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DELMIRO GOUVEIA ERA UMA VEZ NO SERTÃO...

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ALBERTO GONÇALVES

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DELMIRO GOUVEIA ERA UMA VEZ NO SERTÃO...

ALBERTO GONÇALVES

Alberto Cosme Gonçalves

[email protected]

www.albertogoncalves.com.br

Ribeirão Preto - SP

2a Edição – 2013

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DELMIRO GOUVEIA: Era uma vez no sertão...

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Revisão: Ricardo Cosme Gonçalves

Raquel Moura Maria Aparecida de Paiva Mestriner

Projeto Gráfico:

Alberto Cosme Gonçalves

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Campus da USP de Ribeirão Preto

____________________________________________________________________________ 92:658 G624d Gonçalves, Alberto Cosme, 1950- 2ª Ed. Delmiro Gouveia: Era uma vez no sertão... /Alberto Cosme Gonçalves. Ribeirão Preto: [s.n.], 2013. 416 p.: il.; 17 x 24 cm. Inclui bibliografia. 1. 92:658 - Biografia - Empresário. 2. 336 (81) - Finanças públicas - Brasil. 3. 33 (81) (091) – História econômica – Brasil. I Gouveia, Delmiro Augusto da Cruz, (1863 – 1917). II. Título.

CDU 92:658 CDD

2013

Copyright ©2010 – Todos os direitos reservados a: Alberto Cosme Gonçalves ISBN: 978-85-902302-2-9 2

a Edição

Fale com o autor:

[email protected]

www.albertogoncalves.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte do conteúdo deste livro poderá ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja ele impresso, digital, áudio ou visual sem a expressa autorização por escrito do autor Alberto Cosme Gonçalves, sob penas criminais e ações civis.

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À Vera com paixão.

Ao

Ricardo com gratidão.

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ALBERTO GONÇALVES

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PREFÁCIO

Faz muito tempo que tenho dedicado especial atenção à busca do

entendimento da vida e obra de Delmiro Gouveia, um dos personagens mais singulares da história nordestina. Nos primeiros anos, apesar de ter encontrado inúmeras publicações, principalmente biográficas, pouco se falava do seu legado. Mesmo no burgo que ele fundou – a Vila da Pedra, hoje a cidade Delmiro Gouveia (AL), onde vivo – pouco se conhecia da sua obra, apesar de ali ainda habitar alguns contemporâneos seus.

No transcurso dos 80 anos de sua morte, em 1997, a Pedra de Delmiro foi acordada de um sono profundo, para, além de fazer justiça histórica, também alçar à memória o pioneiro da industrialização sertaneja. Isso se fez necessário, pois como sentenciou o escritor Frederico Pernambucano de Mello: “Delmiro Gouveia é tão grande para a história do Nordeste e do Brasil como foi Pe. Cícero Romão Batista, Virgulino Ferreira da Silva (Lampião), Antonio Conselheiro e Luis Gonzaga”. Esta missão foi entregue à Fundação Delmiro Gouveia, com a obrigação de resgatar, valorizar, divulgar, apoiar historiadores e biógrafos, localizar os descendentes, tudo visando completar o elo que faltava para o perfeito entendimento dos episódios que culminaram com o seu assassinato.

O trabalho de Alberto Gonçalves é digno de elogio e admiração, por englobar o universal e o singular no contexto político, econômico, social e familiar em que se viu inserido o cearense Delmiro Gouveia, possibilitando ao leitor uma perfeita compreensão e a sua contextualização crítica, com aprofundamento e especial atenção para os aspectos que passaram despercebidos aos olhos de outros importantes escritores. Ele pesquisou a fundo as origens de Delmiro, a sua infância pobre; a trajetória ascendente de trabalho que o conduziu ao sucesso. Buscou compreender os fatores que dificultaram o saudável funcionamento da fábrica da Pedra; a luta insana travada com o truste inglês, Machine Cottons; e, dentre outras importantes contribuições, os motivos que levaram a transferência da fábrica de linhas ao capital multinacional e sua consequente destruição.

Capitulo a capítulo, o autor vai retratando com extrema emoção a ousadia do empreendedor que, após tornar-se um dos principais exportadores de couro do Brasil, passou a ser reconhecido como o “Rei das Peles”, obtendo todo capital que necessitava para investir em outras importantes atividades: o mercado do Derby, o centro de laser, o primeiro hotel de padrão internacional do Recife, a usina Beltrão de açúcar refinado, a criação de animais com melhoramento genético, a produção de energia elétrica, a fábrica de linhas...

No intuito de proporcionar uma perfeita compreensão da sua magnitude empresarial, Alberto Gonçalves parte de uma análise social e política, passando pela colonização europeia; a Revolução Francesa; a Revolução Industrial; a Guerra do Paraguai e de Canudos, com as suas implicações; tudo devidamente

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relacionado, fazendo uma ponte com a realidade brasileira contemporânea. Em seguida analisa, como pesquisador social, demonstrando que não existe neutralidade no seu trabalho, por entender que é necessária uma perfeita compreensão da história, para um posicionamento contra o encabrestamento que sempre esteve submetida à sociedade brasileira.

