artigo da numen sobre toca 1572-6411-1-pb

22
Estética, emoção e o lúdico na Toca de Assis 1 Aesthetics, emotion and ludic in Toca de Assis Rodrigo Portella * Resumo O artigo visa apresentar a Fraternidade de Aliança Toca de Assis em sua face de estética, emotiva e lúdica em relação à manifestação da fé, através de shows, teatros, danças, performances, entre outras estratégias de representação e promoção da fé e da religião que se desenha na Toca de Assis. O artigo identifica como o corpo, a música, a estética e o lúdico contribuem para certa performance da fé marcada pela busca de uma identidade católica e juvenil moderna. Entrementes, busca-se salientar como, nas grandes reuniões festivas da Toca de Assis, os “Tocões”, o comércio de objetos referenciados à Toca de Assis ajudam a construir uma identidade católica específica. Enfim, objetiva-se revelar como, no caso da Toca de Assis, se constroem as bases de uma identidade católica sustentadas pelo viés da estética, do espetáculo e do comércio como solidificação e promoção desta identidade e da fé que ela quer promover. Palavras-chave: Toca de Assis. Juventude. Lúdico. Igreja. Estética. Abstract The article presents the Brotherhood Alliance Toca de Assis in its aesthetic, emotional and playful faces about the manifestation of faith, through 1 Recebido em 15/02/2012. Aprovado em 05/04/2012. * Doutor em Ciência da Religião pela UFJF. Professor Adjunto da UFJF, atuando no Departamento de Ciência da Religião / Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião. Contato: [email protected].

Upload: igor-accioly

Post on 26-Sep-2015

231 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

artigo da numen sobre a toca de assis

TRANSCRIPT

  • Esttica, emoo e o ldico na Toca de Assis1

    Aesthetics, emotion and ludic in Toca de Assis

    Rodrigo Portella*

    Resumo

    O artigo visa apresentar a Fraternidade de Aliana Toca de Assis em sua face de esttica, emotiva e ldica em relao manifestao da f, atravs de shows, teatros, danas, performances, entre outras estratgias de representao e promoo da f e da religio que se desenha na Toca de Assis. O artigo identifica como o corpo, a msica, a esttica e o ldico contribuem para certa performance da f marcada pela busca de uma identidade catlica e juvenil moderna. Entrementes, busca-se salientar como, nas grandes reunies festivas da Toca de Assis, os Toces, o comrcio de objetos referenciados Toca de Assis ajudam a construir uma identidade catlica especfica. Enfim, objetiva-se revelar como, no caso da Toca de Assis, se constroem as bases de uma identidade catlica sustentadas pelo vis da esttica, do espetculo e do comrcio como solidificao e promoo desta identidade e da f que ela quer promover.

    Palavras-chave: Toca de Assis. Juventude. Ldico. Igreja. Esttica.

    Abstract

    The article presents the Brotherhood Alliance Toca de Assis in its aesthetic, emotional and playful faces about the manifestation of faith, through

    1 Recebido em 15/02/2012. Aprovado em 05/04/2012.* Doutor em Cincia da Religio pela UFJF. Professor Adjunto da UFJF, atuando no

    Departamento de Cincia da Religio / Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio. Contato: [email protected].

  • 12

    Rodrigo Portella

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    concerts, theaters, dances, performances, among other strategies of representation and promotion of faith and religion that draws on Toca de Assis. The article identifies as the body, music, and aesthetics and contribute to some playful performance of faith marked by the pursuit of a Catholic identity, modern and youthful. Meanwhile we seek to highlight how, in large festive gatherings of Toca de Assis, the Toces, the trade in objects referenced Toca de Assis helps to build a specific Catholic identity. Finally, it aims to reveal how, in the case of Toca de Assis, we build the foundations of a Catholic identity supported by the bias of aesthetic spectacle and commerce as solidification and promotion of this identity and faith that she wants to promote.

    Keywords: Toca de Assis. Youth. Playful. Church. Aesthetics.

    Introduo

    Toca de Assis2 uma comunidade religiosa que, em muito, se afigura de cunho, ou sustento, emocional e afetivo. Esta a tese que permeia o presente texto. preciso, em primeiro lugar, que se frise que comunidades emocionais se sustentam por expresses de afetividade, proximidade fsica, demonstraes de carinhos, abraos, beijos (Hervieu-Lger, 1997). Essa efervescncia afetiva

    2 Fundada em 1994, pelo Padre Roberto Jos Lettieri, a Toca de Assis um movimento religioso catlico de vida consagrada que tem origens na Renovao Carismtica Catlica (RCC). Os toqueiros (assim so chamados os adeptos da Toca de Assis) buscam viver radicalmente a pobreza franciscana, e copiam literalmente, em vestes e presumvel aparncia fsica, os hbitos e formas de ser do movimento franciscano primitivo. Assim, os toqueiros usam roupas de trapos marrons, buscando as origens do hbito franciscano, andam descalos, tonsuram a cabea (os homens) e a mulheres usam longos vus. A maioria dos homens deixa a barba crescer, rala. Usos e costumes do catolicismo de corte mais tradicional so adotados. Seus adeptos se revezam na contnua adorao ao sacramento do altar, em rotina de orao bastante densa, e muitas vezes com sacrifcios pessoais em reparao ao sofrimento de Jesus, sofrimento este que tambm se traduziria quando a Igreja Catlica estaria negligenciando sua atuao na propagao da f ortodoxamente catlica, conforme esta interpretada pelos toqueiros. Da tambm que a orao dos toqueiros pretende ser reparadora e sustentadora em relao aos sacerdotes. E, quanto ao servio social, dedicam-se a cuidar da populao em situao de rua, indo s vias das grandes cidades e promovendo, entre esta populao, cortes de unhas, cabelos e barbas, higiene, tratamento de feridas, distribuio de lanches. Alm de cuidarem da populao em situao de rua na rua, tambm a acolhem em suas casas. Assim, na maioria de suas casas convivem os toqueiros e pessoas em situao de rua, juntos, partilhando o dia-a-dia. A maior parte dos toqueiros composta por jovens.

