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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo VIII (80-78 a.C.) Maria Galito 2017

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo VIII

(80-78 a.C.)

Maria Galito

2017

César e a Vestal 185 Maria Galito

Capítulo VIII

674-676 AUC

A sobrevivência tem um custo.

Onde estava César? Na guerra contra Mitridates. Quem começara a vida como

flâmine de Júpiter, sem poder tocar em ferro, tinha agora a vida virada do avesso!

Tudo começou quando a cidade de Mitilene, onde ele vivia com o tio-avô Rutílio, foi atacada por piratas. Os dois conseguiram escapar (não sei como!) e reinstalaram-se em Esmirna, uma urbe sob controlo do pro-pretor Minúcio, o governador da província da Ásia. Este convidou César para ser um dos seus contubernales – uma categoria que os jovens ilustres ocupavam, antes de terem idade para se candidatar a cargos públicos.

Segundo dizem as missivas, César tem vocação para as armas. – Disse-me Cota. – É intrépido e nunca se cansa. Atira-se de cabeça! Luta corpo a corpo. Não fica na retranca! Enfrenta o inimigo nas fileiras dianteiras do exército. Cota parecia entusiasmado. Mas a novidade inquietou-me:

Ele pensa que é Aquiles, ou quer redigir uma Ilíada?

O herói dele é Hércules. – Corrigiu Cota. – Até escreveu um livro sobre o assunto. César enaltecia os seus ícones. Restava saber se ele queria fazer história!

A guerra é perigosa! Porque não se protege ele? Porque incorre em tantos riscos? Em resposta, obtive um exercício de retórica:

César escreve que é melhor sofrer o pior agora do que viver no eterno medo dele1.

Isso quer dizer exatamente o quê?

Na correspondência, César diz que… a experiência ensina todas as coisas2.

O que gostaria ele de aprender? Eu perguntei, mas fiquei sem resposta.

César diz que… quem não sabe, ensina, quem sabe, faz… e torna-se artífice da própria Fortuna3. Cruzei os braços:

É muita filosofia para o meu gosto.

César agora quer… ação e espada na mão!

O cipreste não é um abeto e César não tem grandes músculos…

Eu tinha dificuldade em imaginá-lo volumoso e cheio de força, para dar golpes de espada em batalhas campais. Eu ainda o recordava alquebrado no dia do julgamento, mal firme em pernas magras e corpo esguio. Não tinha ar de aguentar uma guerra!

César e a Vestal 186 Maria Galito

César nunca foi entroncado, mas é espadaúdo. Tem mais força do que parece. – Asseverou Cota. – Quando ele era miúdo, assisti a alguns dos seus treinos, no Campo de Marte, ainda em tempos do velho Mário, que se ocupava pessoalmente da educação do sobrinho. O rapaz era obrigado a esgrimir, a correr e a nadar dias inteiros! Não sei como aguentava mas, pelos vistos, cresceu para se transformar num homem valente.

Que César tinha coragem ninguém duvidava! Cota parecia orgulhoso por o sobrinho enfrentar as forças de Mitridates, um rei que permanecia ativo e constituía uma ameaça aos interesses romanos, nomeadamente através da pirataria.

Quando Lesbos foi atacada, Minúcio prometeu reconquistar a ilha e enviou o seu melhor legado para o local. Luculo fez cerco a Mitilene, a capital, mas o drama nunca mais se resolvia. Sob pressão de Roma, pediu reforços. Não os recebeu. Foi então que o governador enviou César, como embaixador, à corte do rei Nicomedes da Bitínia.

Luculo pensava a missão impossível para jovem tão inexperiente. Mas, para seu espanto, o meu sobrinho apareceu em Mitilene à cabeça de uma frota de guerra!

César agora é almirante? – Eu estava em estado de choque.

A batalha naval correu favoravelmente aos romanos e os piratas foram mortos. Luculo reivindicou vitória. Minúcio roubou-lha e coroou a cabeça de César com folhas de castanheiro.

Foi uma honra excecional! A coroa cívica é raramente atribuída pelo Estado. Tanto assim que assegura entrada do meu sobrinho no Senado (pela segunda vez) aos dezanove anos (antes da idade normal). – Enalteceu Cota, triunfante.

Ave César! Mas Cota estava apreensivo:

Luculo ficou invejoso e… fez insinuações públicas contra o meu sobrinho.

Como assim? – Perguntei.

Nicomedes evitava ajudar os romanos para não sofrer represálias de Mitridates. Minúcio e Luculo não tinham conseguido convencê-lo a contribuir para a sua causa, portanto, estranharam a facilidade com que César trouxe uma armada para Mitilene!

Ele foi acusado de corrupção? Peculato? Extorsão? – Foram as minhas hipóteses. O meu colega continuou a rodear a questão:

O meu sobrinho é um virtuoso! Encanta um surdo com os seus discursos. Por Mercúrio, eu fui seu professor! O miúdo só podia ser bom orador!

És a modéstia em pessoa, Cota. – Ironizei, mas com um sorriso no rosto.

Vê lá tu! César disse que era divino e o parolo do Nicomedes acreditou. Encolhi os ombros, como se a montanha tivesse parido um rato.

O teu sobrinho afirma descender de Eneias, filho de uma deusa. Em Roma, toda a gente o ouviu defender essa teoria. Até virou piada…

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Não estás a perceber. Na Bitínia, César disse ser filho de Vénus e que, portanto, tinha sangue azul (e não rubro, como o comum dos mortais). Para o provar, mostrou braços de pele muito branca de onde sobressaem veias grossas e cerúleas. Nicomedes levou a história a sério!

Portanto, o teu sobrinho manipulou a verdade. Foi acusado de heresia?

Não. – Avisou Cota. – César regressou à Bitínia com o saque de Mitilene (enfim, parte dele) para agradecer o empréstimo da frota. O monarca, por uma questão de cortesia, organizou um banquete em honra do meu sobrinho e outros romanos assistiram à cerimónia. Mas a refeição engasgou-os.

Eles foram envenenados? – Assustei-me.

Não, revoltaram-se contra o protocolo. – Explicou Cota, atrapalhado. – Eu explico. Nicomedes tratou César como um rei. Qual fosse um Eneias renascido, entendes?

A corte bitínia leu Homero. E depois? – Insisti, sem me deixar levar por lirismos. O tio do jovem remexeu-se no assento e disse-me:

Não sei se sabes, mas a Bitínia fica localizada a norte da cidade de Troia (ou o que resta dela!). Sempre esteve sob a influência da cultura grega, cuja hospitalidade é uma forma de honrar os deuses.

Cévola explicou-me o significado da xénia na Odisseia de Homero. A hospitalidade era considerada sagrada. Negá-la, a um deus, podia desencadear a fúria divina!

Exato. Se César era um deus teria de ser recebido, na corte de Nicomedes, com todas as honras de Estado, o que também implicava participar nos rituais bitínios. Mas Minúcio e Luculo ficaram escandalizados com aqueles rodapés ridículos, de ajoelha aqui, faz assim, faz assado! Para nós é algo pouco digno. Mas, para eles, é sinal de cortesia. Eu continuava sem perceber qual era o problema.

Minúcio e Luculo acusam César de humilhar Roma perante um rei bárbaro?

Mais ou menos. Eu estava a ficar saturada de tanto rodeio.

Cota, preferia que fosses direto ao assunto.

Pois bem. César foi conduzido a quarto engalanado, onde se deitou num leito de ouro. Foi um ritual de hospitalidade, pois passou a noite com companhia. O meu sobrinho dormiu com a filha do rei, a Nisa, que é candidata ao trono. Eu quase tombava de onde estava sentada.

Espera… o quê?

O meu sobrinho não tomou Nisa como concubina, nem se gabou muito do assunto. Luculo achou estranho e desconfiou que César se prostituíra com Nicomedes. Não é verdade. O rei é um homem de setenta anos, que está no fim da idade e não há harém que lhe acuda. Alguém tem de suceder ao rei e ele não tem filhos homens. Portanto, Nisa queria ter um filho louro de César. Foi isso. Eu estava atónita!

