biblioteca de ciÊncias sociais

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 BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS SOCIAIS ROSA LUXEMBURG A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL Estudo sobre a Interpretação Económica do Imperial ismo Tradução de MONIZ BANDEIRA ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO Traduzido da edição espanhola publicada pela EDITORIA L CENIT, de Madrid, tradução de J. Pérez Bances, cotejada em alguns pontos com a edição francesa da LIBRAIRIE FRANCOIS MASPERO, de Paris, tradução de Irene P etit. capa de ERIÇO 1970 Os direitos desta tradução são reservados por ZAHAR EDITORES Rua México, 31 - Rio de Janeiro Impresso no Brasil ÍNDICE

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BIBLIOTECA DE CINCIAS SOCIAIS

ROSA LUXEMBURG

A ACUMULAO DO CAPITAL

Estudo sobre a Interpretao Econmica do Imperialismo

Traduo de MONIZ BANDEIRA

ZAHAR EDITORES

RIO DE JANEIRO Traduzido da edio espanhola publicada pela EDITORIAL CENIT, de Madrid, traduo de J. Prez Bances, cotejada em alguns pontos com a edio francesa da LIBRAIRIE FRANCOIS MASPERO, de Paris, traduo de Irene Petit.

capa de ERIO

1970

Os direitos desta traduo so reservados por

ZAHAR EDITORES Rua Mxico, 31 - Rio de Janeiro

Impresso no Brasil

NDICE

Prlogo

PRIMEIRA PARTE

O PROBLEMA DA REPRODUO

CAP. I - Objeto desta Investigao 11 CAP. II - Anlise do Processo de Reproduo Segundo Quesnay e Adam Smith 27 CAP. III - Crtica da Anlise de Smith 41 CAP. IV - O Esquema Marxista da Reproduo Simples .... 52 CAP. V - A Circulao do Dinheiro 68 CAP. VI - A Reproduo Ampliada 81 CAP. VII - Anlise do Esquema Marxista da Reproduo Ampliada 93 CAP. VIII - Tentativas de Soluo da Dificuldade por Marx .. 110 CAP. IX - A Dificuldade do Ponto de Vista do Processo de Circulao 125

SEGUNDA PARTE

EXPOSIO HISTRICA DO PROBLEMA

PRIMEIRA POLMICA: Controvrsias entre Sismondi-Malthus e Say-Ricardo-MacCulloch

141

CAP. CAP. CAP. CAP.

X - A Teoria Sismondiana da Reproduo XI - MacCulloch contra Sismondi 157 XII - Ricardo contra Sismondi XIII - Say contra Sismondi 175 168

141

CAP.

XIV - Malthus

183

SEGUNDA POLMICA: Controvrsia entre Rodbertus e von Kirchmann 188

CAP. CAP. CAP.

XV - A Teoria da Reproduo de von Kirchmann 188 XVI - Crtica da Escola Clssica por Rodbertus XVII - Anlise da Reproduo por Rodbertus 198 211

TERCEIRA POLMICA: Struve-Bulgakov-Tugan Bara-nowsky contra Vorontsov-Nikolai-on 227

CAP. XVIII - Nova Colocao do Problema 227 CAP. XIX - O Senhor Vorontsov e seu "Excedente" 232 CAP. XX - Nikolai-on 239 CAP. XXI - As "Terceiras Pessoas" e os Trs Imprios de Struve 247 CAP. XXII - Bulgakov e sua Complementao da Anlise Marxista 253 CAP. XXIII - A "Desproporcionalidade" do Senhor Tugan Baranowski 264 CAP. XXIV - O Fim do Marxismo "Legal" Russo 276

TERCEIRA PARTE

AS CONDIES HISTRICAS DA ACUMULAO

CAP. CAP.

XXV - Contradies do Esquema da Reproduo Ampliada 281 XXVI - A Reproduo do Capital e seu Meio Ambiente 298

CAP. XXVII - A Luta contra a Economia Natural 317 CAP. XXVIII - A Introduo da Economia de Mercado 334 CAP. CAP. XXIX - A Luta contra a Economia Rural 343 XXX - Os Emprstimos Internacionais 365

CAP.

XXXI - Protecionismo e Acumulao

392 399

CAP. XXXII - O Militarismo como Campo da Acumulao do Capital

APNDICE: CRTICA DOS CRTICOS OU O QUE OS EPGONOS FIZERAM DA TEORIA MARXISTA 413

Prlogo

A ideia deste trabalho surgiu da Introduo Economia Poltica, obra de divulgao que h muito tempo venho preparando, constantemente interrompida pelas minhas atividades na escola do Partido e pelas campanhas de propaganda. Em janeiro deste ano, aps as eleies para o Reichstag (parlamento alemo), tentei terminar aquele trabalho de divulgao da teoria econmica de Marx, mas me defrontei com uma dificuldade inesperada. No conseguia expor com suficiente clareza o processo global da produo capitalista em seu aspecto concreto, nem seus limites histricos objetivos. Aprofundando-me no assunto, cheguei concluso de que no se tratava simplesmente de uma dificuldade de exposio. A dificuldade envolvia um problema teoricamente relacionado com a doutrina do volume II de O Capital de Marx, e, que, alm disso, se vincula estreitamente com a atual poltica imperialista e suas razes econmicas. Tentei formular com toda exatido cientfica esse problema. Se houvesse conseguido, meu trabalho no teria somente interesse terico puro, mas encerraria, tambm, em minha opinio, certa importncia para nossa luta prtica contra o imperialismo.

ROSA LUXEMBURG

Dezembro de 1912 PRIMEIRA PARTE

O PROBLEMA DA REPRODUO CAPTULO I

Objeto desta Investigao

Um dos maiores servios prestados por Marx Economia Poltica terica foi o seu modo de expor o problema da reproduo do capital social em conjunto. significativo que na histria

da Economia Poltica somente apaream duas tentativas de exposio exata deste problema: no comeo, a do pai da escola fisiocrtica, Quesnay e, no final, a de Karl Marx. Durante o perodo intermedirio, o problema no deixou de preocupar a Economia Poltica burguesa, porm esta no chegou sequer a exp-lo em sua pureza, separado dos problemas semelhantes que com ele se cruzam, nem muito menos a resolv-lo. No obstante, dada a importncia fundamental desse problema, cabe afirmar at certo ponto que somente levando em conta essas tentativas possvel seguir em geral as vicissitudes da cincia econmica.

Em que consiste o problema da reproduo do capital social?

Reproduo, no sentido literal da palavra, simplesmente produo nova, repetio, renovao do processo de produo. E, primeira vista, parece que no se v a necessidade de distinguir o conceito de reproduo do conceito de produo, para todos compreensvel, nem por que se deve empregar para design-lo uma expresso especial. Mas, justamente, a repetio, a renovao constante do processo de produo que comporta um elemento especial, muito importante. Em primeiro lugar, a repetio regular da produo a base e a condio geral do consumo regular e, portanto, da existncia cultural da sociedade humana em todas as suas formas histricas. Nesse sentido, o conceito da reproduo encerra um elemento histrico cultural. A produo no poderia repetir-se, a reproduo no poderia ocorrer, se, como resultado dos perodos de produo 12

anteriores, no ficassem de p determinadas condies tais como instrumentos, matriasprimas, fora de trabalho. Mas, nas fases primitivas da civilizao, quando o homem comea a dominar a natureza exterior, essa possibilidade de renovar a produo depende em maior ou menor escala do acaso. Enquanto a caa e a pesca constituem a base principal da existncia da sociedade, a repetio regular da produo v-se frequentemente interrompida por perodos de fome geral. Em alguns povos primitivos, os requisitos para que a reproduo seja um processo regular repetido encontram muito cedo expresso tradicional e socialmente obrigatria em certas cerimnias de carter religioso. Assim, segundo as minuciosas investigaes de Spencer e Gillen, o culto dos totens dos negros australianos no , no fundo, mais que a tradio cristalizada em cerimnias religiosas de certas medidas, repetidas regularmente desde tempos imemoriais, para aquisio e conservao de sua subsistncia animal e vegetal. Somente o cultivo da terra, a utilizao dos animais domsticos e o rebanho para fins de alimentao tornam, porm, possvel a alternativa regular de produo e consumo, que constituem a nota caracterstica da reproduo. Nesse sentido, o conceito da reproduo encerra algo mais que a mera repetio; ele j implica certo nvel no domnio da natureza exterior pela sociedade ou, em termos econmicos, certo nvel na produtividade do trabalho.

Por outro lado, o processo da produo , em todos os graus da evoluo social, uma unidade formada por dois elementos distintos, embora intimamente relacionados: as condies tcnicas e as sociais, isto , da relao dos homens com a natureza e das relaes dos homens entre si. A reproduo depende em igual grau de ambos os fatres. J dissemos at que ponto ela se acha subjugada s condies tcnicas do trabalho humano e resulta de certo nvel da produtividade do trabalho. No menos decisivas so, porm, as formas sociais de produo dominante. Numa tribo agrria comunista primitiva, a reproduo e todo o plano da vida econmica correro a cargo do conjunto total dos que trabalham e de seus rgos democrticos. A deciso de comear os trabalhos, sua organizao, a busca de condies preliminares matrias-primas, instrumentos e foras de trabalho e, finalmente, a fixao das dimenses e distribuio da reproduo - resultam da colaborao organizada de todos dentro da comunidade. Numa explorao base de escravos ou num feudo senhorial, a reproduo imposta fora e est regulamentada em todos os seus detalhes pelo regime de 13

domnio pessoal, regime que no conhece outra fronteira alm do direito do chefe ou do senhor, dispondo sobre maior ou menor quantidade de fora de trabalho alheias. Na sociedade organizada base da produo capitalista, a reproduo apresenta um aspecto completamente peculiar, como se pode verificar simples vista de certos fenmenos. Em todas as demais formas de sociedade historicamente conhecidas, a reproduo se processa regularmente na medida em que as condies permitem, isto , em que existam os meios de produo e as foras de trabalho necessrios. S influncias exteriores - uma guerra devastadora ou uma grande peste, que despovoam ou provocam o aniquilamento em massa da fora de trabalho interrompem nas civilizaes antigas a reproduo, durante perodos mais ou menos longos. Fenmenos semelhantes ocorrem em parte ou podem ocorrer quando se determina o plano da produo despoticamente. Quando o capricho de um fara do antigo Egito acorrentava, durante anos e anos, milhares de fels empresa de levantar pirmides ou quando, no Egito moderno, um Ismael Pax manda 20.000 fels trabalhar como servos no canal de Suez, ou quando o Imperador Chihoang-ti, fundador da dinastia Tsin, 200 anos antes da era crist, deixava morrer, de fome e esgotamento, 400.000 homens e punha uma gerao inteira para levantar a Grande Muralha da China, na fronteira setentrional de seu imprio, grande extenso de terra ficava sem cultivo e a vida econmica normal se interrompia durante longos anos. Mas essas interrupes do processo de produo decorriam, em geral, da interveno arbitrria de um indivduo. Nas sociedades capitalistas, as coisas ocorrem de outro modo. Durante certas pocas, vemos que, embora havendo todos os meios materiais de produo e todas as foras de trabalho necessrias para levar a cabo a reproduo, as necessidades da sociedade ficam insatisfeitas, a reproduo se interrompe totalmente ou s se desenvolve dentro de limites reduzidos. Aqui, a responsabilidade pelas dificuldades em que tropea o processo da reproduo no provm das intromisses despticas de ningum na vida econmica. Longe disso, a reproduo nesses casos no depende somente das condies tcnicas, mas de uma

condio puramente social: a de que se produzam aqueles artigos que podem contar com a segurana absoluta de encontrar comprador, de ser trocados por dinheiro, e no de qualquer modo, mas com um lucro de tipo usual. O lucro como fim til e determinante , pois, o fator que preside, nessa sociedade, no s a produo, mas tambm a reproduo, no s o processo de trabalho e distribuio 14

dos produtos, mas tambm a questo de saber a dimenso, o alcance e o sentido em que o processo de trabalho h de renovar-se, uma vez terminado o perodo anterior de trabalho. "Se a produo apresenta forma capitalista, apresenta-a tambm, necessariamente, a reproduo."1

