dissertação flávio quinaud pedron - texto completo revisado

267
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Faculdade de Direito UMA PROPOSTA DE COMPREENSÃO PROCEDIMENTAL DO REQUISITO DE TRANSCENDÊNCIA/REPERCUSSÃO GERAL NO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DOS RECURSOS DESTINADOS AOS TRIBUNAIS SUPERIORES A PARTIR DA TESE DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE DWORKIN E DA TEORIA DISCURSIVA DO DIREITO E DA DEMOCRACIA DE HABERMAS Flávio Barbosa Quinaud Pedron Belo Horizonte Fevereiro de 2006

Upload: flavio-quinaud-pedron

Post on 22-Jan-2016

216 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de Direito

UMA PROPOSTA DE COMPREENSÃO PROCEDIMENTAL DO REQUISITO

DE TRANSCENDÊNCIA/REPERCUSSÃO GERAL NO JUÍZO DE

ADMISSIBILIDADE DOS RECURSOS DESTINADOS AOS TRIBUNAIS

SUPERIORES A PARTIR DA TESE DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE

DWORKIN E DA TEORIA DISCURSIVA DO DIREITO E DA DEMOCRACIA

DE HABERMAS

Flávio Barbosa Quinaud Pedron

Belo Horizonte

Fevereiro de 2006

Page 2: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

Flávio Barbosa Quinaud Pedron

UMA PROPOSTA DE COMPREENSÃO PROCEDIMENTAL DO REQUISITO

DE TRANSCENDÊNCIA/REPERCUSSÃO GERAL NO JUÍZO DE

ADMISSIBILIDADE DOS RECURSOS DESTINADOS AOS TRIBUNAIS

SUPERIORES A PARTIR DA TESE DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE

DWORKIN E DA TEORIA DISCURSIVA DO DIREITO E DA DEMOCRACIA

DE HABERMAS

Dissertação apresentado a Faculdade de Direito da

Universidade Federal de Minas Gerais, como

requisito parcial para obtenção do título de Mestre

em Direito Constitucional.

Orientador: Dr. Marcelo Andrade Cattoni de

Oliveira

Belo Horizonte

Fevereiro de 2006

Page 3: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

Flávio Barbosa Quinaud Pedron

“Uma proposta de compreensão procedimental do requisito de

transcendência/repercussão geral no juízo de admissibilidade dos recursos

destinados aos Tribunais Superiores a partir da Tese do Direito como

Integridade de Dworkin e da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de

Habermas”

Trabalho apresentado a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas

Gerais, Belo Horizonte, 2006.

____________________________________

Dr. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (Orientador) – FDUFMG

____________________________________

____________________________________

Page 4: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

À Lu,

pelo carinho, cumplicidade, amor e paciência

Aos meus avós, Tia Lene e meu pai,

pelo constante incentivo e pela esperança em mim depositada

Page 5: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, pela orientação firme e

crítica, pela confiança e pela amizade, pelos esclarecimentos e pelas correções ao longo do

meu processo aberto, inconcluso e sem fim de aprendizagem, principalmente, pela

apresentação das teorias de Dworkin e Habermas. Sem suas lições esse trabalho não seria

possível.

Ao Prof. Menelick de Carvalho Netto, pelas lições dentro e fora da

Faculdade de Direito da UFMG, além da interlocução sempre aberta, que muito enriqueceu o

processo de elaboração dessa pesquisa. Aos Professores José Alfredo de Oliveira Baracho,

José Alfredo de Oliveira Baracho Junior, Álvaro Ricardo de Souza Cruz e Marcelo Galuppo

pelas lições e pela oportunidade de interlocução.

Ao Alonso e ao Emílio, pela amizade e pela fraternidade intelectual que

dividimos, dentro e fora, da Academia. Aos amigos, Ana Paula, Francisco, José Emílio,

Fernando, Chaí, Lúcio e demais colegas e funcionários do programa de pós-graduação em

Direito da UFMG. Agradecimentos especiais aos colegas de monitoria, Rosa, Priscila,

Marcelo, Paula, Herbert, Lívia, Scotti e Alexandres, pelo aprendizado comum e pela amizade

que cultivamos. À Gabriela, ao Carlos e à Michelle pelas críticas e sugestões. À Rita, pelas

correções no texto. A todos que, de alguma forma, contribuíram para esta construção.

Aos meus “irmãos”, Arthur Martins e Vasco Vitarelli, pela amizade, pelo

ouvido atento, pelos conselhos, pelas piadas, pelas brincadeiras e pelas divagações.

À Lu, pelo sorriso carinhoso, pelo abraço apertado, pelos sonhos, pelos risos

e pelas lágrimas, pelos projetos e pelas conquistas e, sobretudo, pelo amor e pela amizade que

tomam conta de mim. Agradeço por me fazer querer ser sempre uma pessoa melhor.

Agradeço a Deus por você existir!

À minha família, meu pai, meus avós, minhas irmãs, Tia Lene, Tia Lete,

Dani, Fabinho, Felipe, Ian, Chris, Gustavo, Lê, Dé, Daniel, Guilherme, Larissa, Berenice e

Mauro, pelas lições de vida.

Ao CNPq pelo financiamento dessa pesquisa.

Page 6: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

A cada dia que vivo,

mais me convenço de que o

desperdício da vida

está no amor que não damos,

nas forças que não usamos,

na prudência egoísta que nada arrisca,

e que, esquivando-se do sofrimento,

perdemos também a felicidade...

(Carlos Drummond de Andrade)

O meu ideal político é a democracia,

para que todo o homem seja respeitado

como indivíduo e nenhum venerado (Albert Einstein)

Page 7: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

RESUMO

Como forma de tentar solucionar – ou pelo menos minimizar – o crescente aumento de

processos pendentes de julgamento no âmbito dos Tribunais Superiores, formam inseridos

requisitos de admissibilidade específicos para os recursos de revista e recursos

extraordinários, respectivamente, pela Medida Provisória n. 2.226/2001 e pela Emenda

Constitucional n. 45/2004. Esses requisitos, conforme a leitura da dogmática tradicional,

levantam uma exigência de o conhecimento desses recursos ser condicionado à um prévio

exame que averigúe se a questão discutida ultrapassaria o âmbito de interesse individual das

partes processuais. A presente pesquisa destina-se a fornecer uma análise reconstrutiva desses

requisitos a partir de uma compreensão procedimental do Direito, com base em Dworkin e em

Habermas, a fim de refletir sobre a adequação da leitura da dogmática tradicional a essa

compreensão.

ABSTRACT

As a way to try to solve – or at least minimize – the increasing number of proceedings

pending judgment at level of the Superior Courts, specific requirements of admissibility were

introduced for the review appeals and appeals to Supreme Court, respectively, through

Provisory Order n. 2.226/2001 and through Constitutional Amendment n. 45/2004. These

requirements, according to the reading of the traditional legal theorie, raise a requirement that

the knowledge of these appeals be conditioned to a previous examination that verifies if the

matter discussed would surpass the field of an individual interest of the parties in the

proceeding. This current research aims at supplying a reconstructive analysis of the

requirements starting from a procedural understanding of the Law, based on Dworkin and on

Habermas, so as to contemplate on the appropriateness of the reading of the traditional legal

theorie as related to this understanding.

Page 8: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................... 10

1 – A “CRISE DO JUDICIÁRIO” E AS MEDIDAS DE CONTENÇÃO: UMA ANÁLISE DOS MECANISMOS DESTINADOS A DIMINUIR O NÚMERO DE RECURSOS ENDEREÇADOS AOS TRIBUNAIS SUPERIORES.............................. 16

1.1 A “crise do Judiciário” e a necessidade de diminuição de recursos destinados aos Tribunais Superiores........................................................................................................ 17

1.2. A Medida Provisória n. 2.226/2001 e a ADI n. 2.527-9 proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil................................................................... 36

1.2.1. A transcendência como requisito de admissibilidade do recurso de revista perante o TST: transcendência econômica, política, social e jurídica............................. 36

1.2.2. Argumentação desenvolvida pela petição inicial do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil................................................................................................. 41

1.3. A argüição de relevância, argüição de transcendência e repercussão geral da questão constitucional: apenas uma troca de etiquetas?.................................................. 46

2 – O ATENDIMENTO DO INTERESSE PÚBLICO REPRESENTA UMA CONDIÇÃO DE ADMISSIBILIDADE ESPECÍFICA ADEQUADA PARA OS RECURSOS DESTINADOS AOS TRIBUNAIS SUPERIORES?................................. 61

2.1. Linhas gerais sobre o instituto processual do recurso a partir do olhar da dogmática jurídica............................................................................................................ 63

2.1.1. O recurso e o devido processo legal: uma garantia constitucional?....................... 63

2.1.2. Recursos Ordinários e Extraordinários: a dicotomia questões de fato/questões de direito como critério distintivo na teoria dos recursos................................................ 73

2.2. Uma crítica à compreensão da dogmática processual quanto à finalidade dos recursos destinados aos Tribunais Superiores.................................................................. 80

2.3. O atendimento do interesse público como condição de conhecimento dos recursos para Tribunais Superiores................................................................................................ 89

2.3.1. O dogma da supremacia do interesse público e seu abrandamento pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: a técnica da ponderação de interesses..... 91

2.3.2 – Direitos e Interesses: (re)pensando a relação para além de uma compreensão semântica.......................................................................................................................... 110

Page 9: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

3 – UMA PROPOSTA DE COMPREENSÃO DO CRITÉRIO DE RELEVÂNCIA/TRANSCENDÊNCIA NO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DOS RECURSOS DESTINADOS AOS TRIBUNAIS SUPERIORES A PARTIR DA TESE DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE DWORKIN..................................... 118

3.1. O giro lingüístico e a compreensão da dimensão pragmática da linguagem jurídica............................................................................................................................. 118

3.2. A Tese do Direito como Integridade de Dworkin..................................................... 133

3.2.1. O problema da divergência teórica sobre o Direito: a proposta de uma compreensão do Direito a partir de uma interpretação construtiva.................................. 133

3.2.2. A tese da única “resposta correta”: o Juiz Hércules, o Romance em Cadeia e a Comunidade de Princípios............................................................................................... 150

3.2.3. Uma resposta dworkiana ao problema dos requisitos de admissibilidade da “transcendência” e da “repercussão geral” nos recursos destinados aos Tribunais Superiores: levando a sério a relação entre princípios e diretrizes políticas.................... 162

CAPÍTULO 4 – UMA PROPOSTA DE COMPREENSÃO PROCEDIMENTAL DO CRITÉRIO DE TRANSCENDÊNCIA/REPERCUSSÃO GERAL NO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DOS RECURSOS DESTINADOS AOS TRIBUNAIS SUPERIORES A PARTIR DA TEORIA DISCURSIVA DO DIREITO E DA DEMOCRACIA DE HABERMAS................................................................................. 172

4.1. Um novo olhar sobre a questão da racionalidade: a racionalidade comunicativa..... 172

4.2. O Direito como um dos mecanismos de garantia da integração social: a mediação da tensão entre facticidade e validade.............................................................................. 181

4.3. A formação do sistema de direitos a partir de uma compreensão de eqüiprimordialidade entre autonomia pública e autonomia privada e a reconstrução dos princípios informadores do Estado de Direito........................................................... 189

4.4. A contribuição e os limites da teoria de Günther: a distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação como fundamento para uma reconstrução da função jurisdicional.......................................................................................................... 209

4.5. Uma resposta habermasiana ao problema dos requisitos de admissibilidade da “transcendência” e da “repercussão geral” nos recursos destinados aos Tribunais Superiores: adequabilidade da decisão à luz de um sistema coerente de princípios jurídicos............................................................................................................................ 222

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................... 230

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................. 247

Page 10: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

10

INTRODUÇÃO

É muito comum a afirmação de que existe uma “crise” no Poder Judiciário,

resultante da impossibilidade operacional daquele órgão julgar todos os casos que lhe são

apresentados. Desse modo, haveria um resíduo, cada vez maior, de demandas não julgadas,

que congestionam as vias judiciárias, impedindo o julgamento de novas causas dentro dos

prazos fixados na legislação processual. Todavia, as reclamações quanto ao acúmulo de

processos pelo Judiciário, principalmente no âmbito de seus Tribunais Superiores, tem sido

registradas desde o início da República, com a criação do Supremo Tribunal Federal (STF),

órgão que primeiro sentiu o fenômeno.

Por isso mesmo, ao longo da história institucional brasileira, diversas

formam as medidas tomadas na tentativa de solucioná-la. Muitas medidas, portanto, se

pautaram pela via da especialização da jurisdição como forma de “desafogar” o STF. Foi o

caso da Justiça Eleitoral, de um contencioso administrativo do trabalho e do Tribunal Federal

de Recursos (TFR), por exemplo. Porém, com o Regime Militar de 64, seguiram-se medidas

apoiadas em razões de natureza bem mais pragmática, o que suscitou, inclusive,

questionamentos quanto à sua juridicidade: (a) uma alteração no regimento do STF

considerou como prejudicadas as causas que há mais de dez anos aguardavam julgamento, se

após convocação, não houvesse manifestação das partes; (b) foi introduzido no Direito

brasileiro o controle concentrado de constitucionalidade (Emenda Constitucional n. 16), por

meio da representação de inconstitucionalidade, capaz de solucionar controvérsias sobre a

constitucionalidade de uma norma abstrato; e, principalmente, (c) a argüição de relevância da

questão federal, que condicionou o conhecimento do recurso à demonstração de reflexos na

ordem jurídica, moral, econômica e social, que seriam julgados em seção secreta, ausente

qualquer forma de motivação e irrecorrível.

Após a Constituição da República de 1988 (CR/88), com a (re)abertura

democrática, a tônica das mudanças voltou a ser a busca por especializações nos processos de

aplicação do Direito: a criação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), assumindo a “guarda”

do Direito infraconstitucional e os juizados especiais, destinados a receber demanda de menor

complexidade, com franco incentivo a conciliação de conflitos. Só que agora, a idéia de

“crise” não mais estava restrita ao STF, tendo se alastrado para todo o Judiciário. Por isso

mesmo, uma série de medidas foram tomadas buscando por meio de alterações na legislação

processual solucionar o problema.

Page 11: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

11

Dentro da enorme constelação de alterações propostas, deve-se mencionar

duas em particular: (a) a Medida Provisória n. 2.226/01 criou o requisito da transcendência,

como condição de conhecimento do Recurso de Revista. Seu objetivo é o de funcionar como

um filtro de seleção de recursos, através da demonstração pelo recorrente de que aquela causa

transcende – econômica, política, social ou juridicamente – os limites do caso concreto e do

interesse privado das partes processuais, de modo que os Tribunais poderiam negar-se a

conhecer as “causas menos importantes e repetitivas”, segundo seus defensores (MARTINS

FILHO, 2000; SILVA, 2001); e (b) a Emenda Constitucional n. 45/2004, ao disciplinar a

figura do recurso extraordinário, determinou a necessidade de se demonstrar a repercussão

geral das questões constitucionais discutidas no caso (art. 102, §3.o),1 como um requisito de

admissibilidade.2

Segundo diversos teóricos, o raciocínio de ambos os institutos seriam

equivalentes. Essa afirmação impulsiona a presente investigação, mas, deixa-se claro, que

trata-se de questão que análise pormenorizada, não podendo ser validade, sem maiores

questionamentos. Isso porque a leitura de qualquer instituto jurídico, deve-se pautar nas bases

de um Estado Democrático de Direito – forma de legitimação do poder político moderno –,

que segundo Habermas (1998; 1996b), apresenta diversas leituras ao longo do tempo. Dentre

essas leituras, está a procedimental, que pretende manter tensionada a facticidade e a validade

inerentes ao Direito moderno. A partir dessa nova proposta, deve-se compatibilizar

provimentos – decisões estatais de caráter imperativo de natureza legislativa, administrativa

ou jurisdicional (FAZZALARI, 1996:7; GONÇALVES, 2001:102-103) – que sejam, ao

mesmo tempo, coercitivos e legítimos (HABERMAS, 1998:88-89). A condição de validade

(legitimidade) de uma norma jurídica, então, descansa sobre um processo que se abre para a

possibilidade de que os seus destinatários também possam se assumir como seus co-autores

(HABERMAS, 1998:96). Dessa forma, uma compreensão procedimental do Direito abre-se

para uma dimensão comunicativa.

Mas já aqui, pode-se constatar um problema: o grande número de recursos

representava uma ameaça à segurança jurídica – entendida pela dogmática tradicional como

previsibilidade –, pois a multiplicidade de interpretações sobre o Direito, quer provinda do

Estado – dos diversos magistrados, dos legisladores e dos administradores públicos – quer 1 “Art. 102. [...] § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões

constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.

2 A Emenda Constitucional n. 45/2004 foi também abriu a possibilidade do STF publicar súmulas de efeito vinculante (art. 103-A). Todavia, a análise e crítica desse instituto escapa ao objeto que a presente pesquisa pretende analisar.

Page 12: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

12

existente na sociedade, era compreendida como um como um risco de dissenso, e por isso

mesmo, deveria ser eliminado a todo custo, justificando, à luz de uma racionalidade

meramente instrumental – adequação de meios a fins –, a autorização para lançar mão das

razões mais variadas, desde que se mostrassem eficientes. Assim, o problema a ser pesquisado

deve se deslocar para situar a análise dos requisitos de “transcendência” e de “repercussão

geral”, como critérios de admissibilidade para o recurso de revista e recurso extraordinário,

respectivamente, a partir de uma leitura que seja adequada a compreensão procedimental do

Direito e não, apenas, a dimensão instrumental da racionalidade.

Um primeiro passo é suspender a validade da afirmação de que os requisitos

recursais da “transcendência” e da “repercussão geral” destinam-se a funcionar como um

critério eficiente de exclusão de causas de “menor importância” – isto é, processos cujas

decisões supostamente interessariam aos litigantes, não tendo o condão de ultrapassar a esfera

do interesse privado desses – somente confirmando-a (ou negando-a) após uma reconstrução

crítica.

Outra questão importante tem seu desenvolvimento no fato de que o Texto

Constitucional, ao disciplinar a figura da “repercussão geral” para o recurso extraordinário,

não apresentou qualquer critério – remetendo essa tarefa ao legislador ordinário –, o que levou

a dogmática jurídica tradicional a interpretar o instituto à semelhança do requisito de

“transcendência” para o recurso de revista e mais, equiparar ambos à antiga argüição de

“relevância” e a entender pela existência de uma abertura semântica que deverá ser

solucionada pelos ministros do TST ou do STF, ao apreciar a questão (MARTINS FILHO,

2000:56; MATTIOLI, 2001:138). Essa apreciação, então, dar-se-ia por meio de um juízo

discricionário, que seria condição fundamental para que atinja se a finalidade buscada – qual

seja, a de permitir a filtragem de recursos cuja matéria não possa ser classificada como

imprescindível para o atendimento do interesse público. Esses defensores buscam, ainda,

fundamentar essa discricionariedade em uma suposta “natureza política” da decisão, norteada

pelo atendimento de um “bem comum” ou um “interesse público” maior.

Sendo assim, novas questões emergem. A primeira delas, indaga se, no

marco do paradigma procedimental do Direito, cabe, ainda, afirmar a possibilidade de decisão

discricionária por parte do magistrado. Como desdobramento, pode-se indagar, também, sobre

a possibilidade desse mesmo magistrado ter liberdade para decidir, inclusive com base em

razão extrajurídicas, para a seleção de causas que atendam ao “interesse público”.

E mais, o que se pode considerar como interesse público e qual relação este

estabelece com o interesse privado? Já que é supostamente a afirmação de que o interesse

Page 13: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

13

privado deve se curvar ao interesse público, que justifica essa nova lógica de admissibilidade

recursal. Todavia, será que esse axioma muito presente nos manuais de Direito

Administrativo ainda encontra respaldo na jurisprudência do STF?

Segundo alguns constitucionalistas, seria possível identificar uma

relativização desse dogma que estaria embasada na utilização do “princípio” da

proporcionalidade, muito difundido na doutrina constitucional alemã. Mas ainda cabe um

questionamento quanto à adequabilidade desse “critério” a uma leitura procedimental do

Direito.

Uma vez que a analise das soluções trazidas pela dogmática tradicional se

mostram inadequadas ao paradigma procedimental do Direito, a presente pesquisa pretende

apresentar uma proposta de compreensão procedimental do requisito de

transcendência/repercussão geral no juízo de admissibilidade dos recursos destinados aos

Tribunais Superiores a partir da tese do Direito como integridade de Dworkin e da Teoria

Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas.

Para tanto, o primeiro capítulo tem início com uma reconstrução da

compreensão de “crise do Judiciário” existente na dogmática tradicional, bem como de um

panorama geral das medidas aplicadas, desde o início da República até a atualidade, para sua

solução (1.1). Na seqüência, passa-se para a análise dos requisitos de admissibilidade da

“transcendência” para o recurso de revista (1.2) e da “repercussão geral” para o recurso

extraordinário (1.3), como medidas-modelo recentes para a diminuição de causas pendentes

de julgamentos nos Tribunais Superiores. Segundo essa dogmática, ambos os institutos

poderiam ser compreendidos a partir da mesma lógica apresentada na “argüição de

relevância”, no Regime Militar. Todavia, contata-se que essa compreensão não se dá à luz de

uma perspectiva procedimental do Direito.

No capítulo 2, procurou-se identificar os problemas presentes na defesa de

um requisito de admissibilidade recursal que levante uma exigência de demonstração de que a

causa a ser julgada apresente aspectos que ultrapassam o prisma do direito individual das

partes. Nesse sentido, é importante uma compreensão do processo distanciado do paradigma

do Estado Social, que consagrou o processo como espécie de relação jurídica entre juiz, autor

e réu. À luz de uma compreensão procedimental, novas propostas teóricas aparecem, como a

teoria de Fazzalari, bem como a possibilidade de pensar o processo a partir dos pressupostos

trazidos pela Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas (2.1). Além disso, o

processo, hoje, encontra-se estruturado por princípios que fornecem um modelo constitucional

de processo, assegurado pela garantias da ampla defesa, contraditório, fundamentação das

Page 14: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

14

decisões e, também, do direito ao recurso. Por isso mesmo, o recurso não se apresenta como

uma anormalidade no curso do processo, mas um prolongamento natural do mesmo,

organizado normativamente. Um estudo sobre a finalidade atribuída aos recursos destinados

aos Tribunais Superiores é, então, demanda para uma compreensão adequada dos mesmo

(2.2). Todavia, ainda que se defenda que tais recursos se prestam a “guarda” da Constituição e

das normas infraconstitucionais, exclusivamente, não se pode negar o fato de que eles se

desenvolvem a partir de uma controvérsia jurídica: há uma alegação de lesão ou ameaça de

lesão a direito por parte da parte recorrente que não pode ser desconsiderada. Por isso mesmo,

decorre a impossibilidade de exigência de que a todo recurso julgado pelos Tribunais

Superiores, haja a demonstração de que a causa ultrapassa o limite do interesse das partes,

alcançando um “interesse público” (2.3).

A teoria de Dworkin, então, se mostra importante para uma compreensão

procedimental adequada desses requisitos de admissibilidades, sendo reconstruída no capítulo

3. A partir de seu estudo, podem-se levantar argumentos contra a tese da discricionariedade

judicial na seleção do que seja um “interesse público”. Além disso, a própria noção de

integridade é importante para lançar uma nova leitura desses requisitos; a obediência à

integridade do Direito pode nortear uma leitura no sentido de que tais requisitos não podem

ser refutados como questões preliminares, mas, na realidade, demandariam para sua

constatação um exame do mérito. Todavia, Günther (1995) apontará algumas limitações a

uma leitura procedimental da teoria dworkiana.

Por isso mesmo, o quarto e último capítulo assume a tarefa de proceder a

uma reconstrução da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas, que se

apresenta como a leitura mais adequada para o paradigma procedimental do Direito. A

constatação da tensão entre facticidade e validade no interior do direito levanta exigências de

legitimidade para a tomada de decisão jurídica. Günther, ainda, apresenta uma importante

contribuição ao diferenciar discursos de justificação (legislação) de discursos de aplicação do

direito. Esse aparato teórico, então, será fundamental para recolocar as conclusões atingidas,

já com base na teoria dworkiana. Nesse prisma, os requisitos de “transcendência” e

“repercussão” geral em nada inovam a sistemática já traçada no ordenamento jurídico, apenas

reforçando a necessidade de articulação da pretensão recursal com uma compreensão do

Direito a partir de um sistema coerente de normas. Além disso, Habermas irá situar em planos

equiprimordiais a autonomia pública e a autonomia privada, de modo que em toda causa, por

mais privada que seja, há uma controvérsia versando sobre o direito que, por si só, aponta

Page 15: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

15

para um interesse público no sentido de garantia dos princípios processuais contidos no

modelo constitucional de processo.

Page 16: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

16

CAPÍTULO 1 – A “CRISE DO JUDICIÁRIO” E AS MEDIDAS DE CONTENÇÃO: UMA

ANÁLISE DOS MECANISMOS DESTINADOS A DIMINUIR O NÚMERO DE RECURSOS

ENDEREÇADOS AOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Ao longo da história institucional brasileira, é comum encontrar a afirmação

de que o Poder Judiciário se encontra em uma crise cuja causa se deve principalmente ao

grande número de processos pendentes de julgamento perante os Tribunais Superiores.

Devido a isso, diversos foram os mecanismos desenvolvidos a fim de solucionar esse

problema.

É justamente esse ponto que pretende ser reconstruído no presente capítulo,

iniciando-se pelo desenvolvimento histórico da noção dessa “crise” do Judiciário, que começa

no Supremo Tribunal Federal (STF) para depois se alastrar para os demais órgãos. Entretanto,

uma reconstrução acaba por identificar que a questão é muito mais complexa do que um

exame superficial é capaz de perceber. À luz dos pressupostos que a Teoria Discursiva do

Direito e da Democracia de Habermas traz, o conceito de crise pode ser mais bem

compreendido. A partir dessa abordagem teórica, pode-se formular uma primeira hipótese: a

“crise” não é exclusiva do Poder Judiciário, mas se mostra como algo interno a todo o Direito.

Um olhar para além das paredes do praetorium revela que a “crise” é uma decorrência natural

do advento da Modernidade, por isso o raciocínio deve ser inverso, não no sentido de sua

eliminação, mas voltado a sua conservação.

Um pressuposto para tanto é, então, uma releitura do Estado Democrático de

Direito – entendido como condição de legitimação do poder político moderno – a partir da

reconstrução de seus três paradigmas: o paradigma do Direito formal burguês ou paradigma

do Estado Liberal, o paradigma do materializante do Direito ou paradigma do Estado Social e

o paradigma procedimental do Direito.

Aliado a isso, deve-se lembrar que o Direito representa um dos muitos

subsistemas sociais existentes na sociedade moderna. Ele é aberto a uma racionalidade

comunicativa e se expressa através de uma tensão entre facticidade e validade, de modo a

demandar, de um lado, decisões coercitivas e, de outro, que as mesmas sejam legítimas.

Todavia, essa legitimidade pode ser minada em razão do desalojamento da racionalidade

comunicativa através das pressões exercidas pelos imperativos funcionais do Mercado e do

Mundo Administrado.

Page 17: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

17

Por isso mesmo, é possível identificar pontos de influência do sistema

econômico , por exemplo, a partir das diretrizes formuladas pelo Banco Mundial não só para o

Judiciário brasileiro, mas para toda a América Latina. Em seus documentos, o Banco Mundial

deixa claro que seu interesse é a (re)construção de um sistema judicial fundado nos pilares da

previsibilidade de decisões e na garantia da obrigatoriedade dos contratos. Além do mais,

conforme a ótica econômica, o Direito deve ser aplicado de maneira eficiente, ficando para

segundo plano questões referentes à legitimidade. Esse raciocínio favorece, portanto, a

concentração das decisões nos Tribunais Superiores, principalmente por mecanismos como a

súmula vinculante ou os instrumentos de seleção de causas julgadas pelos Tribunais

Superiores. Isso permitiria, em tese, uma diminuição no volume de julgados, uma vez que os

Tribunais poderiam negar a apreciação de causas “menos importantes”.

Sobre esse último ponto, ao longo da história institucional, ganha destaque o

instituto da “argüição de relevância” durante o curso do Governo Militar. Esse instituto foi

considerado de tal forma eficiente, que é novamente ressuscitado na forma da “argüição de

transcendência” para o Recurso de Revista (Medida Provisória n. 2.226/01) e, posteriormente,

como a “repercussão geral das questões constitucionais discutidas” em sede de Recurso

Extraordinário (Emenda Constitucional n. 45/2004), conforme a leitura de alguns juristas.

Todavia, na presente pesquisa, discorda-se desse entendimento, o que demanda uma análise

reconstrutiva desses três institutos a fim de se perquirir sobre a possibilidade de uma

interpretação constitucionalmente adequada ao paradigma procedimental do Estado

Democrático de Direito.

1.1. A “crise do Judiciário” e a necessidade de diminuição de recursos destinados aos

Tribunais Superiores

A afirmação da existência de uma “crise” no Poder Judiciário brasileiro não

é nova e, antiteticamente, parece acompanhar a história dessa instituição como uma constante.

A surpresa se revela mais clara, todavia, quando se tem em mente que a palavra crise tem sua

origem na palavra grega krísis, tão comum no vocabulário médico. Representaria, então, um

estágio súbito no curso de uma determinada patologia, que coloca em dúvida os poderes de

autocura do organismo afetado. Daí, pode-se compreender o significado de crise como uma

“força objetiva, que priva um sujeito de alguma parte da sua soberania normal”

Page 18: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

18

(HABERMAS, 2002:12). Mas, se uma outra compreensão do termo for procurada, é possível

encontrar referência no campo estético, principalmente na literatura. Nesse caso, a crise

adquire o significado de uma encruzilhada que permanece como perspectiva interna à

identidade das pessoas que lutam por uma salvação, ou seja, o sujeito tem de se debater

internamente em razão de um conflito normativo que vai de encontro à sua identidade.

Transportando esse conceito para as ciências sociais, pode-se encontrar menções ao conceito

teórico sistêmico de crise, fornecido por Habermas: Conforme esta perspectiva sistêmica, as crises surgem quando a estrutura de um sistema social permite menores possibilidades para resolver o problema do que são necessárias para a contínua existência do sistema. Neste sentido, as crises são vistas como distúrbios persistentes da integração do sistema (2002:13). As crises em sistemas sociais são, portanto, o resultado de uma

incompatibilidade dos imperativos funcionais inerentes a cada sistema. Mas, para melhor

compreender essa afirmativa, faz-se necessário identificar quais dentre os imperativos

funcionais são essenciais para a manutenção da identidade de um dado sistema.

Segundo Buzaid (1972:144), a idéia de crise do Judiciário está ligada a um

desequilíbrio entre o aumento do número de demandas ajuizadas e o número de julgamentos

proferidos. Em razão do maior número de demandas propostas em face do número de

julgados, tem-se um acúmulo de demandas que se sedimentam, congestionando o fluxo

normal da tramitação processual e prejudicando a observância regular pelo Poder Judiciário

dos prazos processuais fixados na legislação processual brasileira.

Dentro da problemática traçada nesta pesquisa, a questão acima adquire uma

forma específica, uma vez que tal identificação depende da compreensão adequada da função

que deverá ser assumida pelo sistema do Direito na sociedade moderna – tarefa a ser

respondida no quarto capítulo1. Dessa forma, a proposta lançada no presente tópico é

identificar como a “patologia” que assola o Judiciário brasileiro foi percebia ao longo do

transcurso histórico, bem como quais foram as medidas tomadas até agora para sua superação.

Em seguida, proceder-se-á a uma reconstrução paradigmática a fim de avaliar se as atuais

medidas de contensão da “crise” se mostram não apenas eficazes, mas adequadas ao atual

paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito.

1 Ao fazer referência ao sistema do Direito, o presente estudo se apóia nos trabalhos desenvolvidos por

Habermas, principalmente, em sua obra Facticidade y Validez (1998). Contudo, não se pode furtar a menção aos estudos de Luhmann sobre os sistemas sociais, inclusive o sistema do Direito. Para tanto, ver LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedade. Trad. Javier Torres Nafarrate. México: Universidad IberoAmericana, 2002. (Colección Teoria Social). É, contudo, oportuno esclarecer que as divergências habermasianas sobre a teoria de Luhmann não serão objeto de discussão.

Page 19: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

19

As raízes históricas da “crise” podem ser identificadas ao longo do

desenvolvimento da República, sendo o Supremo Tribunal Federal (STF) o órgão que

primeiro a percebeu2 através do Decreto n. 20.889, de 23 de novembro de 1931, que fixava o

número obrigatório por semana de seções de julgamento, até que fosse esgotada a pauta das

causas judiciais já marcadas (BUZAID, 1972:145). Nessa época, o número de feitos não

atingia a casa anual de duzentos,3 mas as pautas, que não se esgotavam, já representavam uma

preocupação, o que levou os estudiosos a afirmarem a existência de uma “crise no Supremo

Tribunal Federal”.4

Com a Constituição de 1934, acreditou-se que a criação da Justiça Eleitoral,

da Justiça Militar e de um mecanismo administrativo de resolução de contenciosos ligados à

matéria trabalhista representasse uma solução para o problema enfrentado pelo STF. Além

disso, o art. 76, 2, III, do Texto Constitucional, ao disciplinar a figura do recurso

extraordinário,5 traçou contornos mais próximos dos atualmente existentes – a pesar de ainda

não haver recebido a nomenclatura atual. Ao utilizar o termo julgar ao invés da expressão

consagrada no Texto Constitucional anterior (haverá recurso), ficou encerrada uma discussão

existente em razão do novo art. 76,6 entendendo-se que o STF não funcionaria como uma

corte de cassação – que anularia as decisões proferidas pelos órgão inferiores e determinaria

2 Criado pelo decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890, o Supremo Tribunal Federal seguiu os moldes do modelo

norte-americano, tendo suas atribuições definidas pela Constituição de 1891, de forma a caber-lhe o papel de defesa da unidade e autoridade da Constituição e das leis federais (VILLELA, 1986:236).

3 As referências estatísticas apresentadas baseiam-se no texto de Alfredo Buzaid (1972:145), que, por sua vez, baseia-se nos Arquivos do Ministério da Justiça, vol. 16, pág. 37.

4 Todavia, conforme Almeida Santos (1989:122), durante a reforma constitucional de 1926, uma proposta para diminuição de julgados já havia sido feita, mas não materializada: limitar o cabimento dos recursos extraordinários – previstos inicialmente sem essa nomenclatura – apenas às hipóteses de questionamento sobre vigência ou validade das leis federais em face da Constituição, excluindo, assim, a possibilidade de questionamento da aplicação errônea da lei.

5 O instituto do recurso extraordinário, bem como os demais recursos destinados a Tribunais Superiores serão objeto de análise mais aprofundada no capítulo 2, razão pela qual, não será apresentado agora um aprofundamento maior. Mesmo assim, já se indica a leitura da pesquisa feita por Bahia (2003:331), que, em sua dissertação de mestrado em direito constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (FDUFMG), reconstrói o instituto com vistas ao paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito.

6 A Constituição da República de 1934, ao estabelecer a competência do STF, assim dispôs: “Art. 76 - A Corte Suprema compete: [...] III - em recurso extraordinário, as causas decididas pelas Justiças locais em única ou última instância: a) quando a decisão for contra literal disposição de tratado ou lei federal, sobre cuja aplicação se haja questionado; b) quando se questionar sobre a vigência ou validade de lei federal em face da Constituição, e a decisão do Tribunal local negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato dos Governos locais em face da Constituição, ou de lei federal, e a decisão do Tribunal local julgar válido o ato ou a lei impugnada; d) quando ocorrer diversidade de interpretação definitiva da lei federal entre Cortes de Apelação de Estados diferentes, inclusive do Distrito Federal ou dos Territórios, ou entre um destes Tribunais e a Corte Suprema, ou outro Tribunal federal”. Diferentemente é o Texto Constitucional anterior: “Art. 59 - Ao Supremo Tribunal Federal compete: [...] II - julgar, em grau de recurso, as questões resolvidas pelos Juízes e Tribunais Federais, assim como as de que tratam o presente artigo, § 1º, e o art. 60”.

Page 20: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

20

que os mesmos proferissem outra substituta – e optando-se pelo modelo da corte de revisão,

de modo que seus ministros teriam poderes para reexaminar toda a matéria, aplicando o

direito a um determinado caso em litígio, o que, operacionalmente, poderia representar uma

diminuição dos trabalhos do Tribunal. Essa polêmica já é suficiente para caracterizar uma

preocupação sobre o acúmulo de serviço mesmo quando os feitos endereçados ao STF

somavam anualmente 800, sendo 286 o número de recursos extraordinários propostos

(NAVES, 2001:11). Uma tentativa encontrada para agilizar os julgamentos foi a divisão do

Tribunal em turmas de cinco juízes, por meio do Decreto-lei n. 6, de 16 de novembro de 1937.

Outras medidas “desafogadoras” do STF foram, então, tomadas nos anos

posteriores: (1) a Constituição de 1946 criou o Tribunal Federal de Recursos (TFR),

substituindo o STF como segunda instância para as causas de interesse da União; (2) a Lei n.

3.396/58, que alterou os artigos 864 e 865 do Código de Processo Civil, determinando a

necessidade de fundamentação das decisões do Presidente do Tribunal a quo que admitem ou

denegam recurso extraordinário – o que possibilitou a denegação do recurso, não apenas

segundo critérios formais de admissão; e (3) em 1963, por influência do Min. Nunes Leal, o

STF aprovou suas primeiras súmulas de jurisprudência dominante (370 verbetes ao todo),

visando a externar a posição majoritária do Tribunal para que a mesma fosse seguida pelos

demais órgãos do Poder Judiciário.

Foi sobretudo a partir de 1964 que medidas pautadas mais em razões

meramente pragmáticas para solucionar a “crise do Supremo Tribunal Federal” ganharam

destaque: (1) através da alteração do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal

(RISTF), foram consideradas prejudicadas todas as causas pendentes de julgamento há mais

de dez anos, caso não houvesse manifestação expressa das partes após convocação; (2) a

introdução do controle concentrado de constitucionalidade, por meio da Emenda

Constitucional n. 16, consagrando o instituto da representação de inconstitucionalidade de lei

ou ato normativo federal ou estadual, quando encaminhada pelo Procurador Geral da

República;7 e por fim, através da Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969, (3) a

argüição de relevância da questão federal, condicionando para o conhecimento do recurso a

7 Segundo parte da doutrina constitucional brasileira, com destaque às lições do Min. Gilmar Mendes (2004:263,

2002:01), a introdução do controle concentrado de constitucionalidade, pautado no modelo europeu, representaria uma evolução para o sistema brasileiro, substituindo a “obsoleta” técnica de decisão caso a caso, caracterizadora do sistema difuso, por uma técnica de decisão em tese, que, devido aos efeitos erga omnes, seria capaz de abranger mais situações concretas através da discussão do que seria um processo objetivo e que garantiria não somente um desafogamento do STF, como ganhos em segurança jurídica. Tais ganhos são ainda ressaltados após a publicação da Lei n. 9.868/99 e da Lei n. 9.882/99, que inovaram quanto à possibilidade de modulação dos efeitos temporais e pessoais e de concessão dos mesmos efeitos em sede de medida liminar, determinando a suspensão de causas que tramitem na primeira e segunda instância.

Page 21: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

21

demonstração de reflexos na ordem jurídica e aspectos morais, econômicos, políticos ou

sociais da causa, julgados como um incidente prévio ao conhecimento do recurso

extraordinário em seção secreta e irrecorrível.8

Com o movimento de redemocratização, consagrado na Constituição da

República de 1988, modificações sensíveis puderam ser notadas no tocante à preocupação em

não sobrecarregar o STF. A principal modificação foi a criação do Superior Tribunal de

Justiça (STJ), cuja atribuição seria a de “guardião” da legislação federal, deixando ao STF a

atribuição de proteção da esfera constitucional. A Carta Magna, contudo, deixou de consagrar

o polêmico requisito da argüição da relevância para os recursos extraordinários.

Com a nova Constituição, ainda se tinha a idéia de que a “crise” persistia

mesmo com a criação do STJ. E não se tratava mais de uma endemia restrita ao âmbito do

Supremo Tribunal Federal, mas que rapidamente havia se alastrado aos demais órgãos do

Poder Judiciário, o que conduzia à constatação de que havia uma “crise” não somente no STF,

mas uma crise generalizada em todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro. Dados

estatísticos acusam que, após um ano de sua criação, o STJ recebeu 14.087 processos para

julgamento, conseguindo decidir apenas sobre 11.742.9 O mesmo aconteceu com o Tribunal

Superior do Trabalho (TST), que, no mesmo período, julgou 20.473 processos.10 Contudo, tal

problema não é restrito à realidade dos Tribunais Superiores. A primeira instância –

englobando tanto as Justiças Estadual e Federal, Comum e Especiais – recebeu, em 1990,

5.117.059 causas, sentenciando apenas 3.637.152.11

8 Mesmo com o desrespeito explícito ao princípio do devido processo legal, como denuncia Calmon de Passos

(1977:13), diversos juristas, seguindo a linha de raciocínio do Min. Nunes Leal, consideram a argüição de relevância da questão federal um instrumento mais eficiente para diminuir o número de recursos, defendendo o seu retorno ao Direito brasileiro com aplicação não apenas para o recurso extraordinário, mas estendida ao recurso especial e ao recurso de revista, por considerarem ideal o modelo de jurisdição discricionária da Suprema Corte norte-americana (NAVES, 2001; MARTINS FILHO, 2000; GOMES, 2001, MANCUSO, 2003; SILVA, 200; MATTIOLI, 2001, entre outros). Ao longo da presente pesquisa, objetiva-se demonstrar que a noção de efetividade – principal argumento dos defensores de tal instrumento, na realidade, pauta-se no modelo de racionalidade instrumental (teleológico) weberiano – adequação dos meios a um fim determinado – sem, contudo, observar a dimensão comunicativa existente na linguagem, voltada à garantia da legitimidade do Direito.

9 Conforme valores fornecidos pelo Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário – disponíveis em <http://www.stf.gov.br/bndpj/tribunaissuperiores/STJ3A1.asp>, é possível perceber que a atuação do STJ, após o ano de 1996, tem sido sempre no sentido de julgar mais demandas do que o montante que lhe é distribuído. Todavia, esse diferenciado contraste estatístico entre o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal não pode ser tomado como um resultado positivo, como adverte Ribeiro Costa (2004:295), pois representa uma média de 300 processos mensais por Ministro do STJ – 8 demandas julgadas, em média, por dia trabalhado pelo Ministro, prejudicando uma análise mais aprofundada das questões discutidas.

10 Segundo informações do Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário – disponíveis em <http://www.stf.gov.br/bndpj/tribunaissuperiores/TST4A1.asp> – e atualizadas até o ano de 2003.

11 Disponível em <http://www.stf.gov.br/bndpj/movimento/MovimentoB6.asp>, atualizado até o ano de 2003.

Page 22: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

22

Após a Constituição da República de 1988, no nível infraconstitucional, a

legislação processual sofreu diversas alterações, principalmente no sentido de concentrar a

tomada de decisões em figuras individuais, como o caso do aumento dos poderes do relator

dos acórdãos perante os Tribunais.12

Outra medida foi o uso experimental da figura da “transcendência” no

recurso de revista como requisito de admissibilidade – com pretensão de propagação para

todos os demais recursos para Tribunais Superiores – por meio da Medida Provisória n.

2.226/01.13 Tal medida foi questionada judicialmente com a proposição da ADI n. 2.527-9

pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. De maneira bem sintética, pode-

se afirmar que o objetivo da “transcendência” é fornecer ao Tribunal Superior do Trabalho

(TST) a possibilidade de desenvolver um filtro de seleção de recursos, através da

demonstração pelo recorrente de que aquela causa transcende – econômica, política, social ou

juridicamente – os limites do caso concreto e do interesse privado das partes processuais.

Segundo seus defensores (MARTINS FILHO, 2000; SILVA, 2001), tal artifício autorizaria os

Tribunais a negar o conhecimento de “causas menos importantes e repetitivas”, que tanto

abarrotam as estantes dos Tribunais, dando fim precoce – ou mais célere, na definição dos

mesmos – à tramitação dessas, supostamente “pacificando” o conflito pelo proferimento da

decisão judicial final.

Com a Emenda Constitucional n. 45/2004, duas inovações ganharam

destaque como propostas para a solução da “crise”: a possibilidade de o STF publicar súmulas

de efeito vinculante14 (art. 103-A)15 e a necessidade de se demonstrar, em sede de recurso

12 Trata-se do art. 557 do Código de Processo Civil brasileiro (CPC), cuja redação foi modificada com a Lei n.

9.756, de 17 de dezembro de 1998, autorizando, no caso de recursos especiais ou extraordinários, o relator a negar seguimento de plano a recurso que seja manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do STF ou de outro Tribunal Superior. Com a Lei n. 10.352, de 26 de dezembro de 2001, alterou-se o texto do art. 527 do CPC, permitindo que o relator no caso agora de agravo de instrumento possa fazer uso desse dispositivo, antes restrito aos recursos especiais e extraordinários. Essa mesma lei também foi responsável por aumentar os poderes do relator, permitindo que o mesmo, ao receber um agravo de instrumento, também possa: convertê-lo em agravo retido (art. 527, II); atribuir efeito suspensivo ou deferir antecipação dos efeitos pretendidos com a tutela legal, de maneira total ou parcial (art. 527, III), entre outras possibilidades.

13 Não serão feitos muitos comentários no presente tópico, haja vista ser esse o assunto que serve de mote para toda a discussão a ser ventilada pela presente pesquisa, de modo que uma melhor análise do instituto será feita mais à frente.

14 Já a respeito da súmula vinculante, deve ser lembrado que esse não é o objeto da presente pesquisa, de modo que não há espaço aqui para maiores colocações ou, até mesmo, uma análise crítica do instituto, sob pena de se fugir à temática inicialmente proposta. Todavia, mostra-se importante compreender que tal mecanismo obedece à mesma lógica da transcendência/relevância – e, como querem alguns juristas, também, o mesmo acontece com a repercussão geral das questões constitucionais discutidas.

15 “Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário

Page 23: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

23

extraordinário, a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso (art. 102,

§3.o),16 funcionando como um requisito de admissibilidade desse recurso. Sobre esse último, é

importante destacar que muitos estão compreendendo-o como um retorno da antiga argüição

de relevância da CR/69, da mesma forma que a transcendência no recurso de revista – tratar-

se-ia, então, de uma mera troca de etiquetas nas perspectivas, por exemplo, de Martins da

Silva (2005:195) e de Tavares (2005:213-214; 2004:55).17

Se se adotar, todavia, a perspectiva da análise de Buzaid (1972:147),

lançando mão do termo crise conforme o seu significado médico, parece equivocado

considerar o aumento de volume de trabalho nos Tribunais Superiores como a causa da

patologia denominada de “crise do Poder Judiciário”. O que se sugere como adequado é a

compreensão dos mesmos fenômenos como meros sintomas, ou seja, apenas como uma

conseqüência verificável empiricamente da incapacidade do próprio sistema jurídico de gerar

respostas funcionais satisfatórias.18

Dessa forma, a “cura” para tal condição não decorreria simplesmente de

uma solução pragmática com vistas a reduzir de forma drástica o número de recursos

julgados, principalmente nos Tribunais Superiores, mas de uma tentativa de lançar um olhar

mais amplo sobre a questão. Isso porque a sobrecarga não decorre de um simples aumento no

número de recursos dirigidos aos Tribunais Superiores, mas de uma litigiosidade que começa

desde a primeira instância e apenas segue seu curso normal. Assim, as causas da “crise”

estariam no aumento demográfico (BUZAID, 1972:149) ou no processo de industrialização e

e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso".

16 “Art. 102. [...] § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.

17 O presente trabalho se propõe a discutir tal tese, posicionando-se em sentido contrário e tentando fornecer uma compreensão procedimentalmente adequada do dispositivo constitucional à luz dos pressupostos incorporados pela Teoria do Discurso de Habermas, de modo a manter íntegra a tensão entre facticidade e validade inerente ao Direito moderno.

18 Theodoro Júnior lembra que a “crise do Judiciário” não é uma questão que assola apenas o Brasil, mas todo o Mundo Civilizado: “Por mais que juristas e legisladores se esforcem por aperfeiçoar as leis de processo, a censura da sociedade ao aparelhamento judiciário parece sempre aumentar, dando a idéia de que o anseio de justiça das comunidades se esvai numa grande e generalizada frustração” (2005:61).

Page 24: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

24

urbanização brasileiro (SADEK, 2004:11),19 Um olhar complementar a esse é apresentado

por Oliveira Filho e confirmado por Buzaid em citação de Baptista (1976:40): o acúmulo de

processos, fator gerador da “crise” do STF, seria resultado da grande confiança que os

litigantes estariam depositando naquela Corte.

Importante ainda lembrar que os estudos sociológicos sobre a administração

da justiça, em autores como Faria e Souza Santos (1989; SOUZA SANTOS, 2005:177), vêm

destacando – ainda que em perspectiva diversa da adotada nesta pesquisa – o fato de que o

problema da “crise” do Judiciário decorre não somente de uma sobrecarga quantitativa, mas

também da incapacidade do mesmo em “absorver” novas demandas sociais que passam a

exigir uma mudança de paradigma quanto ao papel da jurisdição e do poder judiciário.

Todavia, parece estar ausente, em diversas pesquisas, a necessidade de uma

compreensão do Direito que leve em conta uma reconstrução em paradigmas.20 Se assim se

19 Para estudiosos da Ciência Política (VIANNA et alli. 1999:149; SORJ, 2004:61), tratar-se-ia de um

deslocamento de eixo, do Legislativo e do Executivo para o Judiciário, como novo centro de discussão sobre a concretização de direitos – movimento fruto do Estado Social, a ser explicado um pouco mais à frente no presente tópico. Importante destacar a ocorrência de uma mudança de percepção ao longo das pesquisas de Vianna e Burgos (VIANNA e BURGOS, 2002) em relação às pesquisas anteriores (VIANNA, CARVALHO et alli, 1999:149). Através dos fenômenos de judicialização da política e das relações sociais, o Poder Judiciário estaria ampliando sua esfera de atuação por via de um poder de revisão dos atos originados dos Poderes Executivo e Legislativo, em razão do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) e da constitucionalização ou juridificação de direitos, deslocando os discursos do âmbito da esfera de representação política para a atuação decisória dos Tribunais, como órgão estatal encarregado da resolução de disputas na sociedade (SORJ, 2004:60-61; SOUZA JÚNIOR, 2004:102; MACIEL e KOERNER, 2002:114).

20 O termo paradigma pode ter sua existência desde o período grego, aparecendo em escritos platônicos, mas foi, principalmente a partir dos estudos de Kuhn, em sua obra Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962, que adquiriu o sentido atualmente difundido. Kuhn objetivou apresentar a tese de que o conhecimento científico não decorre de um acúmulo evolutivo e pacífico de informações, mas, ao contrário, forma-se por processos de rupturas, saltos cognitivos, como verdadeiras revoluções. Nesse sentido, Cattoni de Oliveira (2002:82) afirma ser o conjunto “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. Por isso mesmo, todo membro de uma dada comunidade científica está envolto por um paradigma, de modo que não pode sair sem aderir a outro paradigma, como resultado do advento de novas práticas sociais. O paradigma corresponde metaforicamente a um filtro, ou seja, a óculos que filtram a visão, moldam a maneira como uma pessoa percebe a realidade. Logo tudo o que se vê e a forma como se compreende estão condicionados por vivências sociais concretas, que limitam ou condicionam a ação e a percepção do indivíduo no mundo (CARVALHO NETTO, 1999:476). Todavia, aqui se deve marcar uma distinção importante na compreensão de Kuhn para a compreensão a ser levada a cabo por Habermas (1998:263, 1996b:771) quanto aos paradigmas jurídicos. Para o primeiro autor, um paradigma representa uma noção voltada para a possibilidade de se alcançar um consenso acerca de uma pretensão normativa voltada para a verdade; para o autor alemão, a questão é deslocada do âmbito da Filosofia da Ciência e do Mundo Objetivo para a Teoria do Direito e a Filosofia Política, conseqüentemente, para o campo do universo normativo intersubjetivamente compartilhado, ou seja, de correção normativa. As distinções entre a verdade e a correção podem ser encontradas em Habermas (2004:267): a verdade diz respeito à existência (ou não) de estados de coisas, ao passo que a correção reflete o caráter obrigatório dos modos de agir (Moral, Direito). Nesse sentido, os paradigmas jurídicos são definidos, por Habermas (1998:263-264), como conjunto de visões exemplares de uma comunidade jurídica acerca de como o mesmo sistema de direitos e princípios constitucionais que podem ser considerados no contexto percebido de uma dada sociedade. Um paradigma jurídico, portanto, delineia, como princípios e regras, devem ser considerados e implementados para que cumpram, num dado contexto, as funções a eles normativamente atribuídas pela sociedade.

Page 25: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

25

procedesse, ficaria mais clara a noção de que as “crises” representam movimentos constantes

na modernidade, resultantes justamente do aumento de complexidade no interior da

sociedade; não podendo ser, portanto, eliminadas. Deve ser lembrado ainda que cabe às

instituições existentes, incluindo o próprio Judiciário, a manutenção dessa complexidade

(HABERMAS, 1998:406).

Tais paradigmas são resultados não apenas da leitura dos textos legais, mas

principalmente do compartilhamento de um horizonte de pré-compreensão, “sendo que essa

interpretação é também uma resposta aos desafios de uma situação social percebida de uma

determinada maneira” (ROCHA, 2004:232-233). Por isso mesmo, que [...] o conceito de paradigma incorpora, na ciência, a compreensão da impossibilidade humana de um conhecimento absoluto, de um saber total, perfeito e eterno, precisamente em razão do nosso inafastável e constitutivo enraizamento social, histórico-cultural. [...] Só podemos observar algo com os olhos que temos, marcados socialmente e historicamente datados, e não com supostos olhos divinos e atemporais (CARVALHO NETTO, 2003b:151). Assim, poder-se-ia identificar, após a superação da concepção pré-moderna,

uma nova fórmula de legitimação do poder político com o advento da Modernidade, o Estado

Democrático de Direito.21 Ao longo da existência deste, dois paradigmas adquiriram maior

sucesso: o Estado Liberal (Estado de Direito), o Estado Social (Welfare State ou Estado de

Bem-Estar Social). Todavia, desde os fins do século XX, uma nova compreensão começa a

ganhar relevância, indicando para um novo paradigma. Dentro da proposta de Habermas,

então, está a reconstrução dos paradigmas anteriores, para que até mesmo se torne possível

traçar os contornos do que seja um paradigma procedimental do Estado Democrático de

Direito.

A principal característica da concepção pré-moderna é a percepção de que

Direito, Política, Religião, Moral, tradição e costumes são justificados por uma ordem

transcendente, não apresentando diferenciações, de modo a formar um amálgama. A

concepção de Direito estava, então, associada à coisa que era devida a uma pessoa em

decorrência de sua posição dentro de um determinado sistema de castas. E a justiça era um

produto da sabedoria e sensibilidade do aplicador (CARVALHO NETTO, 1999:476-477). 21 É também comum denominá-lo como Estado de Direito Democrático, conforme a tradição portuguesa

(CANOTILHO, 2003), entendendo-se que o termo democrático deveria adjetivar Direito, ao invés de Estado. Contudo, o art. 1.o da atual Constituição da República brasileira fez uso da outra expressão, muito possivelmente para realçar a ruptura com a postura autocrática assumida pelo Estado Brasileiro a partir de 1964. Todavia, a partir de uma compreensão procedimentalista, como faz Habermas (1998), é possível ainda defender que tanto democrático quanto de Direito representam adjetivações simultâneas de Estado. Com isso, caracteriza-se a relação de tensão de ambos os conceitos (HABERMAS, 2003:171-172; CARVALHO NETTO, 2003a:81), em substituição à noção de oposição, que transparece no debate entre as tradições liberais e republicanas, no sentido de procurarem estabelecer uma relação de prioridade entre Estado de Direito (constitucionalismo) e Democracia (soberania popular).

Page 26: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

26

Como conseqüência de tal compreensão, o Direito funcionava como elemento de consagração

e conservação dos privilégios de cada casta, de modo a ensejar uma aplicação casuística e

individual, desligada de um caráter universalizável, ou seja, proveniente de um ordenamento

jurídico integrado por normas gerais e abstratas válidas para todos os membros dessa

sociedade.

Com a Modernidade,22 entretanto, novas luzes são lançadas. Assim, [...] o que conhecemos com o nome de modernidade começa quando desaparece a idéia de uma ordem universal – seja ela imanente ao cosmos ou transcendente a ele. Em outras palavras, a modernidade começa quando termina a idéia de “mundo” (espaço infinito, dotado de centro e de periferia e de “lugares” naturais) e de hierarquia natural dos seres, cedendo para as idéias de universo infinito, desprovido de centro e de periferia, e de indivíduo livre, átomo no interior da Natureza e para o qual já não possuímos a definição prévia de seu lugar próprio e, portanto, de suas virtudes políticas. [...] A modernidade afasta a idéia (medieval e renascentista) de um universo regido por forças espirituais secretas que precisavam ser decifradas para que com elas entremos em comunhão. O mundo se desencanta – como escreveu Weber – e passa a ser governado por leis naturais racionais e impessoais que podem ser conhecidas por nossa razão e que permitirão aos homens o domínio sobre a Natureza (CHAUÍ, 1992:350). O primeiro paradigma jurídico do Estado Democrático de Direito ficou

conhecido como o Estado Liberal, que se assentava sobre três princípios básicos: igualdade,

liberdade e propriedade. Esses princípios se relacionavam ainda com um novo elemento: o

indivíduo. Isso, porque, desde a Grécia Antiga até a Idade Média, havia um centro orientador

e aglutinador da vida em sociedade, ou melhor, em comunidade – primeiro, tem-se a polis,

que foi substituída, no período medieval, pela Igreja Católica. Como decorrência, identifica-se

um deslumbramento da sociedade diante da declaração de igualdade de todos os indivíduos –

marcando o fim dos antigos privilégios de nascimento – e a possibilidade de que cada um

possa definir, a partir exclusivamente dos ditames de sua própria razão, os rumos que sua vida

deve tomar (BAHIA, 2004:304).23 Tem-se, então, uma compreensão no sentido de afirmar

22 Segundo Chauí (1992:346), a modernidade traz a marca do pensamento racionalista, em substituição à

compreensão mítica da pré-modernidade: “A modernidade, nascida com a Ilustração, teria privilegiado o universal e a racionalidade; teria sido positivista e tecnocêntrica, acreditando no processo linear da civilização, na continuidade temporal da história, em verdades absolutas, no planejamento racional e duradouro da ordem social e política; e teria apostado na padronização dos conhecimentos e da produção econômica como sinais de universalidade”.

23 Galuppo (2002:20-21) identifica o fenômeno do pluralismo, ou seja, da pluralidade de concepções de vida boa concorrentes em uma sociedade, como tema eminentemente ligado à Modernidade: “Com o advento da Modernidade, a sociedade torna-se uma sociedade complexa, na qual, ao contrário das sociedades antigas e medievais, convivem projetos de vida e valores culturais não raro antagônicos. Enquanto o Estado Liberal procurava eliminar os projetos e valores divergentes pela imposição dos projetos e valores ‘dominantes’ e o Estado Social procurava impor um ‘projeto alternativo’ e arbitrário ao poder econômico, integrando, mais que incluindo, aqueles historicamente excluídos do projeto majoritário, o Estado Democrático de Direito reconhece como constitutiva da própria democracia contemporânea o fenômeno do pluralismo e do multiculturalismo, recorrendo preferencialmente à técnica da inclusão do que da integração. Por isso mesmo o Estado Democrático de Direito não pode eliminar qualquer projeto ou qualquer valor, mas ao contrário, deve reconhecer todos os projetos de vida, inclusive os minoritários, igualmente valiosos para a formação da auto-

Page 27: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

27

uma divisão entre a esfera privada e a esfera pública (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:55),

principalmente em razão da interpretação dos direitos fundamentais como garantias negativas,

isto é, como garantia da não-intervenção do Estado na esfera da sociedade, deixando

principalmente a Economia a cargo das leis mecânicas do Mercado e garantindo que cada

indivíduo possa buscar por si sua felicidade (HABERMAS, 1996b:772; QUADROS DE

MAGALHÃES, 2002:63). A Constituição é, então, compreendida como um “instrumento de

governo”, o estatuto jurídico-político fundamental que organiza a sociedade política e limita o

poder político do Estado (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:56). O Direito, como um Direito

formal burguês, assume a perspectiva de um sistema fechado de regras que determina o limite

e a garantia da esfera privada de cada indivíduo;24 portanto, adquire uma compreensão

formal, privatística, de modo que percebe os conflitos sociais exclusivamente sob a

perspectiva interindividual (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:9).25 Movidos pela idéia de

uma razão “absoluta”, os legisladores acreditavam poder positivar o conteúdo do Direito

Natural – agora não mais transcendente, mas de índole racional – em Códigos, capazes de

regular toda a complexidade da vida em sociedade de modo a não deixar lacunas, no máximo

obscuridades aclaradas pelo trabalho dos “comentadores”. Ao Judiciário, cabia o papel de

dirimir conflitos interparticulares, ou entre esses e a Administração Pública mediante

provocação; para tanto, esclarece Carvalho Netto (1999:479), o magistrado exercia uma

atividade mecânica de aplicação do direito ao caso concreto através de uma subsunção do

caso às hipóteses normativas identificadas mediante uma leitura direta do texto normativo,

razão pela qual o juiz foi considerado por Montesquieu a bouche de la loi (boca da lei).

