral da aldeia

Page 158: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

159

quadro económico, pela decadência da principal fonte de rendimento, provocou o processo de abandono, que começou em 1974, de forma progressiva, até ao completo abandono que aconteceu no ano de 1985, quando os últimos moradores se mudam para Sal Rei e Bofareira 151. Duas décadas após o completo abandono, os edifícios encontravam-se em avançado estado de ruína, despojados de portas e janelas e com ausência da cobertura.

Implantada na costa norte da ilha, a antiga aldeia fica a cerca de treze quilómetros de Sal Rei, a quatro quilómetros da Bofareira e a cerca de seiscentos metros da praia. Abrigada pela encosta e inserida numa baía, com o Porto de Derrubado numa das extremidades, formava uma pequena comunidade isolada, cujos contactos com o exterior aconteciam no momento de comercialização dos seus produtos, recorrendo, fosse na deslocação às outras localidades, ou aos barcos que atracavam no porto de Derrubado. A povoação, formada por construções elementares, desenvolve-se numa faixa com aproximadamente 200 metros de comprimento, por 35 metros de largura marcando a transição da encosta para a superfície dunar. À volta deste núcleo mais compacto são visíveis algumas construções devolutas e em ruínas, tanto de antigas habitações como de antigos fornos de produção da cal, as texturas das ruínas aproxima a cor do terreno e da paisagem envolvente.

O hotel Spinguera Ecolodge resultou do investimento principiado por um grupo privado, que adquiriu a partir 2001 a propriedade à Câmara Municipal da Boavista 152. Enquadra-se na política de atração de investidores estrangeiros, explorada pelos vários governos do país, que teve ao longo de décadas como principal alvo o turismo. A intenção inicial passava por implementar um modelo tradicional de hotel, porém uma alteração no curso dos acontecimentos faz com que a responsabilidade fosse transferida para Larazzi, que, reequacionando o projeto, promove uma alteração de estratégia, em favor da preservação dos vestígios construtivos, por forma assegurar a valorização patrimonial da antiga aldeia de Espingueira.

151 SANTOS, José António – Spinguera, Resenha Histórica. 2005.152 Larissa Lazzari – Spinguera Eco Lodge: tempo e espaço para viver emoções. [consultado 05 set 2018] http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-espaco-para-viver-emocoes/

Page 159: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

160

0 25 50

86 Spinguera Ecolodge, planta

Page 160: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

161

O Spinguera Ecolodge é um pequeno aldeamento de carácter alternativo com a capacidade para nove quartos duplos, três apartamentos com cozinha, um bar, um espaço de leitura e uma zona de estar coletivo 153. O hotel não forma um conjunto compacto, pois o programa foi distribuído pelas construções que formavam o antigo povoado, o que permite alguma autonomia física, sem perda da qualidade funcional. As zonas de uso comum concentram-se no núcleo central e os apartamentos e quartos estão distribuídos pelo resto do conjunto.

A ideia inicial do projeto previu uma abordagem equilibrada na relação com a natureza e que estivesse ciente do lugar nas suas múltiplas facetas, com base nessa premissa procuraram sempre trabalhar em parceria com a vizinha comunidade de Bofareira. Dava assim inicio à reconstrução das antigas casas, procurando a reintegração do conjunto respeitando as plantas e a arquitetura original. Prosseguiu-se atento às potencialidades materiais com uma intervenção mais específica e adequada às circunstâncias, redirecionou a recuperação para moldes mais tradicionais e contou com a colaboração dos artesãos locais, num processo que teve a duração de quatro anos.

A estratégia passava por um mínimo de transformações. No que refere a intervenção nas ruínas, as ações passavam pela consolidação e reintegração das alvenarias, a reconstrução das coberturas e a reorganização dos vãos. Foram construídos alpendres associados ao corpo de espaços comuns.

Houve a reconstrução e reintegração das paredes exteriores dos diferentes corpos, em alvenaria seca e irregular de calcário, com argamassa no lado interior, para reforço e, nalguns casos, rebocada exteriormente e caiada a branco. Aqui foram redesenhadas a composição das aberturas, respondendo à função de unidades de alojamento, nomeadamente relacionando interior/exterior, mais francamente o lado da praia. Apresentam um maior número de vãos do que é costume em Cabo Verde. As técnicas utilizadas previam manter as tradições construtivas com base no uso de matérias locais: construir alvenaria de pedra e argamassas à base de cal.

Também com base nos materiais locais foram reinterpretados os sistemas construtivos da cobertura e das caixilharias. Na cobertura reintroduziram os materiais tradicionais e redesenharam a estrutura com a sua disposição anterior, com duas águas e aproximadamente 45º de inclinação ou, mais raramente, de uma água com uma pendente ligeira. O sistema construtivo da cobertura foi melhorado, pela introdução de uma chapa metálica, que funciona

153 Larissa Lazzari – Spinguera Eco Lodge: tempo e espaço para viver emoções. [consultado 05 set 2018] http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-espaco-para-viver-emocoes/

Uma aldeiaalternativa

Page 161: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

162

87 Spinguera Ecolodge, forna de fabrico da Cal88 Spinguera Ecolodge, fase de construção89 Spinguera Ecolodge, aldeia antes do processo de reabilitação

Page 162: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

163

como elemento de retenção e canalização das águas pluviais. Esta adaptação permitiu a redução da espessura da camada do colmo, que, perdendo a função de barreira para as águas pluviais, assume exclusivamente papel de acabamento, preservando a imagem e a expressão. Esta solução reduz bastante a necessidade de trabalhos de manutenção e permite uma maior durabilidade do conjunto.

Nos vãos mantiveram o uso das venezianas e das portadas exteriores, além disso foram criadas portadas internas para as portas. Fizeram alterações compositivas no desenho das portadas em relação aos moldes tradicionais que seriam compactas e sem molduras, além disso houve a introdução de pinturas, o que fez com que esses elementos ganhassem uma linguagem cromática diversificada.

A compartimentação interior, nomeadamente das unidades de alojamento, integrou a cozinha que nunca existira e instalações sanitárias. A aplicação de novos materiais aconteceu apenas na compartimentação interior, onde foram introduzidos blocos de cimento, no entanto, utilizaram o mesmo tipo de reboco com argamassas à base de cal. Também introduziram azulejos na cozinha, uma novidade para a construção, mas a aplicação desse material, tal como a própria construção da cozinha, aconteceu com base num trabalho desenvolvido artesanalmente e sem requinte, no próprio local.

Os arranjos exteriores contribuíram para a diferenciação das vias de circulação, sendo recuperados antigos caminhos. Esses percursos contêm símbolos que comunicam a linguagem criada para o projeto, o que da mesma forma acontece no edifício. Houve o redesenho dos arranjos exteriores, dos percursos e dos pavimentos, sendo este último concebido de forma a dar maior unidade a envolvente próxima dos edifícios. A aldeia preservou uma imagem que se aproximaria do original, houve a agregação dos edifícios reabilitados pela definição de uma plataforma que envolve o conjunto, onde se aplicou um pavimento em pedra irregular e foi construído um murete que delimita a periferia da pequena aldeia.

Foram introduzidas redes de eletricidade e de água, de modo a cumprir as exigências contemporâneas. Para isso, previu-se a construção de espaços destinados às suas áreas técnicas. Um gerador eólico, destacado em relação ao conjunto e assumido sem querer esconder, uma atitude que demonstra a postura ecológica do projeto. Também numa perspetiva ecológica e de defesa da integridade ambiental, recorreram a 36 painéis solares e um aerogerador elétrico, que em conjunto garantem o fornecimento de 95% da energia elétrica consumida pelo equipamento hoteleiro.

Para assegurar uma reconstrução fiel ao original, criaram condições para obterem a matéria-prima necessária no local e adotaram técnicas tradicionais

Page 163: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

164

90 Spinguera Ecolodge, vista parcial91 Spinguera Ecolodge, vista parcial92 Spinguera Ecolodge, alpendre frontal

Page 164: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

165

de produção, é o caso da obtenção da cal 154. Por sua vez, foi assegurado o talhe da pedra de forma tradicional, que implica uma mão de obra específica e constitui processos de trabalho mais vagarosos. Parte das novas compartimentações do interior foram feitas com paredes em blocos de cimento, algo que diferencia do sistema construtivo anterior, contudo, o fabrico desse material foi feito no local e o acabamento feito com argamassas à base de cal, tal como as paredes tradicionais.

O projeto de reabilitação da antiga aldeia de Espingueira constitui uma intervenção que valoriza a habitação tradicional cabo-verdiana. De certa forma o projeto, sendo uma unidade hoteleira, questiona os modelos recorrentes de hotel em Cabo Verde e promove um modelo alternativo, desenvolvido à luz das tradições construtivas locais.

O projeto do Spinguera Ecolodge segue um modelo de turismo alternativo, o ecoturismo, que explora um conceito de diálogo próximo com a cultura, as tradições locais, preservando as suas identidades. Esse modelo procura adaptar às diversas circunstâncias do lugar e potenciar os seus valores, neste caso essa atitude levou ao reconhecimento por parte das entidades locais que integraram o aldeamento turístico no Parque Natural do Norte 155. Esse parque representa a área protegida mais extensa da ilha e foi reajustada de modo a incluir o aldeamento turístico no seu perímetro, algo que aconteceu após a análise da intervenção de reabilitação feita.

Os princípios do projeto do hotel Spinguera Ecolodge podem ser revistos na abordagem ao projeto da Valorização Turística do Habitat Tradicional na Ribeira da Torre em Santo Antão. Primeiramente, ambos os projetos têm como objeto de trabalho habitações tradicionais e em segundo lugar são projetos desenvolvidos para fins turísticos. Os métodos utilizados procuram manter as tradições construtivas e consequentemente salvaguardar e potenciar essas práticas. Os vários componentes do projeto foram pensados e adaptados com resposta a uma linguagem arquitetónica especifica. Houve a adaptação do programa à matriz das construções preexistentes, o que traduziu com rigor na resposta as exigências e complexidades do setor. A volumetria e a disposição dos edifícios mantiveram-se, o que também proporciona a relação harmoniosa da aldeia com a paisagem envolvente.

154 [consultado 05 set 2018] Disponível em https://www.departures.com/restored-village-retreats/4155 “O Parque Natural do Norte representa a área protegida mais extensa da ilha Boa Vista, ocupando todo o quadrante nor-oriental da ilha (8.910 ha) e uma importante área marinha (13.137 ha) ao longo de toda a sua área costeira e que corresponde a três milhas náuticas.” in Parque Natural do Norte (Decreto-Regulamentar nº 5/213 de 5 de Abril), [consultado 08 jul 2018] Disponível em http://areasprotegidasboavista.blogspot.com/p/espacos-protegidos-da-boa-vista.html

Page 165: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

166

93 Spinguera Ecolodge, interior de um quarto

Page 166: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

167

A preservação dos restos materiais, com valor patrimonial, ainda que não classificadas, garante a continuidade ou a “ressurreição” duma povoação antiga, ainda que com função completamente diferente, remetendo a alguns modos de habitar e de vivência deste território. Existe uma clara preocupação com a matriz urbana da aldeia preservando os seus traços, além disso, o conjunto edificado foi recuperado, mantendo os traços volumétricos e a composição original, bem como a materialidade da construção. Também é notável o respeito, tanto pelas preexistências físicas do lugar como pela história e os costumes.

Houve a recuperação de técnicas construtivas ancestrais, nomeadamente o uso da cal, num momento em que a construção no arquipélago está a aderir a vários novos materiais, novos sistemas construtivos e até novas tipologias habitacionais, é positivo o desenvolvimento de projetos como este que procura preservar a construção tradicional. Este projeto procura retomar os processos construtivos tradicionais e mantê-los ativo, essa postura demonstra a preservação de um legado importante que faz parte da génese construtiva principalmente da ilha da Boavista. O processo procurou o envolvimento dos artesãos locais tendo como base para a construção os seus conhecimentos, assemelhando-se aos processos de construção das habitações unifamiliares que são guiadas da mesma forma sem o auxílio do arquiteto.

O processo procurou preservar as tradições construtivas, mas também demonstrou uma tentativa de melhorar a resposta do sistema construtivo, adequando-o a novas exigências e desafios, houve a introdução, sem complexos, dos meios tecnológicos de produção de eletricidade; correção de elementos de construção, como a cobertura e os caixilhos. As alterações foram assumidas, as camadas da cobertura não são escondidas mostrando assim a “verdade” construtiva, do mesmo modo pode-se observar que as alterações compositivas dos vãos demonstram uma postura assumida, tanto pelo desenho como pelo uso da cor.

Esse aspeto lúdico é visível pela introdução de cores nos vãos, o uso de vegetação, o desenho de pavimentos, as plataformas, o que remete para a nova função. A inovação trazida pelo uso de cores nos vãos mostra a exploração de uma expressão comunicativa. Provavelmente é algo que não corresponde à composição original dos edifícios, mas pode-se justificar esta ação porque todos os esses elementos foram construídos novamente. Ainda assim, seguem os detalhes tradicionais, mas assumem o valor de novidade que lhes são introduzidos.

Na cobertura, devido a escassez de matéria prima para sua execução e frequente manutenção desse elemento, foi feita uma adaptação da sua composição com a introdução de uma chapa inferiormente ao colmo. Essa adaptação permitiu criar uma superfície impermeável que dispensa o uso de uma camada espessa

Page 167: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

168

94 Casas da Comporta, vista interior tipo 195 Casas da Comporta, vista interior tipo 296 Casas da Comporta, vista conjunto

Page 168: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

169

de colmo como seria exigido pelo sistema tradicional, sendo assim, existe pouca necessidade de manutenção e o colmo utilizado mantêm o aspeto identitário desse sistema.