O processo de reproduo da sociedade capitalista torna-se, devido ao seu carter puramente histrico, um problema muito singular e complexo. J nas expresses externas do processo de reproduo capitalista percebe-se a sua peculiaridade histrica especfica total, porquanto abrange no somente a produo, mas tambm a circulao (processo de troca), unindo-as num todo. A produo capitalista essencialmente uma produo de incontveis produtores privados sem plano regulador algum, sendo a troca a nica ligao social que os vincula. Portanto, para a determinao das necessidades sociais, a reproduo s pode contar com as experincias do perodo de trabalho anterior; essas experincias, porm, so particulares, de produtores individuais que no chegam a constituir uma expresso social geral. No so experincias positivas e diretas sobre as necessidades da sociedade, mas experincias indiretas e negativas, que unicamente permitem, partindo do movimento dos preos, tirar concluses sobre o excesso ou carncia dos produtos elaborados em relao com a demanda. A reproduo se renova sempre pelos produtores privados, aproveitando essas experincias extradas do perodo de produo anterior. Assim, no perodo seguinte s pode verificar-se, igualmente, um excesso ou uma falta, seguindo cada ramo da produo seu prprio caminho, podendo resultar em excesso em uns e escassez em outros. Levando em conta, sem dvida, a mtua dependncia tcnica de quase todos os ramos da produo, um aumento CTI uma diminuio dos valores de uso produzidos em alguns dos grandes ramos diretores provoca o mesmo fenmeno na maior parte dos restantes. Assim, ocorre que regularmente uma superabundncia geral sucede a uma falta geral de produtos em relao com a demanda da sociedade. Tudo isso faz que a reproduo na sociedade capitalista adote uma forma peculiar, diferente de todos os tipos histricos de produo que a precederam. Em primeiro lugar, cada um dos ramos produtivos realiza um movimento at certo ponto independente que, de tempos em tempos, provoca interrupes mais ou menos longas na reproduo. Em segundo lugar, os desvios da reproduo em

Marx, O Capital, I, 4.a ed., 1890, pg. 509.

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diversos ramos com respeito s necessidades sociais se somam numa crise geral, provocando, periodicamente, uma interrupo geral da reproduo. A reproduo capitalista oferece, portanto, uma fisionomia muito peculiar. Enquanto a reproduo, em qualquer das formaes econmicas anteriores - sem considerar as violentas intervenes externas - transcorre como um crculo sem interrupo, uniforme, a reproduo capitalista s pode ser representada para empregar uma conhecida expresso de Sismondi - como uma srie contnua de espirais, cujas curvas, pequenas a princpio, aumentam cada vez mais e se tornam considervelmente grandes, no final, quando se verifica uma contrao e a prxima espiral comea de novo com curvas pequenas, para percorrer o mesmo ciclo, at que este se interrompa. A periodicidade com que ocorrem a maior extenso da reproduo e sua contrao e interrupo parcial, isto , o que se designa como o ciclo peridico de restabelecimento ou conjuntura baixa, prosperidade ou conjuntura alta e crise, a peculiaridade mais evidente da reproduo capitalista. muito importante, porm, determinar, antecipadamente, que, se a periodicidade de conjunturas de prosperidade e de crise representa um elemento importante da reproduo, ela no constitui o problema da reproduo capitalista em sua essncia. As alternativas peridicas de conjuntura ou de prosperidade e de crise so as formas especficas que adota o movimento no sistema capitalista, mas no o prprio movimento. A fim de expor em seu verdadeiro aspecto o problema da reproduo capitalista, temos que prescindir, pelo contrrio, das alternativas peridicas de prosperidade e de crise. Por estranho que parea, esse um mtodo perfeitamente racional. Mais ainda: o nico mtodo cientfico possvel de investigao. Para focalizar e resolver, em sua pureza, o problema do valor temos que prescindir das oscilaes dos preos. Vemos que a economia vulgar trata sempre de resolver o problema do valor com base nas oscilaes da oferta e da procura. A Economia clssica, de Smith a Marx, pelo contrrio, demonstrou que as oscilaes interdependentes entre a oferta e a procura s podem explicar como o preo se desvia do valor, mas no o prprio valor. Para encontrar o valor das mercadorias, temos que abordar o problema, supondo que a oferta e a procura se equilibram, isto , que o preo e o valor das mercadorias coincidem. O problema cientfico do valor, portanto, comea justamente ali onde cessa a ao da oferta e da procura. O mesmo sucede com o problema da reproduo do capital social no seu conjunto. As conjunturas 16

de prosperidade e de crise peridicas fazem que a reproduo capitalista via de regra, oscile em torno das necessidades e do poder aquisitivo da sociedade, afastando-se delas algumas

vezes por cima e outras vezes por baixo e chegando quase paralisao total do processo. Quando se toma, entretanto, um perodo considervel, todo um ciclo com diferentes conjunturas de prosperidade e de crise, ou seja, de suprema tenso da reproduo e de relaxamento e interrupo, vemos que se equilibram, e a mdia do ciclo nos d a magnitude mdia da reproduo. Essa mdia no s um produto mental, terico, mas tambm um fato real, objetivo. Pois, apesar das intensas oscilaes das conjunturas, apesar das crises, as necessidades da sociedade se satisfazem bem ou mal, a reproduo segue o seu caminho ondulante e as foras produtivas se desenvolvem cada vez mais. Como isso se realiza, se prescindimos das alternativas de crises e de prosperidade? Aqui comeam as dificuldades. Alguns tentam resolver o problema da reproduo tomando como ponto de partida a periodicidade das crises, o que prprio, no fundo, da economia vulgar, assim como a tentativa de resolver o problema do valor pelas oscilaes da oferta e da procura. No obstante, veremos como os economistas mostram sempre, sem perceber o seu erro, a tendncia para englobar no problema da crise o problema da reproduo, limitando a perspectiva e afastando-se da soluo. Quando falarmos, adiante, da reproduo capitalista, deve-se entender sempre a mdia resultante das oscilaes ocorridas dentro de um ciclo. A produo capitalista realiza-se atravs de um nmero ilimitado e corrente de produtores particulares, independentes, sem nenhum controle social, salvo a observncia das oscilaes dos preos, e sem outro nexo alm da troca de mercadorias. Como resulta realmente desses movimentos incontveis e desconexos a produo total? Ao colocar assim a questo - e esta a primeira forma sob a qual se apresenta o problema - esquece-se que, nesse caso, os produtores privados no so meros produtores de mercadorias, seno produtores capitalistas, do mesmo modo que a produo total da sociedade no uma produo dirigida, em geral, para a satisfao das necessidades de consumo nem uma simples produo de mercadorias, mas, sim, produo capitalista. Vejamos que alteraes no problema implica esta omisso. O produtor, que no somente produz mercadorias mas tambm capital, est obrigado a produzir, antes de tudo, maisvalia. A mais-valia o fim ltimo e o motivo que impulsiona

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o produtor capitalista. As mercadorias elaboradas, uma vez vendidas, no s devem fornecer aquele capital antecipado, mas um excedente sobre ele, uma quantidade de valor a que no corresponde gasto algum de sua parte. Do ponto de vista dessa criao de mais-valia, independentemente das fbulas que invente para si e para o resto do mundo sobre capital fixo e capital circulante, o capital adiantado pelo capitalista se divide em duas partes: uma, que representa seus gastos em meios de produo, locais de trabalho, matrias-primas, auxiliares etc.; outra, que se inverte em salrios. A primeira parte, que, mediante o processo de trabalho, transfere sem alterao seu valor ao produto, Marx denomina capital constante. A segunda, que se avoluma,

com apropriao de trabalho nopago, criando mais-valia, chama-se capital varivel. A partir desse ponto de vista, a composio do valor de toda mercadoria produzida no sistema capitalista corresponde normalmente frmula:

c+v+m

c expressando o valor do capital constante, isto , a parte de valor incorporada mercadoria pelo trabalho objetivado, a fora de trabalho contida nos meios de produo; v o capital varivel, isto , a parte do capital investida em salrios; m, a mais-valia (Mehrwert), o aumento de valor procedente da parte no-paga do trabalho assalariado. As trs partes do valor achamse reunidas na figura concreta da mercadoria produzida, considerando-se como unidade cada um dos exemplares, assim como a massa total de mercadorias, sejam elas tecidos de algodo ou representaes de ballet, tubos de ferro ou jornais liberais. A produo de mercadorias no constitui um fim para o produtor capitalista, e sim um meio para apropriar-se da mais-valia. Mas enquanto a mais-valia permanece contida na forma concreta da mercadoria, ela intil para o capitalista. Depois de produzi-la, ele necessita realiz-la, transform-la em sua expresso de valor, ou seja, em dinheiro. Para que isso acontea, e o capitalista se aproprie da mais-valia, em sua forma de dinheiro, todo o capital antecipado deve perder a forma de mercadoria e voltar a ele em forma de dinheiro. S ento, quando a massa total de mercadorias for trocada, conforme seu valor, por dinheiro, conseguir-se- o fim da produo. A frmula c -\- v -j- m que antes se referia composio quantitativa do valor das mercadorias se aplica agora do mesmo modo ao dinheiro obtido com sua venda: uma parte (c) 18

restitui ao capitalista suas despesas em meios de produo consumidos, outra parte (v) suas despesas em salrios, a terceira parte (m) representa o restante esperado, isto , o "lucro lquido" em espcie do capitalista.2 Essa transformao do capital, de sua forma original que constitui o ponto de partida de toda produo capitalista - em meios de produo inanimados e vivos (isto , matrias-primas, instrumentos e mo-de-obra, atravs do processo produtivo); destes em mercadorias, mediante a incorporao do trabalho vivo, e, finalmente, em dinheiro, por meio do processo de troca, numa quantidade ainda maior que a lanada circulao na etapa inicial; essa rotao do capital no apenas necessria para a produo e apropriao da mais-valia. A verdadeira finalidade e impulso motriz da produo capitalista no conseguir maisvalia em geral, numa s apropriao, em qualquer quantidade, mas de forma ilimitada, em quantidade crescente. Isso, porm, no pode realizar-se mais que pelo meio mgico enunciado: pela produo capitalista, isto , pela apropriao de trabalho assalariado no-pago no processo de produo das mercadorias e pela venda das mesmas. por isso que a produo constantemente renovada, a reproduo como fenmeno regular, constitui, na sociedade capitalista, um elemento totalmente novo, desconhecido nas formaes econmicas anteriores. Em todos os demais modos de produo historicamente

conhecidos, o elemento determinante da reproduo so as necessidades da sociedade, sejam estas as necessidades de consumo, da totalidade dos trabalhadores, democraticamente estabelecidas numa cooperativa agrria comunista, ou as necessidades de uma sociedade de classes antagnicas, de uma economia baseada na escravido, num feudo despoticamente criado etc. No sistema capitalista, o produtor individual - e somente dele aqui se trata - no considera as necessidades da sociedade, sua capacidade de consumo. Para ele s existe a demanda com poder aquisitivo e este unicamente como fator imprescindvel para a realizao da mais-valia. Por tudo isso, a produo de mercadorias para o consumo, que satisfaam as necessidades permitidas pelo poder aquisitivo da sociedade, um mandato iniludvel para o capitalista individual, obrigando-o a renovar