  • 13

    Esttica, emoo e o ldico na Toca de Assis

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    est bastante presente na Toca de Assis, na qual, configurando-se como uma famlia nova, de jovens e com um pai espiritual e referencial (Pe. Roberto Lettieri, fundador da Toca de Assis), h, no dia-a-dia, grande intensidade de demonstrao de carinho e alegria entre os toqueiros (pessoas que aderem Toca de Assis e, mais particularmente, aqui, aqueles/as que so toqueiros/as consagrados/as, e que vivem em comunidades). Neste sentido, de se perguntar se jovens conseguiriam, de forma opcional, viver um dia-a-dia que parece ser to sacrificante, como na Toca de Assis (em tarefas como ateno e cuidado populao em situao de rua; longos momentos de orao, geralmente em posio ajoelhada; privaes materiais), sem uma forte dimenso afetiva, como compensatria das renncias e sacrifcios e como sustento para privaes e entregas. Neste quesito interessante notar como a esttica e as emoes constituem-se em meios de auto afirmao em um mundo que parece to descolorido, como o da convivncia e servio aos vulgos mendigos.

    A esttica, com toda carga emocional e identitria que pode carregar, um meio de comunicao e performance bastante valorizado na Toca de Assis. Assim, se h renncia a bens, estudo, dinheiro, roupas, assim como h prestao de servio a pessoas doentes e abandonadas, no existe, por outro lado, renncia ao estilo, esttica, performance visual. Podemos ver isso nas fotos do Pe. Roberto pelas casas da Toca de Assis3. comum, nessas fotos, a valorizao do ngulo estilizado, do detalhe piedoso, a sugesto de santidade, orao, sacrifcio, carinho, de forma que comunique certos contedos, e a imagem torna-se reveladora da devoo e da f. Assim como na prpria atitude dos toqueiros quando fotografados, pois tambm a o estilo e a forma so valorizados. Ao clique da cmera os toqueiros valorizam a esttica. So abundantes as fotos, na revista da Toca de Assis, de toqueiros ou grupo de toqueiros em posies estilizadas, sempre

    3 A partir de 2009 a Toca de Assis passou (e ainda passa) por uma ampla reorganizao e adequao a modelos propostos pela hierarquia da Igreja Catlica. Desde ento muitas (todas?) casas da Toca de Assis j no apresentam fotos do Padre Roberto. A pesquisa retratada no presente artigo tem um recorte temporal definido: entre 2005 e 2008.

  • 14

    Rodrigo Portella

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    muito alegres. Atravs da imagem tambm da fotogrfica - a Toca de Assis faz o contraste com o padro de beleza em vigor nas sociedades modernas. Ser fotografado sorrindo diante de pessoas sujas, mal-vestidas, miserveis e doentes se torna um privilgio, o verdadeiro fato social. Portanto, o movimento faz um contraste entre a seriedade de uma devoo eucarstica e servio aos pobres in extremis, e uma nada sisuda vida social entre os toqueiros que, muito ao contrrio, se caracteriza pela espontaneidade e alegria caractersticas da maioria dos jovens, inclusive expressas em suas danas e teatros por ocasio dos Toces (grandes encontros regionais e nacionais de membros da Toca de Assis).

    O corpo e os sentidos, a dana, a msica, o xtase, as relaes de carinho e intimidade espiritual, os afetos santos, a emoo, em uma palavra, do o tom deste movimento, se incorporando, assim, na lgica dos movimentos de surtos emocionais da modernidade (Hervie-Lger, 1997). Aderir a um movimento eclesial, hoje, se faz, em grande parte ao menos no incio por atitudes subjetivas como afeto, beleza, simpatia (Silveira, 2003, p. 144), antes que por racionalidade reflexiva. A doutrina concisa, inflexvel, exclusivista, tantas vezes vem depois. Mas, no caso da Toca de Assis, vem, e forte, j que muitos de seus membros identificam-se com um catolicismo de veio doutrinrio bastante tradicional. Mas, para muitos jovens, no incio, o que atrai Toca de Assis este calor humano, a beleza esttica, os afetos sentidos entre os chamados marronzinhos. Vindo ou no a doutrina e a instituio, depois, com toda sua fora, fato que, em princpio, a identificao pela via afetiva, ou:

    A religiosidade de tipo emocional bem poderia acompanhar o esvaziamento simblico do universo moderno, e constituir, ao mesmo tempo, uma forma de adaptao dos grupos a este novo dado cultural. Nesta perspectiva continua possvel ler o transbordamento da expresso afetiva da experincia religiosa como a expresso de um protesto contra o enquadramento institucional empobrecedor da experincia, tanto pessoal quanto coletivo, da f. (Hervieu-Lger, 1997, p. 42)

  • 15

    Esttica, emoo e o ldico na Toca de Assis

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    A convivncia entre os toqueiros eivada de toques, de carinho, de abraos (s vezes longos), de choro, at de cafun. A profuso de toques e maneiras de demonstrar afeto e carinho no deixa de ser uma comunalizao religiosa nas quais a expresso individual e coletiva dos afetos central e constitutiva do grupo (Hervieu-Lger, 1997, p. 33). A Toca de Assis surge como comunidade afetiva, grupo voluntrio onde uma tipologia de comunidade de amor, como aponta Parsons (apud Martelli, 1995, p. 297) se encaixa bem. Pode-se, assim, classificar as adeses toqueiras no lastro de converses esttico-culturais, a partir de dimenses culturais, emocionais e estticas (Hervieu-Lger, 2005, p. 133).