O projeto serve de referência, na medida em que exibe outras possibilidades e caminhos novos, que contraria a tendência das construções associadas a instalações turísticas. Nomeadamente a maioria dos hotéis e resorts em Cabo Verde estão a surgir com lógicas arquitetónicas de linguagens, sistemas construtivos e materiais que diferem por completo da arquitetura tradicional, exibindo construções anárquicas, sem respeito pela paisagem e desenquadradas da realidade local.

Com o propósito de enriquecer esta análise, faz-se um paralelo com dois projetos, as Casas em Comporta e as Moradias da Praia do Estoril. O primeiro projeto desenvolvido pelo escritório Aires Mateus em Grândola, as Casas em Comporta 156, fazem parte de uma intervenção de recuperação de edificado, em que existe uma procura de manutenção, tanto dos volumes, como da imagem exterior dos edifícios. Podemos encontrar semelhanças na fragmentação do programa pelos volumes de construção, neste caso volumes que correspondem a espaços de estar, outros que correspondem a quartos e instalações sanitárias. O pátio informal serve de elemento agregador para os volumes, com percursos definidos por plataformas de madeira do género de passadiço.

Em contradição ao Spinguera Ecolodge, no projeto das Casas da Comporta, podemos afirmar que há maior artifício, ainda que o resultado parece mais “primitivo”. Existe uma atualização dos elementos de construtivos, integrando novas exigências técnicas e de conforto. É percetível a sofisticação dos materiais, dos elementos e do próprio sistema construtivo.

O betão é introduzido no pavimento da zona de estar, porém a sua aplicação fica camuflada porque é reposta a areia que serve de elemento de acabamento. O projeto demonstra um desenho com uma composição nova, tanto na fachada como nos vãos, mesmo assim existe a evocação da situação preexistente. Sendo uma habitação temporária, um “hotel”, daí permitir soluções que uma habitação permanente não admitiria, como é o caso do uso da areia no pavimento. O projeto demonstra uma reinterpretação de modos ancestrais de construção neste tipo de ambiente, mas sem a recuperação de sentido arqueológico dos restos materiais, mesmo porque estão absolutamente degradados e não

156 El Croquis - AIRES MATEUS n. 154. Madrid: El Croquis Editorial, 2002-2011. p.224 – 233

Um continuarinovando

Page 169: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

170

97 Moradias Praia do Estoril, relação entre volumes98 Moradias Praia do Estoril, alçado99 Moradias Praia do Estoril, vista conjunto

Page 170: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

171

respondem às exigências do novo programa. Por sua vez, a intervenção na Boavista apenas completa ou complementa o sistema construtivo encontrado e com isso mantém os materiais tradicionais. Irregularidade na disposição dos volumes e dos passadiços, tal como no Spinguera, mas regularidade de cada unidade, de cada volume possuindo planta retangular.

Um outro paralelo que pode ser feito, estando numa proximidade geográfica, ainda que num contexto urbano, tratando-se de construções de raiz, em zona de expansão da cidade, mostra como se pode continuar inovando. Em plena vila de Sal Rei foram construídas as Moradias da Praia do Estoril, com o projeto do atelier de José Adrião Arquitectos, concluído em 2012. A obra refere a primeira fase de construção, com 18 habitações, ocupando uma área de 2300m². O edifício apresenta uma linguagem contemporânea que integra as condições climáticas da ilha e procura integrar-se na morfologia da envolvente que, embora de carácter heterogénea, aponta já para uma regra de desenho urbano.

Foi eleito uma tipologia de “casa pátio”, que pouco tem a ver com as povoações litorâneas, onde impera a construção do volume isolado. Desenvolveram um sistema de pátio murado, que remete um pouco para as construções em ambiente rural, que são compostos por núcleos habitacionais com vários volumes em torno de pátio ou em relação com vários, de que resultam conjuntos compactos, estruturadas sob a forma de quarteirões, dimensionados de forma a integrar-se na escala da envolvente urbana numa tentativa de continuidade do tecido.

O conjunto está disposto num sistema de azinhaga, o que promove uma relação entre volumes e espaços que se assemelha aos aglomerados tradicionais da ilha. A tipologia de dois pisos também responde ao contexto, uma vivência contemporânea, de raiz mais cosmopolita. A fragmentação volumétrica também reporta à diversidade da envolvente. Certo espontâneo, contido por uma geometria de grande rigor. A composição aproxima-se a uma casa pátio, existe o uso do alpendre como elemento de proteção contra a insolação e a chuva. Esse elemento igualmente serve de “caixa de ar”, o que permite um melhor arejamento interior e também serve de zona de estar. Dispositivos que tentam melhorar a resposta às condições locais, entretanto têm poucas relações com as tradições, o caso do alpendre. Isso poderá também abrir perspetivas para desenvolvimento, visto que demonstram uma boa adaptação ao contexto.

Podemos apontar algumas relações com o Spinguera Ecolodge, como já foi referido o contexto geográfico é igual e ambos os edifícios foram implantados num areal, tendo composições semelhantes. A volumetria do edificado é de formas puras surge numa composição simples e de linguagem sóbria sem causar grandes impactos na relação com a envolvente. As opções da composição volumétrica permitem uma maior fruição dos ventos, a proteção do interior da casa contra insolação direta dos raios solares, algo ideal para o clima local.

Page 171: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

172

A materialidade procura traços da arquitetura tradicional, a pavimentação dos percursos da envolvente ao edifício são em calcário. O branco utilizado nas paredes exteriores permite maior frescura ao edifício, tal como acontece em muitas habitações tradicionais da ilha com acabamentos a base da cal.

O projeto assume a condição do seu tempo, mas não deixa de seguir os traços da habitação tradicional, e tal como na reabilitação da aldeia de Spinguera dá-se a continuidade à tradição construtiva. O edifício é de acabamento simples e informal, não cria fantasias, o que lhe difere das construções atuais da ilha. Essa simplicidade vai ao encontro dos princípios da arquitetura tradicional e ao próprio ambiente da ilha, que na sua matriz é singeleza. Sendo um edifício novo não contém a “irregularidade” ou a espontaneidade da implantação das construções das aldeias típicas da ilha, contudo, compõem um desenho sóbrio e sofisticado que oferece qualidade ao lugar e a quem o habita.

Page 172: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 173: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

174

100 Porto Novo - Santo Antão, 2019

Page 174: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

175

2.5 - Ribeira da Torre, o lugar, a habitação tradicional na atualidade

O “Projeto de Valorização Turística do Habitat Tradicional na Ribeira da Torre”, foi um projeto desenvolvido para esse vale de Ribeira da Torre, no âmbito da promoção do turismo sustentável. ONG cabo-verdiana Atelier Mar foi o seu promotor e mobilizou o envolvimento da população local. A localidade abriga uma população de cerca de três mil habitantes e tem como principal atividade a prática da agricultura, ainda ligada a processos tradicionais. Apesar de atualmente já não seguirem fielmente os traços do passado, o habitat local preserva arquiteturas de carácter vernacular. Também neste lugar prevalecem atividades integradas à cultura local, pelo que o projeto em questão tentou revitalizar e exponenciar os seus valores em conjunto com a salvaguarda desta arquitetura tradicional.

“Santo Antão, a ilha mais sententrional e ocidental do arquipélago, e a segunda maior de Cabo Verde, é montanhosa com a Tope de Coroa atingindo 1.979 metros de altitude. Ilha de intensos contrastes, climáticos e de paisagem.”157 Pelo seu carácter periférico e pela sua orografia extremamente acidentada, a ilha manteve-se deserta durante muitos anos após o início do povoamento do arquipélago. A sua identidade paisagística é fortemente marcada pela origem vulcânica,158 existindo um elevado contraste morfológico, composto por montanhas, vales, penhascos, planícies. Por sua vez, a atuação humana nessa geografia provocou uma composição embelezadora da paisagem. Tanto a paisagem artificial como a paisagem natural contêm uma beleza cénica merecedora de contemplação.

Pode-se observar as diferenças, muitas vezes abruptas, que existem do lado sudeste em relação ao lado noroeste da ilha, separados por uma cordilheira. O efeito de massas de ar dos alísios manipula essas paisagens, se o setor norte é influenciado pelos ventos húmidos, já o que está exposto a sul recebe os ventos quentes e secos, apresentado solo árido e estéril com pouca vegetação, normalmente sobrevivem as acácias 159.

157 FERNANDES, José Manuel; JANEIRO, Maria de Lurdes; MILHEIRO, Ana Vaz - Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas. Lisboa: Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA, 2014. p.53158 Fase 1 – Análise e Caracterização – Esquema Regional de Ordenamento do Território da Ilha de Santo Antão, (2007), p.98159 “A ilha, de origem vulcânica, é caracterizada por uma dorsal central que a divide ao

Um belo vale

Page 175: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

176

101 Santo Antão, paisagem interior da ilha

Page 176: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

177

O primeiro impacto, para quem chega de barco em direção a Porto Novo, depara-se com um ambiente árido marcado por uma encosta com um povoado no sopé, e em segundo plano vêem-se montanhas altas que se elevam até se perderam nas nuvens. Do lado nordeste as montanhas e os vales que compõe essa área presenciam um clima que difere muito em relação ao outro lado da ilha. A paisagem verdejante encobre as montanhas e ganha maior expressão nos vales extensos, dando origem a diferentes microclimas. Nas partes mais baixas, que normalmente foram domesticadas com a introdução de diques e socalcos, surgem as áreas agrícolas a ocuparem os terrenos mais férteis 160. Nesses lugares existe uma produção agrícola contínua ao longo do ano, o que acaba por colmatar a inadaptação de cultivos que existe nas zonas secas. Uma das culturas de eleição é a de Cana-de-açúcar que resulta na produção intensiva do “grogue”, uma das bebidas típicas do país.

O povoamento de Santo Antão, motivado pelo reconhecimento das características da ilha favoráveis para práticas de pastorícia e da agricultura, seguiu-se às experiências de Santiago e Fogo 161. Colonos e escravos participaram no povoamento, da metrópole foram povos algarvios, alentejanos e minhotos , por sua vez os escravos que participaram desse processo eram provenientes da costa ocidental africana 162. As circunstâncias da época permitiram-lhes estar num ambiente praticamente isolado em relação aos núcleos principais do arquipélago, o que com o passar do tempo criou um estado ambíguo em relação as restantes ilhas. Em 1732 foi permitido aos escravos a produção e o comércio, como também construir conforme as suas possibilidades, tinham apenas de pagar o foro estipulado 163. Devido ao seu isolamento, a ilha esteve no mínimo três anos sob a exploração de um feitor inglês,164 algo que sucedeu sem a perceção do rei. No entanto, ao descobrir tal acontecimento, teve de anular o contrato feito. O lapso fez com que posteriormente houvesse maior interesse por parte da coroa sob a ilha. De facto, esses acontecimentos ocorreram muito pela localização periférica da ilha que proporcionou um estado de governo diferente das demais ilhas.

Como aponta Catarina Sampaio, a humanização desse território apresenta

meio, até climaticamente.” in SAMPAIO, Catarina - Habitação Rural em Santo Antão. Coimbra, FCTUC, 2006. p.44160 SAMPAIO, Catarina - Habitação Rural em Santo Antão. Coimbra, FCTUC, 2006. p.48161 Idem, p.65162 citado por SAMPAIO, Catarina - Habitação Rural em Santo Antão. Coimbra, FCTUC, 2006. p.97163 SAMPAIO, Catarina - Habitação Rural em Santo Antão. Coimbra, FCTUC, 2006. p.76164 Idem, p.67

Page 177: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

178

102 Ribeira da Torre, vale e monte103 Ribeira da Torre, construção na encosta104 Ribeira da Torre, aglomerado habitacional

Page 178: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

179

duas vertentes, a ocupação dispersa, dominante nas zonas de relevo marcado, e a concentrada, com expressão em lugares de relevos suave e junto à desembocadura dos vales, onde se concentram as principais povoações. Porto Novo e Ribeira Grande representam esses casos, que agregam cerca de oitenta por cento dos 50 mil habitantes da ilha.

“A ocupação humana, ao nível da implantação da arquitectura doméstica, em Santo Antão, efectua-se essencialmente ao longo do leito das ribeiras que cruzam toda ilha, vales escarpados e de difícil acesso, principalmente na vertente norte da ilha. A humanização destes vales traz a vantagem da habitação se situar próxima de terrenos férteis…”.165

Tradicionalmente, a ilha é conhecida pelas suas atividades culturais, reconhecidas a nível nacional. É de destacar a romaria de “Colá San Jon”, um género musical e de dança de Cabo Verde, tradição ligada as festividades religiosa e popular, que junta a população residente e atrai visitantes.

Como foi referido, a escolha do lugar de implantação da habitação está ligada a qualidade dos solos, normalmente libertam as zonas aráveis e a implantação acontece nas áreas posteriores, que podem estar imediatamente a seguir ou, por vezes, em linhas de festo destas colinas. A habitação adapta-se ao lugar, quase que numa relação mística e a cumplicidade que existe entre eles traduz na harmonia desta paisagem 166. A construção da casa tradicional na ilha de Santo Antão aconteceu num segundo momento em relação ao início do seu povoamento. Inicialmente, a tipologia implementada foi importada pelos colonos, num segundo momento os escravos tiveram a liberdade de fazer as suas próprias construções. Escolheram materiais endógenos, a pedra basáltica, madeira de coqueiro, palha de cana sacarina, sisal entre outros matérias vegetais que existiam em abundância no local, que são diferentes dos materiais importados e utilizados na construção das casas senhoriais, surgindo assim a habitação vernacular da ilha 167 .

