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AS ORDENS E A MECÂNICA: de Vignola a da Vinci DE SOUZA ROCHA, RICARDO Universidade Federal de Santa Maria. Coordenadoria Acadêmica-CS Av. Pres. Vargas 1958, Cachoeira do Sul - RS [email protected] RESUMO Massimo Corradi e Valentina Filemio já apontaram a pertinência de uma versão da “Regola delli Cinque Ordini d’Architettura” de Vignola, datada de 1787 e republicada em 1800, na qual foi acrescentado um “Trattato di Meccanica”. Subjacente tanto a Regola quanto ao Trattato estaria a definição dos princípios fundamentais tanto da arquitetura - as ordens e seu sistema de proporções; quanto da mecânica - as cinco máquinas simples e “a proporção entre potência e peso para manter algo em equilíbrio ou movimentá-lo”. Com efeito, a partir do Setecentos a Mecânica (estática) e a Resistência dos Materiais irão impor-se como disciplinas necessárias para a Arte de Construir, conduzindo ao cisma entre engenharia e arquitetura. Complemento necessário de utilitas e venustas, ocupando todo o Livro X em De Architectura Libri Decem - o mais longo, aliás - os “problemas mecânicos”, tema de uma obra falsamente atribuída a Aristóteles, irão ocupar algumas das mentes mais inquietas durante o Renascimento. Começando por Brunelleschi que, infelizmente, não deixou obra escrita sistematizada. Desta vez, entretanto, ao contrário da perspectiva, não será Alberti, apesar de o erudito ter se dedicado à questão e, sim, Leonardo da Vinci a figura proeminente. Se suas propostas arquitetônicas não passaram de especulação e seus escritos sobre mecânica ficaram dispersos, ainda assim, da Vinci é figura fundamental e inescapável no assunto. Para Paolo Galluzzi, a mecânica constitui a base do pensamento de Leonardo, de forte fundamentação geométrica. Aliando a mecânica aos seus estudos sobre o corpo humano, através de uma anatomia das máquinas humanas e não humanas, Leonardo da Vinci irá desenvolver uma compreensão dos edifícios como organismos, como máquinas que, sob a ação de forças, mantém-se em equilíbrio. Nesse registro, apoiando-se em historiadores da ciência, o artigo procura identificar uma tradição iniciada em Brunelleschi, continuada por Leonardo e que confere pleno sentido a Regola/ Trattato de 1787, não como enxerto setecentista e sim como algo absolutamente coerente com a época de Vignola. Palavras-chave: tratados; história da ciência e da tecnologia; Renascimento

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AS ORDENS E A MECÂNICA: de Vignola a da Vinci

DE SOUZA ROCHA, RICARDO

Universidade Federal de Santa Maria. Coordenadoria Acadêmica-CS

Av. Pres. Vargas 1958, Cachoeira do Sul - RS [email protected]

RESUMO Massimo Corradi e Valentina Filemio já apontaram a pertinência de uma versão da “Regola delli Cinque Ordini d’Architettura” de Vignola, datada de 1787 e republicada em 1800, na qual foi acrescentado um “Trattato di Meccanica”. Subjacente tanto a Regola quanto ao Trattato estaria a definição dos princípios fundamentais tanto da arquitetura - as ordens e seu sistema de proporções; quanto da mecânica - as cinco máquinas simples e “a proporção entre potência e peso para manter algo em equilíbrio ou movimentá-lo”. Com efeito, a partir do Setecentos a Mecânica (estática) e a Resistência dos Materiais irão impor-se como disciplinas necessárias para a Arte de Construir, conduzindo ao cisma entre engenharia e arquitetura. Complemento necessário de utilitas e venustas, ocupando todo o Livro X em De Architectura Libri Decem - o mais longo, aliás - os “problemas mecânicos”, tema de uma obra falsamente atribuída a Aristóteles, irão ocupar algumas das mentes mais inquietas durante o Renascimento. Começando por Brunelleschi que, infelizmente, não deixou obra escrita sistematizada. Desta vez, entretanto, ao contrário da perspectiva, não será Alberti, apesar de o erudito ter se dedicado à questão e, sim, Leonardo da Vinci a figura proeminente. Se suas propostas arquitetônicas não passaram de especulação e seus escritos sobre mecânica ficaram dispersos, ainda assim, da Vinci é figura fundamental e inescapável no assunto. Para Paolo Galluzzi, a mecânica constitui a base do pensamento de Leonardo, de forte fundamentação geométrica. Aliando a mecânica aos seus estudos sobre o corpo humano, através de uma anatomia das máquinas humanas e não humanas, Leonardo da Vinci irá desenvolver uma compreensão dos edifícios como organismos, como máquinas que, sob a ação de forças, mantém-se em equilíbrio. Nesse registro, apoiando-se em historiadores da ciência, o artigo procura identificar uma tradição iniciada em Brunelleschi, continuada por Leonardo e que confere pleno sentido a Regola/ Trattato de 1787, não como enxerto setecentista e sim como algo absolutamente coerente com a época de Vignola.