    A Toca de Assis, ainda como agrupamento de pessoas a partir de um vis afetivo e emocional virtuoso, atraindo jovens, pode se enquadrar no espectro to bem juvenil e tambm afetivo de agrupamentos tribais. Tribos um termo do momento. Grupos de pessoas afinadas por ideais, agrupadas segundo eletividades de dimenses reduzidas, em que h, em seu interior, relaes quentes, baseadas na emoo, no lder, na utopia, na dimenso simblica. Comunidades ps-modernas, no dizer de Sanchis (1993, p. 17). E tribos jovens, na sociedade contempornea, so como enclaves de identidades contrastivas em relao ordem maior, referencial. um nadar contra a corrente. A opo por um estilo de vida radical, contracultural, em uma tribo, pode ser visto como uma ruptura de protesto, de contraste, de divergncia, tanto em relao sociedade como quanto Igreja, ou a certos modelos eclesiais. Assim, nesta opo h uma ruptura radical implicando crtica ao mundo exterior (...) a assumir uma nova identidade, divergindo das demais pessoas pelo uso de vestimentas prprias, novo corte de cabelo e, inclusive, um novo nome (Guerriero, 2006, p. 29). Afinal, a pessoa constri-se na e pela comunicao (Maffesoli, 1999, p. 310), e, na sociedade hodierna, a comunicao para fora e para dentro que constri a pessoa ou o grupo, manifesta-se tanto por marcas estticas exteriores quanto por modelos de convvio prprios e grupais bem definidos.

  • 16

    Rodrigo Portella

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    1 Roupas, jeitos e smbolos

    No se deveria negar que, nos dias que correm, a adeso a novos movimentos religiosos que se modelam por indumentria diferenciada das roupas civis, costumes inusuais, gestos e vocabulrio prprios, enfim, por um mundo dentro do mundo; por um mundo que se destaca propositalmente como diferente - e que entra em choque com o trivial da sociedade - que possa ser, tal adeso, classificada no esquema weberiano do ator que est emaranhado em configuraes particulares, bem especficas, e que valores e crenas ligados a esta situao especfica representariam, para o ator, um aumento de status, um plus cultural em seu meio e mesmo para fora de seu meio. Roupas, costumes, vocabulrios especficos: uma comunicao que quer transmitir uma mensagem para os prprios comunicantes e para outros, ora em oposio (aos de fora), ora em auto-afirmao. A expresso da identidade por intermdio de smbolos (roupa, hbitos) tem uma expresso social e, como tal, devem ser vistos os smbolos como status (Fraas, 1997, p. 88). Um status ao inverso, mas status de afirmao, ainda que pelo avesso. Afinal bom voc saber: com o hbito eu posso ganhar muita coisa. Hbito e tonsura. Mas eu posso ser um sacana. Ento a pobreza tem que ser interior, verdadeira (depoimento de toqueiro).

    Chamo a ateno, primeiramente, para o que de mais visvel se destaca como diferencial na Toca de Assis em relao a outros movimentos eclesiais e a outras congregaes religiosas: o uso constante do hbito grosso; o uso de chinelos ou o estar descalo; a tonsura entre os homens. A Toca de Assis chama, por primeiro, a ateno, pelo visual e, particularmente, pelo visual combinado sua prtica de assistncia social populao em situao de rua. A hexis corporal, a veste e o estilo so, certamente, comunicaes estticas que podem cativar, atrair, ou causar repulsa. So mensagens em si e carregam no s significados, como a partir deles poder de persuaso e

  • 17

    Esttica, emoo e o ldico na Toca de Assis

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    encantamento. Chamava a ateno, eu via o padre com aquelas vestes, os irmos, eu achava diferente, pois hoje em dia no se v mais (depoimento de toqueiro). Para um dos irmos, as vestes religiosas revelam s pessoas que aquela pessoa uma alma que se ofereceu a Deus, no um qualquer4.

    Fato que a esttica diferenciada dos toqueiros, para os padres atuais da prpria Igreja, j uma mensagem, Igreja e ao mundo. Conforme Dantas (1988, p. 196) o exotismo cumpre a funo da esttica dos diversos. O que no se parece conosco ento percebido como belo. Se esta lgica vale, por exemplo, para o candombl, que chama a ateno e a admirao dos de fora, inclusive turistas e intelectuais, que se deixam seduzir pelo extico e o belo representado no diferente e totalmente outro; penso que, a seu modo, o estilo esttico da Toca de Assis tambm seduz e chama admirao pessoas que veem em suas roupas, cortes e adereos ou ausncia deles - um mundo que, consciente ou inconscientemente, est no campo da nostalgia. Faz parte, assim, de sensibilidades (ps) modernas o vibrar por meio de imagens, gozar, nem que seja de maneira relativa, do mundo tal como ele : eis as grandes caractersticas de uma tica da esttica (Maffesoli, 1995, p.146).

    No s a arte, o esporte, a poltica, se do como espetculo, mas tambm a religio (Carvalho, 1999, p. 149). Ora, chamar a ateno na rua pelas vestes e forma pouco convencional de viver armar um espetculo simblico, no qual os toqueiros recebem reconhecimento ou incompreenso e, desses gestos de admirao ou repulsa, se constroem diante da sociedade, como contraste a ela ou como profecia testemunhal sobre ela. E, sem dvida, o vibrar comunicacional da imagem traz tona o tema da militia Christi. A esttica da imagem corresponde sua funo dinmica, a de fazer experimentar juntos emoes e, com isso, fortalecer o corpo social que seu portador (Maffesoli, 1999, p. 346). Um toqueiro, ao ver os outros descalos, tonsurados, de barba, de hbito surrado, como um exrcito de So Franciscos diante dos

    4 Neste caso o hbito faz o monge.

  • 18

    Rodrigo Portella

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    pobres, sentiria, por certo, reforada sua opo, seu ideal, em uma experincia coletiva de afirmao e de grandeza ideal.

    Comprazer-se com a aparncia, ter nela uma finalidade, um ato, fazer dela uma ontologia, leva a um paradigma esttico (Maffesoli, 1999, p. 156). O corpo como axis mundi, em torno do qual o sentido se ordena. A partir de uma perspectiva foucauldiana, Rebelo (1999, p. 271-2) destaca que corpos no o so em estado abstrato ou de inocncia, mas que carregam ou podem carregar smbolos de poder, ser lugares de operao de poder. Corpos e atitudes corporais esto cheios de significados. O corpo, assim, construdo para ser visto, para ser epifanizado, em uma teatralizao ao mais alto grau (Maffesoli, 1999, p. 41). E quando cito aqui teatralizao, no o fao no sentido da mistificao ou inverdade, falseamento, mas compreendo o termo, aplicado aos toqueiros, como expresso de um desejo sincero de uma identificao mimtica representada na roupa, nos ps descalos, na tonsura, na barba, com So Francisco de Assis. Afinal, os smbolos corporais so determinantes para a construo da personalidade, representando contextos e modelos de vida (Fraas, 1997, p. 94).