Ribeira Grande tem a sua urbe maior no leito do vale, enquanto que as pequenas aldeias estão distribuídas pelo vale dentro, nos diferentes afluentes. Ribeira da Torre, sendo um desses afluentes, é das mais emblemáticas ribeiras neste contexto, e tal como os vales descritos anteriormente, é de corpo verdejante e abunda de nascentes de água que brotam das imponentes montanhas, este lugar é caracterizado pela sua vocação para a prática da

165 SAMPAIO, Catarina - Habitação Rural em Santo Antão. Coimbra, FCTUC, 2006. p.109166 Idem, ibidem.167 Idem, p.102.

Page 179: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

180

105 Percurso - "Os Caminhos do Blimundo"

Page 180: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

181

agricultura, compõe este cenário cultivos de bananeiras, cana de açúcar, mandioca, fruta pão, entre outras verduras. Esta ribeira típica deve a sua toponímia ao monte existente no leito do vale que apresenta um volume ascendente e redondo que aparenta uma torre. É neste ambiente rural que encontramos os espaços escolhidos para receber o projeto.

O projeto de valorização turística foi financiado pela União Europeia, também contou com o apoio do governo cabo-verdiano. Desenvolvido entre abril de 2009 a outubro de 2010, guiado pelo seu mentor Leão Lopes, em colaboração com o arquiteto Ângelo Lopes. O projeto também contou com a participação da população local e de diversos artesãos que chegaram de vários pontos da ilha 168.

O programa previa a transformação em alojamento turístico de pequenas dimensões, transformados em unidades autónomas, a funcionarem a partir do modelo “Bed and Breakfast”, que compreende convívio com a vida familiar. Para atingir esses objetivos, o projeto tinha de cumprir um programa que abrangia as funções de estar, dormir e banho, também como garantir condições de habitabilidade necessárias, como eletricidade e água canalizada. O redesenho das casas implicou a inclusão dessas novas funções.

Os critérios de escolha dos edifícios a serem recuperados tiveram em consideração a tipologia, que aproximassem do modelo ideal de construção vernacular, edifícios que mantiveram as suas identidades construtivas tradicionais. Também seriam considerados a situação económica dos seus proprietários, considerando as famílias com maiores carências financeiras, para tal foi desenvolvido um estudo de teor sociológico para eleição dos benificiários do projeto 169.

Assim, os seis conjuntos reabilitados no âmbito do projeto apresentam características morfológicas semelhantes: habitações populares de pequena dimensão e piso único, em exceção da que se localiza em Água Nascida, esta última é uma habitação de tipologia de sobrado, um modelo de arquitetura de maior nobreza. Todos os edifícios estão circundados por terrenos agrícolas e implantados a meia encosta, distribuídos pelas aldeias de Água Nascida, Longueira, Fajã Domingas Bento, Ribeirinha Curta, Ribeirinha do Jorge, à exceção de um deles, inserido no leito do vale. O único equipamento que integra o grupo é um Curral de Trapiche/Casa de Calda, fica em Longueira, no leito do vale, e forma um conjunto representativo da indústria que produz

168 Conversa com o arquiteto Ângelo Lopes169 Conversa com o arquiteto Ângelo Lopes

Um projeto para a comunidade

Page 181: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

182

106 Vista de um dos edifícios, Fajã de Domingas Benta107 Vista do conjunto de edifícios, Ribeirinha Curta108 Vista parcial do edifício, Ribeirinha de Jorge

Page 182: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

183

derivados da cana-sacarina como a aguardente e o mel, atividade típica desta comunidade.

O projeto de arquitetura foi pensado de forma a adaptar e criar condições necessárias ao uso cotidiano, neste sentido mantiveram as pré-existências e adaptaram o programa a estes espaços. O alojamento e o centro interpretativo são as funções desenvolvidas pelo projeto, apropriando-se de seis parcelas de edifícios onde receberam essas funções, todos eles distribuídos pelo extenso vale. O projeto do centro interpretativo implicou uma construção nova, o edifício acrescentado foi desenhado com semelhanças em relação ao pré-existente e encontra-se inserido no conjunto.

O projeto foi desenvolvido de maneira a preservar as características fundamentais das habitações, no que se refere à sua volumetria, organização espacial e sistema construtivo. Para tal, houve a reabilitação de um espaço doméstico conhecido como cuznhola, espaço que está a perder presença nas novas construções 170. O projeto deu igualmente enfâse ao espaço de estar exterior ao edifício, onde no passado as funções domésticas tinham múltiplos usos. No novo programa construíram bancos e utilizaram vegetações e outros elementos decorativos ligados às tradições locais. As unidades de alojamento foram desenhadas a partir de construções pré-existentes, o que implicou a materialização de um projeto, de forma a proporcionar condições necessárias ao uso turístico. O objetivo foi ter em cada alojamento infraestruturas básicas, algo que não existia previamente em todos os casos, o que exigiu uma adaptação dos espaços às circunstâncias, no caso da casa de banho, que implicava mudanças maiores, houve um reajuste do espaço interior ou, por vezes, uma adaptação no exterior à zona de dormida. Os vãos são os elementos que sofreram maiores alterações. Portas e janelas foram redesenhadas de maneira a garantirem um maior conforto a quem habita o espaço. Foram introduzidos vigias em vidro, de forma a garantir maior insulação no interior. A portada deixou de ser uma peça única para ser composta por partes autónomas. Tais partes podem ser ora fixas, ora móveis, ou as duas moveis em simultâneo, que podem ser utilizadas de forma independente. Com essas alterações a habitação melhorou a sua eficiência, ao conseguir uma maior iluminação e ventilação natural.

A materialidade dos edifícios manteve-se ligada à arquitetura existente tradicional, com o uso de materiais locais. Preservaram muros, caminhos, volumetrias das construções, de um modo geral preservou o que estava ligado as tradições de vida da comunidade. Também aproveitaram para introduzir

170 “termo em crioulo para cozinhas tradicionais, que eram originalmente construídas de modo isolado do resto da casa por questões de fumo, cheiros, …” in LOPES, Ângelo - A prática de uma aprendizagem. Coimbra: FCTUC, 2014. p.140

Page 183: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

184

109 Sítio Museológico (centro interpretativo), Longueira110 Loja pertencente ao Sítio Museológico, Longueira111 Casa de Calda em construção, Longueira

Page 184: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

185

materiais feitos à base da pozolana, um tufo vulcânico rico em sílica, que é uma matéria ligante e serve para fabrico de argamassas. Esse material tem sido utilizado em processos de construção guiados pelo Atelier Mar. Na cobertura da construção nova foram usadas telhas de sisalocimento produzidas na comunidade de Lajedos. Apenas essa construção teve maiores inovações, o que é visível na volumetria e na composição dos alçados.

Foi criado um centro interpretativo, que reporta a ocupação e exploração agrícola neste território. O centro também reúne utensílios tradicionais, empregados no processo do fabrico da aguardente, do mel de cana e no cultivo ligado as terras. Houve a recuperação do Conto do Blimundo, que é uma narrativa popular de Cabo Verde e principalmente da ilha. Esta tradição oral foi incorporada no itinerário, as habitações recuperadas fazem parte do “Circuito Turístico – Os Caminhos do Blimundo”, ilustrando o percurso do Boi Blimundo, que é o protagonista deste conto popular e por sua vez metaforizando o percurso estabelecido entre os edifícios pertencentes ao projeto 171. No local de cada edifício encontra-se a sua identificação e posição em relação ao circuito, também a estratégia de comunicação passa pelo uso da cor como elemento agregador e simbólico do projeto. Na loja do centro interpretativo foram expostos onze cartazes relativos ao Conto do Blimundo, em que ilustra e descreve a vida e o percurso desse boi que amava a liberdade. A reabilitação é visível pela linguagem dos edifícios. O uso de uma cor comum a todos, a cor laranja, que aparece nos vãos dos edifícios, cria uma identidade ao conjunto que é facilmente percetível a quem visita a localidade. O uso do logótipo do projeto, associado ao nome de cada espaço e a presença do cartaz dos itinerários junto às intervenções facilita também essa comunicação.

O projeto constitui, em parte, a musealização do território apropriando-se do modelo de ecomuseu que compreende a requalificação das habitações para alojamento, também inclui dispositivos de comunicação e receção de público. Houve a criação de um centro interpretativo com o envolvimento da população local criando um meio para a exibição da história e das vivências do lugar, para além dos circuitos de visita que foram criados que englobam as diversas habitações e promovem a contemplação da paisagem agregado por uma narrativa ficcionada que se torna a “marca” turística e imagem/identidade gráfica do projeto.

A visita ao local, tendo o privilégio de dialogar com os diferentes interlocutores do projeto, possibilitou uma compreensão mais vasta da intervenção e do processo que envolveu o seu desenvolvimento. Segundo o testemunho do

171 LOPES, Ângelo - A prática de uma aprendizagem. Coimbra: FCTUC, 2014. p.139

Page 185: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

186

112 Esquisso 113 Planta - edifício Fajã de Domingas Benta

Page 186: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

187

arquiteto Ângelo Lopes, a execução do projeto não aconteceu conforme o planeado, tiveram primeiramente dificuldade em obter mão de obra qualificada para a execução dos sistemas construtivos tradicionais, praticamente em desuso. Além disso, houve um deficitário cumprimento dos prazos, o que causou certos embaraços e tornou o processo complicado, a exposição dos materiais às intempéries, o que teve consequências futuras, como foi o caso da madeira utilizada tanto na estrutura da cobertura, como na construção de portas e janelas, ou no fabrico dos móveis, que exposta às chuvas, apodreceu.

O projeto promoveu a introdução de inovações tanto a nível arquitetónico como material, primeiramente em termos de desenho arquitetónico, mais especificamente dos vãos houve a adaptação que promove o conforto da habitação na medida em que permite uma maior ventilação e iluminação dos compartimentos, algo que é benéfico. A exploração de novos materiais de origem endógena, mais propriamente a pozolana, possibilita o acesso a um recurso interessante e praticamente sem custos e que possibilita uma abordagem ecológica.

Globalmente, o projeto demonstra valores positivos, tanto na ideia como no resultado, contudo aconteceram transformações posteriores que contrariam os princípios do projeto. Na habitação em Fajã Domingos Benta aumentaram o muro que circunda o pátio, criando uma barreira física e visual. Essa construção foi feita com base em alvenaria de blocos de cimento diferenciando-se da pedra utilizada no muro preexistente, o que fez perder a linguagem plástica tradicional.

Na Ribeirinha de Jorge, o edifício que dantes tinha a cobertura de duas águas em colmo, foi substituído por uma cobertura plana em betão armado. Segundo o proprietário da habitação o que levou a essa transformação foi a rápida degradação da anterior cobertura, relatou que a obra foi vagarosa e houve paragens em épocas de chuva deixando a estrutura da cobertura exposta as intempéries o que provocou tais consequências. Pelo que, quando terminou o período de fidelização com o programa, optou por construir uma cobertura plana em betão. Embora a alteração difere dos ideais da preservação da arquitetura tradicional, pode ser visto como legitimo, essa atitude, visto que é sempre necessário procurar conforto e os proprietários por vezes ficam condicionados e procuram as soluções mais fáceis para eles.

O início do funcionamento desses alojamentos correu de forma normal, o trabalho de agenciamento estava a funcionar a partir da ilha de São Vicente, no entanto, segundo relata um dos proprietários, com o passar do tempo começou a ser menos frequente a visita de um turista para estadia. Constatou-se que a divulgação e a promoção do empreendimento não atingiram grandes públicos, o que tornou difícil a manutenção do próprio edificado, bem como a rentabilidade do projeto. Atualmente, a maioria dos alojamentos encontram-se

Page 187: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

188

114 Vista frontal da loja (uma construção nova) - Sítio Museologico, Longueira115 Espaço museológico em fase de construção, Lajedos

Page 188: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

189

desativados e em declínio construtivo. O programa teve apenas dois anos de fidelização e não houve preparação que desse autonomia para os comtemplados darem continuidade à atividade, principalmente o agenciamento e na cativação de clientes.

Contudo, o processo de reabilitação preservou a linguagem tradicional dos edifícios, sendo assim deixa um legado importante para o lugar, estando numa região com inúmeras construções similares é positivo demonstrar possibilidades de intervenções nessas construções que estão a perder presença. Também foi positivo recuperar modus operandi que possam valorizar a construção tradicional e a cultura local.

O projeto de Valorização Turística do Habitat Tradicional na Ribeira da Torre acontece depois de décadas de experiências em programas de desenvolvimento integrado promovidos pelo Atelier Mar. Igualmente na ilha, na localidade de Lajedos 172, desde 1990 que a ONG tem vindo a trabalhar de modo a criar formas alternativas de emprego, na pesquisa e produção de materiais e tecnologias de construção a partir de matéria prima autóctones, com isso, a construção de edifícios de habitação e equipamentos. Muitos edifícios, entre os quais o núcleo museológico e a escola, foram erguidos através de um processo de autoconstrução, com a participação da comunidade. Alguns dos residentes da comunidade possuem quartos para acolher turistas, sedimentando o turismo sustentável e solidário 173.

A implementação de ações educativas, ao nível da formação técnica na comunidade, acontece com o objetivo da promoção cultural e do turismo, o que será depois também concretizado no projeto desenvolvido no vale da Ribeira da Torre. Em Lajedos, embora não haja uma intervenção sobre a construção tradicional, os princípios construtivos seguem o processo tradicional. Além disso, potenciam as suas intervenções através da exploração de novos materiais a partir de matérias-primas endógenas como a pozolana, cuja utilização possibilita a produção de materiais com um teor mais sustentável.