César teve um filho dessa tal de Nisa?

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Não ouvi falar mais no assunto. Penso que não. – Atalhou Cota. – Mas sei que Minúcio e Luculo se aliaram contra César. De repente tive uma ideia:

Eles são aliados de Sila?

Sim. Luculo é da família de Metelo Pio. – Corroborou, arqueando a sobrancelha.

Já te ocorreu… que as acusações a César sejam punição de Sila? O objetivo do governo é eliminar todos os marianos. Luculo e Minúcio são agentes do ditador.

Realmente, não tinha pensado nisso. – Admitiu Cota, coçando a cabeça. – Mas é possível, sim. Minúcio e Luculo têm dor de cotovelo. São feios e abrutados, não seduzem ninguém de jeito. César, pelo contrário, parece que tem mel! Tem andado com muitas raparigas desde que partiu. Enfim é jovem! – Exclamou Cota. – O rapaz tem um sucesso com as mulheres que nem queiras saber! Engoli em seco.

Sim, dispenso! Mas ele não é casado com Cinila? – Foi a minha hipocrisia.

A filha de um rei oriental não faz sombra a uma patrícia romana. – Explicou Cota, com paternalismo elitista.

Discordo. Uma mulher que gosta de um homem sente ciúmes dessa conversa. Cota olhou para mim com surpresa estampada no rosto:

Cinila está casada com um herói e aguarda por ele como Penélope por Ulisses. Fiquei com vontade de vomitar!

Olha, sabes que mais? Vamos mudar de conversa. – Propus com mal disfarçada irritação. – Afinal, a guerra civil acabou ou não? – Perguntei a Cota.

De acordo com a teoria, a guerra civil terminara com a entrada de Sila em Roma. O Senado nomeara o invasor ditador, durante seis meses, o prazo legal para ele impor a paz e torná-la sustentável enquanto projeto político.

O segundo semestre de 673 AUC teve direito a um par de cônsules, embora o comandante continuasse a mandar na cidade através deles. Depois Sila tornou-se ditador, por mais seis meses, para apaziguar os territórios ultramarinos e manter a paz urbana.

Quando se organizou novo escrutínio, Sila e Metelo Pio foram eleitos cônsules. O pontífice máximo foi pressionado a oficializar o seu casamento com Crassa e, após longo noivado, o líder da religião aceitou finalmente receber companheira na Domus Publica. Nesta altura, ele já sabia que partiria para o governo de uma província e que, portanto, não ficaria muito tempo, em Roma, a aturar a mulher.

Crassa fora a primeira esposa de Mariozinho e dera-lhe um filho, cujo paradeiro atual era desconhecido. Após a primeira invasão de Sila, o avô dela falecera, provavelmente por se ter oposto à proscrição de Mário. O áugure corajoso batucou (foi assassinado?) e a neta divorciou-se do marido, pois Mariozinho contraiu segundas núpcias com Múcia, filha do falecido Cévola e ainda parente de Crassa.

A noiva de Metelo Pio não era uma virgem de quinze anos. Era uma traumatizada da vida. Também era oradora prestigiada. Famosa pela sua exuberância, ela possuía cultura geral

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impressionante, que herdara do pai, um orador excelente, contemporâneo do falecido Aenobarbo e amante do luxo.

O gago vai casar com uma gralha! – Troçou Popília, com maldade.

Quando ele falar na sua língua, tem tradutor ao lado! – Foi a piada lançada por Licínia, antes de rebolar a rir junto ao fogo de Vesta.

Vocês as duas, se fazem favor, mantenham o recato dentro do templo. Vamos orar! – Pediu Fonteia, antes de se dedicar à meditação.

Para a boda foi convidado Apício, o cozinheiro mais brilhante da cidade, que publicava receitas em rolos de papiro. O padeiro de serviço era Eurísaces, pois ele agora fornecia o exército e era famoso por isso. Nada mal para um liberto pobretanas que eu encontrara na rua e ajudara na sua hora de maior necessidade!

Tenha cuidado com Sila, Eurísaces. – Pedi-lhe, uns dias antes do evento, quando ele me contou a novidade.

Eu evitei comparecer à boda de Crassa e de Metelo Pio. Até convenci Fonteia a entregar-me o turno desse dia, junto ao fogo sagrado. Portanto, o carpeto das vestais apenas transportou Fábia e Licínia para o evento e eu convenci-me que escapara ao desafio.

Porém, ainda nessa noite, Metela foi enviada pelo primo até ao santuário de Vesta com a incumbência de me levar (obrigatoriamente) à festa. Isto porque a iniciativa solidária, que eu dinamizava junto dos pobres, era tópico de conversa entre os convidados da boda.

Sila mandou chamar-te, Emília. – Avisou Metela, junto ao portão.

Não vou. – Insisti, determinada.

Já nem é o meu primo a reclamar a tua presença. É o próprio chefe de Estado.

O que tenho eu a ver com isso?

Tens de vir comigo ou colocas todas as vestais em perigo! Estou a falar a sério, é verdade o que te digo. – Aconselhou a nossa antiga sumo-sacerdotisa. – Sila mandou incendiar o templo de Júpiter para capturar César. Poderá fazer o mesmo aqui, por tua causa. O fórum até lhe fica mais a jeito do que o Capitólio.

Fonteia pediu-me encarecidamente que fizesse a vontade a Sila. Perpena ficou aterrada de medo. Popília gritou-me aos ouvidos, acusando-me de egoísmo e empurrou-me para fora do santuário.

A situação era constrangedora, por isso, resolvi aguentar a bronca e dar às pernas. Entrei numa liteira requintada e sentei-me. Durante o caminho, Metela pediu-me desculpa pelo inconveniente, admitindo não ter tido outra hipótese se não cumprir ordens superiores. Não lhe apaziguei o espírito. O risco a que ela me sujeitava era elevado.

Virei o rosto para a cortina e espreitei a rua. Seguíamos viagem até à nova casa de Sila, no Palatino. Enquanto subíamos pela vereda, guardas cheios de cicatrizes escoltavam-nos, caminhando ao lado das grandes rodas de madeira da carruagem, com tochas acesas nas mãos.

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Passámos pelo discreto lar dos Emílios, que parecia humilde numa vizinhança dominada por novos prédios, grandes e coloridos! Um dos lotes estava em construção. A casa de mármore cor-de-rosa de Mário, tão criticada pelo meu pai, fora arrasada durante a última invasão, portanto, o teto onde eu e César tínhamos brincado em crianças e casado à luz do lararium já não existia. Uma sensação de nostalgia, difícil de descrever, apertou-me o peito. Tudo mudara e o tempo não voltava para trás.

Mais à frente, recordo uma porta enorme, de madeira pesada, em faustuosa morada. Era um disparate de luxo! De gosto duvidoso, alongava-se na rua e estava toda iluminada. Era a casa de Sila!

Chegámos, Emília. – Avisou Metela, como se não fosse evidente.

Orei silenciosamente, a Vesta, que me protegesse. Só depois coloquei os pés no chão. Respirei fundo, hesitando no que fazer. Mas Metela puxou-me pelo braço e fez-me entrar na festa. No vestíbulo fomos saudadas pelo mordomo de Sila, um homem forte e bojudo, vestido às cores com penachos nas costas, como se fosse um galináceo.

Metela aconselhou-me a não tecer comentários à indumentária do homem, pois ele era Lúscio, o centurião cortador de cabeças, que carregava a tocha de Sila quando este saía à rua. Disse-me que ele matara três proscritos, para ficar com as suas propriedades. O seu espólio ascendia a 100.000 sestércios, o que era uma fortuna para homem como ele, de origens humildes. Também era acusado de distúrbios nos primeiros dias de proscrições, por ter atirado cidadãos inocentes ao rio, para ver se deixavam de respirar mais depressa.

Que história macabra, Metela! – Revoltei-me, obrigando-a a alargar-me o braço.

Ela calou-se. Caminhei em frente, ladeada por convidados que pareciam despir-se à medida que nos aproximávamos do peristilo, ao lado de frescos depravados que enchiam as paredes de cenas escandalosas. Até que alguém me pregou um susto.