2 Nesta exposio supomos que a mais-valia idntica ao lucro do empresrio, o que certo com referncia produo total, que a que unicamente nos interessa em seguida. Tambm prescindimos da diviso da mais-valia em seus elementos: lucro do empresrio, juros do capital, renda da terra, j que carece de importncia para o problema da reproduo.

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constantemente a produo; mas tambm um desvio do ponto de vista do impulso motriz propriamente dito, que , repetimos, a realizao da mais-valia. O roubo da mais-valia, trabalho nopago, o que na sociedade capitalista faz da reproduo em geral um perpetuum mobile. De outro lado, a reproduo, cujo ponto de partida no sistema capitalista sempre o capital, e o capital em sua forma pura de valor, isto , em sua forma de dinheiro, s pode seguir seu curso quando os produtos do perodo anterior, as mercadorias, se transformam por sua vez em dinheiro, mediante a venda. Para os produtores capitalistas, portanto, a primeira condio do processo reprodutivo a realizao das mercadorias fabricadas no perodo de trabalho anterior. Focalizemos agora outro aspecto substancial do problema. A determinao da grandeza do processo reprodutivo depende - no sistema econmico capitalista - do arbtrio e do critrio do empresrio individual. Seu impulso a apropriao da maisvalia em progresso geomtrica. Dessa forma, maior rapidez na apropriao da mais-valia s possvel em virtude de um incremento na produo capitalista que a cria. Na produo de mais-valia, a grande empresa encontra-se em todos os sentidos em posio vantajosa diante da pequena empresa. Assim o sistema capitalista no s gera uma tendncia permanente produo geral, mas tambm ao incremento constante do processo reprodutivo, renovando-se a produo em escala sempre crescente.

H algo mais. No sistema capitalista no s a busca da mais-valia em si o que impulsiona incessantemente a reproduo. O processo reprodutivo transforma-se numa exigncia, numa condio de existncia econmica iniludvel para os capitalistas individuais. Sob o regime da concorrncia, a mais importante arma do capitalista individual, em sua luta pelo mercado, o barateamento das mercadorias. Mas todos os mtodos duradouros para abaixar os custos de produo das mercadorias - que no conseguem, pela reduo dos salrios ou pelo prolongamento da jornada de trabalho, um aumento da mais-valia e podem tropear com diversos obstculos - resolvem-se numa ampliao da produo. Quer se trate de poupar instalaes e instrumentos, quer de usar meios de produo de maior rendimento, quer de substituir em grande escala o trabalho manual por mquinas, quer de aproveitar rapidamente uma oportunidade favorvel do mercado para adquirir matrias-primas baratas, em todos os casos a grande empresa oferece vantagens diante da pequena e da mdia. 20

Essas vantagens aumentam proporcionalmente extenso da empresa. Por essa razo a prpria concorrncia impe s outras empresas, necessariamente, um progresso anlogo ao realizado por uma parte das exploraes capitalistas ou, pelo contrrio, as condena ao enfraquecimento e extino. Resulta assim uma tendncia incessante a ampliar a reproduo que se estende mecanicamente, como as ondas, sobre toda a superfcie da produo privada.

Para o capitalista individual o incremento da reproduo ocorre quando uma parte da maisvalia apropriada, que se acumula, se transforma em capital. A acumulao, ou seja, a transformao da mais-valia em capital ativo, a expresso capitalista da reproduo ampliada. A reproduo ampliada no uma inveno do capital. Constitui uma regra desde a antiguidade, em toda formao social histrica, na qual se verifica um progresso econmico e cultural. A reproduo simples - a simples repetio invarivel e constante do processo produtivo - certamente possvel e podemos observ-la durante longos perodos da evoluo social. Assim, por exemplo, nas comunidades agrrias, primitivas, o crescimento da populao equilibra-se no pelo aumento gradual da produo, mas pela emigrao peridica, criao de novas comunidades, igualmente reduzidas e auto-suficientes. Igualmente, na ndia ou China, as antigas oficinas de artesos oferecem o exemplo de uma repetio tradicional do processo produtivo, adotando idntica forma e amplitude atravs das geraes. Mas em todos esses casos a reproduo simples um ndice do estancamento econmico e cultural predominante. Todos os progressos decisivos do processo de trabalho e os monumentos de civilizaes mortas, como as grandes obras hidrulicas do Oriente, as pirmides egpcias, as estradas militares romanas, as artes e cincias gregas, o desenvolvimento dos ofcios e as cidades da Idade Mdia, seriam impossveis sem uma reproduo ampliada, pois s o aumento gradual da produo, em maior escala que o das necessidades imediatas, e o crescimento constante da populao e de suas necessidades, criam a base econmica, que pr-requisito indispensvel para todo progresso cultural. Particularmente a troca, e com ela o aparecimento da sociedade

dividida em classes e seus progressos histricos, at o aparecimento do sistema capitalista, tudo isso seria inconcebvel sem reproduo ampliada. Na sociedade capitalista, porm, incorporam-se reproduo ampliada alguns caracteres novos. Em primeiro lugar, ela se converte, como j se disse, numa exigncia iniludvel para o capitalista individual.

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A reproduo simples e, inclusive, o retrocesso na reproduo no se excluem, certamente, do sistema de produo capitalista. Antes constituem momentos em toda crise, depois das tenses, igualmente peridicas, e da reproduo ampliada na conjuntura mxima. O movimento geral da reproduo por cima das oscilaes e alternativas cclicas tende para a ampliao incessante. A impossibilidade de marchar no compasso desse movimento geral significa, para o capitalista, a eliminao da luta pela concorrncia, a bancarrota. Estudemos outro ngulo da questo. Em todas as formaes sociais em que predomine ou exista, com toda a sua fora, uma economia natural - numa comunidade agrria da ndia, numa cidade romana escravista, ou num domnio feudal da Idade Mdia - o conceito e o fim da reproduo ampliada baseiam-se na quantidade de produtos, na massa dos artigos de consumo produzidos. O consumo como fim domina a extenso e o carter tanto do processo de trabalho em particular quanto da reproduo em geral. No sistema capitalista, pelo contrrio, a produo no visa, essencialmente, satisfao das necessidades: seu objetivo imediato a criao do valor que domina em todo o processo da produo e da reproduo. A produo capitalista no produo de artigos de consumo nem de mercadorias em geral, porm de mais-valia. Portanto, para os capitalistas, reproduo significa o incremento da produo de mais-valia. certo que a produo de mais-valia se realiza sob a forma de produo de mercadorias e, em ltima anlise, de produo de artigos para o consumo. Na reproduo, entretanto, esses dois pontos de vista - o da produo de maisvalia e o da produo de artigos para o consumo - separam-se constantemente da produtividade do trabalho. A mesma grandeza de capital e de mais-valia existir aumentando-se a produtividade numa quantidade maior de artigos de consumo. O incremento do processo produtivo e a produo de maior massa de valores de uso ainda no so, por si ss, reproduo no sentido capitalista. Contrariamente, o capital pode, at certos limites, conseguir maior mais-valia, sem alterar a produtividade do trabalho, intensificando o grau de explorao - baixando, por exemplo, os salrios - sem aumentar a quantidade de produtos. Neste como naquele caso, porm, tambm se cria o necessrio reproduo ampliada, a saber: mais-valia, tanto como dimenso de valor quanto como qualidade de soma de meios materiais de produo. Geralmente se consegue o aumento de produo de mais-valia investindo-se mais capital, isto , transformando-se em capital uma parte da mais-valia apropriada. 22

Nesse sentido, indiferente que a mais-valia capitalista se aplique na ampliao da antiga empresa ou se destine a novas exploraes independentes. Portanto, a reproduo ampliada, no sentido capitalista, expressa, especificamente, o crescimento do capital pela acumulao progressiva da maisvalia ou, segundo a expresso de Marx, pela acumulao do capital. A frmula geral da reproduo ampliada sob o regime capitalista , pois, a seguinte:

m

( c + v ) H \-rri

x

sendo m/x a parte capitalizada de mais-valia apropriada no perodo anterior de produo ema mais-valia nova extrada do capital assim acrescido. Essa mais-valia nova se capitaliza por sua vez em parte. O fluxo constante dessa apropriao e capitalizao de mais-valia, que se condicionam mutuamente, constitui o processo de reproduo ampliada no sentido capitalista. Estamos, no entanto, apenas diante da frmula geral abstrata da reproduo. Consideremos mais de perto as condies concretas que a sua realizao requer. A mais-valia apropriada, uma vez que, no mercado, perdeu a forma de mercadoria, apresentase como determinada soma de dinheiro. E sob essa forma assume a figura absoluta do valor com que pode comear sua carreira como capital. com dinheiro apenas no se pode criar maisvalia alguma; para que a parte da mais-valia destinada acumulao se capitalize realmente, ela deve assumir forma concreta que a possibilite atuar como capital produtivo, isto , como capital que permita a apropriao de nova mais-valia. Para isso necessrio que, da mesma forma como o capital anteriormente empregado, ela se divida em duas partes, uma constante, expressa em meios de produo, e uma varivel, expressa em salrios. Somente ento ela poder ser compreendida, como o capital primitivamente adiantado, dentro da frmula c + v -f m. No basta para isso apenas a vontade de acumular do capitalista, nem tampouco sua poupana e "sobriedade", "virtudes" que lhe permitem destinar produo a maior parte de sua mais-valia, em vez de gast-la toda, alegremente, em luxo e prazeres. Dele se exige mais apropriadamente que se encontrem no mercado as formas concretas em que realizar o novo