O autor não nega a sua admiração pelo pesquisado e não se furta de denunciar o esquecimento forçado a que ele esteve submetido. Traz os fatos à luz da verdade, narrando com máxima honestidade a fantástica saga empresarial que modificou a história do povo nordestino. Evidencia que não foi sem motivos que Delmiro Gouveia tornou-se pioneiro na construção de Shoppings Center no mundo, no aproveitamento hidroelétrico do rio São Francisco, na introdução de fábricas em pleno sertão. Tudo isso, sem se esquecer de escolas, estradas, correio, feira-livre com preços controlados, diversão, casa para os moradores com energia elétrica e água encanada e, surpreendente, introduzindo direitos trabalhistas que trouxeram dignidade ao operariado, trinta anos antes de Getúlio Vargas.

Por tudo isso está obra deverá tornar-se fonte de referência, constituindo-se em um dos mais completos trabalhos de pesquisa sobre o sertanejo Delmiro Augusto da Cruz Gouveia.

Delmiro Gouveia (AL), 14 de fevereiro de 2010.

Edvaldo Francisco do Nascimento Professor, membro da Fundação Delmiro Gouveia e mestre em educação brasileira pela Universidade Federal de Alagoas.

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INTRODUÇÃO

“(...) a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo

da vida de sua sociedade... Acompanhar a primeira é seguir

paralelamente e com mais rapidez a segunda; acompanhá-

las juntas é observar a mais completa mutualidade de

influxos.”*

Euclides da Cunha (1866 –1909)

Há sonhos que nunca terminam. Mesmo depois de acordado, as suas

intensidades são tão fortes que incomodam. Acompanham os dias, atravessam as noites, às vezes tiram o sono, sempre lembrando que a história permanece incompleta, escondida atrás de uma vitrine intocável, inacabada, imaculada, pedindo revisão. Brincam com as reflexões, deliram os sentidos, machucam a razão. Surgem como pensamentos furtivos que seguem e logo são esquecidos para, em seguida, voltarem a incomodar com maior intensidade, impulsionando a procura. Circundam, envolvem por todos os lados, únicos, sem princípio ou fim... Mesmo nos momentos dúbios, nunca acabam; diminuem, mas permanecem à frente, como que prevendo alguma recompensa pessoal. Um horizonte majestoso. Um pote de ouro no fim do arco-íris. Às vezes, se comportam como o combustível da chama que devora a si mesmo, mantêm na dúvida os objetivos e lentamente se extinguem. Porém, mesmo durante incertezas profundas, quase que morrendo, a paixão pela procura permanece viva, latente... Duvida da própria revisão, mas se segue a busca.

Há sonhos que se mantêm vivos.

Meu primeiro contato com a vida e a obra de Delmiro Gouveia foi um pequeno artigo de jornal, em meados da década de 1970. Apesar de resumido, fiquei tão impressionado com as particularidades e os detalhes, que me vi impelido a procurar por maiores informações. Decidido, revirei as principais livrarias e bibliotecas de Ribeirão Preto - SP (Altino Arantes, Padre Euclides, USP...) e, incrível, absolutamente nada encontrei. O tempo passou e me esqueci da procura...

Alguns anos depois, em um sebo na cidade de São Paulo, com tempo de sobra para gastar, distraidamente, deparei-me com uma maravilhosa biografia escrita por Tadeu Rocha (1916 –1994): “Delmiro Gouveia: O pioneiro de Paulo Afonso”. Por uma dessas armadilhas do destino, a primeira página, talvez com alguma dedicatória, estava arrancada e, além de incluir uma coleção de recortes de jornais com artigos do próprio Tadeu Rocha, caprichosamente dobrados e colados, possuía um texto escrito, em uma antiga máquina de datilografia, com

* Os Sertões, p. 200.

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a nítida preocupação de dar prosseguimento à história: “CAPÍTULO XVIII -A –ERRO JUDICIÁRIO NO PROCESSO DELMIRO”. No verso da folha (que era um rascunho) havia uma relação de nomes (talvez de alunos), em rigorosa ordem alfabética, com o símbolo da Faculdade de Ciências Médicas de Pernambuco. Certamente, foi feito por alguém, assim como eu, interessado no passado.

A partir daí o meu interesse só aumentou, ampliei a pesquisa, tornei-a abrangente. As coisas foram acontecendo por si só: assisti ao filme “Coronel Delmiro Gouveia” de Geraldo Sarno e Orlando Senna; tive acesso aos depoimentos e manuscritos de Adolpho Santos, Felix Pires de Carvalho, Lauro Alves de Campos Góes, Plínio Cavalcanti; fiz viagens; conheci museus; consultei periódicos, nos quais encontrei outros importantes biógrafos e escritores; obtive valiosa ajuda de muitas pessoas que se tornaram amigos. Não parei mais.