Palavras-chave: tratados; história da ciência e da tecnologia; Renascimento

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

AS ORDENS E A MECÂNICA

de Vignola a da Vinci1

Introdução

“A mecânica é o paraíso das ciências matemáticas,

uma vez que por meio dela obtém-se o fruto matemático”

Leonardo da Vinci

A aquisição pelo autor de uma versão da Regola delli Cinque Ordini d’Architettura de

Vignola (1507-73), denominada L’Architettura di Jacopo Barozzi Vignola ridotta a facile

metodo per mezzo di osservazioni a profitto de’ studenti, impressa em Veneza (em 1787,

posteriormente republicada em 1800) e na qual foi acrescentado um Trattato di Meccanica,

despertou a curiosidade pelo seu caráter incomum. A partir de uma pesquisa preliminar, um

artigo dos pesquisadores italianos Massimo Corradi e Valentina Filemio (2005) – I

fondamenti della Meccanica medievale e il “Trattato di Meccanica” nella Architettura di

Jacopo Barozzi da Vignola – forneceu subsídios iniciais para seu entendimento. Embora

tenha escapado aos autores a coincidência entre as “cinco ordens” da Regola e as “cinco

máquinas” do Trattato – alavanca, guincho, polia, cunha e rosca – Corradi e Filemio

assinalam a concordância entre a reductio in terminis lingüística e a estandardização

construtiva operada por Vignola em relação ao uso das ordens na arquitetura e o caráter

elementar do Trattato di Meccanica, com seus princípios e máquinas simples, enquanto

fundamentos da “estática”.

A mecânica clássica

Do ponto de vista especulativo, as bases da mecânica clássica foram lançadas por

Aristóteles (384-322 a.C.) que, em sua Física, destacava a importância da observação da

natureza (phýsis) e dos estudos sobre o movimento dos corpos – Vitrúvio retoma o tema no

primeiro capítulo do décimo livro de De Architettura Libri Decem. Contudo, será com as

Quaestiones Mechanicae, inicialmente atribuídas ao filósofo, e, para alguns, elaboradas pelo

pensador pitagórico Arquitas de Tarento (Winter, 2007), contemporâneo de Platão (García,

2000, p. 59), que se alcançará um maior desenvolvimento. Para Winter (2007, p. iv),

1 Dedicado a Vilanova Artigas, no centenário de seu nascimento.

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“Vitrúvio sumariza as Questões Mecânicas no interior do seu [livro] sobre máquinas”, o

citado livro X de De Architettura, com versões simplificadas das questões 3 a 6, 20, 26 e 27.

Nesse sentido, poderia se sintetizar a mecânica clássica através das contribuições de

Aristóteles, das Questões Mecânicas e do trabalho posterior de Archimedes (287-212 a.C.),

com seu Tratado sobre o equilíbrio no plano, por exemplo, somados aos comentários de

Vitrúvio – diga-se de passagem, aliás, a coerência da Regola/ Trattato não seria estranha ao

arquiteto/ engenheiro romano.