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aumento de capital, isto , em primeiro lugar: os meios de produo materiais - matriasprimas, mquinas etc. - necessrios ao tipo de produo por ele planejado e escolhido, para dar, enfim, parte constante do capital forma produtiva. Mas tambm, em segundo lugar, preciso que possa transformar aquela poro de capital que constitui a parte varivel, e para isso so necessrias duas coisas: em primeiro lugar, que no mercado de trabalho haja em quantidade suficiente a fora de trabalho que lhe faz falta para realizar a nova adio de capital; e em segundo lugar, pois os operrios no podem viver de dinheiro, a existncia no mercado dos meios de subsistncia que os novos trabalhadores ocupados podero trocar pela parte varivel do capital recebida dos capitalistas. Dadas essas condies prvias, o capitalista pode movimentar a sua mais-valia capitalizada e faz-la, como capital, engendrar no processo nova mais-valia. com isso, porm, no est resolvido definitivamente o problema. No momento, o novo capital e a mais-valia criada ainda se encontram sob a forma de uma nova massa adicional de mercadorias de qualquer gnero. O novo capital apenas se adiantou e a mais-valia por ele criada se acha sob uma forma intil para o capitalista. Para que cumpra sua finalidade, o novo capital dever apagar a sua figura de mercadoria e voltar junto com a mais-valia por ele criada, sob a sua forma pura de valor em dinheiro, s mos do capitalista. Se isso no se consegue, o novo capital e a nova mais-valia esto perdidos, inteira ou parcialmente, a capitalizao da mais-valia fracassa e a acumulao no se realiza. Para que a acumulao se realize efetivamente , pois, absolutamente necessrio que a massa adicional de mercadorias produzidas pelo novo capital conquiste um posto no mercado e realize seu valor em dinheiro. Vemos, assim, que a reproduo ampliada sob condies capitalistas - ou, o que o mesmo, a acumulao do capital - est ligada a uma srie de condies especficas, que so as seguintes: Primeira condio: a produo deve criar a maisvalia, pois a mais-valia a nica forma em que possvel sob o sistema capitalista o incremento da produo. Essa condio dever cumprir-se no prprio processo de produo, na relao entre capitalista e operrio, na produo de mercadorias. Segunda condio: para que haja a apropriao da mais-valia destinada ampliao da reproduo, uma vez cumprida a primeira condio, ela dever realizar-se transformando-se em 24

dinheiro. Essa condio nos leva ao mercado onde as probabilidades de troca decidem sobre o destino ulterior da mais-valia e, portanto, tambm da futura reproduo. Terceira condio: supondo que se consiga realizar a mais-valia, e uma parte da mais-valia realizada se transforme em capital destinado acumulao, o novo capital ter que tomar forma produtiva, isto , transformar-se em meios de produo e fora de trabalho. Alm disso, a parte de capital trocada pela fora de trabalho adotar por sua vez a forma de meios de subsistncia para os trabalhadores. Essa condio conduz de novo ao mercado, inclusive ao

mercado de trabalho. Se tudo isso ento ocorre e se sobrevm a reproduo ampliada das mercadorias, soma-se a quarta condio: a massa adicional de mercadorias, que apresenta o novo capital, junto com a nova mais-valia, deve ser realizada, transformada em dinheiro. Somente quando isso ocorre, ento se verificar a reproduo ampliada no sentido capitalista. Esta ltima condio remonta mais uma vez ao mercado. Assim, a reproduo capitalista, do mesmo modo que a produo, vai constantemente da indstria ao mercado, da oficina particular e da fbrica, s quais est "proibido o acesso" e nas quais a vontade soberana do capitalista individual a lei suprema, ao mercado, para o qual ningum estabelece leis, e aonde no h vontade ou razo que se imponham. Mas justamente na arbitrariedade e anarquia que reinam no mercado que o capitalista individual sente sua dependncia com respeito totalidade dos membros individuais, produtores e consumidores, que compem a sociedade. Para ampliar sua reproduo, o capitalista necessita de meios de produo adicionais e de fora de trabalho, assim como de meios de subsistncia para os operrios; dessa forma, a existncia de tudo isso depende de elementos, circunstncias, processos que se realizam independentemente de sua vontade. Para poder vender sua massa de produtos aumentada, ele necessita de um mercado mais amplo, porm o aumento da demanda de mercadorias, em geral, e das mercadorias produzidas por ele, em particular, um fato diante do qual ele totalmente impotente. As condies enumeradas, que expressam a contradio imanente entre produo e consumo privados, e o vnculo social existente entre ambos, so elementos novos, apresentando-se pela primeira vez na reproduo. Constituem um aspecto das contradies gerais da produo capitalista. Manifestam-se, no entanto, como dificuldades particulares do processo de reproduo e isso pelas seguintes razes: do ponto de vista da

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reproduo e, particularmente, da reproduo ampliada, o sistema capitalista aparece em seu desenvolvimento como um processo no s em seus caracteres fundamentais, mas tambm nos traos especficos de cada um de seus perodos de produo Por conseguinte, a partir desse ponto de vista, o problema, em termos gerais, assim se apresenta: como pode encontrar cada capitalista individual os meios de produo e os trabalhadores de que necessita, como pode dar sada no mercado s mercadorias que produziu, se no h controle nem planos sociais que harmonizem a produo e a demanda? A isso se contesta: o apetite de mais-valia dos capitalistas individuais e a concorrncia estabelecida entre eles, assim como os efeitos automticos da explorao e concorrncia capitalistas, encarregam-se tanto de que se produzam todo o gnero de mercadorias e, portanto, meios de produo, como tambm de que, em geral, haja disposio do capital uma massa crescente de proletrios. Por outro lado, a falta de plano manifesta-se no fato de que a coincidncia da procura e da oferta, em todas as esferas, s se

realiza momentaneamente, merc de desvios e oscilaes dos preos; e do jogo cruel da lei da oferta e da procura, com sua sequela obrigatria: a crise. Do ponto de vista da reproduo, o sistema se apresenta de outra maneira: como possvel o suprimento do mercado com meios de produo e mo-de-obra que se realizam sem planejamento algum? Como possvel que as condies do mercado, que variam sem plano nem clculo possvel, assegurem ao capitalista individual meios de produo, mo-de-obra e possibilidades de mercado, que correspondem, em cada caso, s necessidades de sua acumulao e aumentam, portanto, numa determinada medida? Precisemos mais a coisa. Segundo a frmula por ns conhecida, o capitalista produz, digamos, na seguinte proporo:

40 c + 10 v + 10 m,

sendo o capital constante quatro vezes maior que o varivel e a taxa de mais-valia 100%. Nesse caso, a massa de mercadorias representar um valor de 60. Suponhamos que o capitalista se encontre em situao de capitalizar a metade de sua maisvalia e a acrescente ao antigo capital, conservando este a mesma composio. O perodo de produo seguinte expressarse-ia na frmula

44c+llo + llm = 66. 26

Suponhamos que o capitalista se encontre novamente em situao de capitalizar a metade de sua mais-valia e assim por diante nos demais anos. Para isso ele deve encontrar, no s em geral, mas na progresso determinada, meios de produo, mo-de-obra e mercado que correspondam aos progressos de sua acumulao.

CAPTULO II

Anlise do Processo de Reproduo Segundo Quesnay e Adam Smith

At agora consideramos a reproduo do ponto de vista do capitalista individual, o representante tpico, o agente da reproduo, que se realiza atravs de uma srie de empresas privadas. Esse modo de focalizar o problema nos apresentou inmeras dificuldades. No obstante, elas so poucas, comparadas com as que aparecem logo que passamos da considerao do capitalista individual para a da totalidade dos capitalistas.

Uma olhada superficial mostra que a reproduo capitalista, como um todo social, no pode ser concebida, mecnica e simplesmente, como a soma das diversas reprodues capitalistas privadas. Vimos, por exemplo, que um dos supostos fundamentais da reproduo ampliada do capital individual uma ampliao correspondente de sua possibilidade de venda no mercado. Assim, o capitalista individual pode lograr essa ampliao no por extenso absoluta dos limites do mercado em geral, mas pela concorrncia, custa de outros capitalistas individuais; de modo que um aproveita o que significa perda para outro ou vrios outros capitalistas excludos do mercado. Como consequncia desse processo, o que para um capitalista reproduo ampliada constitui para o outro uma baixa da reproduo. Um capitalista poder realizar a reproduo ampliada, outros nem sequer a simples, e a sociedade capitalista em conjunto s poder registrar um deslocamento local, mas no uma transformao quantitativa da reproduo. Analogamente, a reproduo ampliada de um capitalista pode realizarse atravs dos meios de produo e dos operrios que foram liberados pelas falncias, isto , pela cessao total ou parcial da reproduo de outros capitalistas. 28

Esses acontecimentos dirios provam que a reproduo do capital social algo em conjunto distinto da reproduo aumentada ilimitadamente do capitalista individual, que os processos de reproduo dos capitais individuais se entrecruzam, incessantemente, e que a cada momento podem anular-se entre si em maior ou menor grau. Portanto, antes de investigar o mecanismo e as leis da produo capitalista necessrio expor aqui a seguinte questo. Que devemos compreender como reproduo do capital social? Isso em primeiro lugar; e, depois, se possvel representarmos um quadro da produo social, separando-o da confuso dos movimentos incontveis dos capitais individuais e levando em conta que se modificam a cada instante, conforme as leis incontrolveis e numerosssimas, que algumas vezes correm paralelas, enquanto outras se cruzam e se aniquilam. Ser que existe, em geral, um capital social? E, se existe, que representa esse conceito na realidade? Esse o primeiro problema que o investigador cientfico dever estabelecer ao estudar as leis de produo. O pai da escola fisiocrtica, Quesnay, que, com impavidez e simplicidade clssicas, abordou o problema, no amanhecer da Economia Poltica e da ordem econmica burguesa, aceitou como subentendida a existncia do capital social com uma dimenso real, atuante. Seu famoso Tableau conomique, no decifrado por ningum at Marx, pe s claras, em poucos nmeros, o movimento de reproduo do capital social, que, na opinio de Quesnay, se deve conceber sob a forma da troca de mercadorias, isto , como processo de circulao. O Tableau mostra de que maneira o produto anual da produo nacional, que se expressa como determinada grandeza de valor, se distribui como consequncia da troca, de tal modo que a produo pode comear de novo. Os incontveis atos de troca individuais renem-se, em resumo, na circulao entre grandes classes sociais funcionalmente determinadas.1 Segundo Quesnay, a sociedade compe-se de trs classes: a produtiva, formada pelos lavradores; a estril, abarcando todos que trabalham fora da agricultura: na indstria, no comrcio, nas profisses liberais; e a classe dos proprietrios territoriais, junto com o soberano e os perceptores de dzimos. O produto nacional total aparece em mos da classe produtiva,

em forma de massa de meios de subsistncia e matrias-primas, no valor de cinco milhes de libras. Destes, dois milhes constituem o capital de explorao anual da agricultura, um milho

O Capital, II, 2.a ed., 1893, pg. 332.