    A teatralidade uma forma de acentuar a comunho e a sociabilidade de um grupo ou ideal (Maffesoli, 2006). Ela faz parte dos rituais, religiosos ou no, familiares, sociais, do trabalho, da academia. De certa forma todos ns representamos papis onde estamos inseridos, respondendo a uma postura e atitudes que, pr-convencionadas e aceitas como legtimas, so esperadas de ns (Berger, 1996).

    Entre os toqueiros, o corpo, como expresso miditica, teatral, se torna fundamental para a construo da eficcia comunicativa do ethos do grupo, de sua identidade (Klein, 2006, p. 156). Mas no s no corpo que o smbolo da diferena se faz presente. Tambm na alma, ou seja, em uma das mais fortes ncoras de identidade: o nome. Os nomes dados aos novos irmos e irms refletem uma piedade bastante tradicional, ligada a smbolos de santidade que colocam o novo membro sob os cuidados do orago a quem ele se liga e, psicologicamente, o

  • 19

    Esttica, emoo e o ldico na Toca de Assis

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    faz se sentir ligado espiritualmente significao de seu nome. O hbito da troca de nomes, porquanto mais um resgate da piedade tradicional e volta ao pr-Vaticano II (o Conclio facultou tal prtica, antes regular nas ordens religiosas), tem o carter, tambm, de fazer o iniciado se perceber como nova pessoa e, consequentemente, de certa forma, negar um passado, inclusive familiar, pela troca de nome.

    Por exemplo: Ir. Francisco do Corao Imaculado da Virgem de Ftima. Note como esse nome agrega vrios significados. No simplesmente um Ir. Francisco de Assis, mas um nome pomposo, munido de especificidades que marcam o quanto mais possvel uma piedade. O corao imaculado no simplesmente o da virgem Maria, mas o da virgem de Ftima (no a de Lourdes ou Aparecida). Uma espiritualidade que precisa definir ao mximo. A tentativa de construir um mundo identitrio o mais denso e piedoso possvel. Afinal:

    O ingresso na vida monstica sempre acompanhado pela renncia das identidades e relaes sociais anteriores, inclusive familiares: as vestimentas sociais so trocadas pelos trajes monsticos, o nome social substitudo pelo nome espiritual, os bens materiais so doados e os antigos laos ou situaes sociais so abandonados. (Sodr, 2004, p. 43)

    A troca de nomes tem a funo de simbolizar uma ruptura com o passado e a aceitao de novo tipo de vida e identidade (Goffman, 1987, p. 105). Por outro lado, complementarmente, Maffesoli (1999, p. 37) chama a ateno para o deslize de uma lgica de identidade para uma lgica de identificao que seria mais coletiva, sentimental. E nessa identificao sentimental o circuito mais tradicional e antigo, identificado como mais legtimo, que ganha corpo5.

    5 Antigo, porm batizado por novas sensibilidades religiosas. Os onomsticos so revigorados com novos ares, atravs de alguns nomes que indicam conceitos e ideias que pouco lembram a sisudez e formalidade de eras passadas. Assim, por exemplo, Ir. Alegria da Eterna Jerusalm; Ir. Sol; Ir. Dileto; Ir. Israel; Ir. Cordeiro. Nomes que costumam, tambm, apontar para um vis afetivo.

  • 20

    Rodrigo Portella

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    Podemos dizer que aps o Conclio Vaticano II com sua liberalizao de certos smbolos/prticas/indumentrias religiosos, como hbito, tonsura, latim e com o advento da era subjetiva ps-moderna, os smbolos religiosos, perdida sua aura (...) estariam disposio de quem quisesse utiliz-los para outras experincias, no caso a esttica (Benedetti, 2006, p. 123). Assim, a reabilitao de smbolos religiosos, e o uso constante e obrigatrio dos mesmos na Toca de Assis demonstra uma reao liberalizao ps-conciliar no mbito simblico na Igreja. Afinal, diante do espectro da relativizao da modernidade, h duas alternativas: a abertura mestiagem cultural ou o refgio em universos simblicos que permitem continuar imaginando unida, coerente e compacta, uma realidade social profundamente diferenciada e fragmentada (Pace, 1999, p. 32).

    O modelamento, ento, de um novo franciscanismo carismtico, no qual se fundem as mais antigas tradies com os mais modernos meios de vivncia da f, no deixa de se inscrever como a formao de uma religio, ou de um espao dentro dela, submetida escolha pessoal, que corresponde vivncia da construo da individualidade (Sodr, 1996, p. 26). Construo atravs de um resgate feito pela reflexividade, pela escolha, por um pinar elementos antigos no ba plurivalente, plural, de mirades de escolhas, ou, em uma palavra, acessar o antigo atravs de sensibilidades reflexivas modernas e da composio esttica ps-moderna.

    A reflexividade atual tem esta dupla dimenso: a cognitiva, mobilizando smbolos conceituais; e a esttica, mobilizando smbolos mimticos, como imagens (Montero, 2006, p. 258). Para Giddens (2002), o mbito da escolha, na sociedade contempornea, se refere no s ao como agir, mas, fundamentalmente, ao quem ser. E o ser que passa pelo corpo, elemento da identidade, como meio de autorrealizao e auto identidade. Neste sentido, o visual do toqueiro passa a ser um item fundamental para a organizao de sua auto-identidade. Ele s toqueiro na medida em que assume um determinado perfil

  • 21

    Esttica, emoo e o ldico na Toca de Assis

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    corporal, que tem relao com hbito, barba, tonsura, smbolos que aderem ao corpo e perfazem o eu. Identidade significa aparecer: ser diferente e, por essa diferena, singular (Bauman, 2003, p. 21).

