classificação das afasias

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Monica Cristina Gandolfo

A

classificao

das

afasias

em

questo:

lugares

de

institucionalizao e de questionamento

UNICAMP Instituto de Estudos da Linguagem 2006

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Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IEL Unicamp

Gandolfo, Monica Cristina G152c A classificao das afasias em questo: lugares de institucionalizao e de questionamento/ Mnica Cristina Gandolfo Campinas, SP: [s.n.], 2006. Orientador: Maria Edwiges Morato. Tese (doutorado) Universidade Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. Estadual de

1. Afasia. 2. Afasia- Classificao- Metodologia. I. Morato, Maria Edwiges. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.

Ttulo em ingls: The aphasias classification in discuss: places of institucionalization and questioning. Palavras-chaves em ingls (Keywords): Aphasia Classification Methodology. rea de concentrao: Lingstica. Titulao: Doutor em Lingstica Banca examinadora: Profa. Dra. Maria Edwiges Morato (orientadora), Profa. Dra. Anna Christina Bentes, Profa. Dra. Adriana Lia Friszman de Laplace, Profa. Dra. Margareth de Souza Freitas e Profa. Dra. Suzana Magalhes Maia. Data da defesa: 29/09/2006 Programa de Ps-Graduao: Neurolinstica

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Monica C. Gandolfo

A

classificao

das

afasias

em

questo:

lugares

de

institucionalizao e de questionamento

Tese apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Lingstica

Orientadora: Profa Dra Edwiges Maria Morato (IEL/UNICAMP)

UNICAMP Instituto de Estudos da Linguagem 2006

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A presente tese, submetida Comisso Examinadora abaixo assinada, foi APROVADA para a obteno do grau de Doutor em Lingstica:

________________________________________Prof Dr Edwiges Maria Morato (Orientadora)

__________________________________________________________________

Prof Dr Anna Christina Bentes da Silva

___________________________________ Prof Dr Margareth de Souza Freitas

_______________________________ Prof Dr Suzana Magalhes Maia

________________________________ Dr Helosa de Oliveira (suplente)

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AGRADECIMENTO

Agradeo e dedico este trabalho aos meus pais, ao Pedro e Ana, que tanto me incentivaram na realizao desta pesquisa e souberam compreender minha ausncia em tantos momentos.

Agradeo aos amigos de todas as horas e especialmente Esther Soares que tanto me auxiliou na reviso deste trabalho.

Um agradecimento especial a Edwiges Morato por todas as nossas discusses, conversas, debates e orientaes, que foram fundamentais para a execuo deste trabalho.

Agradeo, tambm, aos sujeitos da minha pesquisa emprica que gentilmente se prontificaram a participar deste trabalho, pela sua confiana, dedicao e interesse.

Por fim, agradeo a CAPES pelo financiamento da pesquisa.

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SUMRIORESUMO...............................................................................................................11 ABSTRACT..................................................................................................................................13 APRESENTAO.......................................................................................................................15 CAPTULO 1 : Sobre as condies de emergncia das classificaes aos

nossos dias1.1-

Introduo.................................................................................23 As classificaes do ponto de vista da Afasiologia............................32 A classificao, do ponto de vista da moderna Neuropsicologia.........44 A classificao das afasias do ponto de vista da Neurolingstica.......54 Alguns outros pontos de vista no interior da Neuropsicologia:da viso localizacionista ao funcionalismo....................................................61

1.21.31.41.5-

CAPTULO 2: A Semiologia das Afasias 2.1- Introduo................................................................................67 2.2- A semiologia da linguagem e a classificao das afasias.....................................................................................71 2.2.1- Sobre a semiologia das afasias..................................................79 2.2.2- A semiologia das afasias para alm do estruturalismo e do gerativismo...............................................................................81 2.3- Classificao das afasias: a viso clssica em cheque..................... 87

CAPTULO 3: O MTODO CLNICO HOJE: o que perdura e o que se problematiza 3.1-Introduo....................................................................................95 3.2- Quais as crticas dirigidas as classificaes das afasias........................96 3.2.1- A classificao sobre a relao entre o normal e o patolgico e o patolgico....................................................................................97 3.2.2- Os limites tericos e metodolgicos sobre as afasias: classificao x diagnstico..................................................................................102

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3.2.3 A concepo normativa e estruturalista que subjaz os testes avaliativos...................................................................................106 3.2.4- A relao dicotmica entre linguagem e metalinguagem .................115 3.2.5- Os processos semiolgiocos (verbais e no verbais) co-ocorrentes de comunicao................................................................................120 3.2.6- A questo do erro tomado como processo e no como patologia.......128

Captulo 4: As classificaes das afasias nas prticas clnicas: um outro lugar institucional 4.1- Introduo...................................................................................135 4.2- Metodologia.................................................................................138 4.3-Anlise do material coletado nas entrevistas......................................141 4.4-Contradies, conflitos e enfrentamentos em relao ao mtodo clnico: retomando os enunciados dos entrevistados sobre a classificao.........................................................................159

4.5- Comentrios gerais..............................................................166

Comentrios Finais..........................................................................173 Referncia Bibliogrfica....................................................................181

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RESUMO

O objetivo deste trabalho problematizar as classificaes das afasias de duas maneiras: 1) analisando a vigncia da semiologia neurolingstica e suas implicaes prticas; 2) avaliando lugares institucionais de preservao e questionamento da classificao das afasias sendo eles: a academia e clnica. O objetivo entender sua vigncia, a despeito das refutaes de vrias ordens e de vrias evidncias empricas que a questionam. Faz parte deste trabalho colocar em foco os limites e alcances do mtodo clnico, em relao ao entendimento terico e conduta teraputica no campo da afasiologia. Assim, tendo em vista o discurso destes dois ambientes, o da academia e o da prtica clnica (o metadiscurso cientfico clnico sobre a classificao), verificamos como que uma lingstica no estruturalista, ou psestruturalista, tem se comportado em relao a semiologia das afasias. Admitindo que a teoria scio-cognitiva a que vai de acordo com a concepo de linguagem que considera a relao da lngua e sua exterioridade como um fenmeno em construo, as bases explicativas dos fenmenos lingsticos mudam e, consequentemente, muda a maneira de fazer cincia, o movimento das teorias das idias, como, tambm, o mtodo cientfico utilizado para se chegar a uma classificao das afasias de modo que, fazer cincia passa a se fundamentar em outras bases.

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Abstract

This work addresses aphasia classification in two ways: 1) by analysing the neurolinguistic semiology and its practical implications; 2) by assessing the role of academic and clinical institutions in preserving and questioning such classification. The purpose is to understand its persistence in spite of many refutations and empirical observations that have raised doubts about it. This work focuses on the limits of clinical methodology, as regards the theoretical understanding and therapeutic practive in aphasiology.

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APRESENTAOEste trabalho tem como objetivo problematizar a classificao das afasias de duas formas: 1) analisando a vigncia da semiologia neurolingstica e suas implicaes prticas 2) avaliando lugares institucionais de preservao da classificao das afasias, sendo eles: a academia e a clnica. O objetivo entender sua vigncia, a despeito de refutaes de vrias ordens e de vrias evidncias empricas que a questionam. Faz parte do objetivo do trabalho colocar em foco os limites e os alcances do mtodo clnico, em relao ao entendimento terico e conduta teraputica no campo da afasiologia. Dessa maneira, primeiramente, foi feita uma reviso bibliogrfica sobre as teorias subjacentes aos estudos das afasias, sobre as classificaes das afasias, sobre as semiologias das afasias e sobre o mtodo clnico. Num segundo momento, foi feita uma pesquisa emprica com profissionais da rea (mdicos e fonoaudilogos) a fim de saber como pensam e atuam em relao s classificaes das afasias e, por ltimo, foi feita uma anlise sobre o metadiscurso dos entrevistados com os dados bibliogrficos, para entendermos como e em que termos as classificaes das afasias perduram at os dias de hoje. Desde os sculos passados, quando falamos sobre afasia, falamos sobre o resultado de uma tipologia que, por sua vez, promove um diagnstico com finalidades mdico-clnicas. Ou seja, a percepo dos fenmenos afasiolgicos, desde o sculo XIX at os dias de hoje, se d essencialmente pela classificao ou tipologia das afasias. O diagnstico associado a esta classificao passa a ser uma etiqueta que o sujeito carrega e que passa a fazer parte da sua vida. Se o ponto de vista que cria o objeto, como afirmou Saussure (1916/1981), preciso saber, para entender a questo conceitual que se destaca aqui, quais so os arcabouos tericos dos vrios perodos nos estudos das afasias, que permitem classificar dessa ou daquela maneira um fenmeno lingstico-cognitivo.

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Neste sentido, ao se levantarem questes sobre as classificaes das afasias, abrem-se vrias frentes de discusses, tais como: 1) as que dizem respeito s teorias subjacentes aos estudos das afasias, as quais eram, inicialmente, antomo-clinicamente concebidas e, posteriormente, tambm, lingisticamente concebidas; 2) as que dizem respeito aos diagnsticos mdicos e clnicos das afasias (extrados dos testes-padro) que, de uma certa maneira, oficializam a definio e a classificao proposta pela teorizao; 3) as que dizem respeito s condutas teraputicas que revelam no s um certo modo de apropriao destas teorias como, tambm, a consolidao das teorias e das classificaes; 4) a relao da semiologia das afasias e classificao . medida que estes quatro itens se configuram como possibilidade de discusso pertinente, outra ainda surge, no menos importante que as anteriores. a a que diz respeito da institucionalizao afsica o histrica do conhecimento respeito linguagem conhecimento sua

cientfico/acadmico, as baterias de testes, as classificaes e a teraputica. Assim, quanto a este ponto, pretende-se responder questo: Por que, como e em que termos as classificaes perduram at hoje, apesar das crticas e refutaes tericas e prticas feitas, tanto a partir da Lingstica, quanto a partir da Neuropsicologia? De onde vem e como se justifica a necessidade de classificao?. A propsito, na passagem a seguir, Moyss (2001) aponta o quanto as formas de avaliao so determinadas pela instituio qual pertencem:Mudam os nomes dos testes, os autores, alteram-se pequenos detalhes e mantm-se a essncia: apenas uma forma de expresso passvel de considerao. As demais, bem, so as demais...Neste sentido, no vemos diferena entre os tradicionais testes de Q.I., os testes de psicomotricidade, as provas piagetianas, o exame neurolgico evolutivo (ENE, que se prope a avaliar a maturidade neurolgica) e outros.(op.cit.:41)

O que procuramos destacar a partir dessa citao 1) que o conhecimento a respeito do desenvolvimento humano e de suas patologias, tal

