artigo s. magellanicus

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ZOOARQUEOLOGIA DO SÍTIO GALHETA IV: UM ENFOQUE NOS VESTÍGIOS DO PINGUIM-DE-MAGALHÃES (Spheniscus magellanicus, Spheniscidae) Jéssica Mendes Cardoso 1 Joares Adenilson May Júnior 1 Deisi Scunderlick Eloy de Farias 1 Paulo DeBlasis 2 RESUMO Associado a uma ocupação Jê, o sítio arqueológico Galheta IV foi datado entre 1200 e 600 anos A.P. e está localizado no município de Laguna, no sul de Santa Catarina. As escavações deste sítio foram realizadas pelo GRUPEP-Arqueologia/UNISUL em parceria com o MAE/USP 3 , no qual foram encontrados oito sepultamentos, cerâmica, concreção, artefatos líticos e grande quantidade de material faunístico envolvidos no contexto cerimonial. A arqueofauna coletada no sítio é composta principalmente por peixes ósseos e cartilaginosos, mamíferos marinhos e terrestres, répteis, moluscos e aves como o albatroz (Thalassarche sp.) e o pinguim-de-magalhães (Spheniscus magellanicus). Nessa pesquisa foram analisadas 1234 amostras de material arqueofaunístico com o objetivo de avaliar a presença de S. magellanicus no sítio arqueológico. Verificou-se a presença de elementos ósseos de S. magellanicus em 229 amostras, totalizando 444 peças identificadas (NISP) e o número mínimo de indivíduos (MNI) foi estimado em 35 indivíduos. Foi observada a ação humana por meio de marcas de corte em 40% dos ossos analisados. Assim, a presença do pinguim-de-magalhães no sítio Galheta IV configura uma oferta alimentar oportunista e ocasional, além de estar relacionada ao contexto ritualístico representado por este sítio arqueológico. Palavras-chave: Zooarqueologia. Pinguim-de-magalhães. Jê. 1 Grupo de Pesquisa em Educação Patrimonial e Arqueologia, GRUPEP/UNISUL. 2 Museu de Arqueologia e Etnologia, MAE/USP. 3 Inserido no projeto Sambaquis e Paisagem, FAPESP 2004/11038-0.

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Page 1: Artigo S. Magellanicus

ZOOARQUEOLOGIA DO SÍTIO GALHETA IV: UM ENFOQUE NOS VESTÍGIOS

DO PINGUIM-DE-MAGALHÃES (Spheniscus magellanicus, Spheniscidae)

Jéssica Mendes Cardoso1

Joares Adenilson May Júnior1

Deisi Scunderlick Eloy de Farias1

Paulo DeBlasis2

RESUMO

Associado a uma ocupação Jê, o sítio arqueológico Galheta IV foi datado entre 1200

e 600 anos A.P. e está localizado no município de Laguna, no sul de Santa Catarina.

As escavações deste sítio foram realizadas pelo GRUPEP-Arqueologia/UNISUL em

parceria com o MAE/USP3, no qual foram encontrados oito sepultamentos, cerâmica,

concreção, artefatos líticos e grande quantidade de material faunístico envolvidos no

contexto cerimonial. A arqueofauna coletada no sítio é composta principalmente por

peixes ósseos e cartilaginosos, mamíferos marinhos e terrestres, répteis, moluscos e

aves como o albatroz (Thalassarche sp.) e o pinguim-de-magalhães (Spheniscus

magellanicus). Nessa pesquisa foram analisadas 1234 amostras de material

arqueofaunístico com o objetivo de avaliar a presença de S. magellanicus no sítio

arqueológico. Verificou-se a presença de elementos ósseos de S. magellanicus em

229 amostras, totalizando 444 peças identificadas (NISP) e o número mínimo de

indivíduos (MNI) foi estimado em 35 indivíduos. Foi observada a ação humana por

meio de marcas de corte em 40% dos ossos analisados. Assim, a presença do

pinguim-de-magalhães no sítio Galheta IV configura uma oferta alimentar oportunista

e ocasional, além de estar relacionada ao contexto ritualístico representado por este

sítio arqueológico.

