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1 Curso de Direito Artigo Original TEMA: JURISDIÇÃO INTERNACIONAL PENAL: CRIMES CONTRA A HUMANIDADE SUBJECT: INTERNATIONAL CRIMINAL JURISDICTION: CRIMES AGAINST HUMANITY Ronaldo Rommel Zaidan Cabral 1 , Fernanda Nepomuceno de Sousa 2 1 Aluno do Curso de Direito 2 Professora Doutora do Curso de Direito Resumo Este Artigo tem por objetivo analisar a jurisdição internacional penal, nos crimes contra a humanidade. Busca-se também fazer uma analise dos reflexos do atual sistema frente às praticas internacionais para em fim analisar a lógica existente nas regras Internacional. Para tanto será feito um estudo dos tribunais existentes na humanidade, para julgar os crimes de guerra. Será estudado também, os crimes que passaram a existir após a Segunda Guerra Mundial. Palavras-Chave: Direitos Humanos, crimes contra a humanidade, Tribunais de Guerra Abstract This article aims to examine international criminal the jurisdicion in crimes against humanity. Also seeks to make an analysis of the consequences of the current system against international practices in order to analyze the existing logic in International rules. For such a study of the existing courts in humanity will be made to judge war crimes. Crimes that came into existence after the Second World War will be also studied. Keywords: Human Rights, crimes against humanity, War Tribunals Contato: [email protected] 1 - Introdução Diante das atrocidades e mortes cometidas na Europa durante a 2ª Guerra Mundial, onde milhares de pessoas foram exterminadas e dizimadas, a sociedade viu-se obrigada a lutar por um mínimo de proteção e garantia efetiva de seus direitos. Neste cenário, a internacionalização dos Direitos Humanos tomou rosto e forma. A proteção internacional sistematizada dos Direitos Humanos se deu com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Até aí, a proteção do homem estava restrita a algumas legislações internas dos países, como a inglesa de 1684, a americana de 1798 e a francesa de 1789. Caminhando na história, podemos perceber que o fim da 2ª Guerra Mundial foi seguido por uma série de julgamentos, e também por medidas punitivas aplicadas contra diversos grupos da população. Esses julgamentos reparatórios eram imperfeitos, mas também pareciam ser necessários. Pois a sociedade clamava por justiça e por reparações. Então, Tribunais ad hoc foram instaurados e tiveram um papel importante na evolução dos sistemas internacionais de proteção aos direitos fundamentais. Mostraremos a evolução da persecução penal dos crimes contra a humanidade e como se deu a internacionalização dos Direitos Humanos. Para isso, faremos uma análise histórica dos fatos ocorridos na humanidade, desde os primórdios. Abordaremos o surgimento do Direito Internacional Penal e sua evolução, bem como a idéia de responsabilidade penal do indivíduo, crimes contra a humanidade e genocídio. Analisaremos o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, sendo que este foi a principal experiência significativa de internacionalização dos Direitos Humanos e do surgimento da noção de crime contra a humanidade. Não nos esquecendo de que o Tribunal foi muito criticado pelos juristas vinculados ao Direito Penal, pela inobservância dos princípios da reserva legal e da irretroatividade da lei penal mais grave, e quanto à sua legalidade, por ter se limitado à juízes das Quatro Potências apenas. Mas no geral, seu saldo foi positivo e de grande importância para a humanidade. Em seguida, examinaremos rapidamente os Tribunais do Extremo-Oriente e de Ruanda. A respeito do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia, nos alongaremos um pouco mais. Esse Tribunal foi criado pelo Conselho de Segurança da ONU, para julgar pessoas acusadas de massacres cometidos na década passada, nas seis repúblicas nos Bálcãs, que formavam a Iugoslávia. O procedimento adotado para a criação de um Tribunal não foi o adequado sendo, então, sua legalidade questionada. O ex. presidente Slobodan Milosevic que está sendo julgado pelo Tribunal, não o reconhece, dizendo ser este ilegítimo. E por último, analisaremos a Corte Penal Permanente.

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Curso de Direito Artigo Original

TEMA: JURISDIÇÃO INTERNACIONAL PENAL: CRIMES CONTRA A HUMANIDADE SUBJECT: INTERNATIONAL CRIMINAL JURISDICTION: CRIM ES AGAINST HUMANITY Ronaldo Rommel Zaidan Cabral 1, Fernanda Nepomuceno de Sousa 2 1 Aluno do Curso de Direito 2 Professora Doutora do Curso de Direito Resumo Este Artigo tem por objetivo analisar a jurisdição internacional penal, nos crimes contra a humanidade. Busca-se também fazer uma analise dos reflexos do atual sistema frente às praticas internacionais para em fim analisar a lógica existente nas regras Internacional. Para tanto será feito um estudo dos tribunais existentes na humanidade, para julgar os crimes de guerra. Será estudado também, os crimes que passaram a existir após a Segunda Guerra Mundial. Palavras-Chave : Direitos Humanos, crimes contra a humanidade, Tribunais de Guerra

Abstract This article aims to examine international criminal the jurisdicion in crimes against humanity. Also seeks to make an analysis of the consequences of the current system against international practices in order to analyze the existing logic in International rules. For such a study of the existing courts in humanity will be made to judge war crimes. Crimes that came into existence after the Second World War will be also studied. Keywords : Human Rights, crimes against humanity, War Tribunals Contato: [email protected]

1 - Introdução

Diante das atrocidades e mortes cometidas na Europa durante a 2ª Guerra Mundial, onde milhares de pessoas foram exterminadas e dizimadas, a sociedade viu-se obrigada a lutar por um mínimo de proteção e garantia efetiva de seus direitos.

Neste cenário, a internacionalização dos Direitos Humanos tomou rosto e forma.

A proteção internacional sistematizada dos Direitos Humanos se deu com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Até aí, a proteção do homem estava restrita a algumas legislações internas dos países, como a inglesa de 1684, a americana de 1798 e a francesa de 1789.

Caminhando na história, podemos perceber que o fim da 2ª Guerra Mundial foi seguido por uma série de julgamentos, e também por medidas punitivas aplicadas contra diversos grupos da população. Esses julgamentos reparatórios eram imperfeitos, mas também pareciam ser necessários. Pois a sociedade clamava por justiça e por reparações. Então, Tribunais ad hoc foram instaurados e tiveram um papel importante na evolução dos sistemas internacionais de proteção aos direitos fundamentais.

Mostraremos a evolução da persecução penal dos crimes contra a humanidade e como se deu a internacionalização dos Direitos Humanos. Para isso, faremos uma análise histórica dos fatos ocorridos na humanidade, desde os primórdios.

Abordaremos o surgimento do Direito Internacional Penal e sua evolução, bem como a idéia de responsabilidade penal do indivíduo, crimes contra a humanidade e genocídio.

Analisaremos o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, sendo que este foi a principal experiência significativa de internacionalização dos Direitos Humanos e do surgimento da noção de crime contra a humanidade. Não nos esquecendo de que o Tribunal foi muito criticado pelos juristas vinculados ao Direito Penal, pela inobservância dos princípios da reserva legal e da irretroatividade da lei penal mais grave, e quanto à sua legalidade, por ter se limitado à juízes das Quatro Potências apenas. Mas no geral, seu saldo foi positivo e de grande importância para a humanidade.

Em seguida, examinaremos rapidamente os Tribunais do Extremo-Oriente e de Ruanda.

A respeito do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia, nos alongaremos um pouco mais. Esse Tribunal foi criado pelo Conselho de Segurança da ONU, para julgar pessoas acusadas de massacres cometidos na década passada, nas seis repúblicas nos Bálcãs, que formavam a Iugoslávia. O procedimento adotado para a criação de um Tribunal não foi o adequado sendo, então, sua legalidade questionada. O ex. presidente Slobodan Milosevic que está sendo julgado pelo Tribunal, não o reconhece, dizendo ser este ilegítimo.

E por último, analisaremos a Corte Penal Permanente.

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Desde que os Tribunais de Nuremberg e Tóquio concluíram seus trabalhos, há mais de meio século, milhões de pessoas voltaram a ser vítimas de crimes de genocídio, de guerra e de outros crimes contra a humanidade.

Diante dos anseios da sociedade internacional que clamava pelo fim da impunidade, foi criado, no dia 17 de julho de 1998, com a aprovação do Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional.

Apesar de possuir algumas limitações, o Tribunal Penal Internacional é de suma importância na comunidade internacional, pois trata-se de uma Corte original, destinada a julgar crimes que não se amoldam ao perfil dos crimes previstos nas legislações do Estado. É preciso que tenhamos uma instituição permanente para continuar os trabalhos dos Tribunais ad hoc e livre de manifestações políticas.

Uma das questões mais relevantes do TPI, é a Soberania dos países membros. A concepção de soberania está se transformando, pois existe um processo de internacionalização dos Direitos Humanos, impulsionado pela sociedade civil.

2-Evolução histórica da persecução penal dos crimes contra a humanidade

A luta pelos direitos humanos é embrionária de acontecimentos históricos registrados na Europa e nos Estados Unidos, tendo como marcos fundamentais a Revolução Parlamentar Inglesa (1689), a Independência dos Estados Unidos (1778) e a Revolução Francesa (1789), com as respectivas conquistas jurídicas e declarações.

“Herdeiros do movimento de idéias que se articulam, nos séculos XVII e XVIII, em torno de filósofos como Voltaire, Rousseau e Diderot, e que ficou conhecido como Ilustração, os revolucionários norte- americanos e franceses pensavam não no homem, mas no ser humano em geral, independentemente de fronteiras nacionais, culturais, étnicas ou lingüísticas”1.

Nesse mesmo contexto, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 17892, na qual se proclamava a liberdade e a igualdade nos direitos de todos os homens, reivindicava seus direitos naturais e imprescritíveis (a liberdade, a propriedade, a segurança, a resistência à opressão), em vista dos quais se constitui toda a associação política legítima.

“Na verdade, a Declaração tinha dois grandes precedentes: os Bill ofrights de muitas

1 SILVA, 1999. p.27. 2Esse foi um dos documentosmais importante e que mais influenciou os redatores da Declaração Universal.

colônias americanas que se rebelaram em 1776 contra o domínio da Inglaterra e o Bill ofright inglês, que consagrava a gloriosa Revolução de 1689”3.

Do ponto de vista conceitual, não existe diferença entre a Declaração Francesa e os Bills americanos4, onde os homens têm direitos naturais anteriores à formação da sociedade, direitos que o Estado deve reconhecer e garantir como direitos do cidadão.

Já no Bill inglês, não há reconhecimento dos direitos do homem e sim os direitos do cidadão inglês, de acordo com a common law5.

A Revolução Francesa deu um extraordinário avanço ideológico em relação à realidade da época, efetivando princípios de humanidade e universalismo que, mais tarde, foram os alicerces para a internacionalização dos direitos humanos. Sendo, desde o início, uma revolução dos direitos do homem.

Caminhando na história, verifica-se que após a 1ª Guerra Mundial, houve uma “proteção internacional de minorias – lingüísticas, étnicas, religiosas – e a um esforço de tutelar internacionalmente, no plano interno dos estados soberanos em que viviam, o seu tratamento igualitário”6.

Foi no século XIX, com a Revolução Industrial, que as sociedades ocidentais começaram a reivindicar direitos econômicos e sociais dando, então, origem à Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da então URSS, em 04 de janeiro de 1918.

“A Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da URSS de 1917, bem como as constituições sociais do início do século XX (ex.: Constituição de Weimar de 1919, Constituição Mexicana de 1917, etc.) primaram por conter um discurso social da cidadania, em que a igualdade era o direito basilar e um extenso elenco de direitos econômicos, sociais e culturais era previsto”7.

“Esses Direitos Sociais, portanto, com Constituição do México de 1917 e de Weimar (Alemanha) de 1919, passam a

3BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINO, 2000. p.353. 4“A Bill ofRights do Bom Povo de Virgínia (1776) é o protótipo das declarações de direito modernas proclamando como finalidade básica a de ser protegida a trilogia: vida, liberdade e propriedade”. SOARES, 2000. p.33. 5“A Bill ofRights (1689) no que tange aos direitos individuais, era documento rudimentar, caracterizando um revigoramento dos antigosdireitos e liberdades, ancientrightsandliberties; embora seu enunciado acentuasse caráter geral, apenas enumerava os deveres do governo, não declarando direitos individuais”. Op. cit. p.32. 6ALVES, 1994. p.XXV. (Prefácio) 7PIOVESAN, 1999, p.157-158.

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ser considerados Direitos Fundamentais dos seres humanos, passando a integrar os novos textos constitucionais. Nesta mesma época, começa também a internacionalização dos Direitos Humanos. É criada a Sociedade das Nações e especificamente no campo dos Direitos Sociais, a OIT (Organização Internacional do Trabalho)”8.

A partir daí, todo o processo de internacionalização dos direitos humanos se deu após a 2ª Guerra Mundial.

A internacionalização dos Direitos Humanos se efetivou em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra Mundial.

“O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse”9.

Após a barbárie do nazismo e as reações por ele criadas, foi possível a criação de um perfil de ação internacional, pela promoção e tutela do homem enquanto tal.

“No clima de cooperação pela realização de ideais comuns que então se realizou, no dia 1º de janeiro de 1942, os Governos signatários da Declaração das Nações Unidas disseram-se convencidos de que uma vitória completa sobre seus inimigos era essencial para defender a vida, a liberdade, a independência e a liberdade religiosa, assim como para conservar os Direitos Humanos e a justiça nos próprios países e nas outras nações” 10.

Com a assinatura da Carta das Nações Unidas em São Francisco, em 26 de junho de 1945, a comunidade internacional nela organizada se comprometeu, desde então, a implementar o propósito de “promover e encorajar o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais de todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”.

A Comissão de Direitos Humanos11 recebeu o encargo de elaborar uma Carta Internacional. O primeiro passo nesse sentido foi a preparação de uma declaração.

Proclamada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1948 em Paris, a Declaração Universal dos Direitos Humanos12 definiu, pela

8MAGALHÃES, 2000. p.31. 9MAGALHÃES, 2000. p.140. 10BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINO, 2000. p.355. 11Principal órgão das Nações Unidas e presidida pela Sra. Eleonora Roosevelt. 12Constituída de 30 artigos, enumera os direitos humanos básicos e as liberdades fundamentais a que se tem direito

primeira vez em nível internacional, como um “padrão comum de realização para todos os povos e nações”, os direitos humanos e liberdades fundamentais – noções até então difusas.