Tomando como parâmetro as Questões Mecânicas, deve-se ao seu autor a definição mais

antiga sobre as máquinas2:

quando é necessário fazer algo contra a natureza, há perplexidade

diante da dificuldade, então a arte (techne) é requerida. Chama-se a

esta solução da perplexidade um mechane3 (...). É assim que o

menor supera o maior e coisas com pouco impetus movem grandes

pesos” (Winter, 2007, p. 1; García, 2000)

Ou como aparece em uma legenda de uma das imagens do Trattato di Meccanica: gravitas

ponderis arte levis.

Figura 1: imagem do Trattato di Meccanica.

2 A definição de Vitrúvio em De Architettura Libri Decem é mais específica: máquina seria a “aparelhagem de

madeira que proporciona as maiores vantagens para a movimentação de cargas” (apud MACIEL, 2006, Livro X,

capítulo I, 1).

3 De onde as palavras máquina/ mecanismo e que significa “recurso”, “astúcia”.

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As Questões procuram explicar toda a mecânica através do movimento circular: “o círculo

contém o princípio fundamental de todas estas matérias”; e, mais adiante, ao tratar das

máquinas simples: “tudo sobre a balança é resolvido no círculo; tudo sobre a alavanca é

resolvido na balança e praticamente tudo sobre o movimento mecânico é resolvido na

alavanca” (Winter, 2007, p. 2; García, 2000). Para Vitrúvio:

Recebendo assim estes instrumentos movimento através de linhas

retas ao centro e de descrições circulares, é assim também que,

segundo as mesmas leis, girando em volta de um eixo retilíneo e por

rotação de círculo, produzem o efeito para que foram planejados os

carros de duas ou quatro rodas, os tambores, as rodas, os parafusos,

os escorpiões, as balistas, as prensas de lagar e outras máquinas

(VITRÚVIO, apud MACIEL, 2006, Liv. 10, Cap. 3, 9)

Segundo os comentários iniciais das Questões, um círculo qualquer de diâmetro AB, girando

em sentido horário, irá girar em sentido contrário, anti-horário, quaisquer outros círculos que

o toquem – seus próprios pontos A e B, com efeito, movem-se em direções distintas (figura

2).

Figura 2: Quaestiones Mechanicae. Fonte: WINTER, 2007.

A estes comentários segue-se, na questão ou problema 1, a definição do paralelogramo das

velocidades (figura 3), a partir da observação de que quando um círculo se move ao redor

do centro, um ponto na extremidade se movimentará mais rápido, percorrendo maior

quantidade de espaço, do que um ponto próximo àquele.

Figura 3: Quaestiones Mechanicae. Fonte: WINTER, 2007.

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Nos demais problemas comentam-se: a balança (1-2,10,20); a alavanca (3); o remo, o timão

e a vela (4 a 7); os tornos e os cabrestantes (13); a cunha (17); a roldana (9, 18); e as

tenazes (21-22). Vitrúvio retoma o comentário de tais máquinas no terceiro capítulo do

décimo livro e o Trattato di Meccanica dedica-se em grande parte a elas, advertindo que, se

“muitos engenheiros têm inventado muita sorte de máquinas, ou aplicações de potência ao

peso, elas se reduzem a cinco fundamentais”: a alavanca, o guindaste, a roldana, a cunha e

o parafuso (apud VIGNOLA, 1787, p. 37).

Renascimento: da Vinci e a mecânica

Como sugere o trabalho de Corradi e Filemio, a mecânica clássica, tal como sumarizada

acima, constituiria “os fundamentos da Meccanica medieval”. A superação deste paradigma,

para utilizar a terminologia de Thomas Kuhn em “A estrutura das revoluções científicas”,

viria somente com Galileu Galilei (1564-1642). Se, durante a Idade Média, é possível

acompanhar o desenvolvimento da mecânica do ponto de vista teórico – lembre-se De

ratione ponderis (século XIII) de Jordanus de Nemore (Giordano Nemorario), por exemplo –

desde a perspectiva do canteiro, entretanto, a tarefa é mais complicada. Claro está, que o

tema interessará a Villard de Honnecourt, como no caso de sua máquina de movimento

perpétuo (lâmina 9 de seu caderno de notas – ver também a lâmina 38) ou as que aparecem

nas lâminas 44 e 45 (HONNECOURT, 1991); mas, se as descrições de Vitrúvio ficaram

privadas de esquemas explicativos, os desenhos de Villard assemelham-se ao “Mutus

Liber”, carecendo de comentários mais esclarecedores.