Todavia, percebe-se que, ao alicerçar a liberdade na propriedade, restringiu-

se a participação na esfera pública aos sujeitos que já integravam a ordem econômica. Além

disso, essa interpretação de liberdade acabou por alimentar a eliminação da livre concorrência

identidade da sociedade”. Lançando mão de uma malha argumentativa diversa, Michel Rosenfeld (2003:23) também irá reconhecer a impossibilidade de um fechamento do sujeito constitucional, devendo o mesmo permanecer como um constante hiato, fruto de um contínuo processo de inclusão e exclusão de identidades.

24 “Since the principle of legal freedom implied equal protection for all persons, this principle seemed to satisfy the normative expectation that, by delimiting spheres of individual liberty through guarantees of negative legal status, social justice could be concomitantly produced. The right of each person to do as he or she pleases within the limits of general laws is legitimate only under the condition that these laws guarantee equal treatment. This legitimating force, found in equal treatment, appeared form a liberal point of view, to be already guaranteed through the formal universality of legal statues, that is, through the grammar and the semantic form of conditional legal programs” (HABERMAS, 1996b:772).

25 No mesmo sentido, Cattoni de Oliveira afirma que, no paradigma do Estado Liberal, o Direito era compreendido como “[...] uma ordem, um sistema fechado de regras, de programas condicionais, que tem por função estabilizar expectativas de comportamento temporal, social e materialmente generalizadas, determinando os limites e ao mesmo tempo garantindo a esfera privada de cada indivíduo” (2002:57). Ele, então, se mostra como a limitação da liberdade de cada individuo, como condição da liberdade de todos, nos moldes do pensamento de Kant.

Page 28: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

28

e uma sempre crescente exclusão social. Como conseqüência, o Estado Liberal entrou em

colapso, pois explodiram revoltas operárias que buscavam o reconhecimento de condições

mínimas de trabalho, bem como foram difundidas as idéias de Marx e Engels, incentivando a

organização proletária, o que forçou o Estado Liberal a empreender diversas mudanças em

sua estrutura (QUADROS DE MAGALHÃES, 2002:64).

Compreendeu-se, principalmente, que os direitos, até então positivados, não

mais eram suficientes para garantia real de liberdade e igualdade. A principal queixa foi a

necessidade de materialização dos direitos consagrados constitucionalmente, como meio não

apenas de garantia da igualdade formal, mas como proteção ao menos favorecido.26 Segundo

Habermas (1998:471), essa materialização, que já havia sido explorada por Weber, ganhou

relevância ao final da Segunda Guerra, mas foi compreendida inicialmente como uma crise do

Direito, que dissolveria a unidade e estrutura sistemática da ordem jurídica, sobrepondo-se à

concepção liberal e vindo a substituí-la.

Um marco inicial do paradigma jurídico do Estado Social pode ser

identificado com o chamado constitucionalismo social, movimento que ganha maiores

contornos após a Constituição alemã de Weimar (1919), apesar de a Constituição mexicana de

1917 ser considerada a primeira Constituição Social (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:58;

CARVALHO NETTO, 1999:480; QUADROS DE MAGALHÃES, 2002:65). Como principal

conseqüência dessa ruptura, tem-se uma ampliação no conjunto dos direitos fundamentais,

resultante não somente de um acréscimo de direitos, mas também de uma completa alteração

nas bases de interpretação dos direitos anteriores.27 Nesse sentido, assevera Carvalho Netto: Não se trata apenas do acréscimo dos chamados direito de segunda geração (os direitos coletivos e sociais), mas inclusive da redefinição dos de 1ª (os individuais); a liberdade não mais pode ser considerada como o direito de se fazer tudo o que não seja proibido por um mínimo de leis, mas agora pressupõe precisamente toda uma plêiade de leis sociais e coletivas que possibilitem, no mínimo, o reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco da relação, ou seja, a internalizarão na legislação de uma igualdade não mais apenas formal, mas tendencialmente material (1999:480). Na seqüência, Leal (2002:27) alerta para uma mudança de posição estatal: a

posição negativa é abandonada para se assumir uma posição positiva, isto é, o Estado passa a

agir efetivamente na garantia dos direitos sociais mínimos e da autonomia privada dos

26 “El derecho privado, considerado en conjunto, parecía ahora haber de ir más allá del aseguramiento de la

autodeterminación individual y servir a la realización de la justicia social” (HABERMAS, 1998:480, grifo no original).

27 É muito difundido, no Brasil, o entendimento de que os direitos fundamentais poderiam ser divididos em gerações, por exemplo, como faz Bonavides (2002:517). Todavia, o presente trabalho, tributário da posição defendida por Cattoni de Oliveira (2002:103), considera imprópria a divisão dos direitos fundamentais em gerações, pois, a cada paradigma jurídico, assiste-se a uma redefinição completa dos direitos fundamentais.

Page 29: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

29

cidadãos.28 O Estado não mais pode ser tomado como um elemento “neutro”, distante dos

conflitos sociais; passa agora a atuar no sentido de assumir-se “como agente conformador da

realidade social e que busca, inclusive, estabelecer formas de vida concretas, impondo pautas

‘públicas’ de ‘vida boa’” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:59). Na esfera econômica, o

Estado passa a desempenhar ações que visam a uma proteção artificial da livre concorrência e

da livre iniciativa, além de compensar a desigualdade através de prestações sociais de

serviços.29 Com isso, de cidadãos, os indivíduos se transformam em clientes.

As alterações são sentidas no Direito, que passa a ser interpretado como um

sistema de regras e princípios otimizáveis (valores) – a serem realizados no “limite do

possível” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:59).30 A preocupação com a materialização do

Direito levanta a exigência de novas teorias hermenêuticas que libertem o juiz da aplicação

mecanizada da norma ao fato (CARVALHO NETTO, 1999:480; BAHIA, 2004:308). Nessa

ótica, o Judiciário passou a representar uma peça fundamental no processo de densificação

social das normas, visando à concretização de direitos carentes de políticas públicas

(CARVALHO NETTO, 2003:99).

Ganha relevo a teoria de Kelsen como tentativa de construção de uma

Ciência do Direito “pura”31, isto é, livre de qualquer elemento moral, econômico ou

valorativo. Um ponto importante foi a teoria kelseniana da interpretação, que diferenciou

interpretações “autênticas” (feitas pelo legislador ou pelo juiz) de “não autênticas” (feitas

28 Importante ter em mente que a noção de autonomia privada como direito ao maior grau de iguais liberdades

subjetivas possíveis não sofreu mudança significativa (HABERMAS, 1998:482); a mudança foi, na realidade, quanto aos contextos sociais nos quais essa autonomia pode se realizar plenamente. Assim, com a autonomia privada “[...] queda garantizado a cada cual su status de persona jurídica; pero éste está muy lejos de fundarse solamente en la protección de un ámbito de vida privada en sentido sociológico aun cuando sea sobre todo en él donde la libertad jurídica pueda acreditarse como posibilitación de la libertad ética. El status de un sujeto jurídico libre, autónomo en el sentido del derecho privado, viene constituido por la totalidad de todos los derechos relativos a acciones y relativos a status, que resulten de la configuración políticamente autónoma del principio de libertad jurídica” (HABERMAS, 1998:482-483, grifos no original).

29 Habermas (1998:497-498; 2000:171) identifica o desenvolvimento de um paternalismo por parte do Estado, no paradigma do Estado Social, em razão da adoção de programas políticos compensatórios às necessidades de uma “sociedade de massas”, que se mostra incapaz de se autodeterminar, de definir para si suas necessidades. Logo, torna-se massa facilmente modelada por um Estado nos moldes do Leviatã hobbesiano (CARVALHO NETTO, 1999:480). A proposta por cidadania permanece nesse paradigma como uma espera irrealizada.

30 A Corte Constitucional Alemã, reconhecendo a existência dos princípios, entendeu que esses funcionariam como valores, isto é, como comandos otimizáveis, fato que também conduziu à ampliação de poder por parte do Judiciário, especialmente da Corte Constitucional, como denuncia Ingeborg Maus (2000). Não cabe, no presente momento, tecer maiores considerações e críticas à Jurisprudência de Valores alemã, sob pena de se fugir do objetivo proposto para o presente tópico.

31 Segundo Kelsen (1999:1): “Quando a si própria se designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe a garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental”.

Page 30: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

30

principalmente pela dogmática jurídica).32 Uma teoria da interpretação estaria diretamente

vinculada a uma compreensão escalonada de normas jurídicas. A interpretação jurídica está

vinculada à existência de uma autorização dada por um nível superior do ordenamento a um

nível inferior para que este possa produzir atos normativos. Isso porque, para Kelsen

(1999:387), a decisão judicial é também uma forma de produção de norma, porém uma norma

individual .33 Ela está, então, vinculada à atividade de aplicação de uma dada norma jurídica.

Contudo, Kelsen (1999:388) entendia que haveria sempre um espaço de livre apreciação a ser

preenchido pelo aplicador.

Poderiam ainda surgir situações em que essa margem para interpretação não

decorresse de um ato intencional do nível superior, mas de uma mera eventualidade, como

uma ambigüidade surgida na leitura do próprio texto ou entre outros textos. Como

conseqüência, surge a possibilidade de uma pluralidade de interpretações sobre a aplicação de

uma dada norma. Reconhecendo isso, Kelsen (1999:390) acaba por afirmar que seria possível

conter todas as interpretações jurídicas sob uma mesma moldura de modo que tudo o que

ficasse em seu interior seria considerado como juridicamente possível e teria igual

importância, deixando a cargo do órgão aplicador a decisão como uma questão de livre

preferência.34 Caberia, então, à dogmática jurídica descrever todas as possíveis interpretações

que poderiam estar contidas na moldura, sem, contudo, emitir qualquer juízo de valor sobre

qual seria a correta, para influenciar a escolha do órgão aplicador.

Todavia, a partir da edição de 1960, Kelsen lança de uma outra proposta –

um giro decisionista, segundo Cattoni de Oliveira (2001:47; BAHIA, 2004:311) –

defendendo que o órgão aplicador – principalmente os mais altos Tribunais – possuiria

32 Não é objetivo do presente trabalho fazer uma análise mais aprofundada sobre a teoria kelseniana, mas é

importante lembrar que essa distinção, entre interpretações “autêntica” e “não autêntica”, não está prevista na primeira edição da Teoria Pura do Direito, de 1934, nem no seu ensaio sobre a teoria da interpretação, também da década de 30, aparecendo apenas a partir da edição francesa da Teoria Pura do Direito, em 1953.

33 Todavia, Derzi (2003:152) reconhece que a pirâmide normativa kelseniana é “drasticamente redutora, incapaz de apreender a complexidade do objeto, que implica uma reprodução em rede entrelaçada. Ademais, os traços de contato entre o diferenciado sistema normativo e o restante indiferenciado ficam implícitos e obscuros, quer nos pontos limites da norma fundamental, quer naqueles de eficácia da norma no plano social ou, ainda, no estreito espaço hierarquizado com que se criam novas normas a partir de outras, segundo as várias possibilidades de sentido”.

34 Importante ter em mente que Kelsen (1999:391) rejeitava a tese sustentada pela “Jurisprudência Tradicional”, que procurava desenvolver métodos capazes de, com o uso da razão humana, descobrir a interpretação verdadeira. Para o pensador austríaco, isso era uma proposição desprovida de sentido, pois o Direito não pode ser tomado apenas como um ato de conhecimento, mas também como um ato de natureza volitiva. Segundo colocação de Cattoni de Oliveira (2001:44): “Para Kelsen, mais que uma atividade de cognição, que somente levaria à descrição das interpretações possíveis, a interpretação que acompanha a aplicação da norma superior e a produção da norma inferior é um ato de vontade. É através de um ato de vontade que o órgão autorizado fixa qual dentre as interpretações possíveis da norma superior é a que terá curso na produção da norma inferior”.

Page 31: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

31

liberdade não apenas para escolher interpretações possíveis, previstas na moldura, mas estaria

autorizado a ir além, produzindo uma nova interpretação e, como conseqüência, criando um

direito novo (KELSEN, 1999:395).

Como bem destaca Carvalho Netto (2003:100), a estupefação das ciências

em geral – e, no caso da Ciência do Direito, ainda presa à tradição positivista – diante da

indeterminação da linguagem percebida com o giro lingüístico levou à necessidade de uma

compreensão modificada da racionalidade humana. A ciência, hoje, só pode ser reconhecida

quando se assume como um sistema de conhecimento histórico e precário (2003:92). A

necessidade de garantia da certeza e da segurança jurídica (entendida como previsibilidade)

não mais poderia se dar através de métodos da ciência e foi solucionada por Kelsen na forma

da consagração de uma discricionariedade do órgão aplicador, identificando na sua vontade a

da sociedade.

O desgaste do paradigma do Estado Social tem início a partir dos anos 60,

entrando em colapso a partir da década que se segue (BAHIA, 2004:312).35 O paternalismo

estatal, já denunciado anteriormente, se mostra como um dos entraves para o processo de

cidadania que ele próprio pretendia resolver.36 Habermas (1994:123) lembra que, para a sua

manutenção, o Estado Social necessitou desenvolver uma enorme rede normativa e

burocrática, cobrindo toda a vida cotidiana da sociedade.

Desenvolve-se ainda uma preocupação de garantia de direitos cujos titulares

não são mais facilmente identificáveis (os chamados direitos difusos, como por exemplo,

direito ao meio ambiente, direito do consumidor e direito da criança e do adolescente). Os

direitos individuais e sociais ganham uma nova leitura: uma conotação processual, como

destaca Carvalho Netto (1999:481). Passam a ser vistos como garantias de participação no

debate público, marcando a preocupação pluralista e aberta de uma nova leitura – agora

procedimental – do Direito. Uma característica importante é a necessidade de redefinição de

autonomia pública e autonomia privada a partir de uma coesão interna, no sentido de que

direitos privados só são assegurados conjuntamente com os direitos políticos (CATTONI DE

35 “No esteio dos novos movimentos sociais, tais como o estudantil de 1968, o pacifista, o ecologista e os de luta

pelos direitos das minorias, além dos movimentos contraculturais, que passam a eclodir a partir da segunda metade da década de 60, a ‘nova esquerda’, a chamada esquerda não-estalinista, a partir de duras críticas tanto ao Estado de Bem-Estar – denunciando os limites e o alcance das políticas públicas, as contradições entre capitalismo e democracia – quanto ao Estado de socialismo real – a formação de uma burocracia autoritária, desligada das aspirações populares [...]” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:62, grifos no original).

36 Segundo Habermas (1994:124), o paradigma do Estado Social padece de uma contradição entre seu objetivo e o meio que escolhe para concretizá-lo. O que seria o seu objetivo – a construção de formas de vidas estruturadas igualitariamente, que fossem capazes de exercer uma auto-regulação espontânea – se vê frustrado pelos obstáculos levantados pelo Poder Administrado, regido pela lógica da burocracia jurídico-administrativa, que acaba contaminando os programas políticos.

Page 32: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

32

OLIVEIRA, 2006:10). Além do mais, o estatal não é capaz de identificar a sociedade, que por

meio de organizações civis passa a exigir uma maior participação; não mais depende da

postura burocratizante (instrumentalizante) do Poder Administrativo nas decisões sobre

direitos. Logo, “[s]omente através de espaços de discussão pública, formais ou não, em que se

assegure igual participação de diferentes grupos, agindo discursivamente é que se poderá lidar

com as desigualdades” (BAHIA, 2004:315). A cidadania é agora entendia como um processo,

bem como a democracia, que conduz a um aprendizado social, de modo a não necessitar de

pré-requisitos (CARVALHO NETTO, 1999:481-482). Pois, da mesma forma que cidadania não é algo natural, que se garante tão-somente pelo reconhecimento de direitos privados e de uma esfera de livre-arbítrio, cidadania não se ganha nem se concede, mas se conquista. Exige luta, reconhecimento recíproco e discussão, através de todo um processo de aprendizado social, capaz de corrigir a si mesmo, todavia, sujeito, inclusive, a tropeços (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:10).37

Como conseqüência, o Direito também demanda uma (re)construção mais

voltada à participação social na tomada de decisões públicas.38 Como lembra Häberle (1997),

afirma-se existência de uma “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” em

substituição ao “intérprete autêntico” de Hans Kelsen. A necessidade de legitimidade das

decisões passa a ser uma preocupação constante,39 não mais podendo tais decisões se

prenderem a uma racionalidade instrumental, voltada para aspectos meramente de eficiência

(SADEK, 2004:27). Todavia, tal questão parece ter ficado em segundo plano nas

continuações das propostas de reformas para a solução da “crise do Judiciário”. 37 Um exemplo dessa “luta por reconhecimento” bem sucedida pode ser encontrado nas políticas feministas de

equiparação: “[...] os diretos subjetivos, cuja tarefa é garantir às mulheres um delineamento autônomo e privado para suas próprias vidas, não podem ser formulados de modo adequado sem que os próprios envolvidos articulem e fundamentem os aspectos considerados relevantes para o tratamento igual ou desigual em casos típicos. Só se pode assegurar a autonomia privada de cidadãos em igualdade de direito quando isso se dá em conjunto com a intensificação de sua autonomia civil no âmbito do Estado” (HABERMAS, 2002:297).

38 Diversas são as propostas para essa empreitada. Como já colocado anteriormente, a presente pesquisa assume como marco teórico a Teoria do Discurso de Habermas (1998), que se propõe a refletir o Estado Democrático de Direito a partir de uma teoria procedimentalista. “Ese paradigma procedimental del derecho parte de las premisas de que (a) está cerrado el camino de vuelta que el neoliberalismo propugna bajo la tesis de un «retorno de la sociedad civil y de su derecho», de que, sin embargo, (b) la consigna de «redescubrimiento del individuo» viene provocada por un tipo de juridificatión ligada al Estado social que amenaza con convertir en lo contrario lo que es su objetivo declarado, a saber, el restablecimiento de la autonomía privada; y de que (c) el proyecto que es el Estado social ni simplemente hay que ratificarse en él, ni tampoco se lo puede interrumpir, sino que debe proseguirse en un plano suprior de reflexión. La intención rectora sigue siendo la de domesticar el sistema económico capitalista, es decir, la de «reestructurarlo» social y ecológicamente por una vía por la que simultáneamente quepa «refrenar» a éste desde puntos de vista de efectividad y eficacia en formas modernas de regulación y control indirectos, así como reconectarlo retroalimentativamente con el poder comunicativo desde puntos de vista de legitimidad, inmunizándolo al propio tempo contra el poder ilegítimo” (HABERMAS, 1998:492).

39 Segundo Habermas (1998), a legitimidade decorre do fato de as normas terem sido produzidas conforme um procedimento que assegure a participação potencial daqueles que sofrerão os seus efeitos, para que esses concordem com a norma produzida na qualidade de co-autores da mesma. Para tanto, se faz necessário observar uma racionalidade comunicativa, muito diferente da mera racionalidade instrumental.

Page 33: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

33

Essa nova abordagem teórica é fundamental para o presente trabalho, pois

revela que a “crise”, na realidade, não se trata tanto da inflação de demandas perante o

Judiciário, mas sim de uma “crise” decorrente da compreensão do paradigma do Estado

Social. Em outras palavras, essa crise, em sua inteireza, traz à tona o fato de que múltiplas

interpretações, provindas não apenas dos canais formais do Estado, passam a adentrar o

cenário das discussões do Judiciário, buscando ressonância e reconhecimento (SOUZA

SANTOS, 2005:177). Todavia, o que representaria uma contribuição para a democratização

dos processos de tomada de decisões institucionais, atendendo a uma preocupação com a

legitimidade dessas, é interpretado como um risco de dissenso que deve ser eliminado a todo

custo para que se possa (re)estabelecer o primado da “segurança jurídica” (aqui entendida

como previsibilidade). Assim, retoma-se a crença, já presente em Kelsen, de que a solução

decorreria do estabelecimento de uma única interpretação autorizada – no caso, a do STF –

como forma de simultaneamente garantir a segurança jurídica e o desafogamento em relação

às demandas.40

Porém, outra ainda pode ser a explicação – que não necessariamente exclui

a hipótese anterior, mas complementa-a: o resultado de uma intervenção instrumental por

parte do poder econômico do Mercado (sistema econômico) no sistema do Direito. O sistema

econômico regido pelo medium do dinheiro atua nos processos de integração social de

maneira diversa do que acontece com o Direito. Os pressupostos comunicativos são

substituídos por uma forma de ação não intencional, que segue uma lógica instrumental

(HABERMAS, 1998:102). Tanto o mundo da vida quanto o Direito são elementos

fundamentais para o funcionamento e para a reprodução da sociedade (FREITAG, 2002:239).

Todavia, pode-se identificar como “patologia da modernidade” a chamada colonização do

mundo da vida.41 De uma maneira parasitária, o sistema econômico intervém nos processos

40 De Giorgi (2003), em célebre conferência no Instituto Max-Planck, lembra que a história é constituída da

memória. Todavia, essa última não pode ser compreendida como resultante de um processo de organização de informações puro e simples, mas sim permeado de invenções e criações inventivas. Um sistema social, como o Direito, necessita de uma autocompreensão histórica, que, por meio da memória, isola as operações que pode considerar relevantes, a partir de uma diferenciação entre o “recordar” e o “esquecer”; mas o “recordar” evolve o “inventar” e, com isso, o sistema do Direito cristaliza determinadas criações como se fossem “fatos” históricos. Essa pode ser uma forma de compreender a noção de uma “crise” no Judiciário – sempre tomada como algo do presente, uma vez que os autores viram as costas para uma dimensão temporal – considerando-a como extensão de algo provindo de um passado. Resumindo: a noção de “crise do Judiciário” é uma “invenção” fundamental para que o sistema jurídico preserve sua ligação ao paradigma do Estado Social, sem com isso tornar consciência da ruptura necessária para o paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito.

41 A colonização do mundo da vida é explicada por Freitag (2002:239) como o processo resultante da expansão da racionalidade instrumental utilizada pelos imperativos funcionais do sistema econômico e do sistema político-burocrático que invade o mundo da vida desalojando e expulsando a racionalidade comunicativa. Assim, onde antes havia processos de interação sociais regidos por uma racionalidade comunicativa, passa-se a

Page 34: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

34

de decisões jurídicas através de sua própria lógica de racionalidade (adequação de meios a

fins), buscando a sua expansão, mas sob pena de perda da legitimidade do Direito como

conseqüência da expulsão da ação comunicativa de seu habitat natural (FREITAG,

2002:239).

Melo Filho (2003:79) e Silva Candeas (2004:18) alertam para a intervenção

do capital estrangeiro, através do Banco Mundial e de seu plano de padronização do Judiciário

de toda a América Latina, sob o pretexto de “construção de uma nova ordem” favorável ao

capital e à integração econômica. Tais tendências e expectativas foram materializadas no

documento técnico n. 319, denominado O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe:

elementos para reforma, datado de junho de 1996.42 O próprio documento reconhece a

necessidade de uma reforma econômica para que o Judiciário funcione bem, isto é, aplique as

leis de maneira previsível e eficiente – em sua leitura, o mais célere possível – e atue na

garantia da propriedade privada (DAKOLIAS, 1996:3).43 Diante de uma ordem econômica

de proporções globais,44 o Judiciário pode se tornar um “parceiro” do Mercado, se levar a

cabo a defesa da propriedade e atuar dentro de uma margem de previsibilidade: [...] o Estado é essencial para a implantação dos fundamentos institucionais apropriados para os mercados, e a credibilidade do governo – a previsibilidade de suas normas e políticas e a constância de sua aplicação – pode ser tão importante para atrair investimentos privados quanto o conteúdo dessas normas e políticas (SILVA CANDEAS, 2004:21-22). O Estado, então, por meio do Judiciário, proporcionaria uma ordem de

estabilidade causada pela previsibilidade e celeridade na aplicação de normas jurídicas e pela

garantia da obrigatoriedade dos contratos, minimizando o risco das atividades econômicas.

Assim,

ter uma racionalidade instrumental. Como conseqüência, aponta uma crise de legitimidade das decisões jurídicas, o que põe em risco o processo de integração social, uma vez que o Direito não somente mantém contato com o código proveniente da linguagem coloquial ordinária, como por ele ainda transitam mensagens provenientes dos códigos do sistema econômico e do sistema político-burocrático (HABERMAS, 1998:146).

42 O Documento Técnico n. 319 é o que apresenta o maior nível de detalhamento quanto às propostas e expectativas do Banco Mundial para a reforma dos Judiciários latino-americanos, mas não é o único. Merece menção ainda o relatório anual n. 19, de 1997, “O Estado num mundo em transformação”, e o n. 24, de 2002, “Instituições para os mercados”. Conforme Silva Candeas (2004:19), o relatório de 1997 “discute o novo papel do Estado diante de acontecimentos como desintegração das economias planejadas da ex-União Soviética e da Europa Oriental, a crise fiscal do Estado-Providência, o papel do Estado no ‘milagre’ econômico do leste da Ásia, a desintegração de Estados e as emergências humanitárias em várias partes do mundo. Já o relatório de 2002 trata da criação de instituições que promovem mercados inclusivos e integrados e contribuem para um crescimento estável e integrado, para melhorar a renda e reduzir a pobreza”.

43 Como alerta Melo Filho (2003:80): “O que a agência financeira internacional pretende, na realidade, é redesenhar as estruturas dos Poderes Judiciários da América Latina, a partir das premissas neoliberais, com o fito de adequá-las à prevalência do mercado sobre qualquer outro valor”.

44 Segundo Quadros de Magalhães (2002:73), globalização é “[...] expressão [que] designa um movimento complexo de abertura de fronteiras econômicas e de desregularização, que permite às atividades econômicas capitalistas estenderem seu campo de ação no planeta”. Todavia, não há um consenso sobre o termo de modo a serem possíveis ainda múltiplas tentativas de conceituação.

Page 35: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

35

[a] interpretação que se depreende dos textos é que o Judiciário pode tornar-se mais eficiente ao concorrer com outros mecanismos para a resolução de litígios. Por isso, o Banco estimula a aplicação dos MARD (mecanismos alternativos de resolução de disputas), quais sejam, arbitragem, mediação, conciliação e os juízes de paz, para romper com o “monopólio do poder judicial” (SILVA CANDEAS, 2004:28). Mas o valor previsibilidade é ainda mais almejado que a eficiência: Para o Banco Mundial, o Estado deve atuar como vetor de certezas. Na opinião do organismo, se um Estado muda freqüentemente as regras ou não esclarece as regras pelas quais ele próprio se guia, as empresas e os indivíduos não podem ter certeza hoje do que amanhã será lucrativo ou não lucrativo, lícito ou ilícito. Nesse caso, tendem a adotar estratégias arriscadas para se protegerem contra um futuro incerto – ingressando, por exemplo, na economia informal ou enviando capital ao exterior, prejudicando a economia nacional (SILVA CANDEAS, 2004:33). É a partir desse prisma, ou seja, racionalidade voltada aos interesses do

capital despersonalizado, que também pode ser compreendido o processo de centralização das

decisões jurídicas, como a súmula vinculante ou mesmo a adoção de mecanismos de filtragem

de recursos para os Tribunais Superiores. Ao se limitar a interpretação jurídica, centrando-a

em órgãos especializados entendidos como os únicos autorizados a decidir, miniminiza-se o

risco de dissenso, mas assume-se, por outro lado, o risco de perder de vista o papel

comunicacional presente nos processos de decisões jurídicas, responsável pela manutenção de

sua legitimidade democrática.

A conseqüência da implementação dessa proposta, segundo Melo Filho

(2003:81), é fornecer mais subsídios para a hipertrofia do Poder Executivo a custo da

submissão do Judiciário, que se transformaria em mero órgão chancelador das políticas

públicas propostas pelo primeiro,45 com a subseqüente redução da órbita de ação do Poder

Judiciário. Tal diagnóstico parece ser confirmado quando se percebe a tentativa de defesa de

uma concentração do controle de constitucionalidade por parte de STF, principalmente com o

uso da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) com efeito vinculante, após 1993.

Além disso, o Executivo acaba por quase monopolizar faticamente a

atividade do Judiciário. Grinover (2005:501) lembra que, no plano das demandas individuais,

o principal “cliente” do Judiciário é o próprio Estado. Com base nas análises da pesquisa feita

pela Fundação Getúlio Vargas, a pedido do Ministério da Justiça, constatou-se que

[...] 79% dos processos em tramitação perante o Supremo envolvem o Poder Executivo (64% da União, 8,2% dos Estados e 6% dos Municípios; só a Caixa Econômica Federal é responsável por 44% das causas em andamento no Supremo Tribunal Federal).

45 Melo Filho (2003:84) lembra que: “Em países como a Argentina, a Bolívia e a Venezuela, tais propósitos

foram plenamente alcançados, chagando-se ao extremo de atribuir ao Ministério da Justiça o controle da magistratura”.

Page 36: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

36

Na grande maioria desses casos, o que se percebe é o uso dos procedimentos

jurisdicionais, contando com a morosidade como forma de retardar a satisfação de direitos já

reconhecidos, até mesmo pela própria parte recorrente. Logo, uma solução mais democrática é

a proposta por Souza Cruz (2004:412): utilizando os próprios instrumentos processuais

existentes, dever-se-ia voltar a atenção para a coibição de posturas estratégicas que

desnaturem o conteúdo comunicativo inerente aos recursos, tornando-os meros subterfúgios

para protelações. Uma vez que o exame do caso específico em juízo pode demonstrar a

existência de um abuso do direito processual, o que se teria é uma situação não tutelada pelo

Direito, que, ao contrário, coíbe quando caracterizada em ilícito.

Outra questão que não pode ser olvidada é que, simultaneamente ao fato de

as instituições ligadas ao Estado de Direito contribuírem para a redução da complexidade

social, essas, em movimento contrário, são também responsáveis por mantê-la (HABERMAS,

1998:405-406). No caso, então, da “crise” do Judiciário, a mesma se mostra como elemento

fundamental – e, por isso mesmo, sem solução, uma vez que atua no sentido de colocar o

Judiciário em evidência, como tema permanente dos debates públicos. Como será visto no

capítulo 4 da presente pesquisa, isso adquire uma perspectiva positiva, já que incentiva

permanentemente a fiscalização e a crítica pública das decisões judiciais, lembrando aos

aplicadores jurídicos que eles são meros representantes do papel que desempenham

(GÜNTHER, 1995:52-53).

1.2. A Medida Provisória n. 2.226/2001 e a ADI n. 2.527-9 proposta pelo Conselho Federal da

Ordem dos Advogados do Brasil

1.2.1. A transcendência como requisito de admissibilidade do recurso de revista perante o

TST: transcendência econômica, política, social e jurídica

Após o advento da Constituição da República de 1988, funcionando como a

primeira experiência de inserção, no Direito brasileiro, de um mecanismo com a finalidade de

filtrar os recursos destinados aos Tribunais Superiores, foi editada, pelo Presidente Fernando

Page 37: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

37

Henrique Cardoso, a Medida Provisória n. 2.226/01.46 A referida medida provisória

introduziu, no texto da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), o art. 896-A47 e

acrescentou mais um requisito de adminissibilidade recursal ao instituto do recurso de revista,

objetivando diminuir a massa de demandas que congestiona o Tribunal Superior do Trabalho

(TST). Originalmente as hipóteses de cabimento desse recurso já haviam sido limitadas às

matérias de direito, conforme denominação de grande parte dos processualistas. Conforme a

síntese de Martins Filho (2000:55), resume-se a controvérsia sobre a: [...] divergência na interpretação de dispositivo legal, salvo se a decisão recorrida estivesse em consonância com prejulgado ou jurisprudência pacífica do TST; - violação de “norma jurídica” (o que incluía todas as fontes de direito, autônomas e heterônomas, federais, estaduais e municipais).48

46 É importante lembrar que a utilização do instituto da medida provisória representou uma forma de fuga da

deliberação parlamentar, uma vez que já havia sido posto em votação o Projeto de Lei n. 3.267/00 com igual conteúdo e objetivo. Além disso, sua edição deu-se seis dias antes da publicação da Emenda Constitucional n. 32, de 11 de setembro de 2001, que alterou sensivelmente as disposições constitucionais referentes às medidas provisórias, mas que, por outro lado, em razão de seu art. 2.o, autorizou que aquelas que tivessem sido editadas anteriormente à própria Emenda permanecessem em vigor até que fossem revogadas explicitamente por outra medida provisória ou por deliberação definitiva do Congresso Nacional.46 Dessa forma, a Medida Provisória n. 2.226/01 permanece no Direito brasileiro como norma dotada de validade. Todavia, sua constitucionalidade foi posta em dúvida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2.527-9). Os argumentos elaborados pelo Conselho Federal da OAB serão examinados em tópico abaixo, bem como a réplica apresentada por juristas defensores do mecanismo da transcendência, como Martins Filho (2000) e Silva (2001).

47 “Art. 896-A. O Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica”.

48 “Art. 896. Cabe Recurso de Revista para Turma do Tribunal Superior do Trabalho das decisões proferidas em grau de recurso ordinário, em dissídio individual, pelos Tribunais Regionais do Trabalho, quando:

a) derem ao mesmo dispositivo de lei federal interpretação diversa da que lhe houver dado outro Tribunal Regional, no seu Pleno ou Turma, ou a Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, ou a Súmula de Jurisprudência Uniforme dessa Corte;

b) derem ao mesmo dispositivo de lei estadual, Convenção Coletiva de Trabalho, Acordo Coletivo, sentença normativa ou regulamento empresarial de observância obrigatória em área territorial que exceda a jurisdição do Tribunal Regional prolator da decisão recorrida, interpretação divergente, na forma da alínea a;

c) proferidas com violação literal de disposição de lei federal ou afronta direta e literal à Constituição Federal.§ 1º O Recurso de Revista, dotado de efeito apenas devolutivo, será apresentado ao Presidente do Tribunal

recorrido, que poderá recebê-lo ou denegá-lo, fundamentando, em qualquer caso, a decisão.§ 2º Das decisões proferidas pelos Tribunais Regionais do Trabalho ou por suas Turmas, em execução de

sentença, inclusive em processo incidente de embargos de terceiro, não caberá Recurso de Revista, salvo na hipótese de ofensa direta e literal de norma da Constituição Federal.

§ 3º Os Tribunais Regionais do Trabalho procederão, obrigatoriamente, à uniformização de sua jurisprudência, nos termos do Livro I, Título IX, Capítulo I do CPC, não servindo a súmula respectiva para ensejar a admissibilidade do Recurso de Revista quando contrariar Súmula da Jurisprudência Uniforme do Tribunal Superior do Trabalho.

§ 4º A divergência apta a ensejar o Recurso de Revista deve ser atual, não se considerando como tal a ultrapassada por súmula, ou superada por iterativa e notória jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho.

§ 5º Estando a decisão recorrida em consonância com enunciado da Súmula da Jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, poderá o Ministro Relator, indicando-o, negar seguimento ao Recurso de Revista, aos Embargos, ou ao Agravo de Instrumento. Será denegado seguimento ao Recurso nas hipóteses de intempestividade, deserção, falta de alçada e ilegitimidade de representação, cabendo a interposição de Agravo.

§ 6º Nas causas sujeitas ao procedimento sumaríssimo, somente será admitido recurso de revista por contrariedade à súmula de jurisprudência uniforme do Tribunal Superior do Trabalho e violação direta da Constituição da República”.

Page 38: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

38

Todavia, com a edição da medida provisória em questão, inovou-se o

âmbito dos requisitos de admissibilidade para o recurso de revista, passando–se a exigir que,

além do atendimento dos requisitos de admissibilidade já existentes, fosse demonstrada, em

cada recurso, a “transcendência” específica da questão discutida. Tal “transcendência” seria

oriunda de reflexos de natureza econômica, política, social ou jurídica. Dito de outro modo,

significa afirmar que, para o conhecimento de um recurso de revista pelo TST, não basta que

o Tribunal Regional competente para conhecer e julgar o recurso ordinário tenha, em sede do

mesmo, aplicado a norma jurídica através de uma interpretação não compatível com as

demais compartilhadas pelos outros Tribunais ou Tribunais Superiores; ou que, na decisão,

fique caracterizado o desrespeito de normas jurídicas, até mesmo da Constituição da

República. Se tais situações geram conseqüências supostamente circunscritas ao espectro

individual, ou seja, que atinjam exclusivamente o direito das partes processuais, não se

justifica a movimentação do aparato jurisdicional do TST para a apreciação da questão.49

Como, então, entender os reflexos que transcendam o prisma individual do litígio? Uma

proposta é fornecida por Gomes Junior (2002:119), de modo que se teria: a) reflexos econômicos: quando a decisão possuir potencial de criar um precedente outorgando um direito que pode ser reivindicado por um número considerável de pessoas (alteração nos critérios para se considerar a correção monetária dos salários de determinada categoria, p. ex.). b) reflexos políticos: na hipótese de decisão que altere a política econômica (obrigatoriedade de aumento para os servidores públicos regidos pela CLT, p. ex.). c) reflexos sociais: existirão quando a decisão deferir um direito ou indeferi-lo, e esta mesma decisão vier a alterar a situação fática de várias pessoas e; d) reflexos jurídicos: este é um requisito relevante, sob vários aspectos. Será relevante a matéria deduzida no recurso de revista todas as vezes que for contrária ao que já decidido pelo TST ou estiver em desacordo de jurisprudência do STF. Outra proposta de interpretação vem de Martins Filho (2000:60), pautada no

texto do Projeto de Lei n. 3.267/00, que definia o que vinha a ser cada reflexo

transcendente.50 No caso da transcendência econômica, essa é concebida como “a

ressonância de vulto da causa em relação à entidade de direito político ou economia mista, ou

a grave repercussão da questão na política econômica nacional, no seguimento produtivo ou

no desenvolvimento regular da atividade empresarial”. Outra referência de sua caracterização

seria “uma causa de valor muito elevado” (MARTINS FILHOS, 2000:60). Já a

transcendência política diz respeito ao princípio federativo, principalmente “à harmonia entre

os Poderes constituídos”. Para Martins Filho (2000:58), a principal situação que ensejaria a 49 Desde já, uma questão que deve ser colocada, para ser resgata ao longo da presente investigação: partindo de

uma compreensão procedimental do Estado Democrático de Direito, ainda é possível sustentar, como nos mesmos moldes dos paradigmas anteriores, uma relação de concorrência entre público e privado?

50 Diferente é a opção feita no texto da medida provisória, uma vez que esta deixa para o Regimento Interno do TST a regulamentação e o detalhamento da questão.

Page 39: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

39

apreciação do recurso de revista por presente a transcendência política seria a manutenção da

uniformidade da jurisprudência trabalhista pelos Tribunais Regionais do Trabalho (TRT),

evitando a instalação de disputas como as já conhecidas “guerras fiscais”, o que, no caso

trabalhista, caracterizar-se-ia pela migração de empresas e/ou trabalhadores atrás de melhores

condições de lucro e remuneração, respectivamente. Por sua vez, ter-se-ia como presente a

transcendência social, quando fosse possível constatar “a existência de situação

extraordinária de discriminação, de comprometimento do mercado de trabalho ou de

perturbação notável à harmonia entre capital e trabalho”. Por fim, a transcendência jurídica

estaria presente quando houvesse “o desrespeito patente aos direitos humanos fundamentais

ou aos interesses coletivos indisponíveis, com comprometimento da segurança e estabilidade

das relações jurídicas”. Seriam quatro as situações: (1) demandas resultantes da propositura de

ações civis públicas que discutam interesses difusos ou coletivos; (2) processos nos quais haja

a participação do sindicato como substituto processual da categoria na defesa de direitos

individuais homogêneos; (3) causas cujo objeto de discussão seja o desrespeito de

fundamento maior, situação essa identificada por Martins Filho (2000:58) como ofensa ao

Direito Natural; (4) processos oriundos de Tribunais Regionais do Trabalho que se recusem a

acatar a jurisprudência pacificada do TST ou do STF.

Tomando as teses acima expostas, pode-se chegar a algumas considerações

importantes. Uma primeira observação necessária é o fato de o fundamento jurídico para

admissão do recurso concorrer em igualdade com os demais fundamentos de natureza

econômica, política e social, como exigência alternativa.51 Outro ponto a ser destacado é que

tanto as leituras feitas por Gomes Junior (2002) quanto por Martins Filho (2000) sobre os

possíveis desdobramentos da transcendência demonstram uma tentativa de responder ao

problema por meio de definições materializantes (substantivas ou semânticas52), que

51 Como será mais bem detalhado no capítulo 4 da presente pesquisa, tal leitura acaba por igualar razões jurídicas

com argumentos de outras origens no curso dos discursos (processos) de aplicação da norma, comprometendo o código do Direito, o que, ao final, representará em perda de legitimidade das decisões.

52 Segundo Ferrater Mora (2001:2630-2632), o termo semântica tem sua autoria atribuída a Michel J. A. Bréal, originalmente cunhado para designar a ciência que se ocupava dos significados das palavras. Com Charles W. Morris, ficou entendido como o nível de análise semiológico que estuda as relações entre signos e os objetos aos quais eles podem ser aplicados. Todavia, uma abordagem limitada à semântica poderia até englobar o nível sintático (relação dos signos entre si), mas corre o risco de perder de vista o nível pragmático – que seria responsável pela análise da relação entre o signo e os sujeitos envolvidos no processo de comunicação (GALUPPO, 2002:109). No capítulo 3, ao se estudar o giro lingüístico (hermenêutico-pragmático), ficará mais clara a importância que a dimensão pragmática adquirirá no cenário do pensamento filosófico atual, com grande repercussão para o Direito. Segundo Galuppo (2002:109), uma teoria como a kelseniana preocupa-se em entender a validade do Direito como uma relação entre normas, de modo que apenas se avista a dimensão sintática. Já as teorias hermenêuticas do Direito ater-se-ão ao sentido das normas jurídicas, na relação da norma com o seu significado. Apenas no nível pragmático é que será eleito, como tema central, o problema da conduta humana e, portanto, a questão de fundamentação da legitimidade do Direito. Como será constatado

Page 40: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

40

consideram o que seja transcendente de maneira antecipada, isto é, independentemente do

caso específico sub judice. Como será explicado no capítulo 2, essa forma de compreender o

Direito é típica de uma interpretação presa a um “modelo de regras” (Dworkin,1999) e não a

um “modelo de princípios”. Se partirmos de uma concepção procedimentalista do Direito [como tentará levar a acabo a presente investigação], em que qualquer proposição jurídica é fruto de interpretação, sobre o pano de fundo de visões paradigmáticas concorrentes, não se pode pré-definir o “conteúdo”ou a “extensão total”de um dispositivo normativo que ganha sentido a cada novo caso concreto, predeterminando-se materialmente a argumentação jurídica. É necessário, mais uma vez, romper com uma teoria material do Direito e dos direitos que estabelece um modelo padrão, fixo, para sua “efetivação”, até mesmo porque a dinâmica de uma sociedade democrática e pluralista não coaduna com visões privilegiadas e excessivamente concretas do que seja vida, liberdade, igualdade, segurança, trabalho ou até mesmo, dignidade humana (CATTONI DE OLIVEIRA, 2003:134-135). Martins Filho (2000:56) e Mattioli (2001:138) reconhecem que a abertura

semântica que pode ser atribuída ao requisito da transcendência é grande, sendo, portanto,

intencional a opção feita no texto da Medida Provisória n. 2.226/01. Tal opção tem como

objetivo abrir um espaço de indeterminação para que, por meio do poder discricionário do

aplicador oficial (isto é, os Ministros do TST), constate-se a existência de elementos no

recurso que sejam ou não transcendentes.53 O uso dessa discricionariedade seria, portanto,

inerente ao requisito e elemento fundamental para que o mesmo atinja sua finalidade – qual

seja a de permitir a filtragem de recursos cuja matéria não possa ser classificada como

imprescindível para o atendimento do interesse público. Para Mattioli (2001:138), a decisão

sobre o requisito de transcendência é eminentemente um ato de natureza política e não

jurídica, logo a sociedade deveria confiar na capacidade dos Ministros do TST para selecionar

causas que atendam ao “bem comum”. Todavia, essa noção de “bem comum” ou “interesse

público” permanece sem problematização no discurso de seus defensores. Gouveia, Wronski e

Villar (2001:147) observam que é necessário promover um raciocínio pautado em bases

mais à frente, a Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas pode ser compreendida como uma teoria pragmática, mas não toma como referência apenas esse nível, ela envolve e supera os níveis anteriores, tornando-se mais complexa e bem abrangente em seu conteúdo de análise. Parte do desafio posto, então, para a presente pesquisa, decorre da tentativa de pensar o Direito a partir desse nível pragmático-procedimental, o que implica voltar o olhar para o caso concreto, tomando esse como a principal referência para o momento discursivo de aplicação do Direito. Como conseqüência, definições materializantes (ou semânticas) padecem de insuficiências, uma vez que não são capazes de compreender o Direito como prática argumentativa de uma sociedade. Um exemplo é a precária diferenciação entre direitos individuais, direitos sociais, direitos coletivos e direitos difusos exposta por Cattoni de Oliveira (2003). Ao se passar a uma compreensão procedimentalista do Direito, percebe-se que a distinção se enfraquece como conteúdo estanque e que, em diferentes casos, uma argumentação adequada pode conduzir a uma leitura do direito à liberdade de expressão que transite entre o direito individual, coletivo, social e até difuso.

53 Segundo Martins Filho (2000:56): “O critério de transcendência previsto para a admissibilidade do recurso de revista para o TST dá, ao Tribunal e seus ministros, uma margem de discricionariedade no julgamento dessa modalidade recursal” (grifos no original).

Page 41: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

41

utilitaristas a fim de ser possível identificar o que seja um reflexo de natureza transcendente, o

que significa que os objetivos jurídico-legais são deixados de lado.54

Aliado à preocupação decorrente da adoção de uma interpretação

materializante do que sejam os reflexos transcendentes, a opção marcada no art. 2º da Medida

Provisória n. 2.226/01,55 pela regulamentação por meio do Regimento Interno do TST,

levanta mais um ponto importante: a exclusão da participação dos atingidos da norma, haja

vista que os conceitos do que seria ou não um reflexo transcendente da ordem econômica,

política, social ou jurídica seriam estabelecidos de maneira anterior ao caso em discussão, ao

invés de serem (re)construídos no discurso processual, deixando de levar em conta os

argumentos levantados pelas partes. Esse ponto ficará mais claro após algumas reflexões que

lhe são pressupostas: (1) uma reconstrução da compreensão procedimental de processo e (2) a

crítica a uma compreensão semântica do Direito, a serem realizadas no próximo capítulo; (3)

a compreensão da dimensão pragmática da linguagem ordinária e da linguagem jurídica e (4)

a concepção de Direito como integridade de Dworkin, no terceiro capítulo; (5) a compreensão

da dimensão discursiva do Direito, a partir da abertura para a racionalidade comunicativa e da

tomada de consciência da tensão entre facticidade e validade nos discursos de aplicação, que

levanta exigência não apenas de coercitividade por parte das decisões do Judiciário, mas ainda

de legitimidade, a ser vista no capítulo 4.

1.2.2. A argumentação desenvolvida pela petição inicial do Conselho Federal da Ordem dos

Advogados do Brasil

No dia 14 de setembro de 2001 – apenas dez dias após a edição da Medida

Provisória n. 2.226 – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por

meio da competência que lhe foi atribuída no art. 103, VII, da Constituição da República de

1988, propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), autuada sob o n. 2.527-9.

54 Conforme será visto no capítulo 3 da presente pesquisa, essa mesma crítica pode ser remetida ao pensamento

de Dworkin (1999:292), que defende veementemente a impossibilidade de decisões judiciais serem tomadas com base em argumentos de política em detrimento de argumentos de princípios, violando-se direitos e deveres.

55 “Art. 2º. O Tribunal Superior do Trabalho regulamentará, em seu regimento interno, o processamento da transcendência do recurso de revista, assegurada a apreciação da transcendência em sessão pública, com direito à sustentação oral e fundamentação da decisão”.

Page 42: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

42

Em sua fundamentação, argumentou a existência de diversas ofensas à

CR/88 – sete violações ao todo56 – além de terminar com o pedido de que liminarmente fosse

suspensa a eficácia de todos os três artigos da Medida Provisória em questão.

O primeiro ponto defendido pelo Conselho Federal da OAB é a ausência

total de relevância e urgência como requisitos autorizadores para a edição de uma medida

provisória. Para a OAB, o requisito da relevância estaria ligado ao atendimento do interesse

público, ao passo que a urgência seria a situação na qual não pode haver espera, que demanda

uma ação imediata. Sobre esse ponto, lembra-se que a competência do Tribunal Superior do

Trabalho (TST) está prevista há anos na legislação, de modo que não se justificaria a alegação

de urgência com o atropelamento da discussão no Congresso Nacional. Além do mais, a

matéria regulada pela Medida Provisória é de natureza processual, o que levanta a

necessidade de uma maior discussão sobre seus termos.

Interessante notar que Silva (2001:59), em trabalho enfocando a questão,

preocupa-se em rebater a tese sustentada pelo Conselho Federal da OAB e em levantar uma

questão inicial importante dentro da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF): por

muito tempo foi defendida a tese de que os requisitos de relevância e urgência –

imprescindíveis para a edição de uma medida provisória – seriam questões circunscritas à

esfera discricionária do Presidente da República, isto é, seriam questões políticas,57 conforme

posição assumida originalmente pelo Tribunal para o Decreto-Lei através do voto do Min.

Aliomar Baleeiro (RE n. 62.739-SP) e confirmada em outros votos seguintes, inclusive

estendendo o mesmo argumento para as Medidas Provisórias após a Constituição da

República de 1988, com particular destaque para o voto proferido pelo Min. Nelson Jobim no

julgamento da medida cautelar da ADI n. 1.610-5.58 De maneira muito sintética, o Min.

Baleeiro afirma:

56 Segundo a petição inicial, a Medida Provisória citada ofende a Constituição da República nos art. 62; art. 246;

art. 22, I; art. 24, IX; art. 111, §3º; art. 1º; art. 37, caput; art. 5o, caput e incisos II, XXXVI e LV. Já na visão de Antônio Alvarez da Silva (2001), essas questões podem ser reagrupadas em três grupos temáticos que abrangem uma discussão maior.

57 O problema das questões políticas será objeto de discussão no próximo capítulo, mas é recomendada a leitura da reconstrução histórica promovida em BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. A Nova Hermenêutica na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crises e desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

58 Essa discussão ficou muito bem ilustrada no julgamento da ADI n. 1.610-5 (Medida Cautelar), cujo relator foi o Min. Sydney Sanches, quando se discutiu sobre os limites de reedição de medidas provisórias. Todavia, foi na discussão ocorrida entre os Ministros Marco Aurélio e Nelson Jobim que a questão dos limites que se pode atribuir ao espaço de criação normativa por parte das medidas provisórias ganhou mais transparência. A discussão paralela sobre a possibilidade de continuidade ou não do Plano Real, editado por meio de medida provisória, se justificaria a partir de uma ótica utilitarista defendida pelo Min. Jobim. Entretanto, foi rechaçada

Page 43: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

43

Não me parece duvidoso que a apreciação da “urgência” ou de “interesse público relevante” assume caráter político: é urgente ou relevante o que o Presidente entender como tal, reservado que o Congresso pode chegar a julgamento de valor contrário, para rejeitar o decreto-lei. Destarte, não pode haver revisão judicial desses dois aspectos entregues à discricionariedade do Executivo, que sofrerá apenas correção pelo discricionarismo do Congresso (grifos no original). A partir dessa compreensão, o Poder Judiciário se veria impossibilitado de

analisar o ponto de maneira mais profunda, examinando o mérito; logo deveria ficar restrito

aos aspectos meramente formais do ato. Todavia, após um longo processo de discussão, o

entendimento do Tribunal sofreu alterações consagradas pela Emenda Constitucional n.

32/2001, o que foi decisivo para limitar o poder de edição de medidas provisórias. Assim,

deve-se concordar com Souza Cruz (2004:301) e Souza Júnior (2004:149), no sentido de que

a ADI n. 1.397-1 (Medida Cautelar) é bastante ilustrativa de uma nova posição assumida pelo

STF: [...] II – Requisitos de urgência e relevância: caráter político: em princípio, a sua apreciação fica por conta dos poderes Executivo e Legislativo, a menos que a relevância ou a urgência evidenciar-se improcedente (grifos nossos). Entretanto, lembra Souza Júnior (2004:150), há mais nessa frase do que se

pode perceber numa primeira leitura, isso porque seu sentido acabou sendo o oposto do que

aparentemente possa parecer: A frase do acórdão, pela forma que foi estruturada, à primeira vista, transmite a impressão de que é excepcional a apreciação judicial da urgência e da relevância justificadoras da medida provisória. Entretanto, se a improcedência do requisito constitucional binário autoriza a atividade censória do tribunal, este, logicamente, deverá avaliar, em todos os casos, se a medida era realmente urgente e relevante. Assim, com um sutil jogo de palavras a Corte declarou-se competente para o exame de toda e qualquer medida provisória. Dessa forma, é possível compreender que a defesa realizada por Silva

(2001:60), ao justificar ainda uma possibilidade de ação discricionária, encontra justificativa

apenas em critérios políticos (pragmáticos) e, por isso, esbarra nos limites da legitimidade do

ato, o que é uma questão imprescindível para o paradigma procedimental do Estado

Democrático de Direito.

Conforme o resgate da reconstrução paradigmática realizada em tópico

anterior, a questão não pode ser posta apenas no nível da análise da legalidade do ato, ainda

mais quando o recurso a edições de medidas provisórias deslocam os discursos jurídicos de

produção legiferante de seu locus original, o Poder Legislativo. O segundo argumento que irá

fornecer suporte à tese de Silva (2001:61), então, apenas reafirma uma compreensão típica do

paradigma do Estado Social. Para o jurista, a medida provisória se justifica, mesmo sob o

pelo Min. Marco Aurélio, que defendeu prevalência do Texto Constitucional e do uso normal dos procedimentos de legislação como a opção mais democrática.

Page 44: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

44

custo do processo legislativo legitimador das decisões de produção normativa, porque o Poder

Executivo estaria posicionado de maneira mais próxima das questões de interesse social,

questões essas que são incompreensíveis para as discussões que tomam lugar nas searas do

Poder Judiciário, novamente concordando com a antiga posição do Min. Baleeiro, para quem

questões políticas são totalmente incompatíveis com o procedimento jurisdicional. Importante

adiantar que tal não mais é a posição assumida pelo STF, que, a partir do uso do “princípio”

da proporcionalidade – posição essa a ser criticada pelos marcos assumidos por essa

pesquisa, oportunamente – passou a entender pela possibilidade de apreciação jurisdicional,

bem como por uma dosagem do antigo dogma da supremacia do interesse público sobre o

interesse privado.

O segundo argumento trazido na petição do Conselho Federal da OAB é que

o art. 246 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da CR/8859 teria

sofrido ofensa. Isso porque o mesmo vedaria a regulamentação, por meio de medida

provisória, de artigo da Carta Magna que tenha sido alterado por Emenda Constitucional. Tal

seria o caso da redação do art. 111, posterior às alterações da Emenda Constitucional n.

45/2004.60 Esse artigo regulava a estrutura da Justiça do Trabalho, de modo a especificar no

seu § 3o que lei regulamentará a competência do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Todavia, ao tempo da edição da Medida Provisória n. 2.226/2001, o § 3o do art. 111 havia

59 A atual redação do art. 246, dada pela Emenda Constitucional n. 32/2001, apresenta-se da seguinte forma: “É

vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada entre 1º de janeiro de 1995 até a promulgação desta emenda, inclusive”. Todavia, a redação do mesmo artigo do texto constitucional, ao tempo da edição da Medida Provisória n. 2.226/2001, era conforme a redação dada pela Emenda Constitucional n. 7/95: “É vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada a partir de 1995”.

60 A redação anterior à Emenda Constitucional n. 45/2004 dispunha da seguinte forma: “Art. 111. São órgãos da Justiça do Trabalho: I - o Tribunal Superior do Trabalho; II - os Tribunais Regionais do Trabalho; III - as Juntas de Conciliação e Julgamento; III - Juizes do Trabalho. § 1º. O Tribunal Superior do Trabalho compor-se-á de dezessete Ministros, togados e vitalícios, escolhidos

dentre brasileiros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos, nomeados pelo Presidente da República, após aprovação pelo Senado Federal, dos quais onze escolhidos dentre juizes dos Tribunais Regionais do Trabalho, integrantes da carreira da magistratura trabalhista, três dentre advogados e três dentre membros do Ministério Público do Trabalho.

I - dezessete togados e vitalícios, dos quais onze escolhidos dentre juízes de carreira da magistratura trabalhista, três dentre advogados e três dentre membros do Ministério Público do Trabalho;

II - dez classistas temporários, com representação paritária dos trabalhadores e empregadores. § 2º. O Tribunal encaminhará ao Presidente da República listas tríplices, observando-se, quanto às vagas

destinadas aos advogados e aos membros do Ministério Público, o disposto no art. 94; as listas tríplices para o provimento de cargos destinados aos juízes da magistratura trabalhista de carreira deverão ser elaboradas pelos Ministros togados e vitalícios.

§ 3º - A lei disporá sobre a competência do Tribunal Superior do Trabalho” (grifos nossos).

Page 45: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

45

sido alterado na Emenda Constitucional n. 29/2000, o que impossibilitaria a edição de medida

provisória sobre a questão.

Como forma de negar a validade do argumento do Conselho Federal da

OAB, Silva (2001:65) entende que a norma do art. 246, da CR/88, refere-se a artigo, ao passo

que a Medida Provisória 2.226/2001 apenas buscou regulamentar parágrafo da Constituição.

Além do mais, a vedação expressa de edição de medidas provisórias versando sobre matéria

processual foi trazida apenas na Emenda Constitucional n. 32/2001, que é posterior à medida

provisória em questão. Silva (2001:65) alega que a Emenda que restringiu o poder de medidas

provisórias faz referência ao direito processual civil e penal, deixando de fora o direito

processual trabalhista, que ainda poderia ser objeto de medida provisória.

Ora, fica fácil identificar que tais argumentos observam o Direito apenas por

uma dimensão semântica – e, como já afirmado, apenas servem para indicar o apego do

presente jurista ao paradigma do Estado Social, bem como, a um Direito estático,

desvinculado de uma compreensão dinâmica da linguagem (pragmática).

Escapa desses argumentos a necessidade de compreender o Direito para

além de um mero conjunto de regras. Em ambas as colocações, ao se ultrapassar tal

perspectiva, poder-se-ia vislumbrar que a proibição de medida provisória sobre parágrafo da

Constituição estaria implícita na vedação à regulamentação de artigo. O mesmo se pode dizer

da inclusão do direito processual do trabalho, uma vez que a vedação é justamente de

qualquer norma processual, em sentido amplo, até mesmo porque, no art. 21, I, da CR/88, a

competência legislativa exclusiva da União é para o direito processual sem que subdivisões

sejam feitas.

Na petição inicial do Conselho Federal da OAB, defende-se que a Medida

Provisória n. 2.226/2001, ao não definir quais sejam os reflexos transcendentes (econômico,

político, social e jurídico), desrespeita o Estado de Direito, uma vez que não garante a

segurança jurídica (entendida aqui como previsibilidade) aos jurisdicionados. Tal

conseqüência violaria os artigos 1º (ofensa ao princípio do Estado de Direito), 5º (princípio da

segurança jurídica) e 37, II (princípio da legalidade), uma vez que, para os autores, as normas

jurídicas devem ser suficientes para o regramento da vida em sociedade, principalmente das

relações entre Estado e cidadãos. Todavia, esse não é o entendimento de Silva (2001:66), para

quem a “largueza” do conceito de transcendência não invalida a inserção do instituto no

Direito brasileiro. Até porque, para tal jurista, seguindo a esteira kelseniana, o aplicador do

Direito tem autorização normativa para completar a norma de acordo com um juízo de

discricionariedade. No caso em questão, uma primeira discrição do que seja transcendente

Page 46: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

46

seria fixado no Regimento Interno do TST, ficando os magistrados desse tribunal vinculados à

decisão regimentar.

Para Silva (2001:72), também pode ser descartada a alegação de violação do

princípio do devido processo, uma vez que o requisito da transcendência frisa a necessidade

de fundamentação da decisão que conhece ou não do recurso, bem como abre às partes a

oportunidade de sustentação oral específica sobre a questão. Além disso, a medida apenas

viria reforçar o princípio do devido processo – adiantando a alteração provocada pela Emenda

Constitucional n. 45/2004, que inseriu, no art. 5o,o inciso LXXXVIII, que trata do tempo

razoável dos processos judiciais e administrativos – uma vez que permitiria o desafogamento

das demandas já existentes, bem como impediria um novo acúmulo. Todavia, nota-se que o

jurista – assim como boa parte dos integrantes do movimento reformista – baseia-se numa

compreensão do processo a partir de bases meramente teleológicas, nas quais o foco está

centrado na figura do magistrado, colocando de lado a preocupação com a legitimidade da

decisão, condição apenas alcançada com a participação potencial das partes na construção do

provimento (sentença), o que será objeto de maior detalhamento no capítulo seguinte.

Infelizmente, a presente pesquisa não pode se servir da decisão do Supremo

Tribunal Federal quanto à constitucionalidade ou inconstitucionalidade da medida provisória

instituidora da transcendência no recurso de revista, procedendo a uma análise da mesma. Até

o final da investigação, ainda se encontrava suspensa a seção de julgamento da medida

liminar requerida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em sua petição

inicial.