“[...] A partir de 1945 el

A expressão Direito Internacional Penal surgiu a primeira vez, através de JEREMY BENTHAN,segundo ANTÔNIO QUINTANO RIPOLLÉS. E foi extremamente criticada, devido à existência de diferentes visões entre penalistas e internacionalistas.

Os penalistas não admitiam o Direito Internacional Penal e sim, o Direito Penal Internacional.

Nas palavras de CANÊDO13,

“A abordagem da temática do Direito Internacional Penal precisa estar sempre acompanhada da percepção de que se transita em terreno minado, pois nunca faltará quem atribua tal estudo a uma mera especulação teórica desprovida de qualquer contato com a realidade e que, ao final, não teria outra conseqüência senão desfigurar ambas as disciplinas”.

Preferimos usar a expressão Direito Internacional Penal, pois se trata, principalmente, de um Direito da comunidade internacional.

Esta nova disciplina do Direito Internacional surgiu após a 2ª Guerra Mundial e foi adotada por juristas como PELLA, SALDAÑA, SÁNCHEZ DE BUSTAMANTE e QUINTANO RIPOLLÉS. Nela, as pessoas passam a ser individualmente responsáveis pelas infrações cometidas contra os direitos humanos.

O ponto de partida do Direito Internacional Penal não é outro que a tipificação penal autônoma dos crimes susceptíveis de serem sancionados, dentro da órbita internacional14.

No pós 2ª Guerra, a ruptura totalitária levou à afirmação de um Direito Internacional Penal, que para CELSO LAFER15,

“procura tutelar interesses e valores de escopo universal, cuja salvaguarda é fundamental para a sobrevivência não apenas de comunidades nacionais, de grupos étnicos, raciais ou religiosos, mas da própria comunidade internacional”.

O Direito Internacional Penal, portanto, protege os bens supremos como a paz e a dignidade do ser humano, tanto em tempo de paz todos os homens e mulheres do mundo, sem discriminação alguma. Ao longo dos artigos, a declaração expõe por sua vez, os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais; pondo em evidência a necessária interdependência entre os mesmos. 13MAGALHÃES, 2000. p. 49. 15LAFER, 1991. p.23.

4 como de guerra; e as infrações por ela incriminadas seriam os únicos e autênticos “delitos internacionais”, como, por exemplo, os crimes contra a paz, os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra.

O surgimento do conceito de crime internacional16 encontra-se estreitamente vinculado à necessidade de estabelecer-se certa regulamentação da guerra17.

Os crimes são definidos como violações das normas do direito internacional que apresentam especial gravidade, por envolverem ações desumanas e cruéis e serem, de qualquer modo, desproporcionadas ao fim que o beligerante que as pratica preestabeleceu.

A idéia de guerra surgiu desde os primórdios, no século IV a.C. de Sun Tzu, passando pelo Código de Manu, até a Idade Média, onde esses pensamentos foram incorporados por filósofos como Aristóteles, Cícero, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, chegando até Hugo Grotius (1583-1648), onde se cogitava a reparação dos conflitos através da humanização, mas ainda não existia a idéia de responsabilidade criminal.

Como assevera ACCIOLY18,

“O Direito Internacional foi nos seus primórdios, o direito da guerra, e só depois de Grociusé que as relações entre os Estados em tempo de paz passaram a ser preocupação dos juristas. O título da grande obra de Grocius é sintomático, De Jure Belli Ac Pacis. Escrita sob o impacto da guerra dos Trinta Anos, teve profunda influência na elaboração do Tratado de Westfália, de 1648”.

O Tratado de Versalhes introduziu em 1919 um princípio, segundo o qual o fim das hostilidades não trazia consigo a anistia dos Crimes de Guerra, cabendo ao vencedor o direito de punir os crimes do inimigo vencido. O art. 227 declarava o Chefe do Estado alemão réu de “suma ofensa contra a moral internacional e a autoridade sagrada dos tratados”.

“É mister registrar que se tentou, pela primeira vez, por meio de um Tribunal Internacional, julgar importante dignatário por violação das leis internacionais referentes à guerra. No entanto, essa

16No âmbito da responsabilidade penal do Estado como plano internacional, a Comissão de Direito Internacional da ONU, no Projeto de Código de Crimes contra a Paz e a Segurança da Humanidade, busca fazer distinção entre delitos e crimes internacionais. Assim, pelo art. 19, parágrafo 4º, qualifica-se de delitos internacionais as infrações menos graves, enquanto os chamados crimes internacionais se revestiriam de formas particularmente graves, formando um grupo mais restrito. (Ver mais a respeito em: SILVA, 1999). 17SILVA, 1999. p.51. 18ACCIOLY, 1996. p.444.

personalidade, o Kaiser Guilherme II, da Alemanha, encontrou refúgio na Holanda que, considerando-o refugiado político, negou-se a extraditá-lo; abortando, assim, a primeira experiência de constituição de um Tribunal Internacional para julgamentos de criminosos”19.

O Pacto Kellogg-Briand, de 1928, colocou a guerra fora da lei e foi recebido com entusiasmo pela opinião pública mundial. Sendo, mais tarde, confirmado pela Carta de São Francisco.

A idéia de responsabilidade criminal nasceu, como tivemos oportunidade de registrar acima, após o término da 1ª Guerra Mundial, através do Tratado de Versalhes, de 1919, que atribuía ao Kaiser Guilherme II, da Alemanha, a responsabilidade pela ofensa suprema dos Tratados.

Depois do fracasso dessa tentativa de instauração de um Tribunal Internacional, eclodiram vários outros fracassos, que culminaram na 2ª Guerra Mundial.

E é após essa Segunda Grande Guerra,

“que o mundo pôde conhecer as primeiras experiências de realização prática de uma justiça penal internacional, vale dizer, um julgamento realizado por um Tribunal supranacional de crimes de guerra e contra a humanidade praticados por pessoas de dois países – a Alemanha e o Japão – que ocupavam posições de relevância política e militar, e cujos juízes possuíam nacionalidades diferentes daquela dos réus. Referimo-nos aos Tribunais de Nuremberg e Tóquio”20.

Nos tempos primitivos, a responsabilidade penal era seguramente coletiva, pois o homem somente existia como membro de um grupo, clã ou tribo.

Essa subordinação absoluta do indivíduo ao grupo determinava que toda agressão, sofrida por qualquer membro, provocava uma reação coletiva, ao ponto de criar um estado de luta.

A partir dos processos de Nuremberg e Tóquio, o indivíduo foi adquirindo a dignidade de ser responsável por seus próprios atos diante da lei internacional21.

A admissão do indivíduo como sujeito de direito internacional foi considerada como uma

19SILVA, 1999. p.36. 20Op. cit. p.55-56. 21Essa idéia de responsabilidade penal do indivíduo já tinha sido desenvolvida antes (em termos doutrinários e com aplicação prática), no julgamento por crimes de guerra, celebrado no ano de 1474, na Alemanha (Breisach), de Peter Von Hagenbach, por 28 juízes dos Estados aliados ao Sacro Império Romano Germânico, que o declararam culpado por crimes, dentre outros, de assassinato e estupro. (SILVA, 1999. p.63).

5 importante inovação, sendo o indivíduo objeto de obrigações e deveres e titular de direitos.

Assim, a responsabilidade penal individual na ordem internacional foi inserida no Estatuto do Tribunal de Nuremberg, em seu art. 6. Foi a primeira vez, na história, que se castigava os indivíduos por atos realizados como atos de seu Estado.

O termo “crimes contra a humanidade” está contido na “Cláusula Martens”, da IV Convenção de Haia de 1907, referente as leis e costumes da guerra terrestre.

As referências à humanidade tais como: interesses, princípios e leis que aparecem na IV Convenção de Haia e outros documentos daquela época foram utilizadas apenas em sentido técnico e não pretendiam indicar um conjunto de normas diferentes dos já existentes.

Na redação da Carta do Tribunal de Nuremberg constatou – se que muitos atos cometidos pelo inimigo não poderiam ser qualificados como crimes de guerra, em razão da nacionalidade das vítimas. Diante disso, o Comitê viu-se obrigado a propor um conceito amplo de crime de guerra que não violasse leis e costumes.

O texto definitivo do Estatuto do Tribunal Militar Internacional supunha o reconhecimento dos crimes contra a humanidade e a possibilidade, portanto, da punição de condutas que não podiam ser qualificadas como crimes de guerra, segundo o Direito Internacional da época.

A exigência de uma conexão com os crimes contra a paz ou com os crimes de guerra devolvia aos crimes contra a humanidade o seu sentido de origem, ou seja, o descrito na Cláusula Martens.

Assim, finalmente, o art. 6, C, da Carta do Tribunal, anexa ao Acordo de Londres de 08 de agosto de 1945, declarou a existência dos crimes contra a humanidade.

A evolução dos crimes contra a humanidade

e seu conceito, serão analisados de acordo com os Tribunais de Nuremberg, Extremo-Oriente, da ex. Iugoslávia, Ruanda, de Haia... até os dias de hoje.

2.1.4- Tribunal Militar Internacional de Nuremberg

O Tribunal Militar Internacional de

Nuremberg significou o principal ato ao desenvolvimento de um Direito Internacional Penal. Foi a principal experiência significativa de internacionalização dos direitos humanos e do surgimento da noção de crime contra a humanidade.

Diante do vendaval de atrocidades e mortes cometidas na Europa durante a 2ª Guerra Mundial,

onde milhares de pessoas foram exterminadas e dizimadas, a sociedade viu-se obrigada a lutar por reparações. Reparações de nível judicial, moral e legal; que viessem à fortalecer o sentido de justiça e a idéia de Direitos Humanos. E isso só seria possível, se os criminosos de guerra fossem punidos pelas barbaridades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial.

Como assevera FLÁVIA PIOVESAN22:

“No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável. A barbárie do totalitarismo significou assim a ruptura do paradigma dos direitos humanos, através da negação do valor da pessoa humana como valor fonte de Direito. Diante desta ruptura, emerge a necessidade de reconstrução dos direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral. Neste cenário, o maior passa a ser adotando a terminologia de Hannah Arendt, o direito a ter direitos, ou seja, o direito a ser sujeito de direitos”23.

O fim da Segunda Guerra Mundial foi seguido por uma série de julgamentos, principalmente nos países europeus, e também por medidas punitivas aplicadas contra diversos grupos da população.

Esses julgamentos reparatórios eram imperfeitos, sem dúvida – mas também pareciam ser necessários. A maioria da população tinha tomado parte em algo que agora aparentava ter sido um erro – pior ainda, um crime – e, para se livrar de um sentimento disseminado de culpa e poder viver a vida de coração leve, as pessoas necessitavam conduzir um expurgo, após o qual poderiam declarar-se inocentes e limpas.

Era preferível que as instituições da Justiça empreendessem esse trabalho de expurgação à permitirem que o exorcismo da culpa degenerasse em linchamentos e violência de massa, mesmo que o que acontecesse não fosse, estritamente falando, uma operação de justiça.

Certa a observação de BRADLEY SMITH ao afirmar que:

“Os europeus estavam atolados nos destroços e no horror que resultaram de seis anos de guerra e 12 de nazismo. Ninguém duvidava que a Alemanha nazista desencadeara a guerra. Milhões de pessoas tinham perecido, e ainda constituía uma realidade amarga, do

22PIOVESAN, 1999. p.140. 23LAFER, 1991.

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coração da Rússia até o Atlântico, a memória da selvagem ocupação nazista. A cada dia os jornais estampavam novos capítulos na história da bestialidade dos campos de concentração e das fábricas de morte, como Auschwitz e Treblinka. A Alemanha nazista imprimira muito fundamente, o ferrão de seu poder e sua violência. Havia contas a ajustar, e impunha-se construir os alicerces de um edifício que impedisse o renascimento de tal poder”24.

“O processo de Nuremberg foi no entanto de natureza particular: tratava-se, na realidade, da realização de um balanço. A Alemanha, a Europa, todo o mundo precisava que se fizessem oficialmente, de uma vez para sempre, as contas do hitlerismo. Era uma famosa conta de somar”25.

Diante desse quadro, surgiu a idéia do julgamento de crimes de guerra. Na verdade, essa idéia já existia desde a Declaração dos Aliados, firmada no dia 12 de julho de 1941, em Londres, por representantes de 14 países; na Declaração Conjunta de Roosevelt e Churchill de 14 de agosto de 1941; na Declaração de St. James Palace de 13 de janeiro de 1942 e na Declaração de Moscou, de 01 de novembro de 1943, subscrita pelos governos norte-americano, russo, inglês e chinês. Em 07 de outubro de 1944, a Conferência de San Francisco, de 25 e 26 de abril de 1945, na qual tomaram parte 50 nações, surge a Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945, e o Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, que vem nela anexo.

A Carta das Nações Unidas (um Tratado de 19 capítulos, 111 artigos e umas 8.000 palavras) entrou em vigor no dia 24 de outubro de 1946, e sua preocupação desde seu Preâmbulo era que os direitos do homem deveriam ser protegidos pelo direito internacional.

“Nós, os Povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações futuras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço de nossa vida, trouxe sofrimentos indivisíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas”26.

De acordo com BRADLEY SMITH27:

“Em 08 de agosto, com a solenidade de regra, os chefes das quatro delegações firmaram dois documentos concisos, respectivamente intitulados ‘O Acordo’ e

24SMITH, 1979. p.49-50. 25LAZARD, 1965. 26TRINDADE, 1991. 27SMITH, 1979. p.61.

a ‘Carta do Tribunal Militar Internacional’. A União Soviética sugerira sabiamente que os entendimentos entre os aliados fossem resumidos num ‘acordo’ separado da Carta que serviria de fundamento legal para o julgamento. O acordo de duas páginas continha uma promessa, cercada de condições, de que os aliados restituiriam os criminosos menores ‘ao cenário dos crimes que praticaram’”.

O Estatuto anexo ao Acordo de Londres foi criado com raiz nos crimes nazistas cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Tem sido, por conseguinte, a lógica e inevitável reação diante de certas transgressões e atropelos que não podiam, nem deviam ficar impunes.

O Estatuto dispunha a criação do Tribunal Militar Internacional, formado por representantes das Quatro Grande Potências – França, Inglaterra, Estados Unidos e Rússia. Foram nomeados quatro juízes titulares, com seus respectivos suplentes. Berlim foi instituída como sede permanente, porém a cidade de Nuremberg foi simbolicamente escolhida para o primeiro e único processo: “O histórico Processo de Nuremberg”.

O texto da “Ata de Acusação” foi oficialmente emitido em 18 de outubro de 1945; e as audiências se iniciaram um mês depois.