Palavras-chave: Zooarqueologia. Pinguim-de-magalhães. Jê.

1 Grupo de Pesquisa em Educação Patrimonial e Arqueologia, GRUPEP/UNISUL.

2 Museu de Arqueologia e Etnologia, MAE/USP.

3 Inserido no projeto Sambaquis e Paisagem, FAPESP 2004/11038-0.

Page 2: Artigo S. Magellanicus

ABSTRACT

Associated with a Jê occupation, the archaeological site Galheta IV was dated

between 1200 and 600 years B.P. and is located in the city of Laguna, southern

Santa Catarina. The excavations at this site were carried out by GRUPEP-

Arqueologia/UNISUL in partnership with MAE/USP, in which were found eight burials,

ceramics, concretion, lithic artifacts and large amounts of faunal remains involved in

a ceremonial context. The archaeological faunal remains collected at the site are

mainly composed of cartilaginous and bony fish, marine and terrestrial mammals,

reptiles, molluscs and birds such as the albatross (Thalassarche sp.) and Magellanic

Penguin, (Spheniscus magellanicus). For this research, 1234 samples of

archaeological faunal remains were analyzed with the objective of assessing the

presence of S. magellanicus at this site. It has been verified the presence of bone

elements from S. magellanicus in 229 samples, with a total of 444 specimens

identified (NISP) and minimum number of individuals (MNI) estimated at 35. Human

action was observed due to crop marks in 40% of the analyzed bones. Thus, the

presence of the Magellanic Penguin at Galheta IV is an opportunistic and occasional

food supply, as well as related to the ritualistic context represented by this

archaeological site.

Keywords: Zooarchaeology. Magellanic Penguin. Jê.

INTRODUÇÃO

As pesquisas arqueológicas desenvolvidas no sul do Brasil ocuparam-se

de diferentes grupos pré-coloniais: os sambaquieiros e os ceramistas portadores da

Tradição Tupiguarani, no litoral; os caçadores-coletores vinculados às Tradições

Umbu e Humaitá, e os grupos Jês meridionais (Kaingang e Xokleng), no interior

(Farias 2005).

Populações do cerrado brasileiro, do tronco linguístico Macro-Jê (Jês

Meridionais), se expandiram pelo planalto meridional ocupando um espaço menos

povoado (Schmitz 2005), onde construíram grandes aldeias com depressões

conhecidas como casas subterrâneas. Posteriormente, migraram para a encosta e

litoral, onde foi verificada a presença de sítios arqueológicos com estruturas de

Page 3: Artigo S. Magellanicus

combustão, produção de artefatos e locais cerimoniais, como cemitérios, típicos

desses grupos (Farias & Kneip 2010).

Localizado em Laguna, sul de Santa Catarina, o sítio arqueológico

Galheta IV está associado a uma ocupação Jê datado entre 1200 e 600 anos A.P.

Os estudos realizados neste sítio tiveram início a partir do projeto “Sambaquis e

Paisagem: modelando a inter-relação entre processos formativos culturais e naturais

no litoral sul de Santa Catarina” (FAPESP 2004/11038-0) e foi escavado pela equipe

do Grupo de Pesquisa em Educação Patrimonial e Arqueologia da Universidade do

Sul de Santa Catarina (GRUPEP-Arqueologia/UNISUL) em parceria com o Museu de

Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP). As escavações

foram realizadas em três etapas, em 2005, 2006 e 2007, revelando oito

sepultamentos, artefatos líticos, cerâmica, amostras de concreções e material

faunístico.

Este sítio assenta-se sobre um promontório cristalino, a cerca de 50

metros acima do nível do mar, está envolto por uma paisagem de restinga com a

presença de dunas, sambaquis e vista para o oceano Atlântico. Sobre o mesmo

afloramento encontram-se os sambaquis Galheta I e II fazendo com que o sítio

arqueológico Galheta IV esteja geograficamente e historicamente envolvido com a

cultura sambaquieira (Farias & DeBlasis 2007).