1.3. Argüição de relevância, argüição de transcendência e repercussão geral da questão

constitucional: apenas uma troca de etiquetas?

É bastante comum a afirmação de que a argüição de transcendência é uma

espécie modificada da antiga argüição de relevância prevista no curso do Regime Militar,61 de

modo que o mesmo raciocínio jurídico aplicado nessa também valeria para a recente

repercussão geral das questões constitucionais discutidas, instituto consagrado na Emenda

Constitucional n. 45/2004. Mas será que tal afirmação encontra correspondência teórica? Será

61 Os autores, dentre eles Gomes Junior (2002) e Martins Filho (2000), chegam a lançar mão das duas expressões

como se fossem sinônimas, tratando até pelo termo genérico relevância/transcendência.

Page 47: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

47

que o modelo da argüição de relevância pode ser tomado como base para os outros dois

institutos? Ou será que os argumentos que acusam de inconstitucionalidade a Medida

Provisória, responsável por inserir o requisito de transcendência na ordem processual

trabalhista, também não sustentam a inconstitucionalidade do instituto da repercussão geral na

Emenda Constitucional n.45/2004? Dessa forma, a fim de tentar encontrar uma resposta para

as questões acima, deve-se perquirir o instituto da argüição de relevância para, só depois,

confrontar com os outros dois institutos.

A argüição de relevância da questão federal – ou apenas argüição de

relevância, como ficou mais conhecida – foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro como

medida capaz de reduzir o volume de recursos extraordinários dirigidos para o Supremo

Tribunal Federal (STF), que, conforme estatística apresentada por Baptista (1976:31),

representava 80% dos feitos submetidos àquele tribunal.

Muitos juristas62 alegam tratar-se de uma tentativa de importar, com

adaptações, a figura do writ of certiorari do Direito norte-americano. Conforme fixado na

Rule 10 da Suprema Corte,63 exige-se, para o conhecimento do recurso, a demonstração de

importantes e especiais razões64 que serão avaliadas pela Corte, de modo que não se trataria

de um direito à revisão da decisão anterior. O Justice Frankfurter sintetiza a questão dizendo

que o caso que chega à Suprema Corte é o caso que a Corte permite chegar a ela (apud

Tavares, 2004:54). Todavia, muitos autores, em suas pesquisas, buscam demonstrar a

existência de uma racionalidade prática inerente à atividade,65 o que demonstra que a questão

não é pacífica e mereceria uma análise pormenorizada, que escaparia aos propósitos do

62 Dentre alguns, pode-se mencionar o pensamento de Tavares (2005:212-213): “O Pretório Excelso adotou,

pois, a referida solução [a argüição de relevância], de cunho extremamente restritivo e discricionário, espelhando-se no modelo norte-americano do writ of certiorari (próprio de um sistema jurídico-judicial, como o brasileiro, que admite o controle difuso-concreto da constitucionalidade, preenchendo as atribuições do tribunal superior, em sua maioria, mediante o formato recursal de provocação)”.

63 A Rule 10 estabelece o cabimento de recurso quando: “(c) a state court or a United States court of appeals has decided an important question of federal law which has not been but should be, settled by this Court, or has decided an important federal question in a way that conflicts with relevant decisions of this Court”. A Rule 19 complementa: “a review on writ of certiorari is not a matter of right, but of sound judicial discretion, and will be granted only where there are special and important reasons therefore”.

64 Muito se questiona sobre a natureza das razões que motivam a escolha de um caso determinado e não de outro. Para Tribe (American Constitutional Law. 2 ed. New York: The Foundation Press, 1988. p. 22), seriam considerações de ordem política e de prudência que guiariam as escolhas da Corte. Segal e Spaeth (The Supreme Court and the Attitudinal Mode. Cambridge: Cambridge University Press, 1993), por sua vez, alegam tartar-se de decisões ligadas às preferências políticas pessoais de cada justice.

65 Fallon Jr. (1997) irá desenvolver um minucioso ensaio sobre a aplicação das normas constitucionais por parte da Suprema Corte norte-americana. Para tanto, ele apresenta uma teoria que sistematiza os testes utilizados pela Corte para selecionar e solucionar os casos que lhe são apresentados, dividindo esses casos em dois grupos: casos comuns, que podem ser resolvidos apenas através da aplicação de uma moldura de possibilidades fixadas em casos anteriormente decididos; e casos extraordinários, que demandam uma análise nova das questões principiológicas envolvidas no caso.

Page 48: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

48

presente estudo. Dessa forma, apenas se pretendeu demonstrar que a afirmação de que os

magistrados da Suprema Corte detêm um poder discricionário para a seleção de casos não

constitui senso comum, mesmo para os juristas norte-americanos, quanto a sua aplicação

prática ou, ainda, quanto à legitimidade dos Justices para tal seleção.66

Mesmo assim, a discussão norte-americana é importante para explicar como

os diversos autores consideram a relevância (o que se repete com a transcendência) à luz de

argumentos políticos e não jurídicos. Essa é a tese endossada por diversos juristas, inclusive

nacionais, bem como por membros da magistratura, com destaque para os ex-Ministros

Moreira Alves e Sydney Sanches (1988:259). Como conseqüência da natureza política,

decorreria o critério de conveniência, que fundamentaria a possibilidade de discricionariedade

na seleção das causas.

Por meio da Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969, o STF

adquiriu competência para indicar, no seu Regimento Interno, as causas a serem julgadas em

grau de recurso extraordinário por negativa de vigência de tratado ou lei federal (1) ou, ainda,

por dissídio jurisprudencial (2); podendo assim limitar sua atenção ao julgamento de causas

que considerava relevantes devido à sua natureza, espécie ou valor pecuniário; diminuindo,

em tese, o volume de demanda a que estava submetido.67

A Emenda Regimental n. 3/75 ao Regimento Interno do Supremo Tribunal

Federal (RISTF) cuidou do assunto, ao fixar as causas que, em princípio, não seriam

examinadas pelo Tribunal: Art. 308. Salvo nos casos de ofensa à Constituição ou relevância da questão federal, não caberá recurso extraordinário, a que alude o seu artigo 119, parágrafo único [da EC n. 1/69], das decisões proferidas: I. nos processos por crime ou contravenção a que não sejam cominadas penas de multa, prisão simples ou detenção, isoladas, alternadas ou acumuladas, bem como as medidas de segurança com eles relacionadas; II. nos habeas corpus, quando não trancarem a ação penal, não lhe impedirem a instauração ou a renovação, nem declararem a extinção da punibilidade; III. nos mandados de segurança, quando não julgarem o mérito; IV. nos litígios decorrentes: a) de acidente do trabalho; b) das relações de trabalho mencionadas no artigo 110 da Constituição; c) da previdência social; d) da relação estatutária de serviço público, quando não for discutido o direito à constituição ou subsistência da própria relação jurídica fundamental;

66 Essa é a posição defendida por Dworkin, que combate a tese da discricionariedade na atividade jurisdicional,

além de defender que questões ligadas a argumentos de política (policy) não podem se sobrepor a argumentos de princípio (direitos), conforme será visto detalhadamente no capítulo 3 desta pesquisa.

67 À época da Emenda Constitucional n. 1, o Min. Aliomar Baleeiro, conforme Baptista (1976:32), lembrou que tal redução, no caso do Direito norte-americano, deveria ser feita por meio do Congresso, não pela Suprema Corte. Mas o autor considerou que a solução brasileira era mais inovadora, por estar dando maior independência ao Judiciário, até por que, com isso, estar-se-ia livrando o Tribunal do “inconveniente diálogo” com o Legislativo, tão volúvel às convicções políticas.

Page 49: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

49

V. nas ações possessórias, nas de consignação em pagamento, nas relativas à locação, nos procedimentos sumaríssimos e nos processos cautelares; VI. nas execuções por título judicial; VII. sobre extinção do processo, sem julgamento do mérito, quando não obstarem a que o autor intente de novo a ação; VIII. nas causas cujo valor, declarado na petição inicial, ainda que para efeitos fiscais, ou determinado pelo juiz, se aquele for inexato ou desobediente aos critérios legais, não exceda de 100 vezes o maior salário-mínimo vigente no País, na data do seu ajuizamento, quando uniformes as decisões das instâncias ordinárias; e de 50, quando entre elas tenha havido divergência, ou se trate de ação sujeita à instância única. Dessa forma, o critério da relevância atuava como um elemento positivo

sobre o juízo de admissibilidade recursal, isto é, as matérias acima apresentadas já estavam a

priori excluídas da apreciação pelo STF, sendo que tal pressuposição de irrelevância somente

deveria ser derrubada argumentativamente, situação essa que levaria a um julgamento a parte

– secreto e sem qualquer motivação –, no qual se verificaria a sua ocorrência. Todavia, o que

se pode entender como questão federal relevante?

Tomando o exemplo do Direito norte-americano, conforme estudo do Min.

Victor Nunes Leal,68 esclarece Baptista: [...] a relevância, para esse efeito, será apurada especialmente do ponto de vista do interesse público. Em princípio, qualquer problema de aplicação da lei é de interesse público. Mas, na prática, muitas questões têm repercussão limitada às partes, ou a pequeno número de casos, e há problemas legais cujas conseqüências são muito reduzidas, mesmo para as partes, servindo antes como pretexto para manobras protelatórias ou que visam a subtrair o mérito do litígio ao direito aplicável. Muitas controvérsias sobre o direito processual estão compreendidas nesta última hipótese (1976:35). Assim, o artifício da relevância seria um mecanismo hábil, não somente

para afastar causas de menor importância à luz do interesse público, bem como capaz de

restabelecer a posição de origem do Supremo Tribunal Federal como órgão de cúpula do

Poder Judiciário – razão pela qual não se poderia perder tempo com demanda de menor

importância.69 A cúpula do Judiciário brasileiro, portanto, deveria estar desimpedida para

exercer sua função de controle e uniformização da interpretação do direito constitucional e

federal.70 Para tanto, se fazia necessária a introdução de um mecanismo capaz de ampliar a

esfera de discricionariedade dos julgadores. Segundo os defensores dessa tese, conforme já

68 Trata-se dos estudos de STERN & GRESSMANN. Supreme court practice. 3 ed., 1962, p. 16, apud LEAL,

Victor Nunes. Revista de Direito Processual Civil. São Paulo. v. VI. p. 17. 69 Ora, com essa leitura, pode-se perceber a compreensão dicotômica tão naturalmente presente no paradigma do

Estado Social, no qual o público (sinônimo de estatal) adquire relevância sob o individual (provindo da sociedade). Uma das questões a ser posta pelo presente trabalho para enfrentamento será como deve ser compreendida a relação público/privado à luz do paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito.

70 Importante lembrar que apenas após a Constituição da República de 1988 se deu a criação do Superior Tribunal de Justiça, integrando o quadro dos Tribunais Superiores e recebendo a competência para apreciação das questões relativas à legislação infraconstitucional, tendo como via recursal para tanto o instituto do recurso especial (art.105, CR/88). Mesmo assim, à luz do paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito, ainda se pode indagar se esse entendimento é adequado.

Page 50: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

50

visto, o Positivismo Normativista de Hans Kelsen fornece apoio teórico, compreendendo a

discricionariedade como condição essencial para o exercício da atividade jurisdicional

(MARTINS FILHO, 2000:57).71

Lembra Tavares (2005:214) que a Emenda Regimental n. 3/75 teve sua

constitucionalidade posta em dúvida, uma vez que alguns autores72 consideravam que “o

permissivo constitucional que demandava norma regimental jamais se referiu à relevância da

questão (suscitada no processo) como critério (exigência) válido a ser considerado pelo

regimento, mas apenas aos três referidos (natureza, espécie ou valor)”. É, por isso, que, com a

Emenda Constitucional n. 7/77, foi dada uma nova redação à CR/69, de modo a incluir

explicitamente a expressão “argüição de relevância” e a fortalecer ainda mais a tese da

discricionariedade para conhecimento das matérias veiculadas em sede de recurso

extraordinário, colocando um ponto nessa questão.

Todavia, a partir da Emenda Regimental n. 2/85 ao RISTF, operou-se uma

mudança no instituto: [...] em vez de elencar as hipóteses em que, ressalvada a demonstração de relevância, não caberia recursos extraordinários, preferiu enumerar quais as causas que comportariam os recursos extraordinários, sendo que, para as demais, só demonstrada a relevância da questão federal (MARTINS FILHOS, 2000:50). A redação do art. 325 ficou, então, da seguinte forma: Art. 325. Nas hipóteses das alíneas "a" e "d" do inciso III do art. 119 da Constituição Federal, cabe recurso extraordinário: I. nos casos de ofensa à Constituição Federal; II. nos casos de divergência com a Súmula do Supremo Tribunal Federal; III. nos processos por crime a que seja cominada pena de reclusão; IV. nas revisões criminais dos processos de que trata o inciso anterior; V. nas ações relativas à nacionalidade e aos direitos políticos; VI. nos mandados de segurança julgados originariamente por Tribunal Federal ou Estadual, em matéria de mérito; VII. nas ações populares; VIII. nas ações relativas ao exercício de mandato eletivo federal, estadual ou municipal, bem como às garantias da magistratura; IX. nas ações relativas ao estado das pessoas, em matéria de mérito; X. nas ações rescisórias, quando julgadas procedentes em questão de direito material; XI. em todos os demais feitos, quando reconhecida a relevância da questão federal.

71 Afirma Abreu (1979:170): “A discricionariedade, dentro dos limites da lei, é uma das prerrogativas da função

jurisdicional; foi, justamente, no sentido de consolidá-la, na exata medida em que deve ser atribuída aos seus pares, que o Supremo Tribunal Federal, ao elaborar a emenda Regimental n. 3, introduziu o requisito da ‘relevância da questão federal’, elemento de natureza subjetiva das causas e destinado a funcionar como válvula de escape aos casos de não cabimento do recurso extraordinário de que tratem as letras a e d do inciso III do art. 119 da Constituição Federal”.

72 Um autor citado por Tavares (2004:52) é MACHADO, Marcondes. Argüição de Relevância: a competência para seu exame. O ulterior conhecimento do recurso extraordinário. Revista de Processo. São Paulo. a. II. n. 42. 1986. p. 58.

Page 51: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

51

Assim, nas hipóteses previstas acima, no inciso XI, a relevância estaria

pressuposta. Mas o critério, ainda assim, continuava obscuro: ainda não era possível

compreender com clareza o que significava relevância da questão federal, o que mantinha a

principal crítica ao instituto. Procurando saná-las, o art. 327 do RISTF procurou explicitar o

conceito: Art. 327. [...] § 1º Entende-se relevante a questão federal que, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal (grifos nossos). Interessante notar que o dispositivo citado parece realmente ter servido de

inspiração para o instituto da transcendência. Todavia, o novo instituto olvidou-se da

possibilidade de autorização para interposição de recursos de revista quando o caso apresentar

aspectos morais Mesmo assim, as críticas sobre o que pode ser considerado como aspectos

relevantes de ordem jurídica, econômica, política ou social – já discutidas no tópico anterior

em face da análise da transcendência – se repetem, pois todos esses requisitos nada mais

faziam do que reforçar a posição assumida pelo Min. Nunes Leal, para quem a relevância

poderia se resumir na demonstração de que a questão não estava restrita ao interesse das

partes litigiosas, adquirindo importância, principalmente, para o público. Mas, como tal

compreensão de público é por demais elástica, o magistrado acabava por reconhecer que a

questão deveria ficar ligada ao subjetivismo dos julgadores, haja vista que tal condição seria

atividade intrínseca à “função de julgar”.73

Sobre seu processamento, Martins Filho (2000:51) explica que a argüição

deveria se dar em capítulo separado da peça recursal ou em instrumento separado, em autos

apartados (art. 327). Como ônus processual, cabe ao argüente o pagamento das custas e

despesas na formação do instrumento e remessa e retorno do mesmo ao STF (LAMY,

2005:169). Antes da sessão, os ministros receberiam um extrato e a argüição seria acolhida se,

pelo menos, quatro deles se mostrassem favoráveis (art. 328, §5º, VIII). Uma ata seria

publicada para ciência das partes, nela constando quais argüições foram acolhidas e quais

foram rejeitadas. Todavia, a decisão seria irrecorrível (art. 328, §5º, VII e VIII) e não

apresentaria qualquer fundamentação ou mesmo motivação. Sobre esse último aspecto, basta

lembrar que, no entendimento do Tribunal, bem como no de grande parte dos juristas, a

questão era de natureza política e, por isso mesmo, tratava-se de uma seção administrativa,

não jurisdicional (SANCHES, 1988:260). Logo, afirmavam que não havia qualquer exigência 73 Tal posição é retratada por Martins Filho (2000:50-51) a partir do ensaio NUNES LEAL. O requisito da

relevância para redução dos encargos do Supremo Tribunal. Revista de direito processual civil. São Paulo, v. VI, p. 17.

Page 52: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

52

normativa para que a mesma fosse feita de maneira pública. É importante ressaltar que o

acolhimento da argüição em nada significaria o conhecimento do recurso extraordinário;

ainda caberia ao relator verificar a presença dos pressupostos genéricos e específicos de

admissibilidade do recurso.

Além do mais, uma razão pragmática justificava a ausência de

fundamentação das decisões, pois, se: “[...] a decisão tivesse de ser fundamentada, estaríamos

ampliando consideravelmente o número de sessões plenárias do Tribunal, que já são duas por

semana. E a avalancha de processos continuaria invencível” (SANCHES, 1988:260). A

solução foi a implantação de verbetes quando se acolhesse, na decisão, a argüição de

relevância.74

74 Segundo lista apresentada pelo Min. Sydney Sanches (1988:260-262), os verbetes existentes seriam os

seguintes e estariam classificados conforme a espécie específica de relevância: “N. 1: Critério de reajustamento de prestação de mutuário do SFH. Relevância econômico-social. N. 2: Honorários de defensor dativo de réu pobre em processo crime. Relevância jurídica. N. 3: Equivalência de valores em ação de depósito. Relevância jurídica. N. 4: Precatório expresso em ORTN. Relevância jurídica. N. 5: Porte de pequena quantidade de maconha. Relevância jurídico-social. N. 6: Termo inicial dos juros moratórios em desapropriação. Relevância jurídica. N. 7: Efeitos secundários da sentença que concede perdão judicial. Relevância jurídica. N. 8: Prazo de prescrição em ação pessoal contra sociedade de economia mista. Relevância jurídica. N. 9: Incidência de ISS sobre arrendamento mercantil (leasing). Relevância jurídico-econômica. N. 9-A: ISS - Competência - Determinação do lugar da ocorrência do fato gerador. Relevância jurídica. N. 10: Necessidade de vistoria em quebra de peso de carga em transporte marítimo. Relevância econômica. N. 11: Termo inicial dos juros moratórios em repetição do indébito. Relevância jurídica. N. 11-A: Termo inicial dos juros moratórios em repetição do indébito fiscal. Relevância jurídica. N. 12: Correção monetária da oferta em desapropriação. Relevância jurídica. N. 12-A: Correção monetária em ação declaratória. Relevância jurídica. N. 12-B: Correção monetária - Efeito da mora no cumprimento de precatório. Relevância jurídica. N. 12-C: Correção monetária em concordata e falência. Relevância jurídica. N. 12-D: Correção monetária de depósito elisivo em falência. Relevância jurídica. N. 12-E: Termo inicial da correção monetária na repetição de indébito fiscal. Relevância jurídica. N. 13: Prescrição em ação de acidente do trabalho. Relevância jurídica. N. 14: Natureza de responsabilidade civil do dono do edifício pelos danos resultantes de sua ruína. Relevância

jurídica. N. 15: Cumulação de auxílio suplementar, por acidente de trabalho, com aposentadoria por tempo de serviço.

Relevância jurídico-social. N. 16: Competência administrativa para fiscalização de poluição ambiental. Relevância jurídico-social. N. 17: Título de crédito com valor expresso em ORTN. Relevância jurídico-econômica. N. 18: Subordinação de renúncia à defesa, na esfera administrativa, para a propositura de ação judicial.

Relevância jurídico-econômica. N. 19: Termo inicial de correção monetária sobre honorários de advogado. Relevância jurídica. N. 20: Acréscimo cobrado juntamente com IPTU por falta de inscrição imobiliária. Relevância jurídica. N. 21: Taxa de localização e funcionamento: base de cálculo. Relevância jurídica. N. 22: Responsabilidade civil por dano moral decorrente de publicação de jornal. Relevância jurídica. N. 23: Critério de determinação de alçada para apelação. Relevância jurídica. N. 24: Salário mínimo como fator de reajuste de benefício da previdência privada. Relevância sócio-jurídica. N. 25: Registro - Legitimidade passiva do alienante de veículo automotor em responsabilidade civil por acidente

de trânsito. Relevância jurídica. N. 26: Responsabilidade civil do transportador - Dano moral em caso de morte. Relevância sócio-jurídica. N. 27: IPTU - Publicação dos anexos da lei municipal. Relevância jurídica. N. 28: Responsabilidade civil por furto de veículo em estacionamento reservado. Relevância jurídica.

Page 53: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

53

E acrescenta o Min. Sydney Sanches (1988:260), em um tom bastante

queixoso: “E estes já atingem várias dezenas, permitindo, por sua abrangência, o acesso de

recursos extraordinários, pelas letras ‘a’ e ‘d’, em milhares de causas”. Fato é que esses

verbetes passaram a funcionar de maneira bem semelhante a enunciados produzidos pelo

Tribunal.

Todavia, a realidade mostra-se bem mais complexa que a racionalidade

humana consegue abarcar. Mais uma vez o aprendizado histórico do primeiro paradigma

moderno se fez presente, as situações concretas, presentes na prática social, são por demais

ricas, de modo que se mostra impossível ao legislador – o que se aplica também ao Tribunal –

conseguir prever todas as hipóteses de aplicação de uma norma. Como conseqüência, tem-se a

frustrante declaração do Min. Sanches: “Anoto que, praticamente, em cada sessão surge um

verbete novo, que, mediante acolhimento de argüição de relevância, permite o acesso de

novas dezenas ou centenas de recursos extraordinários” (1988:262). Ao que parece, essa fala

N. 29: Caracterização jurídica da conservação da posse. Relevância jurídica. N. 30: ICM - Exigência de lei estadual estabelecendo base de cálculo. Relevância jurídica. N. 31: Natureza jurídica do FGTS. Relevância sócio-jurídica. N. 32: Data da conversão cambial na falência. Relevância jurídico-econômica. N. 33: Subsistência de sociedade de dois sócios por morte ou retirada de um deles. Relevância jurídica. N. 34: Embargos infringentes em reexame necessário. Relevância jurídica. N. 35: Uso de substância tóxica por presidiário. Relevância jurídica. N. 36: Revogação de isenção de ICM para aquisições vinculadas a projetos incentivados. Relevância jurídica. N. 37: IPTU - Aumento por decreto. Relevância jurídica. N. 38: Desapropriação - Base de cálculo dos juros compensatórios. Relevância jurídica. N. 39: Legitimidade para a propositura de ação penal em contravenção. Relevância jurídica. N. 40: Previdência Social - Critério de reajuste de proventos. Relevância jurídico-social. N. 41: Prescrição de vantagem funcional. Relevância jurídica. N. 42: Prescrição - Crédito de contribuição previdenciária a partir da EC 8/77. Relevância sócio-jurídica. N. 43: Honorários de advogado - Art. 20, § 5º, do CPC. Relevância jurídica. N. 43-A: Honorários de advogado - Exigência de honorários relativos a feito anterior como condição da

propositura de nova ação. Relevância jurídica. N. 44: Responsabilidade civil - Acumulação de dano moral com dano material. Relevância sócio-econômica. N. 45: Responsabilidade de sócio-gerente pelas obrigações tributárias da sociedade irregularmente dissolvida.

Relevância econômico-jurídica. N. 46: Precatório - Correções monetárias sucessivas. Relevância jurídico-econômica. N. 47: ICM - Incidência sobre alienação de bem objeto de leasing. Relevância jurídica. N. 48: Enfiteuse - Competência legislativa para atualização do foro. Relevância jurídica. N. 49: Contravenção - Da revogação da lei pelo desuso. Relevância jurídica. N. 50: Transportador - Responsabilidade por ato ilícito de terceiro. Relevância jurídica. N. 51: Homologação de liquidação - Fungibilidade de recurso. Relevância jurídica. N. 52: Direito autoral - Locação de videocassetes após a primeira venda. Relevância jurídica. N. 53: Pena de interdição do exercício do comércio em crime falimentar - Revogação pelo Código Penal.

Relevância jurídica. N. 54: Ação rescisória - Termo inicial do prazo de decadência quando não conhecido o recurso extraordinário.

Relevância jurídica. N. 55: Alienação fiduciária em garantia de veículo automotor - Registro. Relevância jurídica. N. 56: Desapropriação - Alçada - Reexame obrigatório. Relevância jurídica. N. 57: ICM - Tributação de ouro em barra. Relevância jurídica. N. 58: Mandado de segurança - Estabelecimento de ensino particular - Ato de dirigente. Relevância jurídica. N. 59: Intervenção do Ministério Público nos procedimentos de jurisdição voluntária. Relevância jurídica”.

Page 54: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

54

acaba por justificar a conclusão que segue: “Devo admitir que o sistema encontrado não é o

ideal” (1988:262).

Ora, a inclusão da argüição de relevância acabou por prejudicar a própria

finalidade que é atribuída ao recurso extraordinário – a uniformização da aplicação do Direito

(constitucional, mas também, à época, do direito federal). Ainda a razão pragmática que

embasou a sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro se mostrou ineficaz: a prática da

argüição de relevância que deveria limitar o número de recursos a fim de desafogar o Tribunal

acabou servindo – através da prática dos verbetes – de razão para a manutenção de sua

situação de calamidade, na visão do Min. Sanches. Logo, é a mesma razão instrumental –

cálculo utilitarista, como desmascarado por Gouvêa et al. (2001:147) – que pode ser usada

como argumento para negar tal mecanismo e, mais forte ainda, contra seu retorno ou de

mecanismo similar.

Esse quadro também foi importante para confirmar uma das colocações

levantadas no presente trabalho, em seu primeiro tópico. A idéia de “crise do Supremo

Tribunal Federal” – e também do Poder Judiciário como um todo – é mais uma questão

ideológica que necessariamente factual. Não há que se falar em crise, se a situação se reflete

como uma constante. O pessimismo e as queixas em relação ao acúmulo de trabalho

permaneceram ao longo de toda existência da argüição de relevância como requisito de

admissibilidade para o recurso extraordinário, mesmo com as estatísticas “positivas”.

Segundo essas estatísticas – fornecidas por um de seus mais combativos defensores, o Min.

Martins Filho (2000:51) – apenas 5% das argüições interpostas chegaram a ser acolhidas,

sendo que 20% foram rejeitas por defeito no instrumento. Para o autor, essa seria a principal

causa da indignação proveniente da classe dos advogados, não os problemas ligados à

discricionariedade ou qualquer outra crítica de fundo teórico.

Entretanto, em que pesem os argumentos apoiados em uma racionalidade

instrumental, não se pode perder de vista a discussão normativa subjacente. Nesse sentido,

Calmon de Passos (1977:13) lembra que é preciso recolocar a questão de volta no universo

jurídico: “onde inexiste a possibilidade de recurso inexiste o devido processo legal”.75

Recursos existem como mecanismos de proteção contra erros no curso do

processo de aplicação dos diretos e, por isso mesmo, representam condição para manutenção

da legitimidade dos discursos legitimadores do provimento.

75 Os recursos, como consectários do princípio do devido processo, constituem mecanismos para defesa de

direitos, além de representarem condições discursivas e, por isso mesmo, não podem ceder aos argumentos utilitários (baseados em uma racionalidade de custo-benefício) sem prejuízo do princípio democrático.

Page 55: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

55

Mas um outro argumento – presente nos discursos de Calmon de Passos

(1077:15) – se mostra igualmente importante: Kelsen demonstrou que uma norma jurídica

protege um interesse particular, essa proteção, por si só, já constitui um interesse público. Por

outro lado, lembra o processualista baiano: [...] com referência a cada norma de Direito Administrativo ou Penal, tipicamente ramos do Direito Público, pode-se determinar a existência de um interesse particular cuja proteção é objeto da norma. Todo preceito jurídico, por conseguinte, é expressão de um interesse público e protege um interesse particular (CALMON DE PASSOS, 1977:15). E prossegue Se toda má aplicação do direito representa gravame ao interesse público na justiça do caso concreto (único modo de se assegurar a efetividade do ordenamento jurídico), não há como se dizer irrelevante a decisão em que isso ocorre. A questão federal só é irrelevante quando não resulta violência à inteireza e à efetividade da lei federal. Fora isso, será navegar no mar incerto do “mais ou menos”, ao sabor dos ventos e segundo a vontade dos deuses que geram os ventos nos céus dos homens. Logo, volta-se ao ponto inicial. Quando se nega vigência à lei federal ou quando se lhe dá interpretação incompatível, atinge-se a lei federal de modo relevante e é do interesse público afastar esta ofensa ao Direito individual, por constituir também uma ofensa ao Direito objetivo, donde ser relevante a questão que configura (CALMON DE PASSOS, 1977:16). Logo, mostra-se problemática a visão estanque entre interesse público e

interesse privado. Aqui, já na argumentação de Calmon de Passos, tem-se que essa relação

não pode ser reduzida em sua complexidade a um jogo de contrários, chamando para si a

necessidade de repensá-la. Isso, então, será tarefa da presente pesquisa, que reconstruirá essa

relação à luz do paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito.

Mesmo com as críticas, esse sistema funcionou até a CR/88, uma vez que a

atual Constituição não consagrou o instituto, nem mesmo outro similar. Todavia, tem-se um

quadro bem diferente a partir da Emenda Constitucional n.45/2004, que introduz um novo

mecanismo na sistemática do recurso extraordinário: a repercussão geral das questões

constitucionais discutidas – ou repercussão geral, como vem sendo chamada.

Segundo o Texto Constitucional: Art. 102. [...] § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. Dois aspectos devem ser, no entanto, colocados em evidência desde já: (1) a

exigência de lei para regulamentação da questão e, principalmente, (2) o processo de seleção

das causas, que se dá por um sistema de rejeição – a demonstrar que, via de regra, toda causa

seria, pelo menos à primeira vista, relevante – sendo que seria necessário o voto de pelo

menos 2/3 dos magistrados do Tribunal para o não conhecimento do recurso extraordinário.

Page 56: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

56

Mesmo não havendo exigência expressa de fundamentação da decisão que

não conhece do recurso extraordinário, a determinação constitucional que afirma ser nula se

desprovida de fundamentação é aplicável, prima face, ao caso (art. 93, IX, CR/88) como

consectário do princípio do devido processo, sendo uma diferença em relação ao que ocorria

no regime da argüição de relevância.

Todavia, esses aspectos parecem passar em branco na análise de diversos

juristas, que continuam a afirmar uma equivalência entre o instituto e a argüição de

relevância, igualando ainda a mesma à argüição de transcendência.76 Ora, a exigência de

legislação é nitidamente uma opção mais democrática do que a possibilidade de

regulamentação da questão pela via regimental. Além do mais, o processo legislativo possui

uma natureza discursiva mais ampla, permitindo uma abertura da questão para a sociedade,

que, como destinatária da norma, torna-se um participante potencial da discussão. Contudo,

esse aspecto parece ficar de lado nas análises levadas a cabo por muitos dos juristas nacionais,

que ainda afirmam a liberdade do Tribunal para, por meio de um juízo pautado em

conveniências políticas, selecionar as causas que serão levadas a julgamento (ARRUDA

ALVIM, 2005:64, 82). Entretanto, será que ainda é adequado afirmar, no atual paradigma

jurídico, que, se verificado o atendimento do pressuposto recursal (repercussão geral), ainda

assim terá o Tribunal discricionariedade para conhecê-lo ou não?

Há ainda críticas ao quorum de 2/3 dos ministros para não conhecimento do

recurso (SARTÓRIO e JORGE, 2005:186).77 Para muitos juristas, tratar-se-ia de número

elevado, o que conduziria a uma permissividade recursal maior, indesejável (TAVARES,

2005:218). Como solução, por exemplo, propõem que se mantenha a política de concessão de

poderes para o relator, de forma que possa o mesmo rejeitar o recurso em decisão

monocrática. Nesse sentido, Medina et al se posicionam: Pensamos, assim, que havendo jurisprudência firme do pleno no sentido de que dada questão não tem repercussão geral, recursos extraordinários futuros que veiculem questões jurídicas idênticas poderão ser rejeitadas por uma das turmas do STF ou, até, pelo próprio relator do recurso (cf. art. 557 do CPC) e não necessariamente por dois terços do pleno do Tribunal. Esta, segundo nos parece, deverá ser a solução a ser estabelecida pelo legislador, no caso (2005:378).

76 Mostram-se partidários dessa tese os seguintes juristas: Arruda Alvim (2005:84), Cambi (2005:160), Barioni

(2005:722). Como opositores dessa tese, tem-se Lamy (2005:175). 77 Também no sistema alemão aparece a exigência de 2/3 dos membros do Tribunal para a não-apreciação do

recurso, favorecendo a lógica de que, em regra, o recurso deverá ser conhecido (SARTÓRIO e JORGE, 2005:186).

Page 57: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

57

Todavia, tal leitura parece ser colidente com a norma constitucional que

exige o quorum, até como forma, talvez, de se evitar que recursos sejam descartados

indiscriminadamente ou a sabor de convicções subjetivas (MEDINA et al., 2005:373).

Ainda é preciso lembrar que o conhecimento da repercussão geral não

importará o conhecimento do recurso, devendo ser analisada a presença dos demais requisitos

de admissibilidade recursal. Todavia, não será um desperdício proceder à analise da

repercussão geral de um recurso que claramente não preenche os requisitos de

admissibilidade? Não seria talvez o caso de inversão do processo de julgamento, como sugere

Barioni (2005:728), primeiro apreciando os demais requisitos de admissibilidade, para só

depois ser verificada a presença da repercussão geral? Um esquema é fornecido pelo jurista

(2005:729): Portanto, o procedimento a ser adotado no STF, para apreciação do recurso extraordinário deverá observar a seguinte ordem: (i) distribuído o recurso ao relator, este verificará se o recurso é manifestamente inadmissível ou prejudicado; (ii) em caso de negativa de seguimento ao recurso pelo relator, caberá recurso ao órgão colegiado, que apreciará exclusivamente o tema da inadmissibilidade; (iii) no caso de ser processado o recurso extraordinário, a questão da repercussão geral da questão constitucional será analisada pelo órgão colegiado; (iv) reconhecida a repercussão, os autos retornarão ao relator, para, se for o caso, julgar sobre o mérito do recurso ou levar o recurso à Turma para apreciação; (v) não julgado individualmente pelo relator, o recurso extraordinário será submetido à apreciação do órgão regimentalmente competente para seu julgamento (atualmente, uma das Turmas). Para Gomes Jr, (2001:94) seguindo a lógica imposta pela Constituição, o

relator poderia reconhecer a existência de repercussão geral, determinando o conhecimento do

recurso, mas nunca rejeitá-la de maneira monocrática. Mas Barioni (2005:729) se posiciona

de maneira contrária, por entender que tanto o reconhecimento quanto sua respectiva negação

apenas podem ser feitos por decisão colegiada, obedecendo ao quorum fixado pela

Constituição.

E o que se entender como repercussão geral das questões constitucionais

discutidas? Uma vez que nenhuma definição é fornecida expressamente pelo texto

constitucional, surgem inúmeras especulações. Fato é que a dogmática jurídica já toma como

um axioma a necessidade de um mecanismo de seleção recursal que privilegie as demandas

que ofereçam questões atraentes dentro do que se considera interesse público. Logo, a

principal preocupação ainda parece ser quanto à natureza vaga da expressão repercussão

geral (ARRUDA ALVIM, 2005:74). Para tanto, muitos irão buscar no método tópico78 uma

78 A Tópica tem suas raízes no pensamento aristotélico – Tópicos, como parte da sua obra maior Organon – e se

caracteriza como uma técnica de pensar por problemas, resgatada, a partir de 1953, por Viehweg, principalmente, em sua obra Tópica e Jurisprudência. A tópica volta-se para a ação concreta e para a solução de um problema real, lançando mão de uma compreensão argumentativa do Direito apoiada na lógica do

Page 58: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

58

solução para a indeterminação semântica da expressão e da eliminação dos riscos que tal

situação traz à segurança jurídica.

Contudo, não se dão conta de uma compreensão da linguagem a partir do

movimento do giro lingüístico, que revelou a existência da dimensão pragmática da

linguagem.79 Assim, irão buscar a construção de catálogos de topoi para a solução da

pergunta sobre o que deve ser considerado como repercussão geral para fins de interposição

dos recursos extraordinários. Entretanto, tal proposta recai em um erro grave: “uma dedução

sistemática dos topoi é uma impossibilidade” (FERRAZ JÚNIOR., 2001:324), pois perde de

vista toda a natureza problemática e assistemática da Tópica. Nesse sentido, os catálogos tópicos são elásticos e, propriamente falando, a única instância de controle dos pontos de vista aceitáveis, isto é, dos topoi catalogados, é a discussão mesma; no debate, o que fica justificado por aceitação é admitido como premissa (FERRAZ JÚNIOR., 2001:325). Como conseqüência, o instituto é fragmentado em subespécies variando de

acordo com a natureza da questão: jurídica, social, política ou econômica. Uma vez que

nenhuma subdivisão foi trazida pelo texto da Emenda Constitucional n. 45/2004, essa

tentativa de trazer para o plano semântico o conceito em discussão somente se justifica se o

atual instituto for igualado à antiga argüição de relevância e à argüição de transcendência.

Essa leitura, então, parece desconhecer as particularidades do instituto e, por isso mesmo,

conduzir a uma interpretação inadequada do paradigma procedimental do Estado Democrático

de Direito. Não se trata de materializar o conceito de repercussão geral, mas de tomá-lo a

partir de sua natureza pragmática, reconstruindo-o a cada decisão. Como lembra Sartório e

Jorge (2005:185), a existência de repercussão geral é dependente de uma análise da malha

argumentativa desenvolvida em cada caso (questões pré-questionadas pelas partes e questões

levantadas em sede da fundamentação do provimento recorrido). Assim,

[o]s argumentos que devem levar o tribunal a entender que a questão tem repercussão geral devem constar do próprio recurso e serão analisadas quanto ao juízo de admissibilidade deste, portanto, em sessão pública (MEDINA et al., 2005:377).

razoável, ao invés da lógica formal característica do pensamento dogmático jurídico. Para tanto, fará uso de um catálogo de topoi, conjunto de pontos de vista abertos que norteiam a decisão e a busca de um entendimento comum. Para um estudo mais detalhado, além da obra de Viehweg, recomenda-se: Ávila (2000) e Atienza (2002).

79 Além disso, novamente recomenda-se a leitura da obra OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2001. Todavia, desde já, pode-se vislumbrar o risco de cair em um convencionalismo e perder de vista uma dimensão hermenêutico-crítica, conforme as propostas de Dworkin (1999) e de Habermas (1998) – que são as opções teóricas do presente trabalho. Assim, no capítulo 3, ao se estudar as críticas dworkianas às tradições do Convencionalismo e do Pragmatismo, ficará mais clara a razão da recusa pelo método tópico em preferência a uma compreensão do Direito a partir das luzes de uma interpretação construtiva.

Page 59: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

59

Para Tavares (2004:55), a repercussão estaria presente quando a questão

constitucional fosse dotada do atributo da novidade e da multiplicidade, isto é, ela deverá ser

inédita e sua decisão deverá ser útil para a resolução de diversos outros casos pendentes nos

tribunais inferiores. Ora, tal tese apenas pode ser cogitada como adequada se for considerada

também adequada à tese do processo objetivo nos Tribunais Superiores. Entretanto, isso acaba

por deixar transparecer um problema processual grave: os defensores dessa tese olvidam o

fato de que o recurso extraordinário decorre sempre de uma causa, isto é, uma alegação de

lesão ou ameaça de lesão a direito pelas partes do processo, a princípio do autor – e não de

uma questão que pode ser resolvida em abstrato. Todavia, ainda assim, é possível afirmar que

mesmo a apreciação judicial em abstrato, como acontece com as hipóteses de controle de

constitucionalidade, constitui-se em discursos de aplicação e, por isso mesmo, depende de

uma base fática, não se processando no vácuo (SOUZA CRUZ, 2004:246).

De tal tese, decorre uma conseqüência: aumento de poder do Tribunal.

Assim, este estaria dispensado de apreciar questões “rotineiras”, podendo trabalhar melhor as

discussões dos casos selecionados, o que significa que suas decisões ganhariam projeção tanto

nos meios jurídicos quanto nos meios sociais, assumindo as feições de um centro de

referência que irradia soluções para uma sociedade massificada e carente.80

Todavia, nesse quadro tão festejado, muitos juristas olvidam as lições

trazidas pela pesquisa de Maus (2000), trazendo riscos não somente para o desenvolvimento

democrático da sociedade, como também por conservarem a idéia elitista de que somente os

magistrados dos Tribunais Superiores – a exemplo dos especialistas da torre de marfim –

seriam capazes de fornecer soluções para uma sociedade debilitada e incapaz de gerir

autonomamente seus problemas internos. Trata-se-ia de uma forma de manter viva uma

determinada leitura do pensamento do “velho” Hegel, para quem o Estado seria a

materialização do Espírito Absoluto, que conduziria para a emancipação da sociedade tão

próxima ao estado de natureza hobbesiano.81

80 Ao que parece, esse perfil elitista por parte do Judiciário, assumido principalmente pelo STF com a tese da

natureza objetiva dos processos destinados a julgamento naquele Tribunal, é inclusive transportado para o processamento do recurso extraordinário. Assim, mesmo antes da argüição de repercussão geral ou da Súmula Vinculante, pode ser observado esse movimento, mais acentuado com (1) a Emenda Constitucional n. 3/93, que inseriu o instituto da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) na ordem constitucional brasileira; e com (2) as Leis 9.868/99 e 9.882/99, que modificaram a lógica que se vinha desenvolvendo quanto ao controle de constitucionalidade (BAHIA, 2003), colocando o controle difuso em nítida subserviência ao controle concentrado.

81 Oportuna, portanto, a explicitação de uma passagem que demonstra todo o totalitarismo a que se pode chegar a partir de uma leitura da teoria hegeliana; como bem lembra Reale, foi essa leitura que serviu para justificar as recentes ditaduras: “Em si e para si, o Estado é a totalidade ética, a realização da liberdade, e que a liberdade seja real é a finalidade absoluta da razão. O Estado é o Espírito que está no mundo e se realiza nele com

Page 60: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

60

Em razão disso, a presente pesquisa tenta levar a sério o Direito (para

lembrar a expressão de Dworkin), de modo a não perder de vista a dimensão da autonomia

(quer pública, quer privada) como elemento fundamental da legitimidade do Direito moderno.

Assim com as pesquisas de Günther (1995) – apresentadas no capítulo 4 da presente pesquisa,

pode-se ver que a função do Tribunal adquire um novo sentido: ele funciona como delegatário

do direito legislado pela sociedade, não como um macrosujeito onisciente; logo deve agir em

conformidade com o Direito e não com opções políticas.

No entanto, ainda parece problemática a questão sobre qual o papel a ser

desempenhado por um Tribunal Superior, a fim de que se possa compreender melhor a função

dos recursos que lhe são submetidos para julgamento. Dessa forma, não se pode abandonar a

racionalidade discursiva e deixar de problematizar a questão.

Uma vez compreendido o papel dos recursos no paradigma procedimental

do Estado Democrático de Direito, é que pode-se avançar de nível no raciocínio, questionando

como esses recursos podem ser operacionalizados e, conseqüentemente, o que realmente se

pode entender como seus requisitos. É dessa forma que se justifica a reconstrução a ser

operada no capítulo seguinte: primeiro, na compreensão de processo democrático e de

recurso, para, em seguida, analisar o papel dos recursos julgados pelos Tribunais Superiores.

Ao problematizar a leitura da dogmática jurídica, pode-se verificar se a

mesma responde satisfatoriamente às questões até aqui levantadas ou, em caso negativo, se

haveria a necessidade de se optar por uma outra proposta teórica – a ser apresentada nos

capítulos 3 e 4 desta pesquisa.

consciência, ao passo que, na natureza, ele só se realiza enquanto é diferente de si mesmo, em que é espírito adormecido. Já o Estado existe somente enquanto existe na consciência, enquanto consciente de si mesmo, como objeto que existe. Na liberdade, não deve proceder da individualidade, da autoconsciência individual, mas somente da essência da autoconsciência, já que, seja o homem consciente ou não, essa essência se realiza como poder autônomo, no qual os indivíduos em particular são apenas momentos. O ingresso de Deus no mundo é o Estado; o seu fundamento é a potência da razão que se realiza como vontade” (HEGEL apud REALE, 1986, p. 151, grifos no original).

Page 61: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

61

CAPÍTULO 2 – O ATENDIMENTO DO INTERESSE PÚBLICO REPRESENTA UMA

CONDIÇÃO DE ADMISSIBILIDADE ESPECÍFICA ADEQUADA PARA OS RECURSOS

DESTINADOS AOS TRIBUNAIS SUPERIORES?

No capítulo anterior, foi possível compreender, em linhas gerais, o

movimento reformista brasileiro, que sofre pressões, inclusive de ordem internacional, para

promover, na estrutura processual, modificações capazes de garantir um maior acesso a uma

“segurança jurídica”, aqui entendida, como previsibilidade de decisões jurisdicionais.

Todavia, tal segurança, mesmo no modelo idealizado por Hans Kelsen, no capítulo 8 de sua

Teoria Pura do Direito, seria inalcançável. Logo, a solução a que se chegou foi libertar o

julgador de toda e qualquer vinculação com o atendimento de uma decisão correta, posto que

discricionária.

Assim, seriam inúteis os esforços da doutrina e da legislação para reduzir as

hipóteses de admissibilidade de recursos destinados aos Tribunais Superiores com a

introdução de mais um critério. Critérios como relevância, transcendência e repercussão geral

seriam assim, em última análise, remetidos, no quadro de uma compreensão semântica,

positivista, do Direito, à própria discricionariedade do julgador. Tal idéia de

discricionariedade, como será visto nos capítulos 3 e 4, é inadequada ao paradigma

procedimental do Estado Democrático de Direito. Isso porque, esse paradigma não é

indiferente às razões com base nas quais o julgador toma suas decisões.

Todavia, antes disso, será fundamental, no presente capítulo, esclarecer

melhor a idéia de uma relação interna entre o processo e a tomada de decisões legítimas no

atual paradigma (procedimental).

Como bem lembra Nunes (2003:12-13),1 torna-se necessário, portanto,

repensar o processo como garantia para a tomada de decisões legítimas. Para tanto, deve-se

repensar as bases teóricas que ainda percebem a dimensão processual através do seu aspecto

instrumental,2 ainda que adstrito nos limites da presente pesquisa, para compreender o

1 “Encontramo-nos num momento muito peculiar dos estudos do direito processual, em que existe um modelo

constitucional de processo assegurado e, em contrapartida, uma onda reformista (pontual) em nossa legislação processual federal, que ainda trabalha com uma racionalidade instrumental e com um modelo solipsista de autoridade judicial, em que restringe paulatinamente o espaço de formação dos provimentos judiciais e se atribui aos magistrados o poder de julgar as demandas do modo mais célere e solitário possível, impossibilitando uma cognição constitucionalmente adequada” (NUNES, 2003:12-13).

2 No cenário processual brasileiro essa corrente teórica adquire corpo através dos mestres da Faculdade do Largo do São Francisco (USP), formando uma escola processual que não mais se encontra situada no Estado de São Paulo, mas com defensores em todo o território nacional. Tal escola, que nasceu do pensamento do

Page 62: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

62

processo à luz de uma racionalidade comunicativa. Essa é a proposta de Habermas (1998),

que se acolhe neste trabalho.3

O recurso, como figura processual, somente pode ser bem compreendido a

partir de um olhar mais amplo acerca da compreensão de processo, que adquire importância

ímpar para a tomada legítima de decisões sob uma compreensão procedimental do Estado

Democrático de Direito, afastando-se da noção, até então presente nos paradigmas anteriores,

de que seu uso apenas atenderia aos interesses privados das partes ou, especialmente no caso

dos recursos destinados aos Tribunais Superiores, o inverso, isto é, o atendimento exclusivo

de um interesse público completamente divorciado do interesse das partes.

Para tanto, a presente proposta é a de tentar reconstruir a noção de processo

subjacente a cada paradigma jurídico, para que possa ser possível demonstrar como a noção

de devido processo no paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito traz como

exigência a observância de um modelo constitucional que se apóia nos princípios do

contraditório, da ampla defesa e da fundamentação das decisões.

Logo, o recurso – qualquer que seja sua espécie – representa uma garantia

processual fundamental, pautada nos princípios do contraditório e da ampla defesa, sendo

fundamental para a abertura de uma racionalidade comunicativa no iter procedimental.

Segundo Dierle Nunes: [...] o instituto do recurso apresenta-se como criador de um espaço procedimental de exercício do contraditório e da ampla defesa, permitindo ao juízo ad quem a análise de questões já debatidas pelas partes, mas levadas, ou não, em consideração pelo órgão julgador de primeira instância em sua decisão, ou de questões suscitadas pelo juízo de primeira instância de ofício ou sem a participação de todas as partes em seu provimento, implementando, assim, um espaço de debate (2003:148).

processualista italiano Liebman, compreende o processo como “instrumento por meio do qual os órgãos jurisdicionais atuam para pacificar as pessoas conflitantes, eliminando os conflitos e fazendo cumprir o preceito jurídico pertinente a cada caso que lhes é apresentado em busca de solução” (Cintra et alli, 2003:23).

3 “O problema do modelo reformista brasileiro, como de tantos outros, está em focar as atenções, para a solução das mazelas do sistema processual, na figura do juiz, e não na estrutura procedimental lastreada por um modelo constitucional de processo dinâmico, que deveria constituir um espaço discursivo de formação revisível das decisões judiciais, em que a participação das partes deva ser assegurada em todas as decisões por meio de um diálogo genuíno entre juiz e partes, com o decorrente controle pela técnica de fundamentação adequada das decisões judiciais e, especialmente, do recurso” (NUNES, 2003:53).

Page 63: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

63

2.1. Linhas gerais sobre o instituto processual do recurso a partir do olhar da dogmática

jurídica

2.1.1. O recurso e o devido processo legal: uma garantia constitucional?

Segundo Nunes (2003:38), ao longo dos séculos XVIII e XIX, sob as

balizas impostas pelo paradigma do Estado Liberal, os litígios de origem civil eram tratados

com base numa percepção individualista.4 Para assegurar a aplicação igualitária das normas

em todos os casos, defendeu-se uma compreensão de “segurança jurídica” igualada à

previsibilidade da decisão. Assim, os órgãos de aplicação jurídica – os Tribunais e a

Administração – deveriam ver-se presos ao texto da lei para que não extrapolassem o

conteúdo fixado pelo Legislador, que, devido à concepção da época, seria capaz de prever

todas as possíveis condutas, liberando o aplicador da tarefa de levar em consideração as

especificidades de cada caso (MARINONI, 2005:6),5 até mesmo porque as partes – principais

referências – não poderiam ver-se surpreendidas pela decisão. Tanto era a ênfase dada para as

partes (autor e réu), que a concepção inicial buscava explicar o processo considerando-o como

um contrato entre os litigantes, conforme formulação de Pothier (1800), em seu Traité de la

procédure civile (COUTURE, 2003:16). Desse modo, elas concordavam em suportar a

decisão proferida pelo Estado.6 A inclusão do processo como parte integrante do direito civil

foi logo posta em xeque pelos publicistas; todavia Savigny e Guényvau (MACEDO, 2001:53)

insistiram na classificação a partir da ótica do direito privado, considerando-o como um

quase-contrato.7

4 Nesse sentido, Cappelletti e Garth (1988:9) afirmam que “nos estados liberais ‘burgueses’ dos séculos dezoito e

dezenove, os procedimentos adotados para solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante. Direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação”.

5 “A generalidade e a abstração evidentemente também apontavam para a impossibilidade de o juiz interpretar a lei ou considerar circunstâncias especiais ou concretas. Como é óbvio, de nada adiantaria uma lei marcada pela generalidade e pela abstração se o juiz pudesse concretizá-la. Isso, segundo os valores liberais, obscureceria a previsibilidade e a certeza do direito, pensados como indispensáveis para a manutenção da liberdade dos cidadãos” (MARINONI, 2005:6).

6 Carreira Alvim (1997:133) assim resume essa teoria: “a relação que interliga autor e réu no processo é em tudo idêntica à que liga as partes contratantes”. Suas origens podem ser remontadas ao direito romano, através dos textos de Ulpiano.

7 “Segundo tal teoria, o Processo não poderia ser considerado um contrato típico, mas, sim, um ‘quase-contrato’, visto que a parte ingressava em juízo aceitando a decisão, fosse ela favorável ou não aos seus interesses. Haveria um elo entre autor e juiz, independentemente da adesão espontânea do réu ao debate do conflito. Em

Page 64: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

64

Dessa forma, a compreensão que se tinha da jurisdição era de uma “função

[estatal] voltada a dar atuação aos direitos subjetivos privados violados” (MARINONI,

2005:9).8 Portanto, era compreendida principalmente através de uma ótica repressiva,

segundo a qual a lesão a direitos materiais poderia ser convertida em um equivalente

pecuniário, atendendo-se não a uma razão interna ao Direito – voltada ao problema da

discussão da correção da ação das partes ou mesmo da decisão proferida no iter

procedimental – mas em consonância com os imperativos do mercado.

Somente em 1868, com a publicação da obra de Bülow, La teoría de las

excepciones procesales y los presupuestos procesales, é que o processo adquiriu um estudo

mais aprofundado. Para o autor (1964:2), o processo era uma espécie de relação jurídica, uma

vez que implica direitos e obrigações reciprocamente considerados para os participantes:

autor, réu e juiz. Segundo Dinamarco (2002:40), a importância de tal teoria para o Direito foi

grande; chega-se a considerar que a obra de 1868 foi responsável por fundar a ciência do

direito processual: Antes dela, as normas do processo eram feitas segundo ditames exclusivamente práticos e estudadas pelo critério meramente exegético, à moda dos velhos praxistas, não havendo uma construção segura dos institutos processuais e muito menos uma coordenação harmoniosa entre eles, os quais eram geralmente tratados por romanistas e civilistas – o que bem indica como à consciência dos juristas de então não transparecera ainda à luz da distinção, hoje muito nítida, entre direito substancial e processo; não havia maturidade para compreender que não são de direito material institutos como o da coisa julgada, da hipoteca, da prova, da responsabilidade executiva, da ação (DINAMARCO, 2002:40). Acrescenta ainda o processualista paulista que o grande mérito da teoria de

Bülow foi demonstrar a existência de uma relação jurídica progressiva, na qual, de um lado,

teríamos a figura do magistrado, que assumiria a concreta obrigação de decidir e realizar o

Direito e, de outro, as partes, que ficariam obrigadas, perante o juiz, a prestar colaboração e a

se submeterem aos resultados dessa atividade comum.9

resumo: o processo não era um contrato, visto que não pressupunha a vontade das partes; era algo semelhante ao contrato, embora contrato não o fosse” (MACEDO, 2001:54).

8 Lembra Marinoni (2005:9): “Os processualistas que definiram essa idéia de jurisdição estavam sob a influência ideológica do modelo do Estado liberal de direito e, por isso, submetidos aos valores da igualdade formal, da liberdade individual mediante a não interferência do Estado nas relações privadas, e do princípio da separação de poderes como mecanismo de subordinação do executivo e do judiciário à lei”.

9 Importante mencionar que essa teoria, que determinava “vínculos de sujeição” das partes ao juiz (GONÇALVES, 2001:75), muito impulsionou a nova concepção de aplicação jurídica divergente com o paradigma do Estado de Bem-Estar Social. O processo deixou de ser definitivamente “coisa das partes” e passou, com os efeitos da publicização e da socialização dos direitos, a compreender que o juiz exercia um papel não somente ativo na condução do procedimento, mas também uma função educativa-assistêncial da parte mais débil (NUNES, 2003:40).

Page 65: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

65

Desenvolvendo a nova linha de raciocínio, Chiovenda, em sua famosa

conferência de Bolonha, em 1903,10 buscou separar o direito de ação do direito material

supostamente lesado e, com isso, dotar de natureza pública o processo civil. A jurisdição é,

então, vista como função voltada à atuação da vontade concreta da lei, de modo que caberia

ao magistrado substituir intelectualmente não apenas as partes do processo, como toda a

sociedade (MARINONI, 2005:12), sendo ele o responsável por aplicar a vontade concreta da

lei.11

Na transição do paradigma do Estado Liberal para o paradigma do Estado

Social, Chiovenda ainda sustentava a separação rígida entre legislação e jurisdição. O que

objetivava o processualista italiano era despir o processo – e não a ação, que, por ser exercida

contra o réu, pode variar entre público e privada, de acordo com a vontade da lei (se ela é

público ou privada) – de uma conotação privatística, de modo que o Estado, atuando em nome

da garantia da paz social, substituiria a figura da autotutela.12 O Estado, então, seria o

responsável por guardar a paz e a harmonia das relações sociais dentro da sociedade.

Todavia, essa compreensão, quando contextualizada no paradigma do

Estado Social (Welfare State), acabou por supervalorizar a atuação estatal em detrimento da

sociedade. Em sua pesquisa, Maus (2000) demonstra como, à luz desse paradigma jurídico, o

Estado pode assumir a função de “tutor” de uma sociedade desprovida de orientação, de uma

sociedade “órfã” e “incapaz”. Caberia, então, ao Judiciário a tarefa de materialização de

direitos fundamentais – principalmente dos chamados direitos sociais – como forma de

emancipar e conduzir seus clientes à condição de cidadãos. Todavia, tal empreendimento

estava fadado ao fracasso. Isso porque, à luz de uma compreensão procedimentalista do

paradigma do Estado Democrático de Direito, pode-se perceber que tal quadro conduz a uma

espécie de círculo vicioso, de modo que a posição privilegiada de autoridade conferida pela

teoria processual ao Judiciário apenas fez com que esse assumisse o papel do superego da

10 CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte:

Líder, 2003. 11 “Com isso, no entanto, jamais desejou dizer que o juiz cria a norma individual ou a norma do caso concreto, à

semelhança do que fizeram Carnelutti e todos os adeptos da teoria unitária do ordenamento jurídico” (MARINONI, 2005:12).

12 Para Chiovenda, então: “O processo se torna, portanto, o instrumento de justiça à disposição do Estado, que irá coibir a justiça privada com reprimendas a esta prática, o chamado exercício arbitrário das próprias razões, salvo, por certo, os casos de legítima defesa e de estado de necessidade [...]” (PIMENTA, MARQUES et alli, 2004:53).

Page 66: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

66

sociedade, passando a ditar para aquela – sempre com base em uma racionalidade solipsista –

os padrões de comportamento desejáveis.13

No caso brasileiro, a recepção da teoria do processo como relação jurídica

disseminou-se através dos ensinamentos de Liebman, responsável por fundar uma verdadeira

Escola Processual em São Paulo (Faculdade de Direito do Largo do São Francisco - USP),

como reconhece Dinamarco (2004:87; 2004:111-112). Essa escola, que passou a contar com

inúmeros adeptos em todo o país, foi responsável por ditar os moldes do direito processual

científico, como também influenciou permanentemente os processos de legislação.14

Assim, o pensamento da ciência processual brasileira manteve-se conectado

a uma racionalidade instrumental, de modo que o processo serviria à jurisdição para a

realização, inclusive, de escopos meta-jurídicos (DINAMARCO, 1988:120-121). O processo

seria, então, um instrumento do Estado para garantir a paz social. Falar em instrumentalidade do processo, pois, não é falar somente nas suas ligações com a lei material. O Estado é responsável pelo bem-estar da sociedade e dos indivíduos que a compõem: e, estando o bem-estar social turbado pela existência de conflitos entre pessoas, ele se vale do sistema processual para, eliminando os conflitos, devolver à sociedade a paz desejada. O processo é uma realidade desse mundo social, legitimada por três ordens de objetivos que através dele e mediante o exercício da jurisdição o Estado persegue: sociais, políticos e jurídicos. A consciência dos escopos da jurisdição e sobretudo do seu escopo social magno da pacificação social constitui fator importante para a compreensão da instrumentalidade do processo, em sua conceituação e endereçamento social e político (CINTRA et alli, 2003:41, grifos no original). Destarte, para os defensores dessa tese, o processo operaria a partir de uma

racionalidade instrumental, dirigida apenas à persecução do fim pré-determinado de forma

solipsista. Tal racionalidade estaria, então, centrada na perspectiva do magistrado, uma vez

que ele incorporaria o Estado, o qual deve atuar para além de apresentar uma solução prática à

demanda proposta pelas partes, buscando atender “os valores sociais e políticos inerentes à

cultura nacional” (DINAMARCO, 1988:116). Dinamarco (1988:116-117) destaca que o

processo é “mero” instrumento do direito substancial, existindo apenas para servi-lo – o que

mostra ainda uma subordinação do processo ao direito material em discussão. Por isso, os

direitos processuais seriam menos importantes que os direitos substanciais, podendo até 13 Como bem define Bahia (2004:313): “Ao contrário da promoção de cidadania (que era, afinal, a meta do

Estado Social), o que se viu foi o Estado tomando para si toda a dimensão do público, deixando os indivíduos na posição (cômoda?) de clientes, numa relação paternalista e dependente”.