O Tribunal foi instaurado a fim de julgar e castigar os criminosos de guerra. Seu funcionamento era ad hoc (ou seja, se extinguiu após o julgamento dos processos).

Não podemos nos aprofundar mais no assunto “julgamento”, sem saber primeiro quem julga, quais as acusações formuladas contra o réu e qual o sistema legal aplicado. Só depois de esmiuçarmos estas considerações é que poderemos falar do processo como um todo.

Foi o Tribunal Militar28 composto por representantes das Quatro Potências aliadas vitoriosas na guerra européia.

Como representante da URSS, General Nikitchenko, tendo como suplente o Tenente-Coronel AF Volchkov; por Donnedieu de Vabres, professor de Direito Penal na Universidade de Paris, figurando como suplente Robert Falco, representantes franceses. Representando os EUA, tomaram assento Francis Biddle e John Parker, nas condições, respectivamente, de juízes titular e suplente; e em nome do governo de Sua Majestade britânica, os juízes Geoffrey Lawrence, que assumiu as funções de Presidente do Tribunal, e seu suplente Norman Birkett. Na condição de representantes do Ministério Público, atuaram Robert Jackson, chefiando a delegação americana; Charpetier de Ribes, substituído depois por François Menthon – como chefe da delegação francesa. LordShawcross e,

28Apesar de ser instituído como Tribunal Militar, somente os juízes soviéticos possuíam patentes militares, dentre os representantes das Quatro Potências aliadas vitoriosas.

7 posteriormente, Maxwell – Fyfe, como responsáveis pela acusação britânica e o Tenente-General, Rudenko como líder do Ministério Público soviético29.

Ou seja, o Tribunal era composto por oito membros da Corte: um titular e um suplente de cada uma das Quatro Potências.

A composição do Tribunal suscitou profundas divergências porque, diante da premissa de que não se pode ser juiz e parte simultaneamente, a imparcialidade e a objetividade das sentenças do Tribunal dependiam de que este estivesse integrado, também, por elementos alheios ao conflito que motivaram o julgamento.

Geoffrey Lawrence (titular britânico) foi nomeado o Presidente da Corte, tirando o suposto posto de Francis Biddle. Biddle não pôde evitar desapontamento pela perda da presidência. Birkett, embora o escondesse cuidadosamente dos demais, ficou muito magoado porque, primeiro, lhe ofereceram o posto de titular britânico, mas depois o preteriram e colocaram Sir Geoffrey no lugar.

No entanto, durante 10 meses, esses oito homens trabalharam juntos e se apreciaram reciprocamente, tanto no interior da Corte como fora dela. No fim, superaram todos os conflitos momentâneos e cumpriram a tarefa que lhes fora confiada.

O julgamento durou 10 meses e resultou na absolvição de três homens, na condenação de sete à prisão e de doze à morte na forca, figurando entre esses últimos um homem julgado in absentia30.

O Tribunal de Nuremberg constituiu-se para julgar os crimes tipificados em quatro categorias: crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes contra a paz, sendo que este último compreendia em um de seus aspectos, “participação num plano comum ou conluio” para projetar, preparar, iniciar ou desencadear “uma guerra de agressão ou uma guerra de violação de tratados”.Este assunto será abordado com mais detalhes, posteriormente.

É de suma importância, no tocante aos acusados, saber quem não estava no banco dos réus e não quem estava.

A ausência dos grandes líderes nazistas era claramente perceptível: Adolf Hitler, Heinrich Himmler, Goebbels e Bormann foram as personalidades mais poderosas do Terceiro Reich, mas Himmler e Goebbles estavam mortos, não havia dúvida alguma quanto a isso. Hitler provavelmente morrera, Bormann desaparecera e Krupp não gozava de boa saúde mental.

29SILVA, 1999.

Nas palavras de BRADLEY SMITH31,

“O acordo aliado que estabelecera o Tribunal permitia julgamento in absentia, e, embora não se tenha aplicado a disposição a Krupp, a promotoria lançou mão dela no caso de Bormann. Com uma lógica que talvez os advogados compreendam melhor que os leigos, os juizes decidiram que, como não se podia contar com a presença de Bormann, nem se podia sequer afirmar que estivesse vivo, seria apropriado julgá-lo in absentia”.

Na verdade, a impressão que se passava ao público era de que o Tribunal de Nuremberg parecia uma “encenação”, e que os réus figuravam como coadjuvantes.

Além dos indivíduos que eram julgados, o Tribunal também julgou as organizações criminosas. A saber:

− conjunto dos chefes do partido nazista;

− a Gestapo;

− as S.S.;

− as S.A.;

− Gabinete do Reich;

− Estado-Maior General e o Alto Comando das forças armadas alemãs.

Como citado anteriormente, a acusação continha quatro pontos.

O primeiro ponto na pronúncia acusou todos os 22 réus de participarem de um plano comum, ou conluio, para preparar e executar os crimes enumerados nos pontos dois, três e quatro.

Citando a pronúncia:

“Todos os réus, juntamente com várias outras pessoas, e durante um período de anos que antecederam 08 de maio de 1945, tomaram parte como líderes, como organizadores, como instigadores, ou cúmplices, na formulação ou execução de um plano comum ou conluio32 para cometer, ou que implicitamente levava a que fossem cometidos, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

31SMITH, 1979. p.9. 32Conluio é um conceito de Direito anglo-saxão; é conhecido como um acordo entre duas ou mais pessoas para cometer um ato criminoso. Prova-se a culpa individual, demonstrando-se que o réu consciente e voluntariamente participou de um plano para cometer um crime como tal reconhecido. O Tribunal de Nuremberg foi instituído inicialmente nos EUA, cujo sistema jurídico-penal é diverso do sistema europeu-continental. Nas palavras de CARLOS CANÊDO: “Pretendia-se considerar um tipo delitivo o que na realidade se tratava de uma forma de concorrência de sujeitos ativos”.

8

Esse 1º ponto fez surgir problemas extremamente árduos, por trazer à tona controvérsias quanto à sua interpretação. O uso de expressões como “diversas outras pessoas”, e o fato que a data para o conluio ou plano comum era afixada aleatoriamente “num período de anos que antecederam 08 de maio de 1945”, fizeram com que a acusação lhe auferisse grande importância e, com isso, suscitando grandes discussões; condenando apenas 08 dos 22 réus acusados.

O ponto dois, intitulado como “Crimes contra a Humanidade”, era uma inovação no Direito Internacional e suas palavras principais eram: “guerras de agressão” e “guerras que violavam tratados, acordos e promessas internacionais”. E o problema residia no fato de não haver definição para o que seria guerra de agressão. Transcrevendo a pronúncia:

“Todos os réus, juntamente com diversas outras pessoas, durante um período de anos que antecederam 08 de maio de 1945, participaram no planejamento, na preparação, no início e na conduta de guerras de agressão, que também foram guerras que violaram tratados, promessas e acordos internacionais”33.

Por ser uma novidade, o ponto 2 trouxe complicações. Vale ressaltar que no veredicto do Tribunal, quatro dos 16 réus acusados sob esse ponto foram absolvidos.

Já o ponto três, foi a acusação mais claramente definida.

“Sob o ponto três, a acusação denunciou 18 dos réus como culpados de violar as leis de guerra tradicionais, porque tinham cometido atos como a imposição de maus tratos aos prisioneiros, assassinato e devastação não – justificada por necessidade militar”34.

Esse ponto cobriu, de modo geral, violações de leis e regras tradicionais de guerra, fixando-se nas seções das Regras de Haia e da Convenção de Genebra. Dentre os 18 réus acusados, só 2 foram absolvidos: Hess e Fritzche.

O ponto 4 dizia respeito aos “Crimes contra a Humanidade”. Por este ponto, eram considerados crimes o assassinato, o extermínio e a “perseguição por motivos políticos, raciais ou religiosos”, cometidos “antes ou durante a guerra”, desde que tais atos fossem empreendidos ou executados em ligação com outros atos “sob a jurisdição do Tribunal”.

A expressão “antes ou durante a guerra” dizia respeito ao fato de ser possível que em

33SMITH, 1979.p.16. 34Op. cit. p.14.

Nuremberg, as ações cometidas antes de 1939, na Alemanha nazista e nos territórios da Tcheco-Eslováquia e da Áustria, pudessem ser tratadas.

De acordo com BRADLEY35:

“O núcleo da crítica que se dirige ao ponto quatro reside no fato óbvio de que não havia código de Direito ou acordo internacional em existência em 1933, 1939 ou mesmo em 1944, que tornasse ilegais perseguições religiosas ou o extermínio de populações. Isso quer dizer que, se levarmos em conta apenas o Direito escrito, o julgamento de atos anteriores e contemporâneos à guerra, pelo ponto quatro, constituiu um exercício de aplicação de lei ex post facto, porque, ao mesmo tempo, se declarou crime e se puniu um ato cometido anteriormente”.

Esse ponto não foi muito aprofundado pelo Tribunal e dentre os 17 réus pronunciados, somente dois foram absolvidos: Hess e Fritzche.

No que tange aos princípios de Nuremberg, a sua formação tropeçou em dificuldades de caráter jurídico e doutrinário; a constituição de uma jurisdição penal internacional encontrou graves obstáculos para sua aplicação prática.

A legalidade do Processo de Nuremberg depende da legalidade do Tribunal Militar Internacional, instituído pelo Estatuto, anexo ao Acordo de Londres de 08 de agosto de 1945. Este Tribunal aplicou determinadas sanções aos grandes crimes de guerra, porém sua legalidade depende da legitimidade das sanções impostas ao mencionado Tribunal.

A afirmação de Nuremberg para VABRES era ilusória, já que não existia “unórganopreconstituído y permanente, digno de sancionarlos”.

2.1.4.2- Crimes 2.1.4.2.1- Crimes contra a paz

O Tribunal tentou provar que tais crimes

estavam sancionados pelo Direito Internacional, e a sentença fez uma enumeração histórica dos documentos internacionais, objeto de violação pelos acusados: Pacto das Nações Unidas, Protocolo de Genebra de 1927, Declaração da VIII Assembléia das Nações Unidas em 1927, Acordo de Locarno em 1925, VI Conferência Pan-Americana de 1928, Pacto de Não-Agressão e Conciliação em 1933, as Convenções de Londres em 1933; e por último, o Pacto Briand-Kellog em 1928.

2.1.4.2.2- Crimes de guerra

35SMITH. 1979. p.15.

9

Nas palavras de CARLOS CANÊDO36:

“O Tribunal considerou que os atos relacionados nesse artigo constituíam crimes de Direito Internacional e que, como tais, estavam compreendidos em instrumentos jurídicos internacionais anteriores a 1939. Seriam eles:

a) as regras de Haia sobre as leis e os costumes de guerra terrestre, anexas às duas Convenções de Haia, de 1899 e 1901;

b) a Convenção de Genebra de 1864, revisada em 1906 e 1929, sobre o tratamento de prisioneiros de guerra;

c) os Tratados de Washington e Londres de 1922 e 1930, respectivamente, sobre a guerra marítima”.

Os crimes contra a paz têm seus antecedentes remotos em doutrinas muito antigas, mais precisamente no século XVI, com o pensamento de FRANCISCO DE VITORIA, de SUÁREZ ou de GROTIUS, referente ao desenrolar do ius ad bellum, e em especial à relação da doutrina sobre a guerra justa37.

A definição de crime contra a paz em Nuremberg não era muito precisa e, todavia, também não era clara a noção de guerra injusta e, com isso, o conteúdo de crime contra a paz ou crime de agressão.

2.1.4.2.3- Crimes contra a humanidade

O Tribunal Militar Internacional de Nuremberg inseriu no cenário jurídico a noção de crimes contra a humanidade.

A formação do conceito de crimes contra a humanidade baseou-se nas idéias de GROTIUS, VITORIA e SUÁREZ38, que consideravam justa a guerra dirigida contra um soberano que praticasse abertamente a impiedade e crueldade contra seus súditos.

A exigência de vinculação dos crimes de guerra com os crimes contra a paz limitou gravemente as competências do Tribunal no que se refere aos crimes contra a humanidade, excluindo praticamente a possibilidade de ajuizar atos anteriores à 01 de setembro de 1939.

Apesar do disposto no artigo 6, c; era irrelevante a teoria de que um crime contra a humanidade tivesse acontecido antes ou depois da guerra, pois na prática era sumamente difícil estabelecer uma relação entre as condutas alegadas e o delito da jurisdição do Tribunal,

36SILVA, 1999. p.71. 37Ver mais a esse respeito em: BOSON, 1994. p.50 e em FONSECA JÚNIOR, 1998. 38Ver mais e esse respeito em: FIERRO, 1997.

quando aquelas foram cometidas antes da guerra).

Ao fazer surgir no cenário jurídico o conceito de “crimes contra a humanidade”, o Tribunal de Nuremberg terminou por incluir o genocídio nesta categoria. Assunto pelo qual passaremos a falar.

2.1.4.2.3.1- Crimes contra a humanidade e genocídio

O termo “genocídio”39 foi usado pela primeira vez em 1944 por R. LEMKIN para indicar a destruição em massa de um grupo étnico, assim como todo projeto sistemático que tenha por objetivo eliminar um aspecto fundamental da cultura de um povo.

Por genocídio, entende LEMKIN a destruição de uma nação ou de um grupo étnico. Esse neologismo40 provém, segundo ele, da palavra grega genos, que significa raça, tribo e o vocábulo latino cidio que significa matar.

Para CANÊDO:

“[...] Oficialmente, o termo apareceu pela primeira vez na Resolução n.º 96 (I), adotada em 11 de dezembro de 1946, pela Assembléia – Geral das Nações Unidas, que o declarou ser crime de Direito Internacional, alertando para a necessidade de elaboração de uma convenção a seu respeito e, ao mesmo tempo, iniciando esforços nesse sentido”41.

Assim definido, somente após a Segunda Guerra Mundial, quando a comunidade internacional viu-se estarrecida pelos enormes crimes cometidos pela política racista do nazismo42, sentiu-se a necessidade de fixar normas de direito internacional, afim de coibir o Genocídio.

Nasceu assim uma nova figura de delito relevante na esfera do direito penal internacional e pertencente à categoria dos crimes contra a humanidade43.