A certeza de que precisaria publicar meus ensaios surgiu numa das inúmeras viagens que realizei ao Nordeste. Depois de conversar com moradores e taxistas, percebi que o desconhecimento sobre a história era quase total. Todos tinham ciência dos locais (o quartel do Derby, o rio São Francisco, a cachoeira de Paulo Afonso, a cidade de Delmiro Gouveia - AL...), por onde circulavam, diária e rotineiramente, descortinando as suas vidas, todavia nada (ou pouquíssimo) sabiam do passado. Incrivelmente, ninguém, em todos os locais que visitei, conhecia a história e a forma como os protagonistas construíram os alicerces do presente.

Sem maiores pretensões, este trabalho é a consolidação de uma ideia honesta e antiga, fruto de uma pesquisa espaçada e continuada em 30 prazerosos anos. Poderá ser entendido pela vontade (quase compulsiva) de materializar aos jovens a luta de alguns filhos ilustres desta terra, principalmente dos esquecidos que, de alguma forma, se perderam em tempos incertos e difusos. Para facilitar a leitura e proporcionar um fácil entendimento, diversos textos referenciados – muitos do final do século XIX – foram adaptados às regras da língua brasileira em vigor, além de ter adotado um sistema para estabelecer uma ordem de grandeza monetária (veja maiores detalhes, cuidados e explicações no final).

Ao contrário do que possa parecer, não existiu a preocupação exclusiva de contar uma velha história. Idealizei-a com os olhos fixos no presente, de forma a produzir uma mensagem subliminar, clara e concisa, que representa a indignação de quem viu, sentiu e vivenciou, como cidadão, engenheiro e pequeno empresário, as mazelas sociais deste país. Somente o amor que sinto por esta terra, o respeito que tenho pela sua gente humilde e trabalhadora e o ardente desejo de ver a triste realidade modificada me suscitaram a vontade de escrever.

Ribeirão Preto (SP), 24 fevereiro de 2010.

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PARTE 1 UMA LÁGRIMA DE SAUDADE

“E caem! – Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair,

como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos,

daria uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem

da morte, que, se não deixa boca para rir, também não

deixa olhos para chorar... Heis de cair.”1

Machado de Assis (1839 –1908)

Corria o ano de 1929. Os escoceses da cidade de Paisley, sócios da

multinacional têxtil Machine Cottons 2, em seus gabinetes suntuosos, estavam eufóricos. Depois de quase duas décadas de intensa luta comercial, nas três Américas, com a empresa brasileira Companhia Agro Fabril Mercantil, a lendária fábrica da Pedra, finalmente, no dia de finados, de 2 de novembro, assinavam o aguardado contrato de compra da fábrica de linhas. Definitivamente, a companhia criada por Delmiro Gouveia, em 1914, em pleno sertão de Alagoas, sucumbia aos interesses do grande capitalismo internacional. A antológica e insolente Linha da Pedra – Marca Estrella, nunca mais atrapalharia os gloriosos planos traçados: poder e riqueza para os industriais britânicos e a miséria de sempre para o sertão de um país periférico chamado Brasil.

Para sacramentar o negócio, faltava a confirmação e a aceitação do Conselho Fiscal da empresa sertaneja. Coisa fácil e previsível, pois as ações e armadilhas criadas nos últimos anos, pela multinacional escocesa, deixaram a fábrica da Pedra, literalmente, sem alternativas. Vergonhosamente, de joelhos...

Alguns dias depois, a Diretoria e o Conselho Fiscal reuniram-se na cidade do Recife, para ratificar e convalidar a sentença de morte. Deixemos que a ata, lavrada neste dia memorável, fale por si 3:

“*Aos vinte e três (23) dias do mês de Novembro de 1929, reuniram-se

às 15h00min, à Rua Imperador D. Pedro II no 376, sede desta

companhia os Sr. Luiz Lacerda de Menezes, Epitácio Gusmão e Emilio

Gomes de Mattos, respectivamente diretores presidente, tesoureiro e

secretário desta Companhia, juntamente com os Sr. Miguel Santos,

Joaquim de Arruda Falcão e Horácio Braz da Cunha, membro e

suplentes em exercício do seu Conselho Fiscal, e convocados pela

Diretoria para o fim de discutirem e deliberarem sobre assuntos

referentes à fabricação de linhas na Fábrica da Pedra, e

entendimentos havidos com a firma J. & P. Coats Ltd., controladora da

‘Machine Cottons’ (veja detalhes na nota 2 no final), e mantidos até

* Cópia fiel, na integra, com a grafia adaptada e observações grifadas do autor.

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agora em caráter confidencial (só agora as negociações secretas

seriam reveladas). O Sr. Diretor Presidente começou recapitulando a

situação precária a que chegou esta Companhia em princípios de

1926 (quando ainda pertencia a família de Delmiro Gouveia, antes da

venda para os Menezes, atuais proprietários) e referindo-se a uma

campanha intensa desenvolvida naquela época pela imprensa do Rio

de Janeiro, de que resultou o Decreto no 17.383, promulgado pelo

Presidente Artur Bernardes (Presidente da República de 15/11/1922 a

15/11/1926), em 19 de julho de 1926, e pelo qual a taxa alfandegária

sobre linhas de coser foi elevada de Rs. 2$000 para Rs. 10$000 por

quilo. Referiu-se a um adiantamento de 3.000 contos de réis que esse

Presidente (da República) havia prometido facilitar a esta Companhia,

através do Banco do Brasil, para sua recomposição financeira,

conforme declaração que fizera o Dr. Clovis S. da Nóbrega, então seu

Diretor e que obtivera do mesmo Presidente (da República) a

promulgação do referido Decreto. Não se tendo, porém, realizado

este auxílio, o Dr. Clovis S. Nóbrega e os outros Herdeiros de Delmiro

da Cruz Gouveia, fundador da referida Fábrica, resolveram, por falta

de recursos para o financiamento desta Companhia, vender os seus

interesses na mesma, o que efetivamente fizeram, por escritura de 7

de Maio de 1927 (sem capital para continuar, a família de Delmiro

Gouveia foi obrigada a vender e se retirar do negócio), aos Srs.