14 Como reconhece Dinamarco (2004:88-89), o Código de Processo Civil de 1973 ficou também conhecido como Código de Buzaid, em homenagem ao então Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, discípulo direto de Liebman. Como lembra o renomado processualista paulista, muitas das lições foram reproduzidas à risca: pode-se destacar a introdução de novos institutos, como o julgamento antecipado do mérito (art. 330) – tão repudiado pelos tribunais da época, a equiparação dos títulos executivos extrajudiciais aos títulos judiciais, eliminando a chamada “ação executiva”, bem como a reinterpretação de institutos clássicos, como a coisa julgada, que passou a ser compreendida como imutabilidade da sentença e não mais um efeito de limitação da parte decisória da sentença, não estendida aos motivos da decisão.

Page 67: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

67

mesmo ser tolhidos ou sacrificados para o melhor atendimento dos segundos – trata-se

principalmente do discurso em nome da celeridade e da efetividade do processo.

A principal crítica a essa posição é sintetizada por Nunes, ao afirmar que ela

deixa de enxergar que [...] a estrutura procedimental como espaço intersubjetivo e comparticipativo dos provimentos, com a marca de nosso “modelo constitucional” em sua acepção dinâmica, lastreado institucionalmente por uma ampla defesa, uma fundamentação adequada das decisões e por um contraditório dinâmico, em que existe um diálogo genuíno entre juiz e partes, e não meramente formal, entendido como princípio da bilateralidade da audiência (2003:52). Importante também registrar a crítica de Calmon de Passos ao

instrumentalismo: É essa evidência que o modismo da “instrumentalidade do processo” camufla, ou conscientemente – perversidade ideológica, a ser combatida –, ou por descuido epistemológico – equívoco a ser corrigido. Ele parece ou finge ignorar o conjunto de fatores que determinam uma nova postura para o pensar e aplicar o Direito em nossos dias, como sejam a crise da razão instrumental, severamente posta a nu neste século, os avanços originados pelos estudos semiológicos, a revalorização do político, a partir dos desencantos existenciais recolhidos da experiência do capitalismo tardio e da derrocada do socialismo real, a crise do Estado do bem-estar social e, principalmente, as revoluções que têm sua raiz no progresso técnico-científico, acelerado depois da Segunda Grande Guerra Mundial (2001:13). Além dessa crítica, o processualista alerta para a existência de uma

hipertrofia do papel do magistrado nessa concepção, o que viola o equilíbrio processual

(CALMON DE PASSOS, 2001:24-25). Além do mais, estabelece para as partes um dever

ético-político de obediência e de sujeição do réu à pretensão do autor, que era pressuposta

como verdadeira a priori.15

A partir do final da década de 70, com os estudos do processualista italiano

Fazzalari (1996), foi possível apurar a crítica à teoria que concebe o processo como espécie de

relação jurídica. Para tanto, o ponto de partida foi a reconstrução dos conceitos de processo e

procedimento, invertendo-se a relação de gênero e espécie que antes havia.16 Tomando como

ponto de referência a figura do provimento – ato estatal dotado de imperatividade 15 Camara, Silva e Machado lembram que: “Liebman em conferência, em 1949, afirmou que todo o problema,

quer de interesse processual, quer de legitimação ad causam, deve ser proposto e resolvido adminindo-se, provisória e hipoteticamente, que as afirmações do autor sejam verdadeiras. Só nessa base se pode resolver a pura questão de legitimidade ou do interesse no âmbito processual” (2004:241). Ao que parece, o processualista Marinoni ainda se mostra tributário ao pensamento de Liebman ao pressupor que o problema da celeridade e efetividade do processo possa ser solucionado por meio do aumento de procedimentos sumários: “A disputa pelo bem da vida perseguido pelo autor, justamente porque demanda tempo, somente pode prejudicar o autor (que tem razão) e beneficiar o réu (que não tem)” (2002:16). Mas parece que o mesmo se distancia do mestre italiano, que tanto repudiava o aumento dos poderes probatórios do juiz (modelo inquisitivo), preferindo o modelo dispositivo, uma vez que entendia ser o outro uma forma de violação do princípio constitucional da imparcialidade do juízo.

16 Importante ter em mente que a diferenciação científica entre processo e procedimento, empreendida por Fazzalari, não toma como referência principal a noção de movimento, mas de modo de movimento.

Page 68: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

68

(FAZZALARI, 1996:7) – o procedimento se apresenta como a estrutura normativa

preparatória de sua produção. Conforme Gonçalves, O procedimento é uma atividade preparatória de um determinado ato estatal, atividade reguladora por uma estrutura normativa, composta de uma seqüência de normas, de atos e de posições subjetivas, que se desenvolvem em uma dinâmica bastante específica, na preparação do provimento. O provimento é ato do Estado, de caráter imperativo, produzido pelos seus órgãos no âmbito de sua competência, seja um ato administrativo, um ato legislativo ou um ato jurisdicional (2001:102-103). Dessa forma, Fazzalari retira o procedimento do âmbito do direito

processual, para colocá-lo em seu devido lugar, qual seja, o de instituto próprio da Teoria do

Direito (GONÇALVES, 2001:109). Assim, o procedimento não é uma atividade esgotável em

um único ato, mas demanda uma série de atos e normas que o disciplinam.17 Por isso, ele

compreenderá uma seqüência de normas, atos e posições subjetivas. Todavia, importante

deixar claro que, sobre esse último termo, Fazzalari não se refere à posição de sujeitos em

relação com outros, como queria a teoria do processo como relação jurídica. Por posição

subjetiva, entende-se “a posição de sujeitos perante a norma, que valora suas condutas como

lícitas, facultadas ou devidas” (GONÇALVES, 2001:109, grifos nossos).

A partir da reconstrução do procedimento, Fazzalari desenvolve o conceito

de processo. Para o jurista italiano, no processo, tem-se uma situação especial: os interessados

pelo provimento a ser produzido participam da atividade de sua produção. Por interessados,

entende-se aqueles que sofrerão os efeitos do ato particular que está sendo produzido. Mas

não se trata de qualquer participação, pois o traço diferenciador do processo, em face do

procedimento, está na presença do contraditório (FAZZALARI, 1996:82). Assim Há processo onde houver o procedimento realizando-se em contraditório entre os interessados, e a essência deste está na “simétrica paridade” da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos (GONÇALVES, 2001:115). Com isso, Fazzalari afasta, mais uma vez, a noção de que o processo seria

atividade eminentemente ligada à atividade jurisdicional, sendo, portanto, correto afirmar a

existência de um processo legislativo18 e de um processo administrativo.

17 Duas observações são importantes: (1) segundo Fazzalari (1996:60), o procedimento não pode ser

compreendido como uma seqüência de fatos, como querem alguns processualistas tradicionais; ele é formado por uma série de normas, cada uma regulando uma determinada conduta, mas enunciando como pressuposto da própria incidência a realização de uma atividade regulada por outra norma da série, e assim por diante até a norma reguladora de um ato final. Por isso mesmo, Gonçalves (2001:111) afirma que o procedimento não pode ser compreendido simplesmente como uma seqüência de normas, mas uma seqüência na qual a validade de um ato, a posição ou a norma assumida nela dependa intrinsecamente da prévia implementação de seu pressuposto, ou seja, a norma (ato ou posição) anterior; e (2) um ato não pode ser considerado válido, se a ele não se chegar através da seqüência de atos determinada pela legislação (FAZZALARI, 1996:78-79).

18 Ver CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. Também lembra Gonçalves (2001:118) que, na compreensão de Fazzalari, o processo

Page 69: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

69

O elemento, então, necessário para que o procedimento receba a qualidade

de processo passa a ser a presença do contraditório. Todavia, o contraditório não pode mais

ser compreendido como o direito a ser ouvido pelo juiz ou direito à bilateralidade da

audiência, como querem as teorias tradicionais (NUNES, 2004:75).19 Acontece que tais

compreensões – derivadas da doutrina italiana20 – apenas vislumbram o contraditório em seu

aspecto estático, ainda ligado à estrutura procedimental monológica e dirigida pela

perspectiva do magistrado.21 Como lembra Gonçalves (2001:120), hoje, o contraditório é

entendido como simétrica paridade das partes na preparação do provimento.22 Por isso

mesmo, importante ter em mente que o contraditório é garantia das partes, ou seja, daqueles a

quem se destinam os efeitos do provimento. Lembra Theodoro Júnior (1981:182) que sua

inobservância representa causa de nulidade, de modo que deve sempre ser observado.

Dessa forma, a participação do magistrado, no interior do processo, não será

na qualidade de um interventor, devendo sofrer uma reestruturação. Como lembra Cattoni de

Oliveira, [a]o tomar suas decisões, também, é preciso lembrar que o juiz não está sozinho no exercício das suas atribuições. Afinal, do procedimento que prepara a decisão judicial, devem, em princípio, diretamente participar, em contraditório, em simétrica paridade, os demais destinatários desse provimento jurisdicional (2001:153-154, grifos no original). Daí a importância atribuída – até como exigência constitucional – para a

fundamentação da decisão. Tal garantia

legislativo sempre é um processo, uma vez que “sempre se realiza com a participação de parlamentares que representem e reproduzem os interesses divergentes dos grupos e comunidades dos cidadãos”.

19 Diversos processualistas chegam a definir o contraditório como garantia de paridade de armas; contudo, à luz de um pensamento pós-metafísico, a Teoria do Direito não pode mais se amparar em uma perspectiva beligerante – essencialmente dotada de uma racionalidade instrumental, compreendendo que o processo, como espaço de aplicação normativa, apresentaria uma dinâmica na qual o magistrado decidiria influenciado pela destreza ou habilidade de persuasão dos litigantes (ou de seus advogados); um direito que se preza democrático deve assumir uma postura diversa, qual seja, a de criar a possibilidade do entendimento entre as partes processuais. A decisão judicial deve encontrar aceitabilidade racional não apenas da perspectiva do magistrado, mas da sociedade. Em importante ensaio, Barbosa Moreira (2003) questiona até que ponto a teoria processual conseguiu se ver livre dessa concepção de processo como duelo, herdada da tradição medieval. O autor relata similitudes, principalmente no common law, mas que não são tão estranhas à tradição do Direito romano-germânico.

20 Diferentemente, lembra Nunes (2004:77): “Na França, o ar. 16 do Nouveau Code de Procédure Civile impede o juiz de fundamentar a sua decisão sobre aspectos jurídicos que ele suscitou de ofício sem ter antecipadamente convidado as partes a manifestar as suas observações. Assim, a garantia opera não somente no confronto entre as partes, transformando-se também num dever-ônus para o juiz, que passa a ter que provocar de ofício o prévio debate das partes sobre quaisquer questões de fato ou de direito determinantes para a resolução da demanda”.

21 A afirmação acima aparece, por exemplo, na lição de Dinamarco, Cintra e Grinover, que reduz o contraditório à bilateralidade da audiência: “O princípio do contraditório também indica a atuação de uma garantia fundamental de justiça: absolutamente inseparável da distribuição da justiça [sic] organizada, o princípio da audiência bilateral encontra expressão no brocado romano audiatur et pars”(2003:55).

22 Segundo Fazzalari (1996:82), caracterizam a estrutura do contraditório os seguintes elementos: (1) participação dos destinatários do ato final na fase preparatória do mesmo; (2) simétrica paridade destes interessados; (3) mútua implicação de seus atos; (4) relevância de tais atos para o ato final.

Page 70: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

70

[é] correlata ao direito das partes de influir sobre a decisão e em condições de igualdade, dando-lhes a oportunidade de verificar “se” e “de que modo” essa influência terá ocorrido, assim como as razões pelas quais deixou de acontecer, na medida em que tenham tido a concreta possibilidade de valer-se de todos os instrumentos fornecidos pelo ordenamento processual para o idôneo exercício das próprias razões (PERO, 2001:61-62).23

Desse modo, abre-se a possibilidade de se compreender o processo a partir

da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas – que será explicada no

quarto capítulo. Uma vez que o paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito,

ao levar em conta a tensão entre facticidade e validade no interior do Direito, demanda dos

processos jurisdicionais decisões legítimas, acaba por exigir que a aplicação jurídica se abra

para uma discursividade, mais exatamente por meio de um discurso de aplicação, como

teorizado detalhadamente por Günther (1995:51-53).24 Nessa perspectiva, o juiz não aplica as

normas por meio de uma atividade simples, mas antes deve desenvolver uma interpretação

coerente das normas, que, a princípio, são aplicáveis prima facie ao caso, para, em momento

posterior, identificar aquela que seja a adequada à solução do caso específico que tem a sua

frente (GÜNTHER, 1995:52).

Nesse prisma, deve ser lembrado que, no processo jurisdicional, há um

conflito, um litígio, fato que não pode ser perdido de vista; logo é natural que as partes

assumam ações estratégicas. Por isso mesmo, o papel das mesmas, como co-autoras da norma,

acaba sendo suspenso em face do caso particular. Cabe ao magistrado a representação do

sistema jurídico, sem que, com isso, esteja autorizado a retornar ao discurso de justificação,

criador das normas jurídicas.

Em sua função, o magistrado deve desbloquear a troca interpretativa entre

destinatário e co-autor no caso particular; para isso, deve tratar os litigantes como cidadãos

virtuais, preocupando-se com a aplicação apropriada das normas jurídicas ao caso concreto,

utilizando, para tanto, os argumentos trazidos pelos litigantes e pela esfera pública (Günther,

1995:52).25 Os atos do juízo estão sujeitos ao controle das partes através da garantia

23 Sob esse prisma, destaca-se, por exemplo, a seguinte decisão: “Não pode o Magistrado, certamente, poupar-se

ao trabalho intelectual de analisar cada qual dos argumentos por qualquer das partes; não pode deixar de sustentar e de explicar as razões de seu convencimento, tudo, obviamente, segundo um conceito lógico, razoável e conforme o que oferecem as provas. Não fazendo, por certo, macula a sentença de nulidade irreparável e a faz írrita, carente do seu requisito estrutural, que é a fundamentação” (TACRIM, 8ª Câm., Ap. 341.731/1-Jales, rel. Juiz Canguçu de Almeida, j. 20-6-1984, v. u., BASSSP, 1366/47 de 20-2-1985).

24 Assim, cinde-se com a visão apresentada, por exemplo, por Cintra, Grinover e Dinamarco (2003:55), que reduzem a dinâmica processual ao modelo da dialética hegeliana, de modo que o magistrado atuaria como síntese que suprassumiria (aufheben) a tese e a antítese, representadas respectivamente pelas posições do autor e do réu.

25 “[…] the judge is obliged to justify her decision with regard to the litigants and the public. In a procedural paradigm of law, the fourth part, the public, plays a prominent role in legal adjudication. By publicly critiquing her decisions, the public permanently reminds the judge that she is merely delegated to play a role in legal

Page 71: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

71

processual do recurso, a qual funciona como possibilidade de reversão da decisão

(HABERMAS, 1998:309) e como condição para a legitimidade da mesma.

Daí, o caráter constitucional do princípio do devido processo legal.26 O

contraditório e a ampla defesa, que integram a noção de devido processo, representam

garantias para a participação das partes e, com isso, garantem também a legitimidade do

provimento.27 Logo, sendo o direito ao recurso um consectário da garantia ao devido

processo, ele também acaba por adquirir status de norma constitucional nos termos de um

modelo constitucional do Processo. Segundo Andolina e Vignera, a relevância dos princípios

processuais formadores do devido processo é tamanha que, unidos, formariam um modelo

constitucional de processo. Utilizando a tradução apresentada por Cattoni de Oliveira

(2001:159), Andolina e Vignera afirmam que “[a]s normas e os princípios constitucionais que

se referem ao exercício das funções jurisdicionais, se consideradas na sua complexidade,

concedem ao intérprete a determinação de um verdadeiro e próprio esquema geral de

processo” (ANDOLINA e VIGNERA, 1990:13). Lembra Nunes (2003:128) que, através do

modelo constitucional de processo, garantem-se os princípios do contraditório, da ampla

defesa, da fundamentação das decisões, do juízo natural, da inafastabilidade da tutela

jurisdicional, entre outros: Assim, em decorrência da conjugação das garantias constitucionais do contraditório e da [ampla] defesa, cria-se uma impossibilidade de atuação monológica do juiz na construção de todos os provimentos, pois estes seriam inválidos toda vez que levassem em consideração aspectos fáticos ou jurídicos não debatidos e problematizados com as partes (NUNES, 2003:135). Tal conclusão, contudo, acerca da íntima relação entre direito de recorrer e

devido processo legal não parece ser pacífica para os processualistas. Cappelletti, em parecer

elaborado em 1968, a pedido de membros do Senado italiano, durante o movimento de

reforma do Código de Procedimento Civil, afirmou que o recurso não pode ser entendido

adjudication which originally belongs to all those participants who are involved. To be sure, the public may not intervene directly in the concrete case. But, especially if the judge cannot avoid changing the law through coherent interpretation, a public critique of the reasons is necessary. If major changes are made, the democratic public has to inaugurate democratic procedures of justification, which lead to new legislations” (GÜNTHER, 1995:52-53).

26 No caso da atual Constituição Brasileira, o devido processo bem como suas garantias foram assegurados expressamente: “art. 5. [...]. LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; [...]”. Como lembra Nunes (2003:118), o direito ao recurso figurou expressamente na Constituição de 1824, ficando implícito nas demais até a Constituição de 1988.

27 Adiantando a posição assumida por Habermas, que será detalhada no quarto capítulo, tem-se que: “Los derechos procedimentales garantizan a toda persona jurídica la pretensión a un procedimiento fair, el cual no garantiza seguridad de resultado, pero sí la clarificación discursiva de todas las cuestiones de hecho y de derecho que resulten pertinentes. Así, los afectados pueden contar con que en el procedimiento no resulten decisorias para el fallo del juez cualesquiera razones, sino sólo razones relevantes” (1998:291).

Page 72: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

72

como garantia fundamental. Em sua leitura, os recursos – principalmente o recurso de

apelação – desvalorizam o juízo de primeira instância,28 além de aumentarem a duração do

processo, o que conduz a uma fuga da “justiça estatal” por parte da classe com maiores

recursos econômicos, cujas preferências são por mecanismos alternativos de composição de

conflitos, como a arbitragem. Já no caso das classes menos abastadas, acontece uma

“litigiosidade contida”, o que representa um risco para a estabilidade estatal (MARINONI,

2002:214).

Outro risco de desestabilização viria da constatação de divergências nas

decisões de primeira e segunda instâncias, o que, pelo aspecto funcional, desalojaria a

estabilização de expectativas de comportamento como papel principal do sistema do Direito

(MARINONI, 2002:216).29

Mesmo assim, como já observado, os argumentos que embasam tal tese se

apegam a uma racionalidade instrumental e a uma teoria processual que coloca o magistrado

ilhado no centro do processo, aniquilando o espaço discursivo com as partes – peça

fundamental para a legitimidade da decisão.30 Pertinente, nesse esteio, é a crítica de Allorio31

à tese de Cappelletti: [Allorio] Critica a posição de Cappelletti ao afirmar que a apelação seria inconstitucional por ferir a garantia de acesso à justiça, uma vez que se deve indagar qual o conteúdo da justiça requisitada, pois ela pode ser célere, com a quebra das garantias de um Estado de Direito, ou mais lenta, com a possibilidade de um controle interno a diminuir a sujeição a erros. Percebe que a celeridade não pode servir de motivo para a decretação da inconstitucionalidade do duplo grau (NUNES, 2003:113). É importante ainda destacar que mesmo os defensores do direito ao recurso,

de forma majoritária, pautam seus argumentos em razões instrumentais, olvidando a dimensão

discursiva do Direito e, com isso, enfraquecendo a sua própria defesa. Desse modo, concorda-

se com Dierle Nunes (2003:115): o argumento em defesa dos recursos como direitos

28 Marinoni, lembrando Cappelletti, afirma que “o primeiro grau é somente uma larga fase de espera, uma

extenuante e penosa ante-sala para se chegar à fase de apelação; é este último o único juízo verdadeiro, ao menos para a parte que tem condições eocnômicas para nele chegar” (2002:215).

29 Esses mesmos argumentos são utilizados também por Marinoni (2002:209-210), para defender a natureza infraconstitucional do direito ao recurso. Para o autor, há um culto exagerado e indevido aos recursos, que nem mesmo seriam princípios fundamentais de justiça. Nessa linha de raciocínio, defende que algumas causas não deveriam ensejar recursos, garantindo uma “prestação jurisdicional” mais célere e efetiva.

30 Um outro problema, que pode ser colocado e melhor aclarado no terceiro capítulo, é a identificação de que tais argumentos utilizados pelos teóricos, contrários à constitucionalização do direito ao recurso, pautam-se em razões que Dworkin denomina como diretrizes políticas – representam uma possibilidade de melhoria ou bem- estar para um determinado grupo pertencente a uma sociedade, mas não susceptível de universalização, uma vez que se rege pela idéias do que é bom para um determinado grupo, uma determinada forma de vida concreta.

31 Ver ALLORIO, Enrico. Sul doppio grado del processo civile. Rivista di Diritto Civile. Milano: Cedam. parte I. 1982. p. 319-320.

Page 73: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

73

processuais não se funda na maior experiência do magistrado de segunda instância ou na

maior independência do mesmo, como Laspro também já afirmou (1995:99-101).

O instituto do recurso em todas as suas modalidades não pode ser

compreendido apenas como o desenvolvimento do princípio do duplo grau, mas integra o

desdobramento dinâmico das garantias do contraditório e da ampla defesa, uma vez que

possibilita “uma intervenção das partes e um diálogo com o juízo todas as vezes que a decisão

recorrida não tenha levado em consideração o seu contributo crítico” (NUNES, 2003:145).

Precisa é, portanto, a crítica de Nunes ao movimento do acesso à justiça, que tem adeptos no

Brasil, como Marinoni (2002:220-223): No direito brasileiro, percebe-se que as tendências para o denominado acesso à justiça, nos seus moldes, não se preocupa com a leitura democrática das garantias processuais de nosso modelo constitucional e permite, com o paulatino aumento dos poderes judiciais, uma formação solitária de provimentos (NUNES, 2003:144). Essa mesma corrente, defensora da celeridade processual a todo custo,

influenciará o movimento de reforma do direito processual – quer em nível

infraconstitucional, quer em nível constitucional – como ocorreu com a Emenda

Constitucional n. 45/2004,32 que lançou novas luzes sobre o instituto dos recursos destinados

a Tribunais Superiores.

2.1.2. Recursos Ordinários e Extraordinários: a dicotomia questões de fato/questões de direito

como critério distintivo na teoria dos recursos

Uma vez demonstrada a importância e a necessidade dos recursos não

apenas para a ordem processual, mas também para a ordem constitucional, o próximo passo é

compreender a estruturação interna desse instituto. No caso brasileiro, a ordem jurídico-

processual toma como principal referência a dicotomia questão de fato/questão de direito para

explicar o procedimento dos dois grupos de recursos existentes:33 os recursos ordinários, que

32 Theodoro Júnior (2005b:37) lembra que a Emenda Constitucional n. 45/2004 teve como grande fonte de

inspiração a reforma constitucional italiana com o mesmo propósito, proclamando a celeridade como elemento do princípio do devido processo legal (constitucionalizado). Todavia, diferentemente de Marinoni, o processualista mineiro alerta que a celeridade reflete mais um anseio desejável que necessariamente um argumento de jurídico que deva ser observado, ainda às custas do sacrifício das demais garantias processuais, principalmente do contraditório.

33 Dentro da classificação dogmática, Mancurso (2003:43) lembra que os recursos representam espécies do gênero meio de impugnação. Dentro desse quadro, eles ocupariam a posição de meios de impugnação ordinários, uma vez que não ensejam a formação de uma demanda judicial nova, o que aconteceria com os

Page 74: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

74

são destinados, via de regra, para a segunda instância, isto é, para a realização de um possível

reexame da decisão em sua amplitude; e os recursos destinados a Tribunais Superiores, que

objetivam, segundo a maioria dos processualistas, a preservação constitucional ou

infraconstitucional do ordenamento jurídico, dependendo do recurso.

Em linhas gerais, o conceito de recurso segue a lição de Batista da Silva e

Gomes: Recursos, em direito processual, é o procedimento através do qual a parte, ou quem esteja legitimado a intervir na causa, provoca o reexame das decisões judiciais, afim de que elas sejam invalidadas ou reformuladas pelo próprio magistrado que as proferiu, ou por algum órgão de jurisdição superior (1997:302). Os recursos podem ser classificados também como ordinários e

extraordinários. 34 Contudo, advertem os mencionados autores que: [e]sta é uma classificação freqüente, tanto na doutrina brasileira quanto na lição dos processualistas europeus. Os critérios seguidos pelos sistemas jurídicos europeus, no entanto, não correspondem, quanto a esta questão, aos aceitos pelo direito brasileiro. Para determinados sistemas europeus – como é o caso do direito italiano e português –, são ordinários todos os recursos que correspondam a meios de impugnação, formulados na mesma relação processual, capazes de prolongar a pendência da causa, evitando a formação da coisa julgada; enquanto consideram-se extraordinários os recursos interpostos contra uma sentença já transitada em julgado, como ocorre, por exemplo, no direito português, com o recurso de revisão (art. 771) e a oposição de terceiros (art. 778); ou com a denominada opsizione di terzo do direito italiano (art. 404 do CPC). Tendo em vista o conceito de recurso [...] consagrado pelo direito brasileiro, seriam ordinários, no sentido em que os definem os sistemas jurídicos europeus, uma vez que não consideramos como recursos todos os meios autônomos de impugnação, como a ação rescisória e os embargos de terceiro, que poderiam ser assimilados a essas formas de ataque às sentenças existentes naqueles sistemas processuais (BATISTA DA SILVA e GOMES, 1997:304-305). Outro critério para a divisão, também lembrado por Batista da Silva e

Gomes, é levar em consideração a natureza e os pressupostos exigidos na fundamentação dos

recursos: De acordo com este critério temos, no direito brasileiro, na apelação, o exemplo típico de recurso de fundamentação livre, pois ela pressupõe apenas a sucumbência, ao passo que os embargos infringentes (art. 530 do CPC) e o recurso extraordinário (art. 101, III da Constituição Federal) serão recursos de fundamentação vinculada, ou especiais, uma vez que, cada um deles, além da sucumbência, pressupõe outros requisitos de admissibilidade (1997:305). Segundo Mancuso (2003:130), os recursos destinados aos Tribunais

Superiores pertencem a uma classe separada, principalmente em razão da limitação existente

no seu espectro de cognição, por se limitarem à discussão de matérias jurídicas sem espaço

meios de impugnação extraordinários, haja vista, por exemplo, o que acontece com a Ação Rescisória ou a Revisão Criminal.

34 Mancuso (2003) faz uso da expressão recursos excepcionais ao se referir aos recursos extraordinários, por considerá-la mais didática, além de evitar confusões quanto aos recursos Extraordinário e Especial, que fazem parte do mesmo gênero recursal.

Page 75: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

75

para questionamento ou revisão de questões fáticas já decididas nas instâncias anteriores.

Assim, nesses recursos, o objeto a ser examinado pelo provimento do órgão judicante será

uma questão jurídica, ou seja, uma questão de direito.

Todavia, traçar uma linha capaz de separar o que sejam questões de direito e

questões de fato não é um trabalho fácil, como já observaram diversos juristas, chegando

alguns a afirmarem a existência de uma teoria tricotômica (KNIJNIK, 2002) como forma de

superação do problema.

Na presente pesquisa, a justificativa para o enfrentamento dessa questão

deriva da seguinte dúvida: uma vez que se passa a exigir, para a admissão de um recurso

destinado a um Tribunal Superior, a comprovação de que o mesmo traga elementos que

“transcendam” a discussão particular, seria possível a aferição desses elementos sem um

exame fático do caso concreto? É claro que está longe da intenção do presente trabalho

elaborar uma teoria dos recursos; mas a pergunta sobre a suficiência da distinção dicotômica

entre questões de fato e questões de direito como critério distintivo dos julgamentos dos

recursos mostra-se essencial.

É importante ter em mente que tal compreensão dicotômica desconsidera

uma parcela de complexidade existente no processo de aplicação jurídica em face das

situações concretas. Como já afirmado, no capítulo anterior do presente trabalho, a aplicação

do judicial do Direito não mais se dá de maneira mecânica (silogística), como aparece no

primeiro paradigma moderno. Por outro lado também, ao se afirmar que a discussão jurídica,

no âmbito dos recursos destinados aos Tribunais Superiores (recurso extraordinário, recurso

especial e recurso de revista), se reserva à controvérsia de qual direito aplicar, transparece

ainda um apego à presunção de conhecimento jurídico absoluto do magistrado, que seria –

seguindo Kelsen – livre para escolher a interpretação da norma, independentemente da

manifestação das partes, reduzindo estas ao papel de colaboradores do juízo. Todavia, à

medida que se distancia dessa forma de racionalidade meramente instrumental, que tanto

parece dominar o cenário do direito processual, percebe-se a impossibilidade de tal condição,

quer da aplicação jurídica sem fatos concretos, que devem ser reconstruídos através dos

argumentos trazidos pelas partes do litígio, como demonstrado no início deste capítulo; quer

da possibilidade de o magistrado decidir sobre o Direito de maneira instrumental, sem se pôr

em discussão com as partes a interpretação do direito a ser aplicado. Dessa forma, esse novo

olhar pretende ampliar o espaço de discussão necessário para a legitimação do provimento

jurisdicional.

Page 76: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

76

A questão aumenta em complexidade, quando se lembra da existência da

Súmula n. 279, editada pelo Supremo Tribunal Federal, e da Súmula n. 7, editada pelo

Superior Tribunal de Justiça (STJ), nas quais se considera a questão de fato insusceptível de

apreciação por meio dos recursos extraordinário e especial, respectivamente.35 Mas o que

seria considerado questão de direito e o que seria considerado questão de fato?

Na lição de Rocco,36 trazida por Fontoura (1993:42-43), a questão de direito

deriva da noção de erro de direito, que seria proveniente da ignorância de uma norma ou de

um equívoco na sua interpretação; erro de fato é resultado de uma falha no processo de

valoração dos fatos demonstrados durante a atividade processual. Esses fatos seriam

principalmente representados pelo instituto processual da prova e a questão limitar-se-ia a

saber se aconteceram ou não.

Todavia, através de um olhar comparado, é possível encontrar , na tradição

do common law, uma melhor explicação para essa distinção, que se operaria através da

oposição entre juiz/jurado (KNIJNIK, 2002:135). Ao juiz (judge), caberia a apreciação das

questões de direito e aos jurados (jurors), as questões de fato. Assim, questões que envolvam

direito podem, conforme a regra federal de processo civil n. 52(a), ser livremente revisadas

por uma Corte de Apelação. Todavia, um standard especial permite a revisão de questões

fáticas pelo mesmo Tribunal: esse standard é o do erro evidente (clearly erroneous). Mas,

ainda assim, continua o problema de saber o que seja fato e o que seja direito para fins de uma

decisão judicial. Na tentativa de responder a essa pergunta, Knijnik (2002:136) mapeia os

grandes grupos teóricos que pretendem apresentar uma resposta.

A primeira seria a teoria tradicional, que ganha essa denominação por ser

não só a primeira, em termos cronológicos, a tentar enfrentar esse problema, como uma das

mais difundidas no pensamento jurídico contemporâneo, principalmente no Brasil. Ela parte

de um método puramente conceitual, isto é, elabora um conceito de fato e de direito que será

sustentado até as últimas conseqüências, mesmo que sejam verificadas incoerências, tanto no

plano teórico, quanto no plano prático. O ponto de partida desse raciocínio é a afirmação da

separação entre os planos do ser e do dever-ser, sendo o primeiro um mundo de percepções,

já o outro, um mundo de valorações.

Mas pode-se partir do exemplo fornecido por Knijnik (2002:141) para

perceber melhor a aporia em que cai essa corrente: a absolvição de um indivíduo acusado do

35 STF, Súmula n. 279: “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”; STF, Súmula n. 7: “A

pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. 36 ROCCO, Ugo. Tratado de derecho procesal civil. Bueno Aires: Depalma, 1970, v. II.

Page 77: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

77

furto de cinco garrafas de vinho, em razão de o juiz considerar o objeto do furto como de

valor insignificante. Haveria ou não espaço para discussão quanto à qualificação jurídica das

cinco garrafas de vinho como objetos de valor insignificante por parte dos Tribunais

Superiores? À primeira vista, tratar-se-ia de um caso decorrente de uma operação jurídica, o

que autorizaria a revisão. Todavia, essa corrente introduz um terceiro elemento impeditivo da

revisão, qual seja, a discricionariedade, sempre que a questão permitir ao magistrado uma

margem de interpretação. Dessa forma, qualificar uma conduta como contrária aos bons

costumes ou um comportamento como inadequado seria questão aberta à livre compreensão

do magistrado, não podendo ser revista pelos Tribunais Superiores.37

Outro problema que essa teoria deixa transparecer é o tocante ao instituto da

prova: uma vez que ficou consagrado o sistema da persuasão racional, determinou-se um

convencimento adjetivado, de modo que a questão posta à revisão não seria bem a existência

ou não do fato que pretendeu demonstrar, mas o produto argumentativo do magistrado

subordinado à observância de normas jurídico-processuais; logo uma questão de direito. Mas

a negação de reexame probatório, considerado como uma questão fática por grande parte dos

juristas nacionais, apóia-se na teoria do processo como relação jurídica; por isso, ainda se

admite que o magistrado decida de maneira solitária, sendo livre em seu convencimento (RTJ

47/276),38 tratando isso como uma questão discricionária.

Como conclui Knijnik (2002:145), a teoria tradicional apenas se mostra

capaz de identificar questões de menor complexidade. Assim, um recurso no qual se pergunta

se um veículo trafegava a 50 km/h será tratado como matéria fática e, por isso mesmo,

insusceptível de revisão. O mesmo aconteceria também se o questionamento versasse sobre

se a velocidade do mesmo poderia ser considerada “inadequada para as circunstâncias”. Essa

lógica pode funcionar apenas como um critério redutor na admissão de recursos, mas não

como um critério seletivo.

A teoria (ou as teorias) de natureza teleológica desenvolveu-se buscando

suplantar o espaço ocupado no Direito pela teoria tradicional. Através de uma incursão na

teoria do conhecimento e com bases em fontes da hermenêutica moderna, seus defensores

afirmaram que a constatação dos fatos e a aplicação do direito são inseparáveis.

Reconhecem que a separação entre fato/direito como algo artificial é impraticável (KNIJNIK, 37 Importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal, antes da criação do STJ, entendeu que questões ligadas à

qualificação de um determinado fato ou ato jurídico representariam questões de direito, o que autorizava a revisão da decisão (STF-RTJ74/144).

38 Ver, por exemplo, Mancuso (2003:131), que se apóia no ensaio de WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Distinção entre questão de fato e questão de direito para fins de cabimento do recurso especial. Revista Ajuris. n. 74. nov./1998. p. 266.

Page 78: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

78

2002:148). Dessa forma, para a admissão do recurso, o método seguro passa a ser a análise de

sua finalidade. Todavia, aqui reside um problema: os questionamentos sobre o que seria um

conceito de fato/direito transferem-se para a definição de qual a finalidade do recurso em

questão. Exsurge daí algo praticamente revolucionário: se, até então, a questão de direito poderia ser sempre objeto de revisão in iure, agora isso já não ocorrerá, uma vez que poderá haver questões jurídicas que não são reexamináveis, porquanto vinculadas indissociavelmente ao caso concreto (individuellen Rechtsfragen), escapando aos fins do recurso. Consequentemente, Schwinge propõe a substituição dos pares questão-de-fato–questão-de-direito por outro: questão do caso singular-questão de princípio (KNIJNIK, 2002:148-149). A finalidade do recurso, então, revela-se, para Schwinge, como a unidade

jurisprudencial, de modo que os Tribunais deveriam agir no sentido de expedir pautas-

modelo, voltadas para orientação das decisões futuras. Todo e qualquer caso que não

contribua para essa empreitada deveria ser descartado da apreciação dos Tribunais.39 Segundo

Henke,40 citado por Knijnik (2002:150), tudo giraria em tordo do conceito de “pauta”, que

estaria ligado à idéia de regra jurídica: “Segundo SCHWINGE, a pauta é uma norma

equivalente à lei; por conseguinte, a decisão-pauta daria vida a uma nova regra jurídica”.

Knijnik (2002:150), então, relaciona o conceito de pautas com o conceito de topoi e também

com as bases do direito sumular na tradição romano-germânica.

Na proposta da teoria teleológica, fornecida por Knijnik, ainda se mantém a

compreensão de que fato e direito constituem questões que não podem ser separadas; todavia

essa linha inova na discussão quanto à finalidade do recurso. A finalidade da atividade dos

Tribunais, então, seria o julgamento de questões dotadas de relevância em razão do peso que

detêm, de modo que o Tribunal não teria por que despender tempo com casos meramente

individuais. Mas o que se entender como “relevante”? Knijnik (2002:152) aclara que

relevante será a questão dotada de repetibilidade.

Mas essa repetibilidade apenas pode ser auferida in concreto, ou seja,

analisando as particularidades do caso específico sob julgamento. Assim, esclarece Henke,41

através da citação de Knijnik, que

39 Daí porque a utilização de uma ou de outra teoria acaba por levar a resultados bem diversos, como observa

Knijnik (2002:150). Dois exemplos são bem ilustrativos: no caso de saber se a decisão recorrida aplicou ou não um conceito de fixação eqüitativa de honorários advocatícios, seria possível o seu exame pela teoria tradicional, ao passo que o recurso seria descartado pela teoria teleológica, já que não representaria uma situação capaz de generalizações; outro exemplo, a fixação do quantum indenizável no caso de dano moral, que representaria para a primeira teoria uma mera questão de fato, seria interpretado pela nova teoria como um caso passível de revisão, haja vista o seu potencial de servir como pauta-geral para casos subseqüentes.

40 HENKE, Horst-Eberhard. La cuestion de hecho. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1979. p. 27.

41 HENKE. La cuestionde hecho. p. 48.

Page 79: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

79

[...] do ponto de vista do direito de cassação, são relevantes as questões cujos problemas são de tanto peso em relação aos fins gerais de uma determinada norma de direito material e os fins específicos do direito processual, que têm que valer como questões de direito. São, ao contrário, irrelevantes, do ponto de vista do direito de cassação, as peculiaridades individuais que se têm que considerar ao ditar-se a decisão. Por conseguinte o Tribunal de Cassação só poderá reexaminar uma constatação quando sua decisão promova a criação de conceitos, isto é, quando dê um aporte à conceituação e exponha de maneira ilustrativa os elementos constantes que contêm uma apreciação (2002:153). Interessante notar como esse desenvolvimento da teoria teleológica vincula

a relevância a uma questão de direito material ou de direito processual, diferentemente da

opção adotada pelo legislador brasileiro, principalmente quanto à questão da transcendência,

que opera com supedâneo em razões extra-jurídicas. Mas mesmo tal concepção abre uma

margem de discricionariedade para que o Tribunal avalie o que seja ou não relevante.

Uma outra corrente, denominada por Knijnik (2002:154) como teoria das

possibilidades de julgar, é defendida por Henke e leva em conta uma vertente mais

pragmática: a capacidade para julgamento pelo Tribunal. Assim, a possibilidade de

conhecimento do recurso depende não da natureza jurídica ou fática da questão em discussão,

mas da necessidade, ou não, de que se promova uma nova instrução probatória para sua

solução. Dessa forma, busca-se preservar a “autoridade da instância precedente”, de modo que

o julgamento do recurso não seja uma mera substituição da instância anterior. Para tanto,

desenvolve-se a noção de “margem de decisão” como espaço de livre valoração do

magistrado, que somente autorizaria a revisão do Tribunal quando ultrapassada a necessidade

de produção de prova nova. Assim, caberia ao Tribunal o papel de controle da zona de certeza

dos conceitos jurídicos envolvidos, na tentativa de padronizá-los, evitando julgamentos

díspares.

Para Knijnik (2002:157),42 essa parece ser a base teórica subjacente à

Súmula 400 do Supremo Tribunal Federal. Considerada como um dos mais polêmicos

enunciados assentados no STF, representou, na realidade, uma saída para o problema do

volume de recursos para julgamento, fazendo parte do rol de medida tomadas para aplacar a

“crise” do STF. Todavia, muitos juristas acabaram por recriminar essa súmula, já que ela

retirava a autoridade do STF como “guardião” e “intérprete máximo” da Constituição, uma

vez que se aceitariam interpretações concorrentes, desde que razoáveis. Outro problema

ficaria no abalo para a segurança jurídica, já que várias interpretações poderiam então ser

42 Súmula n. 400 do STF: “Decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não

autoriza recurso extraordinário, pela letra a do art. 101, III da Constituição Federal”. Importante lembrar que tal referência se dá perante a Constituição da República de 1946.

Page 80: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

80

tomadas como válidas, fazendo com que a função de uniformização jurisprudencial se

perdesse em nome de um recurso pragmático.

A crítica à teoria das possibilidades de julgar fica por conta da

pressuposição da chamada margem de decisão, mas mesmo assim essa teoria avança, pois

compreende que o que será examinado no recurso não são questões fáticas, mas o produto

argumentativo, sem com isso buscar arquimedianamente43 separar fatos e direitos. Ao

transpor essa teoria para o paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, no

qual se compreende a inexistência desse espaço discricionário ao magistrado e sua situação

solipsista na tomada de decisões, a mesma pode funcionar como critério coerente e adequado

para a solução do problema entre questões de fato e questões de direito.

Conforme se deve ter em mente, após o giro lingüístico, a identificação

dessa distinção não pode se dar de maneira pré-processual, como quer a primeira teoria

apresentada, nem lançar mão de uma compreensão axiológica defendida pela segunda. É por

isso que a teoria das possibilidades de julgar, ao trazer a questão para o plano procedimental,

apresenta um avanço com relação a suas antecessoras: a questão da possibilidade de abertura

para produção de novas provas é algo que se mostra vedado no próprio plano processual

através do instituto da preclusão. Todavia, ela necessita ainda de reparos que podem se dar

tanto pela tese da integridade do Direito de Dworkin, quanto pela Teoria Discursiva do

Direito e da Democracia de Habermas, a fim de desconectar a tomada de decisões como ato

unilateral do magistrado, bem como ataca a tese da discricionariedade judicial. Além disso,

como será visto no capítulo seguinte, Dworkin promoverá uma distinção sobre o que sejam

divergência acerca dos fatos e divergências acerca de questões de princípios, que será

elucidativa para repensar essa terceira teoria.

2.2. Uma crítica à compreensão da dogmática processual quanto à finalidade dos recursos

destinados aos Tribunais Superiores

Como afirmado na quase totalidade dos manuais escritos sobre o tema, os

recursos destinados aos Tribunais Superiores se prestam a atender as exigências de garantir a

uniformidade da interpretação e da aplicação do ordenamento jurídico em nível constitucional

43 Ver a crítica de Dworkin ao positivismo filosófico e as teorias semânticas, reconstruída no próximo capítulo.

Page 81: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

81

(recurso extraordinário) e em nível infraconstitucional (recurso especial e recurso de

revista).44

Nota-se que uma importante característica partilhada pelos recursos

extraordinário, especial e de revista é a exigência de prévio esgotamento das instâncias

ordinárias: a interposição de recursos aos Tribunais Superiores pressupõe a preclusão

consumativa quanto aos recursos cabíveis para as instâncias inferiores, isto é, o ordenamento

jurídico positivo veda a possibilidade de que haja julgamento per saltum, de modo que os

recursos para Tribunais Superiores devem visar à impugnação de decisões finais,45 sobre as

quais não pesa mais nenhum outro recurso.46 Razão dessa exigência é explicada por Mancuso: [...] o STF e o STJ [de modo igual o TST] são órgãos da cúpula judiciária, espraiando suas decisões por todo o território nacional. Em tais circunstâncias, compreende-se que as Cortes Superiores apenas devam pronunciar-se sobre questões federais (STJ [e TST]) ou constitucionais (STF) – que podem ser até prejudiciais – numa lide que esteja totalmente dirimida nas instâncias inferiores. Se os Tribunais da Federação darão a última palavra, de acordo com suas atribuições, compreende-se que o interesse do recorrente depende de que já tenham sido experimentadas todas as possibilidade de impugnação que antes se lhe abriram (2003:104, grifos no original).

44 Habermas (1998:313) destaca que o Tribunal Constitucional alemão desempenha três funções básicas em

âmbitos de competência distintos: (1) interceder para solucionar conflitos de competência entre órgãos estatais, inclusive entre o Governo Federal e Governos Estaduais; (2) exercer o controle de constitucionalidade das normas jurídicas; e (3) se pronunciar sobre os recursos a ele endereçados, visando, com sua decisão, à busca de unificação e coerência do Direito. Logo, o Tribunal Constitucional alemão (bem como os Tribunais Superiores brasileiros) não se limita a uniformizar as decisões, o que é atividade bem diferente da garantia de coerência do Direito. Isso porque a atividade de uniformização está mais preocupada com uma noção de “segurança jurídica” (aqui entendida como previsibilidade de decisões), portanto está voltada apenas para a dimensão de facticidade do Direito, virando as costas para as questões de validade, ou seja, a legitimidade da decisão a partir de critérios de aceitabilidade racional (HABERMAS, 1998:311). Por isso mesmo, não basta aqui o proferimento de uma decisão pelo Tribunal, qualquer que ela seja, como queria o modelo kelseniano – suficiente para a garantia de uniformização – para que se tenha assegurada a coerência do Direito. Essa é uma dimensão bem mais complexa, como demonstra Dworkin (1999), e pode ser compreendida como uma “reserva que asegura que todas las normas se articulen en un sistema concertado y coherente que, por su propia idea, sólo permita para cada caso una única solución correta” (HABERMAS, 1998:334).

45 Dentro da categoria de decisões que podem ensejar a interposição de recurso extraordinário e especial, estão as decisões interlocutórias. Todavia, como medida de política processual para redução do número de recursos estabelecida pela Lei. n. 9.756/98, essas passaram a ser processadas na modalidade retida, somente sendo conhecidas pelo tribunal ad quem após reiteramento pela parte interessada quando da interposição do recurso contra a decisão final ou apresentação de contra-razões. Tal medida, como afirma Paixão Côrtes (2005:242), tinha por objetivo reduzir o número de julgados, uma vez que diversas questões que originalmente abriam condições para a interposição do recurso vinham a ser consideradas prejudicadas no curso regular do processo. Mesmo assim, o STJ assentou o entendimento de que “Não deve permanecer retido o recurso especial, se a questão resolvida pelo acórdão retido – embora proveniente de decisão interlocutória – é daquelas que podem conduzir à extinção do processo” ( 1ª T., Resp 182.382 / SP, DJ 02/08/99. p. 148). A lógica dessa decisão reside na mesma razão pragmática que justificou a adoção do posicionamento anterior: a diminuição de processos a serem julgados.

46 Nesse sentido, têm-se as súmulas 281 e 282 do STF, respectivamente: “É inadmissível o recurso extraordinário quando couber, na Justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada”; “É inadmissível o recurso extraordinário quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”. Conforme decisão do STF, a decisão ainda não enseja recurso extraordinário caso ainda caiba agravo regimental no Tribunal a quo (AI 169.067-4 / SP, DJ 15/08/95, p. 24.235); mesmo posicionamento encontra-se nos julgados do STJ (6ª T., Resp 27.331-0 / AM, DJ 20/09/93, p. 19.196).

Page 82: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

82

Dessa forma, afirma o mesmo autor (2003:105), ter-se-iam por encerradas

quaisquer discussões sobre a “justiça” da decisão, bem como acerca da controvérsia sobre a

matéria de fato, ficando apenas aberto o campo para a problematização exclusiva de questões

sobre o Direito. Isso porque tais Tribunais não representam meras cortes revisoras. Ao invés

disso, tomando o exemplo do STF, a dogmática brasileira afirma que cabe ao recurso

extraordinário [...] manter o império e a unidade do direito constitucional, mas também o recurso extraordinário não configura mais uma possibilidade de impugnação, e sim o remédio de cunho político-constitucional (seus pressupostos não estão na lei processual) que permite ao STF dar cumprimento à elevada missão de guarda da Constituição [...] (MANCUSO, 2003:123-124, grifos no original). Todavia, ressalva a dogmática que, ao aplicar o direito à espécie, o Tribunal

também provê sobre o direito subjetivo individual da parte, mas tal situação representa um

“efeito indireto” ou “reflexo”, já que a finalidade precípua do recurso extraordinário – bem

como dos demais recursos destinados aos Tribunais Superiores – é o “zelo pela validade,

autoridade, uniformidade, e, enfim, pela inteireza positiva do direito [...], na expressiva

locução de Pontes de Miranda [...]” (MANCUSO, 2003:124, grifos no original). Em

conformidade com esse posicionamento, tem-se o seguinte exemplo: É dizer: se o recorrente alega que certa disposição legal em matéria de licitação é injustificadamente restritiva e o alijou da competição, afrontando a garantia constitucional da igualdade e bem assim os princípios que regram a atividade econômica no país (CF, arts. 1º e 170, IV), e se o STF provê o recurso, significa: a) que a decisão recorrida efetivamente afastou-se das diretrizes constitucionais, na medida em que não se apercebe que a inabilitação ou desclassificação do licitante em causa fundara-se em texto afrontoso à CF; b) que, em decorrência, a situação jurídica individual lamentada pelo recorrente fica reparada, restituindo-se as coisas ao status quo ante, na medida em que, pelo efeito substitutivo dos recursos (CPC, art. 512), o acórdão do STF, por assim dizer, tomará o lugar do acórdão reformado, ou seja, não foi pela consideração de que a decisão recorrida fora injusta, que o recurso acabou provido; e sim, porque ela, principialiter, feria a CF (MANCUSO, 2003:124).47 É por isso que não basta aqui a simples condição de sucumbência (prejuízo)

legitimadora dos demais recursos e sim um plus, que é a existência de uma questão

constitucional ou federal – que inclui as normas trabalhistas – de natureza eminentemente

pública.

Mas será bastante a explicação de que tais recursos, por apreciarem questões

jurídicas, somente veiculam interesses públicos, sendo o interesse da parte recorrente atendido

somente de maneira reflexa (o que indica nítida subordinação deste ao interesse público)? A

47 No quarto capítulo, essa afirmação poderá ser mais bem compreendida. À luz da proposta introduzida por

Habermas (1998), a Constituição funciona como elemento de auto-fundação do direito positivo, de modo a não mais precisar buscar em elementos meta-jurídicos a condição de validade jurídica.

Page 83: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

83

resposta afirmativa será encontrada na grande maioria – ou talvez na quase totalidade – das

obras jurídicas escritas sobre o tema.

O Min. Almeida Santos (apud MANCUSO, 2003:127), ao discorrer sobre o

recurso especial, todavia, vislumbra no mesmo uma “dúplice finalidade”: uma pública e outra

privada. Pública, já que consagra o STJ como “órgão garantidor da aplicação do Direito

positivo, na sua extensão do respeito pela autoridade da Lei Federal, e da harmonia de

interpretação da lei, de forma a evitar as decisões conflitantes dos tribunais de apelação, na

sua labuta jurisdicional”. A finalidade privada, por sua vez, está na correção do prejuízo

sofrido pela errônea aplicação da norma jurídica, conforme decisão do STJ, no Resp. 197/SP,

DJ 28/08/89, p. 13.679.

Outro posicionamento importante, que parece estar mais atento à

necessidade de repensar a relação entre público e privado no paradigma procedimental do

Estado Democrático de Direito, provém de Barbosa Moreira: O recurso extraordinário (como o especial, ramificação dele), não dá ensejo ao novo reexame da causa, análogo ao que propicia a apelação. [...] [No recurso extraordinário] unicamente se discutem quaestiones iures, e destas apenas as relativas ao direito federal. No seu âmbito, contudo, parece excessivo negar que sirva de instrumento à tutela de direitos subjetivos das partes ou de terceiros prejudicados. Quando interposto pelo Ministério Público, na qualidade de custos legis, então, sim, visará de modo precípuo ao resguardo da ordem jurídica positiva, do direito objetivo; mas essa não é uma peculiaridade do recurso extraordinário, pois o Ministério Público, no exercício daquela função, se legitima à interposição de qualquer recurso (2002:575, grifos no original). A tese de a função precípua dos recursos destinados aos Tribunais

Superiores ser eminentemente pública encontra embasamento no pensamento liebmaniano,

disseminado por Buzaid. Nesse sentido, a natureza objetiva – sem partes – do julgamento

desses representa a tutela do interesse geral do Estado sobre os interesses dos litigantes. Como

razão, aludem que [...] o erro de fato é menos pernicioso que o erro de direito. Com efeito, o erro de fato, por achar-se circunscrito a determinada causa, não transcende os seus efeitos, enquanto o erro de direito contagia os demais juízes, podendo servir de antecedente judiciário. Tanto nos países europeus em que há juízos de cassação e revisão, parte o nosso sistema jurídico de que, para a satisfação dos anseios dos litigantes, são suficientes dois graus de jurisdição: sentença de primeira instância e julgamento do Tribunal. Por isso, ao apreciar o recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça, mais que o exame do direito das partes, estará a exercer o controle da legalidade do julgado proferido pelo Tribunal a quo (RIBEIRO COSTA, 1991:51-52). Por isso mesmo, segundo Mancuso (2003:129), o contencioso seria de

natureza objetiva, haja vista que o interesse público superaria os interesses dos particulares. É

nessa ótica, que o texto normativo apresenta as condições específicas de admissibilidade

desses recursos:

Page 84: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

84

1. Recurso Extraordinário (art. 102, III, CR/88): (a) contrariar dispositivo desta Constituição; (b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; (c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; (d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. 2. Recurso Especial (105, III, CR/88): (a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; (b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; (c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal. 3. Recurso de Revista (art. 896, CLT): (a) derem ao mesmo dispositivo de lei federal interpretação diversa da que lhe houver dado outro Tribunal Regional, no seu Pleno ou Turma, ou a Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, ou a Súmula de Jurisprudência Uniforme desta Corte; (b) derem ao mesmo dispositivo de lei estadual, Convenção Coletiva de Trabalho, Acordo Coletivo, sentença normativa ou regulamento empresarial de observância obrigatória em área territorial que exceda a jurisdição do Tribunal Regional prolator da decisão recorrida, interpretação divergente na forma da alínea "a"; e (c) proferidas com violação literal de disposição de lei federal ou afronta direta e literal à Constituição Federal. Pela análise dessas condições de cabimento, é possível concordar com a

afirmação feita por Bahia (2003:329) no sentido de não haver uma distinção ontológica entre

o recurso extraordinário e os demais. A conseqüência disso, como será visto, é que a própria

tese do processo objetivo se desmorona: a natureza do recurso não pode alterar a natureza do

processo, haja vista que não se trata de um meio de impugnação autônomo.

Importante ainda lembrar que o entendimento majoritário considera apenas

que a ofensa à Constituição da República ou à Lei Federal deve se dar de maneira explícita,

como lembra Bahia (2003:326), não sendo admitida a forma reflexa.48 Isso confirma a

dificuldade que ainda existe de não se pensar o Direito para além do texto escrito, positivado.

Outra informação ainda bastante controversa diz respeito à admissibilidade

dos recursos para Tribunais Superiores. Esses se encontram inseridos na sistemática bipartida

(ou desdobrada). Desse modo, tem-se o exame tanto no Tribunal a quo – na figura do

Presidente ou Vice-Presidente do órgão – quanto no Tribunal ad quem. Segundo Carneiro

(2002:65-67), tal procedimento apresenta vantagens, pois permite a instituição de um sistema

de triagem dupla ou até mesmo tripla. Assim, o Presidente – ou Vice-Presidente – por meio de

decisão fundamentada, exerce a primeira triagem, podendo apreciar as condições de

admissibilidade do recurso, tanto as genéricas quanto as especiais, o que inclui os

pressupostos constitucionais. Esse autor, entretanto, discorda daqueles juristas que

vislumbram em tal procedimento uma ofensa à norma constitucional, pois o conhecimento da

causa estaria sempre assegurado pela faculdade de interposição do agravo de instrumento.

Todavia, Barbosa Moreira ressalta que deve haver uma compreensão

adequada da distinção entre juízo de admissibilidade (exame de requisitos formais) e juízo de

48 “[A] ofensa à Constituição que autoriza o acolhimento do recurso extraordinário é a ofensa direto e não por via

reflexa” (Ag.Rg. n. 140.211 – DJ 03/04/1992). No mesmo sentido: RTJ 105/704, RTJ 107/661, RTJ 120/912 e RTJ 132/455.

Page 85: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

85

mérito (exame da questão de fundo que leva ao conhecimento do recurso propriamente dito

pelo Tribunal ad quem e seu conseqüente desfecho, isto é, o provimento ou desprovimento).49

Desse modo, o processualista afirma que: Não compete ao Presidente ou vice-presidente [do Tribunal a quo] examinar o mérito do recurso extraordinário ou especial, nem lhe é lícito indeferi-lo por entender que o recorrente não tem razão: estaria, ao fazê-lo, usurpando a competência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça. Toca-lhe, porém, apreciar todos os aspectos da admissibilidade do recurso. Se o recurso é denegado, pode o recorrente agravar de instrumento, conforme a hipótese, para o Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça (art. 544). Se o admite, o pronunciamento, irrevogável, (mas anulável, quiçá mediante agravo regimental, caso haja error in procedendo; por exemplo, omissão da abertura de vista ao recorrido), não é vinculativo para o tribunal ad quem, que ficará livre de conhecer ou não, oportunamente, do extraordinário ou do especial, inclusive acolhendo alguma alegação de inadmissibilidade porventura formulada na resposta do recorrido e desprezada no órgão a quo [...]” (BARBOSA MOREIRA, 2002:597). Assim, na técnica processual brasileira, o resultado do juízo de

admissibilidade, no órgão ad quem, comporta apenas duas possibilidades: conhecer do

recurso/não conhecer do recurso. Por sua vez, o juízo de mérito apresenta um outro par: dar

provimento/negar “provimento”.50 A essência dessa diferenciação, lembra Barbosa Moreira

(1997:126), está na produção dos efeitos de cada resposta jurisdicional, pois apenas o

julgamento do meritum causae pelo Tribunal ad quem será apto a produzir coisa julgada

material (art. 468, CPC).

Contudo, esses critérios, que são aplicáveis prima face a todo e qualquer

recurso, como exige a dogmática, muitas vezes revelam a existência de uma fina linha

divisória entre tais conteúdos. Um exemplo é o disposto no art. 105, III, a, da CR/88:51 nessa

situação, o STJ se mostra competente para apreciar recursos especiais quando a decisão

proferida pelo órgão a quo “contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência”.

Todavia, para verificar a ocorrência da contrariedade da lei federal e se o recorrente tem razão

– o STJ precisa julgar o recurso especial. Diante dessa situação, indaga Barbosa Moreira

49 Como lembra Bahia (2003:327), pode-se encontrar um exemplo dessa confusão entre juízo de mérito e juízo

de admissibilidade no voto do Min. Décio Miranda no RE n. 87.355: “Creio que a palavra ‘inadmissível’ traduz apenas a situação sob o ângulo tipicamente processual: o não-conhecimento do recurso interposto fora do prazo, por exemplo. Já o não-conhecimento por motivo de mérito, como é o não-conhecimento técnico, peculiar, do recurso extraordinário, comportaria solução diversa, especialmente no caso de recursos interposto pela letra a da permissão constitucional. Aqui, o não-conhecimento do recurso envolve uma certa apreciação do fundo” (RTJ 95/221).

50 Todavia, desde já, ressalva-se que a expressão “provimento” é empregada aqui, em sentido diverso do proposto por Fazzalari (1996). “Dar provimento” ou “negar provimento” significa aqui, em sentido tradicional, em sede de juízo de mérito, reconhecer ou não a pretensão do recorrente.

51 “Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: [...] III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:

a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”.