    Qual a auto imagem destes jovens? Como se viam, se veem e querem se ver? O que querem sinalizar para a cultura secular? Conforme Sanchis (1999, p. 62), a tomada de uma identidade forte aponta aquilo para que o sujeito pretende ser aos olhos dos outros e aos seus prprios olhos, eventualmente at o que ele se esfora para se persuadir que ele , tentando se reconhecer em um tipo ideal.

    2 Toces, modernidade e tradio: entre tramas e paradoxos

    A Toca de Assis constri sua identidade na tenso s vezes ambgua e com marcos divisores tnues, ou em cruzamentos por vezes inusitados, entre o antigo e o novo, entre a modernidade e a tradio, entre o racional e o mstico. Para entender a Toca de Assis preciso algum jogo de cintura dialtico. Sua identidade quer ser forte, definida, dogmtica, catolicssima, tradicional. Mas nesta constituio entra uma srie de elementos que a faz ecltica, contraditria, ambgua. A Toca de Assis ou quer ser tradicional por vias (ps) modernas. o que tambm podemos observar a seguir.

    A Toca de Assis realiza, a cada ano, eventos coletivos de celebrao. O evento nacional, que ocorre sempre no incio de outubro, coincidindo com a festa de So Francisco de Assis, tem sempre lugar nas dependncias da Cano Nova, em Cachoeira Paulista/SP, com o nome de Toco Nacional, reunindo uma grande quantidade de toqueiros de todo o Brasil e de simpatizantes da Toca de Assis. O evento tem incio na sexta-feira noite e dura at o domingo tarde, encerrando com uma missa solene. Entre a sexta-feira e o domingo acontecem shows de bandas de msicas catlicas, espetculos de dana e teatro

  • 22

    Rodrigo Portella

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    protagonizados pelos toqueiros, e momentos de adorao ao Santssimo Sacramento, acompanhados de procisses. Tambm h o relato de momentos fortes vividos na Toca de Assis, testemunhos, vdeos.

    J as Tocas Regionais so Toces em menor escala, ou seja, circunscritos a uma regio determinada, sob encargo de uma das centrais regionais da Toca de Assis. Neles ocorre muito do que h no Toco Nacional, mas em escala e tempo reduzidos. A Toca Regional, que tambm acontece uma vez ao ano em cada regio administrativa da Toca de Assis, costuma durar um dia (domingo), reunindo os toqueiros da regio, simpatizantes, e sempre com a presena do Pe. Roberto.

    A seguir, a partir de uma vivncia em evento do Toca Rio, isto , o Toco regional ocorrido na rea da Central Me dos Pobres (RJ), busco pinar algumas caractersticas inerentes a este tipo de evento.

    A programao do Toca Rio estava estipulada da seguinte forma: 08h30: animao com o conjunto musical Frutos de Medjugorje, ligado RCC; 09h30: pregao; 10h30: adorao; 12h00: intervalo para lanche/almoo; 13h30: animao com Glucio; 14h00: animao; 15h00: missa; 18h00: encerramento.

    O lugar onde se deu o evento foi em um ginsio de um clube em So Gonalo, regio metropolitana do Rio de Janeiro, em 2008. No espao do evento havia uma sala adaptada para capela, com a presena do Santssimo Sacramento, sendo adorado constantemente em um revezamento de toqueiros; e uma sala adaptada para enfermaria, fora outra, de acesso restrito, que servia como sacristia. No incio da manh, antes da pregao, o Pe. Roberto se encontrava em adorao na capela.

    3 O comrcio

    Havia uma barraca, muito frequentada durante todo o dia, vendendo vrios tipos de camisas da Toca de Assis, teros e outros objetos da produtora da Toca de Assis. Eu disse produtora? Sim,

  • 23

    Esttica, emoo e o ldico na Toca de Assis

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    a Toca de Assis tem uma produtora: produz bonequinhos de frades, adesivos, camisas, bons, livros, folhetos, CDs, DVDs e tudo o mais em que se possa imprimir uma mensagem religiosa da Toca de Assis e que se possa vender. A Toca de Assis tambm arrecada fundos com a venda de livros, CDs, MP3 de pregaes, produtos variados com slogans da Toca de Assis, como camisas, bons, bolsas, ims de geladeiras com imagens de frade e freira etc. Alis, para a maior comodidade do cliente, o mesmo pode, na loja virtual da Toca de Assis na internet, comprar com toda segurana atravs de diversos cartes de crdito, anunciados e estampados na loja virtual. Um smbolo agudo do capitalismo e da sociedade de consumo presente e muito til na pgina oficial dos filhos e filhas da santa pobreza, que optaram em serem pobres na mais aguda radicalidade.

    Conforme Libnio (1998, p. 71), a religio na ps-modernidade pode ter papel ambguo, introduzindo inrcia e resistncia ao capitalismo, atravs do universo espiritualista e mstico, mas, ao mesmo tempo, lidando com o consumo capitalista, a comercializao de produtos em um mercado da f, de forma a perpetuar sensibilidades e estruturas capitalistas. A Toca de Assis se amolda assim, um tanto, ao slogan compro, logo existo, ou consumo, logo existo, dado que toqueiros e, particularmente leigos e simpatizantes da Toca de Assis, ao consumirem camisas, fotos, objetos da Toca de Assis, se sentem mais dentro do esprito da Toca de Assis.

    O fato de a Toca de Assis lanar CDs, DVDs, utilizar-se da mdia eletrnica para fazer chegar sua mensagem s pessoas, constitui-se num dilogo da religio com a modernidade (Oliveira, 2003, p. 105). A comunicao atravs de meios mercadolgicos, como venda de camisetas, chaveiros, adesivos, se insere na lgica comercial e faz da f, ou de uma determinada experincia religiosa ou de carisma, como o da Toca de Assis, um elemento que pode circular atravs do consumo, uma espiritualidade que pode ser experimentada no consumo, como nas sensibilidades religiosas da Nova Era (Amaral, 2000). A fetichizao, para

  • 24

    Rodrigo Portella

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    usar um termo clssico, de produtos de consumo religioso como canal de espiritualidade e realizao espiritual e pessoal tambm devedora de uma cultura de consumo capitalista que, conforme aponta Sung (2005, p. 17), em um mundo sem sentidos e encantos, reencanta pelo encantamento da mercadoria.