Análises laboratoriais desenvolvidas por Fernandes et al (2011) informam

que os artefatos líticos estavam associados aos sepultamentos, muitos como

mobiliário funerário, indicando este sítio como um local cerimonial. Já as análises

preliminares da arqueofauna realizadas pelos autores e por André Osório Rosa

apontaram a presença de espécies migratórias, levantando a hipótese de ocupação

sazonal predominantemente durante o inverno. Entre as espécies identificadas estão

as de peixes cartilaginosos como tubarão (Selachimorpha) e raia (Dasyatis sp.);

peixes ósseos como a miraguaia (Pogonias cromis), tainha (Mugil sp.), corvina

(Micropogonias furnieri), bagre (Ariidae), rolabo (Centropomus sp.), enchova

(Pomatomus sp.) e sargo (Sparidae); cágado (Chelonia) e tartaruga marinha

(Chelonia mydas); aves como albatroz (Thalassarche sp.) e pinguim-de-magalhães

(Spheniscus magellanicus); mamíferos como baleia e golfinho (Cetacea), lobo

marinhos (Arctocephalus sp. e Otaria flavescens), porco-do-mato (Tayassu sp.) e

veados (Mazama sp. e Ozotocerus bezoarticus); e entre os moluscos foram

Page 4: Artigo S. Magellanicus

identificadas as espécies Anomalocardia brasiliana, Olivancillaria vesica auricularia,

Lucina pectinata, Thais haemastoma e Adelomelon sp.

A zooarqueologia estuda os vestígios arqueofaunísticos encontrados nos

sítios arqueológicos a fim de compreender a relação do homem com outras

populações animais (Reitz & Wing 1999). A partir da zooarqueologia é possível obter

informações importantes sobre o passado humano, bem como o contexto ambiental

em épocas passadas (Rosa 2008; Alves 2008).

Os registros arqueofaunísticos podem fornecer informações de grande

importância sobre a forma como as populações pré-históricas interagiam com o

ambiente. A partir desse material, é possível indicar a distribuição geográfica das

espécies no passado, possibilitando as linhas de pesquisa relacionadas às

transformações ambientais, mudanças climáticas e também para o enriquecimento

do conhecimento sobre os padrões de desenvolvimento das comunidades bióticas

(Rosa 2008).

Além disso, podem também fornecer subsídios para a análise do

comportamento simbólico das sociedades humanas, a maneira como espécies

animais específicas referenciam o contexto simbólico através do qual os grupos

humanos agenciam sua relação com o meio ambiente e, desta forma, elaboram

referências para a construção e interpretação do mundo (p.e. Ingold 2000).

No Brasil, a zooarqueologia ainda é bastante recente, e os trabalhos

realizados apresentam carência de abordagem teórica, frequência e abundância

relativa das partes esqueletais e análises tafonômicas, temas que atualmente são

trabalhados em outros países (Rosa 2008). Isso ocorre devido ao déficit de

zooarqueólogos e ao uso de técnicas inadequadas para a escavação dos vestígios

arqueofaunísticos (Ferrasso & Schmitz 2012).

Assim, esse estudo foi realizado a partir de um Trabalho de Conclusão de

Curso para obtenção do título de Licenciado em Ciências Biológicas na Universidade

do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Teve como objetivo analisar a presença do

pinguim-de-magalhães (Spheniscus magellanicus Forster, 1781) no sítio

arqueológico Galheta IV a partir da quantificação dos elementos ósseos por meio

dos índices de frequência (NISP e MNI), analisando aspectos tafonômicos,

determinando a distribuição dessa espécie no sítio e averiguando a presença de

artefatos e adornos confeccionados a partir dos ossos de S. magellanicus.