Page 86: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

86

(1997:128): “Mas como poderia o tribunal, a priori, sem julgar o recurso, adivinhar o sentido

em que viria a pronunciar-se, na eventualidade de julgá-lo”? Nesse caso, o mesmo

processualista aponta uma solução pelas vias do abandono da literalidade do texto normativo,

sugerindo uma leitura mais adequada: [C]ompete ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando o recorrente alegar que a decisão recorrida contrariou lei federal (BARBOSA MOREIRA, 1997:128, grifos no original). Havendo essa alegação, caberá ao Tribunal conhecer do recurso especial,

para, em momento posterior, verificar se essa alegação é fundamentada, dando-lhe

“provimento” ou negando-lhe “provimento”. Essa distinção conceitual é importante, porque

gera conseqüências práticas. Quando não se conhece do recurso, a decisão do órgão ad quem não substitui a do órgão a quo; nem se conceberia que a substituísse, pois uma e outra têm objetos diversos. Se o órgão a quo julgou o mérito da causa, é a sua decisão que produz coisa julgada material; a do órgão ad quem, não versando sobre o mérito, não possui aptidão para produzi-la. Se o órgão a quo proferiu condenação, é a sua decisão que, na falta de cumprimento voluntário pelo vencido, serve de título para a execução; a do órgão ad quem só assumirá tal qualidade, eventualmente, quanto a condenações acessórias que porventura imponha (por exemplo, no tocante às custas do procedimento recursal), nunca em relação ao capítulo principal, que nela, não é condenatório (BARBOSA MOREIRA, 1997:132). Entretanto, apesar de o posicionamento acima transcrito apresentar uma

leitura condizente com o princípio do devido processo legal, notadamente com a exigência de

imparcialidade do juízo, vedando julgamentos antecipados da causa, Mancuso (2003:146) irá

reconhecer que ele não encontra abrigo na jurisprudência pátria, que prefere lançar mão de

uma razão pragmática e, dessa forma, ampliar o juízo de admissibilidade dos recursos

destinados aos Tribunais Superiores, permitindo o exame de “tudo o que esteja contido na

rubrica cabimento dos mesmos”, o que funciona como mecanismo de diminuição de causas a

serem julgadas pelo Tribunal ad quem. Mancuso (2003:147) lembra, contudo, que tal medida

na prática não trouxe qualquer benefício, pois, ainda assim, poderá o recorrente agravar de

instrumento, de modo que, se antes haveria um recurso (extraordinário, especial ou de revista)

para ser apreciado pelo órgão ad quem, passa a haver um agravo de instrumento.52 Tomando a

divisão dos pressupostos recursais feita pela teoria do processo entre extrínsecos

(tempestividade, preparo, regularidade formal e inexistência de fato impeditivo ou extintivo

do direito de recorrer) e intrínsecos (cabimento, legitimação para recorrer e interesse em

52 Além disso, importante lembrar que, contra o agravo de instrumento, então, interposto, nada poderá o Tribunal

a quo fazer, já que se trata de direito processual do recorrente, cabendo, portanto, o instituto da reclamação para garantir o pronunciamento pelo órgão ad quem. Ver, por exemplo, as reclamações ns. 357 / MG e 372 / MG julgadas pelo STJ (DJ 20/05/96, p. 16/657).

Page 87: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

87

recorrer), o presente trabalho entende que uma interpretação adequada da questão concorda

com a posição de Barbosa Moreira (1991:166), de modo que apenas os pressupostos

extrínsecos seriam passíveis de exame pelo órgão a quo (ARAÚJO, 2001:201).

Por sua vez, os recursos destinados aos Tribunais Superiores ainda

apresentam pressupostos especiais, que representam um plus no pressuposto recursal do

cabimento (MANCUSO, 2003:172). Dentro desse quadro, tem-se a exigência de pré-

questionamento da questão constitucional ou federal (incluindo a questão trabalhista)

envolvida. Para Mancuso (2003:226), essa exigência não é nova, e suas raízes podem ser

encontradas na Constituição de 1891.53 Segundo lição de Buzaid, trazida por Mancuso

(2003:226-227), essa exigência é proveniente do Direito norte-americano – Judiciary Act, de

24 de setembro de 1798. Desse modo, a questão deve já ter sido suscitada, não podendo tratar-

se de matéria nova veiculada no recurso.54 Todavia, mesmo a despeito de existência de

posicionamento sumulado consagrando essa exigência, muitos autores – dentre eles, Afonso

da Silva (1963:198) – entendem que o silêncio do Texto Constitucional representa um

“afrouxamento” nas exigências de interposição desse recurso. Todavia, lembra Mancuso

(2003:229) que a tese a favor do pré-questionamento busca vinculá-lo não a uma norma

expressa, mas à lógica interna do recurso. Mesmo assim, um argumento ainda resta: a

dogmática reconhece que questões de ordem pública, incluindo os objetos passíveis de análise

desses recursos, podem ser suscitadas a qualquer momento, não precluindo. Desse modo, tal

exegese parece mitigar o rigor excessivo que imperava ao tempo das edições das Súmulas

282, 317 e 356: Desde que se possa, sem esforço, aferir no caso concreto que o objeto do recurso está razoavelmente demarcado nas instâncias precedentes, cremos que é o bastante para satisfazer essa exigência que, de resto, não é excrescente, as próprias dos recursos de tipo excepcional, malgrado não conste, às expressas, nos permissivos constitucionais que os regem (MANCUSO, 2003:232, grifos no original). Mas a posição atual do STF ainda assume uma tendência à rejeição do pré-

questionamento implícito. Em voto proferido no AgRg 253.566-6 (DJ 03/03/2000), afirmou-

se que o Tribunal, devido a sua natureza ímpar, não pode perder seu tempo vasculhando o

acórdão recorrido em busca de uma norma que poderia ser pertinente ao caso. Essa posição

não deixa de ser curiosa: a presunção de conhecimento ilimitado do Direito pelos STF apenas

sede lugar a uma razão pragmática – diminuição da atividade judicante.

53 Art. 59, § 1º, a: “quando se questionar sobre a validade de leis ou a aplicação de tratados e leis federais, e a

decisão do tribunal do Estado for contra ela”. 54 No caso de omissão no pronunciamento jurisdicional, a parte deverá apresentar embargos declaratórios,

conforme entendimento sedimentado pela Súmula n. 356 do STF e Súmulas n. 98 e n. 211 do STJ.

Page 88: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

88

Além da discussão sobre a aplicação (ou não) da norma de natureza

constitucional ou federal (ou trabalhista), os recursos para Tribunais Superiores visam a

assegurar a uniformidade jurisprudencial. Uma importante função é destacada pela dogmática

jurídica, pois não basta que a justiça da decisão de casos similares se baseie na mesma norma

jurídica; pois, mais crucial ainda, é que seja adotada a mesma interpretação dessa norma.

Tratar-se-ia, então, do suposto conflito entre segurança jurídica e a justiça da decisão.

Entretanto, como ficaria essa questão, se a mesma dogmática afirma que não há espaço para

discussão sobre a justiça quando diante do julgamento de um recurso desse tipo?

A questão passa, então, a ser definida pelo prisma da autoridade presumida

do Tribunal Superior. Retorna-se a conclusão kelseniana de que a controvérsia sobre a

aplicação jurídica, dadas as múltiplas possibilidades de escolha discricionária dos

magistrados, somente pode ser resolvida através da percepção de que a decisão do Tribunal

será a mais correta apenas pelo fato de que a mesma não poderá ser mais revista por inexistir

um órgão superior.

Esse discurso que se funda na autoridade do órgão julgador, contudo, não se

mostra como adequado ao paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito. Tanto

a tese da integridade do Direito, trazida por Dworkin, quanto a reconstrução da atividade

jurisdicional feita pela Teoria do Discurso habermasiana podem oferecer respostas mais

adequadas, pois buscam compreender a relação existente entre segurança jurídica (agora,

entendida como coerência) e a justiça (correção) das decisões, a partir da tensão existente

entre a facticidade e a validade do Direito.

Outro ponto constatado como problemático, através da análise da dogmática

constitucional e processual, é a relação que se estabelece entre público e privado. Ainda

desconsiderando o esgotamento do paradigma do Estado Social, a dogmática afirma que os

recursos destinados aos Tribunais Superiores prezam o atendimento do interesse público,

admitindo como “reflexo” a produção de efeitos para o caso que envolve os litigantes. Tanto é

assim, que afirmam a possibilidade jurídica de instituição de mecanismos processuais capazes

de selecionar causas em que isso aconteceria, descartando da apreciação do Judiciário toda e

qualquer causa que não satisfaça essa exigência.

Até aqui foi demonstrado que tal conclusão coloca em risco a noção de

devido processo legal (constitucional), subtraindo das partes um espaço jurídico para defesa

de seus direitos. Logo, a pergunta que emerge é a seguinte: pode-se tomar, no paradigma

procedimental do Estado Democrático de Direito, a afirmação de superioridade do interesse

Page 89: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

89

público – razão principal utilizada para defesa dos mecanismos redutores de recursos – sobre

o interesse privado?

Uma análise mais aprofundada da dogmática – realizada no presente tópico

– revelou que a resposta a tal pergunta não é simples e indicou a necessidade de prosseguir

num exame mais cuidadoso. Dessa forma, o tópico seguinte objetiva analisar a leitura

histórico-institucional da relação público/privado. De certo, os sinais da ruptura como

paradigma do Estado Social podem e são sentidos pelos juristas brasileiros; esses, então,

passam a defender a utilização da técnica de ponderação – muito difundida pelo Tribunal

Constitucional alemão e que encontra na figura do jurista de Kiel, Robert Alexy, um de seus

principais teorizadores e defensores – como tentativa de superação da tese da

discricionariedade judicial. Logo, esse instrumental também será objeto de análise e

reconstrução, de modo a averiguar a sua adequação ao paradigma procedimental do Estado

Democrático de Direito.

2.3. O atendimento do interesse público como condição de conhecimento dos recursos para

Tribunais Superiores

Empreendida a reconstrução no capítulo anterior, foi possível compreender

que o paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito busca superar a relação

dicotômica que se estabelece entre a esfera privada e a esfera pública. Em substituição a uma

idéia de concorrência, introduzem-se uma tensão e a percepção de que ambas as esferas são

equiprimordiais. Através dessa idéia, será possível ver, no quarto capítulo, como Habermas

defenderá que a reconstrução dos princípios do Estado Democrático de Direito deve partir de

uma compreensão procedimentalista do Direito: [...] os sujeitos privados não poderão gozar de iguais liberdades subjetivas se eles mesmos, no comum exercício de sua autonomia política, não se esclarecerem sobre interesses justificados e critérios e não se puserem de acordo sobre quais hão de ser os aspectos relevantes sob os quais o igual deverá ser tratado de forma igual e o desigual de forma desigual (1998:61, tradução livre, grifo no original).55

55 “[...] los sujetos jurídicos privados no podrán gozar de iguales libertades subjetivas si ellos mismos, en común

ejercicio de su autonomía política, no se aclaran sobre intereses justificados y sobre criterios, y no se ponen de acuerdo sobre cuáles han de ser los aspectos relevantes bajo los que lo igual ha de ser tratarse de forma igual y lo desigual de forma desigual”.

Page 90: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

90

Ao se focar a atenção na história institucional brasileira, é possível verificar,

talvez por influência do positivismo jurídico, uma interpretação de que se deveria dar maior

prevalência à esfera pública – compreendida como estatal – que à esfera privada – relegada ao

âmbito do egoísmo individual . É justamente tal entendimento que alicerça a tese de supressão

da possibilidade de conhecimento de recursos para Tribunais Superiores, quando esses não

veicularem questões que ultrapassem a esfera individual dos litigantes – desprezando e

confundindo a distinção entre interesse e direito, uma vez que qualquer violação a um direito,

por mais individual ou privado que seja, ainda assim, representa uma violação à ordem

(jurídica) pública, razão mais que suficiente para provocar uma discussão sobre a questão nas

searas do Poder Judiciário.

Todavia, é de se perguntar, como lembra Baracho Junior (2004), se o dogma

da supremacia do interesse público sobre o interesse privado estaria sendo temperado através

do “princípio” da proporcionalidade.56

Mas o uso dessa técnica está sujeita a críticas, principalmente à luz de uma

Teoria Discursiva do Direito e da Democracia. Dessa forma, será possível ver, no capítulo 4

da presente pesquisa, que Habermas (1998) irá posicionar-se contrário à sua adoção, uma vez

que ela, ao apoiar-se nos pressupostos de uma racionalidade meramente instrumental,

desconsidera a racionalidade comunicativa, principal condição para a certificação da

legitimidade da decisão. Além do mais, por meio da proporcionalidade, os direitos são

tratados como valores, o que irá desnaturar o caráter deôntico dos mesmos, quebrando seu

código binário (licitude/ilicitude). Por fim, ainda se pode incluir a crítica de que a

proporcionalidade despreza e mistura a distinção entre discursos de justificação (produtor de

normas válidas) com os discursos de aplicação (que buscam encontrar a norma adequada a

cada caso concreto, levando em consideração as situações especiais e individualizantes).

56 Importante lembrar a crítica à terminologia feita por Afonso da Silva (2002:24-27). Seguindo a linha de

coerência com a própria teoria da proporcionalidade, o autor discorda da nomenclatura utilizada por boa parte dos juristas nacionais, pois a mesma não pode ser compreendida como um princípio, uma vez que não pode ser aplicada em várias medidas, mas sim de maneira constante, sendo, portanto, uma regra de proporcionalidade. Todavia, se o Direito é submetido a um cálculo de custo/benefício não se estaria diante de uma aplicação fundada nem em princípio, nem em regras, mas em argumentos políticos, o que será dito posteriormente.

Page 91: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

91

2.3.1. O dogma da supremacia do interesse público e seu abrandamento pela jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal: a técnica da ponderação de interesses

“Em que medida a Constituição de 1988 importa numa mudança na

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal? Em que medida as bases interpretativas no

Supremo Tribunal Federal foram modificadas após a promulgação da Constituição de 1988?”

Essas são as perguntas principais feitas por Baracho Júnior (2004:509), em seu ensaio sobre a

possibilidade de se identificar uma “nova hermenêutica” nos julgados do Supremo Tribunal

Federal (STF).

Ora, se é possível identificar alguma forma de inovação, no curso da linha

de raciocínio que o Tribunal vinha tomando, é de se pressupor também a existência de algo

anterior, algo que foi ou está sendo superado.57 Para tal empreitada, faz-se necessária a

observância dos julgados não apenas como casos isolados, mas como “precedentes”, ou seja,

como fundamentos para as decisões seguintes – prática utilizada pelo STF para possivelmente

representar uma forma de sistematizar a sua jurisprudência.58

Mas, diante da história institucional brasileira, esse trabalho pode se ver

ameaçado: “Evidentemente que uma corte cujo trabalho é constantemente interrompido por

golpes de Estado, tem maior dificuldade em consolidar uma orientação jurisprudencial

minimamente coerente” (BARACHO JÚNIOR, 2004:510).

O tema que pode funcionar como guia dessa tarefa, uma vez que sempre

esteve presente, sendo tomado como um dogma, é a prevalência do interesse público sobre o

interesse privado. Como lembra Ávila (2005:171), para a dogmática jurídica, seu

desenvolvimento teórico viria a partir dos estudos do direito administrativo,59 mas com

ramificações e influências para outros “ramos” do Direito, como o direito tributário.

57 Torna-se muito comum a afirmação de uma mudança hermenêutica no Direito brasileiro, ver, por exemplo, os

trabalhos de Streck (2003) e Barroso e Barcelos (2004), que vêm desenvolvendo diversas pesquisas sobre o que seria essa “nova interpretação” assumida pelo Supremo Tribunal Federal em seus julgados.

58 “Na Suprema Corte Americana é possível identificar nitidamente alguns períodos nos quais houve a consolidação de determinados princípios de interpretação constitucional, como o período de prevalência do devido processo substantivo, entre 1905 e 1937, o período da Corte de Warren, a partir de 1954, até 1969, que foi um período fortemente interventivo em relação às leis estaduais. Ou, ainda, a suprema Corte da Década de 1990, que é uma Suprema Corte fortemente preocupada com o princípio federativo e, por outro lado, abandona, em certa medida, os direitos fundamentais como principal foco de sua atuação, possibilitando que os Estados tenham maior liberdade de atuação legislativa em questões que importam em restrição ao exercício de tais direitos” (BARACHO JÚNIOR, 2004:511).

59 Nesse sentido, encontra-se a lição de Bandeira de Melo (2003:60): “Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo da sobrevivência e asseguramento deste

Page 92: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

92

Se, por um lado, a discussão sobre a supremacia do interesse público sobre o

privado era posta como um axioma60 – por partir das lições do positivismo jurídico, que

considerava a separação rígida entre Direito e Política, excluindo a possibilidade de um

Tribunal apreciar “questões políticas” – por outro, tal afirmação também serviu como “forma

de fragilizar a tutela de direitos individuais em face do poder público” (BARACHO JÚNIOR,

2004:513). Com isso, evitava a tutela de direitos individuais. E essa não era um debate novo no Supremo Tribunal Federal. Já no governo Floriano Peixoto, no início da República, logo após a implantação do Supremo Tribunal Federal, algumas questões que envolviam ofensas a direitos individuais não foram por ele apreciadas, pois, segundo dizia a Corte, eram questões políticas. Em 1893, em estado de sítio decretado por Floriano Peixoto, o Supremo se recusou a apreciar uma série de lesões a direitos individuais ao argumento de que aquelas questões eram políticas e que, portanto, não poderiam ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário (BARACHO JÚNIOR, 2004: 512-513). Entretanto, havia opositores a essa tese, como lembram Rodrigues (1991:20)

e Souza Cruz (2004:277). Segundo a historiadora, o discurso de Rui Barbosa,61 na defesa dos

direitos individuais, representa um contraponto necessário ao exercício democrático dos

direitos políticos: As palavras de Rui Barbosa em 1892 indicam essa concepção: “os casos, que, se por um lado toca a interesses políticos, por outro lado, envolvem direitos individuais, não podem ser defesos à intervenção dos tribunais, amparo de liberdade pessoal contra as invasões do executivo. [...] Onde quer que haja um direito individual violado, há de haver um recurso judicial para a debelação da injustiça. Quebrada a égide judiciária do direito individual, todos os diretos desaparecem, todas as autoridades se subvertem, a própria legislatura esfacela-se nas mãos da violência; só uma realidade subsiste: a onipotência do executivo, que a vós mesmos vos devorará, se nos desarmardes da vossa competência incontestável em todas as questões concernentes à liberdade” (RODRIGUES, 1991:20-21, grifos no original).

último”. Todavia, nota-se que essa afirmação parte, ainda, de uma compreensão paradigmática do Direito que se olvida do atual paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito. Como será explorado, no quarto capítulo, Habermas (1998) busca reconstruir os princípios do Estado de Direito e da Democracia para lançar uma compreensão não mais dicotômica da relação público/privado, mas, ao invés disso, equiprimordial. Para o filósofo alemão: “Os cidadãos só podem fazer um uso adequado de sua autonomia pública quando são independentes o bastante, em razão de uma autonomia privada que esteja equanimemente assegurada; mas também no fato de que só poderão chegar a uma regulamentação capaz de gerar consenso, se fizerem uso adequado de sua autonomia política enquanto cidadãos” (HABERMAS, 2002:294).

60 Como lembra Ávila (2005:176): “Axioma (usado, originalmente, como sinônimo de postulado) denota uma proposição cuja veracidade é aceita por todos, dado que não é nem possível nem necessário prová-la. Por isso mesmo, são os axiomas aplicáveis exclusivamente por meio da lógica, e deduzidos sem a intervenção de pontos de vista materiais”.

61 Como lembra Souza Júnior (2004:89), a figura de Rui Barbosa foi determinante para o desenvolvimento do debate sobre as questões políticas, pois “[p]ropunha um diálogo franco entre os grandes poderes do Estado, estipulados em textos formais, de um lado, e, de outro, os direitos individuais, taxativamente assegurados. A interpretação judicial desempenha, neste diálogo, a missão de mediação com o objetivo de evitar as possíveis colisões. Se os poderes exercidos extrapolam o círculo de competências, ou se direitos individuais são feridos, a intervenção judicial é legítima. Se se quer debater a existência constitucional de uma faculdade administrativa ou legislativa, também o judiciário será o assunto”.

Page 93: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

93

Dessa forma, como afirma Souza Júnior (2004:88), foi-se construindo a

noção de que a condição para o exame judicial de questões políticas seria a possibilidade de

lesão a direitos individuais. Em um dos mais antigos (HC 3061, julgado em 1911), o Supremo afirmou a possibilidade de conhecimento judicial do caso político quando acompanhado de uma questão judiciária. Logo depois, em 1914, aquela corte resguardou do exame judicial os motivos determinantes ou as conseqüências políticas dos atos de intervenção nos Estados. Construiu também o entendimento de que podia o Judiciário conhecer de casos puramente políticos, desde que se alegasse lesão de direito individual (SOUZA JÚNIOR, 2004:88). Todavia, a noção de prevalência do interesse público sobre o interesse

privado, mesmo com riscos à violação de direitos fundamentais, acaba se fortalecendo,

principalmente a partir de 1960, intensificando-se no período autoritário que se seguiu. Vamos ter, especialmente, a partir de 1965, com a edição do Ato Institucional n. 2, decisões do Supremo Tribunal Federal que importam em negar tutela de uma série de direitos individuais, fortalecendo a idéia de prevalência do interesse público sobre o privado. É o que vamos ver em algumas decisões, como por exemplo, no caso João Goulart, em 1967. De uma maneira geral, as questões que envolviam a segurança nacional, se pautavam pela idéia de prevalência do interesse público sobre o privado (BARACHO JÚNIOR, 2004:514). Essa interpretação permaneceu, contudo, com o advento da Constituição da

República de 1988; como afirma Baracho Júnior (2004-514), basta analisar a decisão

proferida na ADI n. 47, que tratou da interpretação do art. 100 da Carta Magna, estabelecendo

que “à exceção dos créditos de natureza alimentícia, a execução contra a fazenda pública se

fará através de precatório”.62

De uma maneira geral, para os publicistas, mas principalmente para os

administrativistas, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular se

apresenta como um princípio implícito na ordem jurídica brasileira e seria usado para

justificar uma série de prerrogativas titularizadas pela Administração Pública. Isso ocorre por

se entender que a mesma seria a “tutora” e a “guardiã dos interesses da coletividade”

(SARMENTO, 2005:24). Como conseqüência, verifica-se a existência de uma verticalidade

na relação entre a Administração Pública e os administrados, de modo que o desequilíbrio

seria sempre em favor do Estado.

62 Lembra Baracho Júnior (2004:514-515): “ Nesta [ADI], o Supremo Tribunal Federal interpretou o art. 100 de

uma maneira que contraria os próprios anais da Assembléia Nacional Constituinte. O Constituinte pretendeu retirar os créditos de natura alimentícia desta forma de execução, qual seja, a execução através de precatórios. O Supremo Tribunal Federal, entretanto, afirmou que a única especificidade que decore do art. 100 da Constituição é a possibilidade dos créditos de natureza alimentícia terem prioridade em relação a outros créditos contra a fazenda pública. Assim, os créditos alimentícios terão sempre prioridade na ordem de pagamento em relação a outros créditos”.

Page 94: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

94

Mas o que se pode considerar como interesse público? Talvez essa questão

devesse ser mais bem problematizada pelos publicistas, que muitas vezes igualam a dimensão

do público à coletividade e, outras vezes, ao estatal (governamental).

Para Bandeira de Melo (2003:57) – valendo-se das lições de Alessi63, seria

possível distinguir dois tipos de interesse público: interesse público primário e interesse

público secundário (SARMENTO, 2005:24; BARROSO, 2005:xiii). Nessa ótica, identifica-se

o interesse primário como sendo a razão de ser do Estado ou como os interesses gerais da

coletividade; já o segundo tipo representa os interesses particulares que o Estado possui como

pessoa jurídica e não mais como expressão de uma vontade coletiva. Logo, alguns

administrativistas buscam fazer uma ponte entre o interesse público primário e o bem comum

como forma de afirmação de sua superioridade em face do interesse privado.

Binenbojm (2005:137) faz uma crítica precisa à tentativa de alguns juristas

de justificar a supremacia do interesse público como princípio norteador da ação

administrativa. Nesse sentido, a supremacia do interesse público atuaria como garantia de

proteção, inclusive do interesse privado, já que impediria o Estado de atuar a favor de

interesses privatísticos, desviando-se dos fins coletivos. Todavia, a corrente a que se filia Di

Pietro (2004:69-70) nada esclarece sobre a relação público/privado; além do mais, os

problemas por ela apontados não são resolvidos nesse plano, mas no plano dos princípios da

impessoalidade e da moralidade.

Salles (2003:58) reconhece a dificuldade de se chegar a um conceito de fácil

assimilação, haja vista a natureza genérica que o conceito deve assumir para abranger uma

pluralidade de interesses dispersos pela sociedade. Dessa forma, vale-se do Teorema de

Arrow (Arrow’s theorem)64 para assegurar que tomadas de posição que parecem envolver

uma discricionariedade, seria melhor, se deixadas a cargo da decisão estatal (política),

representativa do interesse público. Todavia, tal posição pode parecer por demais cética e, até

mesmo, ingênua – por vezes, autoritária – ao imaginar que o Estado seja capaz de corporificar

todos os anseios e desejos de uma sociedade. Além do mais, vale aqui o alerta de Sarmento

63 Sistema Istituzionale del diritto amministrativo ilaliano, 1960, p. 197, apud Bandeira de Melo (2003:57). 64 Segundo Salles (2003:59), Kenneth J. Arrow “demonstrou [seu teorema] no começo da década de 60. Arrow

tomou hipoteticamente três indivíduos com poder para tomar uma decisão e, considerando que cada um deles tem uma ordem de preferências diferentes, demonstrou, matematicamente, que o cruzamento dessas preferências individuais pode levar a decisões inteiramentes aleatórias, dependendo de fatores estruturais do processo decisório”.

Page 95: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

95

(2005:27), já que tal tese pode representar uma forma de ressurreição das “razões de Estado”,

colocando-se como obstáculo intransponível para o exercício de direitos fundamentais.65

A outra proposta que identifica o público ao componente majoritário

também se mostra delicada. Tomando como referência aplicada dessa concepção a decisão

proferida no julgamento do Recurso Extraordinário n. 153.531-8, de Santa Catarina, fica claro

que o interesse público aqui é igualado a uma maioria da sociedade.66 Ao examinar o

questionamento de se a farra do boi – prática de alguns descendentes de açoreanos residentes

em Florianópolis – representaria um risco para a segurança dos participantes e uma ação cruel

para com os animais, Baracho Júnior afirma que: O Supremo Tribunal Federal trabalha com dois fundamentos para dizer que o Estado de Santa Catarina deveria atuar, através da Polícia Militar, no sentido de reprimir a farra do boi. O primeiro argumento é que os animais estariam submetidos à crueldade. O art. 225 da Constituição, inciso VII, diz que o Estado não deverá tolerar crueldades contra animais. O segundo fundamento é o mais curioso desta decisão, porque é exatamente a prevalência de uma visão majoritária sobre a de uma coletividade [minoritária]. Há uma idéia de que as tradições de um grupo minoritário não podem prevalecer sobre as tradições que não são compartilhadas pela maioria da sociedade brasileira. As expressões utilizadas no voto vencedor são ilustrativas, pois os descendentes de açoreanos são comparados a uma “turba ensandecida”que adota procedimentos estarrecedores (2004:516). Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal deixou de observar a dimensão

hermenêutica envolvida na questão. Tomando apenas a posição de um observador

sociológico, compreendeu-se que o interesse público aqui seria o de proteger os animais de

uma prática violenta. Todavia, [...] esta idéia de violência não existe para os açoreanos. Os descendentes de açoreanos que faziam da farra do boi uma celebração anual, não associavam à manifestação uma idéia de violência que nós, que não somos descendentes de açoreanos, associamos. Este é um dado importante, pois, na Espanha, por exemplo, em práticas semelhantes, a idéia de violência não está associada. Dificilmente tais práticas seriam atribuídas a uma “turba ensandecida” na Espanha. Muito menos seriam os procedimentos considerados como estarrecedores (BARACHO JÚNIOR, 2004:517). Dessa forma, pode-se perceber que a associação do interesse público ao

interesse de uma maioria da sociedade mostra-se insuficiente sob o prisma de uma democracia

pluralista, que garante a inclusão da perspectiva de todos os envolvidos.

65 Aragão (2005:7) alerta para o risco de que supostos “interesses públicos” sejam utilizados pelo Estado como

forma de justificar restrições aos direitos fundamentais. Cita, para tanto, dois precedentes norte-americanos: no primeiro, Dennis vs. United States, esse dogma possibilitou restrições à liberdade de manifestação de idéias que fossem consideradas esquerdistas; no outro, Korematsu vs. United States, permitiu que cidadãos norte-americanos de origem japonesa ficassem confinados em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.

66 “Costume – Manifestação cultural – Estímulo Razoabilidade – Preservação da Fauna e da Flora – Animais – Crueldade. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do art. 255 da Constituição Federal, no que veda a prática que acabe por submeter animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’”.

Page 96: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

96

Logo, definir o interesse público como interesse geral de uma coletividade e

contrapô-lo a um interesse privado limitado ao perímetro das vivências experimentadas pelos

indivíduos fora do alcance da polis (SARMENTO, 2005:30) é insuficiente. Primeiro, porque

não pode o indivíduo ignorar a dimensão imposta pela vida em sociedade; sua casa não pode

servir como metáfora da ilha imaginada por Crusoé, ou ser entendida como uma fortaleza que

coloque o público na porta da rua; pois o processo de socialização acontece

concomitantemente com o processo de individualização.67 Sarmento (2005:47) lembra que a

sociedade contemporânea é por demais complexa para se apoiar em pilares estanques. Vive-se

em um tempo que imprime um novo sentido à concepção de espaço público, que não vem

mais associada unicamente ao elemento estatal.68

A pergunta sobre qual é o interesse da coletividade leva, então, a uma outra

pergunta: quem é a coletividade?, ou a outra ainda mais radical: “quem é o povo?”, que já

suscitou um importante ensaio pelo jurista alemão Müller (1998). Nesse trabalho, Müller

alerta para a figura do povo como um ícone – em igual precisão, Carvalho Netto (2003:84)

lembra que o conceito de povo é por demais “gordo”, isto é, pode ser manipulado ao sabor de

conveniências políticas.

Outro importante trabalho é o texto de Rosenfeld sobre a Identidade do

Sujeito Constitucional (2003). Através das reflexões do professor da Cardozo School of Law,

pode-se compreender o conceito de povo como um eterno hiato, aberto a um processo

dinâmico de elaboração e revisão. É justamente no seu fechamento como conceito que se

encontra o perigo para a democracia: Esse rápido olhar inicial sobre a identidade constitucional, bem como sobre o sujeito e a matéria constitucionais revela que é bem mais fácil determinar o que eles não são do que propriamente o que eles são. Ao construir essa intuição, esse insight, exploro a tese segundo a qual, em última instância, é preferível e mais acurado considerar o sujeito e a matéria constitucionais como uma ausência mais do que como uma presença. Em outros termos, a própria questão do sujeito e da matéria constitucionais é estimulante porque encontramos um hiato, um vazio, no lugar em que buscamos uma fonte última de legitimidade e autoridade para a ordem constitucional. Além do mais, o sujeito constitucional deve ser considerado como um hiato ou uma ausência em pelo menos dois

67 Ver HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneichler.

Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990; HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Taurus, 1987. 2 v. (Tomo I: Racionalidad de la acción y racionalización social; Tomo II: Crítica de la razón funcionalista); e FERREIRA, Rodrigo Mendes. Individualização e Socialização em Jürgen Habermas: um estudo sobre a formação discursiva da vontade. São Paulo: Annablume, 2000.

68 “De fato, se no Estado Liberal o público correspondia ao Estado e o privado a uma sociedade civil regida pelo mercado, considerada como o locus em que indivíduos perseguiam egoisticamente seus interesses particulares, robustece-se agora um terceiro setor, que é público, mas não estatal. Ele é composto por ONG’s, associações de moradores, entidades de classe e outros movimentos sociais, que atuam em prol de interesses da coletividade, e agem aglutinando e canalizando para o sistema político demandas importantes, muitas vezes negligenciadas pelas instâncias representativas tradicionais” (SARMENTO, 2005:48).

Page 97: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

97

sentidos distintos: primeiramente, a ausência do sujeito constitucional não nega o seu caráter indispensável, daí a necessidade de sua reconstrução; e, em segundo lugar, o sujeito constitucional sempre envolve um hiato porque ele é inerentemente incompleto, e então sempre aberto a uma necessária, mas impossível, busca de completude. Conseqüentemente, o sujeito constitucional encontra-se constantemente carente de reconstrução, mas essa reconstrução jamais pode se tornar definitiva ou completa. Da mesma forma, de modo consistente com essa tese, a identidade constitucional deve ser reconstruída em oposição às outras identidades, na medida em que ela não pode sobreviver a não ser que pertença distinta dessas últimas. Por outro lado, a identidade constitucional não pode simplesmente dispor dessas outras identidades, devendo então lutar para incorporar e transformar alguns elementos tomados de empréstimo. Em suma, a identidade do sujeito constitucional só é suscetível de determinação parcial mediante um processo de reconstrução orientado no sentido de alcançar um equilíbrio entre a assimilação e a rejeição das demais identidades relevantes acima discutidas (2003:26-27). Para isso, Rosenfeld utiliza três instrumentos teóricos: A negação, a metáfora e a metonímia combinam-se para selecionar, descartar e organizar os elementos pertinentes com vistas a produzir um discurso constitucional no e pelo qual o sujeito constitucional possa fundar sua identidade. A negação é crucial à medida que o sujeito constitucional só pode emergir como um “eu” distinto por meio da exclusão e da renúncia. A metáfora ou condensação, por outro lado, que atua mediante o procedimento de se destacar as semelhanças em detrimento das diferenças, exerce um papel unificador chave ao produzir identidades parciais em torno das quais a identidade constitucional possa transitar. A metonímia ou deslocamento, finalmente, com a sua ênfase na contigüidade e no contexto, é essencial para evitar que o sujeito constitucional se fixe em identidades que permaneçam tão condensadas e abstratas ao ponto de aplainar as diferenças que devem ser levadas em conta se a identidade constitucional deve realmente envolver tanto o eu quanto o outro (2003:50). Dessa forma, dentro de uma mesma sociedade, há não apenas uma

identidade coletiva, mas diversas e até mesmo concorrentes, de modo que uma interpretação

da Constituição que leve em conta apenas uma identidade, por mais majoritária que seja, pode

lançar complicações para o desenvolvimento da democracia. Afinal a identidade

constitucional, embora aberta às diversas identidades coletivas, não se confunde com

nenhuma delas.

Todavia, como o próprio julgamento do Recurso Extraordinário n. 153.531-

8 irá revelar, a noção de interesse público não foi tomada como um dogma, mas sim

compreendida de maneira a ter de se “compatibilizar” com o interesse privado pela via da

utilização. Para tanto, conforme inspiração no Direito alemão, mais exatamente na tradição da

jurisprudência de valores alemã, o STF fez uso da técnica de ponderação, por meio da qual:

“[...] Quanto maior o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto mais tem

que ser a importância da satisfação do outro” (ALEXY, 1997:161, tradução livre).69

69 “[...] Cuanto mayor es el grado de la no satisfacción o de afectación de un principio, tanto mayor tiene que ser

la importancia de la satisfacción del otro”.

Page 98: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

98

Como observa Souza Cruz (2004:160), o pensamento utilitarista serve de

base para a ponderação;70 todavia seus defensores alegam que o “princípio” da

proporcionalidade seria capaz de impedir a escolha arbitrária, vinculando o operador jurídico

ao uso de meios adequados e proporcionais. Um desses defensores é o jurista de

Kiel, Alexy (1997). Mas, como se verificará, o presente trabalho irá sustentar a tese de que, no

pensamento de Alexy, ainda persiste uma dificuldade em assimilar completamente o giro

hermenêutico-pragmático,71 por ainda buscar no método a expressão de uma racionalidade

capaz de neutralizar toda a complexidade inerente à linguagem (ALEXY, 1998:32; 2003:139;

1997:98; 1997b:136).72

A partir dessa ótica, tanto o interesse público quanto o interesse privado

podem ser considerados à luz de princípios. Alexy (1998:09) concorda com a compreensão de

regras e de princípios como espécies de normas jurídicas – o que leva à necessidade de

empreender uma digressão sobre uma compreensão do Direito para além de um mero

conjunto de regras73.

Partindo dessa premissa, lembra-se que freqüentemente a distinção entre

ambos os standars normativos se dá em razão da generalidade dos princípios frente às regras.

Isto é, muitos autores compreendem os princípios como normas de um grau de generalidade

relativamente alta, ao passo que as regras seriam dotadas de uma menor generalidade.74

70 A popularidade do método da ponderação adquire cada dia mais destaque nos julgamento proferidos pelo

Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF). Tanto assim, que Barroso (2004:471) e Baracho Júnior (2004:520) defendem que sua adoção representa uma mudança no curso da interpretação levada a cabo pelo tribunal, equivalendo à adoção de uma Nova Hermenêutica na Jurisprudência do STF. O precedente representado pelo HC n. 82.424/RS mostra-se como exemplo de uma aplicação prática da teoria de Alexy. Isso porque o caso ganhou notoriedade por examinar um suposto conflito entre os princípios da liberdade de expressão e da dignidade da pessoa humana, envolvendo a acusação de prática de racismo durante a publicação de livros anti-semitas. As bases da ponderação foram bem explicitadas através dos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio.

71 Cabe destacar, desde já, que, diferentemente de Alexy, Dworkin desenvolve sua teoria levando em conta o giro hermenêutico empreendido por Heidegger e Gadamer, sendo que o último irá adotar uma postura de ruptura com as posições objetivistas de Schleiermacher e Dilthey, radicalizando a experiência hermenêutica e se apoiando principalmente no modo de ser do Dasein (do ser-aí) heideggeriano. Desta forma, a Hermenêutica Filosófica entende que “a compreensão humana se orienta a partir de uma pré-compreensão que emerge da eventual situação existencial e que demarca o enquadramento temático e o limite de validade de cada tentativa de interpretação” (GRONDIN, 1999:159). Os reflexos da percepção de tal “consciência histórica” podem ser sentidos no pensamento de Dworkin, como lembra Carvalho Netto: “Para ele, a unicidade e a irrepetibilidade que caracterizam todos os eventos históricos, ou seja, também qualquer caso concreto sobre o qual se pretenda tutela jurisdicional, exigem do juiz hercúleo esforço no sentido de encontrar no ordenamento considerado em sua inteireza a única decisão correta para este caso específico irrepetível por definição” (1999:475).

72 Importante lembrar a colocação de Cattoni de Oliveira (2001:77-78) no sentido de que, para Alexy (2001:17-18), a racionalidade de um discurso prático pode ser mantida se forem satisfeitas as condições expressas por um sistema de regras ou procedimentos.

73 Aqui é preciso lembrar, que Alexy toma como referência de norma o conceito “semântico” de norma (GALUPPO, 1999:135-136) presente já em Kelsen (1999), de modo que compreende que a norma é o significado extraído de um enunciado.

74 Nesse sentido, ver Hart (1994:321-325) em resposta a distinção dworkiana entre princípios e regras.

Page 99: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

99

Contudo, tal abordagem quantitativa, levada adiante por autores como Del Vecchio e Bobbio,

mostra-se insuficiente à luz do pensamento desenvolvido já em Esser,75 como demonstra

Galuppo (2002:170-171). Tal tese é denominada por Alexy (1998:09) como a tese fraca da

separação, de modo que uma tese forte, como a que o autor pretende adotar, considera a

distinção como qualitativa. Logo, pode-se perceber que a generalidade não é um critério

adequado para tal distinção, pois é, quando muito, uma conseqüência da natureza dos

princípios, sendo incapaz de proporcionar uma diferenciação essencial (GALUPPO,

1999:137).

Afirma-se, então, que regras, diferentemente dos princípios, são aplicáveis

na maneira do tudo-ou-nada (all-or-nothing-fashion);76 isso significa dizer que, se uma regra

é válida, ela deve ser aplicada da maneira como preceitua, nem mais nem menos, conforme

um procedimento de subsunção silogístico (AFONSO DA SILVA, 2002:25). Todavia, o

principal traço distintivo com relação aos princípios é observado quando, diante de um

conflito entre regras, algumas posturas deverão ser tomadas para que apenas uma delas seja

considerada válida (ÁVILA, 2004:30). Como conseqüência, a outra regra não somente não

será considerada pela decisão, mas deverá ser retirada do ordenamento jurídico, como

inválida, salvo se não for estabelecido que essa regra se situa em uma situação que excepciona

a outra – trata-se do critério da excepcionalidade das regras. Um exemplo é fornecido pelo

próprio Alexy (1997b:163-164): uma Lei Estadual proibia o funcionamento de

estabelecimentos comerciais após as 13:00 e, concomitantemente, existia uma Lei Federal

estendendo esse funcionamento até às 19:00. Nesse caso, o Tribunal Constitucional alemão

solucionou a controvérsia, apoiando-se no cânone da hierarquia das normas, de modo a

entender pela validade da legislação federal.

Já os princípios, por sua vez, não são determinantes para uma decisão, de

modo que somente apresentariam razões em favor de uma ou de outra posição argumentativa

(ALEXY, 1998:09-10); logo apresentam obrigações prima facie, na medida em que podem

ser superadas em função de outros princípios (ÁVILA, 2004:30; AFONSO DA SILVA,

75 “Para Josef Esser, princípios são aquelas normas que estabelecem fundamentos para que determinado

mandamento seja encontrado. Mais do que uma distinção baseada no grau de abstração da prescrição normativa, a diferença entre os princípios e as regras seria uma distinção qualitativa. O critério distintivo dos princípios em relação às regras seria, portanto, a função de fundamento normativo para a tomada de decisão” (ÁVILA, 2004:27).

76 Muitos autores atribuem a Alexy a originalidade da distinção entre regras e princípios; todavia, esses se olvidam do importante ensaio publicado por Dworkin, Model of Rules, originalmente, na Chicago Law Review no. 35 (1967-1968), sendo, depois, republicado como o capítulo 2 da obra Levando os Direitos a Sério (com tradução para o português pela Editora Martins Fontes, em 2002). Todavia, importante lembrar, mais uma vez, que a distinção dworkiana se pauta pelo prisma lógico-argumentativo, e não por critéiros estruturais – ou morfológicos –. Reconhecendo isso, tem-se Sarmento (2000:44).

Page 100: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

100

2005:32), o que difere na natureza de obrigações absolutas das regras. É, por isso, que o autor

afirma existir uma dimensão de peso entre princípios – que permanece inexistente nas regras

– principalmente nos chamados casos de colisão, exigindo para a sua aplicação um

procedimento de ponderação (balanceamento). Destarte, em face de uma colisão entre

princípios, o valor decisório será dado a um princípio que tenha, naquele caso concreto, maior

peso relativo, sem que isso signifique a invalidação do princípio compreendido como de peso

menor. Em face de um outro caso, portanto, o peso dos princípios poderá ser redistribuído de

maneira diversa,77 pois nenhum princípio goza antecipadamente de primazia sobre os

demais.78 É desta forma que Alexy (1998:12) apresenta a distinção fundamental entre regras e

princípios: [...] princípios são normas que ordenam que algo se realize na maior medida possível, em relação às possibilidades jurídicas e fáticas. Os princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização que se caracterizam porque podem ser cumpridos em diferentes graus e porque a medida de seu cumprimento não só depende das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. [...]. Por outro lado, as regras são normas que exigem um cumprimento pleno e, nessa medida, podem sempre ser somente cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então é obrigatório fazer precisamente o que se ordena, nem mais nem menos. As regras contêm por isso determinações no campo do possível fático e juridicamente (ALEXY, 1998:12, grifos no original, tradução livre).79

Mas como explicar a natureza de mandamentos de otimização80 atribuída

aos princípios? Ou de outra forma, como uma norma pode ter sua aplicação em diferentes

graus? Para Alexy (1998:14, 1997:138), isso pode ser explicado quando se compreende que

princípios podem ser equiparados a valores. Uma concepção sobre valores – isto é,

77 “No caso das colisões entre princípios, portanto, não há como se falar em um princípio que sempre tenha

precedência em relação a outro. [...] É por isso que não se pode falar que um princípio P1 sempre prevalecerá sobre o princípio P2 – (P1 P P2) –, devendo-se sempre falar em prevalência do princípio P1 sobre o princípio P2 diante das condições C – (P1 P P2) C” (AFONSO DA SILVA, 2005:35).

78 Isso pode ser percebido no julgamento do HC n. 82.424/RS. Como já comentado, o STF identificou um conflito envolvendo os princípios da dignidade da pessoa humana e da liberdade de expressão. Em momento algum, afirmou-se que a dignidade da pessoa humana (ou mais exatamente, não discriminação) seria hierarquicamente superior à liberdade de expressão. Assim, um ou outro princípio pode ser ponderado através de sua aplicação gradual no caso sub judice. Assim, como bem reconhece o Min. Marco Aurélio (2004:177) em seu voto, “as colisões entre princípio [sob essa ótica] somente podem ser superadas se algum tipo de restrição ou de sacrifício formem impostos a um ou os dois lados. Enquanto o conflito entre regras resolve-se na dimensão da validade, [...] o choque de princípios encontra solução na dimensão do valor, a partir do critério da ‘ponderação’, que possibilita um meio-termo entre a vinculação e a flexibilidade dos direitos”.

79 “[...] principios son normas que ordenan que se realice algo en la mayor medida posible, en relación con las posibilidades jurídicas y fácticas. Los principios son, por consiguiente, mandatos de optimización que se caracterizan por que pueden ser cumplidos en diversos grados y porque la medida ordenada de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades fácticas, sino también de las posibilidades jurídicas. […] En cambio, las reglas son normas que exigen un cumplimiento pleno y, en esa medida, pueden siempre ser sólo o cumplidas o incumplidas. Si una regla es válida, entonces es obligatorio hacer precisamente lo que ordena, ni más ni menos. Las reglas contienen por ello determinaciones en el campo de lo posible fáctica y jurídicamente”.

80 Afonso da Silva (2002:25) alerta que, devido à influência das traduções espanholas das obras de Alexy, tornou-se comum referir-se aos princípios como “mandados de otimização”. Todavia, trata-se de utilização imprópria, preferindo esse autor o termo mandamentos de otimização.

Page 101: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

101

axiológica – dirá Alexy (1997:139), traz uma referência não no nível do dever-ser

(deontológico), mas no nível do que pode ou não ser considerado como bem. Os valores têm

como características a possibilidade de valoração, isto é, permitem que um determinado juízo

possa ser classificado, comparado ou medido. Destarte, Com a ajuda de conceitos de valor classificatório se pode dizer que algo tem um valor positivo, negativo ou neutro; com a ajuda de conceitos de valor comparativo, que a um objeto que se deve valorar corresponde um valor maior ou o mesmo valor que outro objeto e, com ajuda de conceitos de valor métrico, que algo tem um valor de determinada magnitude (ALEXY, 1997:143, tradução livre).81

Todavia, apesar de dizer que princípios podem ser equipados aos valores,

Alexy (1997:147) dirá que princípios não são valores. Isso porque os princípios, como

normas, apontam para o que se considera devido, ao passo que os valores apontam para o que

pode ser considerado melhor.82 Assim, mesmo tendo uma operacionalização idêntica aos

valores, ainda assim princípios apresentam uma diferença básica frente aos valores.83

Para concluir, dirá que, se alguém estiver diante de uma norma que exige

um cumprimento na maior medida do possível, estará diante de um princípio; em

contrapartida, se tal norma exigir apenas o cumprimento em uma determinada medida, ter-se-

á uma regra. Logo, a diferença se centraria em um aspecto da estrutura dos princípios e das

regras, de uma maneira morfológica, fazendo com que regras sejam aplicadas de maneira

silogística e princípios, por meio de uma ponderação ou balanceamento (ALEXY, 2003;

AFONSO DA SILVA, 2002:25).

Dessa forma, os princípios que prescrevem a proteção tanto do interesse

público de um lado, quanto do interesse privado de outro, deverão ser ponderados por meio do

“princípio” da proporcionalidade,84 para que se possa atingir um resultado em face de um

81 “Con la ayuda de conceptos de valor clasificatorios se puede decir que algo tiene un valor positivo, negativo o

neutral; con la ayuda de conceptos de valor comparativos, que a un objeto que hay que valorar le corresponde un valor o el mismo valor que a otro objeto y, con la ayuda de conceptos de valor métricos, que algo tiene un valor de determinada magnitud”.

82 “La diferencia entre principios y valores se reduce así a un punto. Lo que en el modelo de los valores es prima facie lo mejor es, en el modelo de los principios, prima facie debido; y lo que en el modelo de los valores es definitivamente lo mejor es, en el modelo de los principios, definitivamente debido” (ALEXY, 1997:147).

83 Apenas para demarcar a dissonância, adianta-se que tese alexyana é refutada tanto por Dworkin quanto por Habermas, que defendem a impossibilidade de equiparar princípios a valores, sob pena de desnaturar a própria lógica de aplicação normativa. Ambos os autores ainda lançarão mão não de uma diferenciação morfológica entre princípios e regras, preferindo o que se pode considerar como uma distinção em razão da natureza lógico-argumentativa. Tal contraponto será mais bem explorado nos capítulos seguintes.

84 Afonso da Silva (2002:24-27) sustenta que seria errônea a referência à técnica da ponderação como “princípio da proporcionalidade”. Segundo o autor, “[o] chamado princípio da proporcionalidade não pode ser considerado um princípio, pelo menos não com base na classificação de Alexy, pois não tem como produzir efeitos em variadas medidas, já que é aplicado de forma constante, sem variações”. Dessa forma, tratar-se-ia de uma regra de ponderação, aplicável por meio da subsunção, bem como suas sub-regras. Ávila (2005) refere-se a um dever de proporcionalidade, termo considerado correto por Afonso da Silva, mas pouco adequado, já que a idéia de dever remete apenas ao gênero norma jurídica, sem explicitar sua espécie –

Page 102: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

102

caso concreto. Assim, o próximo passo da presente explanação é analisar melhor o

mecanismo da proporcionalidade teorizado por Alexy. Para tanto, deve-se lembrar que nem

princípios nem regras são capazes de regular por si mesmos suas condições de aplicação, de

modo que o jurista de Kiel reconhece a necessidade de promover uma compreensão da

decisão jurídica regrada por uma teoria da argumentação (ALEXY, 1997b:173).85 A partir

disso, o sistema jurídico, além de conter regras e princípios, comporta um terceiro nível, no

qual são feitas considerações sobre um procedimento – seguindo o modelo da razão prática –

que permitiria alcançar e assegurar a racionalidade de aplicação jurídica (CHAMON

JUNIOR, 2004:103).

A argumentação jurídica é vista por Alexy (1998:18) como um caso especial

da argumentação prática geral, ou seja, da argumentação moral. Sua peculiaridade, contudo,

está na série de vínculos institucionais que a caracteriza, tais como a lei, o precedente e a

dogmática jurídica.86 Mas mesmo esses vínculos – concebidos como um sistema de regras,

princípios e procedimento – são incapazes de levar a um resultado preciso. As regras do

discurso serviriam apenas para que se pudesse contar com um mínimo de racionalidade. Tudo,

para Alexy (1998:18-19), gira em volta de um problema referente à racionalidade jurídica.

Como não é possível uma teoria moral de cunho substantivo, somente se pode apelar para as

princípios ou regras. Também não se deve confundir proporcionalidade com racionalidade, como lembra Afonso da Silva (2002:28). Muitos juristas tratam como se fossem termos sinônimos, como se proporcionalidade fosse o termo adotado pelos autores de tradição germânica, ao passo que a razoabilidade tivesse sua difusão na tradição do common law. Segundo o constitucionalista, a diferenciação se dá não pela origem, mas pela estrutura. “A regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direitos fundamentais surgiu por desenvolvimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão e não é uma simples pauta que, vagamente, sugere que os atos estatais devem ser razoáveis, nem uma simples análise da relação meio-fim. Na forma desenvolvida pela jurisprudência constitucional alemã, tem ela uma estrutura racionalmente definida, com subelementos independentes – a análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito –, que são aplicados em uma ordem pré-definida e que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade” (AFFONSO DA SILVA, 2002:30). É, por isso, que esse autor afirma que o STF apenas consegue exercer sua função nos limites da razoabilidade, pouco ou nada compreendendo sobre a dimensão da proporcionalidade. O órgão judicante, então, apenas mencionaria as sub-regras da proporcionalidade, sem, contudo, analisá-las perante o caso específico que tem a sua frente.

85 “[...] el agregado del nivel de los principios conduce sólo condicionadamente a una vinculación en el sentido de una determinación estricta del resultado. También después de la eliminación de las lagunas de apertura a nivel de las reglas quedan las lagunas de indeterminación del nivel de los principios. Sin embargo, de aquí no podrían inferirse un argumento a favor del modelo de la regla e en contra del modelo regla/principio, tampoco si ésta fuera la última palabra. Lo que hasta ahora se ha descrito, el nivel de la regla y el de los principios, no proporciona un cuadro completo del sistema jurídico. Ni los principios ni las reglas regulan por sí mismos su aplicación. Si se quiere obtener un modelo completo, hay que agregar al costado pasivo uno activo, referido al procedimiento, de la aplicación de las reglas y los principios. Por lo tanto, los niveles de las reglas y los principios tienen que ser completados con un tercer nivel. En un sistema orientado por el concepto de la razón práctica, este tercer nivel puede ser sólo al de un procedimiento que asegura la racionalidad” (ALEXY, 1997b:173, grifos nossos).

86 Sobre isso, um maior detalhamento pode ser obtido pela leitura do capítulo 3 da obra ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001.

Page 103: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

103

teorias morais procedimentais, que formulariam regras ou condições para a argumentação ou

para uma decisão racional.87

Para desenvolver sua teoria da argumentação, o professor alemão irá

proceder a uma minuciosa análise de diversas teorias, retirando delas o que considera notável,

como lembra Souza Cruz: Dos julgamentos morais de Stevenson, destacou as distintas formas de argumentos e de argumentações. Da filosofia lingüística de Wittgenstein, observou que a linguagem normativa não poderia ser reduzida à linguagem descritiva, ao passo que da Teoria Discursiva de Austin aproveitou os aspectos performativos da linguagem e sua relação com os dados da realidade. Da teoria metaética de Hare, destacou o esforço na comensurabilidade de valores, ao exigir que o juiz não apenas se colocasse na posição do réu, mas que levasse a sério todos os interesses daqueles que de alguma forma pudessem ser afetados pela decisão, enquanto da filosofia psicológica de Toulmin aproveitou a concepção da existência de regras no discurso moral que permitiam um exame racional. Da Teoria da Argumentação Moral de Baier notou que a argumentação prática possui regras distintas da argumentação desenvolvida nas ciências naturais, mas que ambas devem/podem ser taxadas como atividades racionais. Por sua vez, da Teoria do Consenso da Verdade de Habermas, ele percebeu que as ações são jogos de linguagem e que num discurso é possível depurar-se argumentos válidos de argumentos inválidos, em razão de sua aceitabilidade numa “situação ideal de discurso”. Contudo, ao entender que tal situação dificilmente ocorreria factualmente, Alexy estipulou o critério de Hare como condição mínima de sua teoria. Da Teoria da Liberação Prática da Escola de Erlanger, observou a necessidade da padronização da linguagem. Finalmente, da Nova Retórica de Perelman assumiu a idéia de que não é possível definir um único resultado como correto e duradouro, dando abertura a um criticismo heurístico (2004:165-166). Todo esse instrumental teórico irá contribuir para estruturar o procedimento

da ponderação a partir de três sub-regras (regra de adequação, regra da necessidade e regra da

proporcionalidade em sentido estrito). Essas sub-regras são estruturadas de maneira a

funcionarem sucessiva e subsidiariamente, mas nunca aleatoriamente;88 por isso nem sempre

será necessária uma análise de todas as três sub-regras.89

Em termos claros e concretos, com subsidiariedade quer-se dizer que a análise da necessidade só é exigível se, e somente se, o caso já não tiver sido resolvido com a análise da adequação; e a análise da proporcionalidade em sentido estrito só é imprescindível, se

87 Em consonância com essa afirmação, tem-se Souza Cruz (2004:164-165), que observa que Alexy irá divergir

da Corte Constitucional alemã, uma vez que essa exige a relativização de todos os direitos fundamentais, inclusive o da dignidade humana (ALEXY, 1997:108-109). Assim, a adoção pelo paradigma procedimental sustenta uma proteção aos direitos fundamentais por um aspecto dialógico do discurso e conforme a racionalidade do método de ponderação.

88 “Se simplesmente as enunciarmos, independentemente de qualquer ordem, pode-se ter a impressão de que tanto faz, por exemplo, se a necessidade do ato estatal é, no caso concreto, questionada antes ou depois da análise da adequação ou da proporcionalidade em sentido estrito. Não é o caso. A análise da adequação precede a da necessidade, que, por sua vez, precede a da proporcionalidade em sentido estrito” (AFONSO DA SILVA, 2002:34).

89 “A impressão que muitas vezes se tem, quando se mencionam as três sub-regras da proporcionalidade, é que o juiz deve sempre proceder à análise de todas elas, quando do controle do ato considerado abusivo. Não é correto, contudo, esse pensamento. É justamente na relação de subsidiariedade acima mencionada que reside a razão de ser da divisão em sub-regras” (AFONSO DA SILVA, 2002:34).

Page 104: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

104

o problema já não tiver sido solucionado com as análises da adequação e da necessidade (AFONSO DA SILVA, 2002:34). Afonso da Silva alerta que, no Brasil, difundiu-se o conceito de adequação

como aquilo que é apto a alcançar o resultado pretendido (SARMENTO, 2000:87;

MENDES, 1994:371). Todavia, trata-se de uma compreensão equivocada da sub-regra,

derivada da tradução imprecisa do termo alemão fördern como alcançar, ao invés de

fomentar, o que seria mais correto. Nessa leitura: Adequado, então, não é somente o meio com cuja utilização um objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja utilização a rejeição de um objetivo é fomentada, promovida, ainda que o objetivo não seja completamente realizado. Há uma grande diferença entre ambos os conceitos, que fica clara na definição de Martin Borowski, segundo a qual uma medida estatal é adequada quando o seu emprego faz com que o “objeto legítimo pretendido seja alcançado ou pelo menos fomentado”. Dessa forma, uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização de objetivo pretendido (AFONSO DA SILVA, 2002:36-37). Pode-se tomar o exemplo da ADC n. 9-6 (racionamento de energia),90 como

forma de esclarecer melhor o conteúdo da regra da adequação: para impedir o risco de

questionamento judicial, principalmente dos artigos 14 a 18 da Medida Provisória n. 2.152-2

– que disciplinava as metas de consumo de energia elétrica e previa as sanções no caso de

descumprimento,91 foi proposta a ADC n. 9-6, visando à declaração de constitucionalidade,

90 “AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA n 2.152-2, DE 1º DE

JUNHO DE 2001, E POSTERIORES REEDIÇÕES. ARTIGOS 14 A 18. GESTÃO DA CRISE DE ENERGIA ELÉTRICA. FIXAÇÃO DE METAS DE CONSUMO E DE UM REGIME ESPECIAL DE TARIFAÇÃO. 1. O valor arrecadado como tarifa especial ou sobretarifa imposta ao consumo de energia elétrica acima das metas estabelecidas pela Medida Provisória em exame será utilizado para custear despesas adicionais, decorrentes da implementação do próprio plano de racionamento, além de beneficiar os consumidores mais poupadores, que serão merecedores de bônus. Este acréscimo não descaracteriza a tarifa como tal, tratando-se de um mecanismo que permite a continuidade da prestação do serviço, com a captação de recursos que têm como destinatários os fornecedores/concessionários do serviço. Implementação, em momento de escassez da oferta de serviço, de política tarifária, por meio de regras com força de lei, conforme previsto no artigo 175, III da Constituição Federal. 2. Atendimento aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tendo em vista a preocupação com os direitos dos consumidores em geral, na adoção de medidas que permitam que todos continuem a utilizar-se, moderadamente, de uma energia que se apresenta incontestavelmente escassa. 3. Reconhecimento da necessidade de imposição de medidas como a suspensão do fornecimento de energia elétrica aos consumidores que se mostrarem insensíveis à necessidade do exercício da solidariedade social mínima, assegurada a notificação prévia (art. 14, §4º., II) e a apreciação de casos excepcionais (art. 15, §5º.). 4. Ação declaratória de constitucionalidade cujo pedido se julga procedente” (grifos nossos).

91 “Art. 14. Os consumidores residenciais deverão observar meta de consumo de energia elétrica correspondente a:

I - cem por cento da média do consumo mensal verificado nos meses de maio, junho e julho de 2000, para aqueles cuja média de consumo mensal seja inferior ou igual a 100 kWh; e

II - oitenta por cento da média do consumo mensal verificado nos meses de maio, junho e julho de 2000, para aqueles cuja média de consumo mensal seja superior a 100 kWh, garantida, em qualquer caso, a meta mensal mínima de 100 kWh.

§1º. Na impossibilidade de caracterizar-se a efetiva média do consumo mensal referida neste artigo, fica a concessionária autorizada a utilizar qualquer período dentro dos últimos doze meses, observando, sempre que possível, uma média de até três meses.