Sorex não nos assustes! – Pediu Metela. Mas ela sorria, não estava enervada. Ele deu um espetáculo de mímica e não nos largou até chegarmos junto de Sila.

Sorex vem cá! – Pediu Róscio, à distância e ele foi.

Eu não tive remédio se não enfrentar o invasor. Mas era ele? Duvidei. Sila transfigurara-se! À minha frente estava homem maquilhado e de peruca que parecia um fauno. A sua boca rubra, em rosto enfarinhado, escondia os caninos. Ele parecia uma máscara grega! Também porque estávamos no teatro! Atores atuavam e músicos rodopiavam entre senadores, mas não eram os únicos a representar naquele imenso palco onde bebidas regavam as gargantas mais secas.

Metela afastou-se discretamente, para se aproximar de Dalmática. A sua prima, embora fosse a anfitriã da festa, ocupava lugar secundário num evento liderado pelo marido e pelo amante dele, Metróbio. Foi então que Sila carregou sobre mim dois faróis de Alexandria. Eu soube logo que estava tramada!

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Eu lembro-me de ti, vestal! – Exclamou Róscio. – Subi na vida, sabias? Fiquei rico. Até ganhei estatuto de equestre. Repara no meu anel de ouro, não é uma maravilha?

Mostrou-me a sua mão premiada e eu mantive-me calada, em luto pelos muitos cavaleiros espancados até à morte nos últimos meses, um dos quais perdera o dedo para Róscio ostentar o título. Suspirei de asco. Eu queria muito fugir dali, mas como? A espada do ditador estava à vista de todos, pendurada na sua cintura.

Esses olhos lépidos vêem-se à distância e não se confundem. – Alertou Metróbio, a primeira-dama número dois da cidade.

Podes ficar com eles, se quiseres. – Foi a generosidade de Sila. Cerrei as pestanas perante a tortura. Metróbio teve pena de mim.

Calma, Sila, não assustes a vestal. O ditador sorriu com benevolência, real ou fingida, e mandou calar a assistência:

Um momento de silêncio! – Gritou ele e foi imediatamente obedecido. – Meus caros, ainda não vos apresentei a minha convidada. Já devem ter ouvido falar na nossa vestal virgem santíssima. Há dois anos que Emília presta auxílio aos pobres da cidade, distribuindo pão junto ao templo de Vesta… com a minha autorização, claro. – Reivindicou e foi aplaudido em consequência. Metróbio deu dois passos em frente para falar bem de mim:

A vestal Emília tem ajudado muitos atores no desemprego que fazem filas à porta do templo de Vesta. Ela não os escorraça e maltrata, como outros fazem, por pura maldade. Ela faz serviço público. – Defendeu. Fiquei pasma. O amante de Sila era simpático? O mundo estava perdido.

Emília é uma mulher tremendamente popular em Roma. – Avisou o dono da casa. A sua frase não era inocente e tinha duplo sentido.

Então acabemos com ela. A cidade pertence aos optimates! – Exclamou um homem da assistência, cujo rosto não identifiquei. A assistência mexeu-se em onda. Eu estava ali para ser sacrificada?

A ves-vestal tem feito um bom-bom trabalho e cumpre or-ordens do pontífice máximo, que-que sou eu. – Defendeu o noivo, na sua expressão séria. Todos se calaram. Ele era o único em traje militar e metia respeito. Virou-se para Sila e perguntou calmamente. – Caso-me ou não? O comandante desafiou-o perante terceiros:

Estás com pressa? Não me digas que anseias pela lua-de-mel com Crassa? Ele encolheu os ombros, de sobrancelha arqueada, demonstrando pouco interesse.

Quem lhe vai fazer companhia sou eu. – Avisou um helénico que passou o braço pelo ombro do pontífice máximo. Mas aquele era quem?

Arquias, ao menos larga o homem no dia do casamento! – Troçou Róscio.

Porque não soltas tu a Catulo? – Atirou-lhe o outro, em resposta.

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Enquanto eles discutiam, eu olhei a assistência, à procura de rostos conhecidos. Só avistei a Terência, a meia-irmã de Fábia. Mas afinal onde estava a minha colega? De Licínia também não havia sinal. Tentei afastar-me do palco, para ir à procura delas. Mas Sila agarrou-me pelo braço e sentou-me ao lado de Metelo Pio.

A Emília gosta de comédias ou de tragédias? – Perguntou o ditador, com a descontração de um tirano que acabara de me ameaçar tirar os olhos.

Prefiro rir a chorar. – Declarei, sem mais acrescentar. Eu não estava em pânico, mas invadia-me o nervosismo e queria muito sair dali.

Já somos dois. – Zombou Sila. – Gosta de ir ao teatro? Estranhei o interrogatório. O que queria ele? Fazer conversa? Testar-me?

Costumo ficar no templo a orar e a velar pelo fogo sagrado de Vesta. – Respondi, de estômago revolvido e mal-estar generalizado.

Pois hoje vai ter a oportunidade de ver os melhores atores da cidade. – Advertiu. Metróbio ficou encarregue das apresentações:

Senhores e senhoras! Os atores que chamo ao palco são conhecidos de todos! Peço palmas para Róscio o cómico, Esopo o trágico e Sorex o chefe da pantomima.

Róscio especializara-se em comédia, por não conseguir arrecadar mais palmas que Esopo, já consagrado na tragédia. Com o tempo tornou-se no ator mais bem pago de Roma, pois as suas peças tinham sempre casa cheia e os alunos não sofriam no desemprego. Metela, agora sentada atrás de mim, explicou-me que Róscio aperfeiçoara a sua oratória ao assistir aos julgamentos no fórum.

Palmas para Róscio, o mais gracioso dos artistas cómicos que, com a sua elegância em palco, nos faz rir de nós mesmos. – Aplaudiu Metróbio.

Metela contou-me que Róscio fora cobiçado na juventude por vários homens influentes, por ser considerado bonito e atraente. Ultimamente estava sob a proteção de Catulo que compunha poemas em sua honra e os mandava publicar. Portanto, o caso amoroso entre os dois era tão público como a relação entre Sila e Metróbio.

Eis o grande Esopo! O mestre do artifício que ocupa o centro da ação, em cena e na vida real. – Enalteceu Metróbio.

Esopo era um liberto de Cláudio (o viúvo da falecida irmã de Metela). Tinha fama de ser o melhor ator trágico da atualidade. Dizia-se que incarnava as personagens com fervor. Não representava heróis que se suicidassem, como o mítico Ajax, com medo de se ferir, levado pelo entusiasmo. De acordo com Metela, ele renascera o teatro grego em Roma, caído em desuso, a favor do caricatural e do grotesco. O seu rosto valia ouro e era de tal forma expressivo que evitava o uso da máscara de serviço.

Metróbio terminou as apresentações ao tecer encómios ao seu currículo e ao de Sorex. Eles os dois, mais Esopo e Róscio, organizaram-se com o objetivo de entreter o ditador e os seus convidados, fazendo jus às especialidades de cada um, num palco improvisado na casa do anfitrião, perante assistência sentada em banquinhos, encostada às colunas ou às paredes, ou simplesmente em pé junto a amigos e parentes.

César e a Vestal 193 Maria Galito

O teatro parecia mais um concurso, em que os atores se desafiavam, recitando pequenos textos de autores conhecidos. Sorex não falava mas gesticulava e fazia malabarismos vários, pois o homem até fazia pino à parede para divertir os convidados de Sila!

De repente, Esopo agarrou numa espada, para melhor encarnar o mítico Atreu e enterrou a lâmina num escravo, que por ali passava, com uma bandeja de comida. A assistência pensou que o deslize fazia parte do espetáculo e aplaudiu.

Na fila da frente, fui das primeiras a ver o sangue derramar pelo chão. Levantei-me para acudir ao rapaz, mas Sila sentou-me com força e Metelo Pio avisou-me que o rapaz estava morto. Levaram o cadáver e eu fiquei sentada, lívida de susto, com o coração aos pulos.