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como se fazia na cincia comparada, continua sendo elaborado com base nos preceitos da cincia moderna: observao, descrio e classificao (Kassar,1999); 2) que a questo da classificao se d no campo da institucionalizao do conhecimento sobre as afasias: da teorizao, dos testes avaliativos e da conduta teraputica. Como demostrou Foucault (1966/1995), as instituies permitem que um pensamento seja transferido diretamente para elas ou vice-versa, isto , tambm as instituies passam por cima do pensamento individual, adaptando a forma de um modelo de anlise s suas convenes ou a seu prprio programa. Vejamos como Douglas (1986/1998) concebe a relao das classificaes com as instituies:Um pensador que classifique os fenmenos para que sejam examinados de acordo com instituies conhecidas e visveis poupa-se do trabalho de justificar a classificao. J o esquema conceitual normal para aqueles que vivem e pensam por meio de semelhantes instituies.(op.cit.:100)

Moyss (2001), em seu trabalho intitulado A Institucionalizao Invisvel, argumenta que um olhar clnico no pode descartar nem a especificao das condies sociais que permite a construo deste olhar, nem os conhecimentos, abstratos e generalizveis, elaborados pelo clnico, que servem apenas como roteiros para analisar o que especfico a cada sujeito. Como a autora afirma: perceber e assumir os limites do olhar coloca limites pretenso avaliatria (op.cit.:37) Cito, ainda, outro trecho do trabalho de Moyss (2001), a fim de ressaltar como as instituies contribuem para que as classificaes perdurem enquanto perdurarem os termos desse domnio de institucionalizao que a sustentam e a perpetuam.A inteligncia no constitui uma abstrao; significa, inclusive, capacidade de abstraes, porm ela em si no algo abstrato. Como avali-la, descontextualizada da vida, isto , tornada abstrata? A inteligncia abstrata, meta de inmeros pesquisadores, no existe na vida real das pessoas; consiste, apenas em uma categoria terica. A inteligncia abstrada s existe no pensamento clnico, que precisa se distanciar das particularidades, da individualidade, na busca do repetitivo que permita a classificao. (Moyss, op.cit., 41)

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Tendo em vista os questionamentos apontados acima a respeito da classificao e o campo em que ela se d, o da institucionalizao, h outras questes que este trabalho se prope a discutir: O que a discusso sobre a institucionalizao das afasias nos diz a respeito das vrias construes tericas sobre elas, que se mantm at os dias de hoje? O que se pode ganhar heuristicamente com o estudo do histrico e da percepo clnica mais atual da classificao e sua institucionalizao no campo das pesquisas neurolingsticas? O que as classificaes nos tm revelado (e escondido) sobre a natureza da linguagem, em especial da linguagem afsica? Como as abordagens lingsticas enfrentam o problema das classificaes, tradicionalmente focadas no interior do estruturalismo e do cognitivismo? O objetivo deste trabalho apontar algumas diretrizes para estas questes. Porm, o problema das classificaes no se d apenas porque elas esto servio das instituies qual pertencem; elas, por si s, apresentam problemas pelo modo histrico da construo do olhar clnico (Geraldi,2001:13 apud Moyss, 2001) e, tambm, pelas concepes de linguagem que as fundamentam. No campo da Afasiologia, tradicionalmente, e ainda hoje, na sua grande maioria, tanto a concepo estruturalista como a gerativista da linguagem, no permite diagnosticar e prever problemas lingsticos que vo alm da noo de lngua como sistema. Um exemplo da relao do tipo de olhar clnico herdado desde o sculo XIX e das concepes de linguagem que amparam a anlise lingstica pode ser dado atravs das afasias consideradas leves, as mild aphasia. So afasias que por estarem no limiar entre o normal e o patolgico no apresentam uma sintomatologia to evidente e, por este motivo, no esto descritas na constelao semiolgica que compe tradicionalmente as classificaes. No sculo XVII, marcado por um tipo logocntrico de racionalismo, o bem falar era sinal da existncia de idias claras, apresentadas sob forma

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simples e transparentes, para que assim, cada vez mais, a linguagem obedecesse a princpios lgicos, sem equvocos e sem ambigidades. Considerava-se qualquer desvio deste modelo idealizado de lngua como um distanciamento dos padres de normalidade. J no sculo XIX, o estatuto epistemolgico da poca era o de uma lingstica comparada e descritiva, tal como era o procedimento da cincia de modo geral, amplamente influenciada pela tradio mdica, afiliada a botnica, que privilegiava a normalidade, tendo como meta o diagnstico, a classificao (e a cura).... ao dar um rtulo ao problema espera-se diminuir a ansiedade da ignorncia. A nomeao de doenas envolve classificaes, promove diagnsticos e indica terapia. Como diz o velho ditado,uma doena nomeada uma doena quase curada. (Porter, 1993:366)

Para a lingstica, nos moldes da gramtica comparada, prevalecia a idia de lngua como objeto de observao e de comparao. Esta, ento, era a idia de cincia quando se iniciou o estudo sobre as afasias. Foi apenas no incio do sculo XX, com o surgimento do estruturalismo, com Ferdinand Saussure - atravs da publicao do Curso de Lingstica Geral (1916) que inicia-se uma nova noo de lngua, tendo como pressuposto terico seus elementos formais. O valor de uma palavra, para Saussure, est naquilo que a outra no . Assim, para entender a lngua necessrio subtra-la do mundo ou seja, com a noo de valor, de acordo com Saussure, possvel formalizar no s o significante, mas tambm o significado. Assim, ao se identificar - dentro do construto terico como que se forja uma classificao e como ela se mantm, possvel questionar teorias que tm como preocupao localizar os processos ou mesmo nveis lingsticos em reas especficas do crebro. Tal procedimento, como j foi dito anteriormente, fazia parte do paradigma das cincias do sculo XIX, quando o que interessava era identificar os sintomas patolgicos, descrevendo-os e explicitando-os. Nas palavras de Novaes-Pinto (1999):

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A busca da objetividade na descrio dos fenmenos afasiolgicos e a necessidade de classific-los, de acordo com as semelhanas ou diferenas observadas entre eles, levam muitos pesquisadores a estabelecer limites desses fenmenos, ou seja, o conjunto de sintomas que compem as diferentes sndromes, bem como a desenvolver uma metodologia que se pudesse utilizar para fins de diagnstico e de classificao. (Ibid:11)

Ainda neste mesmo sculo, alguns pesquisadores, tais como Broca e, posteriormente, Wernicke, aplicavam a conduta localizacionista do sintoma patolgico na fala no campo da Neurologia, separando leses anteriores (que caracterizavam dificuldades emissivas ou afasia motora de Broca) das posteriores (que caracterizavam dificuldades receptivas ou afasia de Wernicke). Esses dois tipos de afasias, a motora e a sensorial, marcam o incio de uma classificao que servir de parmetro para compreendermos os outros diferentes fenmenos afsicos. Freud, Luria e Jakobson foram autores que tambm questionaram as tipologias fechadas das afasias, cada um em sua poca e em sua especialidade. A crtica de Freud (1891/1977) concerne Neurologia e sua poca. Ao invs de correlacionar sintoma lingstico com a interrupo localizada de uma via, Freud postulava a existncia de um aparelho da linguagem, no sendo possvel, assim, procurar substratos fisiolgicos da atividade mental na funo desta ou daquela parte do crebro, mas o resultado de processos que abarcam o crebro em toda a sua extenso.(Garcia-Rosa 1991/1996: 24). Luria, neuropsiclogo, acompanhando os preceitos de Freud em relao noo de perturbao funcional e contra o localizacionismo, prope uma concepo de crebro como um sistema funcional, possibilitando, assim, uma ampla descrio dos sintomas afsicos (1962;1974;1979;1986). Segundo o conceito de sistema funcional, afeces de reas limitadas do crebro, leva, via de regra, perturbao de todo um grupo de processos cerebrais. (Luria, 1979)

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J

Jakobson

(1954,1955),

lingista,

propiciou,

atravs

de

uma

concepo estruturalista/funcionalista da linguagem, uma ampla descrio lingstica dos sintomas afsicos descritos por Luria, abrindo a possibilidade de considerar a afasia como um problema lingstico. Nas palavras de Morato:Na prtica (isto , na teoria), Jakobson ampliou, tendo como pano de fundo o estruturalismo e o funcionalismo lingstico (sob sua forma mais produtiva, o Crculo Lingstico de Praga), algumas das idias de Saussure: no entendimento dos tipos de afasia descrita fsio e neuropsicologicamente por Luria, Jakobson trabalhou terica e metodolgicamente com dicotomias clssicas, estabelecendo dois grandes eixos projetados um sobre o outro, sintagmtico e paradigmtico. Este entendia que as afasias afetavam distintamente os aspectos motores e sensoriais (expressivo e receptivos), voltados para as tarefas de articular e compreender a linguagem, que pode ser alterada em suas diferentes funes (fala, audio, leitura e escrita) e modalidades (oral e escrita), ainda que de maneira seletiva (Morato, 2001).

Em suma, como se procura assinalar com o enunciado at aqui, este trabalho procura articular vrias frentes de discusso que considera que no campo da institucionalizao h um olhar clnico que j est pr-determinado por ela, de tal modo que a direciona para um certo modelo de classificao, tanto no que diz respeito s prticas lingsticas, quanto ao campo acadmicocientfico. Por ltimo, assumindo uma concepo discursiva da linguagem, que pressupe uma explicao sociocultural para a cognio humana, no apenas biolgica/orgnica, abre-se a possibilidade de discusso dos termos em que a Afasiologia e a Neurolingstica tm enfrentado a questo da classificao nas afasias, ou melhor, seus princpios classificatrios, ou suas razes classificatrias - como diz Tort (1989).