Menezes Irmãos & Cia., de que ele Presidente (Luiz Lacerda Menezes)

é um dos sócios e que passaram a controlar os negócios desta

Companhia. Relatou o Sr. Presidente (Luiz Lacerda Menezes) os esforços

que fizera para assenhorear-se, sem delongas, do problema de linhas

no Brasil; as démarches junto ao Sr. Costa Rego, então Governador de

Alagoas, a cuja solicitude muito deve esta Companhia; relatou os

esforços do Sr. Álvaro Paes, atual Governador de Alagoas, que lhe

obteve e acompanhou numa entrevista com o EX.mo Sr. Dr. Washington

Luiz, atual presidente da Republica (sucessor de Artur Bernardes, com

mandato de 15/11/1926 a 24/10/1930), a fim de expor-lhe a

importância do problema e solicitar o amparo que o mesmo lhe

parecia merecer sob o ponto de vista do interesse público e da

economia brasileira. Havia ele (o Presidente Washington Luiz), dias

antes, revogado o Decreto do Presidente Artur Bernardes, e baixara

novamente os direitos sobre a linha à taxa de Rs. 2$000 por quilo.

Antes desta conferência o Sr. Luiz Lacerda de Menezes se havia

entendido com o Ministro da Agricultura (Geminiano Lyra Castro (1863 -

1936) min. da Agricultura, Indústria e Comércio de 16/11/1926 a

24/10/1930), com o Ministro da Fazenda (Getúlio Dornelles Vargas, min.

de 15/11/1926 a 17/12/1928) e com vários outros personagens de

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evidência na política administrativa (toda cúpula governamental

estava ciente e comprometida com as dificuldades da empresa), aos

quais explicou todos os aspectos do problema de linhas no Brasil,

solicitando a sua intervenção, para o restabelecimento da taxa fixada

pelo Presidente Artur Bernardes e posteriormente sancionada pelo

Congresso Federal que a incluía na lei da receita para o ano de

1927. Na aludida conferência com o Presidente Washington Luiz, o Sr.

Luiz Lacerda Menezes recapitulou todos os acontecimentos referentes

à linha no Brasil e frisou a impossibilidade da Fábrica da Pedra

continuar a fabricar linhas sem o amparo que o Presidente Artur

Bernardes lhe dera, e que o Presidente Washington Luiz revogara.

Nada, entretanto, conseguiu o Diretor Presidente em suas démarches e

a linha continuou a ser importada à razão de Rs. 2$000, por quilo

(qual a razão não revelada para modificar essa decisão do governo

anterior?). Em meados de 1928 agitou-se no Congresso Federal a

reforma das tarifas. Interrompendo outros interesses, voltou

imediatamente ao Rio de Janeiro, o Sr. Luiz Lacerda de Menezes,

onde conferenciou várias vezes com o Srs. Presidentes das Comissões

de Finanças do Senado e da Câmara e com o Ministro da

Agricultura, a quem o Sr. Presidente da Republica anteriormente,

afetara o caso da linha, para estudos. Voltou a conferenciar com o

Sr. Presidente Washington Luiz, entregando-lhe um memorial conciso,

pleiteando uma taxa mínima de Rs. 4$500 por quilo de linha importada

e salientando da forma mais clara e categórica que a Fábrica da

Pedra não seria possível continuar a fabricação da linha de coser, se

não lhe fosse dada imediatamente, aquela proteção mínima, em

caráter de emergência. Recapitulou também as reformas introduzidas

na Pedra, a capacidade de produção dessa Fábrica, a qualidade

dos seus produtos e os prejuízos verificados até então pela

concorrência acérrima que lhe desenvolvia e que motivara o Decreto

do Presidente Artur Bernardes. Malgrado esses esforços, a taxa

alfandegária sobre a linha de coser foi fixada em Rs. 4$000 por quilo,

sem nenhuma razão que a seu ver pudesse justificá-la, e não foi

imposta em caráter de emergência, como era necessário. Resultou

daí, conforme se verifica pelas publicações da Repartição de

Estatística, que a importação de linha de coser que em 1927 foi de

180 toneladas, passou em 1928 a 500 toneladas, ou seja quase três

vezes mais do que no exercício anterior (crime de Lesa-Pátria ?...).