Eu não acredito que isto esteja a acontecer! – Exclamei, desalmada.

Calma, Emília. Não digas nada, é pior. – Pediu Metela, à retaguarda.

Esopo praticou um crime! Vai ficar impune? Não pode ser. – Rebelei-me.

Já vi pior. Numa festa, o ano passado, um proscrito foi assassinado à nossa frente e Sila pediu a Sorex para criar uma coreografia em torno do homem caído. O pantomineiro dançou com a cabeça degolada em frente aos convidados. Engoli em seco. Senti repúdio.

É inaceitável! Não pactuo com isto!

O teatro estava ferido de morte. O próprio Esopo dava mostras de desconforto e já balbuciava palavras caras. Sila cansou-se dos seus ensejos e mandou-o sentar-se. A ele e aos outros. Quando o último dos atores ocupou lugar na assistência, o comandante disse:

Sossego! Foi um acidente e não se fala mais nisso.

Sair dali era mais perigoso do que ficar? Levantei-me, com intenções de partir. Foi então que Sila me disse qualquer coisa que eu não ouvi, pois não lhe acudi, nem interrompi o passo, mas fui barrada por escravos armados.

Metela veio ter comigo e abraçou-me. O comandante não deu ordens para desviar as espadas, que estavam agora apontadas na nossa direção. Por isso, ela tentou desviar as atenções da turba:

Sila, porque não convidas a Cícero para declamar um dos seus discursos? O comandante lançou reto a homem sentado em terceira fila:

Grão-de-bico vem cá! Quero saber se as aulas, que te pago, têm dado rendimento! Virei o rosto em direção àquele que se erguia.

Quem é Cícero? Um ator? – Perguntei a Metela.

É parente de Albinovano. Pelo menos pertencem à mesma Gens dos Túlios.

A propósito, onde está Albinovano? – Perguntei a medo, pois ele era um popular.

Está ali ao fundo. – Apontou Metela. O homem, em causa, escondia-se na turba.

Sila perdoou-lhe? – Estranhei, de sobrancelhas cerradas.

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Devias perguntar o que fez ele para não ser castigado? – Alertou ela, de sobrancelhas cerradas. – Entregou a cidade de Ariminium a Metelo Pio… o que foi uma sentença de morte para todos os seus habitantes.

Ele não faria isso… – Balbuciei horrorizada.

Albinovano não queria morrer e recorreu à traição. Convidou, para um banquete, os legionários à sua guarda e matou-os. Depois abriu as portas da cidade ao meu primo. Ouvi dizer que foi um banho de sangue! – Murmurou Metela. – Catilina é apenas o mais famoso dos infiéis. Ficarias espantada com a quantidade de casos que eu conheço de gente que se urinou perante a foice de Saturno e se mostrou capaz de tudo para sobreviver.

Cícero já falava com voz forte. Metela explicou-me que ele era de Arpino, cujo avô fora casado com uma tia do falecido Gratidiano. Era um equestre. O avô falecido da noiva fora seu professor (tal como de Mariozinho, ex-marido de Crassa). Durante a guerra contra os italianos, servira no exército. Primeiro sob a liderança do pai de Pompeu. Nessa época conheceu o meu irmão e o jovem carniceiro. Cícero foi também contubernale de Sila e, desde então, ficara sob a sua proteção. Tratava-lhe da burocracia e de questões legais. Uns meses antes defendera o seu primeiro caso civil em tribunal (Pro Quíncio). Mas ainda era, a todos os títulos, um advogado inexperiente.

Metela também me informou que Cícero fora apresentado a Róscio e a Esopo, através de Sila. Desde então, ele tinha aulas com os dois atores mais famosos de Roma. Róscio redigira um tratado a comparar a retórica à oratória e Cícero era da apologia que um advogado devia aprender a representar para obter reações emocionais dos júris e do público que assistia aos julgamentos. Fiquei escandalizada.

Cícero tem aprendido a ser bom ator para manipular a justiça e o veredito final em tribunal? Estou escandalizada com o que dizes. É uma imoralidade! – Conclui.

Mas Metela admirava Cícero. Enalteceu-me as suas virtudes: que era muito inteligente, inovador e corajoso nas técnicas que aplicava:

Não te precipites nos julgamentos. Não estás a ouvi-lo? Ele é bom. Foi então que o ditador me afastou de Metela e empurrou para o centro da ação.

Mas o que é isto? Eu sou uma vestal romana, não sou um animal amestrado! – Revoltei-me, assustada.

Fixei os olhos no pontífice máximo em busca de apoio. Metelo Pio media as suas batalhas e optou por não intervir a meu favor, dispondo-se a ver se eu me desenvencilhava sozinha.

Depois da oratória de Cícero, proponho um desafio. Que tal trocarem frases de Terêncio? Cícero começa tu, que deves saber algumas! – Foram as ordens de Sila. O comandante parecia divertido. O orador de Arpino não se fez rogado e clamou:

Sou um homem: nada do que é humano me é estranho!4 Todos me olharam, à espera que eu também declamasse uma frase do dramaturgo.

Enquanto há vida, há esperança5. – Foi o que me ocorreu das aulas do falecido Cévola.

César e a Vestal 195 Maria Galito

Sila pareceu surpreendido e trocou olhares com Metróbio. O ator bateu palmas e disse:

A vestal Emília é letrada e vai dar luta ao teu protegido, vais ver… Sila queria desforrar-se, mas não se importava que a vingança fosse lenta.

Ela não se pôs a chorar. Ótimo! Isto está a correr melhor do que eu pensava. – Retorquiu, esfregando as mãos de contente.

Metelo Pio sabia que a situação era bizarra e herética. Mas o dono daquilo tudo estava-se a borrifar para as convenções e ria-se muito. Cícero aplicou as técnicas de teatro que aprendera e com gestos e modos disse:

Conheço o caráter das mulheres: não querem quando queres; mas quando não queres, são as primeiras a quer6. Gargalhadas fizeram-se ecoar.

Moderação em todas as coisas7! – Pedi.

É a tua vez, Cícero. Estamos à espera! – Foi o reto do anfitrião.

Era uma ordem. No entender de Sila, o advogado tinha de ganhar o concurso. Para rematar a questão, o jovem de Arpino, antes que o teatro se virasse contra ele, ameaçou:

Pois mas quando não se pode fazer tudo o que se deve, deve-se fazer tudo o que se pode8 … para garantir a cabeça sobre os ombros. Aproveitei a deixa para atacar:

Só metade dessa frase é de Terêncio. – Avisei, arriscando tudo por um perfecionismo, na esperança que a tortura acabasse mais depressa. – Apelo ao júri que desclassifique o meu adversário. Reivindico vitória! Todas as cabeças se viraram para Sila:

Como queres vencer nos tribunais, Cícero, se nem consegues ganhar a uma mulher? – Criticou Sila, virando-se para jovem que, não sendo de armas, demonstrava ser altamente competitivo e a verdade é que não desistiu.

Só mais uma frase Sila e esta em teu louvor: A sorte sorri aos fortes9.

Emília sabes mais alguma frase de Terêncio? – Perguntou-me o dono da festa que, tal como Mário, tinha fome de vencer. Olhei para Metelo Pio e para a prima, que me aconselharam a rendição. Baixei os braços. O comandante sorriu e levantou-se, aproximando-se de Cícero, cujo braço direito ergueu, dizendo. – Um aplauso para o laureado.

Os convidados bateram as palmas e fizeram tremer o chão com os pés, como um pequeno sismo. Não me curvei, como os atores no final da peça. Mas dei sinal de vida, com orgulho patrício:

É sábio experimentar todos os caminhos antes de chegar às armas10. – Alertei, antes de acrescentar uma segunda citação, provando que ninguém me ganhava. – Lei extrema é muitas vezes extrema injustiça. Cícero espantou-se e corou. Sila deu um passo na minha direção com um aviso:

Ela nunca foi charmosa até que morreu11. – Provando, assim, conhecer Terêncio. Metelo Pio ergueu-se e não enrolou a língua para me travar:

César e a Vestal 196 Maria Galito

Cala-te, Emília. Que pontífice máximo era aquele que velava tão estranhamente pelas suas vestais?