Com o objetivo de criar medidas de sustentabilidade e eficiência energética

172 «Lajedos é uma comunidade rural isolada, no interior da ilha de Santo Antão, com cerca de 900 habitantes. O Atelier Mar é uma ONG que trabalha com esta comunidade desde 1990 no planeamento e implementação de um projecto de desenvolvimento integrado – o “Projecto de Desenvolvimento Comunitario de Lajedos”.» in Guedes, Manuel Correia (coordenação) - Arquitectura Sustentável em Cabo Verde – Manual de Boas Práticas. Lisboa: CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, 2011. p.105173 Idem, ibidem.

De Lagedos para Ribeira da Torre

Page 189: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

190

116 Lagedos, vista do vale

Page 190: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

191

para a comunidade fizeram as seguintes ações: construção de espaços públicos revestidos com ladrilhos produzidos no estaleiro da comunidade; construção de um núcleo museológico, uma loja e um bar; construção de fornos e de um estaleiro para produção local de blocos de materiais autóctones, afirmando a autonomia de materiais para construção e a não dependência de importações; integração de painéis solares com capacidade para abastecer vários edifícios da comunidade 174.

A criação do sítio museológico de Lajedos faz parte de uma estratégia alargada do Atelier Mar de promover o turismo local e regional, com ênfase cultural numa matriz de turismo e desenvolvimento. O sítio museológico está integrado numa crescente rede de intervenções comunitárias que pretendem intensificar o seu potencial global. Para a construção desse equipamento utilizaram materiais locais como a pozolana, criaram a zona de entrada voltada a sudoeste, com varanda sombreada por cobertura fixa, o que permite criar um maior conforto perante o clima local. Criaram vãos e com um sistema de aberturas em grelha nas paredes para iluminação e ventilação. Na cobertura aplicaram uma técnica local, uma telha com argamassa armada de sisal, que constitui uma cobertura leve e a sua produção tem custos reduzidos 175.

Ambos os projetos tiveram o mesmo promotor, o Atelier Mar, ainda assim os resultados são distintos e podem estar relacionados com diversos fatores. Em Lajedos, o trabalho é comunitário o que pressupõe um maior dinamismo e ao mesmo tempo envolve diversas áreas, por sua vez, na Ribeira da Torre o projeto envolveu apenas parte da comunidade, algumas famílias, o que supõe ser mais frágil. Além deste aspeto apontado, pode-se associar o maior sucesso do projeto de Lajedos ao facto dessa comunidade possuir um dinamismo inicial inerente aos seus moradores que em conjunto com a ONG conseguiram potenciar o seu desenvolvimento, no outro caso a ideia do projeto foi levada e implementada, segundo José Paiva poderá estar nesse aspeto a diferença entre as duas intervenções.

174 Guedes, Manuel Correia (coordenação) - Arquitectura Sustentável em Cabo Verde – Manual de Boas Práticas. Lisboa: CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, 2011. p.106175 Idem, p.107

Page 191: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

192

117 Ilha do Fogo, localização de Chã das Caldeiras

Page 192: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

193

2.6 - Sede do Parque Natural do Fogo, entre a tradição e a inovação

“A ilha do Fogo é um grande aparelho vulcânico complexo, ainda ativo e conservado, portanto admirável frescura de forma; muito semelhante ao Vesúvio, tem dimensões mais de duas vezes superiores. O enorme cone emerge das ondas por um contorno arredondado, o mais simples e regular de todas as Ilhas Atlântidas.”176

Orlando Ribeiro

Seguindo as descrições de Orlando Ribeiro no livro “A ilha do Fogo e as suas Erupções”, ainda podemos acrescentar que a ascensão da sua topografia se aproxima da forma de um cone. Numa zona acima dos 1800m, surge o Pico do Fogo, que atinge os seus 2829m. Para além da simplicidade de forma que afirma Orlando Ribeiro, é também de salientar que esta é uma das ilhas mais singulares de Cabo Verde, pela sua biodiversidade 177. A sua paisagem é marcada pela pigmentação lávica, típica de solo vulcânico, apresentando-se nos seus diferentes estados de desgastes, provocado pela erosão, o que confere à ilha uma beleza cénica única. A paisagem da ilha continua em transformações, principalmente pelo efeito do vulcão que mantém a sua atividade de forma periódica, o que afeta principalmente a envolvente próxima do vulcão. O clima da ilha é subtropical seco, com uma curta estação de chuvas entre os meses de julho a outubro e, como tal, semelhante ao resto do arquipélago. Porém, a amplitude térmica elevada é uma particularidade desta ilha, facto que se acentua nos pontos mais elevados, o que lhe confere um microclima particular que estimula uma produção agrícola variada.

As condições do solo e o clima da ilha revelaram-se propícios para a exploração da agricultura e para a criação de gado, permitindo a fixação humana na ilha. O Fogo foi povoado logo após a fixação na ilha de Santiago, nos finais do século

176 RIBEIRO, Orlando - A Ilha do Fogo e suas Erupções. Lisboa: Comissão Nacional Para As Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, (1ª Edição de1954), 1997. p.23177 “A maior parte da Bordeira e de Chã das Caldeiras situa-se na zona semi-árida da ilha. Os solos são cobertos com diferentes espessuras de saibros de lava e suportam uma vegetação que de forma natural se compõe, na sua maioria, por espécies endémicas. Das 82 espécies endémicas de plantas superiores existentes em Cabo Verde, 37 aparecem na Ilha do Fogo (anexo, tab. A-1, BROCHMANN 1997, HANSEN 1993), 31 espécies, isto é, 38% das espécies endémicas de Cabo Verde aparecem no parque, 5 são endémicas locais que são conhecidas apenas no Fogo, mais propriamente na referida zona.” in República de Cabo Verde Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos Direcção Geral do Ambiente (2009) - Plano de gestão do Parque Natural do Fogo – Cabo Verde. p.49

Um lugarsingular

Page 193: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

194

118 Parque Natural do Fogo, posto de informações

Page 194: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

195

XV, sendo o primeiro aglomerado São Felipe.Chã das Caldeiras encontra-se num dos pontos mais elevados da ilha, no interior de uma depressão topográfica formada por uma cratera e no sopé do Pico do Fogo. “A Chã das Caldeiras corresponde ao «Átrio»; é uma depressão de 2 km de largura, em forma de ferradura, de fundo plano, embora acidentado por vários cones adventícios e correntes de lava.”178 Só nas últimas décadas de oitocentos se assinala a presença regular das pessoas em Chã, no entanto, a sua ocupação permanente efetua-se a partir de 1917, o que reflete as dificuldades oferecidas pelo lugar para a fixação do habitat. Antigamente, eram conhecidas as culturas do cafeeiro e do algodão, sendo esta última dominante, no entanto, foi substituída gradualmente pela agricultura de sequeiro. A fixação do conde de Montrond neste lugar, em 1870, fez com que se iniciasse o cultivo da vinha e a produção do vinho, aproveitando as especiais condições naturais das encostas interiores da primitiva cratera vulcânica.A população local está distribuída maioritariamente por dois aglomerados, Portela e Bangaeira, que formam uma malha urbana praticamente contínua de origem espontânea. Na construção das casas tradicionais usam-se pedras vulcânicas, criando assim uma pele quase homogénea em relação ao solo que as circunda.

“As construções são rudimentares, térreas, feitas de blocos de lava não aparelhadas e cobertas de palha. Existem de dois tipos: retangulares (as mais numerosas), de telhados de quatro águas, e redondas, de cobertura cónica; o “funco” ou cozinha, separado geralmente da habitação, é sempre construção redonda. Não se usa telha, nem vidraças nas janelas, nem a maior parte das vezes divisões interiores.”179

Na análise feita pelo geógrafo Orlando Ribeiro acerca das habitações na Chã, quando em junho de 1951 foi acompanhar a erupção do vulcão, descreve a génese da arquitetura vernácula do lugar. Atualmente a introdução de materiais contemporâneos nas construções locais de forma desequilibrada, alterou essa imagem homogénea que identificava a aldeia, contudo muitas das características apontadas ainda permanecem.

178 RIBEIRO, Orlando - A Ilha do Fogo e suas Erupções. Lisboa: Comissão Nacional Para As Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, (1ª Edição de1954), 1997. p.40179 Idem, p.105.

Page 195: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

196

119 Sede do PNF, primeiro proposta120 Sede do PNF, primeiro proposta

Page 196: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

197

“O Parque Natural do Fogo abrange toda a área da ilha acima dos 1.500 metros na vertente oriental da ilha, e acima dos 1.800 metros na vertente ocidental, o arco da Serra que limita a escarpa de falha que forma a Bordeira com o flanco externo e escarpa, o planalto interno designada de Chã das Caldeiras e o cone vulcânico. Esta zona central da Ilha do Fogo corresponde às maiores altitudes de Cabo Verde.”180

As superfícies abrangidas pelo parque são ricas pela diversidade da flora que é composta por plantas endémicas, como o tortolho e a língua de vaca, e também pela própria beleza cénica da paisagem. O objetivo da criação do parque passa por envolver a população e com o seu contributo criarem hábitos de proteção ambiental, de combate a erosão e restabelecimento do ecossistema local.

O primeiro edifício de apoio ao parque era relativamente pequeno, servindo como centro de informação e receção de visitantes, de espaço expositivo e local de venda de artesanato, seguindo a matriz construtiva tradicional. As paredes em blocos de pedra vulcânica, com planta circular, e a cobertura cónica em colmo representam a tradição arquitetónica de Chã das Caldeiras.O plano de gestão do parque, designado por “Projecto de Protecção dos Recursos Naturais na Ilha do Fogo”, foi elaborado com o apoio de técnicos alemães, sendo consultor permanente do projeto o Dr. Berthold Seibert. A necessidade de obter melhores instalações levou o governo de Cabo Verde a promover a construção do novo edifício, cujo programa foi idealizado de modo a acolher os serviços administrativos e técnicos do parque natural. O financiamento do projeto foi garantido, na sua maioria pela cooperação alemã, que investiu 4,45 milhões de euros, complementado pela participação do governo de Cabo Verde, no valor de 250 mil euros. O concurso público para a seleção dos autores do projeto foi lançado pelo Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos no ano de 2007 181 e podiam concorrer escritórios de arquitetura nacionais ou internacionais, desde que residentes em Cabo Verde. O vencedor foi o gabinete OTO Cabo Verde, com o escritório principal em Lisboa, formado pelos arquitetos André Castro Santos, Miguel Ribeiro de Carvalho, Nuno Teixeira Martins e Ricardo Barbosa Vicente. Na época do concurso o gabinete

180 MANGA, Lembem Essamai - Cooperação Institucional e Gestão de Áreas Protegidas em Cabo Verde: O Caso do Parque Natural da ilha do Fogo. Praia: ISE, 2013. p.62181 «O Ministério do Ambiente e Agricultura, através do Projecto “Protecção dos Recursos Naturais na Ilha do Fogo” pretende construir a sede da administração do Parque Natural do Fogo (PNF), na localidade de Chã das Caldeiras. Assim, promove um concurso para o desenho artístico da referida sede, tendo em conta a paisagem específica daquela área protegida.» in Boletim Informativo Agosto 2008 - Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos – Delegação do Fogo – Projecto de Proteção do Recursos Naturais na Ilha do Fogo (PRNF)

Da construção tradicional ao edifício contemporâneo

Page 197: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

198

0 5 100 5 10

121 Sede do PNF, planta de implantação

Page 198: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

199

estaria a iniciar o seu percurso, pelo que ainda não apresentava nenhuma obra construída.O terreno para implantação do edifício localizava-se a escassos metros do centro do povoado de Portela, entre solos vulcânicos de superfície irregular e tufos lapilíticos, que são minúsculos grãos de material resultantes das erupções vulcânicas. O local é árido, de aparência inóspita e com escassez de vegetação, o que confere ao lugar uma paisagem lunar. A envolvente do edifício apresenta poucas construções, sendo as existentes pequenas habitações. A solução apresentada na fase de concurso previa uma volumetria parcialmente enterrada, o que demonstra a vontade de dissimular o edifício, escavando o terreno envolvente. O interior dominado pela sala polivalente integra a receção, cafetaria, loja e um escritório autónomo, o acesso seria por escada escavada no solo, pois o piso implanta-se a uma cota bastante inferior em relação ao nível do terreno envolvente.