O passo ou estágio seguinte nesta tentativa de rastrear a tradição mecânica seria dado por

Filippo Brunelleschi (1377-1446). Não parece ser coincidência que a cúpula de Santa Maria

del Fiore apóie-se em parte na tradição construtiva medieval e avance em relação a herança

clássica. Uma fonte importante, neste sentido, uma vez que Brunelleschi não deixou obra

sistematizada, são os estudos de Gustina Scaglia (1991) que descobriu o caderno de

desenhos, com as “máquinas” do engenheiro-arquiteto, realizado por Buonaccorso Ghiberti

– nada mais nada menos que o neto de seu arqui-rival, Lorenzo Ghiberti.

Leonardo da Vinci estudou os desenhos realizados por Buonaccorso Ghiberti sobre as

máquinas utilizadas por Brunelleschi na cúpula de Santa Maria del Fiore. Com efeito,

Leonardo chegou mesmo a acompanhar parte dos estágios finais da obra, com a colocação

da esfera sobre o lanternim, realizada por Andrea del Verrocchio (c. 1468), do qual era

aprendiz na época.

Para Paolo Galuzzi (1987), um importante conjunto de estudos de da Vinci, datado de fins

do século XV, constitui uma contribuição à mecânica na qual é impossível encontrar

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quaisquer precedentes nos trabalhos de seus contemporâneos. Ao que parece, Leonardo

chegou a elaborar um tratado sobre os “elementos de mecânica” (intitulado elementi

macchinali) que, infelizmente, se perdeu. Por outro lado, a descoberta por Ladislau Reti,

entre outros, dos códices de Madrid, em 1966, permitiu uma melhor visão sobre a obra

restante. Partindo do legado da mecânica clássica e medieval, ainda segundo o

pesquisador, para quem “seguindo o modelo da estática clássica e medieval, o papel da

análise geométrica era crucial para Leonardo” (GALUZZI, 1987, p. ii) – ver seção anterior –

seu tratado sobre mecânica pretendia cuidar tanto dos aspectos teóricos quanto dos

práticos, isto é, da aplicação, na prática, da teoria.

Não se tem notícia de que Leonardo conhecia as “Questões Mecânicas”, publicadas em

grego em 1497 (Veneza, Aldo Manuzio) e em latim em 1517 e 1525. Da Vinci anotava

palavras em grego (PEDRETTI, 2004, p. 161), mas dominava mal o latim. Por outro lado,

“Bramante e Pacioli sempre estavam por perto, em Milão” (CHASTEL et. al., 2004, p. 136)

fornecendo traduções e suas fontes (clássicas) comprovadas incluíam Aristóteles e

Arquimedes. Galuzzi cita ainda o Elementa Jordani super demonstrationem ponderis como

uma influência (medieval) a ser notada. Além destas, poderiam ser apontados ainda os

trabalhos de alguns contemporâneos seus como os de Francesco di Giorgio Martini ou de

pensadores árabes como Al-Kindi e seu Tratado das Proporções.