O mais próximo de mim sou eu12. – Retorqui com valentia, mas já caminhando numa direção sem espadas que me abrisse as portas à liberdade.

Dei-deixa ir embora. Ela-ela é uma ves-vestal. – Exigiu o gaguejar de Metelo Pio.

Ninguém foi atrás de mim. A música cerimonial ecoou qual marcha nupcial e a noiva finalmente apareceu. O pontífice máximo deu início ao casamento, com gestos firmes e poucas palavras. Os convidados organizaram-se em torno dele – embora Sila não lhe tenha cedido o protagonismo, mantendo-se a seu lado.

Crassa não se revoltou com a espera, apesar de ter sido humilhante. Não teria pressa em aliar-se a Metelo Pio? Teoricamente a aliança era vantajosa. Se antes trocara votos com Mariozinho, número dois do partido popular, ela agora contraía casamento com o número dois dos optimates. Ironia do destino? A política romana era hipócrita! Do ponto de vista pessoal, desagradava à maioria das mulheres, obrigadas a contrair casamentos de conveniência com homens que não lhes interessavam.

Poderia eu regressar ao fórum? Eu perdera utilidade para Sila. Portanto, atrevi-me a procurar pela saída, caminhando em direção à porta. Pelo caminho encontrei Terência, que procurava pela irmã.

Fábia e Licínia queriam experimentar o vinho, quando as repreendi.

As vestais não podem ficar ébrias. – Preocupei-me.

Eu sei. Foi por isso que se escapuliram. – Avisou-me. – Elas devem ter regressado ao fórum. Na festa não estão, que já as procurei.

Fábia ir-se-ia embora sem se despedir de si, Terência? – Estranhei.

Oh sim. Em criança, ela escapulia-se de casa muitas vezes sem avisar.

Fábia tinha dezasseis. Licínia era três anos mais nova. Saberiam safar-se sozinhas no meio daquela confusão? Onde estavam elas? Teriam regressado ao templo redondo de Vesta? Despedi-me de Terência. Furei pela multidão, por túnicas, togas, estolas e palas e perguntei pelo paradeiro das raparigas a mais três pessoas. Ninguém sabia onde estavam as raparigas. O que, no meu entender, só podia ser negativo.

Enquanto eu hesitava no que fazer, passei por uma cortina basculante, que despertou a minha atenção. Identifiquei o entrançado característico das vestais ao lusco-fusco. Teria eu vislumbrado rosto familiar? Espreitei para dentro do cubículo. Aquela seria quem? Não a reconheci logo. Ao fundo, uma candeia descobria uma cama, onde estava deitada uma segunda rapariga, que era… Licínia!

Identifiquei os outros dois vultos quando Catilina pegou em Fábia e a colocou às costas, como se fosse palha, afastando-a da cortina, do lado de dentro. Levou-a para o leito, onde lhe deu algo a beber. As jovens pareciam drogadas. Que lhes dava ele? Cerveja egípcia? Vinho romano? Hidromel grego? Devia ser uma combinação alucinogénia qualquer! Sei que as jovens vestais estavam bêbadas. Pareciam bonecas nas mãos dele. E agora? Como

César e a Vestal 197 Maria Galito

podia eu salvá-las? Não era fácil. Catilina tinha fama de bárbaro assassino, mantinha-se sóbrio e eu não tinha instintos suicidas.

Enquanto ele rebolava no leito com as duas sacerdotisas, afastei-me da cortina, do lado de fora. Com o coração aos pulos, pensei numa solução, que devia ser rápida!

Fábia e Licínia já não eram virgens. A festa estava cheia de altos dignatários que podiam servir de testemunhas contra elas em tribunal. O escândalo, se eclodisse, serviria os interesses de Sila, pois a morte de vestais purificaria (teoricamente) a invasão do pomério. Eu não podia deixar prolongar a experiência delas às mãos do abutre. Que fiz eu? Gritei.

Sila quer falar com Catilina! – Repeti três vezes. Os escravos, que passaram por mim, com travessas de comida, pasmaram-se comigo, a falar sozinha. – Sabes onde estão as vestais Fábia e Licínia? Se não podem ficar na festa ou morrerá quem estiver com elas! Procura-as e leva-as para o vestíbulo, rápido! Ou Sila manda assassinar toda a gente aqui dentro!

Aproveitei para mexer as pernas em direção à saída. Quando lá cheguei, pedi ao mordomo que chamasse os lictores. Esperei no vestíbulo. Felizmente, o engodo funcionou. Fábia e Licínia lá vinham, drogadas e confusas, sob escolta de duas escravas.

Numa situação normal, eu tê-las-ia enchido de perguntas. Como eu sabia mais do que precisava, levei-as comigo até ao fórum, sem mais conversa! Peguei nas duas desgraçadas e fui-me embora sem me despedir dos convidados. Só pedi às escravas que transmitissem um recado a Metelo Pio: as vestais estão indispostas e regressam mais cedo ao santuário de Vesta, mas desejam as maiores felicidades ao pontífice máximo pelo seu casamento. Era uma hipocrisia, mas a diplomacia evitava represálias.

Quando chegámos ao santuário, apeámo-nos do carpeto e atravessámos o portão, que eu fechei atrás de nós. Fábia e Licínia amparavam-se a mim, mais a dormir do que acordadas, quando a sumo-sacerdotisa nos espreitou do templo.

O que se passa, Emília? O que é que elas têm? – Estranhou Fonteia. Temi que ela apresentasse queixa contra as colegas se soubesse a verdade.

Licínia e Fábia estão cheias de sono. – Avisei, ao escapar-me com elas para dentro do dormitório. Fonteia não nos seguiu.

Dois dias mais tarde, Metela apareceu novamente no santuário e pediu para falar comigo. Não lhe acudi. Eu estava furiosa com ela. Mas Fonteia deixou-a entrar no átrio das vestais.

Fizeram bem em regressar mais cedo ao templo redondo, antes que o casamento do meu primo se transformasse numa orgia. Vesta seja louvada! – Exclamou a nossa antiga chefe. Recebia-a à entrada do nosso dormitório.

Metela vai-te embora! Tu já não és uma vestal. – Pedi-lhe.

Não fiz qualquer referência à desgraça pela qual Licínia e Fábia haviam passado. Eu já não confiava nela. A prima do pontífice máximo remexeu as mãos no regaço e não partiu.

César e a Vestal 198 Maria Galito

Desculpa, Emília. Eu não devia pedir-te mais favores, mas estou a tentar salvar alguém que precisa muito de ajuda e não sei quanto tempo conseguirei valer-lhe. É caso de vida ou de morte. Ainda hesitei. Eu era solidária com o povo de Roma.

Como assim? – Perguntei, caindo na esparrela.

Ela narrou-me história rocambolesca, sobre um jovem provinciano acusado de parricídio. O rapaz era filho de um ancião assassinado nas ruas da capital antes das calendas do mês de Juno de 673 AUC, ou seja, um ano antes. Ele fora confundido com um proscrito e os seus bens, vendidos em hasta pública, que depois foram arrebatados por um liberto de Sila e dois parentes da vítima, um dos quais expulsara de casa o rapaz que Metela protegia.

O miúdo é inexperiente nas lides da política. Toda a vida se dedicou à faina e ao campo. Sobreviveu a uma tentativa de homicídio. Senti pena dele. Eu tinha de ajudá-lo, entendes? – Perguntou Metela, levando a questão a peito.

Se Amerino é vítima, porque o acusam de carrasco? – Estranhei.

Para lhes ficarem com as propriedades, claro. – Contrapôs Metela.

Mas eles já as têm. – Alertei.

Mas terão de restituí-las, se Amerino provar que é inocente. – Informou Metela.

Está bem, já percebi.

Eu fui vestal e trabalhei com testamentos, mas a nossa especialista em Direito suicidou-se. Tu trabalhaste com ela mais do que eu ou Fonteia. Podias ajudar-me a consultar as leis em vigor, para ver se o advogado consegue defender o garoto. – Pediu encarecidamente.