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Captulo 1: Sobre as condies de emergncia das classificaes e sua vigncia 1.1IntroduoDa superfcie muda das coisas deve partir um sinal, um chamado, um piscar: uma coisa se destaca das outras com a inteno coisa quando significar de significar contente alguma de ser de nada coisa... o qu? Ela mesma, uma fica observada pelas outras coisas s est ela convencida prpria e

mais, em meio s coisas que significam elas prprias e nada mais. (Calvino, I., 1990:102)

No sculo XVIII, vigorava no mundo ocidental o Iluminismo. Essa corrente filosfica, que enfatizou tanto a razo como a experincia, promoveu influncias nos mltiplos setores da atividade humana. Sendo a linguagem um dos componentes do conhecimento, dela que iremos tratar; mais especificamente, a linguagem no campo das patologias cerebrais. Kant (1950), filsofo do sculo XVIII e membro da corrente Iluminista, criticava o ponto de vista de que o conhecimento se dava apenas de maneira apriorstica. Para ele, o conhecimento resultava da sntese entre duas fontes: uma, a priori (o conhecimento acontece segundo as formas geneticamente determinadas como nas correntes inatistas) e outra, a posteriori (a experincia a nica fonte de conhecimento como nas correntes empiristas). Diferentemente do que se pensava no interior de outras correntes filosficas que precederam o Iluminismo, Kant defendia que so os objetos que se submetem s leis do conhecimento imposta pelo entendimento humano e no ao contrrio, como pensavam seus antecessores, para os quais o

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entendimento que se deixa governar pelos objetos. No que tange linguagem, isto significa que, alm de corresponder a um sistema de idias universais vindo de um conhecimento apriorstico, ou seja, inato, ela tambm se reduz ao processo de denominao. Isto quer dizer que as palavras substituem os objetos, tal e qual eles aparecem no mundo, alm de representar, cartesianamente, atravs de sua instrumentalidade, a transparncia do pensamento. Essa mudana conceitual quanto relao sujeito-objeto (questionando o sujeito que mantm uma postura passiva diante dos objetos) provocou um salto radical em direo ao empirismo. Para este, a experincia, aquilo que se d dentro dos limites do observvel, a nica fonte de conhecimento. Ao longo da histria da cincia, possvel notar que as mudanas de paradigmas vo alterando os caminhos que at ento estavam sendo seguidos (cf. Kuhn 1962/2000). Por exemplo: na poca medieval, Coprnico, atravs de sua teoria sobre a rbita dos planetas - com o sistema heliocntrico revolucionou a idia de que o homem era o centro do universo. Esse novo paradigma sobre o sistema planetrio foi um divisor de guas na histria da cincia. Kuhn (1962/2000), porm, argumenta que, apesar de Coprnico apresentar uma ruptura com a viso de mundo dominante, ele acaba retornando a princpios marcadamente aristotlicos, ou seja, ele se esfora em ajustar a hiptese sobre o movimento da Terra em torno do Sol com teses da fsica aristotlica. Dessa maneira, Kuhn advoga que no h a praticamente nenhuma transformao substancial das teses aristotlicas; o que h uma complementao dos argumentos observacionais, ou seja, os dados observados so recolocados em outros exemplos. Desta maneira, Coprnico, cujo trabalho misturava as duas tradies, estava no meio termo entre o antigo e o moderno. Porm, se ele no houvesse implantado os germes para uma nova concepo das rbitas planetrias, a astronomia heliocntrica no seria o ponto de partida para a Astronomia Moderna (cf. Kuhn 1962/2000). Esses dois exemplos citados acima, tanto a reformulao sobre a rbita planetria feita por Coprnico, como a maneira pela qual se adquire conhecimento defendida por Kant, apesar de acontecerem em pocas bastante

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distintas

e

em

reas

tambm

bastante

diferentes,

foram

marcas

de

revolues cientficas, revolues estas que aconteceram, tambm, em muitos outros momentos da histria da cincia e nas mais variadas reas. Mas, o que gera essas revolues? O que leva a haver uma mudana de paradigma? Segundo Kuhn (ibid), o ponto de partida para que haja uma crise, e conseqentemente um colapso nas teorias vigentes, reconhecer que um determinado paradigma deixou de funcionar adequadamente, tanto na explorao como na explicao de um aspecto da natureza. Aps esta constatao, necessrio, tambm, que o cientista veja o fato de maneira diferente do ponto de vista conceitual ao observacional. Nas palavras do autor:Se as novas teorias so chamadas para resolver as anomalias presentes na relao entre uma teoria existente e a natureza, ento a nova teoria bem sucedida deve, em algum ponto, permitir previses diferentes daquelas derivadas de sua predecessoras. Essa diferena no poderia ocorrer se as duas teorias fossem logicamente compatveis. (ibid:131).

Contudo, enquanto os cientistas no se derem conta de que seus paradigmas foram afetados por um novo tipo de fenmeno o qual foi motivado por uma alterao conceitual sobre este dado fenmeno, provocando uma mudana de olhar - ele pode passar a ser apenas uma simples adio ao conhecimento. Neste caso, no h uma reconstruo da rea de estudos a partir de novos princpios, mas encaixes que muitas vezes vo sendo feitos de maneira ad hoc, parecendo etapas normais de um processo em desenvolvimento. Isso foi o que sucedeu com a teoria heliocntrica de Coprnico: a princpio, ela parecia ser uma complementao das teses aristotlicas, quando, de fato, modificou o conceito das rbitas planetrias. Assim, atravs da mudana de um paradigma, no s passam a surgir novos problemas, mas tambm aparece a possibilidade de suas solues: os cientistas adotam instrumentos distintos daqueles usados anteriormente e orientam seu olhar em novas direes. O que as pesquisas do passado, a partir da perspectiva da historiografia, vm demonstrando que, embora o mundo no mude com a mudana de paradigma, ao acontecer isso, os cientistas passam a trabalhar em um mundo diferente.

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como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta onde objetos familiares so vistos sob uma luz diferente e a eles se apregam objetos desconhecidos. Certamente no ocorre nada semelhante: no h transplante geogrfico; fora do laboratrio os afazeres cotidianos em geral continuam como antes. No obstante, as mudanas de paradigma realmente levam os cientistas a ver o mundo definido aos seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente. Na medida em que seu nico acesso a esse mundo d-se atravs do que vem e fazem, poderemos ser tentados a dizer que, aps uma revoluo, os cientistas reagem a um mundo diferente. (Kuhn, 1962/2000:146)

Essa diferena diz respeito a diferentes interpretaes que um novo paradigma capaz de fornecer. No so os objetos que mudam ou mesmo a sua percepo que se torna diferente. Mesmo o cientista tendo a conscincia disso, ele os encontra, pela prpria possibilidade que o paradigma cria, em vlos totalmente transformados em muitos de seus detalhes, pela possibilidade de interpret-los de outra maneira. Assim sendo, toda cincia pressupe um paradigma que possibilita o levantamento de dados, a criao de instrumentos para estabelec-los, o levantamento de suas regularidades e os parmetros conceituais necessrios para a sua interpretao. Isso o que analisaremos posteriormente na anlise das classificaes das afasias. Procuraremos, tambm, vir a saber qual o paradigma que corresponde a cada uma delas. Ser que houve mudanas de paradigmas ao longo de todos esses anos no campo da Afasiologia e da Neurolingstica? Ou ser que a classificao que se fazia no sculo XIX mantm o mesmo peso, lugar e expectativa durante o sculo XX e incio do sculo XXI? Abrindo espao para essas discusses, veremos se vale a pena manter as classificaes e em que moldes epistemolgicos isso seria possvel. importante lembrar, tambm, que para essa poca a do sculo XIX - havia uma expectativa lgica de relao simtrica entre linguagem e o mundo, com a linguagem etiquetando o mundo, categorizando o mundo, ou ainda, a linguagem como um retrato da realidade: o mundo fornece, ento, uma base fixa linguagem e a linguagem apoia-se sobre esta base. Ora, isto mostra que h um elemento fixo comum ao mundo e linguagem. Esse elemento fixo no

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emprico, mas puramente formal (Moreno,2000:22). Assim era concebido o funcionamento da linguagem por Wittgenstein em Tractatus (1939): a linguagem inteiramente referida ao mundo e atravs de sua forma lgica possvel pensarmos o mundo real e falar sobre ele. Segundo Spencer (1900), para a cincia comparada agrupavam-se os objetos semelhantes aos diferentes, no como eles se manifestavam habitualmente aos nossos olhos, mas como eles se manifestavam em seus modos diferentes, quando artificialmente comparados uns aos outros. Vejamos como Spencer expe esta questo:Assim como a lgica e as matemticas tm por objetivo generalizar as leis das relaes qualitativas e quantitativas, consideradas fora dos objetos entre os quais elas se estabelecem, assim a mecnica, a fsica, a qumica, etc., tm por objetivo generalizar as leis de relao a que obedecem as propriedades da matria e do movimento, quando so, cada uma particularmente, separadas de todas as circunstncias fenomenais que as modificam na realidade (Spencer:13)

Para justificar o que foi dito acima, a respeito da maneira pela qual a cincia tratava os fenmenos - seja de maneira abstrata1 ou de maneira concreta separando artificialmente dos outros fenmenos que tambm fazem parte de sua composio, Spencer d como exemplo a lei segundo a qual a luz se propaga na razo inversa do quadrado da distncia. uma verdade de maneira absoluta, s quando a radiao se efetua de um ponto sem dimenses, o que nunca acontece. A mesma lei faz supor que os raios so perfeitamente retos, o que, tambm, no pode acontecer, a menos que o meio seja perfeitamente homogneo. Segundo Spencer (op.cit), o mesmo se pode dizer da qumica; antes de proceder ao estudo de suas propriedades respectivas, o pesquisador separa todos os elementos heterogneos. O pesquisador, assim, no aceita as substncias tais como a natureza s apresenta.

Segundo Spencer (1900), a menor partcula da matria apresenta simultaneamente: verdades abstratas, que so as relaes no tempo e no espao; verdades abstrata-concretas, que so os modos de aes particulares pelos quais a fora se manifesta nessa partcula, e verdades concretas, que so as leis de ao combinada desses diferentes modos de fora.

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O que Spencer (op.cit) conclui quanto a este modo de proceder diante da cincia que as cincias abstrato-concretas tm por fim a explicao analtica dos fenmenos: decompe-se o fenmeno, separam-se uns dos outros elementos que o compem; ou seja, se alguma vez faz-se uso da sntese, apenas para verificar a anlise. Mas qual seria a parte da cincia que toma os termos das relaes, as condies heterogneas que constituem os fenmenos? Segundo esse autor, a cincia concreta, pois ela tem como finalidade a explicao de cada fenmeno como produto de todos os outros elementos combinados. como se a anlise empregada auxiliasse a sntese. Segundo suas palavras:O fim no pois agora descobrir os fatores dos fenmenos, mas descrever os fenmenos produzidos por estes fatores, tais como o universo os apresenta, com suas circunstncias variadas (ibid:20).