Page 105: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

105

§2º. Os consumidores que descumprirem a respectiva meta mensal fixada na forma do caput ficarão sujeitos a

suspensão do fornecimento de energia elétrica. §3º. O disposto no §2º. não se aplica aos consumidores que, no mesmo período, apresentarem consumo mensal

inferior ou igual a 100 kWh. §4º. A suspensão de fornecimento de energia elétrica a que se refere o §2º. observará as seguintes regras: I - a meta fixada na forma de Resolução da GCE será observada a partir da leitura do consumo realizada em

junho de 2001; II - será o consumidor advertido, por escrito, quando da primeira inobservância da meta fixada na forma do

caput; III - reiterada a inobservância da meta, far-se-á, após quarenta e oito horas da entrega da conta que caracterizar o

descumprimento da meta e contiver o aviso respectivo, a suspensão do fornecimento de energia elétrica, que terá a duração:

a) máxima de três dias, quando da primeira suspensão do fornecimento; e b) mínima de quatro dias a máxima de seis dias, nas suspensões subseqüentes. §5º. A GCE poderá estabelecer prazo e procedimentos diversos dos previstos nos §§ 1º., 2º. e 4º. deste artigo. Art. 15. Aplicam-se aos consumidores residenciais, a partir de 4 de junho de 2001, as seguintes tarifas: I - para a parcela do consumo mensal inferior ou igual a 200 kWh, a tarifa estabelecida em Resolução da

Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL; II - para a parcela do consumo mensal superior a 200 kWh e inferior ou igual a 500 kWh, a tarifa estabelecida

em Resolução da ANEEL acrescida de cinqüenta por cento do respectivo valor; III - para a parcela do consumo mensal superior a 500 kWh, a tarifa estabelecida em Resolução da ANEEL

acrescida de duzentos por cento do respectivo valor. §1º. Aos consumidores residenciais cujo consumo mensal seja inferior à respectiva meta conceder-se-á bônus

individual (Bn) calculado da seguinte forma: I - para o consumo mensal igual ou inferior a 100 kWh, Bn=2(Tn-Tc), onde: a) Tn corresponde ao valor, calculado sobre a tarifa normal, da respectiva meta de consumo, excluídos impostos,

taxas e outros ônus ou cobranças incluídas na conta; e b) Tc corresponde ao valor tarifado do efetivo consumo do beneficiário, excluídos impostos, taxas e outros ônus

ou cobranças incluídas na conta; II - para o consumo mensal superior a 100 kWh, Bn será igual ao menor valor entre aquele determinado pela

alínea "c" deste inciso e o produto de CR por V, sendo: a) CR=s/S, onde s é a diferença entre a meta fixada na forma do art. 14 e o efetivo consumo mensal do

beneficiário, e S é o valor agregado destas diferenças para todos os beneficiários; b) V igual à soma dos valores faturados em decorrência da aplicação dos percentuais de que tratam os incisos II

e III do caput deste artigo e destinados ao pagamento de bônus, deduzidos os recursos destinados a pagar os bônus dos consumidores de que trata o inciso I deste parágrafo;

c) o valor máximo do bônus por kWh inferior ou igual à metade do valor do bônus por kWh recebido pelos consumidores de que trata o inciso I deste parágrafo.

§2º. O valor do bônus calculado na forma do § 1o não excederá ao da respectiva conta mensal do beneficiário. §3º. A GCE poderá alterar as tarifas, os níveis e limites de consumo e a forma do cálculo do bônus de que trata

este artigo. §4º. Os percentuais de aumento das tarifas a que se referem os incisos II e III do caput não se aplicarão aos

consumidores que observarem as respectivas metas de consumo definidas na forma do art. 14. §5º. Caberá às concessionárias distribuidoras, segundo diretrizes a serem estabelecidas pela GCE, decidir sobre

os casos de consumidores residenciais sujeitos a situações excepcionais. Art. 16. Os consumidores comerciais, industriais, do setor de serviços e outras atividades enquadrados no grupo

B constante do inciso XXIII do art. 2º. da Resolução ANEEL no 456, de 2000, deverão observar meta de consumo de energia elétrica correspondente a oitenta por cento da média do consumo mensal verificado nos meses de maio, junho e julho de 2000.

§1º. Caso o consumo mensal seja inferior à meta fixada na forma do caput, o saldo em kWh, a critério do consumidor, será acumulado para eventual uso futuro ou a distribuidora poderá adquirir a parcela inferior à meta, através de mecanismo de leilões na forma a ser regulamentada pela GCE.

§2º. Caso o consumo mensal seja superior à meta fixada na forma do caput, a parcela do consumo mensal excedente será adquirida junto às concessionárias distribuidoras ao preço praticado no MAE ou compensada com eventual saldo acumulado na forma do §1º.

§3º. Os consumidores que descumprirem a respectiva meta fixada na forma do caput ficarão sujeitos a suspensão do fornecimento de energia elétrica, caso inviabilizada a compensação prevista no §2º.

§4º. A suspensão de fornecimento de energia elétrica a que se refere o §3º. terá como critério de aplicação de um dia para cada três por cento de ultrapassagem da meta.

Page 106: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

106

com efeitos vinculantes. O STF entendeu, em sede de medida cautelar, que estava

demonstrada a proporcionalidade e a razoabilidade das medidas tomadas pelo governo. Como

lembra Afonso da Silva, o teste de adequação da medida deveria se limitar “ao exame de sua

aptidão para fomentar os objetivos visados” (2002:37). Assim, mesmo que fosse questionável

o fato de essas medidas tomadas serem as mais adequadas, para o constitucionalista, mostra-

se inegável – devido ao caráter coercitivo – que as medidas levariam os consumidores a

economizarem energia elétrica e, mesmo que sozinhas não possam solucionar o problema de

interrupção do fornecimento de energia elétrica, as medida tomadas mostram-se capazes de

colaborar para que o mesmo seja atingido. Por tal observação, elas poderiam ser consideradas

adequadas nos termos exigidos pela proporcionalidade.

Mas será que elas poderiam passar também pelo grifo da regra de

necessidade? Essa afirma o seguinte: “Um ato que limita um direito fundamental é somente

necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma

intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental

atingido” (AFONSO DA SILVA, 2002:38). Segundo Sarmento, “impõe que o Poder Público

adote sempre a medida menos gravosa possível para atingir a determinado objetivo”

(2000:88). Assim, a adequação exige um exame absoluto do ato, ao passo que a necessidade,

um exame comparativo (ALEXY, 1998:30), isto é: Suponha-se que, para promover o objetivo O, o Estado adote a medida M1, que limita o direito fundamental D. Se houver uma medida M2 que, tanto quanto M1, seja adequada para promover com igual eficiência o objetivo O, mas limite o direito fundamental D em menor intensidade, então a medida M1, utilizada pelo Estado, não é necessária (AFONSO DA SILVA, 2002:38). Voltando ao exemplo do julgamento da ADC n. 9-6, Afonso da Silva

considera que as medidas tomadas pelo governo podem ser consideradas adequadas, por

ajudarem a promover a economia de energia. Mas o exame da necessidade exige que,

§5º. A GCE poderá alterar os critérios e parâmetros fixados neste artigo em razão de eventual modificação da

situação hidrológica ou de outras circunstâncias relevantes. Art. 17. Os consumidores comerciais, industriais e do setor de serviços e outras atividades enquadrados no grupo

A constante do inciso XXII do art. 2º.da Resolução ANEEL no 456, de 2000, deverão observar metas de consumo de energia elétrica correspondentes a percentuais compreendidos entre setenta e cinco e oitenta e cinco por cento da média do consumo mensal verificado nos meses de maio, junho e julho de 2000, na forma estabelecida pela GCE, que disporá inclusive sobre as hipóteses de regime especial de tarifação e de suspensão e interrupção do fornecimento de energia elétrica decorrentes do descumprimento das respectivas metas.

Art. 18. Os consumidores rurais deverão observar meta de consumo de energia elétrica correspondente a noventa por cento da média do consumo mensal verificado nos meses de maio, junho e julho de 2000.

§1º. Os consumidores que descumprirem a respectiva meta fixada na forma do caput ficarão sujeitos a suspensão do fornecimento de energia elétrica.

§2º. À suspensão de fornecimento de energia elétrica a que se refere o §1º. será aplicado o critério de um dia para cada seis por cento de ultrapassagem da meta”.

Page 107: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

107

primeiro, se identifique os direitos que serão limitados. Muitos, então, poderiam ser apontados

como direitos possivelmente lesionados: direito de acesso a um serviço público, direito de

igualdade, direito à livre iniciativa, direito ao trabalho, e, em última análise, o direito a uma

vida digna (AFONSO DA SILVA, 2002:38-40).

O passo seguinte seria identificar medidas alternativas que também

pudessem satisfazer os objetivos da medida governamental.92 Se fosse demonstrada a

existência – o que é bem plausível – de medida tão (ou até mais) adequada que as tomadas

pelo governo, o STF teria de considerar a medida escolhida como desproporcional e, por isso,

declarar a inconstitucionalidade da Medida Provisória n. 2.152-2.

O último passo a ser verificado, a proporcionalidade em sentido estrito,

apenas acontecerá depois de verificado que o ato é adequado e necessário (ALEXY, 1998:31).

Por isso, [...] o exame da proporcionalidade em sentido estrito, que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva (AFONSO DA SILVA, 2002:40). Segundo Sarmento (2000:89), há aqui um raciocínio baseado na relação

custo-benefício da norma avaliada, isto é, o ônus imposto pela norma deve ser inferior ao

benefício que pretende gerar. A constatação negativa deve ser tomada, portanto, como um

juízo pela inconstitucionalidade do ato. Todavia, [p]ara que uma medida seja reprovada no teste da proporcionalidade em sentido estrito, não é necessário que ela implique a não-realização de um direito fundamental. Também não é necessário que a medida atinja o chamado núcleo essencial de algum direito fundamental. Para que ela seja considerada desproporcional em sentido estrito, basta que os motivos que fundamentam a adoção da medida não tenham peso suficiente para justificar a restrição ao direito fundamental atingido. É possível, por exemplo, que essa restrição seja pequena, bem distante de implicar a não-realização de algum direito ou de atingir o seu núcleo essencial. Se a importância da realização do direito fundamental, no qual a limitação se baseia, não for suficiente para justificá-la, será ela desproporcional (AFONSO DA SILVA, 2002:41, grifo no original). No exemplo que até agora foi desenvolvido, o STF, por olvidar analisar a

necessidade das medidas do governo, prejudicou a análise da proporcionalidade em sentido

estrito. Mas, em um outro exemplo – ADI n. 855-2 (pesagem de botijões de gás), a exigência

de pesagem dos botijões de gás na presença dos consumidores foi considerada adequada pelo

STF. Também pode ser considerada por Afonso da Silva (2002:40-41) necessária, pois a

medida alternativa apresentada – pesagem por amostragem – embora pudesse restringir em

92 Afonso da Silva (2002:39-40) destaca que, durante o julgamento da ADC n. 9-6, deixou-se de proceder à

identificação de medidas alternativas para a crise brasileira de energia, mesmo havendo outras soluções que foram apresentadas e discutidas pelos meios de comunicação na época. Logo, ficou prejudicada a aplicação da proporcionalidade neste caso específico.

Page 108: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

108

menor escala a livre iniciativa das empresas distribuidoras de gás, não pareceu ter a mesma

capacidade de fomentar a proteção do consumidor. Assim, pode-se avançar para a análise da

proporcionalidade em sentido estrito: verificar se a proteção ao consumidor se justifica em

face da limitação à liberdade de iniciativa sofrida pelas empresas distribuidoras de gás. Para

Afonso da Silva (2002:41), o peso maior deveria ser dado à proteção do consumidor, todavia

o entendimento do STF pendeu para uma solução inversa.93

Evidenciar-se-ia, então, uma mudança em termos de compreensão do

Supremo Tribunal Federal sobre a questão da supremacia do interesse público. Todavia, os

julgados existentes ainda revelariam que o dogma persiste; o que se teria admitido seria

apenas a relativização através da técnica de ponderação da supremacia do interesse público

em algumas situações especiais, mas com um caminho aberto para revisão dessa compreensão

(BARACHO JÚNIOR, 2004:520). Cattoni de Oliveira, entretanto, apresenta uma outra leitura

desse quadro: O que eu discordo, em princípio, é quanto à afirmação de parte da doutrina atual segundo a qual, recentemente, o STF estaria relativizando o “princípio da supremacia do interesse público”, ao ponderar, usando como critério a proporcionalidade, interesse público (estatal) e interesse privado. Não penso assim. Há uma tendência jurisprudencial a se relativizar, isto sim, a distinção entre questões políticas e questões jurídicas, com conseqüências para a compreensão da separação de poderes, para o papel do STF, para a práxis e para a metódica constitucionais. Por exemplo, ao considerar que, no exercício do controle concentrado, o STF exerce “tarefas não somente jurídicas mas políticas”, ele é “legislador negativo”, mas também “legislador positivo”, ainda que excepcional, em prol de um “interesse público ou social maior” (2006:12).

A partir da crítica acima, deve ser posta uma questão: mesmo se o STF

levasse a sério a ponderação – o que foi demonstrado que não ocorre, conforme a técnica

desenvolvida por Alexy – poder-se-ia considerar essa uma resposta adequada ao paradigma

procedimental do Estado Democrático de Direito?

Cattoni de Oliveira (2004b:535), pautando-se no pensamento de Habermas

(1998:327-333), apresentará uma resposta negativa à questão. Como problemas que pesem

contra a sua utilização podem ser levantados os seguintes: (1) ao se admitir uma compreensão

dos princípios jurídicos como mandamentos de otimização, aplicáveis de maneira gradual,

Alexy emprega uma operacionalização própria dos valores: isso faria, então, com que os

93 Destaca-se, entretanto, o voto dissidente do Min. Marco Aurélio (RTJ 152) e do Min. Celso de Mello.

“Decisão: Após os votos dos Senhores Ministros Octavio Gallotti (Relator), Nelson Jobim, Mauricio Correa e Ilmar Galvão, julgando procedente a ação e declarando a inconstitucionalidade da Lei 10.248, de 14 de janeiro de 1993, do Estado do Paraná, e dos votos dos Senhores Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, julgando-a improcedente, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Sepúlveda Pertence. Falou pela requerente o Dr. Jose Guilherme Villela. Plenário, 18.10.2000. Decisão: Renovado o pedido de vista do Senhor Ministro Sepúlveda Pertence, justificadamente, nos termos do artigo 1. da Resolução n. 278, de 15 de dezembro de 2003. Presidência do Senhor Ministro Mauricio Correa. Plenário, 28.04.2004”.

Page 109: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

109

princípios perdessem a sua natureza deontológica, transformando o código binário do Direito

em um código gradual;94 (2) como conseqüência desse raciocínio, o Direito passaria a indicar

o que é preferível, ao invés de o que é devido;95 (3) o Direito – como pretensão de

universalidade sobre a correção de uma ação – então, não mais pode ser considerado como

um “trunfo”,96 como quer Dworkin, nas discussões políticas que envolvam o bem-estar de

uma parcela da sociedade; desnatura-se, portanto, a tese de Rawls (2003:199; 1996:171) sobre

a prevalência do justo sobre o bem;97 (4) além disso, a tese de Alexy nega a diferenciação

entre discursos de justificação e discursos de aplicação, transformando a atividade judiciária

em um poder constituinte permanente; e, por fim, (5) olvida-se da racionalidade

comunicativa, uma vez que todo o raciocínio é pautado a partir de uma racionalidade

instrumental, deixando a aplicação jurídica a cargo de um raciocínio de adequação de meios a

fins, ficando para segundo plano a questão da legitimidade da decisão jurídica; exatamente

94 “O Direito, ao contrário do que defende uma jurisprudência dos valores, possui um código binário, e não um

código gradual: que normas possam refletir valores, no sentido de que a justificação jurídico-normativa envolve questões não só acerca de o que é justo para todos (morais), mas também acerca de o que é bom, no todo e a longo prazo para nós (éticas), não que dizer que elas sejam ou devam ser tratadas como valores [...]” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:88-89, grifos no original).

95 “[...] normas – quer como princípios, quer como regras – visam ao que é devido, são enunciados deontológicos: à luz de normas, posso decidir qual é a ação ordenada. Já valores visam ao que é bom, ao que é melhor; condicionados a uma determinada cultura, são enunciados teleológicos: uma ação orientada por valores é preferível. Ao contrário das normas, valores não são aplicados mais priorizados” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:90). Em outro texto, lembra o mesmo autor: “[...] ou nós estamos diante de uma conduta ilícita, abusiva, criminosa, ou então, do exercício regular, e não abusivo, de um direito. Tertium non datur! Como é que uma conduta pode ser considerada, ao mesmo tempo, como lícita (o exercício de um direito à liberdade de expressão) e como ilícita (crime de racismo, que viola a dignidade humana), sem quebrar o caráter deontológico, normativo, do Direito? Como se houvesse uma conduta meio lícita, meio ilícita?” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:6-7, grifos no original); é por isso mesmo que: “Esse entendimento judicial, que pressupõe a possibilidade de aplicação gradual, numa maior ou menor medida, de normas, ao confundi-las com valores, nega exatamente o caráter obrigatório do Direito. Tratar a Constituição como uma ordem concreta de valores é pretender justificar a tese segundo a qual compete ao Poder Judiciário definir o que pode ser discutido e expresso como digno de valores, pois haveria democracia, nesse ponto de vista, sob o pressuposto de que todos os membros de uma sociedade política compartilham, ou tenham de compartilhar, de um modo comunitarista, os mesmos supostos axiológicos, uma mesma concepção de vida e de mundo. Ou, o que também é incorreto, que os interesses majoritários de uns devem prevalecer, de forma utilitarista, sobre os interesses minoritários de outros, quebrando assim, o princípio do reconhecimento recíproco de igual direitos de liberdade a todos” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:7, grifo no original).

96 “[...] um direito não pode ser compreendido como um bem, mas como algo que é devido e não como algo que seja meramente atrativo. Bens e interesses, assim como valores, podem ter negociada a sua ‘aplicação’, são algo que se pode ou não optar, já que se estará tratando de preferências otimizáveis. Já direito não. Tão logo os direitos sejam compreendidos como bens e valores, eles terão que competir no mesmo nível que esses pela prioridade no caso individual. Essa é uma das razões pelas quais, lembra Habermas, Ronald Dworkin haver concebido os direitos como ‘trunfos’ que podem ser usados nos discursos jurídicos contra os argumentos de políticas” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:90-91).

97 “[...] um direito não pode ser compreendido como um bem, mas como algo que é devido e não como algo que seja meramente atrativo. Bens e interesses, assim como valores, podem ter negociada a sua ‘aplicação’, são algo que se pode ou não optar, já que se estará tratando de preferências otimizáveis. Já direito não. Tão logo os direitos sejam compreendidos como bens e valores, eles terão que competir no mesmo nível que esses pela prioridade no caso individual. Essa é uma das razões pelas quais, lembra Habermas, Ronald Dworkin haver concebido os direitos como ‘trunfos’ que podem ser usados nos discursos jurídicos contra os argumentos de políticas” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:90-91).

Page 110: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

110

por isso o raciocínio sobre a ponderação acaba por cair em um decisionismo de cunho

irracionalista, isto é, ausência de uma racionalidade comunicativa (HABERMAS,

1998:332).98

Essas críticas servem para fomentar a discussão e sinalizam a necessidade

de uma compreensão do Direito à luz do paradigma procedimental do Estado Democrático de

Direito. Por isso, a proposta habermasiana desponta como a mais adequada, conforme razões

que serão demonstradas no quarto capítulo.

2.3.2 – Direitos e Interesses: (re)pensando a relação para além de uma compreensão

semântica.

Podem-se encontrar longas discussões na dogmática jurídica sobre a relação

entre direitos e interesses; todavia a maior parte delas compartilha de uma mesma base

político-filosófica comum, o Utilitarismo. De modo geral, o termo “utilitarismo” designa a doutrina segundo a qual o valor supremo é a utilidade, isto é, a doutrina segunda a qual a proposição “x é valioso” é considerada como sinônima da proposição “x é útil”. O utilitarismo pode ser uma tendência prática ou uma elaboração teórica, ou ambas as coisas a um só tempo. Como tendência prática pode ser o resultado do instinto (em particular do instinto da espécie), ou conseqüência de um certo sistema de crenças orientadas para as convivências de uma comunidade dada ou manifestação de uma reflexão intelectual. Como elaboração teórica pode ser o resultado da justificação intelectual de uma prévia atitude utilitária, ou a conseqüência de uma pura teorização sobre os conceitos fundamentais éticos e axiológicos, ou as duas coisas ao mesmo tempo (FERATER MORA, 2001:2959-2960). Como lembra Maciel Júnior (1996:27), um dos precursores desse debate foi

Bentham.99 Toda a teoria de Bentham apóia-se em dois conceitos situados em lados opostos:

dor e prazer; esses conceitos apontariam a direção da ação humana correta, isto é, aquela que

busca escapar da dor e alcançar sempre o máximo de prazer possível (princípio da

utilidade).100 Assim, não importa a distinção entre interesse individual e de uma coletividade,

98 Nesse sentido, Cattoni de Oliveira (2006:5) denuncia que, no caso do HC 82.424-2 (Relator Min. Maurício

Correia), o raciocínio de ponderação, que se supunha atingir uma solução objetiva para o caso concreto, acaba por atingir resultados contrários nos votos dos Min. Gilmar Mendes e Marco Aurélio ao buscar solucionar a suposta colisão entre dignidade humana e liberdade de expressão, tomados como valores.

99 Todavia, Ferrater Mora (2001:4:2959) lembra que foi Stuart Mill, em sua autobiografia, o primeiro a lançar mão do termo utilitarismo (utilitarism). Todavia, isso não ameaça a posição pioneira de Bentham, que pode continuar a ser conhecido como o fundador dessa tradição, fazendo uso, porém, do termo, em inglês, utilitarian, em texto escrito em 1870.

100 “O princípio da utilidade reconhece esta sujeição [à dor e ao prazer] e coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo consiste em construir o edifício da felicidade através da razão da lei. Os sistemas que

Page 111: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

111

pois a segunda apenas é o somatório dos diversos interesses que integram a sociedade.101

Logo, para buscar o interesse da coletividade, basta buscar o interesse que representa a busca

de prazer conforme a concepção majoritária dos indivíduos daquela coletividade.102 Para

tanto, o pensador inglês propõe um cálculo de prazeres e dores a partir dos seguintes critérios:

intensidade, duração, certeza ou incerteza, proximidade ou distanciamento, fecundidade e

alcance, isto é, o número de pessoas afetadas (BENTHAM, 1979:16-18; FERATER MORA,

2001:4:2960). A felicidade, como fim máximo do utilitarismo, depende do emprego de dois

meios: “[...] a razão porque o método desenvolvido não será o apelo à história, ao preconceito

ou ao hábito; e o direito porque o projeto é um projeto político [...]” (HARRISON, 2002:627).

Outro autor, também afiliado às bases do utilitarismo, foi Ihering. A lei,

como lembra Maciel Júnior (2004:5), para aquele autor, não estava ligada à restrição da

liberdade individual, mas antes ao estabelecimento de um equilíbrio entre o princípio

individualista e o social.103 Dessa forma, Ihering estruturou todo o seu pensamento para

afirmar que toda norma deve ser dirigida a um determinado fim ou motivo prático. Todavia,

não foi possível ultrapassar os limites do pensamento empirista, de modo que essa idéia de

fim “era extraída empiricamente do mundo dos fatos, de uma espécie de causa a que se dá o

nome de causa final, e não de uma oposição entre o ideal e a realidade” (MACIEL JÚNIOR,

2004:6). Um direito, então, não estava ligado à idéia de uma vontade jurídica abstrata, mas à

garantia dos interesses da vida humana: é daí que deriva a famosa frase de que direitos são

tentam questionar este princípio são meras palavras e não uma atitude razoável, capricho e não razão, obscuridade e não luz” (BENTHAM, 1979:3).

101 “[...] O interesse da comunidade, eis uma das expressões mais comuns que pode ocorrer na terminologia e na fraseologia moral. Em conseqüência, não é de estranhar que muitas vezes se perca de vista o seu significado exato. Se a palavra tiver um sentido, será o seguinte. A comunidade constitui um corpo fictício, composta de pessoas individuais que se consideram como constituindo os seus membros. Qual é, neste caso, o interesse da comunidade? A soma dos interesses dos diversos membros que integram a referida comunidade” (BENTHAM, 1979:4). E prossegue o autor: “[...] É inútil falar do interesse da comunidade, se não se compreender qual é o interesse do indivíduo. Diz-se que uma coisa promove o interesse de um indivíduo, ou favorece os interesses de um indivíduo, quando tende a aumentar a soma total dos prazeres, ou então, o que vale afirmar o mesmo, quando tenda a diminuir a soma total de suas dores” (BENTHAM, 1979:4).

102 Estranhamente, para Marías (2004:394), o utilitarismo não poderia ser considerado como egoísta, pois haveria um caráter social no fato de se buscar a maior felicidade do maior número de pessoas. Resta saber se a felicidade do maior número de pessoas seria ou não justificável ainda que em razão do sacrifício de outras.

103 Larenz (1997:60-62) destaca que três pressupostos devem estar presentes no estudo do pensamento de Ihering: (1) Ihering desloca o eixo do problema do legislador – como pessoas individuais – para a sociedade, como ator. Todavia, ainda compreende o Direito como apenas a norma coercitiva posta pelo Estado; (2) mesmo assim, atribui a cada norma jurídica uma relação de conteúdo correlato a um fim – qual seja, o benefício da sociedade, justificação máxima para existência da norma. Dessa forma, se pode afirmar que o Direito passa a ser entendido como norma coercitiva do Estado voltada para a realização de um serviço de fim social. A norma, portanto, para ser compreendida, depende de uma analise sociológica, e não de um exame psicológico que perquira a vontade do legislador; e (3) não reconhece a existência de uma hierarquização objetiva dos fins da sociedade, tratando-se mais de um produto histórico mutável.

Page 112: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

112

interesses juridicamente protegidos. Logo, ligada à idéia de direito, ter-se-ia a idéia de bem

ou valor, expressando a medida da utilidade daquele direito.

Todavia, além do pensamento utilitarista, em Ihering, já podem ser

encontrados traços do pensamento orgânico – de matriz derivada do positivismo sociológico.

O Organicionismo compreende as comunidades políticas como um “todo vivo”, no qual os

indivíduos desempenham papéis semelhantes a um órgão dentro do corpo humano. Assim, há

uma completa rejeição da compreensão liberal, no sentido da supervalorização do público.

Muitas vezes, esse público é identificado com o Estado, muito por influência do pensamento

de Hegel.104 Durkheim parece ser outro influente pensador dessa tradição. O positivismo

sociológico reconhece a hegemonia da sociedade sobre o indivíduo partindo do seguinte

raciocínio: a sobrevivência do todo tem prevalência sobre a da parte. O indivíduo é, então,

despido de suas características básicas: razão e liberdade (FREITAG, 1989:17). Isso porque o

método sociológico se propõe – como forma de garantia da objetividade – compreender os

fatos sociais como coisas externas à vontade e à consciência dos indivíduos, dotados de

existência própria.5455 Na leitura de Adorno, Durkheim não só idealiza a sociedade à semelhança do que Hegel fizera com o Estado, mas a deifica. A sociedade passa a ser a origem e o princípio regulador de toda a vida individual e social, científica e moral, a razão de ser, o árbitro e a finalidade última de toda ação humana, individual e coletiva. Ela representa o saber religioso, moral e científico conjugados. É onisciente e onipotente, em suma, a própria obra de Deus, a materialização e o coroamento de toda a criação, de todo o mundo da natureza (FREITAG, 1989:19). Logo, a sociedade não pode ser compreendida como um mero somatório das

vontades individuais, pois apresentaria um sentido próprio, o qual os indivíduos seriam

incapazes de compreender. Em termos jurídicos, importante lembrar a tese da “cláusula da

comunidade” como forma de dar primazia ao que se considerava interesse público. Na Alemanha, o Tribunal Federal Administrativo (Bundesverwaltungsgericht) elaborou, na década de 50 do século passado, doutrina que ficou conhecida como teoria da ‘cláusula da comunidade’, segundo a qual a proteção dos direitos fundamentais cessaria quando o exercício destes direitos ameaçassem bens jurídicos da comunidade. Esta teoria foi, no entanto, severamente criticada pela quase unanimidade da doutrina, e acabou sendo revista. Dizia-se que ela abria ampla possibilidade para abusos e arbitrariedades, em

104 “O Estado, como realidade em ato de vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular

de si universalizada, é o racional em si para si: esta unidade substancial é um fim absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado ser. [...] Quando se confunde o Estado com a sociedade civil, destinando-o à segurança e proteção da propriedade e das liberdades pessoais, o interesse dos indivíduos, enquanto tais, é o fim supremo para que se reúnam, do que resulta ser facultativo ser membro do Estado. Ora, é muito diferente a sua relação com o indivíduo. Se o Estado é o espírito objetivo, então só como membro é que o indivíduo tem objetividade, verdade e moralidade. A associação como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, e o destino dos indivíduos está em participarem de uma vida coletiva; quaisquer outras satisfações, atividades e modalidades de comportamento têm seu ponto de partida e o seu resultado neste ato substancial universal” (HEGEL, 2003:217).

Page 113: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

113

razão do seu caráter vago e indeterminado, pondo os direitos fundamentais à disposição dos Poderes Públicos. Ademais, argumentava-se, com razão, que ela degradava os direitos fundamentais, na medida em que permitia o seu sacrifício em nome de interesses da coletividade que muitas vezes sequer possuíam estatura constitucional (SARMENTO, 2005:87-88).105

Por outro lado, o Utilitarismo, como já visto, compreende que a melhor

solução dos problemas político-sociais envolve a promoção, em maior escala, dos interesses

dos membros da sociedade. Trata-se de buscar alcançar o maior nível de satisfação

(felicidade) para os membros da sociedade. Logo, a ação política ou moral correta é aquela

que atinge esse fim. Todavia, o Utilitarismo reconhece que pessoas tenham interesses diversos

e até mesmo conflitantes; como então proceder?

[...] nesses casos, deve-se atribuir um peso igual aos interesses de cada um, na busca da solução mais justa. Assim, justifica-se o sacrifício dos interesses de um membro da comunidade sempre que este sacrifício for compensado por um ganho superior nos interesses de outros indivíduos (SARMENTO, 2005:61). Mas isso se mostra profundamente problemático, já que essa tradição não

pretende ler adequadamente os direitos fundamentais – como direitos acima das preferências

majoritárias – de modo que podem ser modificados conforme o sabor das conveniências do

mercado político, servindo apenas como direitos se garantirem a felicidade e o bem-estar

geral de um maior número de pessoas.

Maciel Júnior (2004:22) lembra que, contemporaneamente, a compreensão

existente da relação entre direitos e interesses ainda é uma derivação do pensamento de

Bentham e de Ihering. Isso tem levado a uma assimilação dos dois institutos sem uma devida

distinção. Assim, segundo os parâmetros traçados pela dogmática jurídica, existiriam diversos

desdobramentos na classificação dos interesses. Os interesses (ou direitos) individuais

representam uma limitação à ação do Estado, no sentido de uma abstenção para que os

indivíduos assumam suas próprias escolhas. No campo dos interesses individuais, Maciel

Júnior (2004:11), citando Mancuso,106iguala-os ao interesse do sujeito particular – seria o

interesse cuja fruição estaria restrita ao círculo do seu destinatário, de modo a somente ele

sofrer seus efeitos ou se beneficiar dos encargos assumidos. O Código de Defesa do

Consumidor (art. 81, III) destaca uma derivação do interesse individual, qualificando-o como

interesse individual homogêneo, que, nesse caso, não seria um interesse propriamente coletivo

105 Uma reação contra essa tese foi a negativa dada na Sentença n. 22/1984 da Corte Constitucional espanhola.

Tratava-se de um caso em que se discutia um conflito entre o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio e interesses públicos.

106 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 35-37.

Page 114: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

114

na essência, mas decorre de uma origem comum, em razão de uma mesma base jurídica

compartilhada.

Em contraposição ao interesse (ou direito) individual, posicionariam-se os

interesses (ou direitos) públicos, que, segundo Maciel Júnior (2004:12), representariam os

interesses pertinentes à própria sociedade representada pelo Estado. Mas esses não se

confundiriam com os chamados interesses (ou direitos) coletivos, uma vez que essa última

categoria é representada pelos interesses comuns aos indivíduos existentes na sociedade.

Seriam os interesses compartilhados por um grupo determinado de indivíduos, como por

exemplo, uma associação ou categoria sindical.107

Por fim, os interesses (ou direitos) difusos comporiam uma outra categoria,

cuja origem é explicada através das necessidades da sociedade moderna de “massa”.108

Lembrando Cappelletti (1988:26), tratar-se-iam de interesses tão fragmentados e

pulverizados, que ninguém poderia se declarar seu titular exclusivo, já que os titulares seriam

todos, simultaneamente. Além da pluralidade de titulares indeterminados, essa categoria traz

um objeto de interesse que é por essência indivisível (MACIEL JÚNIOR, 2004:20). Essa

leitura serviu de base epistemológica no curso da produção do Código de Defesa do

Consumidor (Lei n. 8.078/90), que trouxe uma definição dessas categorias, igualando direitos

e interesses: Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. Todavia, essa leitura acaba por suscitar alguns problemas: (1) será que

direitos podem ser igualados com interesses ou, como faz a dogmática jurídica por influência

de Ihering, com bens?; e (2) será que a distinção entre as categorias de direitos pode-se apoiar

107 Segundo Maciel Júnior (2004:15), os interesses coletivos “são comuns a uma coletividade de pessoas e

somente a elas, assentando-se em um vínculo jurídico definido que as congrega, como por exemplo, a sociedade, a família”.

108 “Vivemos em uma economia cuja preocupação se dirige ao trabalho, consumo, comércio e produção em massa, com reflexos no campo social, e na presença do Estado promocional e intervencionista, o Estado de welfare. Em conseqüência, as relações tomam novo dimensionamento, engendrando problemas antes inexistentes, como o ‘dano de massa’, ou seja, a possibilidade de um ato ilícito ou prejudicial a um número ilimitado ou indeterminado de pessoas como na hipótese dos consumidores” (MACIEL JÚNIOR, 2004:19).

Page 115: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

115

adequadamente em uma compreensão semântica do Direito? Um ponto de partida é

estabelecido por Maciel Júnior: [...] Ihering trabalha com dois conceitos diferentes e que nunca poderiam ter sido confundidos. Se os interesses são a manifestação da vontade que vincula um sujeito a um bem, isso significa que os interesses são pertencentes à esfera privada, particular do indivíduo, que exterioriza uma vontade. Já os direitos seriam outra coisa, um outro momento (2004:24). Nessa ótica, os direitos são um momento posterior aos interesses. A

afirmação de um direito dá-se a partir de um processo institucional: seja tomando consciência

do consenso da sociedade sobre sua existência, caracterizado pelo processo legislativo; seja

através do processo judicial, que reconhece a existência do direito dentro da história

institucional daquela sociedade. Todavia, [o] equívoco metodológico de Ihering consistiu em pressupor que o interesse somente teria importância para o direito a partir do momento em que houvesse a previsão legal de tutela desse interesse. O interesse que importaria ao direito seria um interesse juridicamente tutelado, ou seja, um direito. Não haveria, segundo essa concepção, a razão para a diferenciação ontológica entre interesses e direitos (MACIEL JÚNIOR, 2004:25). Interesses, então, seriam elementos anteriores aos direitos. Justamente

porque existe um consenso dentro sociedade sobre quais interesses extrapolam o limite do

particularismo individual, ter-se-á um direito. Logo, todo interesse juridicamente protegido é,

por conseqüência, um direito; e, por isso mesmo, possui natureza pública – e isso se pode

observar, por exemplo, já em Kelsen. Em outras palavras: todo direito traz em si uma questão

pública e, por isso mesmo, de interesse público.

Além disso, uma questão deve ser pormenorizada: interesse, como

reconhece Maciel Júnior (2004:28), traz um conteúdo axiológico, diferentemente dos direitos,

como lembra Habermas (2002b), que são dotados de uma natureza deontológica. Assim,

interesses são expressão de uma preferência (a partir de valores e de fins) do sujeito, ao passo

que direitos são referência à correção de uma determinada ação. Desse modo, a mesma crítica,

iniciada à compreensão de direitos como valores, repete-se aqui e demonstra a necessidade de

reconstrução do direito a partir de novas bases epistemológicas – o que será objeto dos

capítulos seguintes da presente pesquisa.

Ilustrando a questão, tem-se o posicionamento de Sarmento (2005:110): os

direitos individuais não podem se confundir com interesses privados. Pode-se tomar, como

exemplo, o direito de liberdade ou de locomoção. Enquanto para Alexy, haveria sempre um

direito geral de liberdade, que sempre entraria em confronto com as restrições pelo Poder

Público, inflacionando assim o conceito de direito (e principalmente o de direito

Page 116: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

116

fundamental);109 a proposta de Dworkin apresenta-se mais razoável. “Parafraseando Dworkin,

podemos dizer que [prima facie] não há um direito fundamental a percorrer a Av. Rio Branco,

no Rio de Janeiro, ou a Av. Paulista, em São Paulo, na contramão” (SARMENTO, 2005:110).

É por isso que ele procede (2001a; 2002) à busca de uma leitura mais adequada para a

pergunta “temos um direito à liberdade?”, feita por Thomas Jefferson. Por exemplo, ao invés

de vislumbrar um conflito entre igualdade e liberdade – o que por sinal parece ser comum em

diversos juristas110 – o professor de Oxford empreende uma leitura que integra ambos os

conceitos (DWORKIN, 2005).

Nessa linha, já se pode vislumbrar que cai por terra o argumento a favor de

um requisito de admissibilidade recursal específico para os recursos destinados aos Tribunais

Superiores que se paute pelo critério interesse privado/público, como fator de seleção de

causas para julgamento. Como já foi observado, toda lesão (ou ameaça de lesão) a direito já

traz em si uma questão de interesse público.

Em busca da resposta à segunda pergunta identificada, ou seja, se as

distinções entre as categorias de direitos podem-se apoiar em uma compreensão semântica do

Direito, tem-se a importante conclusão a que chega Cattoni de Oliveira (2003:132):

“propomos compreender a distinção entre direito individuais, coletivos, direitos sociais e

direito difusos como uma distinção lógico-argumentativa”.111 Isso porque o sistema de

garantias processuais pátrio foi estruturado de maneira que o meio coletivo não representa

109 Para Sarmento (2005:110), essa leitura por demais elástica “do conceito de direito fundamental corre o risco

de esvaziar a dimensão moral destes direitos, que justifica sua proteção reforçada, operando assim uma espécie de ‘nivelamento por baixo’”.

110 Utilitaristas, na seqüência do pensamento iniciado por Bentham, compreendem que a lei é uma “infração” contra a liberdade, de modo que, nesse sentido, de fato pode-se afirmar uma competição entre liberdade e igualdade. Todavia, como adverte Dworkin (2002:413), essa é uma compreensão por demais larga do que seja liberdade. “Podemos dizer, por exemplo, que uma pessoa tem um direito à liberdade se for de seu interesse ter liberdade, isto é, se ela quiser tê-la ou se for bom para ela ter esse direito. Neste sentido, eu estaria disposto a admitir que os cidadãos têm um direito à liberdade. Neste mesmo sentido, porém, eu teria igualmente de conceder que eles têm um direito, pelo menos em termos gerias, a sorvete de baunilha”. E mais adiante prossegue em sua crítica: “Dizer que, se os indivíduos têm esses direito, no longo prazo, o conjunto da comunidade como um todo estará em melhor situação não é uma resposta. Essa idéia – a de que os direitos individuais podem conduzir à utilidade geral – pode ou não ser verdadeira, mas ela é irrelevante para a defesa dos direitos enquanto tais, pois quando afirmamos que alguém tem um direito de expressar livremente suas opiniões, no sentido político relevante, queremos dizer que ele tem o direito de fazê-lo, mesmo quando não for de interesse geral” (DWORKIN, 2002:417-418).

111 “Essa perspectiva é mais radical do que aquela findada na chamada ‘interdependência dos direitos’, que comporia o núcleo fundamental e indivisível dos direitos humanos. Isso porque, aqui, não se trata simplesmente de uma aplicação ponderada, proporcional ou compromissória de normas constitucionais, semanticamente consideradas, que pretende restringir ou otimizar o exercício dos direitos” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2003:133).

Page 117: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

117

uma ameaça à defesa individual de direitos; não podendo, portanto, ser valorado como

superior ou mais eficaz.112

Logo, o que se quer entender como direitos individuais (o que inclui os

direitos individuais homogêneos), direitos coletivos e direitos difusos não deve obedecer a

uma interpretação literal (semântica), como feita no texto do art. 81 do CDC, mas antes

através de uma reconstrução discursiva no curso do processo jurisdicional (discurso de

aplicação). Conforme o caso, por exemplo, o direito ao meio ambiente saudável pode ser tratado argumentativamente como questão interindividual de direito de vizinhança, como condições adequadas de trabalho de uma categoria profissional ou, até mesmo, como direito das gerações futuras: depende da perspectiva argumentativa, se individual, coletiva, social ou difusa de quem o defende em juízo (CATTONI DE OLIVEIRA, 2003:137).113

Por isso mesmo, a presente investigação concorda com a proposta que será

levantada por Dworkin e Habermas no sentido do abandono das “teorias semânticas da

interpretação”, isto é, das teorias que buscam [...] fixar abstratamente e fora do contexto de aplicação a extensão do sentido dos textos normativos. Isso implica não somente abandonar uma teoria material do Direito, como também uma teoria estrutural das normas jurídicas que pretende fixar a interpretação adequada dos textos normativos à base da sua “literalidade” ou da sua “topografia textual” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2003:137). Dessa forma, mostra-se essencial uma proposta de reconstrução do Direito a

partir de uma outra luz, levando em conta a necessidade de reconhecimento e integração

teórica da dimensão pragmática, já evidenciada pelo movimento do giro lingüístico. Devido a

isso, os capítulos seguintes assumem esta pretensão: explicar o Direito a partir das leituras

realizadas pela Teoria da Integridade do Direito, de Dworkin (capítulo 3); e a Teoria

Discursiva do Direito e da Democracia, de Habermas (capítulo 4).

112 No mesmo sentido, Cattoni de Oliveira (2003:135-136), que realiza uma leitura conjunta da Lei da Ação Civil

Pública (art. 1º da Lei n. 7.347/85) e do Código de Defesa do Consumidor (arts. 81, 83, 91, 94, 97, 98, 103, § 3º, e 104).

113 Outro exemplo: “é correto afirmar, por exemplo, que uma associação de pescadores pode defender em juízo o direito ao ‘meio ambiente ecologicamente equilibrado’ (Constituição da República, art. 225), numa situação concreta de lesão ou de ameaça, porque seus associados ou, até mesmo, toda uma coletividade retira o seu sustento e desenvolve formas de vida culturais em que a pesca legalmente permitida assume papel central, ainda que tal finalidade ‘ambientalista’ ou ‘cultural’ não esteja prevista em seus estatutos. Afinal, não há pesca de peixe morto, contaminado ou ameaçado de extinção” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2003:138).

Page 118: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

118

CAPÍTULO 3 – UMA PROPOSTA DE COMPREENSÃO DO CRITÉRIO DE

TRANSCENDÊNCIA/REPERCUSSÃO GERAL NO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DOS

RECURSOS DESTINADOS AOS TRIBUNAIS SUPERIORES A PARTIR DA TESE DO

DIREITO COMO INTEGRIDADE DE DWORKIN

3.1. O giro lingüístico e a compreensão da dimensão pragmática da linguagem jurídica

Kant é, sem dúvida, o maior filósofo da Modernidade (GALUPPO,

2002:77), haja vista que os reflexos de seu pensamento ainda são sentidos nos dias atuais. Em

sua primeira Crítica (1787), indaga sobre os limites do conhecimento humano. Encontra,

como resposta, uma razão humana finita, limitada, incapaz de ter acesso a questões

metafísicas – a alma, Deus, a liberdade – e revela que “a natureza da realidade que

conhecemos não pode ser afastada da natureza da mente que a conhece” (BELL, 2002:589).

Destarte, operou o que chamou de revolução copernicana, uma vez que, assim como

Copérnico, Kant inverteu o que parecia ser a ordem natural: não mais o sujeito deveria girar

em torno do objeto, mas ocorreria justamente o contrário.1 Haveria ainda uma diferença entre

o objeto e o quê, de fato, é percebido por nossa sensibilidade,2 que chamou de fenômeno.

Dessa forma, entendimento e sensibilidade estão interligados e não podem

ser dissociados totalmente, como queria anteriormente Descartes.3 Todavia, Kant não

percebeu que Gadamer buscara ir além: vincular esse sujeito isolado imaginado por Kant, que

conhece a História, mostrando que “a constituição do sentido não é obra de uma subjetividade

isolada e separada da história, mas só é explicável a partir de nossa pertença à tradição [...]” 1 Reale e Antiseri (1990:2:876) explicam: “Kant considera que não é o sujeito que, conhecendo, descobre as leis

do objeto, mas sim, ao contrário, que é o objeto, quando é conhecido, que se adapta às leis do sujeito que o recebe congnoscitivamete”.

2 “Assim como as coisas, para serem conhecidas sensivelmente, devem se adequar às formas da sensibilidade, da mesma forma não é de modo algum estranho que, para serem pensadas, devam necessariamente se adequar à leis do intelecto e do pensamento. Assim como o Sujeito, captando sensivelmente as coisas, as espacializa e temporaliza, da mesma forma, pensando-as, as ordena e determina conceitualmente segundo os modos próprios do pensamento. Os conceitos puros ou categorias, portanto, são as condições pelas quais e somente pelas quais é possível que algo seja pensado como objeto de experiência, assim como o espaço e o tempo são as condições pelas quais e somente pelas quais é possível que algo seja captado sensivelmente como objeto de intuição” (REALE e ANTISERI, 1990:2:886, grifos no original ).

3 A pergunta a que Descartes se propôs a responder resumiria-se na busca pela confiabilidade do conhecimento humano. Como conseqüência, tem-se o surgimento do sujeito cognoscente (cogito), que possui a capacidade de representar objetos. “Enquanto o sujeito tem representação de objetos, o mundo consiste em todos os objetos que podem ser representados por um sujeito” (HABERMAS, 2004:186). Esse sujeito que conhece é representado com “si-mesmo”ou um “eu” capaz de realizar todo o processo necessário para sua auto-refência no mundo, desprezando, por completo, a existência de outros.

Page 119: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

119

(OLIVEIRA, 2001:227). Dessa forma, o projeto de Kant é tomado por um solipsismo

metodológico (GALUPPO, 2002:107), que não está restrito à primeira Crítica, tendo sido

transportado para a segunda. Aqui Kant estabelece a liberdade como conteúdo absoluto do

agir moral humano e passa a enunciar esse agir a partir do imperativo categórico.4 O agir

humano livre é aquele decorrente única e exclusivamente da própria Razão (o respeito ao

dever), de modo que, mesmo que se possa também reconhecer que a ação humana derive de

outras causas – desejo de felicidade, medo da punição, etc. – com base nessas, não se poderá

afirmar que a ação foi livre.5 Logo, a lei moral constitui um Faktum da Razão, não cabendo a

ninguém discutir por que ela é assim; trata-se de um pressuposto axiomático em Kant.6

Distingue-se assim a moralidade – característica da ação orientada pelo

dever – da legalidade – característica da ação que não é realizada pelo dever, mas sim por

outra causa, como por exemplo, o temor da sanção.7 A Razão humana produziria “leis”

(princípios, como normas de condutas) dotadas de universalidade, isto é, reconhecidas como

válidas e legítimas por qualquer ser racional em qualquer tempo e lugar. Por isso mesmo, para

Kant, a solidão da consciência individual, que cria normas para si mesma, não constituiria um

problema. Todavia, ela opera apenas a partir da máxima da adequação de meios conforme

fins, não aberta à intersubjetividade, o que irá suscitar diversas críticas por parte de outros

filósofos.8

Habermas (2004:186:187) chamará essa tradição – na qual se pode incluir

filósofos modernos, como Descartes, Kant, até Husserl e Sartre, entre outros – de mentalismo

4 Segundo Freitag (1989:9-10): “Trata-se, pois de faculdades ‘dadas’, a priori, isentas de qualquer forma de

vivências e independentes da atuação do sujeito sobre o mundo. Aos instrumentos do pensamento (as categoriais a priori) da razão teórica pura, corresponde o ‘imperativo categórico’ como instrumento dado previamente a quaisquer formas de experiência”.

5 No ensaio Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”? (“Aufklãrung”), de 1783, Kant afirma que apenas o uso da Razão pode retirar o homem da situação de menoridade em que se encontra, por culpa própria, sob a assistência de “tutores”: “É tão cômodo ser menor! Se tenho um livro que faz às vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que decide por mim a respeito da minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros hão de se encarregar em meu lugar dos negócios desagradáveis” (KANT, 2003:115).

6 Como afirma Galuppo (2002:79): “Assim como é um fato natural que o homem tenha um nariz e dois olhos, é um fato do ser racional que ele possua essa faculdade que lhe representa princípios e, em especial, deveres para a ação”.

7 Bastante ilustrativo é o quadro traçado por Galuppo (2002:83) ao classificar as ações humanas em Kant, como também faz HÖFFE, Otfried. Introduction à la philosophie pratique de Kant: La morale, de droit et la réligion. Paris: J. Vrin, 1993. p. 69.

Contra o dever Conforme o dever (Legalidade) por interesse pessoal por inclinação imediata por dever

Simples Legalidade Moralidade 8 Galuppo (2002:107-108) lembra que Wittgeinstein já criticava essa postura, ao afirmar que regra de ação

pressupõe pelo menos duas pessoas, de modo que uma das quais funcione como critério para verificação do cumprimento ou descumprimento da regra.

Page 120: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

120

(também chamada de filosofia da consciência ou filosofia do sujeito). Um traço dessa tradição

é que ela sugere um modelo dualista formado a partir de uma relação sujeito/objeto,

traduzindo-se, conforme Habermas, em três supostos básicos: - Pela introspecção, o sujeito cognoscente ganha um acesso privilegiado às suas próprias representações, mais ou menos transparentes e não corrigíveis, que são dadas como vivências imediatamente evidentes. - O certificar-se dessa posse de vivências subjetivas abre o caminho para a explicação genética do saber sobre os objetos mediado pela experiência. - Visto que a introspecção abre o caminho para a subjetividade e como a certificação da objetividade do saber consiste em penetrar em suas fontes subjetivas, os enunciados epistemológicos se medem diretamente – e todos os outros enunciados indiretamente – pela verdade enquanto evidência subjetiva ou certeza (2004:187, grifos no original). Todavia, esse pano de fundo solipsista começa a ruir a partir dos estudos

sobre a linguagem, que, aos poucos, torna-se a questão central da filosofia, como reconhece

Oliveira (2001:11).9 É esse movimento que ficará conhecido como giro lingüístico:10

A reviravolta lingüística do pensamento filosófico do século XX se centraliza, então, na tese fundamental de que é impossível filosofar sobre algo sem filosofar sobre a linguagem, uma vez que esta é momento necessário constitutivo de todo e qualquer saber humano, de tal modo que a formulação de conhecimentos intersubjetivamente válidos exige reflexão sobre sua infra-estrutura lingüística (OLIVEIRA, 2001:13). A partir daí, a linguagem passa a ser vista como aquilo que possibilita a

compreensão do indivíduo no mundo, de modo que essa mesma linguagem é necessariamente

fruto de um processo de comunicação envolvendo uma relação de intersubjetividade, isto é,

onde antes havia uma relação sujeito/objeto, instaura-se uma relação sujeito/sujeito. Além

disso, a própria linguagem começa a ser compreendida como elemento de mediação das

interações existentes na sociedade. Assim, a linguagem não se resume a uma racionalidade

epistemológica, mas transborda essa esfera ao se apresentar como condição para uma

racionalidade prática, de modo a unir a racionalidade teórica a uma racionalidade prática.

O movimento em direção do giro começa com os estudos de Frege, em

1892. Mesmo ainda presa a uma compreensão monológica da linguagem,11 a semântica

formal – como estudo da função representativa da linguagem – realizou a distinção entre

9 “[...] significa uma nova maneira de articular as perguntas filosóficas. Assim, por exemplo, contrariamente a

quando se fazia no passado, perguntar pela essência da causalidade ou pelo conteúdo do conceito ‘causalidade’, pergunta-se agora pelo ‘uso da palavra’ causalidade. Foi de tal modo intensa a concentração em questões da linguagem, que se chegou a identificar filosofia e crítica da linguagem” (OLIVEIRA, 2001:12).

10 Uma reconstrução feita mais recentemente e elaborada pelo próprio Habermas sobre o giro lingüístico pode ser encontrada no cap.1 (“Filosofia hermenêutica e filosofia analítica: duas versões complementares da virada lingüística”) da obra HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. O presente trabalho a tomará como referência para sustentar que as teorias de Wittgeinstein e Gadamer, cada uma por si, representam momentos complementares desse giro.

11 Segundo Habermas (2004:75): “A semântica formal isola a função comunicativa da linguagem – em que Humboldt viu sediada a racionalidade do entendimento mútuo – da análise lógica, entregando-a a um mundo empírico de observação”.

Page 121: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

121

pensamentos e representações: os primeiros são capazes de ultrapassar os limites espaço-

temporais da consciência individual, podendo ser apreendidos em diversos tempos ou lugares

com o mesmo conteúdo (HABERMAS, 1988:72). Por isso mesmo, pensamentos, através de

uma análise de sentenças predicativas, adquirem uma estrutura mais complexa do que objetos

de representações; eles podem ser avaliados à luz da linguagem gramatical, de modo que é

imprescindível que se possa pressupor que os falantes de uma determinada comunidade

lingüística atribuam o mesmo significado às expressões lingüísticas. A partir dessa premissa,

os pensamentos passam a veicular um conteúdo específico que pode ser avaliado de acordo

com a assunção de posições fundadas em razões criticáveis pelos falantes.

Dando continuidade ao movimento, Pierce concluiu que a verdade pode ser

compreendida como aceitabilidade racional, ou seja, como justificação de uma pretensão de

validade criticável sob as condições de comunicação de uma audiência de intérpretes

confiáveis que se espraia em um sentido ideal através do espaço social e do tempo histórico

(HABERMAS, 1998:76).12

Todavia, os estudos conduzidos pelos autores, com exceção de Pierce,

apontavam apenas para uma compreensão semântica da linguagem, deixando de lado a

dimensão pragmática.13 Uma nova perspectiva aparece nos estudos do segundo Wittgenstein

– marcado pela publicação da obra Investigações Filosóficas.14 Desse modo,

12 “El mundo como conjunto de los hechos posibles se constituye solamente para una comunidad de

interpretación cuyos miembros se entienden entre si sobre algo en el mundo dentro de un mundo de la vida intersubjetivamente compartido. «Real» es lo que puede exponerse en enunciados verdaderos, explicándose a su vez «verdadero» por referencia a la pretensión que el hablante entabla frente al oyente al afirmar un enunciado. Con el sentido asertórico de su afirmación entable el hablante una pretensión susceptible de crítica, en lo que respecta a la validez del enunciado afirmativo; y como nadie dispone de la posibilidad de un acceso directo a condiciones de validez no interpretadas, la «validez» ha de entenderse epistémicamente como «validez que se nos impone como tal a nosotros». La pretensión de verdad de un proponente, cuando está justificada, hablará de poder defenderse con razones frente a las objeciones de posibles oponentes y al cabo habrá de poder contarse con un acuerdo racionalmente motivado de la comunidad de interpretación en conjunto”(HABERMAS, 1998:75-76).

13 Dworkin (1999:41) lembra que, no campo jurídico, ainda são muito difundidas as compreensões semânticas em suas múltiplas formas – é o caso do positivismo jurídico e da escola do Direito Natural. Segundo esse autor: “As teorias semânticas pressupõem que os advogados e juízes usam basicamente os mesmos critérios (embora estes sejam ocultos e passem despercebidos) para decidir quando as proposições jurídicas são falsas ou verdadeiras; elas pressupõem que os advogados realmente estejam de acordo quanto aos fundamentos do direito. Essas teorias divergem sobre quais critérios os advogados de fato compartilham e sobre os fundamentos que esses critérios na verdade estipulam. [...] As teorias semânticas mais influentes sustentam que os critérios comuns à verdade das proposições jurídicas passa a depender de certos eventos históricos específicos. Essas teorias positivistas, como são chamadas, sustentam o ponto de vista do direito como simples questão de fato, aquele segundo o qual a verdadeira divergência sobre a natureza do direito deve ser uma divergência empírica sobre a história das instituições jurídicas”.

14 “Russel ou Carnap vinculam o método de explicar formas do pensamento pela via da análise lógica de formas lingüísticas à tradicional teoria empirista do conhecimento. Essa compreensão metodologicamente limitada da análise lingüística ainda não põe em dúvida de modo nenhum o paradigma mentalista. Somente Wittgenstein, com sua tese de que a estrutura da proposição enunciativa determina a estrutura de fatos possíveis, toca as próprias premissas da filosofia da consciência” (HABERMAS, 2004:78, grifos no original).

Page 122: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

122

[e]le [o segundo Wittgenstein] faz uma crítica detalhada ao mentalismo apenas após substituir as formas lingüísticas de um pensamento de entendimento não-reflexivo, investigadas no Tractatus, por gramáticas de jogos de linguagem, que são constitutivos de igual número de formas de vida. Com isso, ele fornece à diferença intuitiva de Frege entre “pensamento” e “representações” uma interpretação inequívoca. Não podemos “vivenciar”o sentido de uma proposição, pois a compreensão não é um processo psíquico, mas depende da observação de uma regra: “Compare: ‘Quando suas dores diminuíram?’ e ‘Quando você parou de compreender essa palavra?’”. O saber quanto à maneira de aplicar um critério é uma faculdade prática – assim como se “sabe” jogar xadrez –, mas não um estado mental, nem uma propriedade psíquica (HABERMAS, 2004:78-79). Nesse sentido, o Tractatus Logico-Philosophicus tinha o objetivo de

explicar a linguagem representativa ou factual, isto é, como é possível para o indivíduo,

através do uso da linguagem, representar e compreender o mundo que o cerca: A solução encontrada por Wittgeinstein para explicar a conexão entre linguagem e o mundo é chamada de teoria pictorial da frase. Segundo essa teoria, uma tal conexão só pode ser feita porque nossas frases declarativas podem ser concebidas como figurações ou quadros (Binder) da realidade; modelos capazes de reproduzir a realidade ao nível da linguagem (COSTA, 2003:26). Dessa maneira, em conformidade com o entendimento clássico, uma palavra

designaria não a coisa individual, mas a essência comum a várias coisas individuais. A

conseqüência dessa tese é a afirmação de que haveria um mundo em si que é dado

independentemente da linguagem, a qual apenas tenta exprimi-lo. Tudo isso levou

Wittgenstein a empreender uma busca pela linguagem perfeita, capaz de reproduzir com

absoluta exatidão a estrutura ontológica do mundo (OLIVEIRA, 2001:120-121).

Todavia, o projeto representado pelo Tractatus foi abandonado na segunda

fase de seu pensamento, marcada pela publicação da obra Investigações Filosóficas. Os

estudos sobre a linguagem, a partir daí, sofreram uma grande revolução; a compreensão da

tese dos jogos de linguagem abre definitivamente para uma compreensão pragmática: Qual o significado de uma palavra?, pergunta-se, então, Wittgenstein. Essa pergunta, diria ele, é mal formulada, uma vez que sugere uma única e definitiva resposta; na realidade há várias respostas a ela, sendo que cada uma tomará como apoio uma situação determinada de emprego das palavras, isto é, aquilo que Wittgenstein denomina um “jogo de linguagem” (MORENO, 2000:55). É, por isso, que Rohden lembra que, para Apel,15

[...] a mudança do 1º ao 2º Wittgeinstein consistiu no abandono do “pressuposto de uma linguagem única, que, por meio da ‘forma lógica’ que este tem em comum como mundo descritível”, daria a lei de toda análise da linguagem e da realidade. Wittgeinstein substitui esse pressuposto metafísico ou semântico-transcendental por uma outra hipótese de trabalho, que é a “do número ilimitado de diferentes ‘jogos de lingüísticos’ que historicamente nascem e se dissolvem”. Jogos que são “como unidades, constituídas por uma regra de conduta, de uso lingüístico, forma de vida e abertura do mundo (= de uma situação)” (2002:55).

15 APEL, K. O. La transformación de la Filosofía. Madrid: Taurus, 1985. t. I. p. 344.

Page 123: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

123

Em um jogo de linguagem,16 uma palavra não é apenas dependente da

relação com outras (semântica), mas também está em relação com os participantes

(pragmática). O significado somente pode aparecer a partir de uma compreensão do uso da

palavra dentro de uma forma de vida (COSTA, 2003:40-41; CONDÉ, 2004:47), e não mais

como especulação a priori (OLIVEIRA, 2001:132). Uma mesma expressão lingüística

poderá, portanto, ser utilizada de forma diversa em duas situações distintas, adquirindo

significações completamente diferentes (CONDÉ, 2004:48): É a partir da análise dessa situação que Wittgenstein supera a concepção tradicional da linguagem, mostrando sua parcialidade. Em nossa linguagem, não se trata apenas de designar objetos por meio de palavras; as palavras estão inseridas numa situação global que regra seu uso, [...] (OLIVEIRA, 2001:139, grifos no original). A linguagem não pode ser compreendida como puro instrumento de

comunicação de conhecimentos já realizados; antes disso, ela é condição de possibilidade para

a construção desse conhecimento. Contudo, constata-se um problema remanescente desde a

primeira fase: a análise dos jogos de linguagem ainda se dá de maneira exclusivamente

descritiva, de modo que o sujeito que observa os jogos posiciona-se como um observador

externo à prática lingüística (ROHDEN, 2002:133; 2002:58).17

Mesmo sob o peso da crítica acima, o pensamento de Wittgenstein pode

trazer uma nova luz à compreensão do Direito. O Direito, como elemento da vida em

sociedade, serve-se da linguagem ordinária; logo o que se aplica àquela também se aplica ao

Direito. Se, no exemplo clássico de Wittgenstein (1979:22), não é a forma da peça de xadrez

que distinge o “rei” de um “cavalo”, mas sim seu uso dentro da dinâmica do jogo; no Direito,

esse fenômeno se repete: o Direito não apresenta a priori nenhuma distinção, por exemplo,

entre direitos de públicos ou direitos privados, ou mesmo uma separação convincente entre

direitos individuais, coletivos e difusos, por meio de uma justificação ontológica limitada ao

nível de uma semântica, ao contrário do que quer uma dogmática que, lançando mão de um

rol de conceitos e classificações exaustivos, quase poderia concorrer com a Botânica ou com a

16 É essencial lembrar que Wittgenstein, coerentemente com sua teoria, recusou-se a apresentar um conceito ou

uma definição do que seja um “jogo de linguagem”. Desse modo, a noção surge através da comparação com o “jogo”: “No jogo sabemos que o jogador não joga isoladamente e arbitrariamente. Eles [os jogos de linguagem] constituem um quadro de referência intersubjetiva que delimita as fronteiras das ações possíveis e, por outro lado, possibilita, ao jogador, um espaço para as iniciativas individuais” (ROHDEN, 2002:57-58). Condé (2004:52) afirma que a compreensão da linguagem presente na obra Investigações Filosóficas abandona uma concepção de cálculo, adotada e desenvolvida no Tractatus.