Vou ver o que posso fazer. Mas esta é a última vez que me pedes seja o que for.

Prometo. – Jurou a pés juntos.

Metela convidou-me a visitá-la dois dias depois, para avaliarmos a questão em pormenor. Na data combinada, percorri a cidade aos pulos, numa geringonça que saltitava a cada buraco da estrada!

A casa de Metela era uma domus com bom aspeto na margem sul do Tibre. Ela residia com a irmã dos falecidos Numídico e Dalmático. Do ponto de vista político, elas eram optimates mas progressistas (tal como os Emílios eram populares conservadores).

Metela e Calva eram fisicamente parecidas. Receberam-me com todos os berloques e atavios, pois as duas viviam no máximo luxo. Suspeitei da fartura e sentei-me num banquinho de madeira, enquanto elas se refastelavam ao comprido em assentos almofadados, requintados à luz da moda!

Encontraste algum testamento que nos possa ser útil? – Perguntou Metela. Fiquei escandalizada com o pedido e com o à vontade com que o fazia.

Não posso facultar informação sobre documentos que estejam à guarda das vestais, sabes disso. – Alertei, ainda à defesa.

César e a Vestal 199 Maria Galito

Eu sei que não há testamento, Metela. – Exclamou Calva, dirigindo-se exclusivamente à prima. – Estamos a perder tempo com ela! A não ser que a tua amiga forje um pergaminho com base nas nossas instruções.

Eu não vou fazer nada disso. – Apressei-me a dizer.

Nós pagamos muito bem. – Sibilou Calva. Fiquei enojada com a proposta.

Isso é um escândalo! Eu não aceito. Vou-me embora. – E ergui-me num ápice. Metela apressou-se a mandar calar a prima e pediu-me:

Desculpa, tens razão. Peço apenas que nos ouças, Emília.

Não posso. – Asseverei. Fora um erro ter vindo.

Escuta-me, o rapaz é inocente! – Pediu Metela. – Vou contar-te a história.

Amerino, o filho do homem assassinado, era acusado de parricídio. Era o pior dos crimes privados. No tempo de Rómulo, equivalia a homicídio qualificado contra a autoridade familiar, termo mais amplo do que o atual.

À luz da Lei das XII Tábuas, parricídio implicava a execução do próprio pai e, no meu tempo, o Estado era o único que podia aplicar a pena. Se um homem fosse declarado culpado em tribunal, eram-lhe retirados todos os direitos de cidadania e as suas cinzas não podiam ser guardadas em urna.

A poena cullei envolvia complexo protocolo religioso. Primeiro, o parricida era preso. Depois era arrastado por um cortejo de insultos em direção ao Campo de Marte. Sob o olhar acusador da multidão, era despido pelo carrasco e obrigado a acocorar-se de mãos presas atrás das costas, antes de ser chicoteado em público. Devia rastejar-se, sob coro de impropérios, para dentro de um saco de couro e este era atirado ao rio. Se a pessoa não morresse da queda, levava tempo a afogar-se. Era certamente uma morte violenta.

Antigamente ainda era pior. Quando a família ficava encarregada de aplicar a pena, esta era arbitrária. Alguns parentes poupavam o criminoso, outros torturavam-no com requintes de malvadez! Havia registos de homens enfiados em sacos de peles, com víboras lá dentro, que lhes ferravam as mandíbulas até à morte. Era crença popular que as cobras, quando pequeninas, se enrolavam na mãe e às vezes matavam-na com o seu veneno!

No passado, parricidas tinham sido atirados a cães vadios. Dizia-se que os animais domésticos eram mansos e fieis ao dono. Mas os rafeiros abandonados nas ruas tinham fama de se virarem contra os humanos. Em Roma, cane era um insulto!

As praxes podiam incluir um galo inteiro, ou seja, não capado. Com crista altiva e olhar desafiador, o seu bico e garras afiadas podiam atrapalhar um homem enfiado num saco de couro, do qual não podia fugir!

Obrigar um homem a sobreviver a um bicho, reduzia-o à condição de besta! Portanto, um parricida era atirado ao rio, enfiado numa bolsa de couro costurada a grandes agulhas de ferro, a lutar contra um cão, um galo, uma víbora, um macaco (enquanto caricatura de

César e a Vestal 200 Maria Galito

pessoa ou espírito louco) ou outro animal qualquer, porque os romanos odiavam aqueles que atentavam contra o paterfamílias!

O que vos leva a pensar que Amerino não é culpado? – Indaguei, de pé atrás. Metela mostrou estar habituada a rebater a questão:

O pai não era louco ao ponto de odiar o filho sem motivo e o filho já era o herdeiro de tudo. Amerino não tinha razões para praticar crime tão odioso. Calva foi mais factual. Baseou-se na lei para responder à pergunta:

De acordo com o sistema jurídico, o acusado é inocente até prova em contrário.

Vocês estão a protegê-lo, porquê? – Interroguei. Calva era mulher de personalidade vincada:

Não tens nada a ver com isso! Metela voltou a intervir para apaziguar os ânimos:

Amerino foi apanhado no sistema de proscrições de Sila. O seu nome foi incluído na lista negra, fora de prazo, sem nada que o justificasse.

O erro foi detetado na cidade natal do falecido. – Acrescentou Calva, subitamente com vontade de falar. – Foi enviada uma embaixada de dez ilustres cidadãos a Roma, com o objetivo de alertar o governo, tendo recebido a promessa de que a situação seria corrigida. O nome do falecido foi entretanto retirado das listas.

Sendo assim, do ponto de vista legal, a questão é simples. – Avisei. As duas entreolharam-se surpreendidas.

Ah sim? Explica-nos. – Pediu Metela, sentando-se onde se deitara.

Se o pai de Amerino não foi listado como hoste, às portas do Senado, no período em que o sistema das proscrições estava em vigor (ou seja, nos primeiros seis meses após a entrada de Sila em Roma), então, as propriedades leiloadas devem ser restituídas aos seus herdeiros. Os bens do falecido revertem a favor dos parentes mais próximos. Amerino é filho único? Se for, ele é o dono legítimo das terras. – Concluí, pois eu não estava proibida de conceder apoio jurídico e queria muito livrar-me delas

Amerino tinha um irmão mais velho. – Comentou Metela.

Já morreu, pouco importa. – Atalhou Calva. – O pai de Amerino não deixou testamento. Isso altera o veredito em alguma coisa?

Legatário é aquele a quem alguém deixou bens em testamento. Herdeiro é aquele que recebe herança por força da lei. Nada impede Amerino de reclamar os seus direitos ab intestato. Esta lei romana é muito antiga e protege reivindicações de filhos cujos pais não deixaram testamento e aplica-se nestas circunstâncias.

Mas isso é excelente! – Rematou Calva. – Sila vai ficar contente em saber.

Como assim? – Assustei-me, começando a tremer de indignação.

O pai de Amerino era partidário de Sila. – Esclareceu Calva.

Tu não me disseste isso, Metela! – Queixei-me. Estava indignada! Eu não fora chamada para ajudar um pobre desgraçado, mas para auxiliar um aliado de Sila. A minha ex-chefe tentou explicar-se:

César e a Vestal 201 Maria Galito

O comandante não governa sozinho, precisa do apoio dos optimates. Os quais ameaçam amotinar-se se este erro não for corrigido.

Não entendo, nem desculpo. – Repliquei de imediato. Eu estava furiosa!

Você não tem voto na matéria. – Disse-me Calma, antes de se virar para a prima. – Já sabemos o que precisamos. Livra-te dela! O que queria Calva dizer com aquilo? Eu corria risco de vida?

Deixe-me com Emília. Eu quero falar com ela a sós. – Pediu Metela. Calva agradeceu a ideia, respirou fundo e ergueu-se de nariz empinado:

Eu vou ter com os meus escravos! – Exclamou a veterana, para meu torpor. Bambaleou-se até desaparecer. Virei-me para a minha antiga chefe:

O que é que Calva quis dizer com aquilo? – Horrorizei-me, erguida em pé.