Um exemplo de como da Vinci aplicava os conhecimentos adquiridos em seus estudos pode

ser discutido a partir de seu projeto para uma “Ponte de Emergência” ou “Ponte

Autoportante” (Códice Atlântico v071). Constituída através de uma espécie de “módulo

estrutural elementar”, enquanto configuração básica de elementos estruturais, a saber: duas

“barras” longitudinais que se apóiam em duas outras barras transversais nas extremidades,

sendo que, sobre as primeiras, uma terceira barra transversal é colocada ao centro (figura

4). Trata-se, de certa forma, de uma inversão da lógica da alavanca. Se esta é composta por

barra, apoio, motor (potência) e móvel (peso), admitindo o equilíbrio entre potência e peso,

invertendo, simplesmente, tal “estrutura” e duplicando-a, tem-se o referido módulo da ponte:

a barra transversal superior central assinala o ponto onde uma força ou potência será

empregada e “equilibrada” pelas barras transversais inferiores, assimiladas a apoios; um

segundo e um terceiro módulos “girados” ao redor de um centro virtual, são colocados à

direita e à esquerda do primeiro, de maneira que a barra transversal superior central deste

atue como apoio juntamente com o solo, ao passo que as barras transversais inferiores nas

extremidades do módulo inicial passem a ser, respectivamente, a barra central dos módulos

esquerdo e direito.

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Figura 4: Ponte de Emergência de Leonardo da Vinci. Esquemas do autor.

Nessa mesma direção, talvez não constitua um exagero especular sobre uma via de mão

dupla entre sua pesquisa “científica” e a artística, podendo-se até mesmo cogitar sobre a

influência de seus conhecimentos mecânicos na composição de suas pinturas. Caso de A

Virgem, Sant’Ana e o Menino com o cordeiro (1510), onde parece que Sant’Ana, apoiando-

se sobre uma rocha, funciona como fulcro de uma balança que mantém o equilíbrio entre o

instinto maternal de Santa Maria e os desígnios divinos em relação ao cordeiro de Deus,

símbolo da Paixão de Cristo (CHASTEL et. al., 2004, p. 38).

A anatomia das máquinas

“A natureza não utiliza contrapesos”

Leonardo da Vinci

Permanecendo neste registro, a contribuição de Leonardo da Vinci configuraria a

atualização do conhecimento da Antiguidade Clássica, somada às especulações de eruditos

da Idade Média e alguns contemporâneos, dificilmente ultrapassando, no campo prático,

Filippo Brunelleschi. É o caso de seu estudo sobre o uso de polias (ver, por exemplo, o

Códice Atlantico F396r – que examina uma pullegia grande), já descrito por Vitrúvio que, ao

falar da técnica das roldanas, menciona os dispositivos trispastos, com três roldanas, e

pentapastos, com cinco, ambos utilizados por da Vinci.

É tentador ver da Vinci como inventor do submarino e do helicóptero ou “precursor da

robótica”. Contudo, mais do que por descobertas sensacionais, como alerta Galuzzi,

Leonardo deve levar o crédito pela tentativa de unir duas tradições da mecânica: a tradição

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clássica e erudita medieval que, com exceção das Questões Mecânicas discutidas acima e

de passagens da Física de Aristóteles, não se preocupava com as aplicações práticas do

que tratava; e a tradição das botteghe, das oficinas e ateliers de artistas e artesãos. Reunia,

assim, ciência especulativa e experimentação, teoria e prática. Esta parece ser a mesma

intenção do editor do Trattato di Meccanica, “il che, spero, non sarà nè discaro, nè affatto

inutile, almeno a quelli, i quali di quel che fanno, tuttochè bene lo facciano, per sola pratica

facendolo, non sanno render ragione” (apud VIGNOLA, 1787, p. 6)

Outro ponto importante para a discussão sobre ordens/mecânica/Vignola/da Vinci é o fato

de que Leonardo revolucionou a ilustração científica, colocando sua habilidade com o

disegno a serviço de uma apresentação didática de suas pesquisas, propostas e invenções.

Leonardo não apenas irá observar a natureza e o movimento dos corpos, como procurará

entender como os corpos da natureza, os animais, por exemplo, se movimentam. Caso do

Códice sobre o Vôo dos Pássaros, mas também de toda sua enorme pesquisa sobre

anatomia, através, principalmente, da técnica da dissecação. Seguindo, mais uma vez, as

pistas de Galuzzi, da Vinci utilizará a “técnica da dissecação” como forma de apresentação

ou representação em seus desenhos de máquinas, onde “tais instrumentos serão

apresentados sem [seus envoltórios] externos que limitam a vista daqueles que os

estudam”4; elaborando quase como um catálogo de seus componentes ou “órgãos”.