O projeto foi desenvolvido entre 2007 e 2010, entretanto o programa foi sendo ajustado conforme o decorrer do processo e apenas foi estabelecido após o concurso e adjudicação do projeto. Houve alterações significativas que incrementaram significativamente a área de construção dos 400m² iniciais para 5000m², garantindo assim a inclusão de componentes culturais e científicas com o objetivo de envolver a comunidade local numa colaboração recíproca de proteção e recuperação ambiental 182. Um dos ideais estabelecidos pelo plano de proteção do parque foi o de conceber um edifício com programa que permitisse o envolvimento da população local e com isso estimular a valorização da tradição local e a proteção da paisagem singular daquela área protegida.O programa foi distribuído em três partes, sendo a disposição a seguinte:

“O corpo administrativo fica virado para um pátio com espécies virado sobre o vulcão. O corpo cultural fica repartido em 3 partes a parte expositiva virada para o vulcão, o auditório exterior a olhar para a Bordeira e o auditório semi-enterrado com cafetaria em cima com uma zona em sombra com vista para o parque das espécies e vulcão. A zona técnica fica na parte mais alta do edifício e escondida e o percurso é desenhado por forma a passar por todos os espaços e todas as espécies do parque.”183

182 COSTA, Pedro Campos, BARBAS, Isabel - “Na terra do fogo. Sede do Parque Natural Do Fogo, Chã das Caldeiras, ilha do Fogo, Cabo Verde”. J-A 250, Mai - Ago 2014, p.378 - 389183 Memória descritiva cedida pelo arquiteto Ricardo Barbosa Vicente

Page 199: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

200

122 Sede PNF, vista conjunto123 Sede PNF, vista conjunto124 Sede PNF, vista conjunto

Page 200: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

201

Como é descrito na memória do projeto a distribuição dos diferentes programas está associado as diferentes funções, a integração desses espaços fica pontuado por espaços de pausa e contemplação como também de atividades lúdicas e culturais.Um dos primeiros imperativos encontrados na conceção do projeto foi o próprio lugar, que pelas suas características geográficas, morfológicas e paisagísticas singulares exigiram uma abordagem especial ao projeto. O lugar de implantação do edifício é no interior do Parque Natural, que é uma área protegida, logo pressupõe-se um cuidado especial no impacto paisagístico da obra. Consequentemente, o projeto da sede do PNF 184 foi idealizado de forma a coabitar a administração, os laboratórios e um núcleo cultural. Todo o projeto tinha de ser apelativo, de modo a chamar a população a usufruir e dinamizar o equipamento, como também incutir o sentido de pertença do património natural do sítio.Como referido, a envolvente ao edifício é de origem vulcânica, a bordeira da antiga cratera protege a aldeia e o edifício. A área circundante ao edifício é constituída por solos com diferentes aspetos, consoante o tempo de exposição à erosão, o que confere ao lugar uma variação paisagística diversa, existindo tanto rochas vulcânicas de formação recente como solos vulcânicos de saibro ou areia. A topografia varia entre zonas acidentadas e pequenas planícies. O local de implantação tem relevo estável, apresentando uma pequena depressão no solo, que é preenchido pela construção, procurando minorar o impacto visual. Essa paisagem tem uma dimensão telúrica única, pelo que, contrariar ou modificar é tarefa difícil.Houve uma procura de integração profunda do edifício na paisagem, o resultado da composição e disposição volumétrica ajudam nessa incorporação. A solução final apresenta uma volumetria que constrói e desconstrói ao mesmo tempo, criando enquadramentos ora para o pico do vulcão, ora para a bordeira da cratera envolvente 185. Essa ideia reflete-se na volumetria do edifício. Dobra-se para formar um pátio e ascende-se de forma ligeira, a partir do solo, fragmentando-se simultaneamente para estabelecer relações entre as suas partes e os espaços exterior semicerrados, por vezes com pátios que servem de espaços de lazer e contemplação. Esta osmose com a morfologia dinâmica topográfica da envolvente permite adossar o edifício ao terreno, quase ao ponto de se confundir com a própria materialidade do solo, fazendo-o pertencer ao sítio.

184 República de Cabo Verde Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos Direcção Geral do Ambiente - Plano de gestão do Parque Natural do Fogo – Cabo Verde (2009). p.64-65185 Memória descritiva cedida pelo arquiteto Ricardo Barbosa Vicente

Page 201: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

202

125 Sede PNF, vista parcial pátio126 Sede PNF, relação entre volumes

Page 202: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

203

“O edifício procura apenas mimetizar a sua envolvente para pertencer ali, para ser e resistir, não como um ser estranho àquele mundo mas como um organismo que lhe pertence. Aliás, como as casas da povoação de Chã das Caldeiras, que se envolvem e fundem na paisagem pela materialidade do tecido geológico. A cor e a textura da construção parecem desmaterializar a forma. As volumetrias construídas com pedra de lava agarram-se ao território pela mão de quem o quer habitar e, com o próprio território, procura construir as suas casas e cultivar os seus alimentos." 186

O edifício consegue juntar tanto a tradição como a contemporaneidade. A sua construção teve como base a estrutura em betão e acabamento em blocos de cimento, com pigmento negro. Tal como a habitação tradicional, que é revestida pela própria rocha vulcânica do lugar, o material que reveste o volume procura criar a sua textura semelhante ao solo que a envolve, que é rugosa e de cor negra. Seguindo o exemplo das casas tradicionais da Chã, a solução construtiva e a materialidade do edifício procuraram criar uma simbiose com o lugar, ou seja, procuram chegar à textura e a tonalidade cromática das construções tradicionais do sítio. Os blocos de cimento definem o invólucro exterior da construção, portanto, usam cinzas pozolânicas e um pigmento preto. Também o fabrico artesanal in loco desse material ajudou a conferir um certo grau de imperfeição, principalmente na sua textura. A isso, ainda se acrescenta a manualidade do processo de colocação das peças, que confere também uma certa imperfeição. Tudo isso define a pele do edifício, próxima das construções tradicionais da Chã, com as suas texturas porosas. Para além das paredes, os pavimentos dos pátios e da periferia do edifício tiveram soluções cromáticas semelhante. Utilizaram pedra basáltica, microbetão com pigmento e terreno vegetal vulcânico, todos esses materiais com texturas e cores semelhantes à envolvente.O projeto foi “elaborado tendo como linha orientadora uma abordagem holística da Sustentabilidade.”187 Essa abordagem definida para o projeto, teve em parte influência das próprias características e condições do lugar, uma vez que é um território relativamente remoto, de clima agreste, carente de redes de infraestruturas básicas como água, eletricidade e esgoto. Estabeleceram-se premissas de aproveitamento dos recursos naturais, como águas pluviais, energia solar, uso de materiais endógenos, bem como o uso de sistemas de aquecimento e arrefecimento passivos, a maximização da iluminação natural, dado que as próprias soluções assumidas para o edifício poderiam vir a

186 COSTA, Pedro Campos, BARBAS, Isabel - “Na terra do fogo. Sede do Parque Natural Do Fogo, Chã das Caldeiras, ilha do Fogo, Cabo Verde”. J-A 250, Mai - Ago 2014, p.378 - 389187 Memória descritiva cedida pelo arquiteto Ricardo Barbosa Vicente

Page 203: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

204

127 Sede PNF, estereotomia128 Sede PNF, relação com a envolvente129 Sede PNF, cobertura com uso de tufos vulcânicos

Page 204: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

205

contagiar toda a povoação da Chã 188.Como afirma o arquiteto Ricardo Barbosa Vicente, surgiram várias alterações durante o desenvolvimento do projeto, das quais podemos destacar a alteração exponencial da área, desde a fase do concurso de ideias para as fases posteriores. Além disso e dos acontecimentos comuns nesses tipos de processos, o que veio a ser determinante na vida do edifício foi a fatídica erupção, que acabou por destruí-lo juntamente com grande parte da localidade de Portela.O sistema construtivo e a composição volumétrica do edifício foram pensados de forma a serem eficientes, tanto do ponto de vista estrutural como em relação às condições climáticas e paisagísticas do lugar. O clima é conhecido por ser seco e pela ampla variação da amplitude térmica, pelo que todo o sistema construtivo e de ventilação do edifício foi calculado de modo a responder às exigências climáticas e criar o conforto necessário ao seu funcionamento, através de soluções passivas.Num lugar com traços característicos de uma tradição construtiva singular, foi possível fazer uma intervenção com uma solução de princípios sustentáveis, o que, de certa forma, representa a postura do lugar que na sua génese construtiva usa materiais endógenos e uma tipologia construtiva eficiente. O conjunto procura uma síntese entre a paisagem e a tradição sem deixar de exibir traços da arquitetura contemporânea na sua linguagem.A relação que o edifício estabelece com o lugar é de clara adaptação, integração e respeito à identidade local. O corpo construído funde-se com a envolvente, pela materialidade da construção e faz por pertencer a paisagem. A volumetria é trabalhada de modo a criar proporções equilibradas entre si e na relação com a envolvente, o que também ajuda que a integração aconteça de forma natural. A linguagem do edifício aproxima-se dos traços da construção tradicional, o seu revestimento procura estar próximo da materialidade do solo da sua envolvente assim como a materialidade das casas tradicionais da Chã. É claramente uma construção de características contemporâneas com uma linguagem inovadora e com uma solução construtiva que procura conciliar com dois mundos. O edifício procura tanto relacionar com as tradições construtivas da Chã como também inova, de modo a dar resposta as necessidades funcionais do equipamento. A volumetria singela integra-se na paisagem sem sobressair em demasia e faz-se por pertencer ao lugar. A sua composição fragmentada pode ser associada à composição dos aglomerados das construções vernáculas da localidade que constituem diferentes partes, e criam espaços e relações entre eles. Essas construções constituem uma resposta ao clima e aos costumes. O edifício procura, de maneira subtil, refletir as formas da paisagem envolvente,

188 Memória descritiva cedida pelo arquiteto Ricardo Barbosa Vicente

Page 205: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

206

130 Centro interpretativo do vulcão dos Capelinhos, Ilha do Faia, Açores131 Centro interpretativo do vulcão dos Capelinhos Ilha do Faia, Açores

Page 206: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

207

como também adaptar-se às necessidades do programa e ao clima do lugar, procurando ser autosuficiente. O trabalho de procura da materialidade do edifício teve uma vasta pesquisa. A solução passou pelo uso da pedra local triturada para a produção de blocos, com o uso de um pigmento próximo da cor do solo do local. A obra foi concluída em 2013 e a inauguração aconteceu em março do ano seguinte.O lugar escolhido para a implantação da Sede do Parque Natural do Fogo acabou por trair o edifício, que não resistiu a última erupção vulcânica. Esse facto demonstra que talvez não houve um estudo prévio do local previsto para a construção que apontasse para os perigos do sítio. Não se sabe se foi por ambição ou desafio que ousaram implantar o edifício nesse lugar, onde a natureza não deixa de se apresentar adversa, pois o vulcão do Fogo está ainda ativo. Efetivamente, o poder da natureza desse elemento manifestou-se, quase dois anos após a conclusão do edifício e ele foi consumido pelas lavas. Apesar da perda física da construção é inevitável o legado deixado. Previa-se que o investimento pudesse contagiar a sua envolvente e potenciar futuras construções. O edifício teve um curto tempo de existência, apesar disso, ou talvez por causa disso, a construção provocou um impacto positivo. A obra foi bem aceite, tendo recebido distinções positivas sobre a sua qualidade arquitetónica, tanto a nível nacional como internacional.A solução construtiva do edifício é plausível e contemporânea, inserindo-se de forma equilibrada no lugar, respeitando a tradição construtiva. Para isso houve um processo que contou com experiências a nível de experimentação de materiais e soluções construtivas, pelo que seria importante o envolvimento da população local, visto que existiu uma preocupação com a identidade do lugar e as tradições e esteve sempre presente os problemas dessas aldeias através da preocupação com mutações que as construções recentes estão a provocar na paisagem. Esse envolvimento também seria uma maneira fácil de criar interesse pela preservação da identidade da construção tradicional e servir de aprendizagem de métodos construtivos contemporâneos à imagem das tradições locais. A produção dos blocos para a construção, algo que na localidade está a ser utilizado na atualidade, mas com características que diferem da arquitetura tradicional, com a textura e cor similares a pedra local poderia ser partilhada de forma a que a população da aldeia ganhasse esse conhecimento. Também a ideia do envolvimento da população local na fase de concessão do projeto e da construção poderia criar uma ligação maior àquilo que viria a ser um espaço por eles utilizado, visto que o programa incluiu um centro interpretativo.

Na ilha do Faial, nos Açores, num terreno de solo vulcânico, com ligeira pendente voltada sobre o mar, pontuado pela presença de um antigo farol, foi construído o Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos. Vulcão esse que

Centrosinterpretativos

Page 207: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

208

132 Centro interpretativo do vulcão dos Capelinhos, rampa de entrada133 Centro interpretativo do vulcão dos Capelinhos, cobertura

Page 208: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

209

fica na proximidade do lugar de implantação do edifício, embora não evidencie a sua presença. A erupção do vulcão dos Capelinhos, de setembro de 1957, tornou-se um momento histórico, o vulcão manteve a sua atividade por treze meses. O centro interpretativo foi proposto como lugar de retrato científico desse fenómeno e da história da formação vulcânica do arquipélago do Açores. O arquiteto Nuno Ribeiro Lopes foi o autor desse projeto, que teve o início em 2003 e cuja construção foi finalizada em 2008. A solução arquitetónica do projeto procurou uma linguagem simples e funcional e com uma postura de respeito pela identidade do lugar e o seu valor paisagístico. Do mesmo modo, o projeto procurou não interferir na mística do lugar e respeitar a construção preexistente do farol. Para isso toda a construção nova foi feita no subsolo, deixando apenas pontuado o desenho circular do foyer e o rasgo da rampa de acesso 189.O programa é distribuído pela construção nova e estende-se até ao edifício do farol que é recuperado e mantido apenas como espaço de visita. O betão aparente foi o material eleito para a construção, sendo os demais materiais que compõem a construção integrados de modo equilibrado e a criarem uma linguagem sóbria entre os diferentes espaços do edifício.