Metela não temia pela minha segurança, ou não se debruçou sobre o tema. Mas deu-me a entender que Calva era matrona com estilo de vida duvidoso, desde que o marido partira para o exílio. Enquanto viúva, agia sem limites. Ao que parece, era promíscua. Em tempos seduzira homens famosos mas, para evitar escândalos, deixara de organizar grandes festas. Agora entretinha-se com escravos domésticos. A minha ex-chefe deixara-se arrastar para aquele mundo desregrado e parecia gostar do convívio com gladiadores.

Esta vida não é para ti, Metela.

Emília tenta compreender. Eu já não sou vestal, sou uma mulher livre…

Não me digas mais nada, não quero ouvir! – Pedi.

Eu podia casar-me. – Argumentou. – Mas já não sou jovem, nunca fui bonita e os romanos têm medo de casar com ex-vestais que dizem dar mau-olhado…

Se és livre, podes fazer melhores escolhas. Mas tu é que sabes. – Atalhei, optando por mudar de tema. Agora que Crassa não nos ouve… porque é que o ditador não castiga pessoalmente o seu liberto? Metela suspirou com força.

A verdade é complexa. Digamos que o liberto é amigo íntimo de Sila e do meu primo Metelo Pio e eles não querem… zangar-se. – Começou por explicar, antes de acrescentar. – Coitado do Amerino! Ele não cometeu parricídio e precisa de ajuda. O pai dele era cliente da minha família. Compete-me fazer alguma coisa pelo rapaz. Ele só tem vinte e três anos!

Tu disseste-me que ele era um miúdo! Afinal é um adulto!

Ele é jovem, sim. – Insistiu a ex-vestal, com determinação.

Tu andas enrolada com ele, Metela?

Talvez. Emília, não faças essa cara, vá lá! A sua resposta afirmativa fez-me pensar em quem mais estava metido no assunto.

Quem é o advogado dele? – Indaguei.

Cícero. – Respondeu sem hesitar.

Aquele que anda a aprender a ser ator?

Cícero é um advogado brilhante em início de carreira. – Asseverou Metela. – Ele tem frequentado umas aulas de Róscio para melhorar a dicção. Ele precisa preparar-se para a prova de fogo! Este parricídio… trata-se do primeiro caso

César e a Vestal 202 Maria Galito

criminal levado a tribunal desde que Sila entrou em Roma. O júri voltará a ser exclusivamente constituído por senadores, numa fase em que o comandante já não terá plenos poderes de ditador.

Sila fez tudo quanto quis e agora… quer convencer-nos que se preocupa com a legalidade? – Perguntei-lhe, pois a situação era bizarra.

Sila sempre seguiu os trâmites legais. – Afirmou Metela. – Ele não quer que ninguém conteste a política de proscrições. Aquela era demais! Só à estalada!

Eu não devia ter vindo.

Se te faz sentir melhor, ajudaste a salvar um inocente. – Acrescentou. De repente, recordei algo que ficara encravado na minha cabeça:

Inocente…diz-me, como morreu o irmão mais velho de Amerino?

Porque perguntas? Eu só sei que o primogénito vivia com o pai em Roma, enquanto o segundo filho cultivava as terras do progenitor.

Pai e filhos davam-se bem?

Já disse que não sei! Amerino era o mais atinado dos três, pois o irmão era boémio, tal como o progenitor. Que história mais mal explicada!

Como foram os bens distribuídos? Conta-me outra vez, mas devagar.

O pai de Amerino possuía treze domínios de grande relação, deste lado do Tibre… Interrompi o seu raciocínio e perguntei:

Esta casa onde estamos… tem alguma coisa a ver com o assunto?

Sim. Mas nós vivemos aqui porque Amerino nos deu autorização para isso.

Deu como? As propriedades ainda não lhe foram entregues pelo Estado.

Mas vão ser! – Abespinhou-se. Admiti que ela não me dizia a verdade toda.

Em quanto estava avaliada a fortuna do pai de Amerino antes das proscrições?

Seis milhões de sestércios! – Respondeu. Era uma fortuna!

Quem tem a posse das propriedades, neste momento?

Metela podia ter-se calado mas abriu o jogo, pois esta parte da história era pública e podia ser consultada no processo que entrara em tribunal.

O liberto de Sila comprou tudo em hasta pública por dois mil sestércios e entregou três terras a um parente do falecido que fazia parte da embaixada de ilustres.

Essa embaixada tinha bicho da madeira. Mas espera… as propriedades eram treze. Três foram cedidas a um parente de Amerino. As outras dez pertencem a quem? A verdade revelava-se mais sórdida do que inicialmente previsto!

Os domínios ficaram em nome do liberto de Sila e sob gestão do parente inicialmente acusado de homicídio (pois viajara com ele até Roma e enviou mensageiro a cavalo até à sua cidade natal, a reportar o sucedido).

Por Vesta! Então a família está metida na tramoia! – Reconheci de braços abertos.

César e a Vestal 203 Maria Galito

Amerino não mandou matar o irmão nem o pai. – Asseverou Metela, antes de reconhecer o evidente. – Mas sim, ele provém de família disfuncional.

Isto é de doidos! Sabes que incorres em risco de vida?

Eu? – Admirou-se ela. Estaria a antiga vestal máxima de olhos fechados naquele labirinto?

Sim, tu! Amerino pode virar-se contra ti depois de receber a herança, quando deixares de ser útil para ele.

Amerino gosta de mim. Nunca me trairia.

Faz o que entenderes. Mas explica-me porque escolheram Cícero para advogado?

Róscio era escravo do pai de Amerino e foi libertado há uns dez anos. O ator ainda deve obséquio ao herdeiro das terras, enquanto cliente do seu patrono. Róscio deu aulas de teatro a Cícero e foi assim que todos se conheceram.

Que dor de cabeça! Metela, Calva e Cícero sabiam demais! Sila poderia virar-se contra eles, para os silenciar, independentemente do resultado do julgamento. Mas talvez fosse imprudente insistir em discutir o tema com a minha ex-chefe. Era preferível eu sair o quanto antes daquela casa.

O meu mundo não é este, Metela. Não te entendo. Regresso ao templo de Vesta.

Não sei se posso deixar-te ir embora, assim… Ela hesitava. Eu não. Fui perentória, caminhando em direção à rua.

Eu não conto nada a ninguém. Não são assuntos que me digam respeito. Só quero voltar para o santuário. Deixa-me sair daqui. Prometo nunca mais cá pôr os pés.

Vou confiar em ti. Não reveles o que aqui ouviste. Digo-o para teu bem… Aquela conversa pôs-me doente. Virei-lhe as costas:

Adeus Metela e que os deuses te perdoem. – Despedi-me, entrando no carpeto que me levou de regresso ao fórum.

Meses mais tarde, Cícero garantiu a sua primeira vitória num caso criminal e tornou-se famoso aos olhos do povo, sob os aplausos dos senadores. Foi por esta altura que ele se casou com a meia-irmã de Fábia, uma mulher rica!

O dote de Terência é de 100.000 denários. Cícero recebeu também uma herança de 90.000 denários. Portanto, quando chegar a sua hora, ele pode entrar para o Senado e o casal terá certamente uma vida desafogada. – Foi o comentário que Fábia fez ao casamento, ao regressar da cerimónia religiosa, à qual eu não assisti.

Resumes a questão a um acordo financeiro. – Criticou Fonteia, que era sonhadora.

Cícero subiu de escalão aos vinte e seis anos. Um feito extraordinário para homem novo da classe equestre. Sobretudo durante a ditadura de Sila, um patrício que condenara à morte centenas de cavaleiros.

Cícero ascendeu de equestre a nobre num período de caça aos cavaleiros. Não é estranho? – Perguntei-lhes. – Eu penso que sim. – Declarei. Eu não conseguia confiar nele.

César e a Vestal 204 Maria Galito

Oficialmente, Cícero venceu um caso criminal considerado perdido. Recebera como recompensa um casamento e um bilhete de barco para a Grécia para aprender a ser melhor advogado. Sila parecia gratificar-lhe os serviços, ao mesmo tempo que se via livre dele.