    4 Entre o delrio e o santo: Pe. Roberto e Jesus eucarstico entre os fiis

    A Banda Medjugorje, da RCC, animou o primeiro momento do evento Toca Rio, de 8h20 s 10h30. Em tpico estilo carismtico, tocava msicas de apelos emocionais e de entrega e compromisso com Jesus. Mos levantadas entre o pblico e mini-intervenes do vocalista, entre uma msica e outra, pedindo converso. Identifiquei algumas msicas como de origem evanglica, mas j plenamente absorvidas pela discografia catlica.

    Quando o Pe. Roberto entrou no ginsio, o vocalista da banda anunciou que estava entrando o homem que est trazendo a Igreja sua santidade. Neste momento entra o Pe. Roberto com o ostensrio. O frenesi geral. Aplausos, gritos, choro. O padre segue at o altar, coloca nele o ostensrio, o incensa e se ajoelha diante dele. Praticamente todas as pessoas se ajoelham no ginsio, para a adorao. Em todo momento, inclusive no de orao do padre, uma msica suave de teclado tocada ao fundo. O padre comea a rezar: Como sacerdote eu exorcizo a todo esprito demonaco que esteja aqui. Saia! Saia todo esprito de bruxaria, feitiaria, ocultismo. Peo que vocs, jovens, que se envolveram em ocultismo e feitiaria, renunciem ao esprito dessas prticas. Aps mais algumas oraes, o padre proclama que haja nos coraes e almas o repouso no Esprito. No exato momento que termina de dizer repouso no Esprito, vrias pessoas caem, desmaiam, algumas de forma to abrupta que chegam a bater corpo e cabea, com violncia, nas cadeiras de ferro espalhadas pelo ginsio. E ficam por um bom tempo deitadas, aparentemente inconscientes.

  • 25

    Esttica, emoo e o ldico na Toca de Assis

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    O Pe. Roberto inicia pregao com a orao da Ave Maria. Aps a pregao se inicia a adorao ao santssimo sacramento. Praticamente todas as pessoas no ginsio esto de joelhos, e o padre faz oraes que so repetidas por todos. Afinal, o profeta reconhecido por sua efetiva prdica emocional (...) ocorra ela oralmente ou em forma de panfletos ou revelaes propagadas por escrito (WEBER, 1994, p. 307). A voz do Pe. Roberto parecia a voz de Deus naquele ginsio. O que ele falava, como ele falava, em pregao ou orao, emocionava as pessoas. Era visvel.

    Ao terminar a pregao e a adorao no altar, o padre inicia a procisso, ou passeio, do Santssimo Sacramento dentro do ginsio, no meio do povo. o ponto alto da adorao. Um frenesi toma conta do ginsio. Os msicos comeam a tocar vrias msicas religiosas. Aplausos, gritos, murmrios, choro em cascatas se apresentam no lugar. E o padre vai passando o ostensrio entre o povo. De quem ele chega perto difcil perceber se o olhar se dirige mais ao padre ou hstia. H uma disputa pelo olhar. As pessoas esto de joelhos por onde o padre passa. E o sacerdote Roberto vai colocando sua mo sobre a fronte de cada pessoa por quem passa, sendo que a maioria cai ao toque do padre, ficando aparentemente desacordadas, deitadas no cho, em descanso no Esprito. A banda sobe o som. As pessoas esto eufricas. A cena assemelha-se a um show juvenil, com a diferena de que na plateia tambm esto adultos e idosos. As expresses das pessoas so profundas, impressionam pela emoo vertida.

    Em certo momento o padre para e se abaixa junto a uma jovem, semi-consciente, no cho, e aparentemente conturbada e com espasmos. Ali o padre se demora, realizando, com sua mo na testa da moa, um discreto exorcismo, com palavras que, pela distncia, no pude captar. De todos os que caem, os jovens so a maioria. Em certo momento o padre sobe em uma cadeira e eleva ainda mais o ostensrio. Delrio na multido, que calculei em torno de trs mil pessoas.

  • 26

    Rodrigo Portella

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    Passear com a hstia consagrada no ostensrio entre as pessoas causa de momentos de intensa emoo e comoo (Carranza, 2000, p. 97). O que eu via era um espetculo, ainda que santo, por suposto. prprio do espetculo acentuar, diretamente, ou de maneira eufemstica, a dimenso sensvel, tctil da existncia social (...). O retorno da imagem e do sensvel, em nossas sociedades, remete certamente a uma lgica do tocar (Maffesoli, 2006, p. 134). Era o que ocorria: pessoas tocando o padre, o padre tocando as pessoas. Carteiras de trabalho e objetos pessoais que deveriam ser tocados, se possvel, no ostensrio. Pessoas abraadas, tocadas, no duplo sentido, pelo abrao e pela emoo.

    Devido massividade mesmo da audincia e intensidade da ateno, o indivduo se acha plena e verdadeiramente na presena de uma fora que superior a ele e diante da qual ele se curva [Durkheim] (...) A orientao opera nestes dias mais pela esttica do que pela tica (Bauman, 2003, p. 63).

    Era a celebrao da esttica da emoo, da epifania de um Deus por meio de seu profeta, na beleza forjada no bom sentido de um espetculo a olhos e coraes catlicos. Nos shows e cantos, multido emotiva e smbolos partilhados, havia a sensao esttica, imagtica que dava o ponto, a liga da identidade, cimentando-a na esteira esttico-emocional. Falando do orgiasmo, Maffesoli (2005, p. 14) aponta que no e pelo coletivo que todos se satisfazem. Era assim ali.