Acrescentou que sabe que foi com grandes embaraços que o Centro

Industrial de Fiação e Tecelagem conseguiu induzir o Congresso

Nacional a aceitar a taxa de Rs. 4$000 por quilo, como última

tentativa de amparo a indústria de linha no Brasil. Ainda assim o

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Senador Paulo de Frontin, combatendo vivamente esta taxa (perceba

que os grandes inimigos sempre foram os próprios brasileiros),

apresentou uma emenda ao encerrar-se a sessão do Congresso em

1928; emenda essa que foi aceita para constituir um projeto especial,

fazendo voltar a linha a taxa de Rs. 2$000 por quilo, malgrado todos

os argumentos apresentados a favor da linha nacional, nos quais

nunca se invocou medidas de favor especial à Fábrica da Pedra, e

sim, reiteradamente, motivos superiores de interesse público (Lesa-Pátria

?!...) e sobejamente documentados provando que era a concorrência

da Fábrica da Pedra que mantinha os preços da linha no Brasil

inferiores aos da mesma linha nos países vizinhos. Salientou mais o Sr.

Lacerda de Menezes que está Companhia, há seis anos não distribui

dividendo algum, verificando, ao contrário, prejuízos sucessivos em seus

balanços, os quais se acentuam ainda mais neste exercício, pela

excessiva importação à taxa antiga de Rs. 2$000 por quilo, e pela

redução dos preços similares da concorrência estrangeira (os prejuízos

da indústria se transformam em perdas irreparáveis para o país!). Por

intervenção de um amigo comum, foi ultimamente está Companhia

induzida a entrar em negociações com sua concorrente, a Machine

Cottons, para melhor entendimento na venda de seus produtos. No

curso destas negociações, todas as formas de compromissos para

trabalhar por conta da Machine Cottons ou para restringir a produção

da Pedra a determinados limites, mediante cláusulas de uma

concorrência ajustada (irregularidades foram tentadas), foram

apresentadas, sem nenhum proveito resultando finalmente uma oferta

firme de Machine Cottons, por seus principais J. & P. Coats Ltd. de

Paisley, para a Fábrica da Pedra cessar a fabricação de linha de

coser (o único objetivo...) e entregar, por venda, as máquinas

exclusivamente destinados a está fabricação, mediante as condições

abaixo transcritas, as quais fazem parte do ajuste inicial firmado em

Paisley em 2 de Novembro p. passado, e que rubricado, nesta data,

pelos presentes ficará como parte do arquivo desta Companhia, para

os devidos fins e cujas cláusulas de ajuste vãs aqui transcritas em

versão portuguesa. Para efeito do acordo provisório assinado em

Paisley, ficou entendido que Pedra significa a Companhia Agro Fabril

Mercantil, os Srs. Menezes Irmãos & Cia. e os Sr. Luiz e Vicente

Lacerda de Menezes e que Machine significa os Srs. J. & P. Coats &

Cia. Ltd. As cláusulas que adiante se transcrevem foram traduzidas do

original inglês, em boa fé e o mais literalmente possível, sem

preocupação de forma. A expressão ‘Goodwill’ que não vai traduzida,

significa neste caso e de um modo geral ‘o negócio e a fabricação

de linhas de coser’. Clausula 1a. –Pedra oferece vender e Machine

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quer comprar o ‘Goodwill’ e marcas registradas referentes as linhas

de coser da Pedra pela importância de £ 27.000;0;0. Imediatamente

após a confirmação deste acordo pelo Conselho, Machine depositará

£ 27.000;0;0 em qualquer Banco de Londres, em nome conjunto de

Machine e Pedra, para serem levantados quando todas as máquinas

e acessórios especificados adiante tiverem sido entregues ou

inutilizados, as marcas registradas transferidas e o acordo tenham sido

assinados por Pedra e Machine. As £ 27.000;0;0 permanecerão à

disposição da conta conjunta por seis meses e poderão ser retiradas

por Machine se as operações não estiverem concluídas neste prazo.