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o desgaste anual do capital fixo, e dois milhes a renda lquida que vai para os proprietrios territoriais. parte esse produto total, os lavradores - que aqui se representam como arrendatrios de modo puramente capitalista - tm em suas mos dois milhes de libras em dinheiro. A circulao realiza-se de maneira que a classe de arrendatrios paga como renda aos proprietrios dois milhes em dinheiro (o resultado do perodo de circulao anterior). O proprietrio territorial emprega 1.000 milhes para adquirir dos arrendatrios meios de subsistncia e com os outros 1.000 milhes compra classe estril produtos industriais. Por sua vez, os arrendatrios com os 1.000 milhes, que lhes correspondem, compram produtos industriais. E a classe estril, dos 2.000 milhes que se achavam em suas mos, emprega 1.000 milhes em matrias-primas etc., para substituir o capital de explorao anual e com os outros 1.000 milhes compra meios de subsistncia. Assim, no final, o dinheiro voltar ao seu ponto de partida, classe de arrendatrios, e o produto se dividiu entre todas as classes de tal modo que se assegurou o consumo de todos, enquanto a classe produtiva e a classe estril renovam seus meios de produo e a dos proprietrios recebe sua renda. Ocorreram todos os pressupostos da reproduo, cumpriramse todas as condies da circulao e a reproduo pode seguir seu curso regular.2 Veremos no curso da investigao o quanto deficiente e primitiva essa exposio, apesar de toda a genialidade do pensamento. Deve-se destacar aqui que Quesnay, no umbral da Economia Poltica cientfica, no guardou dvidas com respeito possibilidade de demonstrar a circulao do capital social e sua reproduo. com Adam Smith, porm, na medida em que se faz uma anlise mais profunda das condies do capital, comea a confuso nos claros e grandes traos da representao fisiocrtica. Smith derrubou todo o fundamento cientfico do processo total capitalista, elaborando aquela falsa anlise do preo, que, durante to longo tempo, dominou a Economia burguesa; segundo ele,

2 Ver anlise do Tableau conomique no Journal de l'Agriculture, du Commerce et ds Finances, de Dupont, 1766, pgs. 305 e seg. da edio publicada por Oncken - das Obras de F. Quesnay. Quesnay observa expressamente que a circulao por ele descrita supe duas condies: uma circulao comercial, sem obstculos, e um sistema tributrio no qual s pesa a renda. "Esses requisitos, porm, so condies sine quabus non; supem que a liberdade de comrcio sustenta a venda dos produtos a um bom preo. E supem, por outro lado, que o agricultor no tem que pagar, direta ou indiretamente, outros encargos que pesem sobre a

renda. Uma parte da qual, por exemplo, as duas stimas partes devem constituir a receita do soberano." (Ed. cit, pg. 311.) 30

o valor das mercadorias expressa a quantidade de trabalho nelas empregado; porm, ao mesmo tempo, o preo s est formado por trs componentes, a saber: salrio, lucro do capital e renda da terra. com isso, evidentemente, tambm se refere totalidade das mercadorias, ao produto nacional, defrontamo-nos com a desconcertante descoberta de que o valor das mercadorias elaboradas pela produo capitalista, em sua totalidade, representa, certo, todos os salrios pagos e os lucros do capital juntamente com a renda, isto , a maisvalia total, e pode, portanto, substitu-la; mas, ao mesmo tempo, constatamos que nenhuma parte do valor das mercadorias corresponde ao capital constante empregado na produo dessas mercadorias: v+m, tal , segundo Smith, a frmula de valor do produto capitalista total. "Essas trs partes" - diz Smith, explicando seu pensamento com o exemplo do trigo - "(salrio do trabalho, lucro do empresrio e renda da terra) parecem esgotar imediatamente, ou em primeiro lugar, a finalidade do preo dos cereais. Caberia, talvez, considerar necessria ainda uma quarta parte para compensar o desgaste dos animais de trabalho e das ferramentas. Mas se deve levar em conta que o preo de todos os meios de produo se constitui, por sua vez, na mesma forma; o preo de um cavalo destinado ao trabalho assim se forma: primeiro, pela renda do solo em que alimentado; segundo, pelo trabalho empregado em sua criao, e, terceiro, pelo lucro capitalista do arrendatrio que adiantou tanto a renda do solo como os salrios. Portanto, se o preo do cereal contm o valor do cavalo assim como seu alimento, mediata ou imediatamente, ele se resolve nos trs elementos mencionados: renda da terra, trabalho e lucro do capital."3 Smith, enviando-nos desse modo de Herodes a Pilatos, como diz Marx, decompe sempre o capital constante em v + m. certo que Smith teve, ocasionalmente, dvidas e recadas na opinio oposta. No segundo livro diz: "Mostrou-se no primeiro livro que o preo da maior parte das mercadorias se divide em trs partes, uma das quais paga o salrio, outra, o lucro do capital, e, uma terceira, a renda da terra, cobrindo assim os gastos de produo da mercadoria e do seu transporte para o mercado. Se esse o caso para cada uma das mercadorias consideradas particularmente, o mesmo poder dizer-se das mercadorias que representam, em conjunto, o rendimento anual da terra e o trabalho de cada pas. O preo ou valor total de troca desse rendimento anual poder decompor-se nas mesmas trs partes e redistribuir-se entre os diversos habitantes do pas

3 Adam Smith, Natureza e Causas da Riqueza das Naes.

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como salrio de seu trabalho, lucro de seu capital ou renda de sua terra." Nesse ponto Smith vacila e segue imediatamente: "Mas, ainda que o valor total da mencionada produo anual se distribua assim entre os diversos habitantes e constitua uma renda por si, temos que distinguir, como se se tratasse da renda de uma fazenda particular, entre renda bruta e renda lquida." "A renda bruta de uma fazenda particular compe-se do que paga o arrendatrio: e a lquida, do que resta ao proprietrio, deduzidos os gastos de administrao, reparaes e outras despesas; ou do que pode destinar, sem prejuzo de sua fazenda, de seu oramento reservado, ao consumo imediato, mesa, casa, mobilirio e diverses. Sua verdadeira riqueza no est em relao com sua renda bruta, mas com sua renda lquida." "A renda bruta de todos os habitantes de um grande pas abrange a produo anual do subsolo e trabalho na totalidade; e a renda lquida, o que resta depois de deduzir os gastos de sustento; primeiro, de seu capital fixo e, em seguida, de seu capital circulante, ou seja, aquela parte de seu patrimnio destinada ao consumo imediato e que eles podem gastar em sustento, comodidades e prazeres. Sua verdadeira riqueza no se acha, pois, em relao com sua renda bruta, e sim com sua renda lquida." Smith, porm, introduz aqui uma parte de valor do produto total correspondente ao capital constante, para voltar a exclula, atravs da frmula que se resolve em salrios, lucros e rendas. Finalmente se atm sua explicao:

"... Da mesma forma que as mquinas, instrumentos etc., que constituem o capital fixo do indivduo ou da comunidade, no representam uma parte da renda bruta e da lquida, assim o dinheiro, por meio do qual a renda total na sociedade se distribui regularmente entre todos os seus membros, no representa em si mesmo um elemento daquela renda." O capital constante (ao qual Smith chama fixo) coloca-se, por conseguinte, no mesmo plano que o dinheiro e no entra no produto total da sociedade (sua renda bruta), no existe como uma parte do valor do produto total. com to frgeis fundamentos, sua teoria cai por terra ao mais ligeiro embate da crtica. evidente que da circulao, da troca do produto total assim composto, s pode conseguirse a realizao de salrios (v) e da mais-valia (m), mas no se pode substituir o capital constante, e a repetio do processo reprodutivo torna-se assim impossvel. certo que Smith sabia perfeitamente, e nem sequer lhe ocorreu neg-lo, que todo 32

capitalista individual necessita, para a explorao, no apenas de um fundo de salrios - isto , capital varivel - mas tambm de um capital constante. Mas na anlise do preo, mencionada para a produo capitalista, desaparecia, enigmaticamente, sem deixar vestgios, o capital constante, que, como o problema da reproduo do capital total, estava mal focalizado desde

o princpio. bvio que, se o aspecto mais elementar do problema, a explicao do capital social, naufragasse, a anlise inteira desmoronaria. A teoria errnea de Adam Smith, posteriormente, foi retomada por Ricardo, Say, Sismondi e outros, e todos tropearam ao considerar o problema da reproduo com esta dificuldade elementar: a explicao do capital social.

Outra dificuldade somava-se anterior desde o comeo da anlise cientfica. Que o capital social? A coisa clara quando se trata do indivduo: seus gastos de explorao so seu capital. O valor de seu produto - dentro do capitalismo, isto , do regime de trabalho assalariado proporcionalhe, descontados os gastos totais, um excedente, a mais-valia, que no substitui seu capital, mas constitui sua renda lquida, e ele pode consumi-la inteira sem prejuzos para o seu capital, isto , de seu fundo de consumo. Decerto que o capitalista pode economizar uma parte dessa renda, no gast-la e convert-la em capital. Mas isso outra coisa, um novo processo, a formao de novo capital, que por sua vez substitudo junto com o excedente na reproduo seguinte. Sempre, porm, o capital do indivduo o que se necessita antecipar para produzir, e renda o que consome o capitalista. Se perguntamos a um empresrio o que so os salrios que paga a seus operrios a resposta ser: so, evidentemente, uma parte do capital de explorao. Mas se perguntamos o que so seus salrios aos operrios que os recebem, a resposta no pode ser: so capital; para os operrios os salrios recebidos no so capital, mas renda, fundo de consumo. Tomemos outro exemplo: um capitalista produz mquinas em sua fbrica: seu produto , anualmente, certo nmero de mquinas. Mas nesse produto anual, em seu valor, encerra-se tanto o capital adiantado pelo fabricante como a renda lquida obtida. Portanto, uma parte das mquinas por ele fabricadas representa sua renda e est destinada a constituir essa renda no processo de circulao, na troca. Mas quem compra a nosso fabricante suas mquinas no o faz evidentemente como renda, para consumi-las, mas para utiliz-las como meios de produo; para ele essas mquinas constituem capital.