Metela, Dalmática e Calva tinham colaborado com Cícero, mas permaneceram em Roma. Ele não morreu, elas sim.

A primeira a falecer foi Dalmática. Durante as festas de Hércules, houve desperdício de alimentos. A mulher do cônsul sénior, que supostamente enchera a barriga de comida, começou a queixar-se e ficou doente. Antes das nonas do mês de Juno, foi recebida em agonia no templo de Vesta, depois do pontífice máximo a ter despejado à porta do nosso santuário. Os áugures tinham recomendado o afastamento da primeira-dama do marido e dos filhos, para não acabarem todos infetados pela pestilência.

Dalmática está doente e não pode empestar Sila, mas pode contaminar as vestais!

As vestais são castas, portanto, não podem ficar doentes e, se ficarem, é porque são impuras. – Foi a argumentação defendida no colégio de pontífices.

Sila liderava o colégio dos áugures e a decisão terá sido sua. Assim livrava-se da mulher. Mas não foi desta que puniu uma vestal. Nenhuma de nós ficou doente.

Dalmática nem sobreviveu dois dias! Morreu com as entranhas revolvidas. Teria sido envenenada? É impossível saber ao certo. Em compensação, o funeral que o marido lhe dedicou foi extraordinário e a roçar a ilegalidade (admitindo que o próprio promulgara contra dispêndios excessivos em exéquias).

Nesta altura também morreu um filho de Sila! O irmão de Cornélia e cunhado de Mamerco foi-se, de repente, para desespero do pai, que lhe era muito afeiçoado. Expirou depois de Dalmática, mas nada garante que os dois eventos não estivessem relacionados, pois a madrasta e o enteado davam-se pessimamente!

Pouco depois, pereceu Calva. Não sei exatamente como. A história foi abafada. Fonteia só me disse que Amerino mandou matar todos os escravos daquela casa, antes de vender o edifício. Ao que parece, ele foi viver para a propriedade que herdara do pai e casou pouco depois com uma mulher da região.

Fonteia mandou chamar Metela, quando soube que os médicos não conseguiam valer-lhe. O objetivo era dar-lhe oportunidade de se purificar no fogo de Vesta, antes de falecer, já que ela fora vestal máxima de Roma – um pedido que foi aceite por Metelo Pio.

Metela ficou-lhes agradecida e pediu perdão a Vesta pelos seus excessos. Confessou todas as violências que sofreu e às quais assistiu durante a ditadura de Sila. Dizia ter sido traída por Amerino, a quem acusava de a ter envenenado, para se livrar dela. Arrependia-se de não ter seguido o meu conselho de acabar com aquele estilo de vida, antes de ser tarde demais. Meteu as mãos no fogo da deusa e queimou-se.

Metela era um ser humano que, segundo as suas próprias palavras, nunca soubera o que era a felicidade. O seu fim foi o corolário de um percurso perdido de três anos em que ela

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arriscou a reputação e perdeu a vida miseravelmente, sem glória, a cuspir as entranhas. O seu corpo não foi incinerado, mas sepultado, no cemitério dos pontífices.

Para todos os efeitos, morrera uma vestal. A cidade estava purificada da invasão de Sila?

O ex-ditador abdicou de todos os poderes e foi viver para Putéolos, levando consigo os atores Róscio, Sorex e Metróbio, inseridos numa grande comitiva de gente do espetáculo. Ele queria terminar os seus dias como vivera a juventude: no palco! Regressava assim às suas origens, depois de um hiato (na política e na guerra) em que tentara reinventar-se.

Em Putéolos, Sila terá redigido as suas memórias. Mas as notícias que chegavam a Roma falavam de orgias todos os dias! Também se contava que ele não fora viúvo para sul. Teria casado com uma patrícia que se atrevera a tirar um cabelo do ombro de Sila para lhe dar sorte, quando ambos assistiam a uma peça de teatro. O comandante teria ficado seduzido por aquela mulher e a verdade é que tiveram ambos uma filha póstuma.

Sila morreu agonizante. Os rumores são contraditórios, a este nível, pois uns referem que padecia de doença há muitos meses, outros que foi envenenado. Se os inimigos de Sila o empurraram para o Tártaro? Não é de descartar essa hipótese. Ele tinha muitos inimigos. Mas, tal como o poeta grego Píndaro expirara nos braços do seu amante, Sila perdeu a vida embalado por Metróbio.

O ex-ditador teve direito a um funeral de Estado. Ele teria gostado das suas exéquias, pois foram um golpe de teatro! O seu corpo foi conduzido pelas estradas de Itália, de Putéolos até às muralhas sérvias, numa liteira dourada escoltada por dezenas de cavaleiros e músicos.

Ao chegar a Roma, a marcha fúnebre incluía veteranos das suas guerras, dezenas de carpideiras, muitas crianças com flores e rapazitos em uniformes do exército; mas também carros-de-bois de agricultores que traziam legumes para os mercados da cidade. Portanto, nem todos os que faziam peregrinação a Roma prestavam homenagem a Sila mas, pela quantidade de gente envolvida, os arautos concluíram que fora um sucesso!

Os romanos riam e choravam. Alguns de alegria, por finalmente se verem livres do tirano! Outros glorificavam o homem que reformara o Estado. Mamerco parecia assustado com tanta gente armada dentro das muralhas! Cota convocara os membros dos colégios para desfilarem em procissão protocolar. O que revoltou o meu irmão, entretanto regressado da Sicília. De facto, Marco insurgiu-se contra a organização daquele funeral, primeiro no Senado, depois na rua:

Será que o povo tem memória curta? Sila foi responsável pela morte de milhares e milhares de pessoas! – Exclamou Marco, para um Mamerco que o repreendeu:

Este não é o melhor sítio, nem hora, para discutir o assunto.

Marco era um turbilhão de emoções sufocadas durante a guerra civil! Algo nele fervilhava pela garganta acima, com forte ensejo de libertação após anos de grilhetas. Ele era vulcão em atividade quando se aventurou pela multidão, para subir a um palanque, onde se fez porta-voz das vítimas da ditadura.

César e a Vestal 206 Maria Galito

Nem que seja o único, vou falar contra o tirano. – Gritou Marco em pleno funeral.

O meu irmão falou à população que assistia à cerimónia e transcendeu-se naquele dia! Discursou como pôde contra a ideia de guardar as cinzas do ex-ditador no Campo de Marte. Armado em herói, perguntou ao povo:

Em vida tinham medo de Sila e eu percebo que calassem a injúria. Mas ele está morto, vejam! Ele já não pode fazer-vos mal. Clamem por justiça! Não lhe prestem homenagem. Não aceitem fazer-lhe um funeral de estado!

O povo hesitou. Quem tinha o controlo do exército era Pompeu e ele temeu uma revolta popular. Por isso enfrentou Marco, para lhe conter o arrebatamento. Em consequência, os dois tiveram a sua primeira briga pública.

Pompeu garantiu que as cinzas de Sila fossem guardadas no prestigiado Campo de Marte. O túmulo não era o mausoléu de Halicarnasso, mas o homem dos caninos longos ficou imortalizado em pedra. E este foi o epílogo possível… de um assassino (para metade da cidade) ou de um justiceiro que abdicou do poder (para outra metade); um patrício que remediara sistema radicalizado por demagogos e por cônsules com exércitos privados; ou um depravado que abusara dos poderes e para quem todos os meios justificavam os fins.

Uma coisa é certa, Sila foi o primeiro romano a marchar sobre Roma. Ao fazê-lo, abriu precedente perigoso para a República. Ficou registada em lápide a sua última vontade, ditada pelo próprio antes de sucumbir: que ninguém o superara a fazer bem aos amigos nem mal aos inimigos.

Agora que Sila estava morto, regressaria César a Roma?

NOTAS FINAIS:

1 Frase atribuída a César. 2 Idem. 3 Idem. 4 Frase de Públio Terêncio Afro, dramaturgo e poeta romano do séc. II a.C. 5 Idem. 6 Idem. 7 Idem. 8 Idem. 9 Idem. 10 Idem. 11 Idem. 12 Idem.