Machine, entretanto, terá opção de manter esta conta depois, por

intervalos de trinta dias. Clausula 2a. – Pedra oferece vender e Machine

quer comprar as máquinas exclusivamente úteis para fabricar linhas,

nas seguintes condições (a Machine comprou a Indústria sem

conhecê-la, apenas para encerrar a concorrência!): a) Todas as

máquinas e acessórios exclusivamente úteis para fabricar linhas, terão

de ser vendidos por Pedra a Machine (só comprou o setor de linhas,

o setor têxtil não foi vendido). b) – Uma lista de máquinas marcadas

‘X’, com seus preços fob. porto inglês, está anexo a este acordo e

enquanto ela não inclua necessariamente todas as máquinas a serem

vendidas, nem todas as máquinas nela incluídas estejam

necessariamente aproveitáveis para venda, a lista e os seus preços

fob. porto inglês, servirão de base das máquinas a serem vendidas e

da forma do pagamento. c) – A base do pagamento será de 50%

do preço fob. porto inglês, dado na lista ‘X’ e um preço equivalente

para as máquinas não especificadas. Sobre o valor pago pelas

máquinas recebidas ou quebradas serão concedidos 15% para

acessórios. d) De qualquer forma todos os Polidores, Meiadeiras,

Enroladores em tubos, Enroladores, Noveleiras e Maquinismos para

imprimir etiquetas e rótulos com os seus respectivos acessórios têm que

ser incluídos na venda. e) As máquinas serão pagas em Libras

Esterlinas, pró-rata (o rateio final foi pago em libras esterlinas (£)),

conforme embalados e entregues em Pernambuco, correndo as

despesas por conta de Pedra, ou depois de serem inutilizados,

correndo as despesas por conta da Pedra, sob a inspeção da

Machine (os brasileiros pagaram as despesas e os escoceses

inspecionaram). f) Um inspetor terá de ser mandado à Fábrica da

Pedra, por parte da Machine, para examinar as máquinas que têm de

ser inutilizadas, superintender a inutilização (administrar a destruição!),

verificar os estoques de fios em todas as fases e verificar que todas

as máquinas para fazer linha estão incluídas. A ele serão dadas por

Pedra todas as facilidades para o desempenho do seu cargo e será

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permitido acesso em todas as partes das Fábricas da Companhia da

Pedra para os fins acima. Clausula 3a. – Os estoques acabados

deverão ser liquidados, por Pedra, porém nenhum obstáculo será

criado pela Machine com referência a venda dos mesmos (a

Machine não se interessou pelos estoques e, menos ainda, pelo

imobilizado). Será dada à Machine opção para comprar qualquer

linha desde retorcimento em diante, que não possa ser utilizada em

pano, desde que a qualidade e o preço convenham a Machine. A

linha tem de ser examinada e reportada pelo Inspetor da Machine.

Clausula 4a. –Pedra cessará a fabricação de linha de coser dentro de

noventa dias da confirmação do acordo por Machine. Clausula 5a. –

Todas as marcas registradas referentes às linhas de quaisquer

qualidades serão transferidas a Machine (perceba a preocupação de

liquidar com a concorrência). Clausula 6a. –A Companhia Agro Fabril

Mercantil e os Srs. Menezes Irmãos & Cia., se comprometem por dez

anos e os Srs. Luiz e Vicente Lacerda de Menezes por cinco anos, a

não reentrarem no negócio de linhas, direta ou indiretamente, ou

vender fios para fabricação de linhas a terceiros (sem palavras !...).

Clausula 7a. –Sendo reconhecido pela Machine que o período de

transição para venda dos estoques e mudança para manufatura de

panos causará despesas e demoras para Pedra, fica acordado que

Machine pagará £ 5.000;0;0 em Libras Esterlinas, pelas despesas dessa

mudança, quantia que será depositada e paga juntamente com o

pagamento do ‘Goodwill’. Salientou o Sr. Diretor Presidente que as

máquinas a serem entregues por força deste ajuste, apesar de

recentemente reformadas, estavam na sua grande maioria usada pelo

trabalho contínuo de quinze anos duas e três turmas de serviço e que

algumas já tinham sido abandonadas por obsoletas. Acrescentou que

felizmente as reformas mais importantes introduzidas ultimamente na

Fábrica da Pedra tinham sido nas seções de fiação e tinturaria, e de

mercerisação (processo industrial que trata o algodão com hidróxido

de sódio), que poderiam continuar a funcionar, sem nenhuma

interrupção, na fabricação de fios industriais, a que a Pedra já se

tinha dedicado, anteriormente, em períodos de crise, e que além disto

a fábrica poderia ser facilmente convertida numa fábrica de tecidos,

logo que isto fosse oportuno e afastadas as perspectivas sombrias

destes dois últimos anos industriais (muito antes da venda realizada

pelos herdeiros, Delmiro sonhava em expandir a empresa e ampliar a

concorrência para outros setores). Arguidas as cláusulas do

compromisso ajustado; analisadas as ocorrências da vida desta

Companhia; os embaraços e prejuízos que lhe advinha da Fabricação

de linhas, pelas causas recapituladas acima, e inteiramente satisfeitos

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com as explicações que a Diretoria forneceu, os membros do

Conselho Fiscal, convocados para esta reunião em conjunto, declaram

que o seu parecer era favorável a aceitação do ajuste, nos termos das

cláusulas traduzidas e que foram agora transcritas na ata desta reunião,

que eles assinam para que valha como seu parecer e produza os efeitos

legais. Terminada a discussão, foi resolvido convocar-se uma

Assembleia Geral Extraordinária, para princípio de Dezembro, afim de

que os acionistas deliberem a respeito como melhor lhes parecer (nos

termos da legislação brasileira). Do que se discutiu e aprovou, lavrou-

se a presente ata, que vai assinada pela Diretoria e Membros do

Conselho Fiscal presente. Recife, 23 de Novembro de 1929.” 4

Ao ler a ata, extraímos ao menos três ilações estarrecedoras: fica evidente a falta de vínculos do governo brasileiro com a empresa nacional; a Machine Cottons comprou apenas o setor de linhas da fábrica da Pedra, sem conhecê-la, só para encerrar a competição e monopolizar o mercado nas Américas; e a redução da taxa de importação, no mínimo, foi um “crime de lesa-pátria”. Tudo feito às claras, com a complacência e condescendência de importantes líderes políticos e empresariais.