“O cerne da especialidade maior é a sala da coluna central, numa escala não habitual entre nós, que nos sugere uma “citação arquitectónica” dos tempos experimentais da arquitectura brasileira dos anos 50/60, onde a arquitectura e a engenharia eram audazes e por vezes se (com)fundiam, associando-se “para além do limite”.”190

Ainda podemos ressalvar que existe, tanto uma minuciosidade na intervenção, como também uma força intrincada ao gesto arquitetónico e aos espaços concebidos. Como afirma Ana Paula Pereira Marques,

“Além da componente lúdica e científica, este Centro vive, claramente, do rasgo arquitectónico. A ideia de construir um edifício enterrado, para não estragar a poesia e o sono do Vulcão adormecido, dá-lhe um encanto extraordinário. No seu interior, desde o imponente pedestal do foyer até ao detalhe de design de cada estante, tudo foi pensado para que ficasse bonito, prático e harmónico. Cumpre-me constatar que foi conseguido!”191

189 LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores: ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008. p.11190 MESTRE, Victor “A luz como metáfora ou como rememorizar o património arquitectónico intangível” LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores: ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008. p.45-50191 LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores: ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008. p.4

Page 209: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

210

134 Centro de Visitantes da Gruta das Torres135 Centro de Visitantes da Gruta das Torres

Page 210: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

211

O Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos e a sede do Parque Natural do Fogo têm em comum vários aspetos, tais como a natureza do lugar, a semelhança do programa e o desafio da construção em lugares singulares. A singularidade desses espaços é destacada pela excecionalidade paisagística, assim como no valor simbólico a que cada um desses lugares está associado. Além disso, os desafios associados ao projeto, tanto na solução construtiva como na resposta ao programa, permitiu a relação entre os dois projetos. Ambos os edifícios procuram a integração no lugar. Na sede do PNF, a volumetria é resolvida através de uma composição que procura coabitar com a topografia da envolvente e no CIV a forma suave da colina é mantida como se nada tivesse acontecido, integrando assim no lugar. Em termos de linguagem e plasticidade dos materiais, nos Capelinhos, pela solução do projeto em que a construção é oculta, não foi preciso se preocupar com pele externa ao edifício. Apesar disso, a própria solução respeita de tal forma a paisagem que mantém a sua morfologia natural. Na sede do PNF esse desafio foi maior, a plasticidade do edifício foi um tema de especial importância para a integração da construção. Essa relação mística de integração com o lugar, que acontece em ambos os projetos tem um resultado que reverte para a valorização da paisagem. A exigência ou o desafio que esses projetos enfrentaram, trabalhar no limiar da iminência de transformação da natureza sobre o homem por si só constituí um aprendizado, sendo que, conseguir atingir a qualidade que os dois projetos apresentam merece destaque. Nos Capelinhos temos um edifício oculto, mas com um impacto tremendo, tanto pela solução arquitetónica como pela polarização do lugar. Na Chã, o edifício não se intimida perante a imponência do lugar, faz por pertencer ao lugar e ao mesmo tempo ser ele próprio. Ambos os projetos ressumem-se de forma clara à essência dos seus programas e respondem de forma eficiente, tornando-se funcionais, sem deixarem de ser belos e acrescentar valor ao lugar, embora sendo eles lugares singulares.

Um outro projeto que se assemelha a sede do PNF, tanto no programa como na função, ainda que mais reduzido e com menos valências, como também no contexto de ilha vulcânica e associado a um monumento natural é Centro de Visitantes da Gruta das Torres. O edifício situa-se na ilha do Pico nos Açores e foi desenvolvido pelo ateliê SAMI, dos arquitetos Inês Vieira da Silva e Miguel Vieira.Ainda antes da classificação da Gruta como monumento natural em 2004, foi promovida pelo Governo Regional dos Açores a construção de um centro de receção de visitantes, que organiza o acesso público. O espaço inaugurado em 2007 corresponde a uma construção de pequena dimensão, definida por um muro alto que envolve a proeminência topográfica e que, enrolando-se, no interstício cria o espaço interior.

Page 211: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

212

136 Centro de Visitantes da Gruta das Torres, relação com a envolvente

Page 212: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

213

O edifício “[…] apresenta uma geometria circular, um extrato volumétrico de origem topográfica, elaborado como uma continuidade do tubo rochoso que penetra o território vulcânico. A curiosidade da dupla de arquitectos por texturas, por possibilidades de expressão a partir de sistemas de construção, o gosto pela compatibilização de técnicas antigas e tecnologias novas é levada a um extremo radicalizado na artificialidade da forma orgânica do volume. Construído com “duas linguagens”, o edifício, de um lado difunde-se na paisagem, num sistema de osmose que estende um muro circular reorganizando o território, e de outro lado molda-se no acabamento betuminoso da parede que se estende para a pendente da cobertura, abstraindo a sua percepção, alisando num só tom a sua superfície. A noção de superfície constitui uma metodologia de projeto que o SAMI incorpora, para melhorar ascender á figuração que procura para caracterizar os espaços. O espaço organiza-se, mimetizando a superfície exterior e estabelecendo relações visuais com a sua envolvente material que filtra a paisagem antes de desvendar.”192

A geometria do edifício distingue-se da racionalidade volumétrica da construção vernacular. A forma orgânica do volume é assumida quase como um facto topográfico ou geológico, nesse sentido pode-se relacionar com o edifício da sede do PNF. Esta última também compõe uma volumetria distinta e procura uma relação íntima com a topografia do lugar onde se insere. Existe também uma procura de relação de escala com a natureza e com a envolvente.Também demonstra proximidades com a construção da Chã pela exploração dos materiais locais, com soluções construtivas inovadoras, neste caso na exploração do valor textural da parede de alvenaria de basalto e a capacidade de criar uma superfície translúcida. Gradação entre os valores de opacidade e transparência, enquanto que o vidro preto dá unidade, não se afirma por oposição. As paredes foram revestidas com uma camada betuminosa negra em que se aproxima da cor da lava que é presente dentro da caverna.Segundo os arquitetos, “perante uma paisagem tão forte procurámos a integração do edifício, não deixando de desenhá-lo de forma contemporânea, perseguindo a sua adequação à escala, e natureza, do contexto em que se insere.”193 Isso demonstra o respeito pela paisagem local. Num contexto em que a natureza mostra um poder enorme sobre a arquitetura, o edifício consegue manifestar a sua própria identidade e fazer por pertencer ao sítio, tal como acontece na sede do PNF.

192 COSTA, Nuno Brandão; MAH, Sérgio - Public Without Rhetoric – Pavilhão de Portugal – la Biennale di Venezia, 16.ª Exposição Internacional de Arquitetura. monade – Veneza, 2018. p.69 - 78193 Sobre o projeto da Gruta das Torres. [consultado 12 set 2019]Disponível em http://www.sami-arquitectos.com/pt/works/show/gruta-das-torres-visitor-centre

Page 213: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 214: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

CONCLUSÃO

Page 215: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 216: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

217

Contribuições para a Valorização da Identidade Arquitetónica Cabo-verdiana.

“Costuma-se definir Património como herança comum dum povo e do Homem em geral. Um povo herda uma cultura, uma história, uma memória colectiva. São esses os seus valores (materiais e imateriais) que o identificam e o orientam no seu crescimento. Uma velha lamparina de petróleo, a Praça de Estrela, uma morna de Eugénio Tavares, uma árvore, o romance Chiquinho de Baltazar Lopes ou Chuva Brava de Manuel Lopes, uma história de Ti Lobo, uma cantiga de aboio, um hábito sociocultural, um provérbio, um remédio de terra… são valores desse património e geralmente estabelecem-se critérios para a sua defesa e valorização.” 194

A definição exposta por António Jorge Delgado, que mostra ser consequência da época, parece manter-se atual e traduz um programa conceptual que em boa parte tem sido cumprido pelas entidades públicas, de que são exemplos a candidatura da Morna a património imaterial, a classificação da Cidade Velha e do seu património intangível, a criação de reservas naturais.

É possível, no entanto, apontar algumas lacunas neste processo de classificação patrimonial. Apesar do impulso que o assunto ganhou no período pós-independência, em boa parte dinamizado pelas elites intelectuais - de que resultou a proteção jurídica da Cidade Velha - mas também por iniciativa de privados, caso da associação Atelier Mar ou de empresários com intuitos comerciais. É ainda de assinalar o contributo dado pela UNESCO e por outras instituições estrangeiras, movidas pelos protocolos de cooperação internacional, contributo fundamental perante o quadro de restrições orçamentais e financeiras do país.195

Os casos de estudo aqui apresentados, no seu conjunto, consubstanciam uma ideia de património que não se esgota no tradicional conceito monumento submetido a proteção jurídica estatal, mas inclui um universo de objetos sinalizados e valorizados por iniciativa de privados.

O desenvolvimento de Cabo Verde desde o momento da independência, configurou um duplo percurso, polarizado entre a revisitação das raízes

194 Numa entrevista a António Jorge Delgado sobre o Património, in Ponto & Vírgula – revista de intercâmbio cultural, Edições – Cabo Verde, 2006. (Nº8, dez 1983) - p.49195 Siza, Álvaro - 01 Textos,. Porto: Civilização Editora, 2009. p.29

A singularidade dascoisas evidentes

Page 217: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

218

culturais no sentido de recuperar as tradições e a introdução de novos hábitos de vida que conduzem à gradual transformação do espaço do habitar.

O primeiro caminho reconhece a pertinência da preservação da arquitetura tradicional cabo-verdiana, aquela que, por um processo histórico, melhor se adaptou às circunstâncias. Por oposição, verifica-se a tendência para conotar as velhas construções com a pobreza, o desconforto, o baixo estatuto social, pelo que são abandonadas ou profundamente transformadas e ampliadas com novos materiais e processos de construção, por vezes pouco adaptados ao clima do arquipélago. Esta situação é denunciada no Manual Básico de Construção, elaborado para o uso no arquipélago, através da seguinte afirmação “a habitação responde sempre às condições do clima e não o clima à habitação. Um dos erros mais frequentes na construção no país é a inadaptação das soluções ao clima.”196

O processo de crescimento económico do país, teve ao longo das últimas décadas, o turismo como principal impulsionador, e os seus benefícios alargam-se, ainda que de forma assimétrica, a quase todas as ilhas. Como foi referido anteriormente, ainda antes da independência, foram parcialmente concretizados alguns planos públicos de dinamização e transformação dos territórios litorais, que incidiram principalmente na ilha do Sal mas também na Boavista.

Em consequência, têm surgido inúmeros equipamentos hoteleiros que tentam corresponder às exigências globalizadas do turismo balnear internacional, consolidando um imaginário ligado às formas da arquitetura muçulmana de África, responsável pelo desejado exotismo das novas paisagens balneares, mas que, alheia às tradições arquitetónicas locais e às disponibilidades dos recursos naturais [nomeadamente de água que é um bem escasso nessas ilhas], promovem emprego de materiais importados. No seu conjunto, estes hotéis configuram vastas unidades construtivas, bem delimitadas por vias de circulação rápida e com impactos negativos no território, pois estabelecem pouca interação com as povoações preexistentes. Como bem caracterizou Andréia Moassab, “a monocultura do turismo e a decorrente fragilidade identitária têm colaborado para acirrar a segregação espacial e as desigualdades sociais, ao invés de amenizá-las, como era esperado pelo governo ao colocar em curso o Plano Nacional de Desenvolvimento, em 1995.”197

196 LOPES, Leão - Manual Básico de Construção – Guia Ilustrado para a Construção de Habitação, São Vicente: MIH, Gráfica do Mindelo, Lda. 2001. p.22

197 ANDRÉIA MOASSAB (2012) Território e identidade em Cabo Verde: debate sobre a (frágil) construção identitária em contextos recém independentes no mundo globalizado [consultado 12 set 2019] Disponível em http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-

Page 218: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

219

Tentando contrariar este quadro, os casos de estudo incluídos nesta dissertação promovem programas turísticos inovadores, atentos à microgeografia dos lugares e ambicionando a salvaguarda e valorização de preexistências, potenciando os seus valores simbólicos e de uso. Os programas desenhados e implementados associam turismo com cultura numa perspetiva de desenvolvimento, um dado fundamental para garantir as condições de implementação e de funcionamento económico dos projetos. Todos os exemplos apontados tiveram que se confrontar com orçamentos restritos, mesmo nas situações em que a iniciativa partiu da esfera pública. De certa forma, esta limitação foi contornada com a mobilização e envolvimento ativo entre os promotores, os membros da equipa projetista e as comunidades locais, sob diferentes modalidades de cooperação, durante as fases de programação e projeto. A relevância do método de trabalho que corporiza formas de diálogo e de participação coletiva é evidenciada por Álvaro Siza que nos recorda que “[…] o projecto é um personagem com muitos autores, e faz-se inteligente apenas quando é assim assumido, é obsessivo e impertinente em caso contrário.”198

O envolvimento direto da população local, no caso da Cidade Velha, permitiu criar dinâmicas de sensibilização para a preservação da arquitetura tradicional - diga-se habitação própria, em muitos casos - e para a valorização do centro histórico. A participação foi ativa, visto que se tratava, em parte, de um processo de reabilitação da habitação própria. Os dinamismos criados em volta da classificação do património contribuíram para o reconhecimento do património desse lugar. Esta preocupação com a esfera educativa refletiu-se igualmente no desenvolvimento do projeto para uma escola. A componente social do processo de requalificação expressou-se também no projeto de um centro cívico, embora este, assim como o anterior, não tenham sido ainda concretizadas.

Um pequeno equipamento hoteleiro, localizado no extremo da povoação, permite responder à necessidade de oferecer alojamento aos visitantes. Esta pousada, com um programa pouco convencional e relacionado com os modos de habitar da população local, concretizados na organização dos espaços da pousada em torno de um pátio exterior, questiona o tipo de arquitetura turística produzido nas últimas décadas no país, A solução apresentada reflete os traços da arquitetura cabo-verdiana com o uso de volumes autónomos na relação com os vários pátios.

em-cabo-verde-debate-sobre-a-fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx198 Siza, Álvaro “Construir”. Siza, Álvaro - 01 Textos,. Porto: Civilização Editora, 2009. p.26

Page 219: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

220

Um dos fatores essenciais para assegurar o sucesso das intervenções aqui analisadas, é a pertinência cultural/social do programa funcional que informou os diferentes projetos. O sucesso do plano de requalificação da Cidade Velha deveu-se em boa parte ao facto de procurar responder às necessidades multifacetadas da povoação, nas componentes sociais, culturais, patrimoniais, educativas e turísticas.

O programa de reabilitação do antigo campo de concentração do Tarrafal revela-se também particularmente acutilante, num momento em que questões dos direitos humanos ainda têm que ser continuamente negociadas e conquistadas, não só num plano global, mas também local. Aqui o envolvimento da comunidade local deu-se pela participação nos inquéritos efetuados aos moradores que ocuparam as antigas casernas do campo, ou o registo das memórias de antigos ocupantes daquela prisão, sob a forma de histórias de vida, prementes para o enriquecimento dos conteúdos museológicos.