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Com esses exemplos chegamos ao seguinte resultado: o que para um capital, para o outro renda, e vice-versa. Nessas condies, como pode conceber-se algo que seja o capital social? Quase toda a economia at Marx indicava que no existia capital social algum.4 E ainda nesse ponto observamos titubeios e contradies de Smith como tambm de Ricardo. Quanto a Say, este diz categoricamente: "Desse modo distribui-se o valor total dos produtos na sociedade. Digo o valor total; pois se meu lucro s representa uma parte do capital do produto em cuja elaborao tomei parte, o

resto constitui o lucro dos que contriburam para produzi-lo. Um fabricante de tecidos compra l a um arrendatrio; paga salrios a diversas categorias de operrios e vende o pano assim produzido a um preo que lhe reembolsa seus gastos e lhe deixa lucro. Considera como lucro, como fundo de sua renda, to-somente o lquido que lhe fica, depois de deduzidos seus gastos. Mas esses gastos no eram mais que adiantamentos que fez aos outros produtores, das diversas partes da venda, e dos quais se compensa com o valor bruto do pano. O que pagou ao arrendatrio pela l era renda bruta do lavrador, de seus empregados, do proprietrio da fazenda. O arrendatrio s considera como produto lquido seu o que lhe fica, uma vez pagos os seus operrios e o proprietrio da terra; mas o que lhes pagou constitui uma parte da renda desses ltimos: era o salrio dos operrios, o preo do arrendamento do proprietrio, era, portanto, para uns, a renda do trabalho; para o outro, a renda de sua terra. E o que substitui tudo isso o valor do pano. No cabe representar-se uma parte do valor desse pano que no serviu para satisfazer uma renda. Seu valor inteiro esgotou-se nisso." "V-se, por isso, que a expresso produto lquido s pode aplicar-se quando se trata de empresrios individuais, mas que a renda de todos os indivduos reunida ou da sociedade igual ao produto bruto nacional da terra, dos capitais e da indstria (Say chama assim o trabalho). Isso aniquila (arruina) o sistema dos economistas do sculo XVIII (fisiocratas) que s consideravam como renda da sociedade o produto lquido do solo e deduziam da que a sociedade s podia consumir um valor correspondente a esse produto lquido, como se a sociedade no pudesse consumir todo o valor por ela criado."5

4 A propsito de Rodbertus, com seu conceito especfico de "capital nacional", ver adiante na Segunda Parte.

5 J.-B. Say, Trait d'Economie Politique, livro II, cap. V, 8.a ed., Paris, 1876, pg. 376. 34

Say fundamenta essa teoria de modo peculiar. Smith tratava de fornecer a prova, colocando cada capital privado em seus lugares de produo, para resolv-lo como simples produto do trabalho. Mas o concebia, com rigor capitalista, como soma de trabalho pago e no-pago, como v + m, e chegava assim a resolver, finalmente, o produto total da sociedade com a frmula v + m. Say, por outro lado, transforma rapidamente esses erros clssicos em vulgares equvocos. A demonstrao de Say apia-se na suposio de que o empresrio, em todos os estdios produtivos, paga os meios de produo (que constituem um capital para ele) a outras pessoas, aos representantes de fases anteriores da produo, e de que essas pessoas guardam para si uma parte do que lhes foi pago como renda sua propriamente dita e empregam outra parte como reembolso dos gastos por elas financiados, a fim de pagar suas rendas a outras pessoas. A cadeia indefinida de processos de trabalho de Smith transforma-se, em Say, numa cadeia indefinida tambm de mtuos adiantamentos sobre renda e devoluo desses adiantamentos retirada da renda dos produtos; aqui o operrio aparece inteiramente

equiparado ao empresrio; no salrio recebe, como adiantamento, sua renda e paga por sua vez com trabalho realizado. Assim o valor definitivo do produto total social uma soma de rendas adiantadas; e o processo da troca, a entrega e devoluo desses adiantamentos. A superficialidade de Say torna-se patente, quando, para ilustrar a engrenagem social da reproduo capitalista, utiliza o exemplo da fabricao de relgios, um ramo que era ento (e, no obstante, ainda o em parte) simples manufatura, na qual os operrios figuram, por sua vez, como pequenos empresrios, e o processo de produo da mais-valia se acha dissimulado por uma srie de atos correspondentes produo simples de mercadorias. Desse modo, Say agrava ainda mais a confuso e os erros de Adam Smith: toda a massa de artigos, produzida anualmente pela sociedade, resolve-se como pura renda; portanto, ela se consome, anualmente, em sua totalidade. A repetio da produo sem capital, sem meios de produo, aparece como um enigma. A reproduo capitalista aparece como um problema insolvel. Quando se estuda a trajetria, que seguiu o problema da reproduo desde os fisiocratas at Adam Smith, no se pode desconhecer a existncia de um processo parcial neutralizado por um retrocesso tambm parcial. A caracterstica do sistema econmico dos fisiocratas era sua suposio de que s a agricultura engendrava o excedente, isto , mais-valia, sendo

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portanto o trabalho agrcola o nico produtivo - em sentido capitalista. De acordo com isso, vemos no Tableau conomique que a classe estril dos operrios manufatureiros s cria os 2.000 milhes de valor que consome em matrias-primas e meios de subsistncia. Em consequncia, na troca, as mercadorias manufaturadas se dividem integralmente entre as classes dos arrendatrios e a dos proprietrios, enquanto a classe manufatureira no consome nem mesmo seus prprios produtos. Assim, pois, a classe manufatureira s reproduz propriamente no valor de suas mercadorias o capital circulante consumido, sem criar uma renda. A nica renda da sociedade, que excede a todos os gastos de capital e passa circulao, produzida na agricultura e consumida pela classe dos proprietrios na figura da renda da terra, enquanto os arrendatrios s recebem seu capital antecipado: 1.000 milhes, juros de capital fixo e 2.000 milhes de capital de explorao circulante. Em segundo lugar, chama a ateno o fato de que Quesnay s aceita a existncia do capital fixo na agricultura, e o denomina avances primitives, diferenciando-os dos avances annuelles. Segundo ele, ao que parece, a manufatura trabalha sem capital fixo algum, s emprega capital circulante em seu giro anual e, portanto, sua massa de mercadorias cada ano no deixa uma parte de valor para compensao do desgaste de capital fixo (edifcios, instrumentos de trabalho).6 Diante dessas deficincias, a escola inglesa clssica significa, sobretudo, o progresso decisivo, porque considera como produtivo todo gnero de trabalho, isto , descobre a criao de mais-

valia tanto na manufatura como na agricultura. Dissemos a escola clssica inglesa, porque Smith nesse ponto, ao lado de declaraes claras e decisivas no sentido indicado, cai outras vezes, tranquilamente, no modo de ver dos fisiocratas; s com Ricardo a teoria do valor pelo trabalho recebe a mais alta e consequente elaborao que podia alcanar dentro dos limites da concepo burguesa. Desde ento temos que admitir, na manufatura, a produo anual de um incremento do capital antecipado, de uma renda lquida, isto , de mais-valia, assim

6 Alm disso, deve-se anotar que Mirabeau, em suas Explications au Tableau, menciona numa passagem, expressamente, o capital fixo da classe estril: "os avances primitives dessa classe, para estabelecimento de manufaturas, instrumentos, mquinas, moinhos, forjas e outras fbricas 2.000.000.000 de libras" (Tableau conomique avec ss explications. Mil sept cent soixante, pg. 82). certo que, em seu desconcertante esboo do Tableau, o prprio Mirabeau no leva em conta esse capital fixo da classe estril. 36

como na agricultura.7 Por outro lado, Smith, levando as suas concluses lgicas descoberta de que todo gnero de trabalho, tanto na manufatura como na agricultura, produtivo e cria mais-valia, descobre que tambm o trabalho agrcola, alm da renda para a classe dos proprietrios da terra, dever criar um excedente para a classe de arrendatrios por cima de seus gastos totais de capital. Assim surgiu tambm, junto com o reembolso de capital antecipado, uma renda anual para a classe dos arrendatrios.8 Finalmente, Smith trabalhando sistematicamente com os conceitos empregados por Quesnay de avances primitives e avances annuelles, sob os nomes de capital fixo e circulante, esclareceu, entre outras coisas, que a produo manufatureira necessita, alm do capital circulante, de um capital fixo, exatamente como a agricultura, e, portanto, necessita tambm de uma parte correspondente de valor para substituir o desgaste daquele capital. Assim, pois, Smith se encontrava no melhor caminho para ordenar os conceitos de capital e renda da sociedade e express-los com exatido. A maior clareza a que chegou nesse aspecto se evidencia na segunda frmula: "Ainda que o produto anual total da terra e do trabalho de um pas se destine, indubitavelmente, em ltimo lugar, ao consumo de seus habitantes e a lhes fornecer uma renda, ao sair do solo ou das mos dos trabalhadores, divide-se naturalmente em duas partes. Uma delas, amide a maior, destina-se, antes de tudo, a substituir um capital ou a renovar os meios

7 Smith formula isso em termos gerais: "The value -which the workmen add to the materials, therefore, resolves, itself in this case into two parts; of which the one pays their wages, the other the profits of their employer upon the whole stock of materials and wages which he advanced" (Wealth of Nations, Ed. MacCulloch, 1828, vol. I, pg. 83). "O valor que os operrios agregam aos materiais se divide, portanto, nesse caso, em duas partes, uma das quais paga seus salrios e a outra os lucros de seu empresrio sobre a totalidade do capital

adiantado para materiais e salrios." E no livro II, cap. III, referindo-se especialmente ao trabalho industrial: "... O trabalho de um operrio de fbrica acrescenta ao valor das matriasprimas por ele produzidas o do seu prprio sustento e o lucro do seu empresrio; em troca o de um criado no aumenta o valor de nada. Ainda que o operrio de fbrica receba de seu empresrio por adiantado o salrio, no lhe causa nus algum, pois, em regra geral, lhe devolve o lucro adicional pelo valor aumentado do objeto produzido" (loc. cit., I, pg. 341).

8 "Os homens dedicados ao trabalho agrcola... reproduzem... no s um valor igual a seu prprio consumo ou ao dos capitais que lhes do ocupao, junto com o lucro do capitalista, como os operrios de fbrica, mas um muito maior. Alm do capital do arrendatrio, juntamente com todo o seu lucro, reproduzem tambm regularmente a renda para o proprietrio do solo" (loc. cit., I, pg. 377).

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de subsistncia, matrias-primas e mercadorias produzidas, e outra parte a criar uma renda, ou para o proprietrio desse capital como lucro seu ou para outro como sua renda da terra."9 "A renda bruta de todos os habitantes de um grande pas abrange o produto total anual de seu solo e seu trabalho, e sua renda lquida que cai depois de deduzidos: primeiro, os custos de manuteno de seu capital fixo e, depois, de seu capital circulante, ou o que podem destinar sem prejuzo de seu capital ao consumo imediato, ao seu sustento, comodidade e prazer. Sua riqueza efetiva no est, pois, em relao com sua renda bruta, mas com sua renda lquida."10 Aqui os conceitos de capital e renda totais aparecem formulados de modo mais geral e rigoroso que no Tableau conomique. Libertada a renda de seu enlace unilateral com a agricultura, o capital, em suas duas formas de fixo e circulante, converte-se em base da produo social total. Em vez da diviso, que induz a erro, de dois setores produtivos, agricultura e manufatura, passaram ao primeiro lugar outras categorias de significao funcional: a diferena entre capital e renda, a diferena entre capital fixo e circulante. A partir da, Smith passa anlise da relao mtua das transformaes dessas categorias em sua dinmica social: na produo e na circulao, isto , no processo de reproduo da sociedade. Surge aqui uma distino radical entre o capital fixo e o capital circulante, do ponto de vista social: "Todos os custos de manuteno do capital fixo devem ser evidentemente eliminados da renda lquida da sociedade. Nem as matrias-primas necessrias para a produo de suas mquinas, instrumentos, edifcios etc., nem o produto do trabalho empregado em sua criao, podem constituir uma parte dessa renda. O preo desse trabalho constituir, certo, uma parte da renda lquida total, pois os trabalhadores ocupados podero aplicar os salrios parte de seu oramento reservado ao consumo imediato; mas em outras categorias de trabalho tanto seu preo como seu produto correspondero a essa parte da despesa: seu preo ao dos

9 Certamente, Smith j no pargrafo seguinte transforma o capital completamente em salrios, em capital varivel: "That part of the annual produce of the land and labour of any country which replaces a capital never is immediately employed to maintain any but productive hands. It pays the wages of productive labour only. That which is immediately destined for constituting a revenue, either as profit or as rent, may maintain indifferently either productive or unproductive hands" (Ed. MacCulloch, tomo II, pg. 98).