    5 Se no fossem os Toces e a dimenso festiva...

    Eventos como os encontros da Toca de Assis, nacionais ou regionais, em que os irmos e irms se encontram, convivem com seus colaboradores e celebram sua identidade so essenciais para o sustento cognitivo, simblico e emocional dos laos de identidade e pertena dos toqueiros. Tais espaos de efervescncia, vividos de forma regular (anual) so de fundamental importncia para

  • 27

    Esttica, emoo e o ldico na Toca de Assis

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    sustentar entre os toqueiros (e leigos) conversao e legitimao, certezas e foras. Sem esses espaos regulares de efervescncia dificulta-se a sustentao com entusiasmo de um movimento que lida com tanta dureza e sacrifcio. Ora, a religio tambm se d como espetculo, vis a vis com os esportes, arte, poltica (Carvalho, 1999, p. 149). o que operam os acampamentos/retiros na Cano Nova, os Toces e mesmo a vistosa Pastoral de Rua. Carranza (2006, p. 75) caracteriza tais eventos megarreligiosos como espetacularizao e personificao da f e religio.

    interessante, no entanto, perceber que a Toca de Assis assim como outros grupos religiosos do gnero afirmam sua legitimidade atravs da indicao da ilegitimidade de eventos que guardam semelhanas com seus modelos. No carnaval, assim como no Toco, h alegria, estilizao, fantasia, msica, brincadeiras, teatro6. A Toca de Assis se vale de modelos de expresso prximos de modelos de expresso cultural da sociedade civil. Neste sentido, os modelos da Toca de Assis querem ser uma alternativa legtima e verdadeira, segundo seu discurso aos modelos de alegria, como o do carnaval, da sociedade civil. Combate elementos seculares atravs de sua prpria lgica, mas devidamente batizada. Assimilam-se elementos seculares, no explicitamente ou tradicionalmente tomados como religiosos, para a expresso religiosa, ao mesmo tempo em que esvazia-os, se estiverem vinculados a expresses no catlicas de vivncia dos tais.

    Apesar de ser um movimento altamente espiritualizado, a Toca de Assis valoriza o corpo nas expressividades da dana, do teatro, do visual. O corpo moderno e ps-moderno, articulado com a alma espiritualizada pr-moderna.

    As festas da religiosidade popular tambm so incorporadas na Toca de Assis, como os arrais de festa junina, em que os toqueiros no poupam panos, chapus e estilizaes de Jeca para fazer a festa, com quadrilha e comidas tpicas (Revista Toca,

    6 Deixo claro, mais uma vez, que no tomo tais termos pejorativamente, ou querendo significar falsa conscincia.

  • 28

    Rodrigo Portella

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    n. 36, p. 4). Aqui bom chamar a ateno para o carter da estilizao, da imagem. A festa junina na Toca de Assis muito bem estilizada, assim como a imagtica franciscana primitiva, ou sua imagem idealizada, o no dia-a-dia toqueiro. A questo da imagem, da composio, do estilo, ultrapassa assim a questo religiosa e se revela como um apelo juvenil de viver intensamente um ideal, seja o religioso ou o passageiro ideal de uma festa, que deve ser vivida em todo seu sentido e profundidade prprios. Os arrais da Toca de Assis so primorosamente decorados e tm tudo o que no pode faltar em uma festa junina: bandeirolas, quadrilha, casamento na roa, arrasta-p, barraquinhas de comidas tpicas, corrida de saco e at corrida atrs de um leito cheio de leo (Revista Toca, n. 13, p. 11).

    A dimenso da festa, do ldico, do risvel, da alegria, parte essencial da vida do toqueiro, sem a qual provvel que adolescentes e jovens no suportassem a aridez do dia-a-dia vivido com adultos sujos, abandonados, mal-cheirosos, de purulentas feridas. Os jovens trazem para dentro da Toca de Assis a sensibilidade da celebrao, da festa, da descontrao, da suspenso da realidade diria para o encontro da dimenso afetiva e ldica que transcende e sustenta a aridez da vida e do trabalho junto populao em situao de rua. As expresses do carter juvenil, celebrativa e ldica so inmeras. E, geralmente, com um lastro simblico e de forte identidade por detrs, isto , a fortalecer a identidade toqueira assumida. Todos os anos, por exemplo, se elege uma msica tema para a quaresma na Toca de Assis. Toqueiros compositores afinam instrumentos e inspirao para o santo concurso. A Toca de Assis tambm tem um grupo interno chamado TocArte, ou seja, um grupo de toqueiros responsveis pelas expresses artsticas na Toca de Assis, para elaborar danas, teatros, msicas a serem apresentadas nos grandes encontros na fraternidade e de fora dela.

    Danas, hip-hop, street dance, raps, teatros, coreografias, mostram a capacidade de novos movimentos religiosos sacralizarem o profano (Benedetti, 2006, p. 132). At mesmo o

  • 29

    Esttica, emoo e o ldico na Toca de Assis

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    Ballet adotado como forma artstica de veiculao da mensagem religiosa (Revista Toca, n. 47, p. 5). Ora, dana e teatro tem a ver com o corpo, com movimentos corporais, com toques, com sensualidade. Toqueiros e toqueiras atuam juntos em tais espetculos, em danas e performances que pouco deixam a dever a produes profissionais. Conforme Giddens (1993, p. 10), na modernidade avanada a sexualidade ganha uma dimenso plstica, de ligao intrnseca com o eu, uma sexualidade liberta das necessidades de reproduo que liberta a pessoa da regra do falo. No deixa de ser assim na Toca de Assis.

    Concluso

    A Toca de Assis, filiando-se em simpatia afetiva RCC, exprime em si os movimentos estticos ou espirituais que se encontram no universo carismtico. Se estes processos que incluem, como afirma Brando em sua anlise das religies populares, cantos e danas, gritos (...) mos dadas ou entre palmas, prostraes primitivas, lnguas estranhas (Brando, 1986, p. 141), se encontram, a seu modo, na Toca de Assis, preciso se perguntar se eles no representam ou querem representar uma volta religio de primeira mo, no dominada pela banalizao. Uma paradoxal mistura entre as emoes primevas e o amoldamento fiel, ou fidelssimo, estrutura eclesistica. Um misto complexo que se entrincheira entre o proftico, o chamado aos primrdios, experincia direta, e a meiga obedincia e incorporao /na estrutura oficial.