17 “Dito de outro modo, para Wittgenstein, mais importante que ouvir o ser afetado pela tradição ou pelo uso da linguagem, é poder olhar e descrever as regras válidas usadas na linguagem. Para tanto, exige-se um sujeito cogniscente que, do lado de fora, observe e descreva o que acontece ou execute as regras para compreendê-las, sem mostrar os impactos que ele padece ao jogar” (ROHDEN, 2002:133).

Page 124: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

124

Entomologia. Ao invés disso, o Direito pressupõe uma prática argumentativa, daí a

observação do nível pragmático existente na linguagem.18

Günther (1993:91) irá retornar ao pensamento de Wittgenstein para explicar

que a relação entre o significado e a validade intersubjetiva de uma norma exige a assunção

de uma perspectiva interna da parte dos envolvidos, isto é, eles precisam participar do mesmo

jogo de linguagem para que se possa avaliar a correção da norma utilizada.19

Ao que parece, Wittgenstein identificaria uma forma de “platonismo” na

postura assumida pela dogmática jurídica tradicional: a norma se situaria em um plano

completamente independente da situação de aplicação (1993:92-93). Essa norma – ou melhor,

essa regra – já traria em si, antecipadamente a qualquer situação, suas condições de

aplicação;20 por isso as análises se limitariam a encontrar o significado isolado da norma –

bem semelhante à proposta de Kelsen (1999:390), já apresentada, de encontrar um quadro que

comporte todas as possíveis interpretações de uma determinada regra. Todavia, a questão

levantada ressurge. Ao contrário da proposta dogmática semântica, uma compreensão da

dimensão pragmática existente no Direito leva a concluir que não é possível compreender o

significado de uma norma da perspectiva do observador – alguém externo às práticas sociais

que acontecem no interior de uma dada sociedade, mas somente como um co-participante do

mesmo “jogo de linguagem”.21 Também, não se pode aplicar uma norma sem que se remeta a

um processo voltado a compreender o seu significado, por sua vez, também ligado à atividade

18 Repete-se, então, a leitura procedimental veiculada no ensinamento de Cattoni de Oliveira: “Conforme o caso,

por exemplo, o direito ao meio ambiente saudável pode ser tratado argumentativamente como questão interindividual de direito de vizinhança, como condições adequadas de trabalho de uma categoria profissional ou, até mesmo, como direito das gerações futuras: depende da perspectiva argumentativa, se individual, coletiva, social ou difusa de quem o defende em juízo” (2003:137).

19 “According to Wittgenstein, the conditions of rule-conforming conduct can only be reconstructed from the internal perspective. Alter and ego have to participate in the same language game in order to be able to judge reciprocally whether the respective other has applied the rule correctly” (GÜNTHER, 1993:91).

20 Günther remete suas conclusões aos §§ 232 e seguintes da obra Investigações Filosófica de Wittgenstein (1979:92-93).

21 Mais à frente, será visto que, ao passo que Wittgenstein relacionava o significado à validade de identidade semântica e à intersubjetividade, limitando a compreensão a um determinado modo de vida, a proposta de Habermas irá além, escapando do relativismo do jogo de linguagem e identificando um sistema de pressuposições inevitáveis que, em qualquer jogo lingüístico, terão de ser admitidas como cumpridas (GÜNTHER, 1993:95-96). Trata-se do projeto da pragmática formal, nome esse anteriormente dado ao projeto da pragmática universal. Sobre essa mudança importante, ver a primeira nota do texto em inglês, What is universal pragmatics?, no qual Habermas (1998c:92) esclarece que: “[...] the term ‘pragmatics’ has refereed to the analysis of particular contexts of language use and not to the reconstruction of universal features of using language (or of employing sentences in utterances). To mark this contrast, I introduced a distinction between ‘empirical’ and ‘universal’ pragmatics. I am no longer happy with this terminology: the term ‘formal pragmatics’ – as an extension of ‘formal semantics’ – would serve better”.

Page 125: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

125

de interpretação.22 Esse ponto nos remete aos estudos empreendidos por Gadamer (2001;

2002).

Há ainda um desdobramento importante da teoria de Wittgestein para o

Direito. Waismann desenvolveu, a partir dos estudos do filósofo austríaco, uma pesquisa que

conduziu à tese da textura aberta da linguagem, que serviu de base, de acordo com Bix

(1991:51), para os estudos de Hart (1994) sobre a “textura aberta do Direito”.23 Segundo Hart,

a linguagem traz em si uma infinidade de incertezas. Tomando seu exemplo, isso fica bem

claro: imagine que exista uma regra que proíba veículos no parque. Segundo o jurista, na

grande maioria das vezes, essa questão não levantaria maiores problemas, de modo que sua

complexidade potencial passaria despercebida; mesmo assim, alguém poderia vislumbrar

alguns casos de penumbra quanto ao significado do termo “veículo”, por exemplo: uma

bicicleta poderia ser considerada um veículo? E quanto a patins? E uma charrete? Esse,

segundo Hart (1994:148), seria um problema que revelaria a existência da “textura aberta do

Direito”: A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam em peso, de caso em caso (1994:148). Isso significa que o legislador não seria uma razão absoluta – nem dela

precisaria – capaz de imaginar em abstrato todas as possíveis interpretações que uma regra

pode ter. Os tribunais, por meio de um poder discricionário, preencheriam essas lacunas

existentes no processo de interpretação das regras, como uma legítima função criadora do

Direito. Isto é, diante de um caso difícil – caso no qual inexistiria a incidência de uma regra

expressa, os tribunais estariam autorizados a criar uma nova regra e aplicá-la de maneira

retroativa ao caso sob julgamento. Isso, para Hart, não pode ser considerado um problema,

mas uma solução; por meio desse poder de criação, os tribunais seriam capazes de atualizar o

Direito, interpretando de maneira razoável as regras existentes e aplicando-as a situações que

não poderiam ter sido previstas pelos legisladores.

Todavia, a saída teórica encontrada por Hart – a discricionariedade judicial,

que também está no projeto de Kelsen – será duramente criticada por Dworkin e Habermas,

uma vez que o magistrado, ao se transformar em legislador supletivo, ultrapassaria o limite de

sua atividade, produzindo decisões carentes de legitimidade. De qualquer forma, a solução

22 Um esclarecimento maior poderá ser encontrado na noção de applicatio de Gadamer, como será visto mais à

frente neste mesmo tópico. 23 Entretanto, Bix (1991:64) apresenta críticas à leitura de Wittgenstein empreendida por Waismann, que, por

conseqüência, atingiriam também o trabalho de Hart.

Page 126: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

126

encontrada por Hart parece desconhecer a proposta de Gadamer, que apresenta uma versão

complementar ao giro lingüístico, que lançará luzes sobre o pensamento desses dois autores

atuais, influenciando-os.

Habermas (2004:86) lembra que a análise realizada por Gadamer ultrapassa

definitivamente a dimensão semântica da linguagem, atingindo a pragmática através da busca

de entendimento mútuo entre o autor e o intérprete. Para tanto, fará uso do diálogo24 como

caso pragmático da compreensão entre interlocutores que buscam entender-se sobre algo.

Contudo, o diálogo em Gadamer não pode ser tomado como um método para a realização de

sua hermenêutica, mas antes para sustentar a impossibilidade de um conhecimento que não

seja finito, datado e histórico (GRONDIN, 1999:181). O título de seu próprio livro – Verdade

e Método – já traz algo bem sugestivo: o método em nada encerra o caminho para a verdade.

Ao contrário, a compreensão faz-se por meio de um processo dialógico-lingüístico. Dessa

forma, Gadamer vai contra a tese defendida pelo Historicismo e pelo Positivismo, no sentido

de que as chamadas “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften) não necessitam de

desenvolver seu método próprio para que, só assim, possam gozar do status de ciência.25 Com

tal postura, ele levanta-se contra a tradição até então dominante – da qual fazem parte

pensadores como Schleiermacher26 e Dilthey27 e, especialmente, no Direito, Betti.28

24 No diálogo, lembra Habermas (2004:86): “[...] a intersubjetividade de um mundo da vida partilhado, ancorado

nas perspectivas (reciprocamente referentes e ao mesmo tempo permutáveis) entre primeira e segunda pessoas, entrelaça-se com a referência a alguma coisa no mundo objetivo, da qual justamente se fala algo”. Segundo Rohden (2002:181): “O diálogo mostra melhor a dimensão do processo relacional do saber, enquanto o jogo e o circulo hermenêutico ressaltam a subjetividade afetada daquele que joga ou compreende compreendendo-se circularmente”.

25 Gadamer insurgiu-se, principalmente, contra a adoção do método indutivo, muito difundido pelas “ciências naturais”. Esse método buscado não permite àquele que o usa, chegar a qualquer conclusão; pois apenas observa irregularidades, desconhecendo inteiramente a essência da experiência, principalmentequando a experiência se refere ao mundo social ou histórico (GADAMER, 2003:23). Outro grande crítico do pensamento indutivo foi Karl Popper, como lembra Reale (1991:3:1021-1023). Para esse autor, tanto a indução por repetição – que consiste na observação freqüentemente repetida a ponto de assegurar uma generalização – quanto a indução por eliminação – que se baseia na eliminação ou rejeição de teorias consideradas falsas – caem por terra, quando se percebe que, tanto em um caso quanto em outro, exige-se um regresso ao infinito para comprovação da tese que pretendem mostrar: no primeiro caso, nenhum número de observações poderá ser considerado satisfatório para sustentar seguramente uma conclusão indutiva; e no segundo caso, mesmo que se eliminem as teorias rivais, sempre existirá um número infinito de teorias candidatando-se para explicar o fenômeno.

26 Schleiermacher é responsável por lançar as bases de uma teoria geral da hermenêutica, compreendendo que a atividade de interpretação não está restrita à leitura de obras escritas, como por exemplo, os textos bíblicos, mas ela é universal, presente em toda situação na qual a compreensão é requisitada. Palmer (1986:96) explica que “o objectivo [de Schleiermacher] não é atribuir motivos ou causas aos sentimentos do autor (psicanálise), mas sim reconstruir o próprio pensamento de outra pessoa através da interpretação das suas expressões lingüísticas”. Reconstruindo esse pensamento, afirma Grodin (1999:128): “Para entender realmente um discurso, isto é, para banir o risco sempre ameaçador do equívoco, devo poder reconstruí-lo a partir da base e em todas as suas partes. Na compreensão não se trata do sentido que eu insiro no objeto, porém do sentido, a ser reconstruído, do modo como ele se mostra a partir do ponto de vista do autor”.

27 Segundo Pereira (2001:14), Dilthey direcionou seus estudos “rumo à fundamentação epistemológica das denominadas Ciências do Espírito (Geisteswissenschaften), almejando construir uma teoria objetivamente

Page 127: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

127

O que Gadamer pretende demonstrar é que a hermenêutica não pode mais

ser instrumentalizada, como se fosse uma ferramenta para destrancar o significado oculto de

um texto ou para esclarecer uma determinada passagem obscura. Muito mais que isso, a

hermenêutica é uma atividade que acontece a todo momento, como lembra o autor: A interpretação, tal como hoje a entendemos, se aplica não apenas aos textos e à tradição oral, mas a tudo que nos é transmitido pela história: desse modo falamos, por exemplo, da interpretação de um evento histórico ou ainda da interpretação de expressões espirituais e gestuais, da interpretação de um comportamento, etc. Em todos esses casos, o que queremos dizer é que o sentido daquilo que se oferece à nossa interpretação não se revela sem mediação, e que é necessário olhar para além do sentido imediato a fim de descobrir o “verdadeiro” significado que se encontra escondido. Essa generalização da noção de interpretação remonta a Nietzsche. Segundo ele, todos os enunciados provenientes da razão são suscetíveis de interpretação, posto que o seu sentido verdadeiro ou real nos chega sempre mascarado ou deformado por ideologias (GADAMER, 2003:19). Um pressuposto da hermenêutica gadameriana é o conceito de horizonte,

trazido de Husserl, representado não como algo rígido, mas como algo que se desloca junto à

pessoa, permitindo o acesso dela ao mundo e envolvendo-a: Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. [...] A linguagem filosófica empregou essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar a vinculação do pensamento à sua determinidade finita e para caracterizar, com isso, a lei do pregresso de ampliação do âmbito visual. Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e distante, de grande e pequeno. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição (GADAMER, 2001:452). Cada pessoa tem diante de si um horizonte, principalmente um horizonte

histórico, que atua não como elemento limitador, mas como “condição de possibilidade” de

comprovável que alçasse status científico autônomo em relação às Ciências da Natureza”. Sua grande contribuição foi situar a possibilidade de compreensão dentro da História, e não fora dela (2001:16). O próprio Gadamer (2003:28) assim define o objetivo de Dilthey: “ele pretende descobrir, nos confins da experiência histórica e da herança idealista da escola histórica, um fundamento novo e epistemologicamente consistente; é isso que explica a sua idéia de completar a crítica da razão pura de Kant com uma ‘crítica da razão histórica’”.

28 Segundo Palmer (1986:55), Betti segue a tradição de Dilthey e “[...] pretende nos dar uma teoria geral do modo como «as objetivações» da experiência humana podem ser interpretadas; defende veemente a autonomia do objeto de interpretação e a possibilidade de uma «objectividade» histórica na elaboração de interpretações válidas”. Dessa forma, Betti não quer omitir da interpretação o momento subjetivo, mas pretende afirmar que a subjetividade não pode interferir no objeto, o que possibilita, ainda, buscar uma interpretação objetiva. É importante lembrar que, para Betti, Gadamer – bem como Heidegger – representa um crítico dessa objetividade buscada por ele, e suas teorias não fariam outra coisa senão “[...] pretender mergulhar a hermenêutica num pântano de relatividade, sem quaisquer regras. [Por isso mesmo, é] a integridade do próprio conhecimento histórico que está a ser atacada e é preciso defendê-la com firmeza” (PALMER, 1986:56). A interpretação seria para esse autor uma forma de reconhecer e reconstruir o significado que o autor da obra foi capaz de incorporar nela. Complementa Palmer (1986:67): “Betti, seguindo Dilthey, na busca de uma disciplina de base para as Geisteswissenschaften, procura o que é prático e útil para o intérprete. Pretende normas que distingam uma interpretação certa de uma interpretação errada, que difiram um tipo e outro de interpretação”.

Page 128: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

128

nossa compreensão (OLIVEIRA, 2001:227-228). É por isso que Gadamer, apoiando-se

principalmente no modo de ser do Dasein (do ser-aí) heideggeriano,29 vai afirmar que [c]ompreendemos e buscamos verdade a partir das expectativas de sentido que nos dirigem e provêm de nossa tradição específica. Essa tradição, porém, não está a nosso dispor: antes de estar sob nosso poder, nós é que estamos sujeitos a ela. Onde quer que compreendamos algo, nós o fazemos a partir do horizonte de uma tradição de sentido, que nos marca e precisamente torna essa compreensão possível. Ela é instância a partir de onde toda e qualquer compreensão atual é determinada, possibilitada (OLIVEIRA, 2001:228).30

Esses horizontes, ou antecipações de sentido, funcionam como verdadeiros

pré-conceitos – entendidos sem a carga pejorativa que muitas vezes se lhes atribui (KUSCH,

2001:262). Dessa forma, não se pode falar em um conhecimento apartado da História,31 isto é,

a compreensão se faz a partir de uma imersão em determinada tradição, operando-se de

maneira circular, condicionada à revisão sempre constante das pré-compreensões do

indivíduo:32

Daí o caráter circular de toda compreensão: ela sempre se realiza a partir de uma pré-compreensão, que é procedente de nosso próprio mundo de experiência e de compreensão, mas essa pré-compreensão pode enriquecer-se por meio da captação de conteúdos novos. Precisamente o enraizamento da compreensão no campo do objeto é a expressão desse círculo inevitável em que se dá qualquer compreensão. Por essa razão, a reflexão hermenêutica é essencialmente uma reflexão sobre a influência da história, ou seja, uma reflexão que tem como tarefa tematizar a realidade da “história agindo” em qualquer compreensão. Numa palavra, a hermenêutica desvela a mediação histórica tanto do objeto da compreensão como da própria situacionalidade do que compreende. (OLIVEIRA, 2001:230). Não se pode, contudo, confundir o círculo hermenêutico com uma mera

tautologia ou com um círculo vicioso:33 a circularidade traçada pela hermenêutica ressalta o

fato de que não existe uma interpretação única ou definitiva de qualquer texto. Por

conseguinte, a circularidade é aberta, de modo que a compreensão não retorna ao mesmo

29 Conforme Reale (1991:3:583), o ser-aí “indica o fato de que o homem está sempre em uma situação, lançado

nela e em relação ativa com ela”. 30 Oliveira (2001:228) faz uma observação: “Não se trata mais de uma subjetividade pura isolada do mundo e da

história, mas de uma subjetividade que se constitui enquanto tal condicionada e marcada por seu mundo, que, por sua vez, é historicamente mediado e lingüisticamente interpretado. Aqui se dá um ‘movimento de superação’ da filosofia da subjetividade numa direção contrária ao que aconteceu no estruturalismo: enquanto o estruturalismo pretende superar a filosofia da subjetividade descendo ao que é anterior ao sujeito, isto é, às estruturas inconscientes que constituem a língua, a hermenêutica supera a filosofia da subjetividade na medida em que tematiza o contexto da tradição, na qual o sujeito emerge como sujeito”.

31 “A consciência histórica propõe-se a tarefa de compreender todos os testemunhos de uma época a partir do espírito dessa época, desvinculando-os das realidades atuais que nos prendem à vida presente. Busca ainda conhecer o passado sem preciosismo e superioridade moral, como um passado humano igual ao nosso” (GADAMER, 2002:257).

32 Dito de outra forma, tem-se que a compreensão está condicionada a uma pré-compreensão, que funciona como antecipação da abertura para o mundo, uma antecipação do sentido, que gera condições de acesso à coisa que vem ao encontro (GADAMER, 2002:261).

33 Rohden (2002:160) ilustra a situação do círculo vicioso com a metáfora do sujeito que quer sair de um poço puxando-se pelos seus próprios cabelos.

Page 129: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

129

lugar de partida, expandindo-se. Não se trata ainda de um único círculo, mas de um

movimento circular que engloba uma infinidade de círculos concêntricos. Cuida-se de um

movimento de pré-compreensão e compreensão, que, por sua vez, se torna uma nova pré-

compreensão e abre as portas para uma compreensão (ROHDEN, 2002:167): Com o modelo estrutural do círculo hermenêutico é possível superar a clássica dicotomia entre explicar e compreender ou interpretar e compreender, uma vez que ele mostra que há uma compreensão originária, anterior ao momento temático, que denominamos de ontológico – que o círculo hermenêutico permite explicitar, e que mostra a impossibilidade do retorno ao ponto inicial, à Ítaca, ileso das marcas do tempo e do espaço. A esquizofrenia filosófica sujeito-objeto não é resolvida pela eliminação ou supremacia de um dos pólos, mas pelo reconhecimento da existência e constituição de ambos tensional e circularmente – o que corporifica no termo enquanto (ROHDEN, 2002:170). Gadamer acrescenta à sua teoria a figura da fusão de horizontes

(Horizontverschmelzung) como forma de compreensão recíproca entre pontos situados em

horizontes divergentes (HABERMAS, 2004:86). O texto e o intérprete passam a dividir um

horizonte comum. Não há uma relação de apropriação pelo intérprete do texto, há um diálogo,

seguido de perguntas e respostas, no qual o intérprete participa, “ouvindo” o que o texto tem

para dizer (KUSCH, 2001:259; PALMER, 1986:210): 34

Na medida em que cada intérprete se situa num novo horizonte, o evento que se traduz linguisticamente na experiência hermenêutica é algo novo que aparece, algo que não existia antes. Neste evento, fundado na linguisticidade e tornado possível pelo encontro dialéctico com o sentido do texto transmitido, encontra a experiência hermenêutica a sua total realização (PALMER, 1986:211). Mas ainda parecia ficar em aberto a questão sobre a verdade ou a falsidade

do que é compreendido. Contra isso, Gadamer desenvolveu a noção de história efetual

(Wirkungsgeschichte).35 Para tanto, ele serviu-se de uma idéia presente nas teorias literárias

desde o século XIX, como explica Grondin: Nela se torna claro, que as obras, em determinadas épocas especificas, despertam e devem mesmo despertar diferentes interpretações. A consciência da história efetual, a ser desenvolvida, está inicialmente em consonância com a máxima de se visualizar a própria situação hermenêutica e a produtividade da distância temporal. Porém, a consciência da história efetual significa, para Gadamer, algo muito mais fundamental. Pois para ele, ela goza do status de um “princípio”, do qual se pode deduzir quase toda a sua hermenêutica (1999:190). Para além do universo literário, Gadamer insere a noção de história efetual

em um processo universal (ontológico). Em um primeiro nível, vai significar a exigência de 34 “O intérprete cuidadoso colocará aqueles tipos de perguntas ao texto que exponham seus próprios preconceitos

e até os ameacem. O intérprete cuidadoso fortalece as visões do texto tanto quanto possível, a fim de testar a verdade referente a suas próprias visões. Precisa ser evitada uma fusão direta do horizonte do texto com o horizonte do intérprete, uma assimilação do texto nos termos do conhecimento do intérprete. E o que o intérprete precisa fazer para reduzir a velocidade do processo de assimilação é distinguir cuidadosamente entre seu próprio horizonte e o horizonte do texto” (KUSCH, 2001:260).

35 “A pré-compreensão que um intérprete leva para o texto que cumpre interpretar já é, quer ele queira quer não, impregnada e marcada pela história dos efeitos do próprio texto” (HABERMAS, 2004:87).

Page 130: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

130

tomada de uma consciência histórica, que revela a própria situação hermenêutica do

intérprete. Porém, Gadamer reconhece que essa história efetual não está à disposição do

intérprete, não podendo ser controlada por ele; trata-se de uma submissão a essa tradição.36

Ela marca o reconhecimento da finitude humana, sem contudo gerar uma atrofia da reflexão

(GRONDIN, 1999:191-192).

Gadamer também foi importante para resolver as separações rígidas que até

então existiam entre compreensão/interpretação/aplicação. Isso porque o compreender já traz

em si a noção de aplicação de um sentido à situação presente, de modo que não se pode falar

em compreender um sentido apartado de uma atividade de aplicação em face de uma

realidade determinada.37 É por isso que a compreensão e a aplicação coincidem no ato de

interpretação,38 que Gadamer chamou de applicatio. E tal noção é fundamental ao Direito: A estreita pertença que unia na sua origem a hermenêutica filológica com a jurídica repousa sobre o reconhecimento da aplicação como momento integrante de toda compreensão. Tanto para a hermenêutica jurídica como para a teológica, é constitutiva a tensão que existe entre o texto proposto – da lei ou da revelação – por um lado, e o sentido que alcança sua aplicação ao instante concreto da interpretação, no juízo ou na prédica, por outro. Uma lei não quer ser entendida historicamente. A interpretação deve concretizá-la em sua validez jurídica. Da mesma maneira, o texto de uma mensagem religiosa não deseja ser compreendido como um mero documento histórico, mas ele deve ser entendido de forma a poder exercer seu efeito redentor. Em ambos os casos isso implica que o texto, lei ou mensagem de salvação, se se quiser compreendê-lo adequadamente, isto é, de acordo com as pretensões que o mesmo apresenta, tem de ser compreendido em cada instante, isto é, em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta. Aqui, compreende é sempre também aplicar (GADAMER, 2001:461, grifos no original).39

A leitura gadameriana, complementando a tese dos jogos de linguagem de

Wittgenstein, parece apontar para o fracasso das teorias semânticas, já que essas últimas

ignoram a complexidade e a dimensão histórica existente na linguagem e no Direito.

Todavia, sobre a teoria hermenêutica, Kusch (2001:256) faz um alerta:

Gadamer fala de uma “fusão do horizonte do intérprete com o horizonte do texto, levanta-se a

questão sobre quem é o agente ou o sujeito autor da ação de fundir”. Mas será que “não

36 Grondin (1999:191) lembra que Gadamer afirmou que a consciência da história efetual seria propriamente

“mais ser do que consciência”; segundo ele, ela “[...] impregna a nossa ‘substância’ histórica de uma forma que não permite ser conduzida à última nitidez e distância” (1999:191).

37 “A interpretação não é um ato posterior e oportunamente complementar à compreensão, porém, compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão” (GADAMER, 2001:459).

38 “[...] na compreensão, sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido, à situação atual do intérprete. Nesse sentido nos vemos obrigados a dar um passo mais além da hermenêutica romântica, considerando como um processo unitário não somente a compreensão e interpretação, mas também a aplicação” (GADAMER, 2001:460).

39 A partir dessa leitura, pode-se compreender como equívoco e limitado o conceito de interpretação adotado pela dogmática jurídica tradicional; visto que ela toma a interpretação como sendo um recurso para descobrir o sentido do texto normativo quando há uma obscuridade presente. Como exemplo, sugere-se esta obra clássica para o Direito: MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

Page 131: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

131

haveria uma forma de subordinação do intérprete à tradição”?40 Essa pergunta impulsionará

Habermas a entrar no debate, ganhando relevo como novo participante do giro lingüístico. Em

réplica, Gadamer afirma que a leitura habermasiana estaria equivocada, pois a compreensão

hermenêutica não poderia ser tomada como acrítica.41 Além disso, Gadamer dirá que a

obediência à autoridade da tradição apenas se dá quando se percebe que o outro consegue

enxergar melhor (GADAMER, 2002:52-53; KUSCH, 2001:257-258).

De qualquer forma, essa provocação levará Habermas para mais perto dos

estudos sobre a linguagem, dando início ao desenvolvimento do projeto de uma teoria

pragmática formal da linguagem,42 vindo a ser coroado na Teoria da Ação Comunicativa.43

Sua proposta parte do desenvolvimento de uma interpretação construtiva,44 pois reconhece a

necessidade de uma tomada de posição também por parte do intérprete:

40 Habermas (2004:87-89) assinala críticas que aqui são importantes: (1) a tese gadameriana acaba por depender

de um contexto tradicional comum, capaz de abarcar os dois lados. Desse modo, por influência aristotélica, o esforço para autoclarificação se dá a partir de fundamentos éticos sob o pano de fundo de tradições comuns e não morais, como realizado por Apel, através de um compreensão kantiana talhada por questões de justiça (HABERMAS, 2004:90). Assim, lembra Günther (1993:192-193), a validade é sempre medida como grau de pertença a uma forma de vida comum; (2) “visto que o intérprete é inserido desse modo no processo da tradição, a interpretação de um texto modelar consiste na aplicação de um saber superior à situação presente” (HABERMAS, 2004:87), o que se traduzirá em uma atitude conservadora por parte da Hermenêutica de Gadamer. Importante, então, lembrar Adorno e sua crítica da ideologia, afinal, na maioria das vezes, a história efetual pode-se dar em razão do poder factual dos vencedores (HABERMAS, 2004:89); e (3) o pensamento de Gadamer parece deixar transparecer um preconceito com relação ao conhecimento científico, que parece ignorar, por exemplo, a tese de Popper sobre o crescimento acumulativo de saber (HABERMAS, 2004:89).

41 “Reflexão efetuada pela hermenêutica filosófica seria crítica no sentido de que descobriria o objetivismo ingênuo onde se encontra enredada a autocompreensão das ciências históricas, orientada nas ciências da natureza. [...] A reflexão hermenêutica parece-me ser produtiva onde alguém, por exemplo, examina o modo de argumentação socrático nos diálogos platônicos a partir da perspectiva de seu rigor lógico. Nesse caso, a reflexão hermenêutica pode descobrir que o processo comunicativo que se dá no desenrolar dos diálogos socráticos é um processo da compreensão e do entendimento, que não é atingido pela busca de conhecimento analista lógico” (GADAMER, 2002:296).

42 Trata-se do texto Was heisst Universalpragmatik? (1976), também encontrado em HABERMAS, Jürgen. Que significa pragmática universal?. In: Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. Trad. Manuel Jimenez Redondo. Madrid: Cátedra, 1994.

43 “O intérprete compreende então a significação de um texto na medida em que descobre por que o autor se sentiu no direito de apresentar determinadas afirmações (como verdadeiras), reconhecer determinados valores e normas (como corretos), externar determinadas vivências (como sinceras). O intérprete tem de aclarar para si o contexto que tem de ter sido pressuposto pelo autor e pelo público contemporâneo como saber comum, para que naquela época não precisassem aparecer aquelas dificuldades, que para nós, inversamente, parecem triviais. Somente sobre este pano de fundo de elementos cognitivos, morais e expressivos da provisão cultural do saber, a partir do qual o autor e seus contemporâneos construíram suas interpretações, pode-se tornar manifesto o sentido do texto. Mas, por outro lado, o intérprete nascido mais tarde toma posição ao menos implicitamente com respeito às pretensões de validade vinculadas ao texto” (HABERMAS, 1987b:89). O presente texto da obra HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Trad. Álvaro Valls. São Paulo: L&PM, 1987, foi, originalmente, apresentado como capitulo contido no primeiro volume da Teoria da Ação Comunicativa (1987:1:182).

44 A noção de interpretação construtiva será utilizada por Dworkin, que irá igualmente reconhecer uma visão por demais passiva na Hermenêutica Filosófica, compreendendo como unilateral o fluxo comunicativo. Nesse sentido, o próprio Dworkin (1999:63) justifica sua posição: “o intérprete deve esforçar-se por aprender e aplicar aquilo que interpreta com base no pressuposto de que está subordinado ao seu autor. Habermas faz a observação crucial (que aponta mais para a interpretação construtiva que para a conversacional) de que a

Page 132: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

132

Um intérprete só pode esclarecer a significação de uma manifestação opaca explicando como se deu esta opacidade, isto é, por que as razões que o autor teria podido dar em seu contexto não são mais aceitáveis para nós (HABERMAS, 1987b:90).

Desse modo, Habermas (1987b:92) acaba por afirmar que o procedimento

de interpretação bem sucedida se dá complementarmente a um processo de aprendizagem por

parte do autor do texto e de seus destinatários, no sentido de que autor e destinatários

poderiam compartilhar da compreensão do texto, se o primeiro fosse capaz de transpor a

distância temporal que o separa do intérprete.45

A partir daí, os estudos habermasianos sobre a linguagem passam a transitar

por um novo curso: a compreensão de uma complementaridade entre os estudos de

Wittgenstein e Gadamer. É por isso que Oliveira lembra que o projeto da pragmática formal

habermasiana “consiste em identificar e reconstruir as condições universais de compreensão

possível” (2001:321); para tanto, pressupõe a existência da ação comunicativa como espécie

de ação social mediada pela linguagem.

Antes de ser apresentada a proposta habermasiana, mostra-se fundamental

compreender a Teoria do Direito como Integridade, de Dworkin, que pretende levar o Direito

a sério: seja por negar a discricionariedade,46 seja por negar a possibilidades de decisões

conciliatórias, que não se baseiem em argumentos de princípios. Trata-se de uma proposta

condizente com o paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito, como bem

concordará Habermas (1998:272).47 Mais que isso, a concepção de integridade desenvolvida

por Dworkin (1999) servirá de base para o desenvolvimento do chamado princípio de

adequabilidade nas pesquisas de Habermas (1998; 2004) e Günther (1993), demonstrando o

caráter discursivo dos processos de decisões judiciais, sem perder a dimensão deontológica do

Direito.48

interpretação pressupõe que o autor poderia aprender com o intérprete”. Um bom exemplo é a conversa imaginária entre Cavell e Fellini retratada por Dworkin (1999:69-70).

45 “[...] acompanhada pela expectativa de que o autor e seus destinatários poderiam compartilhar de nossa compreensão de seu texto, se eles simplesmente fossem capazes de transpor a distância temporal por um processo de aprendizagem complementar ao nosso procedimento de interpretação” (HABERMAS, 1987b:92).

46 O sentido de poder discricionário tomado por Dworkin é o sentido forte: correspondente ao âmbito de aplicação no qual o magistrado decide; isto é, a decisão não é controlada por um padrão formulado por quem promulga as leis ou quem decide firmando um precedente. Um exemplo fornecido por Dworkin (2002:52-53) é o do sargento que pode escolher quaisquer cinco homens de sua tropa para efetuar uma patrulha, não estando sua escolha vinculada à seleção dos cinco mais experientes. Para o autor (2002:127), mesmo se não houver nenhuma regra para o caso, uma das partes ainda detém o direito de ganhar a causa.

47 “La teoría de los derechos de Ronald Dworkin puede entenderse como la tentativa de evitar las deficiencias del las propuestas de solución realista, positivista y hermenéutica y de, introduciendo el supuesto de derechos concebidos en términos deontológicos, explicar cómo la práctica de las decisiones judiciales puede satisfacer simultáneamente a las exigencia de seguridad jurídica y de aceptabilidad racional” (HABERMAS, 1998:272).

48 Através dessa tese, ambos os autores farão críticas à leitura de Alexy sobre o Direito, bem como ao método de ponderação de princípios (valores) desenvolvido por ele.

Page 133: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

133

3.2. A Tese do Direito como Integridade de Dworkin

3.2.1. O problema da divergência teórica sobre o Direito: a proposta de uma compreensão do

Direito a partir de uma interpretação construtiva

Dworkin49 abre o prefácio de sua obra O Império do Direito, escrito

originalmente em 1986, com a seguinte afirmação: “Vivemos na lei e segundo o direito”

(1999:XI); isto é, o Direito está por todo lado na vida em sociedade, fazendo-se presente

desde antes do nascimento e estendendo-se até após a morte de um indivíduo. É o Direito que

estabelece a condição de cidadão, de empregado ou de empregador, de advogados, de

proprietários, de cônjuge, de sócio, etc. O Direito não é apenas algo restrito ao ambiente

formal dos Tribunais, mas transborda para além de suas construções.50 Ele apresenta-se como

um soberano abstrato dotado, simultaneamente, de um escudo e de uma espada.

Todavia, desde muito tempo, a pergunta sobre “o que é o Direito?” persiste

e inúmeros pensadores apresentaram propostas para respondê-la (LAGES, 2001:36;

ARAÚJO, 2001:118).51 Com esta obra, Dworkin pretende também apresentar a sua

contribuição: O presente livro expõe, de corpo inteiro, uma resposta que venho desenvolvendo aos poucos, sem muita continuidade, ao longo de anos: a de que o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação construtiva, de que nosso direito constitui a melhor justificativa do conjunto de nossas práticas jurídicas, e de que ele é a narrativa que faz dessas práticas as melhores possíveis (1999:XI). A referida obra consagrará as teses sustentadas em livros anteriores, bem

como em diversos artigos publicados. Mas não pode ser lida apenas como um ataque aos seus

principais debatedores – as tradições do positivismo jurídico e do realismo jurídico, pois se

49 Santos Pérez (2003:5-6) lembra que Dworkin representa hoje um autor de referência na teoria e filosofia do

Direito, cujas obras – entre artigos, livros, conferências – já atingem a proximidade de duzentas publicações e constituem leitura obrigatória dos estudiosos. Todavia, afirmar que um autor seja popular não significa dizer que ele seja bem conhecido, esse problema parece atingir o pensamento dworkiano. O propósito deste tópico é demonstrar como sua teoria pode fornecer novas luzes aos problemas apontados nos capítulos anteriores, principalmente como forma de superação das aporias em que se encontra a dogmática jurídica tradicional. Para tanto, será realizada uma apresentação reconstrutiva do pensamento desse jurista, tomando como fio condutor a argumentação desenvolvida em sua obra O Império do Direito, publicado originalmente, em 1986.

50 Ver também SARAT, Austin. KEARNS, Thomas. The cultural lives of Law. SARAT, Austin. KEARNS, Thomas. (org.) Law in the domains of culture. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1998.

51 A indagação sobre “o que é o Direito?”, por exemplo, é a questão primordial na obra de Hart, O Conceito de Direito, sendo a sua pergunta de abertura.

Page 134: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

134

prestará também ao exame de uma importante questão, qual seja, a da legitimidade do Direito

(SOUZA CRUZ, 2003:26).

De maneira geral, aos olhos da sociedade, o Direito parece estar mais

presente quando se observa um processo perante o Poder Judiciário,52 isto é, como questão

interna a um processo jurisdicional.53 Sem negar o que foi afirmado anteriormente, tal

intuição não é de todo equivocada. Dworkin (1999:5) lembra que um processo judicial

desperta, a princípio, três tipos de questionamento que são bastante relevantes para uma

compreensão adequada do Direito: questões de fatos, questões de Direito e questões ligadas à

moralidade política e fidelidade. Ao lado dessas questões, têm-se as proposições jurídicas54 –

isto é, “todas as diversas afirmações que as pessoas fazem sobre aquilo que a lei lhes permite,

proíbe ou autoriza” (Dworkin, 1999:6) – e as questões ligadas aos fundamentos do Direito –

ou seja, quando juristas – em sentido amplo (magistrados, advogados, etc.) – discutem sobre

uma proposição jurídica, essa discussão pode abarcar dois níveis: divergências empíricas

sobre o Direito (qual a lei a ser aplicada ao caso?) ou divergências teóricas sobre o Direito

(concordando com a aplicação de uma determinada lei, ainda assim discutem se essa esgota

ou não os fundamentos pertinentes do Direito).55

Já que, nas questões de fato, “a discussão se centra a respeito de eventuais

controvérsias empíricas ligadas aos eventos concretos e históricos que sustentam a lide”

(SOUZA CRUZ, 2003:26-27), uma compreensão das questões jurídicas como de fato acaba

por reduzir o Direito, afirmando que ele “nada mais é que aquilo que as instituições jurídicas,

52 Kelly (1996:267) explica que a opção pelo Judiciário como figura de referência em Dworkin, na realidade,

compõe a sua crítica ao positivismo jurídico, pois, para essa tradição, a referência recai primordialmente sobre a atividade legislativa, tomando a atividade judicante como uma situação de segundo plano e de menor relevância.

53 Como apresentado no capítulo anterior, a presente pesquisa concorda e se apóia nas pesquisas desenvolvidas por Fazzalari (1996), Gonçalves (2001) e Cattoni de Oliveira (2000), de modo que o processo – como procedimento preparatório do provimento estatal e no qual se faz presente o contraditório – é figura ampla e fundamental para a legitimidade das decisões imperativas tomadas pelo Estado Democrático de Direito, não estando restrito ao âmbito das atividades do Poder Judiciário.

54 Segundo Dworkin (1999:6), as proposições jurídicas variam de declarações muito gerais – como “a Constituição proíbe o tratamento discriminatório em razão da opção religiosa” – até declarações bem menos gerais, ou até concretas – como “a lei exige que a Acme Corporation indenize John Smith pelo acidente de trabalho que sofreu em fevereiro último”. Essas proposições são muitas vezes avaliadas como verdadeiras ou falsas – mas há quem sustente que elas podem ser mais bem descritas como “bem fundadas” ou “infundadas”; todavia essa distinção não traz qualquer acréscimo à discussão.

55 Na divergência empírica, por exemplo, juristas concordariam que a velocidade máxima no Estado da Califórnia é de 90 km/h, uma vez que há, na lei de trânsito, uma afirmação expressa nesse sentido; todavia poderiam discordar desse limite se não houvesse a mesma afirmativa. Diferentemente é a divergência teórica, pois aqui parece haver um acordo entre os juristas sobre o que “dizem” a legislação e as decisões judiciais; mesmo assim, discordam quanto àquilo que a lei de trânsito realmente é, uma vez que parece haver uma discussão no sentido de saber se o corpus do Direito escrito ou o conjunto de decisões judiciais acabam por esgotar ou não os fundamentos pertinentes ao Direito. Desse modo, a divergência teórica é bem mais complexa do que uma mera discussão sobre quais palavras estão presentes nos códigos, sendo bem mais problemática.

Page 135: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

135

como as legislativas, as câmaras municipais e os tribunais, decidiram no passado”

(DWORKIN, 1999:10). Destarte, as questões sobre os fundamentos do Direito poderiam ser

resolvidas através de uma visita aos arquivos que guardam essas decisões. E mais, não haveria

sentido na divergência teórica sobre o Direito:56 toda divergência seria aparente, estar-se- ia

deixando de compreender o que o Direito é, para perder tempo discutindo o que o Direito

deveria ser;57 em outras palavras, seria uma discussão política travestida de discussão

jurídica.58 Os partidários dessa tese devem enfrentar duas perguntas: (1) não deveriam os

juízes se limitar a aplicar o Direito existente, deixando para os legisladores – que exercem

uma atividade visivelmente política – o trabalho de aperfeiçoamento?; e (2) o que fazer

quando, no curso de um processo, depara-se com uma ausência de decisão institucional

passada?59

56 Todavia, a obra dworkiana (1999) sustenta a tese da divergência teórica do Direito; para tanto, o autor

apresenta e reconstrói alguns casos bem populares desse tipo de divergência: (1) Caso Elmer (Riggs v. Palmer – 1889); (2) Caso Snail Darter (Tennessee Valley Authority vs. Hill – 1978); (3) Caso McLoughlin vs. O’Brian – 1983; e (4) Caso Brown vs. Board of Education of Topeka – Kansas – 1954.

57 Dworkin lembra que essa influência do positivismo – marcado por um forte arquimedianismo (ver nota abaixo) – pode ser sentida também no universo da Literatura, no qual alguns estudiosos buscam desesperadamente desenvolver teorias que separem a interpretação da crítica literária. Mas, para uma hermenêutica crítica, isso não é um problema: “[a] interpretação de um texto tenta mostrá-lo como a melhor obra de arte que ele pode ser, e o pronome acentua a diferença entre explicar uma obra e transformá-la em outra. Talvez Shakespeare pudesse ter escrito uma peça melhor com base nas fontes que utilizou para Hamlet e, nessa peça melhor, o herói teria sido um homem de ação mais vigoroso. Não decorre daí, que Hamlet, a peça que ele escreveu, seja realmente como essa outra peça. Naturalmente, uma teoria da interpretação deve conter uma subteoria sobre a identidade de uma obra de arte para ser capaz de distinguir entre interpretar e modificar uma obra” (2001:223, grifos no original). O que se quer, então, afirmar é que, partindo dessas premissas, desaparecem os muros que separam uma teoria da interpretação de uma determinada interpretação. Isto é: “Não há mais uma distinção categórica entre a interpretação, concebida como algo que revela o real significado de uma obra de arte, e a crítica, concebida como avaliação de seu sucesso ou importância. Ainda resta uma distinção, pois sempre existe uma diferença entre dizer quão boa pode se tornar uma obra e dizer quão boa ela é. Mas convicções valorativas sobre a arte figuram em ambos os julgamentos” (DWORKIN, 2001:227).

58 Dworkin (2004:2) chama de arquimedianismo (archimedeanism) as leituras que buscam separar de maneira rígida o Direito da Política e da Moral. Mas o arquimedianismo não é um privilégio do Direito, encontrando adeptos na tradição do Positivismo Filosófico e, por isso mesmo, representando uma leitura popular na Ciência, nas Artes, na Política, na Filosofia, etc. O argumento central e geral parte da afirmação da possibilidade de se vislumbrar uma metateoria que seria capaz de explicar a prática específica que eles estudam. Assim, em um nível, ter-se-iam as discussões sobre se algo ou uma idéia pode ser certo/errado, legal/ilegal, verdadeiro/falso, belo/feio; e, em outro nível mais elevado, o debate conduziria à definição desses conceitos e categorias, isto é, as discussões versariam sobre o que seja a beleza, a verdade, o justo, etc. Em sua discussão com Hart (1994), Dworkin (2004) demonstrará como o seu antecessor poderia muito bem se considerar pertencente a essa linha de pensamento, uma vez que não haveria como uma Teoria do Direito ser meramente descritiva, isto é, isenta de juízos de valor, como também esperava Kelsen (1999). Como já visto com Gadamer (2001), a atividade de valoração comporia as pré-compreensões não podendo ser afastada.

59 Dworkin (1999:12) lembra que, no senso comum existente na sociedade, os repertórios de legislação e de jurisprudência conteriam normas jurídicas e interpretações capazes de abarcar cada questão que se possa trazer à presença de um juiz. Todavia, os acadêmicos partidários da tese do Direito como simples questão de fato reconhecem a possibilidade de lacuna, isto é, de inexistência de qualquer decisão institucional anterior – seja ela legislativa ou judicial. Nesse caso, a solução vem pela via do uso do discernimento do magistrado, que cria uma nova norma, preenchendo assim a lacuna, e aplica-a retroativamente ao caso pendente de decisão.

Page 136: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

136

Importante lembrar que as teorias semânticas do Direito – combatidas no

capítulo anterior da presente investigação – são teorias que se apóiam nesse ponto de vista;

portanto compreendem o Direito como simples questão de fato (DWORKIN, 1999:38;

LAGES, 2001:38; ARAÚJO, 2001:120; SOUZA CRUZ, 2003:27). Nessa linha, existiriam

regras que estabeleceriam a atribuição de significado a uma determinada palavra; os

advogados, os magistrados e outros juristas, compartilhando dessas regras, poderiam decidir

quando uma proposição jurídica seria verdadeira ou falsa.

As teorias positivistas, dessa forma, podem perfeitamente ser

compreendidas como exemplos de teorias semânticas. Para demonstrar, em princípio, essa

afirmativa, Dworkin ilustra-a com as duas teorias positivistas mais populares da tradição do

Direito anglo-saxão: (1) a teoria de Austin e (2) a teoria de Hart.60

Para Austin (século XIX), uma proposição jurídica para ser verdadeira deve

transmitir corretamente o comando do soberano, isto é, alguma pessoa ou grupo de pessoas

“cujas ordens costumam ser obedecidas e que não tenha o costume de obedecer a ninguém”

(DWORKIN, 1999:41). Fica clara, portanto, a noção de que o Direito é compreendido como

um produto de decisões históricas tomadas por aqueles que detêm o poder político.61 Todavia,

inexistindo regra expressa, o soberano confere poder aos juízes para que criem normas dentro

de uma margem de discricionariedade.

Por sua vez, a teoria de Hart é bem mais elaborada: (1) o Direito –

diferentemente do que entendia Austin – como prática social, é constituído por um conjunto

de regras; e (2) essas regras são organizadas a partir de tipos lógicos (regras primárias e regras

secundárias).

Mas o que se quer dizer quando se afirma uma distinção entre as regras?

Hart (1994:91) responde a essa pergunta apresentando o seguinte esquema: As regras primárias são aquelas que concedem direito ou impõem obrigações aos membros da comunidade. As de direito penal que nos impedem de roubar, assassinar ou dirigir em velocidade excessiva são bons exemplos de regras primárias. As regras secundárias são aquelas que estipulam como e por quem tais regras podem ser estabelecidas, declaradas legais, modificadas ou abolidas. As regras que determinam como o Congresso é composto e como ele promulga leis são exemplos de regras secundárias (DWORKIN, 2002:31).

60 Apesar de Dworkin inicialmente considerar a teoria de Hart uma forma de teoria semântica, na seqüência de

sua explicação, ele acaba por afirmar que essa mesma teoria pode ser considerada uma forma de convencionalismo moderado.

61 Um problema surge quando se tem por base uma sociedade moderna: o controle político é pluralista e sujeito a mutabilidade, o que torna impossível identificar a pessoa ou grupo responsável pelo controle radical. Outra crítica que pode ser feita é que Austin, ao contrário de Hart, fundamenta o dever de obedecer unicamente na capacidade e na vontade do soberano, que titulariza o poder de causar dano àqueles que desobedecerem; desse modo, não se poderia diferenciar o Direito das ordens gerais de um gangster (DWORKIN, 2001d:122).

Page 137: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

137

Marcando um outro grande passo para a Teoria do Direito, Hart ataca a

compreensão de Direito de Austin. Para tanto, reconhece uma distinção importante entre a

situação de ser obrigado (being obliged) a alguma coisa e a situação de ter a obrigação

(being obligated) de fazer algo. Sendo assim, [e]ntre outras coisas, uma regra difere de uma ordem por ser normativa, por estabelecer um padrão de comportamento que se impõe aos que a ela estão submetidos, para além da ameaça que pode garantir sua aplicação. Uma regra nunca pode ser obrigatória somente porque um indivíduo dotado de força física quer que seja assim. Ele deve ter autoridade para promulgar essa regra ou não se tratará de uma regra; tal autoridade somente pode derivar de outra regra que já é obrigatória para aqueles aos quais ele se dirige (DWORKIN, 2002:32). Conforme o exemplo de Hart (1994:92-93), pode-se distinguir uma ordem

de um oficial de justiça que desapropria um determinado cidadão de seus bens, da ameaça

feita por um assaltante armado.62 Assim, a obrigatoriedade de uma regra origina-se ou do fato

de ela ter sido promulgada de acordo com uma regra secundária (logo, porque é válida) ou em

razão de esse grupo reconhecer essa regra como obrigatória, como um padrão de conduta

através de suas práticas (logo, porque é aceita).

Haveria ainda uma regra secundária fundamental, chamada por Hart

(1994:104) de regra de reconhecimento, que estabelece como as regras jurídicas podem ser

identificadas. Em Hart, as proposições jurídicas não são verdadeiras apenas em razão da

autoridade das pessoas que costumam ser obedecidas; mas, principalmente, por representarem

uma convenção social aceita pela sociedade, que atribui a um sistema de regras que foram

outorgadas por indivíduos ou grupos o poder de criar leis válidas (DWORKIN, 1999:42).63

62 Também em Kelsen, esse exemplo aparece, quando o mesmo se refere à distinção entre o Estado e um bando

de salteadores, e remete à questão levantada antes por Santo Agostinho, em sua Civitas Dei. Para o jurista austríaco, a distinção se funda no fato de que é atribuído ao comando do órgão jurídico – o que não acontece no ato do salteador de estradas – o sentido objetivo de uma norma vinculadora de seu destinatário; em outras palavras: interpreta-se o comando de um, mas não o comando do outro, como uma norma objetivamente válida (KELSEN, 1999:49). Tal distinção processa-se de acordo com a metodologia kelseniana de separação do ser e do dever-ser, de modo que, enquanto a coação do salteador de estradas se apresenta como um será, ela opera no mundo do ser, ao passo que a norma estabelece algo que deve ser executado, portanto ligado ao plano do dever-ser (KELSEN, 1999:49-50). Não pode ser olvidado ainda que, para Kelsen, tanto o ato de um tribunal quanto o ato de qualquer órgão estatal ao aplicar o direito apresentam-se como uma norma individual dotada de um sentido objetivo. É por isso que, num caso, o ato pode ser visto como uma ameaça – isto é, um delito, um ato antijurídico – ao passo que em outro, como um ato jurídico – isto é, a execução de uma sanção pelo Estado (KELSEN, 1999:52).

63 Entretanto, o fato de a teoria desenvolvida por Hart ser dotada de uma maior complexidade não a isenta de críticas, pois ainda deixa em aberto uma série de indagações, sendo a principal a seguinte: “Em que consiste a ‘aceitação’ de uma regra de reconhecimento? Muitos oficiais da Alemanha nazista obedeciam às ordens de Hitler como se fossem leis, mas só o faziam por medo. Isso significa que aceitavam uma regra de reconhecimento que o autorizava a criar leis? Se assim for, então a diferença entre a teoria de Hart e a de Austin torna-se ilusória, porque então não haveria diferença entre um grupo de pessoas que aceita uma regra de reconhecimento e outro que, por medo, simplesmente adota um modelo forçado de obediência. Se não foi assim, se a aceitação exige algo além da mera obediência, então parece possível afirmar que não havia direito na Alemanha nazista, que nenhuma proposição jurídica era verdadeira, lá ou em muitos outros lugares nos

Page 138: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

138

Ainda em Hart (1994:148-149) pode ser encontrada a afirmação de que, não

havendo decisão pretérita (legislativa ou jurisdicional) sobre uma determinada situação, o

magistrado, diante de um caso concreto, estaria autorizado a criar uma norma e aplicá-la.

As teorias de Austin e de Hart, entretanto, apenas representam

exemplificações populares da tradição do positivismo jurídico, que, em todas as suas versões,

parece trazer um núcleo comum, identificado por Dworkin (2002:27-29). Para essas teorias:

(1) o Direito é formado exclusivamente por um conjunto de regras, que podem ser

diferenciadas das demais regras – por exemplo, as regras de natureza moral – por meio de um

critério que, ironicamente, pode ser chamado de teste de pedigree da regra;64 (2) o conjunto

de regras deve abranger, na maior medida possível, as relações jurídicas existentes em uma

sociedade, mas no caso de lacuna – isto é, quando se está diante de um caso difícil –, o

magistrado fica autorizado a decidir com base discricionária, inclusive indo além do Direito

na busca desse novo padrão de orientação; e (3) na ausência de regra jurídica válida,

compreende-se que não há obrigação jurídica; logo, quando o magistrado, no exercício de sua

discricionariedade, decide um caso difícil, ele não está fazendo valer um direito

correspondente à matéria controversa; ele está, sim, criando normas jurídicas.65

Mas o positivismo não é a única espécie de teoria semântica do Direito. Existem

mais duas escolas bastante populares e que se apresentam como rivais da primeira: (1) a

escola do Direito Natural – entendendo aqui, sob tal título, diversos agrupamentos – sustenta

que os juristas seguem critérios que não são inteiramente factuais, mas principalmente de

ordem “moral” – termo entendido em amplitude de significado, haja vista, por exemplo, a

quais a maioria das pessoas afirmaria a existência de um direito, ainda que malévolo ou impopular. E assim a teoria de Hart não seria capaz de apreender, afinal, o modo como todos os advogados usam a palavra ‘direito’” (DWORKIN, 1999:43). Habermas (2002:12-13) destaca ainda uma distinção importante que escapa à tese de Hart: a diferença entre aceitação e aceitabilidade racional. Hart, assumindo a postura do observador sociológico, descreveu o Direito existente em uma sociedade como se o mesmo fossem jogos de linguagem: “Tal como a gramática de um jogo de linguagem, também a ‘regra cognitiva’ [ou seja, a sua regra de reconhecimento] enraíza-se numa práxis, que um observador só pode constatar como fato, enquanto ela representa, para os que dela participam, uma evidência cultural manifesta [...]” (HABERMAS, 2002:13). Essa explicação apenas corresponde ao fato de os integrantes dessa sociedade estarem “convictos” de suas normas; mas, ao deixar em aberto a questão acerca do sentido de justificação das mesmas, adota-se uma postura irracionalista, ou seja, esquece-se das pretensões de validade que devem ser aceitas de maneira racional.

64 Tomando como base a teoria de Austin, Dworkin mostra que o teste de pedigree seria a afirmação de que o Direito é aquilo que o soberano diz ser; correspondentemente, na tese sustenta por Hart, a regra de conhecimento desempenhará esse papel. Apesar de silente no texto, ao lançar um olhar sobre a teoria kelseniana, pode-se concluir que a norma fundamental seria a candidata ao teste.

65 Para tanto, basta observar a postura assumida por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito, afirmando que a decisão do tribunal é discricionária, mas permaneceria como jurídica desde que estivesse incluída dentro da moldura de interpretações possíveis (1999:390). Contudo, após a edição de 1960, Kelsen dá uma guinada completamente diferente em sua teoria – um giro decisionista, ao admitir que o tribunal possa escolher uma interpretação que se situe fora dessa moldura interpretativa (1999:392-395). Como bem afirma Cattoni de Oliveira (2001:51), tal posicionamento coloca em “panne” a teoria kelseniana, pois rompe com o postulado metodológico da separação entre teoria e sociologia do Direito.

Page 139: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

139

existência de defensores de uma teoria jurídica apoiada por razões de natureza até mesmo

religiosa. Uma versão radical identifica o Direito com a justiça, o que significa que nenhuma

proposição jurídica injusta pode ser considerada verdadeira.66 Contudo, versões menos

radicais, por outro lado, afirmam que a Moral é, às vezes, relevante para a verdade das

proposições jurídicas;67 (2) a escola do realismo jurídico, desenvolvida nos Estados Unidos

no início do século XX, afirma que o Direito não existe – lembrando o Justice Holmes, resulta

apenas daquilo que o juiz tomou em seu café da manhã68 – sendo apenas diferentes tipos de

previsões. Contudo, [...] mesmo assim compreendido, o realismo permanece extremamente implausível enquanto teoria semântica. Pois raramente é contraditório – na verdade, é até comum – que os advogados prevejam que os juízes cometerão um erro a propósito do direito, ou que os juízes manifestam seu ponto de vista sobre o direito para acrescentar, em seguida, que esperam que ele venha a ser modificado (DWORKIN, 1999:45). O ataque às teorias semânticas – ou ao aguilhão semântico (semantic sting),

como referido por Dworkin (1999:55) – dá-se por via da interpretação do Direito,69 ou

melhor, por via da assunção de uma atitude interpretativa para com o Direito. Para explicar

melhor essa tese, Dworkin (1999:57) parte do exemplo das “regras de cortesia”, segundo as

66 Dworkin (1999:44) lembra que essa corrente radical é bastante implausível e freqüentemente cai em

contradições: “Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, muitos juristas consideram o imposto de renda progressivo injusto, por exemplo, mas nenhum deles põe em dúvida o fato de que a lei desses países fixa o imposto a taxas progressivas”.

67 “Sugerem, por exemplo, que quando uma lei permite diferentes interpretações, como no caso Elmer, ou quando os precedentes são inconclusivos, como no caso da sra. McLouglin, a interpretação que foi moralmente superior será a afirmação mais exata do direito” (DWORKIN, 1999:44).

68 Interessante notar que essa afirmação de que o magistrado é livre totalmente para decidir, indiferentemente do que pensam seus demais pares, ou mesmo os teóricos jurídicos, ainda encontra acolhimento no Brasil, haja vista o voto do Min. Humberto Gomes de Barros, do STJ, no AgReg em ERESP n° 279.889-AL: “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico - uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja” (grifos nossos).

69 Como lembra Araújo (2001:121), Dworkin pretende superar o seguinte dilema: “Ou advogados, apesar das aparências, realmente aceitam, em linha gerais, os mesmos critérios para decidir quando uma afirmação sobre o direito é verdadeira, ou não pode existir absolutamente nenhum verdadeiro acordo ou desacordo sobre o que é o direito” (1999:56). Dworkin (1999:55) explica que seria razoável uma discussão somente quando se tratar de casos limítrofes – para exemplificar, ele transporta a questão para o universo literário: pode-se discutir se tal obra se trata de um livrinho ou um panfleto, todavia não podemos estar em desacordo quanto a se Moby Dick é ou não livro, apenas porque, na opinião pessoal de um dos debatedores, esse não considera romance uma forma de livro. A solução, então, na convergência das afirmações que não necessita ser total em todas as fases da interpretação.

Page 140: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

140

quais, por exemplo, os camponeses devem tirar seus chapéus quando estiverem diante dos

nobres. Essas regras passariam por uma espécie de ciclo histórico, começando pela

compreensão como se fosse um tabu. Portanto, a regra seria imutável e indiscutível. Todavia,

em seguida, pode ser observado o começo de uma atitude interpretativa por parte dos

membros daquela comunidade: em um primeiro momento, tem-se a compreensão de que não

apenas a regra existe, mas apresenta uma finalidade; para, em seguida, compreenderem que as

regras devem se adaptar a essa finalidade – desse modo, se tornam não apenas mutáveis, mas

também interpretáveis – o que conduz ao fim de um processo de aplicação mecânica dessas

regras de cortesia.70

Dessa forma, não é possível dissociar as práticas sociais – mesmo a

aplicação de regras – de uma atitude interpretativa. Mas existem diversas formas de

interpretação, podendo ser enunciadas outras formas, como: a conversacional, a científica e a

artística (ARAÚJO, 2001:121). A conversacional é intencional. Atribui significado a partir dos supostos motivos, intenções e preocupações do orador, e apresenta suas conclusões como afirmações sobre a interpretação deste ao dizer o que disse. A interpretação científica apresenta-se como uma interpretação causal, o cientista começa por coletar dados, para depois interpretá-los. A interpretação artística, por sua vez, tem por finalidade justificar um ponto de vista acerca do significado, tema ou propósito de determinada obra artística: um poema, uma peça ou uma pintura, etc., apresentando-se como uma interpretação construtiva, preocupada essencialmente com o propósito, não com a causa. Assim, do ponto de vista construtivo, a interpretação criativa é um caso de interação entre propósito e objeto (LAGES, 2001:39, grifos nossos). A partir desse esquema, portanto, é possível compreender que a

interpretação das práticas sociais assemelha-se mais à interpretação artística71 – interpreta-se

algo criado por pessoas, mas que representa uma entidade distinta delas –72 e é ainda uma

forma de interpretação construtiva. Assim,

70 “Quando essa atitude interpretativa passa a vigorar, a instituição da cortesia deixa de ser mecânica; não é mais

a deferência espontânea a uma ordem rúnica. As pessoas agora tentam impor um significado à instituição – vê-la em sua melhor luz – e, em seguida, reestruturá-la à luz desse significado” (DWORKIN, 1999:58, grifo no original).