39A bibliografia nacional acerca do Genocídio é bastante escassa. São poucos os penalistas que se aprofundaram nesse assunto. Dentre eles, podemos destacar aobra de SILVA, 1999. Já a bibliografia estrangeira é um pouco maior e podemos citar: PERSICO, 1951; CHIARELLI, 1959. 40Para LAPLAZA, 1953. p.63; o nome genocídio não é correto no ponto de vista etimológico. Para ele, a denominação mais adequada para esse crime seria genticídio. 41 SILVA, 1999. p.86. 42Ver mais a esse respeito em: ARENDT, 1999; ARENDT, 1998; BAUMAN, 1998; BLACK, 2001; CYTRYNOWICZ, 1990 e HOBSBAWN, 1996. 43A definição dos crimes contra a humanidade, de acordo com o Estatuto do Tribunal, pode ser considerada o embrião da

10

“A Assembléia da ONU, numa resolução de 11 de dezembro de 1946, declarou o Genocídio – definido como ‘a recusa do direito à existência de inteiros grupos humanos’ – um ‘delito do direito dos povos, em contraste com o espírito e os objetivos das Nações Unidas, delito que o mundo civil condena’ e determinou a elaboração de um projeto de Convenção sobre o assunto. O projeto definitivo foi aprovado pela Assembléia Geral, em 9 de dezembro de 1948”44.

O Tribunal Militar Internacional de Nuremberg contribuiu para o surgimento da Convenção para Prevenção e Repressão do Genocídio, de 1948, e essa Convenção foi um documento internacional, de natureza penal, com vital importância.

O Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, pela primeira vez, deu a definição de crimes contra a humanidade, incluindo o genocídio como uma de suas espécies, embora essa expressão não tenha sido explicitamente colocada no artigo c, do Estatuto de Londres.

2.1.4.3- Conseqüências, contribuições e críticas

O Tribunal de Nuremberg reconheceu a existência de um direito penal internacional e, através de suas sentenças, introduziu o uso da sanção como medida jurídica e fez surgir novas regras no domínio da responsabilidade internacional individual e coletiva.

Como observa BRADLEY SMITH45,

“[...] É possível sustentar muito bem que Nuremberg produziu vantagens, a longo e a curto prazo. Levando em consideração a atmosfera dos tempos, os sentimentos que animavam as pessoas na época, é bem possível que as deliberações relacionadas com o julgamento tenham evitado um banho de sangue [...]”.

Embora o Tribunal tenha sido a maior conquista no plano da repressão aos crimes internacionais, foi criticado por diversos motivos. O primeiro é que não respeitou os princípios da legalidade e da anterioridade da lei penal. Não havia tratado ou lei interna que previsse tais crimes. Aliás, a expressão “genocídio” só foi criada em 1944 por LEMKIN, e o genocídio foi capitulado nos crimes contra a humanidade sem nomen juris proprio. Durante o julgamento, não foi citada moderna definição de genocídio, pois as condutas descritas se assemelham ao que viria a se definir como genocídio, de acordo com a Convenção de Londres de 1948 e Lei 2889/56. A diferença é que estes crimes contra a humanidade devem ser praticados durante o tempo de guerra e não há o fim especial de agir, que viria a caracterizar o genocídio. 44BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2000. 45SMITH, 1979. p.322.

nenhuma vez a expressão genocídio. Segundo, era um tribunal de exceção, constituído pelos vencedores e, sendo assim, o Tribunal não teria legitimidade, nem pelo direito interno, nem pelo internacional, para julgar estes crimes. Era um Tribunal criado pelos vencedores para dar aparência de legalidade a uma forma de vingança. Terceiro, que a responsabilidade internacional é do Estado e não do indivíduo.

Nuremberg transgrediu abertamente as garantias penais, principalmente o princípio da legalidade. Mesmo assim, a inovação legal desse julgamento parece se justificar, e o efeito geral foi positivo.

“Pois existe algo de verdadeiramente novo nos crimes totalitários, nos crimes de Estado que o velho código legal não tinha contemplado, e a introdução na lei de conceito de crimes contra a humanidade foi uma maneira de remediar essa falta”46.O julgamento de Nuremberg também contribuiu para a transformação da Alemanha em país democrático, mesmo que, 30 anos mais tarde, uma nova geração precisasse questionar a conduta dos cidadãos comuns na Alemanha de Hitler, e não apenas a conduta de seus líderes47.

O Tribunal de Nuremberg não pode ser visto como modelo de Justiça Penal Internacional, mas condená-lo antes de ressaltar suas contribuições é errôneo. A grande contribuição deste Tribunal foi o grande passo no sentido da internacionalização dos direitos humanos e o surgimento de um conceito jurídico do crime de genocídio (este assunto será analisado posteriormente).

A seu tempo, o Tribunal de Nuremberg foi criticado principalmente por penalistas, que viam no Tribunal uma violação inadmissível dos princípios básicos do direito penal, em especial do princípio nullumcrimensine lege.Estes autores defendiam que o princípio da legalidade também é uma garantia fundamental de proteção da pessoa humana. Os estudiosos do direito internacional, embora considerassem estas críticas procedentes, defendiam a validade do Tribunal, afirmando que deveria se admitir outras fontes formais da lei penal neste caso, como o costume, para proteger uma norma de direito natural. Eles defendiam que a violação deste princípio tinha sua razão de ser, pois tamanhas atrocidades não poderiam permanecer impunes.

Em resposta a essas críticas, principalmente quanto à reserva legal, foi criada a Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Genocídio, em 1948. Ela definia que o crime de genocídio é um crime internacional, podendo ser praticado em tempo de guerra ou paz. Também diferenciou os crimes contra a humanidade do 46TODOROV, 18/03/2001, n.475. 47Sobre esse assunto, ver mais em: KAPLAN, 2000; ROSENBAUM, 1999 e GOLDHAGEN, 1997.

11 genocídio; este é espécie e os outros são gêneros, pois o primeiro exige um especial fim de agir, qual seja, de exterminar o grupo no todo ou em parte.

Com isso, fica então evidente que a grande falha do Tribunal de Nuremberg refere-se à inobservância dos princípios da reserva legal e da irretroatividade da lei penal mais grave, e, também, à sua legalidade, por ter se limitado à juizesdas Quatro Grande Potências apenas. Mas no geral, seu saldo foi positivo e de grande importância para a humanidade.

2.1.5- Tribunal Militar Internacional do Extremo–Oriente

O Tribunal Militar Internacional do Extremo–Oriente significou a segunda experiência mundial de uma justiça penal internacional. Foi criado por proclamação especial do Comandante Supremo dos Aliados no Pacífico, no dia 19 de janeiro de 1946.

O Tribunal de Tóquio julgou os crimes de guerra japoneses em pouco mais de dois anos. O julgamento se fez necessário diante das atrocidades cometidas durante a guerra, onde milhares de coreanos foram levados ao Japão e explorados como mão-de-obra escrava, servindo como “cobaias”em experimentos bacteriológicos, e as mulheres coreanas, tailandesas, filipinas, maláias e indonésias obrigadas a se prostituírem para os militares.

Vale ressaltar que no art. 5 do Estatuto não figurava o “complot” como crime autônomo, diferente de Nuremberg, palco de inúmeras controvérsias.

O Tribunal funcionou de 03 de maio de 1946 a 12 de novembro de 1948. As sentenças foram exaradas em 12 de novembro de 194848.

Teve uma composição mais ampla que Nuremberg, pois era constituído de no mínimo 6 e no máximo 11 membros, tomando assento; a França, a Grã-Bretanha, a Nova Zelândia, os Países Baixos, a Austrália, a URSS, os EUA, a Índia, o Canadá, as Filipinas e a China.

As disposições legais aplicadas no Tribunal foram inspiradas na Carta do Tribunal de Nuremberg.

Nas palavras de CARLOS CANÊDO49,

“Deixaremos de analisar mais pormenorizadamente esse Tribunal, cuja importância, no entanto, não pode ser

48O Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, com sede em Tóquio, julgou 28 acusados, que constituíam a cúpula do regime japonês. Dentre eles, 8 foram condenados à morte, 2 morreram durante o processo, 15 foram condenados à prisão perpétua, 1 foi internado em um sanatório psiquiátrico e os outros 2 condenados a prisão de 7 e 20 anos respectivamente. 49SILVA, 1999. p. 79.

relegada, tratava-se da segunda experiência mundial de uma justiça penal internacional – , mas que, de alguma maneira, se viu ofuscado e se tornou caudatário do que ocorreu em Nuremberg”.

2.1.6- Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia

2.1.6.1- Origens

O Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia, ad hoc, foi criado pelo Conselho de Segurança da ONU, para julgar pessoas acusadas de massacres cometidos na década passada, nas seis repúblicas que formavam a Iugoslávia50.

Este Tribunal foi a primeira Corte Internacional Penal desde os Tribunais de Nuremberg e Tóquio. Foi constituído para julgar os culpados pelos crimes praticados durante a guerra civil na ex. Iugoslávia (1991-1995).

Voltando na história, podemos constatar que em 1945, sob a liderança de Tito, é estabelecido o regime comunista. A nação é organizada como uma federação de seis repúblicas (Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia). Nos anos 60, Tito dá o status de região autônoma a Kosovo e a Vojvodina, que pertencem à Sérvia. O poder é exercido por um partido único, a Liga dos Comunistas da Iugoslávia (LCI).

Após a morte de Tito em 1980, Slobodan Milosevic assume o comando do Partido Comunista Sérvio em 1987, e anula a autonomia de Kosovo, dois anos depois.

A derrocada do comunismo no Leste Europeu, em 1989 e 1990, leva a Iugoslávia a abolir o regime de partido único, passando, então, a ser uma federação com um governo coletivo, composta por um representante de cada uma das Repúblicas e Províncias Autônomas.

Com a ascensão desse nacionalismo sérvio, as repúblicas entraram em choque e, a partir daí, começaram a se dissolver.

A declaração de independência da Eslovênia e da Croácia, em 1991, dá início à desintegração e aos conflitos militares. A seguir, a Macedônia declara a independência, e Montenegro, em plebiscito, decide permanecer na Iugoslávia.

50Antes de 1990, a República Socialista Federativa da Iugoslávia (vulgarmente conhecida como “Iugoslávia”) era composta por seis Repúblicas: Eslovênia, Croácia, Bósnia–Herzegovina, Macedônia, Montenegro e Sérvia; contendo esta última duas Províncias Autônomas: Kosovo e Vojvodina.

12

A Bósnia-Herzegovina proclama sua autonomia em março de 1992, dando início à guerra civil51.

Nesse sentido, esclarece CANÊDO,

“Em 27 de setembro de 1991, manifestando-se sobre o conflito recém desencadeado, o Conselho de Segurança, através da resolução 713, consignava que ‘uma persistência desta situação constitui uma ameaça à paz e segurança internacionais’. Posteriormente, pela resolução 764, de 17 de julho de 1992, recorda às partes suas obrigações perante o Direito Internacional Humanitário, com especial referência aos convênios de Genebra, de 1949. Verificando a persistência das violações ao aludido convênio, o Conselho de Segurança, em 25 de maio de 1993, e na esteira da resolução 808, do mesmo ano, aprova, por unanimidade, a resolução 827, decidindo criar um Tribunal Internacional ‘com a exclusiva finalidade de julgar os responsáveis por graves violações do Direito Internacional Humanitário, cometidos no território da ex. Iugoslávia entre 1º de janeiro de 1991 e uma data a ser determinada pelo Conselho de Segurança, uma vez restaurada a paz’. Aprovou-se o Estatuto do Tribunal e nomeou-se um Promotor Especial, sendo os nomes dos juízes sufragados pela Assembléia Geral. Finalmente, foi ele oficialmente constituído, com sede em Haia, em 17 de novembro de 1993”52.

A carnificina ocorrida no território da ex. Iugoslávia, a partir de 1992, traz à tona a expressão genocídio (criada em 1944), que assolou o mundo devido às inúmeras atrocidades e horrores cometidos na Alemanha, durante o Hitlerismo.

Essa situação exigiu uma medida de eficácia imediata, pois os ocorridos chocaram a opinião pública que, então, clamou por justiça. Diante desses fatos, a ONU, através do seu Conselho de Segurança, criou o Tribunal Internacional para o julgamento de pessoas acusadas de sérias violações à lei internacional humanitária, cometidas no território da antiga Iugoslávia.

2.1.6.2- Bases legais de sua constituição, estrutura e funcionamento

A Resolução 808 de fevereiro de 1993 e a 827 de maio de 1993, aprovada por unanimidade pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, decidiram criar o Tribunal Penal Internacional, ad hoc, para a antiga Iugoslávia, com sede em Haia

51Cerca de 200 mil pessoas morreram na guerra; sendo considerada a mais grave em solo europeu após a II Guerra Mundial. 52SILVA, 1999. p.182.

(Holanda). Decisão que foi implementada em 26 de maio de 1993.

Esse organismo judicial foi criado para julgar os crimes de guerra e as atrocidades ocorridas entre bósnios, sérvios e croatas, no território da antiga Iugoslávia entre o dia 1º de janeiro de 1991 até 1995.

A criação do Tribunal se deu através do Conselho de Segurança da ONU, como já mencionado. Mas o procedimento adotado para a criação do Tribunal não foi o adequado, pois o que parecia correto demandaria tempo e, face à urgência requerida pela resolução 808/93, optou-se pela criação do Tribunal, via decisão do Conselho de Segurança53. Devido à urgência que a situação exigia, decidiu-se pelo estabelecimento do Tribunal mediante resolução do Conselho de Segurança. Desta forma, assegurava-se a requerida efetividade imediata, pois todos os Estados estavam obrigados a tomarem quaisquer medidas aptas a fazer prevalecer seus preceitos, baseados no capítulo VII da Carta das Nações Unidas54.

Apesar de tratar-se de um Tribunal ad hoc, ou seja, tribunal não permanente foi criado para julgar delitos cometidos num contexto específico, e com uma jurisdição limitada ratione materiae55,

53Ver mais a esse respeito em: SILVA, 1999. p.182-183. 54“O Conselho de Segurança baseou-se no capítulo VII das Carta das Nações Unidas, que obriga Estados a tomarem quaisquer medidas aptas a fazer prevalecerem seus preceitos. É questionável a iniciativa do Conselho de Segurança de criação do Tribunal, em detrimento da Assembléia- Geral. Na prática, isso tem significado a imposição de determinadas políticas nas quais os demais Estados se vêem obrigados a se tornarem meros sujeitos passivos, implementadas por um órgão carente de representatividade e que toma decisões menos em função da comunidade internacional do que de interesses específicos.

13 ratione personae56, ratione temporis e ratione loci57.

Parecia mais razoável criar um Tribunal ad hoc, do que um permanente. A instauração de um Tribunal Penal Internacional, de caráter permanente e com competência universal, acarretaria em árduas negociações e inúmeros obstáculos. Assim, ficou estabelecido pelo informe do Secretário Geral que a jurisdição seria uma jurisdição penal internacional e temporal, para a antiga Iugoslávia.