Para Carlo Pedretti,

o uso da ilustração constitui a maior contribuição de Leonardo aos

tratados científicos do século XVI, o que será possível reconhecer

posteriormente nos tratados de arquitetura e anatomia, por exemplo,

o de Sebastiano Serlio e o de Andrea Vesalio, sem contar os livros

de máquinas, desde o de Giovanni Branca ao de Agostino Ramelli,

além da monumental obra de Ulisse Aldrovandi sobre as ciências

naturais (PEDRETTI, 2004, p. 160)

Assim, no Trattato di Meccanica, de maneira semelhante, “cada máquina através da sua

representação torna-se uma ferramenta para a compreensão do processo especulativo, que

é a base da formulação do princípio mecânico” (CORRADI, FILEMIO, 2005, p. 293).

4 No original: “e tali strumenti si figureranno in gran parte sanza le loro armadure o altra cosa che avessi a

impedire l’occhio di quello che le studia”

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Figura 5: imagem do Trattato di Meccanica.

Uma das imagens mais emblemáticas a respeito desta confluência de interesses e

pesquisas em Leonardo da Vinci talvez seja seu homem vitruviano: o homem como medida,

em proporção (harmonia) com um cosmos regido por leis geométrico-matemáticas, mas em

movimento potencial...

Figura 6: o homem vitruviano de Leonardo da Vinci.

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Da Vinci e a arquitetura

Leonardo da Vinci tinha uma compreensão dos edifícios não apenas como estruturas

estáticas, definidas por proporções precisas, mas como máquinas em equilíbrio, sob a ação

de forças variadas (GALLUZZI, 1987). Concebia, assim, não somente um sistema universal

de correspondências e harmonias geométricas e matemáticas, mas um sistema de

processos e funções baseado no movimento e no equilíbrio, nas regole da mecânica e na

analogia com funcionamento dos organismos vivos.

Novamente, parece tentador imaginar da Vinci antecipando a geometria fractal, com suas

propostas arquitetônicas onde uma mesma figura ou organização geométrica aparece

“trans-escalarmente”, isto é, em mais de uma escala – algo que, tendo em vista suas

pesquisas paralelas em geometria, mecânica e anatomia, poderia ter constituído, de fato,

um insight – não fosse o fato de que é possível verificar situações semelhantes em toda a

arquitetura do Renascimento, como é o caso da utilização de frontões de tamanhos variados

para situações distintas (frontispícios, portas, aberturas, etc.). Há quem aponte para sua

capacidade de transmutação do padrão de uma forma básica em direção a uma série de

formas diversificadas, quase como uma fórmula científica em uma progressão do simples ao

complexo (MARÉ, 2012) – ver discussão anterior sobre a proposta para uma de suas

pontes. Do ponto de vista analítico, o raciocínio inverso, com efeito, era realmente utilizado

por ele: o arco é “uma força originada de duas fraquezas, pois o arco nos edifícios é

composto por dois segmentos de um círculo, cada um dos quais, sendo fraco em si mesmo,

tende a cair; mas ao opor esta tendência um do outro, as duas fraquezas combinadas

formam uma força” (apud MARÉ, 2012, p. 63).

Que possa haver algum tipo de contaminação ou, de modo análogo ao que foi escrito linhas

acima, uma via de mão dupla entre sua pesquisa científica e a arquitetônica, é algo

razoavelmente admissível. Maré (2012) aponta uma sensibilidade próxima ao Barroco,

quando vemos lado a lado suas propostas arquitetônicas e seus projetos de máquinas –

alguns de seus “edifícios” têm, verdadeiramente, alguma semelhança com imensos

“mecanismos”. Esta, aliás, constitui uma característica que o distingue de Michelangelo que,

em alguns projetos de fortificações, propôs analogias biomórficas (TOLNAY, 1940). A base

de estudos geométrico-mecânicos e anatômico-fisiológicos de da Vinci, desde o ponto de

vista especulativo, conduzia-o a ultrapassar as analogias meramente formais, na tentativa

de entender o funcionamento dos vários elementos, sejam órgãos ou peças de máquinas,

em um sistema ou organismo submetido a leis identificáveis.