At o momento, falamos de questes conceituais que compem e que interferem na idia de cincia. A cincia, nessa poca (meados do sculo XIX e incio do sculo XX), no s era comparativa, como tambm descritivista. Essas questes conceituais que ancoram a Afasiologia so apontadas por Franozo (1987) como sendo aquilo que impede maiores desenvolvimentos nos estudos das afasias. A taxonomia clssica, vinculada diferentemente com as doutrinas de Broca e de Wernicke, mostra-se inadequada na tarefa de apontar os mecanismos subjacentes ao processamento da linguagem. Nesta poca, as questes de linguagem eram vistas, tambm, de forma analtica. Ou seja, segundo a maneira descrita por Spencer (1900), o mesmo era feito na linguagem: decompem-se os fenmenos lingsticos, de maneira que as partes so descritas com a finalidade de se poder generalizar as leis, tal como era feito, por exemplo, na fsica ou na qumica, obedecendo-se, assim, s propriedades da matria e do movimento. Ainda no sculo XIX, e no campo do domnio da linguagem, a classificao, como tambm a observao de dados, era feita atravs de uma estabilidade caracterstica da produo cientfica da poca. Essa estabilidade dizia respeito a uma observao objetiva, real e inquestionvel, onde nada estava oculto, tendo a linguagem o papel de transformar os sintomas em

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signos. Da mesma maneira isso era feito, por exemplo, pelos botnicos, resultando da, uma herborizao no campo do patolgico (Foucault, 1980): colhem-se os dados da lngua como os da planta, ou seja, naturalmente, onde o olhar se realizar em sua verdade prpria e ter acesso as verdades das coisas, se colocam em silncio sobre elas, se tudo se cala em torno do que v (Foucault, op.cit.:122). Aqui, no havia uma separao entre as coisas e as palavras, onde o modo de ver e o modo de dizer estavam extremamente ligados. Segundo Moreno (2000), foi atravs da Gramtica de Port Royal2 , no sculo XVII, que a investigao lingstica acabou exercendo grande influncia no pensamento cientfico. Para esta concepo de linguagem, o importante era estabelecer princpios que no se prendessem descrio, mas a suas generalidades. A epistemologia que interessa para este ponto de vista alinhase ao paradigma positivista em que as dicotomias esto to presentes nas regularidades historicidade, destes as dados. Para o a positivismo, relao as questes sobre a descontinuidades, de reciprocidade entre

corpo/alma, sujeito/objeto, normal/patolgico, ficam totalmente apartadas do fato de linguagem. Com a lingstica comparativa, o que importava no era mais o ideal universal, tal como no sculo XVII, mas o conhecimento de que as lnguas se transformam com o tempo, que seguem uma necessidade prpria e que possuem regularidades. Para a lingstica comparativa, o interesse est em estudar o percurso social, a relao entre a lngua e a sociedade. Surgiram, ento, os neo-gramticos que, atravs de estudos histricos comparados, vo demostrar que as lnguas fazem parte da mesma origem e que, atravs de transformaes prprias e naturais, passam a apresentar formas especficas.

A Gramtica de Port Royal surge como resposta s insatisfaes com a gramtica formal do Renascimento. Inica-se, assim, a busca do rigor cientfico. Baseda no racionalismo francs de Descartes, surgem as tentativas de elaborao da gramtica filosfica a partir do princpio de que a lngua a expresso do pensamento e que o pensamento governado pelas mesmas leis em todos os seres humanos, sendo possvel, a elaborao de uma gramtica geral, comum a todas as lnguas.

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Ainda sobre a questo sobre a mudana de paradigma, no artigo de Franozo & Albano3, os autores questionam se o cognitivismo que tem por base teorias mentalistas, substituindo as teorias behavioristas foi uma revoluo kuhniana que desbancou o behaviorismo. Os autores, ao negarem esta posio, a de que houve uma revoluo, justificam esta posio da seguinte maneira:Somos seduzidos pela idia de que somos os agentes de uma revoluo e sentimo-nos dispensados da tarefa da crtica, dirigindo-a apenas contra o oponente. Nas cincias j h muito institucionalizadas, o interesse dos cientistas pela histria do seu campo , em geral, muito baixo; portanto, o discurso historiogrfico no afeta a teoria ou mesmo a especulao. Nas cincias em formao, em contrapartida, ele se mistura especulao e acaba influenciando as teorias. Da resulta que surgem teorias que nada dizem de novo, e apenas tentam explicar melhor, ou com outras palavras, o que o concorrente j explicou, pouco acrescentando ao contedo emprico da disciplina em questo. (Franoso & Albano, 2004: 303)

A crtica que fazem os autores a respeito do modelo kuhniano sobre as revolues cientficas, pois segundo eles o modelo presta um desservio s cincias recm institucionalizadas porque alimenta a irracionalidade dos cientistas (ibid:303) e, na perspectiva da histria da cincia que adotam, indispensvel o exerccio da crtica ao avano do conhecimento cientfico. Resumidamente, segundo os autores, no que diz respeito histria das cincias cognitivas, ela se deu da seguinte maneira: Na dcada de 1920 o programa epistemolgico de origem platnica foi levado por lgicos e psiclogos empiristas, os positivistas lgicos e os behavioristas, que tinham como base em seu ncleo metafsico duas teses que deram lugar a muitas teorias lgicas: a) a inteligncia manipulao de smbolos e b) a inteligncia passiva. Devido ao surgimento de crticas a esse programa feitas por Wittgenstein e Popper principalmente no que diz respeito passividade da inteligncia, o programa comea a degenerar-se e,3

Virtudes e vicissitudes do cognitivismo, revisitadas, in: Introduo lingstica: fundamentos epistemolgicos, volume 3.

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com isso, novas reinterpretaes de velhos fatos aparecem ao invs de surgirem fatos novos. A revoluo foi feita substituindo a tese da passividade da inteligncia pela contraditria. Surge, ento, o cognitivismo, cuja vertente clssica nada mais do que a verso racionalista do programa filosfico de uma epistemologia cientfica (ibid:305), revigorando-a com o enxerto racionalista de que a inteligncia ativa. Assim, o que os autores pretendem nesse artigo fazer uma crtica no interior do prprio programa de pesquisa, no caso sobre o cognitivismo, como aquele proposto por Lakatos (1979), propiciando, dessa maneira, que paradigmas em sucesso dem lugar a programas de pesquisas em competio, com momentos ocasionais de hegemonia. Assim, o que muitas vezes pode ser considerado como sendo uma revoluo cientfica, a derrubada de um programa, a sua incapacidade de produzir fatos novos muitas vezes velhos fatos que so reinterpretados - alm de ter um programa substituto mo. Vemos, ento, que a mudana de um paradigma para Kuhn motivada pelo colapso de uma teoria, quando esta no consegue explorar e explicar um dado fenmeno, tanto do ponto de vista conceitual como observacional, devendo ter um substituto, uma outra teoria, mo. Para Franozo & Albano (ibid), no entanto, a mudana de paradigma provocada pela crtica no interior do prprio programa, dando lugar a outros programas de pesquisa em competio, sem, com isso, mudar, necessariamente, seus pressupostos. A seguir, veremos como, no contexto intelectual apontado at aqui, os neurologistas clssicos e, posteriormente, os neuropsiclogos e os neurolingistas forjam uma classificao das afasias.

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1.2-As classificaes do ponto de vista da Afasiologia Aqui pretendemos fazer um percurso histrico para podermos ter uma idia mais precisa de como as classificaes so forjadas e consolidadas ao longo de seu tempo. O que que circunda a questo da classificao? A captura da essncia das coisas? Uma maneira organizada de ver o mundo? No caso das classificaes das afasias, seria uma maneira de poder investigar e compreender o que alterou no funcionamento da linguagem? Vejamos, ento, como se deu o processo a respeito das classificaes das afasias que se iniciou no sculo XIX . Desde o incio dos estudos afasiolgicos, o que sempre interessava aos pesquisadores era o princpio da localizao das funes. O dualismo corpo/alma, a natureza inata das faculdades mentais e a noo de que a mente era algo localizado no crebro trouxeram grande aceitao e interesse por parte dos estudiosos do sculo XVI e XVII. Nesta poca, eram os aspectos perceptuais que despertavam mais interesse do que a linguagem propriamente dita. Posteriormente, no sculo XIX, Franz Joseph Gall (1758-1828), apesar de nunca ter escrito especificamente sobre afasia e nem mesmo apresentado interesse primordial pela linguagem, pretendia localizar as faculdades mentais no crebro. Desta maneira, Gall acaba se tornando um grande precursor da Neuropsicologia com sua doutrina conhecida por Frenologia, apresentando um deslocamento da localizao das faculdades mentais dos ventrculos para o encfalo, alm de postular a existncia de novas faculdades mentais que no apenas aquelas herdadas da tradio aristotlica: percepo, razo e memria. A Frenologia, devido ao momento histrico em que se encontrava o perodo da Restaurao como resposta Revoluo Francesa - apresentava idias racionalistas, que admitiam o crebro como um rgo compartimentado. Vejamos como a Frenologia era constituda do ponto de vista racionalista (Eling,1994):

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Devido ao fato de a mente estar localizada no crebro, ela pode ser dividida em vrios componentes que ocupam diferentes localizaes cerebrais.

Estes componentes corticais Gall chamou-os de organs so autnomos e completamente independentes entre si. As faculdades mentais inatas, so divididas entre aquelas que podem ser localizadas, tais como linguagem, msica, instinto assassino, venerao a Deus; e as que no podem ser localizadas, como memria e raciocnio.

Uma faculdade mental bem desenvolvida requer um rgo cortical tambm bem desenvolvido. Apesar de as faculdades mentais postuladas por Gall no serem

observveis, o que se podia notar eram os talentos, as manias ou as tendncias ou traos de carter. Observavam-se as proeminncias como resultado do desenvolvimento maior do rgo cortical subjacente, para que assim se pudesse fazer uma correlao direta entre os dados. O mrito de Gall muito mais de ordem conceitual que emprica, embora seu trabalho tenha sido considerado o marco dos estudos empricos sobre a localizao cerebral, bem como a tentativa de determinar faculdades que pudessem explicar o comportamento humano e dos animais em seu ambiente natural.(Vieira, 1992:14) Apesar de Broca admitir que a localizao da funo articulatria foi inspirada no trabalho de Gall, ele no foi o pioneiro nesse tipo de empreendimento. O localizacionismo uma teoria que j vinha sendo desenvolvida desde Hipcrates (460 a.C.) e Plato (422-388 a.C.). Seguindo a tradio aristotlica, o crebro era dividido em percepo, razo e memria, faculdades localizadas da seguinte maneira: sensao e imaginao no ventrculo anterior, razo no ventrculo mdio e memria no ventrculo posterior. Esta concepo de crebro no s teve influncia durante toda a Idade Mdia, apesar de ter havido muitas modificaes e acrscimos, como tambm influenciou a moderna Neuropsicologia, que abrange a poca entre Gall e a contempornea Neuropsicologia (Eling,1994).