O Tribunal é formado por salas de primeira instância, composta por três juízes cada uma, e uma sala de apelações, formada por outros cinco juízes. Há um Promotor – que comanda uma estrutura burocrático-administrativa própria – e uma Secretaria, encabeçada por um secretário58.

O próprio Tribunal elegeu seu Presidente e aprovou suas regras de procedimento. Ao Promotor, como órgão independente, se atribui a responsabilidade da direção das investigações e da acusação59.

O Tribunal foi oficialmente instituído em 17 de novembro de 1993 e, nesses anos de funcionamento, acusou mais de 70 pessoas; a maioria delas comandantes e guardas de campos de concentração, militares e autoridades locais, tanto sérvias como croatas e muçulmanos60.

56De acordo com Canêdo: “O artigo 6º do Estatuto atribui responsabilidade penal somente a pessoas físicas, excluindo-se a responsabilidade dos Estados e a de pessoas jurídicas. O artigo 7º ocupa-se dos princípios norteadores desta responsabilidade individual, atribuindo-a a quem haja planejado instigado ou ordenado o cometimento dos crimes previstos nos artigos 2º a 5º, ou a quem, de qualquer forma, tenha ajudado a planejá-los ou executá-los, pouco importando o cargo desempenhado pelo agente (Chefe de Estado, de Governo ou funcionário). Igualmente, responderá por seus atos aqueles que atuaram em cumprimento de ordens superiores, podendo, no entanto, ser-lhes atenuada, a pena (art. 7º/nº 4). O superior não se eximirá da responsabilidade penal de atos praticados por seus subordinados, se sabia ou tinha razões para saber que este iria cometê-los e não adotou as medidas necessárias para impedí-lo ou castigá-lo (art. 7º, n.3). A exigência de que o indivíduo se abstenha do cometimento de crimes internacionais mesmo diante de ordens superiores, aqui é questionado. Pois, a última parte do dispositivo (art. 11 do projeto de Código de 1991) aponta para a responsabilidade do agente, conforme as circunstâncias”. (SILVA, 1999. p.185). 58Art. 11; a, b e c do Estatuto. 59Vide mais em: SILVA, 1999. p.186. 60O Tribunal só iniciou seus trabalhos em maio de 1996 e, até o fim de 1997, indiciou 78 suspeitos (57 sérvios, 18 croatas e 3 muçulmanos) e condenou dois deles – o croata-bósnio DrazenErdemovic, sentenciado a 10 anos de prisão em 1996, e o sérvio-bósnio DusanTadic, a 20 anos em julho de 1997. O presidente sérvio-bósnio RadovanKaradzic, líder nacionalista, está foragido desde a decretação de sua prisão, em julho de 1996. RatkoMladic também se encontra foragido. Em março de 2000, o General TihomirBlaskic foi condenado a 45 anos de prisão, por várias ações, incluindo crimes contra a

A jurisprudência do Tribunal tem prevalência sobre as jurisdições de quaisquer Estados, estando estes obrigados a cooperar com o Tribunal em todas as fases do seu trabalho61.

2.1.6.3- Crimes

O Estatuto do Tribunal, aprovado pelas Resoluções que o criaram, prevê o julgamento dos delitos de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.

As violações graves de Direito Internacional Humanitário, a que faz referência o artigo 1 do Estatuto, é o resultado do conjunto de condutas puníveis que poderíamos englobar em categorias: crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

Podemos incluir aqui os tipos penais enumerados nos artigos 2 e 3 do Estatuto, que são:

Artigo 2º:Violações Graves do Convênio de Genebra62

“O Tribunal terá competência para julgar as pessoas que cometam ou ordenem o cometimento de violações graves dos Convênios de Genebra de 1949, a saber, os seguintes atos contra as pessoas ou bens protegidos pelas disposições do Convênio de Genebra”.

a) homicídio doloso;

b) tortura ou tratos inumanos, incluindo os experimentos biológicos;

c) atos intencionais que causem grandes padecimentos ou graves danos à integridade física ou à saúde;

d) destruição ou apropriação de bens não justificadas por necessidades militares e levadas a cabo em grande escala e por forma ilícita e arbitrária;

e) coação de prisioneiro de guerra ou de civil a prestar serviços nas Forças Armadas de potência inimiga;

humanidade. O líder sérvio MomciloKrajisnik, aliado do ex. presidente RadovanKaradzic, foi preso em abril de 2000 e aguarda julgamento. No início deste século, o general sérvio-bósnio RadislavKrstic foi condenado a 46 anos de prisão, culpado de ter massacrado 8 mil muçulmanos de Sbrenica, em julho de 1995. O ex. presidente iugoslavo Slobodan Milosevic foi preso no início deste ano, pelo Tribunal Internacional,e será julgado por quatro acusações de crimes de guerra e contra a humanidade. Na sua primeira audiência, o ex. presidente iugoslavo não reconheceu o Tribunal, dizendo que o mesmo era ilegítimo, por não ter sido criado pela Assembléia Geral das Nações Unidas. Esse assunto será analisado posteriormente. 61Artigo 29 do Estatuto.

14

f) privação deliberada a um prisioneiro de guerra ou a um civil de seu direito a um julgamento justo, com as devidas garantias;

g) deportação, traslado ou reclusão ilícita de um civil;

h) tomadas de civis como reféns.

Artigo 3º: Violações das Leis e Usos de Guerra63

“O Tribunal Internacional terá competência para julgar as pessoas que violem as leis ou usos de guerra. Tais violações compreenderão, sem que a lista seja exaustiva”.

a) o emprego de armas tóxicas ou de outras armas que ocasionem sofrimentos desnecessários;

b) a destruição arbitrária de cidades, povos ou aldeias ou a sua devastação não justificada por necessidades militares;

c) os ataques ou bombardeios, por qualquer meio, de povos, aldeias, casa ou edifícios indefesos;

d) a apropriação ou destruição de instituições consagradas ao culto religioso, à beneficência e à educação ou às artes e ciências, monumentos históricos ou obras de arte e científicas, ou danos deliberados a estes;

e) a pilhagem de bens públicos ou privados.

Já os crimes contra a humanidade são aqueles tipos penais internacionais que constituem atos de violência física ou moral, cometidos em tempo de paz ou de guerra, contra pessoas ou seus bens, independentemente de sua nacionalidade; com a finalidade de destruir uma ideologia, um pensamento político, raça ou religião.

Corresponde ao artigo 5 do Estatuto do Tribunal Internacional.

Artigo 5º:Crimes contra a Humanidade64

“O Tribunal terá competência para julgar as pessoas responsáveis pelos crimes cometidos contra qualquer população civil durante um conflito armado, de caráterinterno ou internacional”.

São eles:

a) assassinato;

b) extermínio;

64O conceito de crime contra a humanidade provém do artigo 6, C, do Estatuto do Tribunal de Nuremberg. Em sua definição se exigia que os atos enumerados como crimes contra a humanidade tivessem sido cometidos em execução ou em relação à outros crimes de competência daquele Tribunal.

c) escravidão;

d) deportação;

e) encarceramento;

f) tortura;

g) violação;

h) perseguição por motivos políticos, raciais ou religiosos;

i) outros motivos inumanos.

Já o delito de genocídio se reconhece no artigo 4º do Estatuto, onde se reproduz literalmente os artigos II e III da Convenção para a Prevenção e Repressão do Genocídio de 1948.

Artigo 4º: Genocídio

“Entendem-se por genocídio os atos abaixo enumerados, se perpetrados com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.

a) matança de membros do grupo;

b) lesões graves à integridade física e mental de membros do grupo;

c) submissão intencional do grupo a condições de vida que possam acarretar sua destruição física total ou parcial;

d) imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos dentro do grupo;

e) traslado pela força de crianças de um grupo a outro.

Serão punidos:

a) o genocídio;

b) o ajuste para cometer genocídio;

c) a instigação direta e pública para cometer genocídio;

d) a tentativa de genocídio;

e) a cumplicidade no crime de genocídio.

A respeito das penas aplicadas, o Tribunal exclui a possibilidade de impor a pena de morte, limitando as penas em privativas de liberdade; que podem estender-se à prisão perpétua.

Exclui-se também no Estatuto do Tribunal, o disposto no artigo 12 do Estatuto de Nuremberg; ou seja, a possibilidade de celebrar julgamentos em revelia.

Os crimes que o Conselho de Segurança pretende julgar em Haia, através do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia, mencionados acima, já possuem configuração internacional (em maior e menor escala) e parte deles se encontra absorvido pelas legislações penais internas.

15

2.1.6.4- Críticas e conseqüências

O Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia nasceu da conjunção de três fatores: a conscientização quase instantânea, pelos povos, de atrocidades perpetradas em qualquer parte do planeta; o aprofundamento do relacionamento comercial entre os países; e o fim da Guerra Fria.

E a criação desse Tribunal foi alvo de inúmeras críticas.

A criação do Tribunal se deu, como já mencionado, através do Conselho de Segurança da ONU, pelas resoluções ressaltadas. Baseou-se no capítulo VII da Carta das Nações Unidas, que obriga os Estados a tomarem quaisquer medidas aptas a fazer prevalecer seus preceitos.

O procedimento adotado não foi o adequado para a criação de um Tribunal sendo, então, sua legalidade questionada. O adequado seria a elaboração de um tratado aprovado por um órgão internacional competente (a Assembléia Geral ou uma conferência especialmente convocada) com assinatura e ratificação dos Estados.

“Esse método teria a vantagem de permitir o exame e elaboração detalhados de todas as questões relativas ao estabelecimento de um Tribunal Internacional. Também permitiria que os Estados participantes das negociações do tratado exercessem plenamente seus direitos soberanos, especialmente o de decidir ser ou não parte do Tratado”65.

A Assembléia Geral tem capacidade de fazer recomendações e sugestões, e também goza de poderes específicos para determinar a existência de uma ameaça de paz, ruptura da paz ou ato de agressão, sendo capaz de dirigir toda ação relativa ao restabelecimento e conservação da paz.

Já o Conselho de Segurança é um órgão de menores dimensões que a Assembléia Geral, sendo seu campo de atuação mais restrito.

Diante disso, há um questionamento sobre a legalidade do Tribunal.

O ex. presidente Slobodan Milosevic em sua primeira audiência no Tribunal, não o reconheceu; dizendo ser este ilegítimo66.

A iniciativa do Conselho de Segurança para a criação do Tribunal significou a imposição de determinadas políticas, nas quais os demais Estados se vêem obrigados a se tornar sujeitos

65SILVA, 1999. p.183. 66Para Milosevic, o Tribunal é uma instância ilegal que não foi criada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, e, portanto, é um Tribunal falso.

passivos, sendo implementadas por um órgão carente de representatividade, que toma decisões conforme seus interesses específicos e, não, em função da comunidade internacional.

Este problema da legalidade do Tribunal foi questionado na defesa de DuskoTadic, que alegou falta de jurisdição do Tribunal para julgar o acusado; sobre a base de três argumentos:

Tanto na decisão da sala de primeira instância como na de apelação, afirmou - se que o Conselho de Segurança não atuou arbitrariamente e, sim, dentro das competências que lhe são outorgadas pelo capítulo VII da Carta das Nações Unidas, e na aplicação dos arts. 29 e 41 da mesma.

Apesar do seu duvidoso funcionamento, o Tribunal é um grande avanço no sentido da implementação de uma Justiça Penal Internacional.

Do ponto de vista institucional, é visto como sólido, com uma Promotoria independente, com recursos e estrutura administrativa próprios; com funcionamento permanente e exclusivo.

Vale ressaltar, também, a iniciativa da ONU ao criar uma instância como essa, apesar de ad hoc, para a proteção dos direitos humanos dentro da jurisdição internacional penal.

Uma das críticas feitas ao Tribunal é sobre a persistência de se estabelecer a noção de crimes contra a humanidade junto à existência de um conflito armado. A doutrina hoje vem desenvolvendo o conceito de crime contra a humanidade, atribuindo-lhe autonomia, mesmo na inexistência de conflito armado.

Como assevera CANÊDO67:

“Cabe encerrar externando a esperança de que – uma vez tornado o Tribunal um fato concreto – a iniciativa da ONU possa se tornar um passo importante no caminho da universalização da idéia dos Direitos Humanos e, mais importante, de sua proteção efetiva. E que o ainda incipiente Direito Internacional Penal surja – ou ressurja – revigorado e fortalecido, seja no tocante à criação e interpretação de suas normas, seja no concernente aos órgãos encarregados da sua aplicação”.

2.1.7- Tribunal Internacional para Ruanda

O massacre dos Tutsis pelos Hutus em Ruanda, no período de abril a julho de 1994, em que se exterminou um décimo da população do país, inscreveu-se como uma ferida aberta na consciência da comunidade internacional.

67SILVA, 1999. p.188.

16

Devido às atrocidades cometidas em Ruanda, o Conselho de Segurança das Nações Unidas ditou a Resolução 955 de 8 de novembro de 1994, criando um Tribunal ad hoc para julgar as pessoas de nacionalidade ruandesa, responsáveis pelos atos de genocídio e outras graves violações do Direito Internacional Humanitário.

Como assevera GOUREVITCH68,

“Dizimação significa o assassinato de uma em cada dez pessoas de uma população. Na primavera e no verão de 1994, um programa de massacres dizimou a população da República de Ruanda. Embora os assassinatos tenham sido executado com baixa tecnologia – geralmente com facão -, eles se consumaram com vertiginosa rapidez: de uma população original de cerca de 7,5 milhões, pelo menos 800 mil pessoas foram mortas em apenas cem dias. Os mortos de Ruanda se acumularam numa velocidade quase três vezes maior que a dos judeus mortos durante o Holocausto. Foi o mais eficiente assassinato em massa desde os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki”.

O Tribunal teve como sede a cidade de Arusha, na Tanzânia. Não foi um tribunal militar, sendo estabelecido por um órgão internacional e visto com reservas pelo governo ruandês69.

Seu regimento foi largamente inspirado no do Tribunal para a ex. Iugoslávia, e quem o presidiu foi o jurista senegalês Layti–Kama, figurando como vice-presidente o russo M. YakovOstrovsky70.

No geral, o Tribunal possuía organização precária, necessitava de pessoas qualificadas e de melhores métodos de investigação.

De acordo com PHILIP GOUREVITCH71,

“[...] durante seus primeiros dois anos, o Tribunal da ONU não pareceu fazer muita coisa. Tinha pouco pessoal, era sistematicamente mal dirigido, e sua estratégia persecutória parecia oportunista e sem direção”.