    Referncias

    AMARAL, Leila. Carnaval da alma: comunidade e essncia na Nova Era. Petrpolis: Vozes, 2000.

    BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurana no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

  • 30

    Rodrigo Portella

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    BENEDETTI, Luiz Roberto. Religio: trnsito ou indiferenciao? In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org.). As religies no Brasil: continuidades e rupturas. Petrpolis: Vozes, 2006. p. 123-134.

    BERGER, Peter. Perspectivas sociolgicas: uma viso humanstica. 16 ed. Petrpolis: Vozes, 1996.

    BRANDO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo: um estudo sobre religio popular. So Paulo: Brasiliense, 1986.

    CARRANZA, Brenda. Catolicismo Miditico. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org.). As religies no Brasil: continuidades e rupturas. Petrpolis: Vozes, 2006. p. 69-88.

    _. Renovao Carismtica Catlica: origens, mudanas e tendncias. Aparecida: Santurio, 2000.

    CARVALHO, Jos Jorge. Caractersticas do fenmeno religioso na sociedade contempornea. In: BINGEMER, Maria Clara (Org.). O impacto da modernidade sobre a religio. So Paulo: Loyola, 1999. p. 133-160.

    COSTA, Joaquim. Sociologia dos novos movimentos eclesiais: focolares, carismticos e neocatecumenais em Braga. Porto: Afrontamento, 2006.

    DANTAS, Beatriz Gis. Vov nag e papai branco: usos e abusos da frica no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

    FRAAS, Hans-Jrgen. A religiosidade humana: compndio de psicologia da religio. So Leopoldo: Sinodal, 1997.

    GIDDENS, Anthony. A transformao da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. So Paulo: UNESP, 1993.

    _. Mundo em descontrole: o que a globalizao est fazendo de ns. Rio de Janeiro: Record, 2002a.

    GOFFMAN, Erving. Manicmios, prises e conventos. So Paulo: Perspectiva, 1987.

    GUERRIERO, Silas. Novos movimentos religiosos: o quadro brasileiro. So Paulo: Paulinas/ PUC-SP, 2006.

  • 31

    Esttica, emoo e o ldico na Toca de Assis

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    HERVIEU-LGER, Danile. Catolicismo: a configurao da memria. In: Rever, n 2, So Paulo, p. 87-107, 2005.

    KLEIN, Alberto Carlos Augusto. Mdia, corpo e espetculo: novas dimenses da experincia religiosa. In: PASSOS, Joo Dcio. Movimentos do Esprito. So Paulo: Paulinas, 2006. p. 151-184.

    LIBNIO, Joo Batista. O sagrado na ps-modernidade. In: CALIMAN, Cleto. A seduo do sagrado: o fenmeno religioso na virada do milnio. Petrpolis: Vozes, 1998. p. 61-78.

    MAFFESOLI, Michel. A contemplao do mundo. Porto Alegre:Artes e Ofcios, 1995.

    _. A sombra de Dionsio. So Paulo: Zouk, 2005.

    _. No fundo das aparncias. Petrpolis: Vozes, 1999.

    _. O tempo das tribos: o declnio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2006.

    MARTELLI, Stefano. A religio na sociedade ps-moderna. So Paulo: Paulinas, 1995.

    MONTERO, Paula. Religio, modernidade e cultura: novas questes. In: TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org.). As religies no Brasil: continuidades e rupturas. Petrpolis: Vozes, 2006. p. 249-262.

    OLIVEIRA, Eliane Martins. O mergulho no Esprito de Deus: dilogos (im)possveis entre Renovao Carismtica Catlica e a Nova Era na Comunidade de Vida no Esprito Cano Nova. Dissertao de Mestrado em Cincias Sociais. UERJ. Rio de Janeiro, 2003.

    PACE, Enzo. Religio e globalizao. In: ORO, Ari Pedro; STEIL, Carlos Alberto (Org.). Globalizao e religio. Petrpolis: Vozes, 1999. p. 25-42.

    REBELO, Margarida. Traos contnuos de diverso. In: PAIS, Jos Machado (Org.). Traos e riscos de vida: uma abordagem qualitativa a modos de vida juvenis. Porto: Ambar, 1999. p. 265-302.

  • 32

    Rodrigo Portella

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 11-32

    SANCHIS, Pierre. Catolicismo, entre tradio e modernidades. In: Comunicaes do ISER. Rio de Janeiro, n. 44, Ano 12, 1993. p. 8-24.

    SILVEIRA, Emerson Jos Sena da. Pluralidade catlica: um esboo de novos e antigos estilos de crena e pertencimento. In: Sacrilegens, n. 1, Juiz de Fora: PPCIR, UFJF, 2003. p. 139-158.

    SODR, Olga. Globalizao e pluralismo: guerra e violncia ou paz e dilogo. In: PEREIRA, Mabel Salgado; SANTOS, Lyndon (Org.). Religio e violncia em tempos de globalizao. So Paulo: Paulinas, ABHR, 2004, p. 11-52.

    SOBRINHO, Lemuel Dourado Guerra. As influncias da lgica mercadolgica sobre as recentes transformaes na Igreja Catlica. In: Razo e F. Pelotas/UCPEL, vol. 6, n. 1 e 2, dez. de 2004. p. 105-128.

    SUNG, Jung Mo. Reencantamento e transformao social. In: Estudos de Religio. Ano XIX, n. 29. So Bernardo do Campo: UMESP, 2005, p. 12-36.

    TOCA PARA A IGREJA. Revista mensal da Fraternidade de Aliana Toca de Assis. Campinas, nmeros correspondentes aos anos de 2003 a 2009.

    WEBER, Max. Economia e sociedade. Volume 1. Braslia: UnB, 1994.