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Figura 7: detalhe de manuscrito de Leonardo da Vinci com propostas arquitetônicas e de máquinas.

Fonte: PEDRETTI, 2004.

Seu apego às estruturas octogonais/circulares centralizadas, possuía relação, de um lado,

com a cúpula de Santa Maria del Fiore de Brunelleschi – certamente, um precedente

identificável no caso de seu projeto para o tribúrio da Catedral de Milão, em 1487; por outro,

a maioria dos estudiosos costuma aproximar as especulações de da Vinci da arquitetura

romana, Bramante inevitavelmente. De qualquer forma, uma possível antecipação da

sensibilidade barroca, sob o ponto de vista de certa “movimentação” observada em suas

propostas, não seria inadmissível. Basta lembrar que a voluta, um tema barroco

característico, foi “inventada” por Alberti – Templo Malatestiano, Rimini (1450-61), Santa

Maria Novella, Florença (1458-71).

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Considerações provisórias

Ex fabrica et ratiocinatione

Vitrúvio

Retomando a discussão sobre o Trattato di Meccanica, Corradi e Filemio (2005, p. 289)

assinalam que este:

como a linguagem vitruviana da firmitas5... retoma os temas da

mecânica antiga – pré-galileiana, aristotélica e arquimediana – onde

os princípios elementares e as máquinas simples são os

instrumentos indispensáveis para a compreensão do vasto mundo da

mecânica aplicada à construção; assim como a linguagem de Vignola

desnuda-se do aparato formal que distingue a tratadística

Renascentista, para tornar igualmente “puros” e livres de elementos

complexos os cânones e regras do bom construir.

Os textos da mecânica clássica/medieval – as contribuições de Aristóteles e de Archimedes,

as Questões Mecânicas, os manuscritos medievais como De ratione ponderis e Elementa

Jordani super demonstrationem ponderis – constituiriam a base “científico-literária”, o

húmus, que alimentaria “o cânone construtivo no auge no momento da publicação da

Regola de Vignola”.

Seguindo o raciocínio proposto pelos autores, poderia ser dito que as Ordens e seu sistema

de proporções constituem os fundamentos indispensáveis para a compreensão do vasto

mundo da “beleza” (venustas) aplicada à construção. Beleza esta que passa a ser, a partir

de então, associada a uma clareza absoluta na apresentação de sua anatomia

geometrizada. E mais, metaforicamente, as Ordens, enquanto sistema de beleza/ proporção

baseado na coluna, constituiriam um cânone construtivo, daí a importância de sua “fixação”

(estandardização) por Vignola.

Relembre-se: a primeira edição da Regola (1562) antecede ao nascimento de Galileu Galilei

(1564). Portanto, é anterior a substituição por ele iniciada da referida base “científico-

literária”, do húmus, subjacente ao “cânone construtivo” Renascentista: “na arquitetura

antiga e medieval era mais importante para os construtores garantir o equilíbrio da estrutura

5 Duas frases de Vitrúvio abrem o conjunto de imagens no Trattato. A citada ex fabrica et ratiocinatione e

Callimacus ad hoc exemplar Columnas apud Corinthios fecit.

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do que conhecer a implicação interna em termos de resistência” (CORRADI, FILEMIO,

2005, p. 292).

Finalmente, se escapou aos autores italianos a coincidência entre as “cinco ordens” da

Regola e as “cinco máquinas” do Trattato, eles não deixam de assinalar o contraponto entre

o tratamento tripartido das Ordens em base/ fuste/ capitel, arquitrave/ friso/ cornija, etc. e o

sistema mecânico elementar da alavanca, potência/ fulcro/ resistência, como instrumento

para interpretação dos vários tipos de alavancas (ver figura 5) e base para a compreensão

do princípio de trabalho virtual e do equilíbrio de forças/ momentos, como fundamento da

estática.