O antigo Primeiro-Ministro ruandês Jean Kabanda (hutu) foi sentenciado pelo Tribunal à prisão perpétua, por genocídio, em setembro de 1998, e também Jean Paul Akayesu, por genocídio e crimes contra a humanidade.

68Op. cit. p.7. 69Vale ressaltar que paralelamente, a justiça ruandesa instituiu em 1997 seus próprios tribunais; onde cerca de 125 mil acusados lotam as prisões do país. Em abril de 1998, ocorrem as primeiras 22 execuções, presenciadas por cerca de 30 mil pessoas em Kigali e criticadas pelos organismos de defesa dos direitos humanos. 70Ver mais a esse respeito em: CÁNOVAS, 2000 e FIERRO, 1997. 71FIERRO, 1997. p.296-297.

2.2- A Criação de uma Corte Penal Permanente

2.2.1- O Tribunal Penal Internacional (Roma)

2.2.1.1- Origens

Após a experiência do Tribunal de Nuremberg, vários foram os esforços de se criar um organismo reconhecido internacionalmente e com competência para julgar os crimes contra a humanidade.

Essa idéia de se criar um código e um tribunal supranacionais encarregados de julgar crimes de relevância internacional é antiga. Desde o Tratado de Versalhes, onde se previa o julgamento do Kaiser Guilherme II por uma Corte Internacional, já se mencionava o labor da Associação Internacional de Direito Penal72, visando apresentar propostas concretas para a criação da Corte.

Na verdade, o Tratado de Sèvres de 1920, que nunca entrou em vigor, foi o 1º Tratado de Paz firmado com a Turquia. Nele se previa o julgamento dos responsáveis turcos pelos massacres cometidos durante a I Guerra Mundial, no território do Império Turco, por um Tribunal criado pela Sociedade das Nações.

Em 1919, o Tratado de Versalhes, dispunha do julgamento do Imperador Guilherme II e o julgamento, pelos tribunais militares, das pessoas acusadas de ter cometido violações das leis e costumes de guerra.

Entre os precedentes dos Tribunais Militares Internacionais de Nuremberg e Tóquio, criados em 1945 e 1946 respectivamente, para julgar os principais responsáveis alemães e japoneses acusados de crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade; a Assembléia Geral das Nações Unidas adotou, em 1948, a Convenção para Prevenção e Repressão do Genocídio, donde se previu a criação de um Tribunal Internacional Penal.

O fim da Guerra Fria e a criação pelo Conselho de Segurança dos Tribunais Penais Internacionais ad hocpara a antiga Iugoslávia (resoluções 808 e 827 de 1993) e para Ruanda (resolução 955 de 1994), assim como os distintos processos jurisdicionais abertos em determinados Estados, para o julgamento de crimes cometidos por governos ditatoriais (em particular, os da República Democrática Alemã, Argentina e Chile),

72Ver mais a esse respeito em: ACOSTA ESTÉVEZ, 1994. p.402.

17 supõe um evidente impulso no processo. Os trabalhos culminam em 1996 na adoção, em 05 de julho, do Código de Crimes contra a Paz e Segurança da Humanidade.

Em 17 de julho de 1988, a Conferência diplomática73 convocada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, e reunida em Roma desde 15 de junho do mesmo ano, adotou o Estatuto da Corte Penal Internacional que foi firmado pelos países participantes,74 ao final da Conferência, em 18 de julho de 1998.

Desde que os Tribunais de Nuremberg e Tóquio concluíram seus trabalhos, há mais de meio século, milhões de pessoas voltaram a ser vítimas de crimes de genocídio, de guerra e de outros crimes contra a humanidade.

Apesar disso, apenas em alguns casos os responsáveis por essas atrocidades foram processados e julgados por tribunais nacionais. A evolução da persecução penal internacional teria de vir, necessariamente, através da criação de um sistema institucionalizado e independente; de um sistema pelo qual fossem superadas as regras de imunidade dos agentes estatais e de aplicação de pena, através de mecanismos supranacionais independentes, desvinculados dos mecanismos internos de cada Estado direta ou indiretamente envolvido.

Diante desse quadro, surgiu a necessidade de se criar um Tribunal Penal Internacional Permanente; elaborado por um Estatuto ratificado pelos Estados, através do qual serão processados os responsáveis por crimes de genocídio, de guerra e outros crimes contra a humanidade.

O Estatuto75 resultante da Conferência Diplomática de Plenipotenciários, que foi aprovado

73A Conferência foi realizada em Roma do dia 15 de junho à 17 de julho de 1998. Onde se estudou o texto elaborado pelo Comitê Preparatório, que tinha sido encarregado pela Assembléia Geral de seguir os trabalhos realizados no primeiro momento pela Comissão de Direito Internacional e posteriormente por um Comitê Especial. Na Conferência participaram as delegações de 160 Estados, e na qualidade de observadores, representantes de organizações inter-governamentais e de outras entidades, como também representantes de 133 organizações não- governamentais. 74Cento e vinte Estados votaram a favor do Estatuto. Sete Estados votaram contra: EUA, China, Filipinas, Índia, Sri Lanka e Turquia. Vinte e um Estados abstiveram-se. 75O texto do Estatuto consiste em 128 artigos, divididos em 13 partes( sendo que essas 13 partes se completam com 5 resoluções anexas à Ata Final. Possui versões em árabe, chinês, inglês, francês e espanhol): Parte 1: Estabelecimento do Tribunal (arts. 1 a 4); Parte 2: Jurisdição, admissibilidade e direito aplicável (arts. 5 a 21); Parte 3: Princípios Gerais do direito penal (arts. 22 a 33); Parte 4: Composição e administração do Tribunal (arts. 34 a 52); Parte 5: Investigação e ajuizamento (arts. 53 a 61); Parte 6: O Julgamento (arts. 62 a 76); Parte 7: Penas (arts. 77 a 80); Parte 8: Apelação e revisão (arts. 81 a 85); Parte 9: Cooperação Internacional e assistência judicial (arts. 86 a 102); Parte 10:

por 120 votos favoráveis, 7 contrários e 21 abstenções, não é, dogmaticamente, um modelo de código de direito e processo penal. Mas é uma tentativa de erigir um sistema de justiça criminal, a partir da junção de 160 países.

O Estatuto de Roma é um texto normativo completo que não só cria a estrutura institucional, como também regula o funcionamento da Corte, tipifica os crimes objeto de persecução e estabelece um procedimento de julgamento criminal.

O Estatuto da Corte é um tratado internacional que cria, atribui competência e define as regras de organização e funcionamento da mesma. Gira em torno de uma dimensão material, subjetiva e jurisdicional.

Como instituição permanente, exerce jurisdição sobre os nacionais dos Estados-Partes, acusados da prática daqueles delitos em seus Estados, ou em outro Estado-Parte.

Ou seja, em sua condição de tribunal permanente, estará aberto à participação de todos os Estados, diferentemente dos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, estabelecidos pelas potências aliadas vencedoras da Segunda Guerra Mundial. O TPI complementará as atividades dos tribunais nacionais e terá jurisdição universal, ao invés de estar limitado a um só país.

O TPI exerce sua competência independentemente do lugar onde os crimes tenham sido perpetrados e estará capacitado a atuar, quando os Estados não possam ou não estejam dispostosa processar os criminosos.

A competência da Corte se limita, segundo o art. 11, aos atos produzidos depois da entrada em vigor do Estatuto.

Isso não impedirá o julgamento por outros órgãos jurisdicionais com competência para julgar os crimes anteriores a esse momento, conforme o direito nacional ou internacional aplicável. Estes tribunais competentes podem ser órgãos internacionais, criados ad hoc, seguindo o exemplo da antiga Iugoslávia e Ruanda, ou tribunais nacionais atuando sob o princípio da jurisdição universal.76

O Tribunal Penal Internacional tem competência sobre os crimes fundamentais, apenas depois que seu Estatuto for ratificado por um número mínimo de Estados (60) e entrar em vigor. Muitos Estados consideram que, desse modo, o TPI jamais poderá ser acusado – como ocorreu com os Tribunais de Nuremberg e Tóquio – de aplicar critérios retroativos de justiça. Há

Execução (arts. 103 a 111); Parte 11: Assembléia de Estados (arts. 112); Parte 12: Financiamento (arts. 113 a 118); Parte 13: Cláusulas finais (arts. 119 a 128).

18 quem argumente que o TPI deveria ter competência sobre os crimes cometidos desde a Primeira Guerra Mundial, naqueles casos em que os suspeitos ainda estivessem vivos. De qualquer forma, seria pouco provável que os Estados chegassem a um acordo sobre uma data passada.

A Anistia Internacional acredita que todo aquele que comete crime de genocídio, de guerra ou outros crimes contra a humanidade deve ser processado, seja através de tribunais nacionais (que têm jurisdição universal sobre esses crimes) ou por tribunais penais internacionais. Sendo assim, a organização formulou um apelo para que todos os responsáveis por crimes dessa natureza sejam processados em tribunais nacionais, ou em um tribunal internacional.

Todos os Estados, sejam ou não partes do Estatuto, estão obrigados a processar, através dos seus tribunais nacionais, os responsáveis por crimes de genocídio, de guerra e outros crimes contra a humanidade, ou a extraditá-la para um país que possa ou esteja disposto a fazê-lo através de um julgamento justo. Outrossim, em dezembro de 1973, a Assembléia Geral da ONU adotou a Resolução 3074 (XXVIII) (Princípios da Cooperação Internacional na identificação, detenção, extradição e punição dos culpados por crimes de guerra ou crimes de lesa humanidade), na qual convencionou-se que todos os Estados colaborarão, bilateral e multilateralmente, para processar os responsáveis por tais crimes.

É certo que os Estados que não sejam partes no Estatuto estarão desobrigados de cooperar com o TPI. Contudo, se não processarem os responsáveis por crimes fundamentais em seu território ou jurisdição, não os extraditarem para outro Estado, não o transladarem por solicitação do TPI ou não responderem às solicitações de assistência do TPI, estarão descumprindo um dever internacional, reconhecido por todos os Estados, naquela resolução das Nações Unidas.

A Corte é composta por 18 juízes77, eleitos (para um mandato de nove anos e sem possibilidade de reeleição), pela Assembléia dos Estados-Partes, entre os candidatos que obtiverem o maior número de votos e maioria de 2/3 dos Estados – Partes e votantes. A eleição se efetuará entre os candidatos que representem os principais sistemas jurídicos do mundo e que garantam uma representação geográfica eqüitativa e equilibrada de homens e mulheres.

77Os juízes devem ser escolhidos dentre pessoas de alto caráter moral, imparcialidade e integridade e devem possuir as qualificações exigidas em seus Estados respectivos para os postos judiciais mais altos. Devem ter conhecimento excelente e serem fluentes em pelo menos um dos idiomas de funcionamento do tribunal, e ter reconhecida experiência em direito criminal e matérias pertinentes ao direito internacional, direito humanitário e direitos humanos.

O Tribunal tem sede em Haia (Holanda), tendo personalidade jurídica internacional, vinculando-se ao sistema das Nações Unidas, e seu funcionamento ocorrerá após a ratificação do Estatuto de Roma por, no mínimo, sessenta dos cento e trinta e nove países que já o assinaram78.

Com relação aos idiomas oficiais, serão os mesmos das Nações Unidas (árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo). Sendo que os idiomas de trabalho serão o inglês e o francês.

O TPI compõem-se dos seguintes órgãos:

− Presidência;

− Câmaras;

− Promotoria;

− Secretaria.

O maior e mais significativo avanço na estrutura do Tribunal Penal Internacional é a independência do Promotor, do órgão de persecução penal, que tem iniciativa da investigação e da submissão de feitos à Corte. Pode o Promotor agir de ofício, ou por provocação do Conselho de Segurança ou do Estado – Parte. Desvincula-se assim a iniciativa da ação penal dos critérios políticos do Conselho de Segurança da ONU.

Como assevera SYLVIA STEINER79: “A jurisdição permanente, aliada à independência do Promotor, é o que assegura, de pronto, a independência e imparcialidade do Tribunal Penal Internacional”.

A cooperação internacional, em matéria de procedimento penal, é imprescindível para o funcionamento eficaz do TPI, nas diferentes etapas da investigação e do processo; como o acesso à provas documentais, à convocação de testemunhas, à coleta de depoimentos e à detenção e transferência dos acusados.

No que se refere à reparação das vítimas, o artigo 75 do Estatuto estabelece que compreende restituição, compensação e reabilitação. Para tanto, foi previsto também um fundo de benefício das vítimas e familiaridades.

O artigo 77 do Estatuto prevê que a Corte poderá impor aos condenados penas de reclusão, por um determinado período que não exceda a trinta anos, ou pena de prisão perpétua, quando assim o justificarem a extrema gravidade do crime e as circunstâncias pessoais do condenado. Prevê, ainda, a aplicação cumulativa e facultativa de pena de multa, e de perda dos bens adquiridos com o produto do crime.

78Até novembro de 2001 o Estatuto possuía 139 assinaturas e 46 ratificações. 79STEINER, v. 7, n.º 28, p.336-381, out-dez/1999.

19

O Estatuto prevê, também, apelação e revisão da sentença, com direito a indenização por erro judiciário.

“O perfil do Tribunal não é apenas o de uma Corte punitiva. Tem por objetivo, além da punição dos violadores de direitos fundamentais, a reparação das vítimas, que assumem no processo papel por nós jamais reconhecido e regulamentado. De outro lado, cresce a pressão da comunidade internacional para a adesão de todos os Estados, a começar daqueles que adotam o modelo de Estados democráticos, a fim de que a Corte possa ser instalada, e a punição aos crimes que ofendem toda a comunidade internacional tenha seu foro próprio. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional não admite a oposição de reservas (artigo 120) o que significa que a ratificação dos Estados é incondicional.

[...] O Tribunal Penal Internacional representa um modelo novo de justiça penal, que não despreza as conquistas da dogmática do direito penal moderno, mas agrega características de um modelo construído a partir das experiências judiciais criadas para o julgamento e punição dos autores de violações massivas de direitos humanos por que passou a humanidade neste século”80.

2.2.1.3- Princípios consagrados pelo TPI

2.2.1.3.1- O princípio da complementaridade

Este princípio está inserido no Preâmbulo e no artigo 1º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Onde diz que a Corte somente poderá exercer sua competência quando as jurisdições nacionais não possam ou não queiram investigar e quando as evidências exigirem a abertura de processos contra os responsáveis.

Ou seja, a competência do Tribunal só poderá ser exercida quando demonstrado que o Estado não esteja disposto, ou não esteja em condições de levar à frente a investigação, processo e julgamento dos crimes, ou que o processo não esteja sendo conduzido de forma imparcial e tendente a realmente apurar e punir.