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Assim sendo, o mrito de Gall se d de duas maneiras: por ter resgatado a idia do localizacionismo - rejeitado at ento pelo dualismo cartesiano - e por ter sido o primeiro neurologista a introduzir a idia de verticalizao ou de domnio especfico do crebro. Como Broca, Bouillaud (17961881) tambm foi um seguidor de Gall ao confirmar que a perda da fala corresponde leso nos lobos anteriores do crebro. Porm, diferentemente de Broca, para Bouillaud, que tambm se dedicou a estudos antomo-clnicos, o crebro apresenta um centro cerebral que ocupa o lobo anterior, responsvel pelos movimentos da fala. Mas, Bouillaud aprofunda mais essa discusso sobre a localizao atravs de sua concluso de que a perda da fala no redutvel perda de uma funo motora, pois em seus estudos foi possvel verificar casos em que o sujeito perdia a fala sem que houvesse uma paralisia dos rgos fono-articulatrios. Ou seja, apesar de o sujeito apresentar a perda da fala, os lobos anteriores estavam intactos. A repercusso desta concluso gerou bastante polmica, principalmente por parte dos unitaristas, o que ser visto a seguir. Foi sob esse clima de debates entre localizacionistas e unitaristas que Broca apresentou o seu famoso caso Tan-tan4. Ao estudar este caso, Broca tinha como inteno correlacionar a sintomatologia apresentada pelo sujeito com as alteraes anatmicas encontradas. Ele define o caso Tan-tan como um caso de afemia: perda da fala sem que haja outros comprometimentos envolvidos, ou seja, a faculdade geral da linguagem fica preservada, mesmo havendo um comprometimento na faculdade da linguagem articulada. Assim, para Broca, o caso Tan-tan, em funo de leso cerebral na regio anterior do crebro, provocou o cancelamento da linguagem articulada. Mas o que Broca queria dizer quanto perda da linguagem articulada? Seria a perda da memria dos movimentos articulatrios, j que todos os outros componentes permaneceram intactos?4

Leborgne (o caso Tan-tan), aos 30 anos foi internado no hospital Bictre em Paris. Desde criana sofria de ataques epilticos e sua internao foi devida a perda da fala. O paciente s conseguia se expressar monossilabicamente atravs da palavra tan-tan acompanhada de gestos, demonstrando, assim, que sua compreenso estava preservada. Com o passar do tempo, seu quadro foi-se agravando sendo necessrio a realizao de uma interveno cirrgica no membro inferior direito em funo das constantes paralisias que o acompanhavam e, a partir desse momento, Broca passou a acompanhar o caso. (Eling,1994)

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Esta pergunta interessante para vermos de que maneira Broca classifica os distrbios de fala. Para o autor, havia quatro nveis pelos quais a linguagem realizada: em primeiro lugar estaria o nvel onde as idias so desenvolvidas seria a faculdade geral da linguagem. Em segundo lugar, a idia estaria sendo transformada em signos convencionais, em forma de linguagem quando for este o modo de expresso pretendido (mapping onto the conventional signs) ou atravs de outras formas de expresso como, por exemplo, pela escrita ou gestos. Broca considera estes dois primeiros nveis como fazendo parte da funo superior do crtex, a funo intelectual do crebro. Em terceiro lugar, estaria o ato de combinar os movimentos dos rgos da articulao, de maneira a produzir as palavras convenientes e desejadas. Em quarto lugar, estaria a integridade dos rgos da articulao para que se realizem motoramente as ordens da vontade.(Eling,1993) Broca chamou as alteraes de fala decorrentes do primeiro grupo de alogia: os pacientes so capazes de falar, mas de maneira totalmente desconexa, ao acaso, alm de apresentarem dificuldade de compreenso. Broca atribui essa ausncia de idia ao se expressar como fazendo parte da perda da inteligncia em geral. As alteraes encontradas no segundo grupo, Broca chamou-as de amnsia verbal : seria a ausncia da relao entre a idia e a palavra. Pessoas acometidas por esta alterao so capazes de pronunciar as palavras, ou seja, a parte articulatria se mantm intacta, porm, mesmo assim, no conseguem se expressar. Afemia foi a denominao dada por Broca para as alteraes encontradas no terceiro grupo: as idias existem, porm ao express-las muitas vezes o fazem atravs de gestos ou atravs de monosslabos, blasfmias ou mesmo por meio de palavras no pertencentes lngua (jargo e neologismo). Os pacientes geralmente apresentam boa compreenso do que lhes foi dito, porm apresentam muita dificuldade na repetio das palavras. Por ltimo, as alteraes do quarto grupo: Broca chamou-as de alalia mecnica: so as dificuldades da ordem da articulao decorrentes de alterao neuro-muscular, no necessariamente acompanhadas de paralisia.

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O que se pretende na evocao da classificao dos distrbios da fala proposta por Broca e como veremos, tambm, a classificao proposta por outros autores, como Wernicke, Jackson, Freud, Head, Goldstein e Luria - ver de que maneira os autores forjam uma classificao e quais so seus pressupostos tericos nesse empreendimento, ou melhor, quais so as questes epistemolgicas e ontolgicas envolvidas nestas classificaes. Como possvel observar, para Broca, o crebro um rgo compartimentalizado, onde cada regio responsvel por uma determinada funo; para entendlas, necessrio decomp-las. Contudo, importante perceber que Wernicke, em 1870, ao descrever o correlato posterior da afasia motora descrita por Broca a afasia sensorial partiu de pressupostos conceituais bastante distintos dos de Broca. Atravs da teoria de conexes de Meynert5, Wernicke assume aquelas mesmas noes, em que as camadas corticais se distinguem atravs de dois grupos de fibras: as de projeo (conexo em pequenos centros) e as de associao (conexo de diferentes regies do mesmo hemisfrio). Partindo dessa concepo de funcionamento cerebral, Wernicke nega a exigncia de uma rea circunscrita tanto para as faculdades mentais como para a linguagem. Assim, para Wernicke, as faculdades mentais, por serem o produto da relao de diferentes regies, no podem ser propriedades de regies localizadas no crebro. Desta maneira, o que Wernicke postula a existncia de imagens sensoriais e motoras que fazem conexo entre si e que resultam nas funes mentais superiores. Vejamos como isso formulado pelo autor:A camada superficial do crebro pode ser dividida em duas grandes reas diferentes de significados de funcionalidade. A primeira (lobo frontal) a rea motora que contm a representao do movimento; a segunda (lobo tmporo-ociptal) a sensorial, contm a imagem da memria do sentido da impresso. O lobo parietal, que se encontra entre essas duas regies, uma rea de transio. (Wernicke,1969/1874:36)

Em 1870, Meynert realiza a primeira descrio precisa das camadas corticais e distingue dois grupos de fibras: as de projeo e as de associao; indica que a parte anterior do crebro tem funo motora e a posterior sensorial. (Vieira, 1992:43)

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Apesar de Wernicke propor uma concepo de crebro mais integralista que a de Broca, ao descrever uma classificao das afasias, ele ainda mantm o mesmo paradigma de Broca: a correlao direta entre leso cerebral e sintoma lingstico. Esta postura talvez possa ser justificada pela prpria maneira de se adquirir conhecimento. Ou seja, o empirismo era a cincia em voga na poca, como tambm a formalizao da linguagem. Dessa maneira, a postura de Wernicke muito mais da ordem da adio, acrescentando mais elementos para o conhecimento vigente, que uma mudana de paradigma afetado por um novo tipo de fenmeno. Segundo Eling (1994), Wernicke props a seguinte classificao das afasias com suas respectivas sintomatologias para as leses posteriores do crebro (regio ocipital)7: Afasia sensorial: o paciente apresenta dificuldade ou incapacidade de repetio, de compreenso da linguagem oral, de percepo dos erros de sua fala e do uso adequado das palavras; h presena de agrafia e alterao de leitura para aquelas que se apoiam na imagem sonora. Afasia de conduo: so os casos que apresentam parafasias, falas hesitantes e laboriosas. Afasia motora: esta a afasia descrita por Broca; a compreenso est preservada, porm a expresso do paciente se reduz a poucas palavras. A afasia de conduo provocou muita discusso, principalmente por parte de Freud (1871/1977) e Lichtheim (apud Vieira, 1992), que no acreditavam que havia uma distino das afasias devido a leses de centros e devido a leses das vias de conduo. Para eles, o que havia era uma modificao do estatuto funcional e no uma interrupo localizada de uma via, como veremos mais adiante.

Wernicke descreve a regio ocipital, como aquela responsvel pelo armazenamento da imagem sonora. Assim, uma leso nessa regio extingue a imagem sonora dos nomes dos objetos da memria, embora o conceito dos objetos possa permanecer ntegro. (Vieira, 1992: 40)

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Jackson, em 1866, propunha uma outra concepo de funcionamento cerebral criticando tanto o localizacionismo os chamados centros da linguagem - como a faculdade para a linguagem, postulando, assim, uma viso de crebro como um rgo em movimento. Vejamos como isso dito por Vieira quando a autora se refere concepo de crebro segundo os preceitos de Jackson:...existe uma grande diferena entre localizar a rea lesada que destruiu a linguagem e localizar a linguagem em alguma rea do crebro. Quando localiza-se a rea lesada pode-se no mximo supor a localizao dos sintomas e no da funo normal. (Vieira,1992: 50)

Assim,

Jackson,

ao

se

referir

afasia,

apresenta

a

seguinte

classificao8: sem fala (speechless), em que h perda da capacidade de fazer proposies9, ou perda da capacidade de simbolizar e de operar mentalmente. Desse modo, um sujeito speechless tem a possibilidade de alterar tanto a linguagem interna (perda da capacidade de realizar proposies internamente) como a externa (perda da capacidade de realizar a linguagem em voz alta); e wordlessness , em que h perda total da capacidade de processar as palavras. Assim, estar afsico, para Jackson, perder a capacidade de usar as palavras com a finalidade de fazer proposies. Estar sem fala (speechless), para Jackson, no implica necessariamente que haja perda total da capacidade do processamento da linguagem. Jackson apresenta os hemisfrios cerebrais como tendo semelhanas e diferenas em suas formas de funcionar. O hemisfrio direito teria a funo de lidar com o uso automtico ou involuntrio das palavras (uso inconsciente); j o esquerdo seria responsvel tanto pelo uso automtico, como, tambm, importante lembrar que, apesar de Jackson considerar o crebro como um rgo em movimento, o mesmo no acontecia com a linguagem. A linguagem, segundo Jackson, o qual baseava-se nas idias de Jules Baillarger, distinguia-se entre linguagem voluntria (intelectual) e involuntria (emocional) conforme o hemisfrio cerebral. 9 Segundo Jackson ( Eling, 1994), o termo e o conceito de proposio so constituintes significantes da lgica aristotlica. Proposio a unidade de palavra onde o sentido se d. Proposio definida como um conjunto de palavras para se criar um novo sentido, no por mera adio pelo qual ns apelamos pelo sentido separado das palavras; os termos numa proposio so modificados by each other (Ibid: 140). (A proposition is defined as such a relation of words that it makes one new meaning, not by mere addition of what we call the separate meaning of the several words; the terms in a proposition are modified by each other.8

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voluntrio (uso consciente) das palavras. Pacientes speechless permanecem com o uso involuntrio ou emocional das palavras, perdendo o seu uso proposicional. Aps vermos de que maneira se d o funcionamento da linguagem no crebro segundo o ponto de vista de Jackson, interessante apontar alguns aspectos que diferem Jackson dos autores abordados anteriormente: Uma palavra vem acompanhada tanto de um estado fsico (dificuldades articulatrias, perda da funo de certas organizaes nervosas no crebro), como tambm de um estado psquico ou emocional, e estes dois estados, segundo o autor, so coisas que apresentam naturezas diferentes. As afasias diferem em grau, em qualidade e em gravidade, porque as posies das leses no crebro variam: diferentes quantidades de organizao nervosa em diferente posio so destrudas com diferente rapidez em diferentes pessoas (Eling,1994:153) . Jackson postula graus de afeces de linguagem, alm de apresentar uma diferenciao entre fala e linguagem. Segundo o autor, a fala est relacionada com o uso das palavras. Pouco vocabulrio e troca de palavras ao falar (parafasias), caracterizam o Defect of Speech (1). No caso de Loss of speech (2), o autor descreve o paciente como praticamente speechless, alm de os gestos estarem comprometidos. No caso de Loss of Language (3), o paciente, alm de ser speechless, perdeu totalmente os gestos e sua linguagem emocional a automtica ou involuntria est profundamente envolvida. Somente os casos (2), considerados Loss of speech, que Jackson considera como sendo afasia. Outra questo bastante importante apontada por Jackson, e que tambm diz respeito linguagem, saber o que basicamente o paciente perdeu na linguagem (condio negativa) e o que ficou preservado (condio positiva), pois somente tendo esta noo que se poder traar a relao entre (1), (2) e (3).