Os modelos de hotelaria relacionados com o turismo rural e o ecoturismo - debatidos em Cabo Verde desde meados 1975 - têm contribuído para a valorização e preservação da arquitetura tradicional e deram origem a alguns museus de território e a vários centros interpretativos, geralmente associados a bens classificados, como é o caso do centro interpretativo do forte de S. Filipe, na Cidade Velha, ou da Colónia Penal do Tarrafal, ou associados a parques naturais, de que é exemplo o do PNF.

Em Espingueira e na Ribeira da Torre, projetos de índole comercial, o fator de sustentabilidade económica colocou-se de forma determinante. Este último caso, influenciado pelo conceito de museu de território, previa a reabilitação de habitações tradicional para uso como unidades de alojamento turístico, apoiado na participação dos próprios proprietários, integradas num circuito de visita que compreendia ainda um pequeno espaço cultural funcionando como centro interpretativo e museu de alfaias agrícolas, dinamizado por guias turísticos. O projeto de Espingueira, na fase de estaleiro, convocou artesãos locais a apoiarem a execução da obra. Na fase de funcionamento, contou com a população como funcionários do equipamento hoteleiro

Os exemplos estudados mobilizaram a participação de equipas projetistas nacionais e estrangeiras. O projeto do Museu da Resistência foi concretizado por técnicos - arquiteto e curador - ligados às estruturas administrativas, no caso, Ministério da Cultura. O plano da Ribeira da Torre foi coordenado por técnicos ligados à associação Atelier Mar, que, desde há década tem concretizado investigação de caráter laboratorial e prática, que recorrem a materiais endógenos e reinterpretam técnicas tradicionais com o objetivo de melhorar os sistemas construtivos e de os adequar às exigências contemporâneas. Muitas das suas experiências constituem plataformas de

Page 220: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

221

partilha de saberes, entre artesãos, arquitetos e população em geral.

A constituição de equipas estrangeiras foi motivada por circunstâncias diversas, mas todas aspiravam a tornar os processos de trabalho mais enriquecedores pela participação de profissionais com culturas disciplinares diferentes, mas capazes de propor leituras pertinentes dos lugar e encontrar respostas adequadas para a situação. Apesar de aparentemente serem alheios a realidade do país antes da participação nesses projetos, as soluções construtivas apresentadas demonstram uma capacidade de interpretação e adaptação às circunstâncias com mais acutilância dos valores locais que os próprios habitantes. A equipa projetista da sede Parque Natural do Fogo foi selecionada por concurso internacional, enquanto que, para a intervenção na Cidade Velha se procedeu ao convite direto do arquiteto, cujas competências foram evidenciadas por anteriores projetos de teor semelhante.

De entre os casos estudados, assinala-se uma situação de “arquitetura sem arquiteto”. A concretização do projeto de transformação da aldeia de Espingueira, conduzido pela promotora de formação em artes plásticas, exigiu o apoio dos saberes assegurados pela equipa de artesãos locais que intervieram no estaleiro para, em colaboração, resolverem os problemas do projeto e da construção.

Os cinco trabalhos aqui abordados, apesar de distintos na sua natureza e programa, contribuíram positivamente para o enriquecimento da qualidade arquitetónica dos lugares que procuraram transformar. E, por essa razão, foram assumidos como casos exemplares, vocacionados para alimentar o debate em torno da Valorização da Identidade Arquitetónica Cabo-verdiana.

Todos concretizam um pressuposto essencial: o reaproveitamento de construções anteriores, adaptadas com inteligência às exigências contemporâneas pois, como ensinou Leon Batiista Alberti:

“… é, sem dúvida, vergonhoso não poupar as obras dos antigos, nem respeitar as vantagens de que os cidadãos usufruem, acostumados aos lares dos seus antepassados; pelo que, destruir, demolir e arrasar completamente o que quer que seja, em qualquer parte, deve ser uma opção a pôr de lado, sempre.” 199

199 Citado por LOPES, Nuno Valentim - Projecto, Património Arquitectónico e Regulamentação Contemporânea. Sobre Práticas de Reabilitação do Edificado Corrente. Porto: FAUP, 2016. p.2

Page 221: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

222

Um segundo pressuposto alimentou os critérios fundamentais de projeto. Todos informaram uma atitude de “[…] continuar-inovando, num movimento constante de modificação para melhores condições, mas respeitando os valores positivos que porventura possam existir e que não deverão, portanto, ser destruídos […] 200, Reinterpretando com sensibilidade as condicionantes, o existente e as tradições que representam um esforço centenário de adaptação ao meio, assumem descomplexadamente a construção do novo, sempre que necessário, mas sem exibir estratégias de diferenciação ou confrontação entre estruturas novas e preexistências.

Em todos foi constante a tentativa de inovar no sentido de melhorar a organização e os dispositivos espaciais e formais, as tecnologias construtivas ou o desenho e desempenho de alguns elementos, caso de caixilharias, de coberturas. Alguns recursos materiais têm sido explorados, no sentido de tornar mais eficientes as alvenarias e argamassas, de que é exemplo a recente aplicação da pozolana e dos tufos vulcânicos. Na sede do PNF, estas preocupações afirmam-se mais claramente que nas restantes situações estudadas. A necessidade de adequar sistemas construtivos contemporâneos (caso do sistema de cobertura invertida ou da fachada ventilada) às possibilidades locais, fomentou a produção e aplicação de blocos de betão formados por inertes de lava que tentam imitar a textura rochosa da envolvente.

Perante os processos globais que contaminam as particularidades socio-económicas das regiões e a especificidade das práticas de projeto, existem forças locais que promovem uma espécie de resistência e obrigam ao questionamento criativo dos modelos e estereótipos, no sentido de reabilitação do edificado tradicional, adaptando os modelos às circunstâncias. O confronto entre as forças atuantes não pode acontecer sem conflitos, o que implica, por parte do arquiteto, uma atitude dialogante capaz, de conduzir à síntese, sempre instável e provisória.

“Dizem-me de obras minhas, recentes e antigas: baseiam-se na arquitectura tradicional da região.

Também essas obras me fizeram conhecer a resistência de um operário, a ira de quem passa e de quem julga.

A Tradição é um desafio à inovação. É feita de enxertos sucessivos. Sou conservador e tradicionalista, isto é: movo-me entre conflitos, compromissos, mestiçagem, transformação.”201

200 REVISITAR FERNANDO TÁVORA in https://revisitavora.wordpress.com/plano-de-reabilitacao-do-barredo/ (consultado em 14 08 18)201 Siza, Álvaro “Construir”. Siza, Álvaro - 01 Textos,. Porto: Civilização Editora, 2009. p.28

Page 222: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 223: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 224: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

225

Perspetivas

O desenvolvimento da dissertação permitiu adquirir conhecimento, como também levantou dúvidas e despertou algumas curiosidades. Reconhecendo a pertinência desta investigação, pela novidade do tema, existe também a necessidade de aprofundar algumas das pistas de análise aqui despertadas. O desenvolvimento do trabalho motivou uma maior vontade de investigação e esclarecimento sobre a arquitetura cabo-verdiana e as suas diferentes influências e manifestações.

As futuras investigações poderão ser guiadas de modo a possibilitarem o conhecimento dos aspetos seguintes:

- de que maneira as influências exógenas, africanas e europeias, contribuíram para a definição dos traços da arquitetura cabo-verdiana;

- o modo de habitar do cabo-verdiano suas variações no contexto rural e urbano;

- estudar a composição dos aglomerados habitacionais e dos seus diversos espaços;

- conhecer a arquitetura dos sobrados;

- novas possibilidades do uso da pedra e da pozolana;

- que recursos podemos explorar, de modo a conseguir produzir uma arquitetura mais genuína e com maior proveito dos recursos endógenos do país;

- que futuro poderá ter a arquitetura contemporânea produzida nessas ilhas;

Também o contributo deste trabalho poderá possibilitar a outros o aprofundamento da abordagem desses temas.

Page 225: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 226: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

227

Bibliografia

Livros

AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de Investigações do Ultramar. Lisboa, 1964.

AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do património. Porto: FAUP, 2002.

CABRAL, Manuel Villaverde - A Identidade Nacional Portuguesa: Conteúdo e Relevância. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2003.

CHOAY, Françoise – A Alegoria do Património. Lisboa: Edições 70, 2016.

CABO VERDE - Pequena Monografia, 1961.

FILHO, João Lopes - Defesa do Património Sócio - Cultural de Cabo Verde, Lisboa: ed. Ribeiro, José A. 1985.

FERNANDES, José Manuel - Luso Africana – Arquitecturas e Urbanismo na África Portuguesa, Lisboa: Caleidoscópio, 2015.

FERNANDES, José Manuel; Janeiro, Maria de Lurdes; Milheiro, Ana Vaz - Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa, Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA, 2014.

FUNDAÇÃO JOÃO LOPES, CIDADE VELHA – RIBEIRA GRANDE DE SANTIAGO. Praia: Publicom, 2015.

GUEDES, Manuel Correia (coordenação) - Arquitectura Sustentável em Cabo Verde – Manual de Boas Práticas. Lisboa: CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, 2011.

INSULAR INSIGHT – Where Art and Architecture Conspire with Nature – NAOSHIMA, TESHIMA, INUJIMA – Fukutake Foundation, Lars Müller Publishers.

Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arquelógico, I,P. - 100 Anos de Património Memória e Identidade. Portugal 1910-2010, Lisboa: IGESPAR, 2010.

KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecológicos e económicos: tentativa de análise. Cabo Verde: Instituto Caboverdiano do Livro, 1987.

Page 227: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

228

LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores: ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008.

LOPES, Leão - Manual Básico de Construção – Guia Ilustrado para a Construção de Habitação, MIH, São Vicente, Grá¬fica do Mindelo, Lda. 2001.

NETO, Maria João Baptista - Monumentos Nacionais - Memória, proganda e Poder (1929-1960). COSTA, Marisa (coord.) - Propaganda e Poder. Lisboa, Edições Colibri, 2001.

PERALTA, Elsa; ANICO, Marta, [et al.] Patrimónios e Identidades: Ficções Contemporâneas. Oeiras: CELTA EDITORA, 2006.

PEREIRA, Luís Tavares - Reacção em Cadeia – Transformações na Arquitectura do Hotel. Algarve. 2008.

REIS, António(coord.) – PORTUGAL 20 ANOS DE DEMOCRACIA, Círculo de Leitores, 1994.

RIBEIRO, Orlando - A Ilha do Fogo e suas Erupções. Lisboa: Comissão Nacional Para As Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, (1ª Edição de1954), 1997.

RIEGL, Alois - O Culto dos Modernos dos Monumentos. Lisboa: Edições 70, 2016.

SANTOS, Boaventura de Sousa - Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-modernidade. Porto: Edições Afrontamento,1994.

SANTOS, Maria Emília Madeiro [et al.] coord. - História geral de Cabo Verde – Volume II. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical; Praia: 1995.

SIZA, Álvaro - 01 Textos,. Porto: Civilização Editora, 2009.

TOMÉ, Miguel - Património e restauro em Portugal 1920-1995, Porto: FAUP, 2002.

Artigos e Revistas

arqa nº25, (2004)– Pousada, Plano de Recuperação e Transformação da Cidade Velha, Cabo Verde.

AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana – Mindelo”. edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007).

BOLETIM INFORMATIVO AGOSTO 2008 - Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos – Delegação do Fogo – Projecto de Proteção do Recursos Naturais na Ilha do Fogo (PRNF)

Page 228: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

229

Carta de Atenas sobre o Restauro de Monumentos, Atenas (Grécia), 1931.

Carta de Veneza sobre a Conservação e o Restauro de Monumentos e Sítios, Veneza (Itália), 1964.

Carta de Cracóvia sobre os Princípios para Conservação e o Restauro do Património Construído, Cracóvia (Polónia), 2000.

CHARTER ON THE BUILT VERNACULAR HERITAGE (México), 1999.

COSTA, Nuno Brandão; MAH, Sérgio - Public Without Rhetoric – Pavilhão de Portugal – la Biennale di Venezia, 16.ª Exposição Internacional de Arquitetura. monade – Veneza, 2018.

COSTA, Pedro Campos, BARBAS, Isabel (2014), “Na terra do fogo. Sede do Parque Natural Do Fogo, Chã das Caldeiras, ilha do Fogo, Cabo Verde”. J-A 250, (Mai - Ago 2014)

CREMASCOLI, Roberto - Álvaro Siza – Inside the Human Being – Mart, Quaderni di architettura, Nouva serie 02 – Electa. Trento e Rovereto, 2014.

Domus nº 813. Milão: Editoriale Domus S.p.A (mar1999)

El Croquis - AIRES MATEUS n. 154. Madrid: El Croquis Editorial, 2002-2011

Fundação Mário Soares, Fundação Amílcar Cabral - Simpósio Internacional. 2009. (Tarrafal)

ICMEMO, 2019

MARTINS, Ana Cristina - Património histórico-cultural: a emergência das reformas (do Liberalismo ao Republicanismo) - 1.ª parte. Património Estudos nº5, 2003.

MIMOSO, Alexandre Brás – Sé da Cidade Velha de Santiago (Cabo Verde). PATRIMÓNIO, estudos. Salvaguarda Patrimonial. Lisboa. n.6 (mai 2004)

MONTEIRO, Jaylson Relatório dos trabalhos realizados no processo de musealização do Ex. Campo de Concentração do Tarrafal. Praia. (IPC, 2015)

Presença Cabo-verdiana” – nº 19/20. Lisboa (Julho / Agosto, 1974)

Ponto & Vírgula - revista de intercâmbio cultural. (1983 - 1987) Facsimile das revistas editadas no MINDELO - PONTO & VÍRGULA, Edições – Cabo Verde, 2006.