De acordo com o princípio da complementaridade do Estatuto (art. 17), já expresso no Preâmbulo e art. 1º, trazer um caso ao Tribunal será admissível apenas quando tribunais nacionais estiverem pouco dispostos ou impossibilitados a proceder.

80STEINER, v. 7, n.º 28, p.336-381, out-dez/1999.

Ao chamar a si a competência para o processo, o Tribunal do Tratado de Roma estará declarando de modo explícito que a justiça local não funcionou. E, ao justificar esse gesto, terá que dizer se ela não funcionou porque é inadequada, ou porque, para aquele caso concreto, não funciona. Isso certamente causará muitos problemas, porque esse gesto de afirmação de competência, pressupõe falência da justiça nacional.

A precondição para a atuação do princípio da complementaridade é a de estar o Estado, no qual o crime foi cometido, ou o Estado de nacionalidade do suspeito, inserido entre os Estados signatários do Estatuto.

“Desta aparente CAPITIS DIMINUTIO, há que se extrair ao menos uma indicação positiva, a saber, a de que a responsabilidade primária de coibir atrocidades contra o ser humano recai na jurisdição nacional, e quando esta falha, entra em ação a jurisdição internacional”81.

2.2.1.3.2- O princípio da responsabilidade penal individual e improcedência do cargo oficial

O artigo 25 do Estatuto declara o princípio da responsabilidade penal individual que se concentra, na competência exclusiva da Corte, sobre as pessoas físicas ou naturais. O mesmo preceito declara o princípio da personalidade das penas, ao determinar que somente quem cometa um crime de competência da Corte será responsável individualmente e poderá ser penalizado, de acordo com o Estatuto.

Finalmente, se afirma que nada do que foi disposto no Estatuto a respeito da responsabilidade das pessoas naturais afetará a responsabilidade do Estado conforme o Direito Internacional.

O princípio da responsabilidade penal vem junto com outras importantes regras. Em 1º lugar, a Corte declara que os menores de 18 anos são inimputáveis e, salvo disposição em contrário, uma pessoa será penalmente responsável e poderá ser penalizada por um crime de competência da Corte, se agir com intenção e conhecimento dos elementos materiais do crime. Em regra, os crimes são punidos a título de dolo.

Em 2º lugar, se estabelece o critério da improcedência do cargo oficial, em virtude da qual o Estatuto será aplicado por igual a todos, sem distinção alguma. Afastando, assim, as chamadas imunidades dos Chefes de Estado ou de qualquer autoridade que exerça cargos oficiais.

81 TRINDADE, 2001. p.16.

20

O TPI deverá, então, processar qualquer pessoa responsável pela prática de crimes fundamentais, independentemente do lugar em que foram cometidos e do cargo ou posição que ocupe, seja soldado raso, comandante, ministro da defesa, primeiro – ministro, presidente ou rei. Esse mesmo princípio integrou os documentos constituintes dos Tribunais de Nuremberg e Tóquio.

“O Tribunal Penal Internacional, como no modelo inicial de Nuremberg, Haia e Arusha, é responsável pelo julgamento das atrocidades acontecidas em larga escala. A maior parte de sua clientela será não dos atuais perpetradores de crimes, mas de seus mentores, aqueles que organizam, planejam e incitam o genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra”82.

“O Estatuto de Roma declara e aponta para os cargos de Chefe de Estado ou de Governo, estatuindo ser irrelevante esta condição para a determinação da responsabilidade penal e, mais ainda, como causa de diminuição de pena. Imunidades ou procedimentos especiais, os quais pudessem dizer respeito à função ou cargo, não são óbice à jurisdição da Corte”83.

Visto dessa perspectiva, o regime de responsabilidade individual, universal e plena, definido pelo Estatuto de Roma, adquire um significado especial, pois permite a intervenção da Corte para julgar aquelas pessoas que os tribunais nacionais se veriam impedidos, como conseqüência da aplicação de regimes extraordinários de inviolabilidade e imunidade.

2.2.1.3.3- O princípio da legalidade internacional no Estatuto da Corte Penal Internacional

O Estatuto do TPI traz expresso o princípio da legalidade em seu artigo 22.

Pelo princípio da legalidade, alguém só pode ser punido se, anteriormente ao fato por ele praticado, existir uma lei que o considere como crime (Nullumcrimensine lege).

Pelo Estatuto, ninguém será penalmente responsável, a menos que sua conduta constitua, no momento em que ocorrer, um crime sob a jurisdição do Tribunal.

A afirmação da regra nullumcrimen exclui qualquer possibilidade da Corte criminalizar condutas, a partir do direito costumeiro.

Não se admitindo, assim, nem a analogia, nem a interpretação extensiva.

82SCHABAS, 2000. p.165. 83Op cit. p.173.

Também é expresso o princípio da legalidade das penas (nullapoenasine lege), onde um indivíduo condenado pelo Tribunal somente poderá ser punido de acordo com o dispositivo do Estatuto.

Os princípios da escrita (lexscripta) e da não retroatividade (lexpraevia) dão ao sujeito o direito de se basear na lei que estava codificada e era válida ao tempo da comissão. O Estatuto prevê a irretroatividade de suas normas, exceto as que vierem a beneficiar o acusado.

“O princípio nullumcrimen (sine lege scripta, praevia, certa e stricta) é explicitamente exposto nas suas quatro diferentes formas (arts. 22, 24): uma pessoa somente pode ser punida por um ato que era codificado pelo estatuto ao tempo de sua comissão (lexscripta), tenha sido cometido após ele ter entrado em vigor (lexpraevia), tenha definido com clareza suficiente (lex certa) e não pode ser entendido por analogia (lexstricta). Os últimos princípios, de certeza e proibição da analogia, resolvem as ambigüidades em favor do acusado. Mais além, os princípios da escrita (lexscripta) e da não retroatividade (lexpraevia) dão ao suspeito o direito de se basear na lei que estava codificada e era válida ao tempo da comissão. Em caso de mudança da lei antes do julgamento final, a lei mais favorável ao acusado deve ser aplicada”84.

SCHABAS conclui que:

“[...] o extremo detalhamento das previsões do Estatuto de Roma, particularmente aquelas concernentes à definição de crimes e princípios gerais, atesta uma verdadeira obsessão para com o princípio da legalidade. Já, na prática, os tribunais internacionais de direitos humanos também têm evitado um positivismo excessivo, acatando que o princípio nullumcrimen seja respeitado, ainda que não escrito, vez que tal norma é ‘prévia ao sistema’, ou ‘evidente’”85.

2.2.1.4- Crimes tipificados

O Tribunal Penal Internacional será competente para julgar os crimes de genocídio e de agressão, os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra86.

O artigo 5 do Estatuto atribui competência à Corte para julgar o genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de

84AMBOS, 2000. p.26. 85Op. cit. p.158-159. 86Sua jurisdição somente será exercida quando o país dos indivíduos envolvidos nos delitos ou do território em que ele tiver sido praticado, não puder, ou não tiver condições para julgá-los.

21 agressão. Embora em seus artigos 6, 7 e 8 o Estatuto aponte para uma descrição básica dos delitos de genocídio, de crimes contra a humanidade e de crimes de guerra, a tipificação desses delitos, com todos os seus elementos e circunstâncias, vem em anexo.

Depois desse esboço, passaremos à análise individual de cada crime.

2.2.1.4.1- O crime de genocídio

O Crime de Genocídio tipificado no artigo 5 do Estatuto, corresponde à definição dada pela Convenção para prevenção e Repressão do Genocídio de 1948, onde se entende por genocídio qualquer dos atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, uma nação, etnia, raça ou grupo religioso, tais como:

a) matar membros do grupo;

b) causar prejuízos à saúde física ou mental dos membros do grupo;

c) deliberadamente afligir as condições de vida do grupo, de modo calculado, visando a causar sua destruição total ou parcial;

d) impor medidas tendentes a evitar nascimentos dentro do grupo;

e) realizar transferência forçada de crianças de um grupo para outro.

Atualmente, podemos afirmar que o genocídio é um crime contra a humanidade, se utilizarmos um conceito amplo desse último, não o limitando à categoria de delitos incluídos no artigo 7 do Estatuto da Corte Penal Internacional e, sim, aos delitos internacionais não vinculados à criminalidade de guerra87.

O artigo 6 do Estatuto de Roma deixa algumas questões em aberto sobre o genocídio, que provavelmente exigirão muita cautela dos juízes do Tribunal Penal Internacional, dada a gravidade do crime e das lacunas existentes sobre o tema88.

2.2.1.4.2- Crimes contra a humanidade

O artigo 7 do Estatuto da Corte Penal Internacional define os crimes contra a humanidade como os atentados contra bens jurídicos individuais fundamentais (vida, integridade física e saúde, liberdade...), cometidos

87Através dessa concepção, podemos dizer que o genocídio é um crime contra a humanidade no sentido amplo, porém nem todo crime contra a humanidade é genocídio; pois os crimes contra a humanidade em sentido estrito, se diferenciam do crime de genocídio. 88Uma das maiores omissões é a de saber quantas pessoas devem ser mortas para que se tipifique o crime como genocídio. Também existe uma contradição sobre o que vem a constituir “uma nação, etnia, raça ou grupo religioso”.

tanto em tempo de paz como de guerra, como parte de um ataque generalizado ou sistemático, realizado com a participação ou tolerância do poder político de iure ou facto.

São crimes contra a humanidade o assassinato, o extermínio, a escravidão, a deportação (entre fronteiras nacionais) e o deslocamento forçado de população (dentro de um país), a detenção arbitrária, a tortura, o estupro, a prostituição forçada e outras formas de abuso sexual, a perseguição por motivos políticos, raciais ou religiosos, o desaparecimento forçado de pessoas e outros atos desumanos realizados em massa.

De acordo com SCHABAS89,

“[...] Os crimes contra a humanidade tiveram inúmeros problemas quando da sua estatuição na Carta de Nuremberg, um dos quais seu atrelamento forçado ao seu irmão siamês, os ‘crimes de guerra’. Ironicamente, de qualquer forma, a demora na maturação legal das normas proibindo os crimes contra a humanidade fizeram com que a comunidade internacional clareasse e os definisse melhor, de acordo com as contemporâneas normas de direito internacional”.

O artigo 7 determina que, para os propósitos deste Estatuto, crimes contra a humanidade significa qualquer dos atos cometidos como parte de um ataque amplo e sistemático, direcionado contra qualquer população civil, com conhecimento do ataque e, então lista: assassinato, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada de população, aprisionamento ou outras severas privações da liberdade física com violação das regras fundamentais de direito internacional, tortura, estupro, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência sexual de comparável gravidade; persecuções contra um identificável grupo ou coletividade política, racial, nacionalidade, etnia, cultura, religião, gênero tal como definido no parágrafo 3, ou outros graus universalmente reconhecidos como não permitidos pela lei internacional, em conexão com qualquer ato referido neste parágrafo, abarcados pela jurisdição da Corte; desaparição forçada de pessoas; crime de apartheid; outros atos inumanos de caráter similar que, intencionalmente, causem dor ou grande sofrimento, ou sérias ofensas à integridade física ou mental90.

89SCHABAS, 2000. p.201. 90Vale ressaltar que na Conferência da ONU, realizada em Durban/África do Sul, neste ano(2001), terminou no dia 08 de setembro, onde foram considerados crimes contra a humanidade, a escravidão e o tráfico de escravos.

22

Como o art. 7 omitiu qualquer referência a “conflito armado”, o conceito de crimes contra a humanidade é amplo o suficiente para ser aplicado a conflitos armados, situações acontecidas no período de paz e, de fato, em qualquer outra situação entre ou além dessas, além de outras condições limitadoras contidas nesse dispositivo.

Crimes contra a humanidade não serão considerados como competência do TPI a menos que sejam cometidos como “parte de um amplo ou sistemático ataque”. O ataque só será considerado crime contra a humanidade quando for praticado contra população civil. E, além disso, os atos devem ser cometidos com “conhecimento do ataque”.

Enfim, o objetivo do Tribunal Penal Internacional é julgar responsabilidades criminais individuais, pela comissão de crimes particularmente graves, e não substituir as Cortes locais em casos de homicídios ordinários.

2.2.1.4.3- Crimes de guerra

O Estatuto da Corte distingue, em sua tipificação, os crimes de guerra dos crimes cometidos em um conflito armado internacional.

O Estatuto limita a competência da Corte sobre os crimes de guerra a àqueles que tenham sido cometidos como parte de um plano ou política, ou como prática, em grande escala, de tais crimes.

Os textos institucionais sobre o Jus in Bellonunca haviam previsto esta exigência para a consideração de uma conduta como crime de guerra.

Com isso, não se nega o caráter de crime internacional dos crimes de guerra, cometidos em circunstâncias distintas às descritas no Estatuto.

Ademais, o art. 5 do Estatuto declara que a competência da Corte se limitará a crimes mais graves, sendo que nada do que foi disposto nos parágrafos mencionados afetará a responsabilidade de todo governo de manter e restabelecer a lei e ordem pública no Estado e de defender a unidade e integridade territorial do estado, por qualquer meio legítimo.

Outra limitação do Estatuto refere-se à cláusula opting out, que permite aos Estados a exclusão voluntária da jurisdição do Tribunal para crimes de guerra, durante sete anos.

Ou seja, o artigo 124 do Estatuto prevê a possibilidade de um Estado declarar a não – aceitação da jurisdição do TPI para crimes de guerra, por um período de sete anos.

Como meio de atenuar esse efeito negativo deste dispositivo no Estatuto, a provisão deve ser

revista91 depois de sete anos de vigência do Estatuto de Roma, quando, então, é esperado que a provisão deva ser limitada ou desprezada.

2.2.1.4.4- Crime de agressão

As controvérsias em torno do crime de agressão foram tantas, que se chegou a questionar a própria inclusão do crime no Estatuto.

Isso se deu, porque não conseguiam chegar à uma definição do crime.

Diante desse empasse, a Corte optou por propor a definição e jurisdição do crime de agressão, em um momento posterior.

O crime de agressão, segundo previsão do artigo 5, 2, será submetido à competência do tribunal apenas após a aprovação de emenda ao Estatuto, na forma prevista nos seus artigos 121 e 123.

Na opinião de LYAL SUNGA92:

“A decisão das delegações na Conferência de Roma em incluir na competência da Corte o crime de agressão, de acordo com a definição mencionada, é significativa. Demonstra que a maioria dos Estados compartilhava da visão de que, no mundo contemporâneo, instalar um tribunal internacional apenas para julgar casos individuais de crimes de guerra ou crimes contra a humanidade, descuidando da punição da beligerância em larga escala, geraria anomalia.