Page 5: Artigo S. Magellanicus

O PINGUIM-DE-MAGALHÃES

Os pinguins (Sphenisciformes) são aves oceânicas típicas do hemisfério

sul, correspondem a cerca de 90% da biomassa de avifauna da zona subantártica

(ao sul de 35oS) e antártica (Círculo Polar Antártico em aproximadamente 66oS). São

ao todo 18 espécies, sendo que 7 delas são encontradas na América do Sul. No

Brasil, os pinguins ocorrem somente na época de migração, durante o inverno (Sick

1997).

O pinguim-de-magalhães (Spheniscus magellanicus) chega ao Brasil pela

Corrente das Malvinas, podendo alcançar até o litoral do Rio de Janeiro entre os

períodos de inverno até o início da primavera. A migração de S. magellanicus ocorre

pela busca de alimentos (Valim et al 2004). No entanto, conforme o trabalho de Silva

et al (2012) a migração, comportamento e população de S. magellanicus pode sofrer

influências climáticas, assim considera-se que a vinda dessa espécie para o litoral

brasileiro pode ocorrer pela busca exclusiva por alimentos e/ou em virtude das

correntes que os trazem para o norte.

Em sítios arqueológicos do Rio de Janeiro e Santa Catarina, datados de

4000 anos, foram encontrados ossos de pinguins, mostrando a utilização dessas

aves pelos ocupantes pré-históricos no litoral brasileiro (Sick 1997).

Estudos realizados em Santa Cruz e Rio Negro, Argentina, apontam a

presença de S. magellanicus em sítios arqueológicos, porém, as marcas de

descarne apareceram somente em 2% do conteúdo amostral (Cruz 2005; Belardi et

al 2011; Borella & Cruz 2012). No Brasil não há estudos específicos sobre a

zooarqueologia dos pinguins, os registros arqueológicos não trazem informações

sobre a interação dessa espécie com povos pré-coloniais (Gaspar 1999; Schmitz

2006; Rosa 2006, 2008; Klökler et al 2010).

MATERIAIS E MÉTODOS

A presente pesquisa caracteriza-se como um estudo de caso quantitativo

e qualitativo, restrita à análise zooarqueológica laboratorial. Foram analisadas 1234

amostras correspondentes ao total do material arqueofaunístico coletado nas três

etapas de escavações do sítio arqueológico Galheta IV. Sendo que o objeto principal

da pesquisa foram os remanescentes ósseos de Spheniscus magellanicus.

Page 6: Artigo S. Magellanicus

Em campo

Em cada etapa foram abertas diferentes áreas de escavação, as quais

foram decapadas em quadras de 1 m2, perfazendo um total de 32 m2. Para este

sítio, foram consideradas duas camadas: a primeira com 50 cm, composta por um

sedimento arenoso, de deposição eólica, granulação fina e coloração clara,

apresentando, eventualmente, algum vestígio arqueológico, como fauna e cerâmica;

a segunda é a camada arqueológica propriamente dita, configurando os elementos

que identificam a sua ocupação (Farias & DeBlasis 2007).

O material zooarqueológico foi coletado diretamente nas quadras, ou no

processo de peneiramento do sedimento, sendo acondicionado em embalagens

plásticas. Cada amostra contém uma etiqueta com informações de quadra, camada,

nível, data, pesquisador e NP (Número de Procedência).

Em laboratório

Coleção de referência

A coleção de referência foi elaborada com o objetivo de auxiliar a

identificação taxonômica a partir da anatomia comparada. Foi utilizado um espécime

de Spheniscus magellanicus doado pelo professor Dr. Sérgio Antônio Netto,

coordenador do laboratório de Ciências Marinhas da UNISUL.

O espaço utilizado foi o Laboratório de Anatomia Humana e Animal da

UNISUL, e foram realizadas as técnicas de dissecação, maceração química e

mecânica adotadas por Pacheco et al (2005).

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Figura 1 – Dissecação de S. magellanicus.

Figura 2 – Coleção de referência

Page 8: Artigo S. Magellanicus

Análise

A análise dos elementos ósseos referentes à S. magellanicus

encontrados no sítio arqueológico Galheta IV foram realizadas no laboratório do

GRUPEP-Arqueologia. Inicialmente os ossos passaram pelo processo de

higienização com água e escova, de modo a facilitar a identificação. Após, foram

catalogados por amostras (embalagens) de acordo com os dados contidos nas

etiquetas de campo. Na catalogação, cada amostra contém um número de registro,

permitindo a organização do material, de maneira a facilitar a busca por elementos

específicos.