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Para Jackson, no h quase diferena entre linguagem interna e externa. A diferena est na maneira de se proposicionar. Enquanto a linguagem externa se proposiciona em voz alta, a interna se proposiciona sem articulao.

Vemos, assim, que Jackson, apesar de tentar alocar a linguagem em alguma regio do crebro, tinha, tambm, um olhar bastante atento para as questes de linguagem, questes estas que no apareciam com tanta nfase at ento. importante lembrar que Jackson, antes mesmo de Freud, j propunha uma concepo de organizao cerebral, tal como Anokhin no sculo XX, atravs da anlise das funes mentais luz de sua evoluo. Entretanto, Jackson no teve apoio na comunidade cientfica da poca e, por este motivo, seus estudos s foram resgatados na metade do sculo seguinte pela neuropsicologia sovitica, mais especificamente por Anokhin e posteriormente por Luria. A proposta sovitica, representada especificamente por Luria, leva em considerao tanto a organizao dinmica do crebro como a incorporao da Lingstica em seus estudos e pesquisas, como veremos mais adiante. Seguindo a cronologia dos principais estudiosos do sculo XIX sobre a afasia, passemos, agora, a Freud, pois este autor tinha um grande interesse nas afasias. Freud, no final do sculo XIX, criticou e colocou em questo o carter organicista da Neurologia, no que tange s hipteses levantadas pelas teorias de Wernicke, Lichteim, Grashey e Meynert, acerca das afasias. As crticas do neurologista vienense foram dirigidas principalmente a Wernicke, pois as hipteses que levantou sobre o funcionamento cerebral foram absorvidas por sua teoria. Wernicke, como j vimos anteriormente, postulava uma distino das afasias devido a leses de centros e devido a leses das vias de conduo, como tambm s relaes recprocas entre os diferentes centros responsveis pela linguagem. Tal perspectiva implica restries das funes do sistema nervoso a regies anatomicamente determinadas, o que ficou conhecido como teoria das localizaes cerebrais. Desta maneira, a linguagem fica referida, em

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termos cerebrais, a um centro motor (rea de Broca), a um centro sensorial (rea de Wernicke) e ambas ligadas por um sistema de fibras de associao. Assim, para Wernicke, alm destes dois tipos de afasias - motora e sensorial haveria ainda uma afasia de conduo, decorrente de leses nas vias de associao, que Freud chamou de parafasia10, apesar de no concordar com Wernicke quanto sua localizao cerebral circunscrita. Para Freud, a parafasia um sintoma puramente funcional, e no uma destruio nas fibras de associao. A sua maior crtica teoria de Wernicke a falta de relao que a linguagem tem com o resto da atividade cerebral. O fato que as pesquisas que vieram logo aps a de Wernicke no mudaram muito esta concepo localizacionista de crebro: as perturbaes de linguagem so decorrentes de leses nos centros da linguagem - afasia motora ou de Broca, para leses anteriores; afasia de Wernicke ou sensorial, para leses posteriores; afasia de conduo para leso nas vias de associao. Porm, o prprio Wernicke reconheceu a necessidade de recorrer a sistemas de associao articulando diversas reas corticais, cabendo a Freud, contudo, propor uma hiptese funcional da atividade cerebral: para ele, a linguagem seria um efeito do funcionamento do aparelho de linguagem (o termo aparelho de linguagem definido por Freud como algo que no pode ser dividido ou fragmentado em centros), e no o instrumento desse mesmo aparelho (cf. Garcia-Rosa, 1991). As argumentaes de Freud contra o localizacionismo provinham tanto das observaes de dados clnicos como da necessidade de reviso de alguns conceitos tericos. Com referncia aos dados clnicos, Freud baseia-se em dois fatos: 1) no sintoma denominado parafasia 2) nos casos de contradio entre rea lesada e o quadro clnico nos tipos de afasia designada afasia motora transcortical e afasia sensorial transcortical. Quanto ao conceito de parafasia, Freud o define da seguinte maneira:Por parafasia devemos entender uma perturbao da linguagem em que a palavra apropriada substituda por outra no apropriada que Freud (ibid) argumenta que a representao-palavra para alcanar o seu significado tem que passar pela sua representao-objeto. Isto quer dizer que a significao resulta na articulao entre as duas representaes - a da palavra e a do objeto atravs da imagem acstica da palavra e da imagem visual do objeto.10

42 tem no entanto uma certa relao com a palavra exata. (ibid:1891/1977:35).

Este

sintoma

considerado

por Freud como uma alterao no

funcionamento do aparelho de linguagem e no necessariamente decorrente de uma leso, pois ns o encontramos no s em pessoas com leses, mas tambm em pessoas normais quando submetidas a tenso, stress e fadiga. O que Freud pretende ao questionar as alteraes de linguagem decorrentes de leses cerebrais colocar em xeque no s a viso localizacionista da linguagem como tambm outras funes cognitivas como tendo um lugar circunscrito no crebro. J para o segundo fato, as contradies encontradas na correlao antomo-clnica (tanto a afasia transcortical motora, como a transcortical sensorial) caracterizam-se pela perda da fala espontnea, ficando preservada a capacidade de repetir e ler em voz alta, sintomas comuns tanto na afasia motora transcortical quanto na afasia sensorial transcortical. Para estes casos, Freud entende que os quadros de afasia transcortical devem ser vistos como resultantes no estatuto funcional do aparelho de linguagem e no uma modificao localizada de uma via. Essa alterao da funcionalidade do aparelho de linguagem pode ser resultante da reao conjunta do aparelho a uma leso prxima ou distante. Vemos, ento, que Freud apoia-se no ponto de vista de Jackson como j foi citado - quando este, ao identificar uma rea lesada e relacion-la com sintoma clnico, conclui sobre a localizao do sintoma, e no sobre sua funo. Assim, em relao linguagem, Freud prope dois grupos de perturbao: afasia de primeira ordem ou afasia verbal, e afasia de segunda ordem ou afasia simblica. Na afasia verbal estariam perturbadas as associaes entre cada um dos elementos da representao da palavra. Na afasia simblica, a perturbao incidiria sobre a associao entre a representao da palavra e a representao do objeto. O que liga a representao da palavra com a representao do objeto, segundo Freud, a imagem acstica.10

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interessante perceber, aqui, que existe uma mudana epistemolgica quanto representabilidade da linguagem. Ou seja, Freud no considera a linguagem como uma ferramenta usada para se referir ao mundo de forma lgica - como aquela descrita por Wittgenstein, herdeiro direto das idias de Frege (1872-1925) e de Russell (1872-1970), no incio do sculo XX, que, em Tractatus, preconizava a relao direta entre linguagem e mundo mas a relao entre representaes: a representao da palavra e a representao do objeto. Este outro modo de Freud ver a representabilidade da linguagem est mais de acordo com as Investigaes Filosficas de Wittgenstein (obra que foi escrita apenas em 1945): o que revela o significado o processo de anlise das proposies, ou a anlise do uso que fazemos da linguagem nos diversos jogos e independente de seus modelos referenciais. Assim, Freud, atravs dessa outra postura epistemolgica, ao invs de supor uma causalidade mecnica a partir de leses em centros especficos, tentou discutir, em seu trabalho sobre as afasias, a relao entre leses orgnicas e uma perturbao funcional. Introduz a noo de perturbao funcional querendo com isso designar uma srie de efeitos que devem ser relacionados com o funcionamento global do aparelho, obrigando-nos, assim, a repensar a questo da relao entre funes e localizaes. H, ainda, um terceiro grupo de perturbao proposto por Freud: as afasias agnsticas ou afasias de terceira ordem. Para o termo agnosia, Freud reserva as perturbaes no reconhecimento dos objetos. H casos, porm, em que as perturbaes gnsicas, que s podem surgir por leses corticais bilaterais extensas, admitem, tambm, uma perturbao de linguagem. Segundo Garcia Rosa (1991/1996), a natureza de signo no est afetada neste caso. Vejamos como isso dito pelo autor:No caso da agnosia, o que perturbado a relao entre a representao-objeto e o objeto; trata-se pois de uma perturbao do reconhecimento do objeto, sendo que a relao entre a representao-objeto e a representao palavra permanece intacta, o que corresponde a dizer que o aparelho de linguagem no atingido. O que acontece no aparelho de linguagem, no caso da agnosia, que o sujeito no pode se servir dele em decorrncia do distrbio do reconhecimento e no de um distrbio de linguagem. Na agnosia, a

44 linguagem se v aliviada da tarefa de representar alguma coisa para algum, isto , ela se v aliviada da funo sgnica, na medida que esta funo no da competncia direta do aparelho de linguagem. (op.cit:62)

Vemos, ento, que Freud concebia a regio cortical da linguagem como uma rea contnua do crtex, onde se efetuam as associaes e as transferncias sobre as quais repousam as funes da linguagem de maneira to complexa, que desafia a nossa compreenso (Freud 1891/1977). essa idia de territrio da linguagem, constitudo por uma rea cortical contnua, que permite a Freud conceber um aparelho de linguagem. Desta maneira, ele prope uma explicao para o funcionamento cerebral fundada na hiptese funcional, em que, no caso de uma leso cerebral, o aparelho de linguagem reagiria como um todo apresentando uma perturbao funcional:A linguagem um efeito do funcionamento deste aparelho, e no o aparelho um instrumento da linguagem...O termo perturbao funcional designa uma srie de efeitos que devem ser relacionados com o funcionamento global do aparelho, ao invs de serem explicados em termos de uma relao mecnica entre o clinicamente observado e o anatmico .(Garcia Rosa,1991/1996:27)

O fato que a concepo localizacionista do crebro, no final do sculo XIX, perdia a sua hegemonia. A partir de Freud, o funcionamento cerebral j no podia mais ancorar-se nas premissas que constituem o paradigma localizacionista. Assim, no incio do sculo XX, motivada por crticas ao localizacionismo por parte de vrios afasilogos - como Freud e Jackson - nasce a moderna Neuropsicologia, inspirada no funcionalismo biolgico, tal como propunham Head, Goldstein e Luria.