10 Loc. cit., I, pag. 292. 38

operrios, e seu produto a outras pessoas cujos meios de subsistncia, comodidades e distraes so aumentados pelo trabalho daqueles operrios."11 Aqui se encontra Smith com a importante distino entre trabalhadores que fabricam meios de produo e os que produzem meios de consumo. A respeito dos primeiros faz notar que a parte de valor que criam como compensao de seus salrios surge sob a forma de meios de produo (como matrias-primas, mquinas etc.), isto , que a parte do produto destinada renda dos trabalhadores existe numa forma natural que no pode servir para o consumo. No que se refere ltima categoria de trabalhadores, Smith observa que, nesse caso, ao inverso, o produto inteiro, isto , tanto a parte de valor nele contida, que substitui os salrios (a renda) dos trabalhadores, como a parte restante (Smith no o diz assim, porm sua conchiso devia ser: assim como a parte que representa o capital fixo consumido) aparecem sob a forma de artigos de consumo. Veremos mais adiante quo prximo Smith esteve aqui do ponto cardeal da anlise, partindo do qual Marx atacou o problema. Contudo, a concluso geral, a que se refere Smith, sem indagar mais sobre a questo fundamental, esta: em todo caso o que se destina conservao e renovao do capital fixo da sociedade no pode ser contado como renda lquida da saciedade. Outra coisa acontece com o capital circulante. "Ainda quando os gastos totais de manuteno do capital fixo fiquem assim excludos, necessariamente, da renda lquida da sociedade, isso no ocorre com o capital circulante. Dos quatro elementos do ltimo - dinheiro, subsistncias, matriasprimas e artigos produzidos -, os trs ltimos se subtraem, como observou-se, regularmente e se aplicam, quer ao capital fixo, quer ao fundo de consumo. Qualquer parte dessas mercadorias de consumo, que no se aplica conservao do capital fixo, concorre para o fundo de consumo e forma uma parte da renda lquida da sociedade. Por conseguinte, a manuteno dessas trs partes do capital circulante

no retira da renda lquida da sociedade nenhuma outra poro do produto anual aLm desta que necessria para manter o capital fixo."12 V-se que Smith misturou tudo na categoria do capital circulante, tudo menos o capital fixo j empregado, e tanto os gneros alimentcios e as matrias-primas como o valor de

11 Loc. cit., l, pg. 292.

12 Loc, cit., I, pg. 254,

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mercadorias no-realizadas ainda (isto , incluindo uma vez mais os mesmos gneros alimentcios e matrias-primas, e sem levar em conta que algumas dessas mercadorias, conforme a sua forma natural, servem para substituir o capital fixo), tornando confusa e duvidosa sua anlise do capital circulante. Mas, ao lado dessa confuso e apesar dela, ele faz outra distino importante: "A respeito disso, o capital circulante da sociedade comporta-se de maneira distinta do capital de um particular. O capital de um indivduo no forma, de modo algum, parte de sua renda lquida, que tem de sair exclusivamente do lucro. Mas, ainda que o capital circulante de cada qual forme uma parte do capital de sua comunidade, ele no est excludo to completamente, por isso, da renda lquida dessa comunidade." Smith explica-o com o exemplo seguinte: "Embora todas as mercadorias que um comerciante tenha em sua loja no possam ser includas dentro do patrimnio reservado para seu consumo imediato, podem s-lo para outras pessoas, que com a ajuda de uma renda obtida em outras fontes e sem diminuir seu capital podem restituir ao comerciante o valor de suas mercadorias juntamente com o lucro."

com isso, Smith levantou categorias fundamentais a respeito da reproduo e do movimento do capital social total. Capital fixo e circulante, capital privado e social, renda privada e renda social, meios de produo e de consumo, aparecem postos em relevo como grandes categorias, em parte indicadas em seu cruzamento real, objetivos, em parte asfixiadas nas contradies subjetivas, tericas, da anlise de Smith. O esquema sbrio, severo e de transparncia clssica dos fisiocratas aqui se dissolve numa confuso de conceitos e relaes que parecem um caos, primeira vista, mas, nesse caso, j se notam traos do processo de

reproduo social, novos, mais profundos, modernos e vivos do que em Quesnay, embora incompletos, como o escravo de Miguel Angelo em seu bloco de mrmore.

Esse um dos aspectos que Smith estuda a respeito do problema. Mas, ao mesmo tempo, considera-o de outro ngulo completamente distinto, do ponto de vista da anlise do valor. Justamente a teoria segundo a qual todo trabalho criador de valor, assim como a distino rigorosamente capitalista de todo trabalho em trabalho pago (que substitui o salrio) e nopago (que cria mais-valia), assim como, finalmente, a estrita diviso da mais-valia em suas categorias fundamentais (lucro e renda da terra) - todos esses progressos sobre a anlise fisiocrtica 40

induziram Smith sua curiosa afirmao de que o valor de todas as mercadorias consta de salrio, lucro e renda da terra, ou, sucintamente, na frmula marxista, de v -{-m. Da deduzia que tambm a totalidade das mercadorias produzidas anualmente pela sociedade se dividia em seu valor total nestas duas partes: salrios e mais-valia. Desaparece assim de pronto, completamente, a categoria capital, e a sociedade no produz mais que renda, mais que artigos que so totalmente por ela consumidos. A produo sem capital se erige em enigma e a anlise do problema em conjunto d um passo atrs com respeito aos fisiocratas. Os sucessores de Smith tomam sua dupla teoria pelo lado mais errneo. Enquanto as importantes sugestes para um delineamento exato do problema, que Smith d no livro segundo, permanecem intactas at Marx, a anlise do preo no primeiro livro, fundamentalmente falsa, recebida como herana preciosa pela maioria de seus sucessores; ou aceita sem reflexo, como o faz Ricardo, ou elevada a um simples dogma, como o faz Say. Onde em Smith havia dvidas frutferas e contradies sugestivas, em Say aparece um arrogante e imvel filistesmo. Para Say, a observao de Smith - o que para um capital, pode ser para outro renda - converte-se num motivo para declarar absurda toda distino entre capital e renda com um critrio social. Por outro lado, o absurdo de que o valor total da produo anual se converta em renda e seja consumida elevado por Say categoria de dogma com validez absoluta. Como, segundo ele, a sociedade consome anualmente seu produto total, o processo reprodutivo, que atua sem meios de produo, converte-se numa repetio anual do milagre bblico: a criao do mundo a partir do nada. Nesse estado permaneceu o problema da reproduo at Marx.

CAPTULO III

Crtica da Anlise de Smith

Os resultados a que havia chegado a anlise de Smith podem resumir-se nos seguintes pontos: 1. H um capital fixo da sociedade, e nenhuma de suas partes entra na renda lquida dela. Compem esse capital fixo "as matrias-primas que supriro o trabalho das mquinas, os utenslios e os equipamentos industriais", alm "do produto do trabalho requerido para transformar essas matrias-primas na forma procurada". A partir do momento em que Smith ope esse capital fixo ao destinado produo de meios diretos de subsistncia, transforma perfeitamente o capital fixo no que Marx chamou de constante, isto , naquela parte do capital que consiste em todos os meios de produo materiais em contraposio ao trabalho. 2. H um capital circulante da sociedade. Eliminada, porm, a parte fixa (entenda-se constante), s resta a categoria dos meios de subsistncia, que no constituem para a sociedade capital algum, mas renda lquida, fundo de consumo. 3. O capital e a renda lquida dos indivduos no coincidem com o capital e a renda lquida da sociedade. O que para a sociedade s capital fixo (entendendo-se constante), para os indivduos no pode ser capital, mas renda, fundo de consumo, que se apresenta nas partes de valor do capital fixo, salrios para os operrios e lucros para os capitalistas. Ao contrrio, o capital circulante dos indivduos pode no ser para a sociedade capital, e sim renda, enquanto representa meios de subsistncia. 4. O produto social anualmente elaborado no contm em seu valor nem um tomo de capital, mas se converte em trs classes de renda: salrios de trabalho, lucros do capital e renda da terra. 42

Aquele que quisesse, partindo dos fragmentos de ideias aqui mencionadas, apresentar o quadro da reproduo anual do capital social e seu mecanismo, logo desistiria disso. Como, porm, o capital social se renova constantemente, todos os anos, o consumo de todos assegurado pela renda e, ao mesmo tempo, os indivduos mantm seus pontos de vista em relao ao capital e renda, aparece ento aqui a soluo. mister, no entanto, apresentar toda a confuso de ideias e a variedade de pontos de vista para dar conscincia da enorme importncia da contribuio de Marx para a soluo do problema.

Comecemos com o ltimo dogma de Smith, que por si s bastava para fazer que fracassasse a Economia Poltica clssica no estudo do problema da reproduo. A raiz da bizarra representao de Smith, segundo a qual o valor do produto total da sociedade tinha que esgotar-se plenamente em salrios, lucros e rendas da terra, encontra-se justamente em sua concepo cientfica da teoria do valor. O trabalho a fonte de todo o valor. Considerada como valor, toda mercadoria produto de trabalho e nada mais. Todo o trabalho, porm,

realizado como trabalho assalariado - essa identificao do trabalho humano com o trabalho assalariado capitalista justamente o aspecto clssico em Smith - ao mesmo tempo substituio dos salrios pagos e excedente de trabalho no-pago, que constitui um lucro para os capitalistas e uma renda para os proprietrios. O que certo em relao a cada mercadoria h de s-lo tambm para a totalidade. A proviso total de mercadorias anualmente produzida pela sociedade (no , como valor, mais que o produto do trabalho, tanto pago como nopago) divide-se, portanto, em salrios, lucros e rendas. Sem dvida, cada trabalho necessita, alm disso, de matriasprimas, instrumentos etc. Essas matrias-primas e esses instrumentos, entretanto, no so tambm mais que produtos de trabalho, em parte pago, em parte nopago. Por muito que retrocedamos, no valor ou preo de todas as mercadorias, no encontraremos nada que no seja puro trabalho humano. Mas todo trabalho se divide em uma parte que substitui os salrios e em outra que vai chegar aos capitalistas e proprietrios territoriais. No h mais que salrios e lucros; mas, no obstante, h capital, capital dos indivduos e capital da sociedade. Como sair dessa evidente contradio? O que prova que nos achamos diante de uma grande dificuldade terica o fato de que o prprio Marx se dedicou muito ao estudo do problema, sem adiantar nem encontrar uma soluo, como fcil observar em sua Teorias sobre a Mas-Vala (obra