Para entender o porquê desse “crime”, basta um pouco de atenção e algumas contas elementares – todos os números constam na ata. As importações de linhas de coser de algodão, no ano de 1927, foram equivalentes a 180.000 quilos que, considerando a taxa alfandegária de Rs. 10$000 réis o quilo, rendeu ao governo 1.800 contos de réis em impostos. Já, no ano subsequente, após a taxa ser reduzida para Rs. 2$000 réis o quilo, as importações subiram imediatamente para 500.000 quilos anuais e renderam em impostos, apenas, 1.000 contos de réis. Ou seja, além de alcançar o objetivo indisfarçável de liquidar com a indústria nacional de linhas, a redução do imposto de importação, ainda, gerou um prejuízo para o tesouro de Rs. 800:000$000 (oitocentos contos de réis).

A vergonhosa atitude do governo de Washington Luiz Pereira de Sousa

(1870 –1957) foi deliberadamente infeliz e altamente lesiva aos interesses nacionais. E, por mais incrível que possa parecer, o grande responsável foi o

então Ministro da Fazenda, Senhor Getúlio Dornelles Vargas (1883 –1954), posteriormente reconhecido como um nacionalista e, seguramente, um dos personagens que mais influenciaram a política, a economia e a sociedade brasileira no século XX – o ditador “pai dos pobres” que “saiu da vida para entrar para a história”.

Como resultado, assim que a multinacional se viu livre da concorrência, o preço da linha dobrou no mercado brasileiro. Quem pagou a conta do descaso foram, em primeiro lugar, os consumidores que sofreram aumentos abusivos nos preços; em seguida, os trabalhadores que perderam os seus empregos e, finalmente,

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DELMIRO GOUVEIA: Era uma vez no sertão...

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o Estado que ficou sem o imposto e com inúmeros problemas sociais adicionais para resolver. Nunca resolveu!...

Mais uma vez, havia ficado caracterizado que o país seguia sem rumo, sem um norte para proporcionar uma vida justa e digna aos seus filhos. Afinal, nossa terra nunca foi preocupação das elites políticas e econômicas. Sempre foi um problema exclusivo de alguns empreendedores pertinazes. O então Presidente da República, Washington Luiz, ganhou o seu lugar na história ao resumir em

uma frase todas as mazelas pátrias em relação ao trabalho5: ¨A questão social

é um caso de polícia!¨. Como veremos em detalhes nos próximos capítulos, o principal motivo, ou

as razões ocultas amplamente alegadas, para o Estado permitir esses fatos foram as pressões diplomáticas6 desenvolvidas pelo embaixador inglês, Henry Linch, e pelo representante dos Rothschild’s – cuja família de banqueiros, sempre, desde os primórdios da independência, manteve relações promíscuas com os nossos líderes.

No dia 09 de dezembro de 1929, reunidos em Assembleia Geral, por exigência da lei, os acionistas da Companhia tomaram ciência da negociação e homologaram o acordo. A notícia foi levada ao povoado da Pedra, deixando seus moradores transtornados e abandonados.

As condições propiciadas por Delmiro Gouveia na fábrica da Pedra, a partir de 1914, uma geração antes do início da Era Vargas e da invenção das leis trabalhistas, ainda hoje, no primeiro quartel do século XXI, estão longe de serem alcançadas pela maioria da população brasileira. Os operários trabalhavam, em pleno agreste do sertão nordestino, oito horas por dia, de segunda a sábado. Eles tinham descanso remunerado no domingo, recebiam semanalmente, dispunham de assistências médica e odontológica, estendidas aos familiares. As duas mil e quinhentas almas da colmeia7 –operários e dependentes – moravam gratuitamente (ou melhor, com custo mínimo, simbólico) em casas da companhia, servidas por água encanada, esgoto, coleta regular de lixo, chafarizes, lavanderias coletivas e luz elétrica; tinham mercado com fartura e preços justos, controlados e regulados pela empresa; desfrutavam de um moderno clube, banda de música, carrossel, pista de patinação e cinema; contavam com jornal, posto de correio, telefone, telégrafo e 459 quilômetros de estradas regionais, todas construídas por Delmiro; usufruíam de “oito” escolas (salas de aula) que, durante o dia, educavam as crianças e, à noite, alfabetizavam os adultos; além de outros benefícios8, disponibilizados para trazer civilização ao sertão.

A partir de agora, tudo estava consumado... Boa parte dos moradores teria de mudar, sabe-se Deus para onde e em

que condições. Ficariam sem as “conquistas” adquiridas e, o pior, perderiam o bem mais precioso legado por Delmiro: a escola.

A educação foi, desde os primeiros anos, uma exigência pessoal do cearense. Somente quem se propusesse e permitisse aos filhos estudar, poderia

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almejar trabalhar na empresa9. Nessa época, quem ousasse desobedecer, seria imediata e sumariamente expulso da comunidade.

Quando a fábrica de linhas foi vendida, ninguém percebeu ou entendeu, que a pior consequência foi a perda do direito de sonhar com um sertão melhor. Não tinham como saber que só a educação, que era oferecida sem custos e, de certa forma, a contragosto da maioria, poderia, um dia, lhes proporcionar as conquistas almejadas.