1.3 A classificao do ponto de vista da moderna Neuropsicologia Henry Head (apud Eling,1994), a exemplo de Freud, tambm se tornou herdeiro das idias de Jackson. Sua concepo de desordem neurolgica teve uma abordagem psicolgica. Ele foi um dos primeiros autores a ter uma

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perspectiva cognitiva para o funcionamento cerebral. Atravs desta perspectiva de funcionamento cerebral, Head preconiza que as alteraes de linguagem devidas a leso cerebral so decorrentes das interaes entre diferentes processos na tentativa de se adaptar dinamicamente aos efeitos da leso. Segundo Head (Eling, 1994), no existe nenhuma correspondncia ponto a ponto entre o processo fisiolgico e os elementos constitutivos num ato de fala(ibid:287). Esta a grande crtica que Head faz sobre a tese de localizao da linguagem no crebro, que relaciona de maneira mecnica e simplista processos fisiolgicos com categorias de fala. Segundo o autor, isso pode trazer conseqncias desastrosas ao quadro clnico. Nos quatro tipos de afasias descritos por Head, veremos que as teorias subjacentes esto mais voltadas a questes lingsticas do que a questes antomo-clnicas. Vejamos: Afasia verbal: Neste tipo de afasia a desordem atinge o nvel produtivo da linguagem. A dificuldade do paciente diz respeito formao das palavras, quer no uso interno, quer no externo. Afasia sinttica: A fala do paciente, neste caso, caracterizada por jarges. Apresenta frases curtas, omitindo artigos, conjunes e outros componentes necessrios para a construo de uma sentena. Afasia nominal: A desordem apresentada neste tipo de afasia no est na estruturao das palavras ou frases (como apresentado na afasia verbal), mas no significado nominal (grifo meu): existiria uma inabilidade tanto para designar um objeto com palavras, como para dar sentido a esta palavra. (Eling, 1994) Afasia semntica: Diferentemente da afasia nominal, em que a dificuldade est no sentido individual das palavras, a dificuldade para este tipo de afasia est em combinar as palavras para formar uma frase. Head argumenta que para este tipo de afasia existe um problema quanto formulao simblica que estava influenciando na expresso do sujeito.

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Assim, Head parte de uma concepo de funcionamento cerebral distinta da concepo daqueles que vem o crebro como um rgo que apresenta uma diviso clara entre rea de recepo e de emisso. Para ele, os chamados centros no crtex no so conglomerados de clulas e fibras em que uma funo particular iniciada e, quando abolida, pode ser removida. Segundo Head, h uma integrao cortical, feita atravs de sofisticados processos fisiolgicos, que propiciam o desenvolvimento de processos somticos e psicolgicos. Quando esses processos fisiolgicos so perturbados, no caso de uma leso, um novo ajuste ocorre, cujo resultado chamado de resposta anormal (ibid:1994). Head argumenta, ento, que a concepo localizacionista insustentvel tanto na prtica clnica, como nos seus experimentos. O que o autor faz relacionar no processamento da linguagem aspectos psicolgicos e simblicos. Vemos, ento, que a concepo de linguagem assumida por Head parte de uma atividade simblica e voluntria e o sujeito, por estar afsico, perde a capacidade voluntria da linguagem, uma vez que a sua funo semitica, como outras capacidades mentais, est alterada. Contudo, diante desta postura crtica ao localizacionismo, Head, de maneira bem menos incisiva do que os localizacionistas - mais especificamente Broca e Wernicke - parece no resistir em justificar sintomas lingsticos com as leses cerebrais. Para ele, no caso das afasias verbais, ou desordens verbais, as leses podem situar-se na circunvoluo pr ou ps central e, tambm, abaixo dela. Na poro acima do lobo temporal, a tendncia encontrar uma desordem sinttica. J na destruio que abrange a regio do girus supra-marginal a desordem semntica, enquanto uma leso central, em redor do girus angular, na posio mais posterior, implica distrbio do tipo nominal. Vemos assim que, apesar das crticas ao localizacionismo e para ele, o sintoma no prescinde das reas cerebrais lesadas - ainda havia por parte de Head uma grande dificuldade em pensar o funcionamento cerebral que no fosse pelo localizacionismo. Diante deste quadro, o da existncia de uma corrente contra a teoria localizacionista, que foi o paradigma dominante at meados do sculo XX,

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surge a teoria holstica representada especificamente por Kurt Goldstein (1950). Para esta teoria, o crebro um todo indivisvel, descartando-se qualquer possibilidade de localizao das faculdades mentais. Neste sentido, estes estudos focalizam muito mais a descrio psquica e mental causada pela leso dentro de um contexto cognitivo (abrangendo memria, linguagem, percepo) do que aspectos neurofisiolgicos. Atravs das discusses entre leses e sintomas clnicos, Goldstein postulou novos conceitos de localizao, desenvolvendo uma maneira de interpretar as afasias atravs da modularidade da linguagem, a qual faz parte da psicologia da Gestalt11. O conceito chave que permite construir sua viso de distrbios de linguagem o de diferenciao. Vejamos como o autor explica esse conceito atravs da perda de uma Gestalt, ou da perda de poder estruturar uma experincia em termos da relao figura e fundo :Nas funes normais, os processos de figura e fundo possuem uma relao definida. Toda leso no sistema nervoso, especialmente no crtex cerebral, altera esta relao. A diferenciao perfeitamente delimitada de figura e fundo se altera, originando um desnvel geral, uma mistura entre figura e fundo. (Goldstein, 1950:7)

Goldstein tambm estabelece diferena entre linguagem concreta e linguagem abstrata, diferena esta que se reflete nas modalidades de ao, chamada por Goldstein de atitudes. Vejamos como isso se d:Podemos distinguir, em geral, duas diferentes classes de atitude, que denominaremos de atitude abstrata e atitude concreta. Na atitude concreta nos mostramos passivos e sujeitos a uma experincia imediata provocada por determinados objetos e situaes. Nosso pensamento e nossa atuao esto determinadas pelas exigncias imediatas provocadas pelo aspecto particular de um objeto ou situao. Por exemplo, atuamos de um modo concreto quando entramos em um quarto escuro e apertamos o interruptor de luz. Se, ao contrrio, desistimos de acender a luz pensando que podemos acordar algum que dorme no quarto, ento atuamos de modo abstrato. (ibid:8)

Para esta postura terica, existe uma relao entre as reas corticais excitadas durante uma atividade determinada. A rea que estiver com a maior concentrao de energia (excitao) a figura, sendo o restante do crebro o fundo.

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Notemos, pois, que a atitude abstrata transcende os aspectos imediatos, sendo as nossas aes determinadas pelo modo como pensamos e nos posicionamos frente aos objetos e as situaes. O mesmo acontece com a linguagem abstrata que pode ser caracterizada como volitiva, proposicional e racional e sua caracterstica maior quanto ao distrbio de linguagem o comprometimento para o significado das palavras. J a linguagem concreta, que pertence ao domnio das atitudes concretas, compreende os automatismos e os instrumentos da linguagem: os sons, as palavras, as frases. Nas patologias, os defeitos aparecem tanto na fala como na compreenso das chamadas formas puras de afasias e da afasia central. Concordando com as crticas que Franozo (1987) tece em relao tese de oposio entre estas duas modalidades de linguagem, ns as invocamos aqui com a finalidade de destacar a concepo de linguagem de Goldstein:H muito de problemtico nessa caracterizao das duas modalidades de linguagem. Especialmente surpreendente a soma de fatores lingsticos, de aprendizagem (automatismo), de compreenso e de fatores ligados ordem do emocional para caracterizar a linguagem concreta. Mas o que mais chama a ateno o paralelismo dessa distino com outras, como expresso/compreenso, significante/significado, etc. Vejamos. O distrbio de linguagem abstrata caracterizado como um distrbio que atinge o significado das palavras, enquanto o distrbio de linguagem concreta atinge suas instrumentalidade. Ora, entre as instrumentalidades esto os sons (que presume serem lingsticos) e as palavras. Mas palavras nesse contexto no podem ser entendidas como unidades dotadas de significado, porque isto uma caracterstica da linguagem abstrata; portanto, no sentido da linguagem concreta possivelmente devem constituir-se em algo da ordem do significante. (Franozo, 1987: 164)

Podemos, assim, ver que Goldstein deixa claro seu posicionamento frente linguagem: ela um instrumento do pensamento. Segundo a viso Gestaltica da linguagem, em que a figura-fundo fundadora da funo mental nos distrbios afsicos - sendo a linguagem a figura e o pensamento o fundo haver casos em que a perturbao do pensamento pode determinar perturbaes de linguagem, como, tambm, vice-versa.

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Tendo em vista essa abordagem de funcionamento mental, vejamos a classificao das afasias proposta por Goldstein: Distrbio quanto aos mecanismos perifricos da linguagem: Est relacionado com a instrumentalidade da fala (afasia motora e afasia sensorial). Para este tipo de afasia, no a linguagem interna e nem a perifrica que esto comprometidas, mas a relao entre elas, de tal forma que a principal dificuldade de um sujeito estaria, por exemplo, na repetio de palavras. Distrbio da linguagem central ou da linguagem interna: O comprometimento diz respeito linguagem interna. Para Goldstein, esta considerada uma afasia pura. Para este tipo de afasia, a fala espontnea e a compreenso oral esto comprometidos; h presena de parafasias literais e verbais, paralexias e paragrafias e distrbio de repetio. Distrbio de habilidades cognitivas no lingsticas: So as afasias transcorticais. Tanto o campo conceptual como o de conexo esto perturbados. interessante perceber que a afasia central ou afasia de conduo pode ser caracterizada como um distrbio de linguagem interna, ou seja, segundo Goldstein, uma afasia causada pelo distrbio da linguagem interna, diferentemente das outras afasias, tem um comprometimento com o conceito das palavras. Para Goldstein, a palavra no era uma simples associao entre imagem auditiva e motora. A palavra suscita imageless thought (Eling,1994) que por sua vez no tem semelhana nem com as imagens acstico-motoras, nem com as imagens sensoriais. Dessa maneira, para se ter uma formao correta da linguagem interna, os processos mentais precisam estar intactos. Como a afasia pode ferir tanto o pensamento (processos no lingsticos) como os aspectos motores da fala (na medida em que ela est relacionada com a instrumentalidade da fala), a linguagem interna parece que sempre ir estar prejudicada para Goldstein.