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tambm conhecida como Histria das Doutrinas Econmicas), I pgs. 179, 252. Conseguiu, sem dvida, achar brilhantemente a' soluo e isso baseado na sua teoria do valor. Smith tinha plena razo: o valor de todas as mercadorias em particular e de todas elas reunidas no representa mais que trabalho. Tambm tinha razo ao dizer: todo trabalho (do ponto de vista capitalista) divide-se em trabalho pago (que substitui os salrios) e trabalho no-pago (que vai como mais-valia para as diversas classes proprietrias dos meios de produo). Mas esquecia, ou melhor, abordava superficialmente o fato de que o trabalho, com a propriedade de criar valor novo, possui tambm a de transferir o antigo valor, materializado nos meios de produo, s novas mercadorias produzidas com o seu auxlio. Uma jornada de trabalho de 10 horas no pode criar um valor superior a 10 horas, e essas 10 horas, do ponto de vista capitalista, se dividem em horas pagas e no-pagas, en v + m. A mercadoria produzida, porm, nessas 10 horas representar um valor maior que o da jornada de 10 horas. Conter alm disso o valor da farinha de trigo, o desgaste do forno, dos locais de trabalho, combustveis etc.; em suma, todos os meios de produo necessrios padaria. O valor da mercadoria s ficaria expresso plenamente em v + m se o homem trabalhasse no ar, sem matrias-primas, sem instrumentos de trabalho, sem oficinas. Mas como todo trabalho material pressupe algum meio de produo, por sua vez produto de um trabalho anterior, ele tem que transferir tambm ao novo produto esse trabalho anterior. No se trata aqui de um processo que s ocorre na produo capitalista, mas um dos princpios bsicos em que se assenta o trabalho humano, com absoluta independncia da

forma histrica da sociedade. A operao com instrumentos de trabalho produzidos por ela mesma o trao caracterstico e fundamental da sociedade humana. O conceito de trabalho anterior, que precede ao novo e lhe serve de base de operao, expressa o enlace progressivo entre o homem e a natureza, a cadeia duradoura dos esforos sociais, cujo comeo se perde na aurora das origens do homem e cujo trmino s pode chegar com o aniquilamento de toda a humanidade. Havemos, portanto, de falar de todo trabalho humano como realizao por meios que so, igualmente, produto de um trabalho anterior. Por conseguinte, em todo produto encontra-se no s o trabalho vivo, presente, que lhe d a sua ltima forma, mas tambm o anterior, incorporado matria e que o instrumento lhe transfere. Na produo do valor, isto , na produo de mercadorias, 44

qual pertence tambm a produo capitalista, esse fenmeno no desaparece, mas adquire uma forma especfica. Manifesta-se no duplo carter do trabalho produtor de mercadorias, que, de um lado, como trabalho til, concreto, de certo gnero, cria o objeto til, o valor de uso; e, de outro, como trabalho abstrato, geral, socialmente necessrio, cria valor. Em sua primeira condio, faz o que o trabalho humano sempre fez; incorporar ao novo produto o trabalho anterior que se encontra nos meios de produo utilizados, com a diferena de que esse trabalho anterior aparece agora como valor, como valor antigo. Em sua segunda condio, cria novo valor, que, no sistema capitalista, se divide em trabalho pago e no-pago, v + m. Assim, pois, o valor de toda mercadoria deve conter tanto valor antigo - que o trabalho em sua condio de trabalho til, concreto, transfere dos meios de produo mercadoria como valor novo que o mesmo trabalho, em sua condio de socialmente necessrio, cria, ao consumir-se, materializado no produto. Smith no podia fazer essa distino, porque no diferenciava esse duplo carter do trabalho em sua funo criadora de valor; Marx, numa passagem, cr, inclusive, que nesse erro fundamental da teoria do valor, apresentada por Smith, encontra-se a origem de seu estranho dogma, segundo o qual todo valor se esgota em v + m -1. A no-distino entre ambos os aspectos do trabalho produtor de mercadorias, o concreto, til, e o abstrato, socialmente necessrio, constitui, com efeito, uma das notas mais relevantes, no s da teoria do valor de Smith, mas de toda a escola clssica. Sem preocupar-se com as consequncias sociais que pudessem resultar, a Economia clssica reconheceu que o trabalho humano era o nico agente criador de valor e elaborou essa teoria at o grau de clareza com que se nos apresenta em Ricardo. Mas a diferena essencial entre a teoria do valor de Ricardo e a de Marx - diferena que no s os economistas burgueses no perceberam, mas tambm a maioria dos popularizadores da doutrina passa por alto - est em que Ricardo, de acordo com sua concepo geral da Economia maneira do direito natural, acreditava que a criao de valor era tambm uma qualidade natural do trabalho humano, do trabalho concreto do indivduo. Essa concepo se evidencia de modo mais patente ainda em Smith, que, por exemplo, considera "o instinto de troca"

O Capital, II, pg. 351.

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uma particularidade da natureza humana, depois de hav-lo procurado em vo entre os animais, entre os ces etc. Alm do mais, Smith, ainda que duvide da existncia do "instinto de troca" nos animais, reconhece no trabalho animal a propriedade de criar valor da mesma forma que o trabalho humano, particularmente ali onde ocasionalmente reincide na concepo fisiocrtica. "Nenhum outro capital da mesma grandeza pe em movimento uma quantidade maior de trabalho produtivo que o do lavrador. No s seus empregados, mas tambm seus animais de trabalho so trabalhadores produtivos. Segundo esse ponto de vista, os homens e os animais empregados no trabalho agrcola no s reproduzem, como os operrios de fbricas, um valor igual ao seu prprio consumo ou ao dos capitais empregados, juntamente com o lucro do capitalista, mas um valor muito maior. Alm do capital do colono e do seu lucro, reproduzem tambm, regularmente, a renda da terra."2

Aqui se revela de modo patente que Smith considerava a criao do valor uma qualidade fisiolgica do trabalho, uma expresso do organismo animal do homem. Como a aranha tira do seu corpo a teia, o operrio cria valor. O trabalhador, que cria objetos teis, , por natureza, produtor de mercadorias; do mesmo modo a sociedade humana descansa por natureza na troca, sendo a produo de mercadorias a forma econmica normal do homem. S Marx reconheceu no valor uma relao social particular, produzida sob determinadas condies histricas, chegando assim a distinguir os dois aspectos do trabalho produtor de mercadorias: o concreto, individual, e o trabalho social indiferenciado, com cuja distino a chave do enigma aparece numa claridade deslumbrante. Para discernir estaticamente, no centro da economia burguesa, o duplo carter do trabalho, e distinguir o homem trabalhador do produtor de mercadorias, criador de valor, necessitava Marx, antes, distinguir dinamicamente, na sucesso histrica, o produtor de mercadorias do homem de trabalho em geral, isto , reconhecer a produo de mercadorias simplesmente como forma histrica determinada da produo social. Numa palavra, para decifrar o hierglifo da economia capitalista, Marx teve que abordar a investigao em direo oposta que seguiram os clssicos, partindo no da crena de que a forma de produo burguesa era o normal humano, mas do

A. Smith, loc. cit., pg. 376. 46

convencimento de que se tratava de algo historicamente perecvel; teve que transformar a indagao metafsica dos clssicos no seu contrrio: a dialtica.3 com isso se compreende que para Smith era impossvel distinguir claramente os dois aspectos do trabalho criador de valor, que, de um lado, transfere ao produto novo o valor materializado nos meios de produo, e, de outro, cria um valor novo. Parece-nos, no obstante, que seu dogma, segundo o qual o valor total se esgota na frmula v + m, procede, alm disso, de outra fonte. No se pode supor que Smith perdeu de vista o fato de que toda mercadoria produzida contm no s o valor criado em sua produo imediata, mas tambm o valor de todos os meios de produo empregados para fabricla. Precisamente ao enviar-nos, com sua reduo do valor total a v + m, de um estado de produo a outro anterior, de Herodes a Pilatos, como diz Marx, demonstra que tem conscincia plena do fato. O assombroso nele unicamente que converte constantemente o antigo valor dos meios de produo em v + m, fazendo que, finalmente, se esgote na frmula todo o valor contido na mercadoria. Assim, na passagem j citada a propsito do preo dos cereais, ele observa: "No preo dos cereais, por exemplo, uma parte paga a renda da terra para o proprietrio, outra, os salrios ou o sustento dos operrios e dos animais de trabalho, e a terceira, o lucro do colono. As trs parecem esgotar, imediatamente ou em ltimo lugar, o preo inteiro do cereal. Poderse-ia qui considerar-se necessria uma quarta parte para compensar o desgaste do gado e dos instrumentos de trabalho. Mas preciso considerar que o preo de todos esses instrumentos est integrado tambm pelas mesmas trs partes: 1.a) a renda da terra em que o cereal brotou; 2.a) o trabalho empregado nele; e 3.a) o lucro do colono que foi adiantado, tanto a renda da terra como os salrios. Se o preo do cereal contm tanto o preo do cavalo como o de seu sustento, ele se converter, mediata ou imediatamente, nos trs elementos mencionados: renda da terra, trabalho e lucro do capital." O que confundia Smith era, no nosso entender, o seguinte: 1. Todo trabalho se realiza com determinados meios de produo. O que, porm, num trabalho dado meio de produo (matria-prima, instrumentos etc.) , por sua vez, produto de um trabalho anterior. Para o padeiro, a farinha um meio de produo ao qual incorpora novo trabalho. Mas a prpria

Rosa Luxemburg, Die Neue Zeit, XVIII, t. II, pg. 184.

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farinha saiu do trabalho do moedor, no qual no era meio de produo e sim exatamente o mesmo que o po agora: produto. Nesse produto, o trigo era meio de produo, porm, se retrocedermos um grau mais, acharemos que, para o lavrador, o trigo no era meio de produo, mas produto. No se pode encontrar nenhum meio de produo que contenha valor que no seja produto de um trabalho anterior. 2. No modo de produo que estudamos, todo capital empregado, desde o princpio at o fim, na produo de qualquer mercadoria, pode reduzir-se, em ltimo lugar, a certa quantidade de trabalho materializado. 3. Assim, pois, o valor total das mercadorias, compreendendo todos os gastos de capital, reduz-se simplesmente a certa quantidade de trabalho. E o que rege para cada mercadoria deve reger tambm para a totalidade da massa de mercadorias produzidas anualmente pela sociedade: tambm seu valor total converte-se numa quantidade de trabalho realizado. 4. Todo trabalho realizado na forma capitalista decompe-se em duas partes: trabalho pago, que substitui os salrios, e trabalho no-pago, que gera lucro e rendas, isto , mais-valia. Todo trabalho realizado na forma capitalista corresponde frmula v + m.4 Todas as teses anteriores so perfeitamente exatas e irrefutveis. Que Smith as compreenda prova o rigor de sua anlise cientfica e seu progresso em relao aos fisiocratas na maneira de conceber o valor e a mais-valia. S que, ao chegar terceira tese, cometia ele, na concluso, o grosseiro erro de sustentar que o valor total da massa de mercadorias produzidas anualmente s