Fica então constatada a pertinência da versão setecentista da Regola, “L’Architettura di

Jacopo Barozzi Vignola ridotta a facile metodo per mezzo di osservazioni a profitto de’

studenti” e seu correltato “Trattato di Meccanica”. Subjacente tanto a uma quanto ao outro

estaria, portanto, a definição dos princípios fundamentais tanto da arquitetura - as ordens e

seu sistema de proporções; quanto da mecânica - as cinco máquinas simples e a proporção

entre potência e peso para manter algo em equilíbrio ou movimentá-lo.

Se, com Galileu Galilei e, principalmente, a partir do Setecentos a Mecânica e a Resistência

dos Materiais irão impor-se como disciplinas necessárias para a Arte de Construir,

conduzindo ao cisma entre engenharia e arquitetura, durante o Renascimento a coadunação

Ordens/ Mecânica, como procurou-se mostrar acima, é absolutamente coerente com a

mentalidade e o ambiente intelectual. A compreensão que Leonardo da Vinci irá

desenvolver, a respeito dos edifícios como organismos, como máquinas que, sob a ação de

forças, mantém-se em equilíbrio, não obstante, aponta para uma tradição de pensamento

que não se enquadra perfeitamente na ideia de uma Renascença focada apenas em ordem,

proporção, harmonia.

Nesse registro, a História da Ciência e da Tecnologia permite identificar uma tradição outra,

iniciada modernamente com Filippo Brunelleschi, continuada por Leonardo e que confere

pleno sentido a Regola/ Trattato de 1787, não como enxerto setecentista e sim como algo

absolutamente coerente com a época de Vignola.

Adenda urbanística

Para Giulio Carlo Argan (1992), ab omni materia separatae, Leon Baptista Alberti em De re

aedificatoria contrapõe-se a Vitrúvio, em De Architettura Libri Decem, cujo tratado refere-se

à Arte da Construção, colocada a serviço do Império Romano, isto é, cuja fundamentação

ideológica confunde-se com os desígnios do imperador. Em sentido inverso, o tratado de

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Alberti proporia a interpretação/ comunicação, em formas visíveis, do significado da polis:

uma política enquanto construção da cidade através de uma nova arquitetura.

Tendo sua formação inicial no ambiente da cultura humanista florentina ao redor de Marsílio

Ficino (1433-99) e, posteriormente, complementando-a na atmosfera mais pragmática da

Milão dos Sforza, especula-se sobre o silêncio de Leonardo da Vinci a respeito de Alberti.

Quinhentos anos depois, mais significativo do que averiguar tal silêncio, parece ser a

percepção de que De re aedificatoria de Alberti talvez ofereça uma visão complementar a

De Architettura de Vitrúvio. Não existe urbanismo sem construção (fabrica) efetiva da

cidade, do ambiente. As antevisões de Leonardo da Vinci sobre as questões e os eventuais

problemas causados pelos diferentes fluxos urbanos, suas propostas com circulações em

vários níveis, por exemplo, são complementares a tentativa de Alberti de uma “ciência

urbana” – além de anteciparem-se a Le Corbusier. Nesse sentido, por exemplo, deve ser

lembrado seu esquema para o desenvolvimento da área compreendida entre São Lorenço e

São Marcos, em Florença. Tal esquema, posteriormente, será reinterpretado por Giorgio

Vasari (1511-74) em seu projeto para o trecho compreendido entre o Palazzo Vecchio e o

Rio Arno, com a criação da Galleria del Uffizi.

Talvez seja esta a principal lição da Regola/ Trattato, relembrando a conhecida frase do

arquiteto Jean Mignot em meio ao debate com os “teimosos” construtores da Catedral de

Milão, se ars sine scientia nihil est, a recíproca também parece ser verdadeira.

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