Page 229: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

230

República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)

República de Cabo Verde Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos Direcção Geral do Ambiente - Plano de gestão do Parque Natural do Fogo – Cabo Verde (2009)

República de Cabo Verde Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos Direcção Geral do Ambiente - Plano de gestão do Parque Natural do Fogo – Cabo Verde (2009)

SANTOS, José António – Spinguera, Resenha Histórica. 2005.

O Século, 25 de Maio 1955

UNESCO - evaluations of cultural properties. 2009.

Património Estudos nº5, IPPAR (2003)

TAVARES, Adalberto – Memória descritiva do projeto de musealização do antigo Campo de Concentração. 2015. (IPC, Cabo Verde)

Teses e dissertações

COSTA, João Miguel Caroço da - Plano Detalhado de Chã de Caldeiras na Ilha do Fogo – Cabo Verde. Lisboa, Universidade Nova, 2015.

ESTRELA, Paloma - SEDE DO ATELIER MAR, PROJECTO DE REABILITAÇÃO. Porto: FAUP, 2016.

LIMA, Paulo Alexandre Monteiro - Reconversão da penitenciária e a sua reinserção urbana: Museu da Resistência. Coimbra: FCTUC, 2010.

LOPES, Ângelo - A prática de uma aprendizagem. Coimbra: FCTUC, 2014.

LOPES, Nuno Valentim - Projecto, Património Arquitectónico e Regulamentação Contemporânea. Sobre Práticas de Reabilitação do Edificado Corrente. Porto: FAUP, 2016.

MANGA, Lembem Essamai - Cooperação Institucional e Gestão de Áreas Protegidas em Cabo Verde: O Caso do Parque Natural da ilha do Fogo. Praia: ISE, 2013.

MARQUES, Ana Filipa - Construir e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde na Cidade Velha. Prova Final, Porto: FAUP, 2001.

Page 230: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

231

MARTINS, Ana Rita Nunes Lopes – “A musealização de heranças difíceis: o caso do Museu do Aljube - Resistência e Liberdade”. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2015.

MARIZ, Vera Félix - A “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguarda do património arquitectónico português ultramarino (1930-1974). Doutoramento. Lisboa: FLUL, 2016.

MENDES, Carlos Jorge Silva - o Museu da Resistência: museu transnacional. Mestrado em Museologia. Porto, FLUP, 2010.

PIRES, Fernando, “Da cidade da Ribeira Grande à cidade velha em Cabo Verde: análise histórico-formal do espaço urbano (séc. XV - séc. XVIII)”, Tese de Mestrado em Desenho Urbano, ISCTE, Lisboa.1999.

SAMPAIO, Catarina - Habitação Rural em Santo Antão. Coimbra, FCTUC, 2006.

SILVA, José Carlos de Paiva e - ARTE/desenvolvimento. Porto: FBAUP, 2009.

TAVARES, Osvaldo dos Reis - Subsídios para o Estudo do Espaço Rural da Ilha de Santiago: Picos e o seu Património. Praia: Universidade de Cabo Verde.

TEIXEIRA, David José Varela - O Ecomuseu de Barroso. A nova museologia ao serviço do desenvolvimento local. Universidade do Minho, 2005.

Documentos onlines

Cabo Verde: Praia do Estoril, projecto na ilha da Boavista in http://www.diarioimobiliario.pt/Espacos-de-Autor/Cabo-Verde-Praia-do-Estoril-projecto-na-ilha-da-Boavista

MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974). (2013) in https://coloquiocvgb.files.wordpress.com/2013/06/vera-mariz-final.pdf

Centro storico Salemi in https://pt.scribd.com/document/343923044/MTQzODMyOTY2Ny0zNjc1ODk1MTUwLTc0MDYtNw

Larissa Lazzari – Spinguera Eco Lodge: tempo e espaço para viver emoções. in http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-espaco-para-viver-emocoes/

Áreas Protegidas da Boa Vista in http://areasprotegidasboavista.blogspot.com/p/espacos-protegidos-da-boa-vista.html

Page 231: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

232

ANDRÉIA MOASSAB (2012) Território e identidade em Cabo Verde: debate sobre a (frágil) construção identitária em contextos recém independentes no mundo globalizado in http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-em-cabo-verde-debate-sobre-a-fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx

REVISITAR FERNANDO TÁVORA in https://revisitavora.wordpress.com/plano-de-reabilitacao-do-barredo/ (consultado em 14 08 18)

Sobre o projeto da Gruta das Torres. [consultado 12 set 2019]Disponível em http://www.sami-arquitectos.com/pt/works/show/gruta-das-torres-visitor-centre

Documentários e filmesO Arquitecto e a Cidade Velha. [filme] Realização de Catarina Alves Costa. Portugal: midas, 2003. (DVD)(72 min)

Page 232: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 233: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 234: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

235

Lista de Imagens

01 - Arquivo do autor02 - Fernandes, José Manuel; Janeiro, Maria de Lurdes; Milheiro, Ana Vaz - Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa, Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA, 201403 - AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de Investigações do Ultramar; Lisboa - 196404 - AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de Investigações do Ultramar; Lisboa, 1964.05 - AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de Investigações do Ultramar; Lisboa, 196406 - AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana – Mindelo”. edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007)07 - O Panorama nº141 (1840)08 - O Occidente nº26 (15 jan 1879)09 - AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de Investigações do Ultramar; Lisboa, 196410 - Fundação João Lopes, CIDADE VELHA – RIBEIRA GRANDE DE SANTIAGO. Praia - Publicom, 201511 - AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de Investigações do Ultramar; Lisboa, 196412.1 - MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974), 201312.2 - MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974), 201313 - MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974), 201314 - MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974), 201315 - KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecológicos e económicos: tentativa de análise. Cabo Verde: Instituto Caboverdiano do Livro, 198716 - NETO, Maria João Baptista - Monumentos Nacionais - Memória, proganda e Poder (1929-1960). COSTA, Marisa (coord.) - Propaganda e Poder. Lisboa, Edições Colibri, 200117 - http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-espaco-para-viver-emocoes/18 - http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-espaco-para-viver-emocoes/19 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)20 - Arquivo do autor21 - LOPES FILHO, João – Defesa do património sócio-cultural de Cabo Verde. Lisboa, Ulmeiro. 198522 - Estrela, Paloma - SEDE DO ATELIER MAR, PROJECTO DE REABILITAÇÃO. Porto: FAUP, 201623 - Ponto & Vírgula – revista de intercâmbio cultural, Edições – Cabo Verde, 2006. (Nº8, dez 1983)24 - Ponto & Vírgula – revista de intercâmbio cultural, Edições – Cabo Verde, 2006. (Nº8, dez 1983)

Page 235: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

236

25 - Ponto & Vírgula – revista de intercâmbio cultural, Edições – Cabo Verde, 2006. (Nº8, dez 1983)26 - Presença Cabo-verdiana – nº 19/20. Lisboa, Julho / Agosto, 197427 - http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-em-cabo-verde-debate-sobre-a-fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx28 - http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-em-cabo-verde-debate-sobre-a-fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx29 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)30 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)31 - Arquivo do autor32 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)33 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)34 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)35 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)36 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)37 - http://www.monumentos.gov.pt/site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=733638 - arqa nº25 – Pousada, Plano de Recuperação e Transformação da Cidade Velha, Cabo Verde.39 - Património Estudos nº5, IPPAR (2003)40 - O Arquitecto e a Cidade Velha. [filme] Realização de Catarina Alves Costa. Portugal: midas, 2003. (DVD)(72 min)41- O Arquitecto e a Cidade Velha. [filme] Realização de Catarina Alves Costa. Portugal: midas, 2003. (DVD)(72 min)42 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)43 – arqa nº25, (2004)– Pousada, Plano de Recuperação e Transformação da Cidade Velha, Cabo Verde. 44 - Arquivo do autor45 - Arquivo do autor46 - Arquivo do autor47- Arquivo do autor48 - Arquivo do autor49 - Arquivo do autor50 - Arquivo do autor51 – Valentim Lopes, Nuno - Projecto, Património Arquitectónico e Regulamentação Contemporânea. Sobre Práticas de Reabilitação do Edificado Corrente. Porto: FAUP, 2016.52 – Arquivo do autor53 – Centro storico Salemi in https://pt.scribd.com/document/343923044/MTQzODMyOTY2Ny0zNjc1ODk1MTUwLTc0MDYtNw54 – Cremascoli, Roberto - Álvaro Siza – Inside the Human Being – Mart, Quaderni di architettura, Nouva serie 02 – Electa. Trento e Rovereto, 2014

Page 236: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

237

55 – Cremascoli, Roberto - Álvaro Siza – Inside the Human Being – Mart, Quaderni di architettura, Nouva serie 02 – Electa. Trento e Rovereto, 201456 – Domus nº 813. Milão: Editoriale Domus S.p.A (mar1999)57 – Domus nº 813. Milão: Editoriale Domus S.p.A (mar1999)58 – Domus nº 813. Milão: Editoriale Domus S.p.A (mar1999)59 – Cortesia Adalberto Tavares 60 – Cortesia Adalberto Tavares 61 – Cortesia Adalberto Tavares62 – Cortesia Elves Andrade63 – Arquivo do autor64 – Arquivo do autor65 – Arquivo do autor66 – Arquivo do autor67 – Arquivo do autor68 – Arquivo do autor69 – Arquivo do autor70 – Arquivo do autor71 – Arquivo do autor72 – Arquivo do autor73 – Arquivo do autor74 – Cortesia Elves Andrade75 – Arquivo do autor76 – Arquivo do autor77 – Cortesia Elves Andrade78 – Cortesia Egas Vieira79 – Cortesia Egas Vieira80 – Cortesia Egas Vieira81 – Cortesia Egas Vieira82 – Arquivo do autor83 - KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecológicos e económicos: tentativa de análise. Cabo Verde: Instituto Caboverdiano do Livro, 198784 - Cortesia Larissa Lazzari85 - Cortesia Larissa Lazzari86 – Arquivo do autor87 – Cortesia Larissa Lazzari88 – Cortesia Larissa Lazzari89 – Cortesia Larissa Lazzari90 – Cortesia Larissa Lazzari91 – Cortesia Larissa Lazzari92 - http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-espaco-para-viver-emocoes/93 - http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-espaco-para-viver-emocoes/94 - El Croquis - AIRES MATEUS n. 154. Madrid: El Croquis Editorial, 2002-201195 - El Croquis - AIRES MATEUS n. 154. Madrid: El Croquis Editorial, 2002-201196 - El Croquis - AIRES MATEUS n. 154. Madrid: El Croquis Editorial, 2002-2011

Page 237: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

238

97 - Cabo Verde: Praia do Estoril, projecto na ilha da Boavista in http://www.diarioimobiliario.pt/Espacos-de-Autor/Cabo-Verde-Praia-do-Estoril-projecto-na-ilha-da-Boavista 98 - Cabo Verde: Praia do Estoril, projecto na ilha da Boavista in http://www.diarioimobiliario.pt/Espacos-de-Autor/Cabo-Verde-Praia-do-Estoril-projecto-na-ilha-da-Boavista 100 - Cortesia de João Abel Mota101 – Arquivo do autor102 – Arquivo do autor103 – Arquivo do autor104 – Arquivo do autor105 - Cortesia de Leão Lopes106 – Arquivo do autor107 - Cortesia de José Silva Paiva108 – Arquivo do autor109 - Cortesia de José Silva Paiva110 - Cortesia de José Silva Paiva111- LOPES, Ângelo - A prática de uma aprendizagem. Coimbra: FCTUC, 2014112 – Arquivo do autor113- LOPES, Ângelo - A prática de uma aprendizagem. Coimbra: FCTUC, 2014114 – Arquivo do autor115 - Estrela, Paloma - SEDE DO ATELIER MAR, PROJECTO DE REABILITAÇÃO. Porto: FAUP, 2016116 - Estrela, Paloma - SEDE DO ATELIER MAR, PROJECTO DE REABILITAÇÃO. Porto: FAUP, 2016117 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente118 - MANGA, Lembem Essamai - Cooperação Institucional e Gestão de Áreas Protegidas em Cabo Verde: O Caso do Parque Natural da ilha do Fogo. Praia: ISE, 2013119 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente120 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente121 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente122 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente123 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente124 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente125 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente126 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente127 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente128 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente129 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente130 - LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores: ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008131 - LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores: ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008132 - LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores: ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008133 - LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores: ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008134 - COSTA, Nuno Brandão; MAH, Sérgio - Public Without Rhetoric – Pavilhão de Portugal – la Biennale di Venezia, 16.ª Exposição Internacional de Arquitetura. monade – Veneza, 2018

Page 238: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

239

135 - COSTA, Nuno Brandão; MAH, Sérgio - Public Without Rhetoric – Pavilhão de Portugal – la Biennale di Venezia, 16.ª Exposição Internacional de Arquitetura. monade – Veneza, 2018136 - COSTA, Nuno Brandão; MAH, Sérgio - Public Without Rhetoric – Pavilhão de Portugal – la Biennale di Venezia, 16.ª Exposição Internacional de Arquitetura. monade – Veneza, 2018

Page 239: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda
Page 240: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda

241

Lista de Acrónimos

IPC – Instituto do Património CulturalUNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a CulturaONG – Organização Não GovernamentalONU – Organização das Nações UnidasIPPAR – Instituto Português do Património CulturalICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios PNF – Parque Natural do FogoCIV – Centro Interpretativo do Vulcão dos Capelinhos

Page 241: ARQUITETURA Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda