artigo s. magellanicus
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ZOOARQUEOLOGIA DO SÍTIO GALHETA IV: UM ENFOQUE NOS VESTÍGIOS
DO PINGUIM-DE-MAGALHÃES (Spheniscus magellanicus, Spheniscidae)
Jéssica Mendes Cardoso1
Joares Adenilson May Júnior1
Deisi Scunderlick Eloy de Farias1
Paulo DeBlasis2
RESUMO
Associado a uma ocupação Jê, o sítio arqueológico Galheta IV foi datado entre 1200
e 600 anos A.P. e está localizado no município de Laguna, no sul de Santa Catarina.
As escavações deste sítio foram realizadas pelo GRUPEP-Arqueologia/UNISUL em
parceria com o MAE/USP3, no qual foram encontrados oito sepultamentos, cerâmica,
concreção, artefatos líticos e grande quantidade de material faunístico envolvidos no
contexto cerimonial. A arqueofauna coletada no sítio é composta principalmente por
peixes ósseos e cartilaginosos, mamíferos marinhos e terrestres, répteis, moluscos e
aves como o albatroz (Thalassarche sp.) e o pinguim-de-magalhães (Spheniscus
magellanicus). Nessa pesquisa foram analisadas 1234 amostras de material
arqueofaunístico com o objetivo de avaliar a presença de S. magellanicus no sítio
arqueológico. Verificou-se a presença de elementos ósseos de S. magellanicus em
229 amostras, totalizando 444 peças identificadas (NISP) e o número mínimo de
indivíduos (MNI) foi estimado em 35 indivíduos. Foi observada a ação humana por
meio de marcas de corte em 40% dos ossos analisados. Assim, a presença do
pinguim-de-magalhães no sítio Galheta IV configura uma oferta alimentar oportunista
e ocasional, além de estar relacionada ao contexto ritualístico representado por este
sítio arqueológico.
Palavras-chave: Zooarqueologia. Pinguim-de-magalhães. Jê.
1 Grupo de Pesquisa em Educação Patrimonial e Arqueologia, GRUPEP/UNISUL.
2 Museu de Arqueologia e Etnologia, MAE/USP.
3 Inserido no projeto Sambaquis e Paisagem, FAPESP 2004/11038-0.
ABSTRACT
Associated with a Jê occupation, the archaeological site Galheta IV was dated
between 1200 and 600 years B.P. and is located in the city of Laguna, southern
Santa Catarina. The excavations at this site were carried out by GRUPEP-
Arqueologia/UNISUL in partnership with MAE/USP, in which were found eight burials,
ceramics, concretion, lithic artifacts and large amounts of faunal remains involved in
a ceremonial context. The archaeological faunal remains collected at the site are
mainly composed of cartilaginous and bony fish, marine and terrestrial mammals,
reptiles, molluscs and birds such as the albatross (Thalassarche sp.) and Magellanic
Penguin, (Spheniscus magellanicus). For this research, 1234 samples of
archaeological faunal remains were analyzed with the objective of assessing the
presence of S. magellanicus at this site. It has been verified the presence of bone
elements from S. magellanicus in 229 samples, with a total of 444 specimens
identified (NISP) and minimum number of individuals (MNI) estimated at 35. Human
action was observed due to crop marks in 40% of the analyzed bones. Thus, the
presence of the Magellanic Penguin at Galheta IV is an opportunistic and occasional
food supply, as well as related to the ritualistic context represented by this
archaeological site.
Keywords: Zooarchaeology. Magellanic Penguin. Jê.
INTRODUÇÃO
As pesquisas arqueológicas desenvolvidas no sul do Brasil ocuparam-se
de diferentes grupos pré-coloniais: os sambaquieiros e os ceramistas portadores da
Tradição Tupiguarani, no litoral; os caçadores-coletores vinculados às Tradições
Umbu e Humaitá, e os grupos Jês meridionais (Kaingang e Xokleng), no interior
(Farias 2005).
Populações do cerrado brasileiro, do tronco linguístico Macro-Jê (Jês
Meridionais), se expandiram pelo planalto meridional ocupando um espaço menos
povoado (Schmitz 2005), onde construíram grandes aldeias com depressões
conhecidas como casas subterrâneas. Posteriormente, migraram para a encosta e
litoral, onde foi verificada a presença de sítios arqueológicos com estruturas de
combustão, produção de artefatos e locais cerimoniais, como cemitérios, típicos
desses grupos (Farias & Kneip 2010).
Localizado em Laguna, sul de Santa Catarina, o sítio arqueológico
Galheta IV está associado a uma ocupação Jê datado entre 1200 e 600 anos A.P.
Os estudos realizados neste sítio tiveram início a partir do projeto “Sambaquis e
Paisagem: modelando a inter-relação entre processos formativos culturais e naturais
no litoral sul de Santa Catarina” (FAPESP 2004/11038-0) e foi escavado pela equipe
do Grupo de Pesquisa em Educação Patrimonial e Arqueologia da Universidade do
Sul de Santa Catarina (GRUPEP-Arqueologia/UNISUL) em parceria com o Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP). As escavações
foram realizadas em três etapas, em 2005, 2006 e 2007, revelando oito
sepultamentos, artefatos líticos, cerâmica, amostras de concreções e material
faunístico.
Este sítio assenta-se sobre um promontório cristalino, a cerca de 50
metros acima do nível do mar, está envolto por uma paisagem de restinga com a
presença de dunas, sambaquis e vista para o oceano Atlântico. Sobre o mesmo
afloramento encontram-se os sambaquis Galheta I e II fazendo com que o sítio
arqueológico Galheta IV esteja geograficamente e historicamente envolvido com a
cultura sambaquieira (Farias & DeBlasis 2007).
Análises laboratoriais desenvolvidas por Fernandes et al (2011) informam
que os artefatos líticos estavam associados aos sepultamentos, muitos como
mobiliário funerário, indicando este sítio como um local cerimonial. Já as análises
preliminares da arqueofauna realizadas pelos autores e por André Osório Rosa
apontaram a presença de espécies migratórias, levantando a hipótese de ocupação
sazonal predominantemente durante o inverno. Entre as espécies identificadas estão
as de peixes cartilaginosos como tubarão (Selachimorpha) e raia (Dasyatis sp.);
peixes ósseos como a miraguaia (Pogonias cromis), tainha (Mugil sp.), corvina
(Micropogonias furnieri), bagre (Ariidae), rolabo (Centropomus sp.), enchova
(Pomatomus sp.) e sargo (Sparidae); cágado (Chelonia) e tartaruga marinha
(Chelonia mydas); aves como albatroz (Thalassarche sp.) e pinguim-de-magalhães
(Spheniscus magellanicus); mamíferos como baleia e golfinho (Cetacea), lobo
marinhos (Arctocephalus sp. e Otaria flavescens), porco-do-mato (Tayassu sp.) e
veados (Mazama sp. e Ozotocerus bezoarticus); e entre os moluscos foram
identificadas as espécies Anomalocardia brasiliana, Olivancillaria vesica auricularia,
Lucina pectinata, Thais haemastoma e Adelomelon sp.
A zooarqueologia estuda os vestígios arqueofaunísticos encontrados nos
sítios arqueológicos a fim de compreender a relação do homem com outras
populações animais (Reitz & Wing 1999). A partir da zooarqueologia é possível obter
informações importantes sobre o passado humano, bem como o contexto ambiental
em épocas passadas (Rosa 2008; Alves 2008).
Os registros arqueofaunísticos podem fornecer informações de grande
importância sobre a forma como as populações pré-históricas interagiam com o
ambiente. A partir desse material, é possível indicar a distribuição geográfica das
espécies no passado, possibilitando as linhas de pesquisa relacionadas às
transformações ambientais, mudanças climáticas e também para o enriquecimento
do conhecimento sobre os padrões de desenvolvimento das comunidades bióticas
(Rosa 2008).
Além disso, podem também fornecer subsídios para a análise do
comportamento simbólico das sociedades humanas, a maneira como espécies
animais específicas referenciam o contexto simbólico através do qual os grupos
humanos agenciam sua relação com o meio ambiente e, desta forma, elaboram
referências para a construção e interpretação do mundo (p.e. Ingold 2000).
No Brasil, a zooarqueologia ainda é bastante recente, e os trabalhos
realizados apresentam carência de abordagem teórica, frequência e abundância
relativa das partes esqueletais e análises tafonômicas, temas que atualmente são
trabalhados em outros países (Rosa 2008). Isso ocorre devido ao déficit de
zooarqueólogos e ao uso de técnicas inadequadas para a escavação dos vestígios
arqueofaunísticos (Ferrasso & Schmitz 2012).
Assim, esse estudo foi realizado a partir de um Trabalho de Conclusão de
Curso para obtenção do título de Licenciado em Ciências Biológicas na Universidade
do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Teve como objetivo analisar a presença do
pinguim-de-magalhães (Spheniscus magellanicus Forster, 1781) no sítio
arqueológico Galheta IV a partir da quantificação dos elementos ósseos por meio
dos índices de frequência (NISP e MNI), analisando aspectos tafonômicos,
determinando a distribuição dessa espécie no sítio e averiguando a presença de
artefatos e adornos confeccionados a partir dos ossos de S. magellanicus.
O PINGUIM-DE-MAGALHÃES
Os pinguins (Sphenisciformes) são aves oceânicas típicas do hemisfério
sul, correspondem a cerca de 90% da biomassa de avifauna da zona subantártica
(ao sul de 35oS) e antártica (Círculo Polar Antártico em aproximadamente 66oS). São
ao todo 18 espécies, sendo que 7 delas são encontradas na América do Sul. No
Brasil, os pinguins ocorrem somente na época de migração, durante o inverno (Sick
1997).
O pinguim-de-magalhães (Spheniscus magellanicus) chega ao Brasil pela
Corrente das Malvinas, podendo alcançar até o litoral do Rio de Janeiro entre os
períodos de inverno até o início da primavera. A migração de S. magellanicus ocorre
pela busca de alimentos (Valim et al 2004). No entanto, conforme o trabalho de Silva
et al (2012) a migração, comportamento e população de S. magellanicus pode sofrer
influências climáticas, assim considera-se que a vinda dessa espécie para o litoral
brasileiro pode ocorrer pela busca exclusiva por alimentos e/ou em virtude das
correntes que os trazem para o norte.
Em sítios arqueológicos do Rio de Janeiro e Santa Catarina, datados de
4000 anos, foram encontrados ossos de pinguins, mostrando a utilização dessas
aves pelos ocupantes pré-históricos no litoral brasileiro (Sick 1997).
Estudos realizados em Santa Cruz e Rio Negro, Argentina, apontam a
presença de S. magellanicus em sítios arqueológicos, porém, as marcas de
descarne apareceram somente em 2% do conteúdo amostral (Cruz 2005; Belardi et
al 2011; Borella & Cruz 2012). No Brasil não há estudos específicos sobre a
zooarqueologia dos pinguins, os registros arqueológicos não trazem informações
sobre a interação dessa espécie com povos pré-coloniais (Gaspar 1999; Schmitz
2006; Rosa 2006, 2008; Klökler et al 2010).
MATERIAIS E MÉTODOS
A presente pesquisa caracteriza-se como um estudo de caso quantitativo
e qualitativo, restrita à análise zooarqueológica laboratorial. Foram analisadas 1234
amostras correspondentes ao total do material arqueofaunístico coletado nas três
etapas de escavações do sítio arqueológico Galheta IV. Sendo que o objeto principal
da pesquisa foram os remanescentes ósseos de Spheniscus magellanicus.
Em campo
Em cada etapa foram abertas diferentes áreas de escavação, as quais
foram decapadas em quadras de 1 m2, perfazendo um total de 32 m2. Para este
sítio, foram consideradas duas camadas: a primeira com 50 cm, composta por um
sedimento arenoso, de deposição eólica, granulação fina e coloração clara,
apresentando, eventualmente, algum vestígio arqueológico, como fauna e cerâmica;
a segunda é a camada arqueológica propriamente dita, configurando os elementos
que identificam a sua ocupação (Farias & DeBlasis 2007).
O material zooarqueológico foi coletado diretamente nas quadras, ou no
processo de peneiramento do sedimento, sendo acondicionado em embalagens
plásticas. Cada amostra contém uma etiqueta com informações de quadra, camada,
nível, data, pesquisador e NP (Número de Procedência).
Em laboratório
Coleção de referência
A coleção de referência foi elaborada com o objetivo de auxiliar a
identificação taxonômica a partir da anatomia comparada. Foi utilizado um espécime
de Spheniscus magellanicus doado pelo professor Dr. Sérgio Antônio Netto,
coordenador do laboratório de Ciências Marinhas da UNISUL.
O espaço utilizado foi o Laboratório de Anatomia Humana e Animal da
UNISUL, e foram realizadas as técnicas de dissecação, maceração química e
mecânica adotadas por Pacheco et al (2005).
Figura 1 – Dissecação de S. magellanicus.
Figura 2 – Coleção de referência
Análise
A análise dos elementos ósseos referentes à S. magellanicus
encontrados no sítio arqueológico Galheta IV foram realizadas no laboratório do
GRUPEP-Arqueologia. Inicialmente os ossos passaram pelo processo de
higienização com água e escova, de modo a facilitar a identificação. Após, foram
catalogados por amostras (embalagens) de acordo com os dados contidos nas
etiquetas de campo. Na catalogação, cada amostra contém um número de registro,
permitindo a organização do material, de maneira a facilitar a busca por elementos
específicos.
A identificação de S. magellanicus ocorreu a partir da coleção de
referência osteológica elaborada pelos autores, na qual se utilizou análises
comparativas entre os vestígios de arqueofauna com os ossos do animal atual. O
objetivo da identificação foi alcançar o táxon mais próximo à espécie, contudo, os
processos tafonômicos sofridos pelo material zooarqueológico (fragmentação,
carbonização, calcificação, entre outros) afetam a eficácia da identificação. Portanto,
serão desconsiderados os ossos fragmentados e/ou não identificados.
Em cada elemento identificado, consta uma etiqueta de análise
laboratorial, com o número de catálogo, descrição da peça (estrutura anatômica) e
sua classificação taxonômica.
Os dados foram organizados e tabulados. Os cálculos de índices de
frequência (NISP: número de elementos identificados; e MNI: número mínimo de
indivíduos) foram realizados de acordo com Lyman (1994) e Reitz & Wing (1999).
Para a análise da distribuição dos ossos de S. magellanicus no sítio
estudado, bem como sua relação com os cerimoniais, como os sepultamentos,
foram considerados as camadas, níveis e quadras determinados em campo e
registrados nas etiquetas de cada amostra.
A identificação das ações antrópicas e naturais sobre os vestígios
faunísticos (tafonomia) seguiu a metodologia de Lyman (1994), no qual determina
processos de desarticulação, descarne e cozimento.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O pinguim-de-magalhães no Galheta IV
Para este trabalho, foi considerado como elemento ósseo toda estrutura
esqueletal do indivíduo em estudo, podendo este se encontrar fragmentado,
incompleto, apresentar quebras, desgastes ou permanecer inteiro.
Assim, verificou-se a presença de elementos ósseos de Spheniscus
magellanicus em 229 amostras de material arqueofaunístico coletadas nas
escavações realizadas no sítio arqueológico Galheta IV. Foi identificado um total de
444 peças (NISP) e o número mínimo de indivíduos (MNI) foi estimado de 35
indivíduos.
Entre os elementos ósseos identificados estão o esterno, escápula,
coracóide, sacro, vértebras caudais, ossos do crânio e dos membros (Tabela 1 e
Figura 3), sendo que os de maior frequência foram os elementos ósseos dos
membros anteriores e posteriores, representando 80,6% do total de elementos
identificados.
As escápulas, esternos e ossos do crânio (fragmento orbital, articular e
quadrado) se encontraram bastante fragmentados, sendo mais comum identificar no
conteúdo amostral as regiões mais resistentes desses ossos.
Os Sphescinidae são aves adaptadas para a vida aquática e por isso é
preciso considerar que o seu esqueleto se diferencia de aves que estão
aperfeiçoadas para alcançar altos voos, a exemplo do albatroz (Thalassarche sp.)
que, de acordo com os vestígios encontrados, também se fez presente no litoral
catarinense em períodos pré-coloniais. Embora, em sua maioria, os ossos dos
pinguins sejam pneumáticos, o peso e densidade de sua estrutura são maiores em
relação ao albatroz. Os ossos encontrados com maior frequência, como os dos
membros, são principalmente os que possuem maior densidade óssea, podendo ser
considerados mais resistentes em relação a estruturas como o esterno, costelas e
vértebras.
Com isso, infere-se sobre a resistência dos vestígios de Spheniscus
magellanicus às ações tafonômicas sofridas ao longo do tempo.
Muitos pesquisadores defendem a relação entre densidade e preservação
óssea, pois existe uma associação entre elas em diversos registros arqueológicos e
paleontológicos (Lyman 1994; Bissaro-Júnior 2008). Assim, estima-se que a
abundância de vestígios dos membros de S. magellanicus encontrados em Galheta
IV esteja relacionada diretamente com a densidade, por apresentar uma maior
resistência às interferências antrópicas e ambientais.
Tabela 1 – Número absoluto de elementos ósseos de Spheniscus magellanicus
identificados no sítio arqueológico Galheta IV.
ELEMENTOS QUANTIDADE
Articular Direito 2
Carpometacarpo Direito
Esquerdo
11
7
Coracóide Direito
Esquerdo
24
14
Crânio (fragmento orbital) - 4
Escápula Direita
Esquerda
11
10
Esterno - 2
Falange Membro posterior
Membro anterior
91
13
Fêmur Direito
Esquerdo
14
23
Quadrado Direito
Esquerdo
4
6
Rádio Direito
Esquerdo
31
15
Sacro - 5
Tarsometatarso Direito
Esquerdo
15
8
Tíbiatarso Direito
Esquerdo
24
12
Ulna Direita
Esquerda
18
14
Úmero Direito
Esquerdo
27
35
Vértebra caudal - 4
TOTAL (NISP) - 444
Figura 3 – Representação do esqueleto de Spheniscus magellanicus, lados direito e esquerdo,
apresentando a frequência dos elementos ósseos identificados no sítio arqueológico Galheta IV.
Vestígios de corte e queima
A presença de marcas de corte nos ossos faunísticos, assim como a
exposição ao fogo, indica uma forte atividade antrópica.
Em relação aos remanescentes ósseos de S. magellanicus, foram
observadas marcas de corte em 178 elementos, representando 40% das peças
identificadas. Para Bissaro-Júnior (2008) a presença de marcas de corte em
vestígios faunísticos são evidências diretas do processamento de animais pelos
seres humanos para a extração de tecidos e músculos por meio de instrumentos
cortantes.
As marcas de corte foram identificadas em epífises e diáfises de ossos
longos dos membros anteriores e posteriores e em menor número em coracóides,
escápulas e falanges. Essas marcas ocorreram mais frequentemente nos ossos dos
membros anteriores, representando 52% dos vestígios analisados, seguido pelos
elementos ósseos dos membros posteriores com 33%.
Além disso, foram encontrados 39 ossos que apresentaram vestígios de
queima, sendo 21 calcinados (apresentando coloração esbranquiçada) e 18
carbonizados (apresentando pigmentação escura).
Os Spheniscidae possuem características que permitem pensar em uma
intensa exploração, dentre elas a facilidade de captura e o rendimento econômico
(volume de tecido muscular) elevado em relação a outras aves (Cruz 2005). Dessa
forma, a espécie em estudo pode ter representado uma forma de subsistência
estacional para os grupos pré-históricos que ocuparam a região da Galheta. Os
vestígios de queima também sugerem que este animal era consumido por estes
grupos.
Figura 4 – Fêmur esquerdo com as marcas de corte indicadas
pela seta.
Figura 5 – Rádio direito com as marcas de corte.
Distribuição
A partir de análises estatísticas DeBlasis, Farias & Kneip (ms.) mostram
que os vestígios faunísticos, líticos e cerâmicos, apesar de exibirem uma distribuição
geral aparentemente homogênea, mostram tendências à aglomeração, associando-
se às feições funerárias.
Os elementos arqueofaunísticos correspondentes a Spheniscus
magellanicus foram encontrados dispostos em 39 quadras, 5 perfis e em todos os
níveis, indicando a presença destes elementos em 86,6% do total de quadras e
perfis do sítio arqueológico Galheta IV. E de acordo com a estratigrafia, os
elementos ósseos de pinguim-de-magalhães estavam dispersos em todas as
camadas e níveis escavados.
Apesar da distribuição aparentemente homogênea desses vestígios foi
possível observar, no entanto, a aproximação dos ossos de S. magellanicus com os
sepultamentos 2, 4, 6, 7 e 8 (cinco dos oito sepultamentos do sítio).
A presença de arqueofauna próximo aos sepultamentos pode representar
oferendas alimentares, possivelmente destinada a nutrir os mortos durante suas
viagens pós-morte, existindo a possibilidade de que a figura do pássaro estivesse
ligada à viagem dos mortos (Prous 1992). A oferenda pode, também, ter um
significado não alimentar como, por exemplo, símbolo clânico.
Artefatos e adornos
Não foram identificados quaisquer artefatos ou adornos confeccionados a
partir das partes esqueletais de pinguim-de-magalhães, Spheniscus magellanicus,
no sítio arqueológico Galheta IV. A ausência de ossos polidos pode ser justificada
pela alta densidade óssea e pelo menor número de ossos pneumáticos, como citado
anteriormente, em relação a outras aves possivelmente utilizadas para a atividade
artesanal.
No entanto, foram encontrados 14 artefatos de formato fusiforme
elaborado por meio de ossos de outras espécies de aves não identificadas (Figura
6). Esse tipo de instrumento é muito comum em sítios arqueológicos do centro-sul
brasileiro, e se torna útil principalmente devido a sua estrutura compacta. São
denominadas “pontas duplas” e podem ter sido utilizadas para armação de arpões e
anzóis (Prous 1992).
Figura 6 – Artefatos confeccionados a partir de ossos de aves
encontrados no sítio arqueológico Galheta IV.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desta pesquisa foi avaliar a presença do pinguim-de-
magalhães, Spheniscus magellanicus, no sítio arqueológico Galheta IV, a fim de
contribuir para a compreensão de seu contexto ocupacional, envolvendo os
aspectos econômicos e cerimoniais, além de trazer informações sobre a distribuição
dessa espécie no passado.
Os estudos nesse sítio revelam que sua ocupação ocorreu durante um
período longo, entre 500 a 600 anos, indicando que o local era revisitado
regularmente para ocasiões cerimoniais. Nessas visitas, a obtenção dos recursos
naturais do ambiente marinho e terrestre pode atender não apenas as finalidades
fúnebres, mas também às necessidades de subsistência de maneira geral, como
sugere a grande quantidade e variedade deles. No entanto, a presença de aves
aquáticas e mamíferos característicos dos meses de inverno sugere a utilização do
sítio de forma circunstancial e estacional.
A tafonomia dos remanescentes de S. magellanicus aponta para o
processamento in situ dos animais para a retirada de tecido e músculos, prática esta
aparentemente inserida no contexto cerimonial, tendo em vista a vinculação
relacional dos vestígios de fauna com os sepultamentos indicada acima.
Por fim, deduz-se que, tendo em vista a migração do S. magellanicus, as
populações Jê do Sul estavam no litoral no período entre inverno e primavera, época
de ocorrência dessa espécie na região. Observa-se, ainda, que há no sítio uma
quantidade significativa de outras espécies faunísticas subtraída do ambiente
marinho, como peixes, cetáceos, pinípedes e aves. Essa oferta abundante de
alimentos sugere que, para além das motivações associadas às práticas funerárias,
pode muito bem haver razões de ordem econômica para a presença estacional dos
Jê nesse pontão rochoso isolado do continente.
Com este estudo dá-se o passo inicial para as análises relacionadas à
presença do pinguim-de-magalhães no litoral brasileiro em época pré-colonial.
Assim, espera-se que este trabalho venha contribuir com as futuras pesquisas
zooarqueológicas integradas com a história e antropologia catarinense, e também
com a biologia dessa espécie.
Agradecimentos
Aos professores e pesquisadores da UNISUL: Josiane Somariva Prophiro,
Sérgio Antônio Netto e Geovan Martins Guimarães que participaram do andamento
e da banca examinadora deste trabalho, contribuindo para sua melhoria.
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