Nem a implacável e persistente seca regional havia conseguido atrapalhar os planos e a ousadia empresarial de Delmiro. Apesar dela, ele criou um império. Os problemas nunca foram apenas a seca e a pobreza, mas, sim, a ignorância, a falta de tecnologia, as benesses das elites, as vantagens difusas, as prebendas teimosamente enfrentadas e combatidas. Infelizmente, também os interesses capitalistas multinacionais, quando analisados isoladamente, prejudicaram e causaram mais danos que a inclemência do clima.

Como consequência, o sertão continuou a conviver com a conhecida “indústria da seca”, onde impera a política dos “peixinhos”.

Ao invés de o Estado distribuir as “varinhas de pescar” da educação, como pretendia Delmiro, preferiu a omissão. Com isso, proporcionou às elites a oportunidade de assumirem o poder absoluto, através de doações de “peixes” e do compartilhamento de esmolas, evidentemente fornecidas aos eleitores fiéis. Se algum desses coitados desobedecesse, o peixe nosso de cada dia era cortado e as famílias ficavam (e seguem ficando) à míngua.

No sertão, ninguém morre, diretamente, de fome ou sede. Morre-se, antes, de infinita tristura... Muito simples. Muito eficiente. Muito conveniente!...

Delmiro Gouveia nasceu no tempo certo, todavia no lugar improvável. Se tivesse vivido em outro país, seria hoje referência nos manuais de economia. Restou o lamento, lágrimas pela decisão de “matar” a fábrica de linhas e um profundo silêncio de quem viu o sonho terminar e a dura realidade sertaneja seguir em frente.

No mínimo, um selvagem crime de omissão...

*****

Após o acerto da documentação e outras exigências legais, em abril de

1930, dois inspetores da Machine Cottons recém-chegados da Escócia, partiram da cidade de Recife, acompanhados pelo diretor da empresa Epitáfio Gusmão10, para uma humilhante viagem marítima – na ata se lê que todas as despesas foram pagas pelos próprios brasileiros. Lentamente, navegaram na direção sul, adentraram a foz do rio São Francisco e alcançaram a centenária cidade de Penedo. Depois descansaram, trocaram de embarcação e seguiram pelo ”velho Chico“ até a cidade de Piranhas. Como, a partir daí, as serras de Tacaratu e Itaparica tornavam o rio encachoeirado, criando obstáculos intransponíveis à

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navegação, embarcaram por ferrovia, rumo à fábrica sertaneja no pequeno povoado de Pedra. Essa localidade – hoje a importante cidade Delmiro Gouveia – está encravada no extremo oeste do estado de Alagoas, em pleno polígono das secas, numa região pobre e castigada do nordeste brasileiro.

Tão logo chegaram, adentraram as instalações e tomaram de surpresa todos os operários, dentre eles Alfredízio Gomes de Menezes, ao qual, estupefato,

restou dramatizar11:

“(...) Eu estava trabalhando e vi quando três homens

chegaram (os dois ingleses e Epitáfio). Eles entraram,

chamaram os funcionários, mandaram que cada um pegasse

uma marreta e arrebentasse as máquinas da Fábrica. Os

funcionários obedeceram, mesmo sem entender nada, porque

era o patrão quem estava mandando e eles estavam ali pra

fazerem o que o patrão mandasse... Depois que as máquinas

estavam completamente destruídas, os ingleses e Epitácio

Gusmão providenciaram o transporte dos cacos quebrados

para as margens do São Francisco, a 24 quilômetros daqui, e

tudo foi atirado nas águas do rio. Ficaram ainda uns restos

de ferro velho amassados aí no pátio da fábrica, mas depois

ninguém soube mais onde foram parar... Ainda me lembro de

uma cena: quando os ingleses e Epitáfio Gusmão iam

chegando, Dona Virgínia (que era arrumadeira da Fábrica)

disse para os ingleses: ‘Os senhores compraram essas

máquinas?! O dono tinha tanto gosto por elas...’ Os ingleses

responderam sorrindo: ‘Nós também vamos ter muito gosto...’

Tudo isso aconteceu em silêncio, o povo daqui da cidade só

tomou conhecimento do ocorrido dois dias depois.”

Outras testemunhas confirmam o “faiscamento” do aço, por longos dias, nas paredes do talhadão do rio12. O suntuoso Rio da Integração Nacional, que tantos favores proporcionou (e ainda proporciona) aos nordestinos, também se prestou para lavar a insensatez dos homens desse tempo. Somente o insignificante setor têxtil foi preservado.

Até os dias atuais, as fábricas da Machine Cottons, beneficiadas pela destruição, ainda funcionam na região sul, sendo nacionalmente conhecidas pela produção das tradicionais linhas Corrente*.

Com o pagamento final, realizado pelos empresários escoceses, chegava ao fim uma era de realizações. Ao sertão restou a seca, a ignorância, a desesperança de sempre e uma lágrima de saudade.

* As “LINHAS CORRENTE”, hoje “COATS CORRENTE LTDA”, pertencem ao Grupo Coats

PLC. Veja informações completas na nota 2 no final.

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