A identificação de S. magellanicus ocorreu a partir da coleção de

referência osteológica elaborada pelos autores, na qual se utilizou análises

comparativas entre os vestígios de arqueofauna com os ossos do animal atual. O

objetivo da identificação foi alcançar o táxon mais próximo à espécie, contudo, os

processos tafonômicos sofridos pelo material zooarqueológico (fragmentação,

carbonização, calcificação, entre outros) afetam a eficácia da identificação. Portanto,

serão desconsiderados os ossos fragmentados e/ou não identificados.

Em cada elemento identificado, consta uma etiqueta de análise

laboratorial, com o número de catálogo, descrição da peça (estrutura anatômica) e

sua classificação taxonômica.

Os dados foram organizados e tabulados. Os cálculos de índices de

frequência (NISP: número de elementos identificados; e MNI: número mínimo de

indivíduos) foram realizados de acordo com Lyman (1994) e Reitz & Wing (1999).

Para a análise da distribuição dos ossos de S. magellanicus no sítio

estudado, bem como sua relação com os cerimoniais, como os sepultamentos,

foram considerados as camadas, níveis e quadras determinados em campo e

registrados nas etiquetas de cada amostra.

A identificação das ações antrópicas e naturais sobre os vestígios

faunísticos (tafonomia) seguiu a metodologia de Lyman (1994), no qual determina

processos de desarticulação, descarne e cozimento.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O pinguim-de-magalhães no Galheta IV

Page 9: Artigo S. Magellanicus

Para este trabalho, foi considerado como elemento ósseo toda estrutura

esqueletal do indivíduo em estudo, podendo este se encontrar fragmentado,

incompleto, apresentar quebras, desgastes ou permanecer inteiro.

Assim, verificou-se a presença de elementos ósseos de Spheniscus

magellanicus em 229 amostras de material arqueofaunístico coletadas nas

escavações realizadas no sítio arqueológico Galheta IV. Foi identificado um total de

444 peças (NISP) e o número mínimo de indivíduos (MNI) foi estimado de 35

indivíduos.

Entre os elementos ósseos identificados estão o esterno, escápula,

coracóide, sacro, vértebras caudais, ossos do crânio e dos membros (Tabela 1 e

Figura 3), sendo que os de maior frequência foram os elementos ósseos dos

membros anteriores e posteriores, representando 80,6% do total de elementos

identificados.

As escápulas, esternos e ossos do crânio (fragmento orbital, articular e

quadrado) se encontraram bastante fragmentados, sendo mais comum identificar no

conteúdo amostral as regiões mais resistentes desses ossos.

Os Sphescinidae são aves adaptadas para a vida aquática e por isso é

preciso considerar que o seu esqueleto se diferencia de aves que estão

aperfeiçoadas para alcançar altos voos, a exemplo do albatroz (Thalassarche sp.)

que, de acordo com os vestígios encontrados, também se fez presente no litoral

catarinense em períodos pré-coloniais. Embora, em sua maioria, os ossos dos

pinguins sejam pneumáticos, o peso e densidade de sua estrutura são maiores em

relação ao albatroz. Os ossos encontrados com maior frequência, como os dos

membros, são principalmente os que possuem maior densidade óssea, podendo ser

considerados mais resistentes em relação a estruturas como o esterno, costelas e

vértebras.

Com isso, infere-se sobre a resistência dos vestígios de Spheniscus

magellanicus às ações tafonômicas sofridas ao longo do tempo.

Muitos pesquisadores defendem a relação entre densidade e preservação

óssea, pois existe uma associação entre elas em diversos registros arqueológicos e

paleontológicos (Lyman 1994; Bissaro-Júnior 2008). Assim, estima-se que a

abundância de vestígios dos membros de S. magellanicus encontrados em Galheta

IV esteja relacionada diretamente com a densidade, por apresentar uma maior

resistência às interferências antrópicas e ambientais.