A maior parte doa abusos surge durante conflitos armados e a omissão do crime de agressão na competência do Estatuto significaria tratar meros sintomas, ignorando as causas patogênicas do problema”.

Em 1999, a Comissão Preparatória da Corte Penal Internacional criou uma comissão específica encarregada de redigir propostas relativas ao crime de agressão.

Para os países árabes, a agressão envolve a privação da autodeterminação, liberdade e independência. Já a federação russa, condiciona esse crime à prévia determinação de um ato de agressão pelo Conselho de Segurança e por outro lado, limita o objeto à concepção, preparação, início e execução de uma guerra de agressão.

Propondo um meio termo, a Alemanha, condicionou o crime de agressão à ataques

91O artigo 123 do Estatuto prevê que sete anos após sua entrada em vigor, o Secretário Geral da ONU convocará uma Conferência de Revisão dos Estados – Partes para examinar emendas ao Estatuto. 92SUNGA, 2000. p.195.

23 armados contra a integridade territorial ou independência política de um outro Estado93.

A solução encontrada foi a inclusão do crime de agressão no artigo 5º do Estatuto de Roma, com a ressalva de que a competência do TPI para o crime somente poderá ser exercida após a aprovação de um dispositivo que defina o crime.

2.2.1.5- Críticas ao Estatuto de Roma

Diante dos anseios da sociedade internacional que clamava pelo fim da impunidade, em casos anteriormente não alcançados pelo Direito Internacional, foi criado, no dia 17 de julho de 1998, com a aprovação do Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional.

Seu Estatuto possui pontos obscuros e deixa evidente a enorme influência anglo-saxã, no concernente à sua concepção jurídica e estilo de redação.

Apesar de possuir algumas limitações, o Tribunal Penal Internacional é de suma importância na comunidade internacional.

São preocupantes a ausência de uma definição do crime de agressão, e a disposição transitória do artigo 124 do Estatuto que permite a não aceitação da jurisdição do TPI sobre crimes de guerra, por um período de 7 anos, desde sua entrada em vigor.

A Cláusula opting out, que permite aos Estados a exclusão voluntária da jurisdição do Tribunal para crimes de guerra durante 7 anos, o chamado “Estado de Nacionalidade”, onde o TPI deverá pedir autorização a um país para julgar cidadãos seus, e o fato dos cinco membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas (EUA, Rússia, França, Reino Unido e China) poderem, em conjunto, bloquear uma investigação por períodos renováveis de doze meses, quando a questão sub judicie estiver sendo tratada politicamente pelo Conselho; são questões estatutárias que podem impedir o eficaz funcionamento do Tribunal.

“O Conselho de Segurança da ONU tem o direito de, de acordo com o Capítulo VII da Carta da ONU, prevenir a abertura de um julgamento ou suspendê-lo, isto para até doze – renováveis – meses (art. 16). A medida, porém, exige uma decisão unânime dos membros permanentes do Conselho de Segurança (art. 27, III, Carta da ONU)”94.

Para SCHABAS,

“[...] pode-se esperar, por certo, que um documento produzido numa Conferência

93Ver mais a esse respeito em: JARDIM, 2000. p.110. 94CHOUKR; AMBOS, 2000. p.9. (Prefácio)

Diplomática, onde se procurava alcançar o consenso de mais de cento e cinqüenta países integrantes e com múltiplas visões, tenha muitas imperfeições. Talvez a questão mais interessante seja a de saber como os juízes da Corte responderão às detalhadas regras de direito penal material, na medida em que podem se sentir rigorosamente limitados pela letra e pelo espírito da Parte 3 do Estatuto de Roma. Eles podem, também – e somente o tempo dirá – encontrar estratégias inteligentes para marginalizar os princípios codificados e fazer o que os juízes fazem de melhor, expor e desenvolver progressivamente os princípios gerais do direito penal, em resposta a problemas concretos, na serenidade de seus gabinetes, um lugar melhor que o escrutínio público de conferências diplomáticas”95.

Apesar de suas imperfeições, próprias de negociações entre instrumentos internacionais, o Tribunal Penal Internacional deve ser visto como uma Corte original, destinada a julgar crimes que não se amoldam ao perfil dos crimes previstos nas legislações dos Estados.

É preciso que tenhamos uma instituição permanente para continuar os trabalhos dos Tribunais ad hoc, livre de manipulações políticas e com capacidade para processar e julgar, não somente criminosos genocidas ou ditadores, mas, também, para julgar outros crimes que provocam conseqüências danosas à humanidade.

Diferentemente dos crimes de genocídio, de guerra e de outros crimes contra a humanidade, o “terrorismo” nunca foi definido em um tratado apoiado por toda a comunidade internacional. Por isso, a maioria dos Estados é contrária à inclusão do “terrorismo” na competência do Tribunal Penal Internacional.

“O Estatuto de Roma não impôs responsabilidade individual criminal para os seguintes casos: ameaça de agressão (embora possa ser incluída de alguma forma na disciplina da Corte); intervenção; dominação colonial; recrutamento, uso e financiamento de mercenários; terrorismo internacional; tráfico internacional de drogas. Todos esses ‘candidatos’ à inclusão foram deixados de fora do Estatuto de Roma, embora, em algum estágio, a CDI tenha proposto sua inclusão”96.

Os crimes de terrorismo, tráfico ilícito de drogas e crimes contra o pessoal da ONU permaneceram em discussão para sua inclusão no Estatuto de Roma, até a última semana da Conferência de Roma.

95SCHABAS, 2000. p.190. 96SUNGA, 2000. p.193.

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“Mesmo reconhecendo-se que, em alguns casos, o tráfico de drogas pode ser tão sério à independência política de um Estado, alguns governos ainda ponderam que tal atividade deveria ser vista mais como uma matéria de cooperação inter – estatal, de forma bilateral, ou como uma matéria de cooperação em nível regional, em vez de cooperação geral internacional. Desfavorecia ainda um tratamento mais global ao assunto as diversidades culturais, tradições e leis dos vários países no que tange à resposta mais adequada ao problema do tráfico internacional de drogas, assim como aos diferentes entendimentos acerca da reabilitação do ofendido”97.

Embora tenha havido um interesse considerável em incluir também o terrorismo e o tráfico de drogas como crimes sob a alçada do Tribunal, os países não conseguiram chegar a um acordo, em Roma, sobre uma definição de terrorismo e alguns países entenderam que a investigação dos delitos relacionados com drogas excederiam os recursos do Tribunal. Aprovaram uma resolução consensual que recomendava que os Estados-Partes viessem a ponderar a inclusão desses crimes numa futura Conferência.

Ou seja, por falta de consenso, o tráfico de drogas e o terrorismo não foram incluídos no Estatuto de Roma. Os Estados-Partes não conseguiram chegar a um denominador comum a respeito da definição de terrorismo. Será que depois dos atentados ocorridos nos EUA no dia 11/09/200198, não haja uma possibilidade de incluir na competência da Corte, no futuro99, o terrorismo?

Se antes, boa parte dos países lidava com o terrorismo como um problema a mais, com eventuais incidentes e perdas dolorosas, porém possíveis de serem absolvidos socialmente, os recentes acontecimentos liquidaram com essa percepção.

Diferente da Corte Internacional de Justiça, cuja jurisdição é restrita a Estados, o TPI analisa casos contra indivíduos; e distinto dos Tribunais de crimes de guerra da Iugoslávia e de Ruanda, criados para analisarem crimes cometidos durante esses conflitos, sua jurisdição não estará restrita a uma situação específica.

97SUNGA, 2000. p.193. 98Terroristas seqüestraram4 aviões americanos e os explodiram em prédios norte – americanos. Dois deles se chocaram contra a World Trade Center(símbolo do capitalismo mundial) em Nova York, outro espatifou-se no Pentágono (Centro militar dos EUA, localizado em Washington) e uma outra aeronave caiu na Pensilvânia. 99O artigo 121 do Estatuto de Roma determina que os Estados signatários do Estatuto terão a oportunidade de emendá-lo após a expiração do período de sete anos de entrada em vigor.

Nascido com a oposição dos Estados Unidos, o TPI é o primeiro tribunal de caráter permanente que pode julgar criminosos de guerra, mas sua competência está reduzida às transgressões cometidas a partir de 1º de julho de 2002,já que não tem efeito retroativo.

Nos últimos meses, os EUA colocaram sob pressão mais de 20 países – entre eles a Romênia, Índia, Honduras e Ruanda – com os quais firmou acordos bilaterais de imunidade.

Parece que o objetivo americano não é o de proteger soldados inocentes participantes das missões, e, sim, evitar eventuais processos contra os responsáveis pelas decisões.

A União Européia , por sua vez, mantém uma posição unida e contrária a Washington. Segundo o comissário da UE para Relações Exteriores, Chris Patten, o TPI “ representa provavelmente o mais significativo passo adiante da lei internacional desde a criação da ONU. A impunidade acabou”100.

“ Platão, em sua luta contra os sofistas, descobriu que a ‘ arte universal de encantar o espírito com argumentos ‘ ( Fedro, 261 ) nada tinha a ver com a verdade, mas só visava à conquista de opiniões, que são mutáveis por sua própria natureza e válidas somente ‘na hora do acordo e enquanto dure o acordo ‘ ( Teeteto , 172 b). Descobriu também que a verdade ocupa uma posição muito instável no mundo, pois as opiniões – isto é – ‘o que pode pensar a multidão ‘, como escreveu – decorrem antes da persecução do que da verdade ( Fedro, 260 )” 101.

3- CONCLUSÃO

Após a Segunda Guerra Mundial, a internacionalização dos Direitos Humanos tomou rosto e forma, sendo que a luta pelos direitos humanos é embrionária de acontecimentos históricos registrados na Europa e nos Estados Unidos, tendo como marcos fundamentais a Revolução Parlamentar Inglesa (1689), a Independência dos Estados Unidos (1778) e a Revolução Francesa (1789), com suas respectivas conquistas jurídicas e declarações.

A internacionalização dos Direitos Humanos se efetivou em meados do século XX, em decorrência da 2ª Guerra Mundial.

Como assinalado por FLÁVIA PIOVESAN, citando THOMAS BUERGENTAL,

“[...] o moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de

100Le MondDiphomatic. 12/03/2003. 101 ARENDT. 1998. pg. 29.

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direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse”102.

Prossegue a autora afirmando que

“nasce ainda a certeza de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao âmbito reservado de um Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Sob esse prisma, a violação dos direitos humanos não pode ser vista como uma questão doméstica do Estado, mas deve ser concebida como um problema de relevância internacional, como uma legítima preocupação da comunidade internacional”103.

É dentro deste cenário que a Organização da Nações Unidas firmou a Carta das Nações Unidas, em cujo Preâmbulo já se define que as nações reafirmam sua fé nos direitos fundamentais do ser humano, na dignidade e valor da pessoa, na igualdade entre homens e mulheres e entre grandes e pequenas nações, decidindo conjugar esforços para alcançar tais objetivos.

A conseqüência imediata desse processo foi o Acordo de Londres, de 08 de agosto de 1945, no qual se integrou um Estatuto que incorporava a Carta do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg.

O Tribunal Militar Internacional de Nuremberg foi o grande passo no sentido da internacionalização dos direitos humanos e o surgimento de um conceito jurídico do crime de genocídio. Após Nuremberg, outros Tribunais foram instituídos, tais como: Extremo-Oriente, ex. Iugoslávia e Ruanda.

A Assembléia Geral da ONU reconheceu, a necessidade de um Tribunal permanente em 1948, na seqüência dos julgamentos de Nuremberg e Tóquio, depois da 2ª Guerra Mundial, e tem sido discutida nas Nações Unidas, desde então.

Os horríveis acontecimentos na ex. Iugoslávia e em Ruanda – para quais foram criados tribunais ad hoc pelo Conselho de Segurança da ONU – incentivaram o interesse internacional pela necessidade de um mecanismo permanente para levar a julgamento os responsáveis por assassínios em massa e os criminosos de guerra. Um tribunal permanente seria capaz de agir mais rapidamente do que as instituições ad hoc e atuaria com um fator de dissuasão mais forte104.

102PIOVESAN, 1996. p.140. 103PIOVESAN, 1996. p.140-141. 104A acusação do Presidente Slobodan Milosevic e os atentados terroristas ocorridos neste século, renovaram o interesse sobre o papel chave que um Tribunal permanente poderia desempenhar.

Em julho de 1998, em Roma, 160 países decidiram criar um Tribunal Penal Internacional permanente para julgar os indivíduos que cometam os delitos mais graves, que são motivo de preocupação mundial, como o genocídio, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade. Precisamente, essa criação entrou em vigor dia 1º de julho de 2003, após Ter sido ratificado por 60 Estados. Apesar de ter sido saudado pela maioria da comunidade internacional, também foi alvo de críticos que pensam que o TPI será um órgão ineficaz, ou, uma ameaça perigosa à soberania nacional. O TPI é um órgão jurisdicional permanente, resultado da lenta evolução por que vem passando a internacionalização dos sistemas de proteção aos direitos fundamentais, sendo, pois, fruto da evolução do sistema internacional penal de repressão a crimes de guerra, crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de agressão.

Seu caráter é complementar, respeitando a primazia da jurisdição interna, pois sua competência só poderá ser exercida quando demonstrado que o Estado não esteja disposto, ou não esteja em condições de levar a cabo a investigação, o processo e julgamento dos crimes.

O maior avanço na estrutura do Tribunal, é a independência do Promotor, órgão de persecução penal, que tem a iniciativa da investigação e da submissão de feitos à Corte. Pode o Promotor agir de ofício, ou por provocação do Conselho de Segurança ou de Estado-Parte.

Podemos afirmar então, que o Tribunal Penal Internacional representa uma antiga aspiração da sociedade internacional, que suprirá a lacuna existente nos dias atuais, pois é permanente, com personalidade jurídica própria, exercendo jurisdição sobre indivíduos que cometam os crimes mais graves de transcendência internacional.

Mesmo os Estados – Partes tendo que adotar uma legislação interna complementar, para permitir uma plena cooperação com o TPI, eles acreditam que tais legislações em si mesmas representam um grande avanço do Estado de Direito, ao combater a impunidade e prevenir e reduzir a comissão desses crimes no século XXI

“ Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito ou, ao explicar fenômenos, utilizar- se de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência. Significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo que o nosso século colocou sobre nós – sem negar sua existência, nem vergar humildemente ao seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceito e com atenção, e resistir a ela - qualquer que seja”¹

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