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Assim, o conceito de linguagem interna inspirado nas idias de Vygotsky , para Goldstein, fundamental para o entendimento das afasias, pois o autor assume o postulado de que a linguagem tem um papel instrumental frente ao pensamento, ocupando, tambm, posies especficas frente a outras funes mentais. (Busato, 2001) Outro autor bastante influenciado pelas idias de Vygotsky foi Luria. Sua posio quanto ao funcionamento do crebro ia contra no s o localizacionismo como tambm a teoria holstica. Luria (1974) no concordava com a posio de que o crebro fosse uma massa nervosa indiferenciada como propunha Goldstein. Assumindo uma concepo da ontogenia das atividades mentais superiores como histrica e social, Luria entende que os sistemas funcionais vo se estruturando ao longo do desenvolvimento da criana chegando at a vida adulta. Assim, o crebro, atravs dos sistemas funcionais, mantm sua estrutura e seus componentes localizveis de maneira dinmica, ou seja, ao longo do desenvolvimento, as estruturas que compem o sistema funcional se modificam. A concepo de funcionamento cerebral proposta por Luria (1962, 1974, 1979) parte do princpio de que o crebro funciona dinamicamente atravs do trabalho conjunto de vrias zonas, o que contribui para a realizao das atividades cognitivas. Ora, se existe uma funo que rege um conjunto de estrutura para alcanar um objeto comum, ento este deve ser entendido como um sistema funcional. Este conceito de sistema funcional foi introduzido por Anokhim, porm Luria quem o torna produtivo na teoria de funcionamento dinmico do crebro. Esta noo de crebro como um sistema funcional parte do princpio de que a atividade mental humana se efetua atravs da combinao das estruturas cerebrais que trabalham conjuntamente, sendo que cada uma delas carrega sua prpria especificidade, contribuindo para o sistema funcional como um todo. Isto significa, ento, que uma leso em uma determinada regio, ou em alguma dessas estruturas, levar ao desequilbrio de toda a dinmica do funcionamento cerebral, ou, nos termos de Luria, do sistema funcional. Baseando-se nos postulados psicolingsticos de Vygostsky (1984), Luria entende que os sistemas funcionais so tambm

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construdos ao longo do desenvolvimento da criana e mediados pelo seu ambiente social. Esta concepo de crebro possibilita a existncia de um crebro dinmico, que coordenado tanto por um plano biolgico, como por um plano lingstico-cognitivo, que se constitui histrica e socialmente. Assim, Luria prope uma organizao funcional do crebro em trs unidades bsicas, cuja participao conjugada necessria para todo o tipo de atividade mental: 1) a primeira unidade responsvel pela regulao do tnus cortical, fundamental para manter o estado de viglia. 2) a segunda unidade responsvel pela obteno, processamento e conservao da informao que chega do meio exterior. 3) a terceira unidade responsvel pela programao, regulao e verificao da atividade mental. Cada uma dessas unidades funcionais contm seus substratos orgnicos que atuam como analisadores. Assim, para a primeira unidade funcional bsica, a estrutura que desempenha um substrato orgnico o tronco cerebral, que atravs da formao reticular (ascendente e descendente) assegura o tnus cortical necessrio. A segunda unidade funcional bsica tem no sistema perceptivo o substrato orgnico dos analisadores, que, por sua vez, vo atuar em trs regies corticais: analisador auditivo, situado na regio temporal; analisador tctil-cinestsico, situado na regio parietal; analisador visual, situado na regio occipital. A terceira unidade funcional bsica, responsvel pela programao, regulao e controle de uma dada atividade, tem como substrato orgnico, particularmente, os lobos frontais. importante lembrar que estas trs unidades se organizam hierarquicamente em todos os lobos; porm, no lobo frontal que tanto a primeira unidade como a terceira mantm uma estreita ligao, assegurando, assim, um tnus cortical timo nas atividades programadas pela terceira unidade funcional bsica. A partir deste quadro Luria descreveu seis tipos de afasias, que descreveremos a seguir:

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1)afasia motora eferente ou cintica: esta afasia o resultado de leses nos setores inferiores da zona pr-motora do hemisfrio esquerdo, acarretando alteraes dos movimentos voluntrios, onde o sujeito tende a perseverar movimentos, j que no existe a inibio dos movimentos de uma seqncia sonora, para que haja excitao da prxima. A estrutura prosdica, neste caso, est prejudicada; o paciente no consegue repetir palavras ou mesmo denominar objetos. Esta afasia motora considerada por Luria como correspondente afasia motora de Broca. 2)afasia motora aferente ou cinestsica: esta afasia atinge o setore pscentral da zona verbal. O que se nota nesta afasia a presena de uma apraxia especfica do aparelho verbal (Luria,1986). O portador desta afasia apresenta uma impreciso dos movimentos devido a uma perda da sensao para com estes movimentos, porm, encontrando a posio articulatria correta, o sujeito consegue articular. 3)afasia dinmica: esta afasia o resultado de leses nos setores anteriores das zonas verbais do hemisfrio esquerdo. Existe, por parte do sujeito, uma perda de iniciativa. Em resumo "estes enfermos no apresentam nenhuma dificuldade de articulao, repetem com facilidade palavras ou frases isoladas, no tm dificuldade para nomear objetos e sries de objetos, no produzem fenmenos de perseverao ou de emergncia incontroladas de enlaces secundrios, caractersticos dos enfermos com afeces da zona prfrontal. A observao inicial pode no detectar neles nenhuma desordem verbal. No entanto, uma anlise atenta mostra estas alteraes em forma bem evidente, pois aparecem nos enfermos deste grupo no momento em que necessrio passar da simples repetio de palavras, frases ou da designao de objetos criao ativa, criativa, de esquemas da prpria enunciao verbal" (Luria,1986:222). 4)afasia sensorial: esta afasia o resultados de leses que atingem os setores udio-verbais do crtex, ou seja, a regio pstero-superior da rea temporal esquerda (rea de Wernicke). Os enfermos com estas afeces conseguem discriminar perfeitamente sons no verbais, como o bater de uma porta, rudo de louas, som de uma msica, etc, porm apresentam confuses

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entre fonemas parecidos e, muitas vezes, tambm, para a discriminao dos sons da lngua de maneira geral. Devido a essa falta de discriminao dos sons, pode ocorrer, em casos mais graves, uma dissociao entre o som e o significado das palavras. 5)afasia acstico-amnsica: os mecanismos fisiolgicos que se encontram na base desta alterao ainda no so bem conhecidos, mas parecem estar relacionados com leses na rea temporal inferior esquerda. A alterao bsica deste tipo de afasia a instabilidade de reteno das sries articulatrias. "Estes enfermos podem reter ou a parte inicial da srie verbal ou a sua parte final. Como resultante disso, a comunicao percebida perde sua totalidade, e sua compreenso torna-se mais complexa com a apario de novas dificuldades, desta vez de ordem mnmica (Luria,1986:234). 6)afasia semntica: so afeces que atingem as zonas tercirias, parieto-tmporo-occiptais do hemisfrio esquerdo e sua sintomatologia "a desorientao espacial, acalculia, apraxia de construo espacial, agnosia e, do ponto de vista lingustico, observam-se alteraes da percepo simultnea da orao composta. Nesse tipo de orao, o significado de cada termo depende das relaes entre eles e o sentido se d pela compreenso simultnea e direta da estrutura lgico-gramatical. O sujeito portador de uma leso nesta regio no capaz de compreender essas relaes, apesar de compreender corretamente as palavras isoladas. Por exemplo, a construo "o irmo do pai" e o "pai do irmo", so construes que para estes sujeitos no apresentam diferenas, parecendo-lhes, freqentemente, que ambas as construes expressam o mesmo sentido. Essa dificuldade tambm aparece ao ser solicitado ao paciente para discorrer sobre uma cartela temtica que englobe cenas inter-relacionadas. Sua performance se reduz descrio de detalhes isolados mostrando uma dificuldade de visibilidade simultnea. No se observam dificuldades na compreenso de palavras isoladas e oraes simples. Por meio das caractersticas desses seis tipos de afasia descritos por Luria possvel observar que esse autor, ao se referir ao funcionamento dinmico do crebro, mais especificamente ao sistema funcional, aproxima-se de Freud quando este se refere ao aparelho de linguagem. De ambas as

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partes, uma concepo plstica sobre o funcionamento cerebral que foi iniciada por Freud e, quase meio sculo depois, desenvolvida por Luria. Foi com base nas descries lurianas das afasias que Jakobson apresentou a sua descrio lingstica. Este ato pioneiro foi essencial para um novo ramo dentro da Neuropsicologia, a Neurolingstica, que ser tratado a seguir.

1.4) A classificao das afasias do ponto de vista da lingstica

Foi a partir de Jakobson, o primeiro lingista a fazer uma descrio dos sintomas afsicos, que a Lingstica passou a ter responsabilidade nos estudos das afasias. Porm, mesmo antes de Jakobson ter feito essa descrio lingstica das afasias com base nas descries lurianas, outros autores, como por exemplo, Jackson, j se interessavam por um enfoque lingstico. Atravs da noo da linguagem proposicional, a qual baseava-se na lgica aristotlica (que tem como premissa a universalidade da linguagem e sua formalizao), Jackson definia a afasia como a incapacidade de fazer proposies. Segundo esse autor, mais importante que delinear se a desordem de linguagem do sujeito ou a incapacidade em fazer proposies - diz respeito aos modelos receptivos ou expressivos, saber se essa desordem vem acompanhada de uma anlise detalhada sobre as condies de comprometimento da emisso e recepo, que dever ser feita atravs de uma avaliao qualitativa do vocabulrio e das estruturas lingsticas. Dessa maneira, Jackson incluiu modelos que estabelecem integrao entre os aspectos psicolgicos e a funo neural, os quais no condiziam nem com a perspectiva conexionista12, nem

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A teoria conexionista parte do princpio de que, devido leso cerebral, o sujeito perde a capacidade de estabelecer a relao entre um centro e suas conexes, por exemplo, o estmulo visual com o sonoro (dificuldade de leitura e escrita); o aspecto motor com o sensorial (acarretando as agnosias e as apraxias ). (Caplan, 1987)

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com o termo faculdade para linguagem. Essa postura terica trouxe vrias crticas a Jackson, pois os cientistas da poca argumentavam que seu modelo carecia de uma base neural para explicar os componentes da linguagem. Apesar dessa ausncia, Jackson influenciou vrios trabalhos, dentre eles, o de Freud. J Bouton (1984) apresenta como incio da Neur