Page 10: Artigo S. Magellanicus

Tabela 1 – Número absoluto de elementos ósseos de Spheniscus magellanicus

identificados no sítio arqueológico Galheta IV.

ELEMENTOS QUANTIDADE

Articular Direito 2

Carpometacarpo Direito

Esquerdo

11

7

Coracóide Direito

Esquerdo

24

14

Crânio (fragmento orbital) - 4

Escápula Direita

Esquerda

11

10

Esterno - 2

Falange Membro posterior

Membro anterior

91

13

Fêmur Direito

Esquerdo

14

23

Quadrado Direito

Esquerdo

4

6

Rádio Direito

Esquerdo

31

15

Sacro - 5

Tarsometatarso Direito

Esquerdo

15

8

Tíbiatarso Direito

Esquerdo

24

12

Ulna Direita

Esquerda

18

14

Úmero Direito

Esquerdo

27

35

Vértebra caudal - 4

TOTAL (NISP) - 444

Page 11: Artigo S. Magellanicus

Figura 3 – Representação do esqueleto de Spheniscus magellanicus, lados direito e esquerdo,

apresentando a frequência dos elementos ósseos identificados no sítio arqueológico Galheta IV.

Vestígios de corte e queima

A presença de marcas de corte nos ossos faunísticos, assim como a

exposição ao fogo, indica uma forte atividade antrópica.

Em relação aos remanescentes ósseos de S. magellanicus, foram

observadas marcas de corte em 178 elementos, representando 40% das peças

identificadas. Para Bissaro-Júnior (2008) a presença de marcas de corte em

vestígios faunísticos são evidências diretas do processamento de animais pelos

seres humanos para a extração de tecidos e músculos por meio de instrumentos

cortantes.

Page 12: Artigo S. Magellanicus

As marcas de corte foram identificadas em epífises e diáfises de ossos

longos dos membros anteriores e posteriores e em menor número em coracóides,

escápulas e falanges. Essas marcas ocorreram mais frequentemente nos ossos dos

membros anteriores, representando 52% dos vestígios analisados, seguido pelos

elementos ósseos dos membros posteriores com 33%.

Além disso, foram encontrados 39 ossos que apresentaram vestígios de

queima, sendo 21 calcinados (apresentando coloração esbranquiçada) e 18

carbonizados (apresentando pigmentação escura).

Os Spheniscidae possuem características que permitem pensar em uma

intensa exploração, dentre elas a facilidade de captura e o rendimento econômico

(volume de tecido muscular) elevado em relação a outras aves (Cruz 2005). Dessa

forma, a espécie em estudo pode ter representado uma forma de subsistência

estacional para os grupos pré-históricos que ocuparam a região da Galheta. Os

vestígios de queima também sugerem que este animal era consumido por estes

grupos.

Figura 4 – Fêmur esquerdo com as marcas de corte indicadas

pela seta.

Page 13: Artigo S. Magellanicus

Figura 5 – Rádio direito com as marcas de corte.

Distribuição

A partir de análises estatísticas DeBlasis, Farias & Kneip (ms.) mostram

que os vestígios faunísticos, líticos e cerâmicos, apesar de exibirem uma distribuição

geral aparentemente homogênea, mostram tendências à aglomeração, associando-

se às feições funerárias.

Os elementos arqueofaunísticos correspondentes a Spheniscus

magellanicus foram encontrados dispostos em 39 quadras, 5 perfis e em todos os

níveis, indicando a presença destes elementos em 86,6% do total de quadras e

perfis do sítio arqueológico Galheta IV. E de acordo com a estratigrafia, os

elementos ósseos de pinguim-de-magalhães estavam dispersos em todas as

camadas e níveis escavados.

Apesar da distribuição aparentemente homogênea desses vestígios foi

possível observar, no entanto, a aproximação dos ossos de S. magellanicus com os

sepultamentos 2, 4, 6, 7 e 8 (cinco dos oito sepultamentos do sítio).

A presença de arqueofauna próximo aos sepultamentos pode representar

oferendas alimentares, possivelmente destinada a nutrir os mortos durante suas

viagens pós-morte, existindo a possibilidade de que a figura do pássaro estivesse

ligada à viagem dos mortos (Prous 1992). A oferenda pode, também, ter um

significado não alimentar como, por exemplo, símbolo clânico.

Page 14: Artigo S. Magellanicus

Artefatos e adornos

Não foram identificados quaisquer artefatos ou adornos confeccionados a

partir das partes esqueletais de pinguim-de-magalhães, Spheniscus magellanicus,

no sítio arqueológico Galheta IV. A ausência de ossos polidos pode ser justificada

pela alta densidade óssea e pelo menor número de ossos pneumáticos, como citado

anteriormente, em relação a outras aves possivelmente utilizadas para a atividade

artesanal.

No entanto, foram encontrados 14 artefatos de formato fusiforme

elaborado por meio de ossos de outras espécies de aves não identificadas (Figura

6). Esse tipo de instrumento é muito comum em sítios arqueológicos do centro-sul

brasileiro, e se torna útil principalmente devido a sua estrutura compacta. São

denominadas “pontas duplas” e podem ter sido utilizadas para armação de arpões e

anzóis (Prous 1992).

Figura 6 – Artefatos confeccionados a partir de ossos de aves

encontrados no sítio arqueológico Galheta IV.

Page 15: Artigo S. Magellanicus

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta pesquisa foi avaliar a presença do pinguim-de-

magalhães, Spheniscus magellanicus, no sítio arqueológico Galheta IV, a fim de

contribuir para a compreensão de seu contexto ocupacional, envolvendo os

aspectos econômicos e cerimoniais, além de trazer informações sobre a distribuição

dessa espécie no passado.

Os estudos nesse sítio revelam que sua ocupação ocorreu durante um

período longo, entre 500 a 600 anos, indicando que o local era revisitado

regularmente para ocasiões cerimoniais. Nessas visitas, a obtenção dos recursos

naturais do ambiente marinho e terrestre pode atender não apenas as finalidades

fúnebres, mas também às necessidades de subsistência de maneira geral, como

sugere a grande quantidade e variedade deles. No entanto, a presença de aves

aquáticas e mamíferos característicos dos meses de inverno sugere a utilização do

sítio de forma circunstancial e estacional.

A tafonomia dos remanescentes de S. magellanicus aponta para o

processamento in situ dos animais para a retirada de tecido e músculos, prática esta

aparentemente inserida no contexto cerimonial, tendo em vista a vinculação

relacional dos vestígios de fauna com os sepultamentos indicada acima.

Por fim, deduz-se que, tendo em vista a migração do S. magellanicus, as

populações Jê do Sul estavam no litoral no período entre inverno e primavera, época

de ocorrência dessa espécie na região. Observa-se, ainda, que há no sítio uma

quantidade significativa de outras espécies faunísticas subtraída do ambiente

marinho, como peixes, cetáceos, pinípedes e aves. Essa oferta abundante de

alimentos sugere que, para além das motivações associadas às práticas funerárias,

pode muito bem haver razões de ordem econômica para a presença estacional dos

Jê nesse pontão rochoso isolado do continente.

Com este estudo dá-se o passo inicial para as análises relacionadas à

presença do pinguim-de-magalhães no litoral brasileiro em época pré-colonial.

Assim, espera-se que este trabalho venha contribuir com as futuras pesquisas

zooarqueológicas integradas com a história e antropologia catarinense, e também

com a biologia dessa espécie.

Page 16: Artigo S. Magellanicus

Agradecimentos

Aos professores e pesquisadores da UNISUL: Josiane Somariva Prophiro,

Sérgio Antônio Netto e Geovan Martins Guimarães que participaram do andamento

e da banca examinadora deste trabalho, contribuindo para sua melhoria.

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