71 A partir da exigência da interpretação artística de tratar o objeto ou prática como o melhor possível, todavia, não decorre a afirmação de que o intérprete poderá fazer ou compreender o que bem quiser, pois lembrando o princípio gadameriano da história efetual, tem-se que “[...] a história ou a forma de uma prática ou objeto exerce uma coerção sobre as interpretações disponíveis destes últimos [...]” (DWORKIN, 1999:64). Vale, ainda, lembrar que a experiência artística é, também, para Gadamer uma referência importante. Desse modo, o autor faz uso dela para iniciar a explicação sobre a experiência hermenêutica: “A obra de arte tem, antes, o seu verdadeiro ser em se tornar uma experiência que irá transformar aquele que a experimenta. O ‘sujeito’ da experiência da arte, o que fica e persevera, não é a subjetividade de que a experimenta, mas a própria obra de arte” (GADAMER, 2001:32).

72 Algumas teorias da interpretação jurídica, contudo, ainda parecem ter como referência a interpretação conversacional, remontando ao pensamento da hermenêutica pré-gadameriana ou aos estudos de Betti. Assim, essa tese compreende mal, como já visto, a própria atividade de interpretação: no caso das práticas sociais, portanto, a atividade de interpretação deve sim conduzir a uma construção do melhor objeto possível, isto é, identificar uma interpretação que melhor satisfaça a finalidade da regra; não pode, portanto, se limitar a busca

Page 141: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

141

Dworkin estabelece três etapas de interpretação, com a finalidade de tornar a interpretação construtiva instrumento apropriado ao estudo do direito enquanto prática social. Observe-se apenas que a perspectiva aqui é analítica, não havendo diferenciação em graus. Primeiro, de acordo com Dworkin, deve haver uma etapa pré-interpretativa, na qual são identificados as regras e os padrões que se considerem fornecer o conteúdo experimental da prática. Mesmo na etapa pré-interpretativa é necessário algum tipo de interpretação. Em segundo lugar, deve haver uma etapa interpretativa em que o intérprete se concentra numa justificativa geral para os principais elementos da prática identificada na pré-interpretativa. Isso vai consistir numa argumentação sobre a conveniência ou não de buscar uma prática com essa forma geral, raciocinar no sentido de buscar formar um pensamento sistemático sobre determinada matéria. A etapa pós-interpretativa ou reformuladora, a terceira e última etapa, consiste na etapa na qual o intérprete ajusta sua idéia daquilo que a prática “realmente” requer para melhor servir à justificativa que ele aceita na etapa interpretativa (LAGES, 2001:40).73

Em acréscimo à idéia apresentada acima, tem-se a noção de paradigma

jurídico, que complementa a interpretação construtiva (DWORKIN, 1999:88-89). Apesar de

mutáveis no tempo, os paradigmas buscam estabilizar a tensão entre realidade e idealidade

(CATTONI DE OLIVEIRA, 2003:119), uma vez que fornecem o compartilhamento de uma

determinada “percepção” pressuposta do Direito.74 Desse modo, paradigmas fixam

interpretações, moldando a visão de uma comunidade a ele submetida, de tal modo que a

rejeição a um paradigma, muitas vezes, pode ser lida por essa comunidade como um erro

extraordinário.

O Direito – como um conceito interpretativo – exige, portanto, por parte da

comunidade, um consenso inicial no sentido de estabelecer quais práticas sociais são

consideradas jurídicas (nível pré-interpretativo).75 Nessa perspectiva, pode-se compreender

como Direito o “sistema de direitos e responsabilidade que respondem a [um] complexo

padrão: autorizam a coerção porque decorre de decisões anteriores do tipo adequado”

(DWORKIN, 1999:116). Todavia, esse conceito é provisório. Ele levanta uma exigência no

da intenção do autor – como querer os originalistas, principalmente, no Direito norte-americano –, como forma de garantia de objetividade da interpretação, ainda assim, essa busca se pautaria por escolhas que o intérprete fez no sentido de compreender melhor o seu objeto, o que nada mais é do que a aplicação da interpretação construtiva; por fim, não se pode nem tomar uma prática social como uma obra de um autor determinado, nem atribuí-la a ninguém, e com isso, lançar mão de uma interpretação científica, pois uma prática social para ser compreendida exige uma atitude interna, condizente com a condição de um participante dessa prática, não havendo lugar para uma simples descrição (DWORKIN, 2004:5).

73 Araújo (2001:122) e Souza Cruz (2003:30-31) apresentam excelentes esquemas, que podem ser tomados como complementares a esse. Segundo este último autor, através da interpretação construtiva Dworkin supera o aguilhão semântico inerente ao positivismo, “[...] uma vez que percebe haver elemento de mutação temporal no conceito interpretativo do Direito, próprio do ciclo paradigmático. Em outras palavras, a comunidade jurídica não possui um conjunto uniforme de compreensões sobre as proposições jurídicas, mas, ao contrário, tais compreensões se modificam à medida que a sociedade se modifica também”.

74 Sobre do que se entende por paradigma e “paradigmas jurídicos” ver o primeiro capítulo da presente pesquisa. 75 Em sentido contrário, para o aguilhão semântico, a identificação dessas práticas acontece por meio de uma

definição comum daquilo que necessariamente configura um sistema jurídico, bem como das instituições que o constituem (DWORKIN, 1999:114; ARAÚJO, 2001:123).

Page 142: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

142

sentido de proceder a uma análise mais detalhada de três concepções76 do Direito:77 o

convencionalismo, o pragmatismo e o Direito como integridade.

O convencionalismo78 pode ter a sua tese central apresentada da seguinte

forma: [...] a força coletiva só deve ser usada contra o indivíduo quando alguma decisão política do passado assim o autorizou explicitamente, de tal modo que advogados e juízes competentes estarão todos de acordo sobre qual foi a decisão, não importa quais sejam suas divergências em moral e política (DWORKIN, 1999:141). Nessa leitura, o Direito é dependente de convenções sociais que irão

determinar quais instituições gozam do poder de elaborar as leis e como elas podem fazer

isso. Tudo estaria resumido ao respeito às convenções do passado e a sua aplicação,

considerando a conclusão a que chegaram e nada mais. Mesmo assim, tal concepção

reconhece que não haverá um Direito completo, capaz de abarcar toda a complexidade da vida

social, uma vez que reconhece a possibilidade de que novos problemas apareçam. A solução,

portanto, passa pela afirmação da discricionariedade do magistrado no momento de aplicação

jurídica: uma vez que se reconhece que nenhuma das partes titulariza direitos capazes de

amparar suas pretensões – já que os únicos direitos que podem contar são aqueles

76 Deve-se atentar para a distinção dworkiana entre os termos concepção e conceito: “o contraste entre conceito e

concepção é aqui um contraste entre níveis de abstração nos quais se pode estudar a interpretação da prática” (1999:87). Nessa lógica, tem-se que um conceito possuiria um conteúdo aberto que admite diferentes concepções, segundo uma perspectiva tomada. Falar em teoria sobre o conceito de Direito seria um retorno à tese semântica que justamente pretende ser combatida; a concepção de Direito, portanto, não está pautada sob regras básicas da linguagem de observação obrigatórias a todos que desejam fazer-se entender, mas antes disso, em uma compreensão interpretativa, temporal, que se mantém graças a um padrão de acordo e desacordo.

77 “As concepções do direito aprimoram a interpretação inicial e consensual que [...] proporciona nosso conceito de direito. Cada concepção oferece as respostas relacionadas a três perguntas colocadas pelo conceito. Primeiro, justifica-se o suposto elo entre o direito e a coerção? Faz algum sentido exigir que a força pública seja usada somente em conformidade com os direito e responsabilidade que ‘decorrem’ de decisões políticas anteriores? Segundo, se tal sentido existe, qual é ele? Terceiro, que leitura de ‘decorrer’ – que noção de coerência com decisões precedentes – é a mais apropriada? A resposta que uma concepção dá a essa terceira pergunta determina os direitos e responsabilidade jurídicos concretos que reconhece” (DWORKIN, 1999:117-118).

78 Dworkin (1999:152) identifica dois tipos de convencionalismo: estrito e moderado. O “convencionalismo estrito restringe a lei de uma comunidade à extensão explícita de suas convenções jurídicas, como a legislação e o precedente” (LAGES, 2001:42). Trata-se de uma concepção bastante restrita do Direito. Por outro lado, o convencionalismo moderado compreende o Direito de uma comunidade como incluindo tudo o que estiver dentro da extensão – mesmo que implicitamente – das convenções. Desse modo, o convencionalismo estrito declara a existência de uma lacuna e requer o exercício do poder discricionário do juiz – que por meio de padrões extrajurídicos, cria um novo direito. Para o convencionalismo moderado, não haveria necessidade de declarar a existência da lacuna; ainda que de maneira polêmica, afirma que há uma maneira “correta” de interpretar as convenções abstratas, de modo que elas possam responder a qualquer caso que surja (DWORKIN, 1999:155). Sob essa ótica, então, o convencionalismo moderado – que é assumido por Hart – pode-se mostrar como uma forma subdesenvolvida da tese do Direito como integridade – já que “não garante e nem mesmo promove o ideal das expectativas asseguradas, segundo o qual as decisões do passado somente serão tomadas por base para justificar a força coletiva quando sua autoridade e seus termos forem inquestionáveis sob a perspectiva das convenções amplamente aceitas (LAGES, 2001:42). Dessa forma, apenas o convencionalismo estrito será objeto das críticas de Dworkin.

Page 143: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

143

previamente fixados pelas convenções – os juízes devem encontrar alguma outra forma de

justificativa, para além do Direito, que apóie a decisão a ser tomada; todavia a questão

continua por demais aberta, assim eles poderão pautar-se por questões abstratas de justiça, ou

questões que se refiram ao interesse coletivo, ou mesmo uma justificativa que se volte para o

futuro. Daí extraem-se duas afirmativas pós-interpretativas do convencionalismo, a de que os juízes devem respeitar as convenções jurídicas em vigor em sua comunidade, a não ser em raras circunstâncias; e a de que não existe direito a não ser aquele que é extraído de tais decisões por meio de técnicas que são, elas próprias, questões de convenção, e que, portanto, em alguns casos não existe direito. Neste caso, devem os juízes exercitar o seu poder discricionário, utilizando padrões extra-jurídicos para fazer o que o convencionalismo considera ser um novo direito. Ao decidirem discricionariamente, os juízes convencionalistas criam novo direito aplicável de forma retroativa às partes envolvidas no caso (LAGES, 2001:41). Dworkin (1999:143-144) lembra que a concepção convencionalista

apresenta distinções em relação às teorias semântico-positivistas, que, por serem uma teoria

interpretativa, não fazem uso de um critério lingüístico para identificar o que é o Direito. No

entanto, essas últimas apresentam um traço de semelhança com a Teoria do Direito como

integridade, que é justamente o fato de ambas considerarem importantes as decisões tomadas

no passado para processo de compreensão dos direitos presentes. Mas será justamente no

modo como consideram essas decisões passadas que se encontra o seu traço distintivo.

O convencionalismo fracassa como interpretação da prática jurídica em

função do seu aspecto negativo – isto é, ao afirmar que “[...] não existe direito a não ser

aquele que é extraído de decisões por meio de técnicas que são, elas próprias, questões de

convenção” (LAGES, 2001:42). Esse fracasso decorre do fato de os magistrados se tornarem

mais dedicados às fontes convencionais (legislação e precedentes) do que lhes permite o

convencionalismo. Um juiz consciente de seu convencionalismo estrito perderia o interesse pela legislação e pelo precedente exatamente quando ficasse claro que a extensão explícita dessas supostas convenções tivesse chegado ao fim. Ele então entenderia que não existe direito, e deixaria de preocupar-se com a coerência com o passado; passaria a elaborar um novo direito, indagando qual lei estabeleceria a legislatura em vigor, qual é a vontade popular ou o que seria melhor para os interesses da comunidade no futuro (DWORKIN, 1999:159). Todavia, esse novo direito deverá guardar uma coerência com a legislatura

do passado. É justamente essa busca por coerência que pode explicar a preocupação com o

passado. Dworkin identifica duas formas de coerência: coerência de estratégia e coerência de

princípio. A primeira diz respeito à preocupação que qualquer um deve ter ao criar um novo

direito, no sentido de que esse se ajuste ao que foi estabelecido, ou ao que venha a ser no

futuro; o conjunto de regras deve funcionar conjuntamente, tornando a situação melhor. Já a

Page 144: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

144

coerência de princípio representa uma exigência de que os “[...] diversos padrões que regem o

uso estatal da coerção contra os cidadãos seja coerente no sentido de expressaram uma visão

única e abrangente da justiça” (LAGES, 2001:43).79 É neste ponto que o convencionalismo

mostra-se divergente da concepção do Direito como integridade: esta aceita a coerência de

princípio como uma fonte de direitos, aquele não: [...] o direito como integridade supõe que as pessoas têm direitos – direitos que decorrem de decisões anteriores de instituições políticas, e que, portanto, autorizam a coerção – que extrapolam a extensão explícita das práticas políticas concebidas como convenções. O direito como [integridade] supõe que as pessoas têm direitos a uma extensão coerente, e fundada em princípios, das decisões políticas do passado, mesmo quando os juízes divergem profundamente sobre seu significado. Isso é negado pelo convencionalismo: um juiz convencionalista não tem razões para reconhecer a coerência de princípio como uma virtude judicial, ou para examinar minuciosamente leis ambíguas ou precedentes inexatos para tentar alcançá-la (DWORKIN, 1999:164). Um crítico do convencionalismo, como no caso do jurista de Oxford, deve

ainda aclarar duas questões: (1) o pressuposto convencionalista segundo o qual qualquer

consenso alcançado deve ser visto como uma questão de convenção ou como uma questão de

convicção; e (2) a questão referente à segurança jurídica. Dworkin responde a essa primeira

pergunta através de uma analogia com o jogo de xadrez:80 no jogo, as regras são estabelecidas

por meio de convenção e, no Direito, por meio de convicção, entendida essa como a

necessidade de buscar uma fundamentação das práticas sociais à luz de uma teoria política.

Por isso, no caso do convencionalismo, [o] consenso que estabelece determinada convenção independe da convicção acerca do valor intrínseco de determinada regra, ou seja, uma proposição específica sobre a legislação, tida como verdadeira por convenção, prescinde de uma razão substantiva para a sua aceitação. Se o consenso é de convicção, qualquer ataque contra o seu argumento substantivo será um ataque contra a própria proposição. O consenso, de acordo com Dworkin, só vai durar enquanto a maioria dos juristas aceitar as convicções que o sustentam (LAGES, 2001:43).

79 “Um juiz que visa à coerência de princípio se preocuparia, de fato, como os juízes de nossos exemplos, com os

princípios que seria preciso compreender para justificar leis e procedentes do passado” (DWORKIN, 1999:163-164).

80 Dworkin (1999:167-168) reconhece que, com o passar dos tempos, as regras de um jogo podem sofrer mudanças; mesmo assim, há uma diferença quando essas regras foram aceitas como uma convenção. “Se um congresso mundial de xadrez se reunisse para reconsiderar as regras para os torneios futuros, os argumentos apresentados em tal congresso estariam claramente deslocados dentro de um jogo de xadrez, e vice-versa. Talvez o xadrez fosse mais estimulante e interessante se as regras fossem mudadas de modo a permitir que o rei avançasse duas casas em cada lance. Mas ninguém que pensasse assim traria a sugestão como um argumento de que o rei pode agora, como o determinam as regras, avançar duas casas por vez. Por outro lado, mesmo durante o jogo,os advogados muitas vezes pedem por mudanças de práticas estabelecidas. Alguns dos mais antigos argumentos que as intenções legislativas levam em conta foram apresentados a juízes no decorrer de processos. Importantes mudanças na doutrina do precedente também foram feitas no decorrer do jogo: juízes foram convencidos, ou se convenceram eles próprios, de que na verdade não estavam presos às decisões que seus predecessores haviam considerado obrigatórias. [...] não foram o resultado de acordos especiais com a finalidade de chegar a uma nova série de convenções” (1999:168).

Page 145: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

145

E aqui tem-se o fracasso da pretensão levantada pelos convencionalistas: a

convenção não é imprescindível ao Direito, bastando que o nível de acordo de convicção seja

alto o bastante em um momento dado para se permitir que o debate sobre as práticas jurídicas

possa ter continuidade.81 Além disso, uma análise das práticas pode demonstrar que os juízes,

ao decidirem, tratam as técnicas de interpretação das leis e de avaliação de precedentes como

princípios – e não como legados de uma tradição. Por isso mesmo, eles se apóiam em alguma

teoria política mais profunda. Quando acham essa teoria política não é mais suficiente, eles

elaboram teorias que lhes pareçam melhores (DWORKIN, 1999:169).

Quanto ao segundo problema (segurança jurídica), Dworkin afirma que a

previsibilidade que o convencionalismo alega conseguir é ilusória, pois a discricionariedade,

que constitui uma premissa interna a essa concepção, coloca em cheque a possibilidade de

estabilidade; a expectativa social de segurança (previsibilidade) projetada pelo

convencionalismo se desvanece completamente diante da subjetividade judicial (SOUZA

CRUZ, 2003:34).

Superada a concepção convencionalista, Dworkin avança para análise e

crítica do pragmatismo.82 Aqui tem-se nitidamente uma teoria interpretativa – não guardando

traços com as teorias semânticas – mais elaborada que o convencionalismo e que vem, a cada

dia, angariando mais adeptos. O convencionalismo e o pragmatismo possuem uma diferença

básica: o segundo afirma que as pessoas nunca têm direito a nada, a não ser à decisão judicial,

que, ao final, deve se revelar a melhor para a comunidade como um todo; e, por essa razão,

não necessita estar atrelada a nenhuma decisão política do passado (DWORKIN, 1999:186).

Agir como se as pessoas tivessem de fato algum direito pode ser justificado a longo prazo,

apenas porque esse modo de agir pode servir melhor à sociedade. Vale-se, portanto, de uma

“nobre mentira”: esses direitos como se representam uma estratégia, pois fazem a sociedade

crer que as pretensões juridicamente tuteladas são levadas em consideração. [Mas o] pragmatismo é uma concepção cética do direito porque rejeita a existência de pretensões juridicamente tuteladas genuínas, não estratégicas. Não rejeita a moral, nem mesmo as pretensões morais e políticas. Afirma que, para decidir os casos, os juízes devem seguir qualquer método que produza aquilo que acreditam ser a melhor comunidade

81 “A atitude interpretativa precisa de paradigmas para funcionar efetivamente, mas estes não precisam ser

questões de convenção. Será suficiente que o nível de acordo de convenção seja alto o bastante em qualquer momento dado, para permitir que o debate sobre práticas fundamentais como a legislação e o precedente possa prosseguir da maneira como descrevi no segundo capítulo, contestando os diferentes paradigmas um por um, como a reconstrução do barco de Neurath no mar, prancha por prancha” (DWORKIN, 1999:169).

82 Souza Cruz (2003:34-35) lembra que o pragmatismo aproxima-se do realismo jurídico, como o convencionalismo aproxima-se do positivismo, mas certamente é algo mais radical. O realismo jurídico compreende o Direito como uma criação social do Judiciário, voltando-se para uma perspectiva utilitarista na avaliação de direitos individuais e interesses comuns. Rejeita-se de plano a tentativa de desenvolver uma “jurisprudência dos conceitos” como faz o positivismo, tentando-se descobrir conceitos jurídicos puros.

Page 146: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

146

futura, e ainda que alguns juristas pragmáticos pudessem pensar que isso significa uma comunidade mais rica, mais feliz ou mais poderosa, outros escolheriam uma comunidade com menos injustiças, com uma melhor tradição cultural e com aquilo que chamamos de alta qualidade de vida. O pragmatismo não exclui nenhuma teoria sobre o que torna uma comunidade melhor. Mas também não leva a serio as pretensões juridicamente tuteladas. Rejeita aquilo que outras concepções do direito aceitam: que as pessoas podem claramente ter direitos, que prevalecem sobre aquilo que, de outra forma, asseguraria o melhor futuro da sociedade. Segundo o pragmatismo, aquilo que chamamos de direitos atribuídos a uma pessoa são apenas os auxiliares do melhor futuro: são instrumentos que construímos pra esse fim, e não possuem força ou fundamento independentes (DWORKIN, 1999:195). Assim, enquanto o juiz convencionalista deve ter os olhos voltados para o

passado, o olhar de um pragmático se remete ao futuro; podendo, para tanto, deixar de

respeitar a coerência de princípio com aquilo que outras autoridades públicas fizeram ou

farão. As decisões do passado são apenas expedientes de convencimento para uma decisão

previamente tomada e pautada por uma escolha política ou por valores de preferência do

julgador (SOUZA CRUZ, 2003:37). Por isso, no pragmatismo, parece desaparecer qualquer

separação entre legislação e aplicação judicial do Direito: o juiz, ao se posicionar

desvinculado de toda e qualquer decisão política do passado, pode decidir os casos concretos

aplicando um direito novo que ele mesmo criou. Nega-se, portanto, a necessidade de ser

observada uma coerência de princípio, já que não se reconhece a importância dessa, ainda

mais quando é polêmico e incerto qual seja a exigência de coerência a ser atendida.

Contra as questões levantadas pelas duas primeira concepções, Dworkin

apresenta a concepção do Direito como integridade. Ele lembra que a teoria política utópica e

a política comum compartilham dos seguintes alguns pontos – certos ideais políticos ou

virtudes, na linguagem do autor (1999:199): (1) equanimidade (fairness), que envolve a

questão de encontrar os procedimentos políticos que distribuem o poder político de maneira

adequada;83 (2) justiça (justice), que se preocupa com decisões que as instituições políticas

consagradas devem tomar, tenham ou não sido escolhidas com equidade;84 e (3) devido

processo legal adjetivo (procedure due process), que diz respeito a procedimentos corretos

para julgar se algum cidadão infringiu as leis estabelecidas pelos procedimentos políticos.85

83 Esses procedimentos atribuem a todos os cidadãos mais ou menos a mesma influencia sobre as decisões que os

governam. 84 “Se aceitarmos a justiça como uma virtude política, queremos que nossos legisladores e outras autoridade

distribuam recursos materiais e protejam as liberdade civis de modo a garantir um resultado moralmente justificável” (DWORKIN, 1999:200).

85 “[...] se o aceitarmos [o devido processo legal adjetivo] como virtude, queremos que os tribunais e as instituições análogas usem procedimentos de prova, de descoberta e de revisão que proporcionem um justo grau de exatidão, e que, por outro lado, tratem as pessoas acusadas de violação como devem ser tratadas as pessoas em tal situação”(DWORKIN, 1999:200-201).

Page 147: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

147

Todavia, existe ainda uma quarta virtude não compartilhada pela teoria

política utópica: a integridade,86 que, em uma primeira leitura, está relacionada com o clichê,

segundo o qual, casos semelhantes devem receber o mesmo tratamento. Apurando melhor

essa idéia, Dworkin sustentará que: [a] integridade torna-se um ideal político quando exigimos o mesmo do Estado ou da comunidade considerados como agentes morais, quando insistimos em que o Estado aja segundo um conjunto único e coerente de princípios mesmo quando seus cidadãos estão divididos quanto à natureza exata dos princípios de justiça e [equanimidade] corretos (1999:202). A integridade, como virtude, deve ser aplicada às virtudes da equanimidade,

da justiça e do devido processo legal adjetivo, de modo a exigir, respectivamente: (1) que os

princípios políticos necessários para julgar a suposta autoridade da legislatura sejam

plenamente aplicados, ao se decidir o que significa uma lei por ela sancionada; (2) que os

princípios morais necessários para justificar a substância das decisões do Legislativo sejam

reconhecidos pelo resto do Direito; e (3) que sejam totalmente obedecidos os procedimentos

previstos nos julgamentos e que se consideram alcançar o correto equilíbrio entre exatidão e

eficiência na aplicação de algum aspecto do Direito. Em face do exposto, dirá o autor: a

integridade interage com as demais virtudes, dotando-as de exigências que justificam a

coerência de princípio; logo não é estranho afirmar que a integridade “é a vida do direito tal

como conhecemos” (DWORKIN, 1999:203).

A integridade pode, no entanto, ser divida em dois princípios: um princípio

de integridade na legislação (legislative principle), que pede aos que criam o Direito por

legislação que o mantenham coerente quanto aos princípios; e um princípio de integridade na

aplicação judicial do Direito (adjudicative principle), que pede aos responsáveis por decidir o

que é o Direito, que o vejam e façam-no cumprir como sendo coerente nesse sentido. Assim, [o] segundo princípio explica como e por que se deve atribuir ao passado um poder especial próprio no tribunal, contrariando o que diz o pragmatismo, isto é, que não se deve conferir tal poder. Explica por que os juízes devem conceber o corpo do direito que administram como um todo, e não como uma série de decisões distintas que eles são livres para tomar ou emendar uma por uma, com nada além de um interesse estratégico pelo restante (DWORKIN, 1999:203). Resumindo a tese: a integridade nega que as manifestações do Direito

sejam meros relatos factuais voltados para o passado, como quer o convencionalismo; ou

programas instrumentais voltados para o futuro, como pretende o pragmatismo. Para o Direito

86 Sobre a integridade esclarece Dworkin (1999:202): “Essa exigência específica de moralidade não se encontra,

de fato, bem descrita no clichê de que devemos tratar os casos semelhantes da mesma maneira. Dou-lhe um título mais grandioso: é a virtude da integridade política. Escolhi esse nome para mostrar sua ligação com um ideal paralelo de moral pessoal”.

Page 148: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

148

como integridade, as afirmações jurídicas são, ao mesmo tempo, posições interpretativas

voltadas tanto para o passado quanto para o futuro (DWORKIN, 1999:272-273).87

Há um ponto que ainda suscita importantes comentários. Como afirmado

anteriormente, ao discorrer sobre as virtudes compartilhadas por uma teoria política comum e

uma teoria utópica, o professor norte-americano esclarece que a integridade seria dispensável

para uma teoria voltada para um Estado utópico, já que ela sempre estaria garantida em um

Estado que agisse de maneira perfeitamente justa e imparcial. Todavia, numa situação

comum, essas mesmas virtudes (equanimidade, justiça e devido processo legal adjetivo)

podem seguir caminhos opostos (DWORKIN, 1999:214). Algumas teorias buscam explicar

que não poderia haver conflitos.88 Mesmo assim, essas teorias são minoritárias, de modo que

a grande maioria adota um posicionamento intermediário: equanimidade e justiça são, até

certo ponto, independentes uma da outra. Nessa linha de raciocínio, muitas vezes, ter-se-ia

que escolher entre uma ou outra virtude.

Desse modo, se for tomado um conceito de equanimidade na política que

compreenda que cada pessoa ou grupo da comunidade deve ter um direito de controle, mais

ou menos igual, sobre as decisões tomadas pelo Legislativo; parece lógico afirmar que certas

questões não deveriam se apoiar em uma maioria numérica – desconsiderando as posições

minoritárias – mas poderiam ser mais bem resolvidas através de negociações e acordos que

permitissem uma representação proporcional de cada conjunto de opiniões no resultado final.

Nesse caso, tem-se um direito “conciliatório” segundo Dworkin (1999:216-217). Ter-se-ia,

portanto, que questões similares – como acidentes ou discriminações – deveriam receber um

87 “O direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu

enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram [...] em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. O direito como integridade deplora o mecanismo do antigo ponto de vista de que ‘lei é lei’, bem como o cinismo do novo ‘relativismo’. Considera esses dois pontos de vista como enraizados na mesma falsa dicotomia entre encontrar e inventar a lei. Quando um juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim uma proposta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência de princípio que a integridade requer” (DWORKIN, 1999:274).

88 “Alguns filósofos negam a possibilidade de qualquer conflito fundamental entre justiça e [equanimidade] por acreditarem que, no fim das contas, uma dessas virtudes deriva da outra. Alguns afirmam que, separada da [equanimidade] a justiça não tem sentido, e que em política, como na roleta dos jogos de azar, tudo aquilo que provenha de procedimentos baseados na [equanimidade] é justo. Esse é o extremo da idéia denominada justiça como [equanimidade]. Outros pensam que, em política, a única maneira de pôr à prova a [equanimidade] é o teste do resultado, que nenhum procedimento é justo a menos que tenda a produzir decisões políticas que sejam aprovadas num teste de justiça independentes. Esse é o extremo oposto, o da [equanimidade] como justiça” (DWORKIN, 1999:214).

Page 149: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

149

tratamento diferente, apoiado em bases arbitrárias.89 Mas tal situação não observa a coerência

de princípio, que é desejada pelo Direito como integridade. Aqui “[...] cada ponto de vista

deve ter voz no processo de deliberação, mas a decisão coletiva deve, não obstante, tentar

fundamentar-se em algum princípio coerente cuja influência se estenda então aos limites

naturais de sua autoridade” (DWORKIN, 1999:217). Além disso, uma decisão conciliatória

acaba por gerar mais injustiça do que aquela que pretende resolver.90 Mas não é uma questão

de justiça que pode fornecer o melhor argumento, condenando as decisões conciliatórias, mas

sim de integridade. De fato, se toda a legislação e os precedentes fossem reunidos, o

resultado, ainda assim, não seria um sistema de princípios únicos e coerentes. Mas, [s]e, por outro lado, insistirmos em tratar as leis decorrentes de um acordo interno como os atos de um único e distinto agente moral, poderemos então condená-los por sua falta de princípios, e teremos uma razão para argumentar que nenhuma autoridade deveria contribuir para os atos carentes de princípio de seu Estado. Portanto, para defender o princípio [da integridade na legislação], devemos defender o estilo geral de argumentação que considera a própria comunidade como um agente moral (DWORKIN, 1999:227). Uma sociedade que aceite a integridade como virtude se transforma,

segundo Dworkin, em um tipo especial de comunidade que promove sua autoridade moral

para assumir e mobilizar o monopólio da força coercitiva. Esse é o caso da comunidade de

princípios, que segue a seguinte idéia: Se as pessoas aceitam que são governadas não por regras explícitas, estabelecidas por decisões políticas tomadas no passado, mas por quaisquer outras regras que decorrem dos princípios que essas decisões pressupõem, então o conjunto de normas públicas reconhecidas pode expandir-se e contrair-se organicamente, à medida que as pessoas se tornem mais sofisticadas em perceber e explorar aquilo que esses princípios exigem sob novas circunstâncias, sem a necessidade de um detalhamento da legislação ou da jurisprudência de cada um dos possíveis pontos de conflito (DWORKIN, 1999:229). A integridade, portanto, funciona como um elemento de promoção da vida

moral e política dos cidadãos, fundindo circunstâncias públicas e privadas, além de criar uma

interpenetração dessas questões.91 A política ganha um significado mais amplo: transforma-se

em uma arena de debates sobre quais princípios a comunidade deve adotar como sistema, bem

89 “É claro que aceitamos distinções arbitrárias sobre certas questões: o zoneamento, por exemplo. Aceitamos

que estabelecimentos comerciais ou fábricas sejam proibidos em certas zonas e não em outras, e que se proíba o estacionamento de um dos dois lados da mesma rua em dias alternados. Mas rejeitamos uma divisão entre as correntes de opinião quando o que está em jogo são questões de princípio” (DWORKIN, 1999:217).

90 “Quem acredita que o aborto é assassinato pensará que a lei conciliatória sobre o aborto produz mais injustiça que uma proibição cabal, e menos que uma autorização ilimitada; quem acredita que as mulheres têm direito vai inverter essas opiniões. Assim, os dois lados têm uma razão de justiça para preferir uma solução que não seja a conciliatória” (DWORKIN, 1999:218-219). Outro exemplo, este sim bastante concreto, está relacionado às normas escravocratas norte-americanas: “[...] se contavam três quintos da população de escravos de um estado para determinar sua representação no Congresso e para proibir que este limitasse o poder original dos [E]stados de importar escravos, mas somente antes de 1808” (DWORKIN, 1999:223).

91 Com Habermas (1998), será possível compreender como público e privado representam elementos equiprimordiais e, por isso mesmo, complementares.

Page 150: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

150

como sobre que concepções de equanimidade, justiça e devido processo legal adjetivo devem

pressupor. Os direitos e deveres políticos dos membros dessa comunidade não se esgotam nas

decisões particulares tomadas pelas instituições, sendo dependentes do sistema de princípios

que essas decisões pressupõem e endossam.

Paralelamente ao princípio de integridade na legislação, tem-se a exigência

de integridade na aplicação judicial do Direito. Utilizando-se da noção de interpretação

criativa, Dworkin compreende a aplicação judicial do Direito a partir da metáfora do romance

em cadeia: aqui, tem-se um empreendimento coletivo. Cada juiz, tal qual cada romancista, é

responsável pela redação de um capítulo de uma obra já iniciada. Nessa lógica, ele deve

preocupar-se com a ligação do seu capítulo com o que já fora escrito e, concomitantemente,

garantir uma abertura para que o escritor seguinte possa dar continuidade ao

empreendimento.92 O magistrado não pode, portanto, descuidar-se do caso pendente de

julgamento; deve tratar todos os casos que lhe são apresentados como um hard case – isto é,

um caso difícil – e comprometer-se em uma empreitada para solucioná-lo à luz da integridade

do Direito.

O tópico que se segue pretende explorar um pouco mais a integridade na

aplicação judicial do Direito, reforçando a tese dworkiana da possibilidade de se encontrar

uma “resposta correta” para os casos difíceis; sem, contudo, apelar para uma

discricionariedade ou qualquer outra compreensão que autorize o magistrado a criar direitos

novos.

3.2.2. A tese da única “resposta correta”: o Juiz Hércules, o Romance em Cadeia e a

Comunidade de Princípios

A tese da única “reposta correta”93 é uma importante contribuição da teoria

de Dworkin para a compreensão do Direito democrático. O modo pelo qual se deu seu

desenvolvimento mostra uma resistência fundamental às teses sustentadas pelas concepções

do convencionalismo e do pragmatismo, principalmente no tocante à derrubada da tese da 92 Neste momento, a presente explanação preocupa-se apenas com trazer uma noção do romance em cadeia, uma

vez que a metáfora será explorada no tópico seguinte, o que tornaria redundante a discussão. 93 O presente trabalho faz uso da expressão resposta correta em vez de resposta certa, opção feita pelos

tradutores nacionais (DWORKIN. 2001:175), pois pode-se perceber que a resposta correta encerra em si uma pretensão de validade normativa (correção). Para melhor compreensão, ver as pesquisas de Habermas (2004; 1998) e Günther (1993).

Page 151: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

151

discricionariedade judicial, ancorando a legitimidade dos provimentos estatais na observância

da integridade do Direito.94

O ataque a essas teorias começa na década de 60, quando Dworkin analisa a

tese geral do positivismo: o Direto seria formado apenas por um sistema de regras.95 Todavia,

paralelamente às regras, pode-se perceber que os juristas utilizam um outro standard

normativo, os princípios96 – compreendidos aqui em seu sentido lato, que abrangem tanto os

princípios propriamente ditos quanto as chamadas diretrizes políticas (DWORKIN,

2002:36).97

Mas como compreender essa separação entre princípios e regras? Dworkin,

assumindo as conseqüências do giro lingüístico, afirma que a diferença entre princípios e

regras decorre simplesmente de uma ordem lógico-argumentativa e não morfológica, como,

por exemplo, defende Alexy (1998). Dessa forma, deve-se entender o transcurso do

pensamento dworkiano através dos principais momentos de sua construção.

No texto da década de 60, a questão é posta do seguinte modo: Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela oferece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso nada contribui para a decisão (DWORKIN, 2002:39). Outra característica das regras é que, pelo menos em tese, “todas as

exceções podem ser arroladas e o quanto mais o forem, mais completo será o enunciado da

94 Desde já, faz-se um esclarecimento: sustentar a possibilidade da “resposta correta” em momento algum está

relacionado à descoberta de uma única interpretação que solucione o caso concreto – pois, nesse sentido, estar-se-ia virando as costas para todos os ensinamentos de Gadamer, o que não é o caso. A “resposta” correta pode ser mais bem compreendida a partir de uma busca pela melhor interpretação para um caso concreto, levando em conta, para tanto, a integridade do Direito – isto é, todo o processo de compreensão dos princípios jurídicos ao longo da história institucional de uma sociedade, de modo a dar continuidade a essa história, corrigindo eventuais falhas, ao invés de criar novos direitos a partir da atividade jurisdicional. Uma versão modificada dessa crítica, como a levada adiante por Freitas (2003; 2004), somente se sustenta tomando o curso de uma interpretação axiológica do Direito, que converte princípios em valores e reduz o processo (dialético/discursivo) de aplicação do Direito à esfera da racionalidade solipsista do julgador, uma vez que Direito passa a ser tratado à luz de critérios de preferência e não ligado ao que seja licitude/ilicitude.

95 Trata-se do texto Model of Rules, publicado originalmente na Chicago Law Review, n. 35 (1967-1968), tendo sido depois republicado como o capítulo 2 da obra Levando os Direitos a Sério (com tradução para o português pela Editora Martins Fontes, em 2002).

96 Todavia, adianta-se que, diferentemente do que foi argumentado ao se apresentar a teoria de Alexy, Dworkin afirmará que: (1) não se reduz a questão de distinção entre princípios e regras a uma questão morfológica; (2) nem atribui-se a aplicação das regras a um raciocínio de subsunção e a aplicação de princípios a um método de ponderação; e (3) muito menos se procede a uma equiparação funcional entre princípios e valores. Tanto princípios como regras continuam a gozar de uma natureza deontológica, cuja aplicação procede mediante um juízo de adequabilidade, como observa Günther (1994) e Habermas (1998).

97 Deve-se alertar para o fato de que as traduções para a língua espanhola utilizam o termo normas como sinônimo de regras jurídicas, como faz Calsamiglia (1992:168-169), o que acaba por induzir à idéia errônea de que princípios não são normas jurídicas, mas sim ligados ao chamado Direito Natural.

Page 152: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

152

regra” (DWORKIN, 2002:40). As regras também não possuem a dimensão de peso ou

importância, de modo que, se duas regras entram em conflito, apenas uma delas fará a

subsunção ao caso concreto. A decisão de saber qual delas será aplicada e qual delas será

abandonada deve ser feita recorrendo-se às considerações que estão além das próprias regras.

Essas considerações versam, por exemplo, sobre os critérios clássicos de solução de

antinomias do positivismo (ou de cânones de interpretação): (1) o critério cronológico, em

que a norma posterior prevalece sobre a norma anterior; (2) o critério hierárquico, em que a

norma de grau superior prevalece sobre a norma de grau inferior; e (3) o critério da

especialidade, em que a norma especial prevalece sobre a norma geral. Assim, não se pode

dizer que uma regra é mais importante que outra como parte de um mesmo sistema de regras.

Logo, uma não suplanta a outra por ter uma importância maior no caso concreto (DWORKIN,

2002:43).

Já os princípios jurídicos, diferentemente das regras, não apresentam as

conseqüências jurídicas decorrente de sua aplicação ou de seu descumprimento. Eles não

pretendem, nem mesmo, estabelecer as condições que tornam a sua aplicação necessária; ao

contrário, eles enunciam uma razão que conduz a um argumento e a uma determinada direção.

Com relação aos princípios não há exceções, pois eles não são, nem mesmo em teoria,

susceptíveis de enumeração. Os princípios, então, possuem a dimensão de importância

relativa ao caso concreto que é parte integrante do seu conceito; assim, quando os princípios

estão em conflito, o juiz deve ponderar,98 levando em conta a força relativa de cada um deles,

devendo-se aplicar aquele que for mais adequado ao caso concreto, como se fosse uma razão

que se inclinasse para um posicionamento e não para outro (DWORKIN, 2002:43).99

98 Aqui cabe uma ressalva importante. Aleinikoff (1987) busca traçar um panorama da utilização da chamada

ponderação ou balanceamento, que os tribunais norte-americanos alegam adotar, a partir do início do século XX. Todavia, aponta que, em vários os casos, não é preciso vislumbrar a questão a partir da ótica do conflito entre interesses a serem ponderados; desse modo, ele assinala uma importante diferença que parece ser olvidada pelos seus defensores: nem sempre ponderar significaria algo como colocar interesses concorrentes (ou princípios) numa balança e sopesá-los. Dentro da tradição norte-americana, ponderar acaba por significar, ainda, refletir; de modo que a solução dos conflitos entre princípios envolve muito mais um exercício de reflexão que vai culminar com uma construção teórica acerca do princípio adequado do que um tratamento axiológico. Dirá Aleinikoff (1987:1001): “In sum, balancing is not inevitable. To balance the interests is not simply to be candid about how our minds – and legal analysis – must work. It is to adopt a particular theory of interpretation that requires justification”. Logo, há uma diferença importante no emprego do termo por um autor como Dworkin – que dele faz uso no sentido de realizar uma reflexão – e por outro como Alexy – que o utiliza no primeiro sentido.

99 Aqui, portanto, já é possível notar uma diferença fundamental na compreensão dworkiana acerca dos princípios para a tese sustentada por Alexy: tanto princípios como regras são enunciados deontológicos, isto é, visam ao que é devido; logo uma aplicação que preserve essa natureza deve observar a tese da bivalência – conforme será explicado mais à frente – caso contrário, a decisão que aplicasse gradualmente os princípios careceria de referências quanto à pretensão de correção da ação.

Page 153: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

153

Todavia, ao longo de seus estudos, Dworkin aprimorou e sofisticou essa

tese.100 Um crítica à proposta dworkiana de compreensão da relação entre regras e princípios

foi oferecida por Raz.101 Para ele, a dimensão de peso ou importância não seria um privilégio

dos princípios, aplicando-se também às regras. Um exemplo ilustra isso: uma pessoa poderia

aceitar tanto a regra moral que afirma que ele não deve mentir quanto a que prescreve que

deve cumprir suas promessas; mas, em ocasiões específicas, essas duas regras podem entrar

em conflito, de modo que se deve escolher entre elas com base no peso, importância ou outro

critério.

Porém, esse exemplo apresenta uma falha: Dworkin (2002:115) lembra que

seria muito difícil que alguém conseguisse estabelecer a priori quais são as normas morais

que irão reger sua vida. Trata-se, na realidade, de uma questão argumentativa e, em função

disso, dependente mais da aplicação de uma linha de conduta do que de regras fixas. Ele ainda

não nega que possa haver conflito entre regras; contudo esse conflito se processa em um plano

distinto – no plano da validade, ao invés de no plano da adequabilidade.102

Na realidade, uma das maiores preocupações do autor era, e continua sendo,

a distinção entre princípios (propriamente ditos) e as diretrizes políticas (polices): um

princípio prescreve um direito e, por isso, contém uma exigência de justiça, equanimidade,

devido processo legal, ou qualquer outra dimensão de moralidade; ao passo que uma diretriz

política estabelece um objetivo a ser alcançado, que, geralmente consiste na melhoria de

100 Dworkin (2002:43) reconhece que é muito difícil distinguir entre um ou outro standard. Logo, a questão fica

transferida não para uma construção semântica, mas sim pragmática, isto é, a separação se dará de acordo com a argumentação e a apresentação de razões pelos envolvidos na discussão, o que denota uma especial atenção com a dimensão pragmática da linguagem e do Direito. Uma observação importante diz respeito à compreensão que a dogmática jurídica brasileira vem desenvolvendo com relação às normas que apresentam cláusulas gerais. O alerta dworkiano (2002:45) é importante: “Palavras como ‘razoável’, ‘negligente’, ‘injusto’ e ‘significativo’ desempenham freqüentemente essa função. Quando uma regra inclui um desses termos, isso faz com que sua aplicação depende, até certo ponto, de princípios e [diretrizes] políticas que extrapolam a [própria] regra. A utilização desses termos faz com que essa regra se assemelhe mais a um princípio. Mas não chega a transformar a regra em princípio, pois até mesmo o mesmo restritivo desses termos restringe o tipo de princípios e [diretrizes] políticas dos quais podem depender as regras”. Assim, equivocam-se aqueles que afirmam que, por exemplo, o Código Civil vigente seja um “código principiológico”, tal afirmação traz uma contradição nos próprios termos (contradictio in adjecto); além do mais, tal técnica de redação de regras, tão elogiada por muitos juristas, apenas tem servido para reforçar a tese da discricionariedade dos juízes, que preenchem essas regras a partir de razões unilaterais e juízos de conveniência (NOJIRI, 1998:97); por isso tal construção encontra sérias objeções em uma compreensão procedimentalista do Estado Democrático de Direito.

101 Ver, RAZ, Joseph. Legal principles and the limits of Law. Yale Law Journal. n. 823 (1972). 102 “O meu ponto não é que ‘o direito’ contenha um número fixo de padrões, alguns dos quais são regras e

outros, princípios. Na verdade, quero opor-me à idéia de que ‘o direito’ é um conjunto fixo de padrões de algum tipo. Ao contrário, o que enfatizei foi que uma síntese acurada dos elementos que os juristas devem levar em consideração, ao decidirem um determinado problema sobre deveres e direitos jurídicos, incluirá proposições com a forma e a força de princípios e que, quando justificam suas conclusões, os próprios juristas e juízes, com freqüência, usam proposições que devem ser entendidas dessa maneira” (DWORKIN, 2002:119-120).

Page 154: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

154

algum aspecto econômico, político ou social da comunidade, buscando promover ou assegurar

uma situação econômica, política ou social considerada desejável (DWORKIN, 2002:36;

2002:141-142).

Princípios, lembra Galuppo (2002:186), estabelecem direitos individuais e

ligam-se a uma exigência universalizável, ao passo que diretrizes políticas fixam metas

coletivas, relacionadas sempre com o bem-estar de uma parcela da sociedade, mas nunca com

sua totalidade, haja vista a existência de diversas compreensões concorrentes de vida boa em

uma sociedade pluralista. O jurista de Oxford atribuirá o status de trunfos aos argumentos de

princípios, de modo que, em uma discussão, esses devem se sobrepor a argumentos pautados

em diretrizes políticas (2002:298).

Dessa forma, as teses que sustentam a discricionariedade judicial apontam

apenas para a ausência de regras, não de normas, quando diante de um caso difícil. Uma

análise da história institucional daquela sociedade pode indicar princípios jurídicos capazes de

fornecer soluções para o caso sub judice. Por essa razão, a “função criativa” dos tribunais,

defendida por Hart (1994:335) para os casos difíceis – ou seja, diante de um caso para o qual

não exista uma resposta imediata nem na legislação, nem nos anais do Congresso ou de

qualquer outra instituição, é rechaçada por Dworkin, o qual compreende que apenas o

legislador é autorizado a criar direito (BILLIER e MARYIOLI, 2005:426). Essa afirmação

expressa uma vedação importante à atividade jurisdicional: a possibilidade de que os

tribunais, se tomados como representantes do Poder Legislativo, também devessem ser

competentes para proceder à adesão de argumentos de política e à adesão de tais programas

gerados. Em casos abarcados pela legislação, fica fácil vislumbrar o uso de argumentos de

princípio; todavia, nos casos difíceis, muitas vezes o que se percebe é que os juízes acabam

lançando mão de razões justificadas à luz de diretrizes políticas.103

Dois argumentos são levantados para negar a possibilidade de originalidade

de decisões judiciais: (1) o governo é limitado pela responsabilidade de seus ocupantes, que

103 Dworkin (2002:131) utiliza como exemplo de uma decisão pautada em uma diretriz política o caso Spartan

Steel & Alloys Ltd. vs. Martin & Co., [1973] 1 Q.B. 27. Aqui os empregados do réu haviam rompido um cabo elétrico pertencente a uma companhia que fornecia energia ao autor da ação, de modo que este foi forçado a fechar sua fábrica durante o período de manutenção do cabo, gerando prejuízos econômicos. A pergunta posta para o tribunal foi se o demandante tinha direito a ser indenizado em razão de sua perda econômica – o que é uma questão de princípio – e não se a questão poderia ser resolvida concluindo-se que seria economicamente sensato repartir a responsabilidade pelo acidente, como sugerido pelo demandante – o que é um argumento derivado de uma diretriz política. Todavia, o tribunal não poderia ter feito às vezes de órgão legislativo, de modo que a segunda opção para argumentar sua decisão não estaria disponível, conforme critica Dworkin (2002:132).

Page 155: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

155

são eleitos pela maioria; e (2) criando um direito novo, o juiz pune a parte sucumbente, uma

vez que o aplica de forma retroativa.

As duas objeções tornam-se ainda mais fortes quando essas decisões se

mostram fundadas em argumentos de política: (a) as decisões políticas devem ser geradas

através de um processo político que leve, na devida conta, os diversos interesses antagônicos;

e (b) fica fácil verificar o quão errado significa tomar os bens de alguém em nome de

melhorias para um grupo da sociedade.

No caso de uma decisão que observe um princípio, tem-se um outro quadro:

primeiro, porque esse tipo de argumento nem sempre se fundamenta na busca pela

equivalência de diversos interesses em conflito; e por outro lado, o magistrado, nesse caso,

não se vê pressionado por uma maioria política, mas sim vinculado à história institucional,104

que não representa uma restrição vinda de fora, imposta aos juízes, mas um componente da

decisão, já que compõe o pano de fundo de qualquer juízo sobre os direitos. Juízes, portanto,

devem assumir que suas decisões trazem em si uma carga de responsabilidade política,

exigindo dos mesmos uma coerência de princípios.105

Dworkin lança mão de sua primeira metáfora – o juiz Hércules106 – para

ilustrar a dinâmica da decisão judicial a partir dos pontos fixados por sua teoria. Hércules é

um juiz filósofo dotado de sabedoria e paciência sobre-humanas, capaz de resolver os casos

difíceis através de uma análise completa da legislação, dos precedentes107 e dos princípios

aplicados ao caso:108

104 “A história institucional da sociedade, nesta perspectiva, não age como um limite, ou um constrangimento à

atividade jurisdicional. Ao contrário, ela atua como um ingrediente desta atividade [...]. Os direitos dos indivíduos são, ao mesmo tempo, frutos da história e da moralidade de uma determinada comunidade. Estes direitos dependem das práticas sociais e da justiça das suas instituições” (KOZICK, 2000:184-185).

105 “Um argumento de princípio pode oferecer uma justificação para uma decisão particular, segundo a doutrina da responsabilidade, somente se for possível mostrar que o princípio citado é compatível com decisões anteriores que não foram refeitas, e com decisões que a instituição está preparada para tomar em circunstâncias hipotéticas” (DWORKIN, 2002:138).

106 Hércules é primeiro apresentado aos leitores no ensaio Casos Difíceis (Hard Cases, no título original), presente como o capítulo 4 da obra Levando os Direitos à Sério, mas originalmente publicado como um ensaio na Harvard Law Review no. 88 (1974-1975), retornando posteriormente no Império do Direito (1999:165). São de chamar a atenção as diversas leituras feitas dessa figura de linguagem, o que levou à formulação de diversas críticas quanto ao solipsismo de Hércules, as quais se mostram infundadas por olvidarem: as demais construções de Dworkin que complementam a metáfora e sua herança hermenêutica, como se fez questão de destacar no início do presente trabalho. Nesse mesmo sentido, tem-se a leitura de Dworkin realizada por Cattoni de Oliveira (2003:116).

107 Ao analisar os precedentes, Hércules observará a existência de um fenômeno que Dworkin (2002:176) chama de força gravitacional dos precedentes: um juiz tenderá sempre a demonstrar que sua decisão está associada a uma decisão tomada no passado por outros juízes; desse modo segue a idéia intuitiva de que deve procurar decidir casos semelhantes de maneira semelhante. Essa força gravitacional é restrita aos argumentos de princípio necessários para justificar as decisões anteriores.

108 “Assim, Dworkin descreve como Hércules julgaria o caso McLoughlin. Primeiramente, o juiz selecionaria diversas hipóteses para corresponderem à melhor interpretação dos casos precedentes. Em cada interpretação

Page 156: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

156

Ao decidir um caso difícil Hércules sabe que os outros juízes decidiram casos que, apesar de não guardarem as mesmas características, tratam de situações afins. Deve, então, considerar as decisões históricas como parte de uma longa história que ele deve interpretar e continuar, de acordo com suas opiniões sobre o melhor andamento a ser dado à história em questão. Hércules adota o direito como integridade, uma vez que está convencido de que ele oferece tanto uma melhor adequação quanto uma melhor justificativa da prática jurídica como um todo (LAGES, 2001:47). Todavia, Hércules vai descobrir que nem todos os magistrados, anteriores a

ele, tiveram o mesmo cuidado ao decidir. Logo, algumas partes dessa história institucional

apresentar-se-ão como equívocos. Isso o forçará a desenvolver uma espécie de cláusula de

exceção, que autoriza a desconsideração desses equívocos. Essa teoria dos erros institucionais

é dividida em duas partes: uma que mostra quais as conseqüências de se considerar um evento

institucional como um erro e outra que limita o número de erros que podem ser excluídos.

Essa primeira parte tem por base duas distinções: (1) de um lado, tem-se a

autoridade de qualquer evento institucional – capacidade de produzir as conseqüências que se

propõe – e, do outro, a força gravitacional do evento. A classificação de um evento como um

erro se dá apenas questionando sua força gravitacional e inutilizando-a – sem, com isso,

comprometer sua autoridade específica; e (2) a outra distinção é entre erros enraizados – os

quais não perdem sua autoridade específica, não obstante não detenham mais sua força

gravitacional – e erros passíveis de correção – cuja autoridade específica é acessória à força

gravitacional. Assim, sua classificação garantirá autoridade às leis, mas não a sua força

gravitacional (DWORKIN, 2002:189-190).

A segunda parte da teoria de erros compõe-se de uma justificação mais

detalhada, na forma de um esquema de princípios, para o conjunto das leis e das decisões, já

que sua teoria dos precedentes é construída a partir da equanimidade.109 Duas máximas

possível, Hércules pergunta-se se uma pessoa poderia ter dado os veredictos dos casos precedentes se estivesse, coerente e conscientemente, aplicando os princípios subjacentes a cada interpretação (note-se que os juízes não podem se utilizar de questões de política, como os legisladores). Posteriormente, num passo mais avançado, o juiz deve colocar à prova as interpretações restantes, confrontando-as com a totalidade da prática jurídica de um ponto de vista mais geral. Para tanto, deve levar em consideração se as decisões que exprimem um princípio parecem mais importantes, fundamentais ou de maior alcance que as decisões que exprimem o outro (mesmo que um ou outro princípio não estejam explícitos em decisões passadas). Seguindo-se o processo decisório, o magistrado deve decidir que é a interpretação que mostra o histórico jurídico como o melhor possível do ponto de vista da moral política substantiva (que análise mostra a comunidade sob uma luz melhor, a partir do ponto de vista da moral política?). Assim, segundo Dworkin, sua resposta dependerá de sua convicções sobre as duas virtudes que constituem a moral política: a justiça e a equidade em cada caso concreto (pois, muitas vezes, é necessário o sacrifício parcial de alguma virtude política)” (ARAÚJO, 2001:133, grifos no original).

109 “A segunda parte de sua teoria dos erros deve demonstrar que ela é, não obstante isso, uma justificação mais forte do que qualquer alternativa que não reconheça erros, ou que reconheça um conjunto diferente de erros. Essa demonstração não pode ser uma dedução a partir de regras simples de construção teórica, mas, se Hércules tiver em mente a ligação que anteriormente estabeleceu entre precedente e eqüidade tal ligação indicará duas diretrizes para sua teoria. Em primeiro lugar, a eqüidade vincula-se à história institucional não apenas [como] história, mas como um programa político ao qual o governo se propõe a dar continuidade no

Page 157: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

157

podem ser extraídas dessa segunda parte: (1) caso Hércules possa demonstrar que um

princípio que, no passado, serviu de justificação para decisões do legislativo e do judiciário

hoje não dará origem a novas decisões por ele regidas; então, o argumento de equanimidade

se mostra enfraquecido; e (2) se ele mostrar, através de um argumento de moralidade política,

que o princípio é injusto, o argumento de equanimidade que o sustenta é inválido.

A construção da metáfora do juiz Hércules, entretanto, não encerra o

trabalho de construção da teoria dworkiana. Mesmo que se possa considerar que a decisão

atingida aqui obedeça a um processo reconstrutivo capaz de indicar com segurança uma – e

apenas uma – “resposta correta”,110 duas outras idéias serão fundamentais para a

compreensão completa da proposta desse autor: a metáfora do romance em cadeia e a

comunidade de princípios.

A compreensão adequada do romance em cadeia parece lançar novas luzes

na discussão sobre o solipsismo de Hércules. A compreensão de que a atividade decisória dos

juízes não se produz no vácuo, mas sim em constante diálogo com a história, revela as

influências da hermenêutica gadameriana. Todavia, Dworkin, como já foi explicado, é

defensor de uma interpretação construtiva e, por isso mesmo, de uma teoria hermenêutica

crítica: a decisão de um caso produz um “acréscimo” em uma determinada tradição. Isso é

bem ilustrado quando comparamos a dinâmica de aplicação judicial do Direito com um

pitoresco exercício literário:111

Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então

futuro; em outras palavras, ela vincula-se a implicações futuras do precedente, e não às passadas. Se Hércules descobrir que alguma decisão anterior, seja uma lei ou uma decisão judicial, é presentemente muito criticada no ramo pertinente da profissão, tal fato, por si só, revela a vulnerabilidade daquela decisão. Em segundo lugar, Hércules deve lembrar-se de que o argumento de eqüidade que exige consistência não é o único argumento de eqüidade ao qual devem responder o governo em geral, e os juízes em particular. Se Hércules acreditar, deixando de lado qualquer argumento de consistência, que uma lei ou uma decisão específica é errônea por não ser eqüitativa no âmbito do conceito de eqüidade da própria comunidade, essa crença será suficiente para caracterizar tal decisão e torná-la vulnerável. Ele deve, por certo, aplicar as diretrizes sem perder de vista a estrutura vertical de sua justificação geral, de modo que as decisões tomadas em um nível inferior sejam mais vulneráveis do que as que pertencem a um nível superior” (DWORKIN, 2002:191).

110 Segundo Habermas (1998:283): “La teoría del juez Hércules reconcilia las decisiones racionalmente reconstruidas del pasado con la pretensión de aceptabilidad racional en el presente, reconcilia la historia con la justicia. Esa teoría disuelve la «tensión entre la originalidad del juez y la historia institucional … los jueces han de emitir fallos nuevos sobre las pretensiones de partes que se presentan ante ellos, pero estos derechos políticos no se oponen a las decisiones políticas del pasado, sino que las reflejan»”.

111 Dworkin (1999:276) reconhece que esse empreendimento pode ser considerado fantástico, mas não impossível: “Na verdade, alguns romances foram escritos dessa maneira, ainda que com uma finalidade espúria, e certos jogos de salão para os fins de semana chuvosos nas casas de campo inglesas têm estrutura semelhante. As séries de televisão repetem por décadas os mesmos personagens e um mínimo de relação entre personagens e enredo, ainda que sejam escritas por diferentes grupos de autores e, inclusive, em semanas diferentes”. Todavia, Dworkin (1999:276) faz uma advertência: “Em nosso exemplo, contudo, espera-se que os romancistas levem mais a sério suas responsabilidade de continuidade; devem criar em conjunto, até onde for possível, um só romance unificado que seja da melhor qualidade possível”.

Page 158: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

158

acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade (DWORKIN, 1999:276). Assim, mesmo o primeiro escritor terá a tarefa de interpretar a obra em

elaboração, bem como o gênero que se propõe a escrever. Por isso, cada romancista não tem

liberdade criativa, pois há um dever de escolher a interpretação que, para ele, faça da obra em

continuação a melhor possível.112 O que se espera nesse exercício literário é que o romance

seja escrito como um texto único, integrado, e não simplesmente como uma série de contos

espaçados e independentes, que somente têm em comum os nomes dos personagens. Para

tanto, deve partir do material que seu antecessor lhe deu, daquilo que ele próprio acrescentou

e – dentro do possível – observando aquilo que seus sucessores vão querer ou ser capazes de

acrescentar.

O Direito segue a mesma lógica: tanto na atividade legislativa quanto nos

processos judiciais de aplicação, o que se chama de Direito nada mais é do que um produto

coletivo de uma determinada sociedade em permanente (re)construção:113

Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo o que outros juizes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance escrito até então. Qualquer juiz obrigado a decidir uma demanda descobrirá, se olhar nos livros adequados, registro de muitos casos plausivelmente

112 A questão pode ser, então, examinada pelo prisma de duas dimensões muito utilizadas: “a dimensão ‘formal’,

que indaga até que ponto a interpretação se ajusta e se integra ao texto até então concluído, e a dimensão ‘substantiva’, que considera a firmeza da visão sobre o que faz com que um romance seja bom e da qual se vale a interpretação” (DWORKIN:2001:236). Mas ainda assim é possível uma discordância razoável, sem que, contudo, se caia no ceticismo de afirmar que tudo é uma questão meramente subjetiva. “Nenhum romancista, em nenhum ponto, será capaz de simplesmente ler a interpretação correta do texto que recebe de maneira mecânica, mas não decorre desse fato que uma interpretação não seja superior às outras de modo geral. De qualquer modo, não obstante, será verdade, para todos os romancistas, além do primeiro, que a atribuição de encontrar (o que acreditam ser) a interpretação correta do texto até então é diferente da atribuição de começar um novo romance deles próprios” (DWORKIN, 2001:236-237).

113 Assim caem por terra as pretensões de teorias que busquem – quer na Literatura, quer no Direito – atingir a interpretação do autor. Sobre esse ponto deve-se indagar: (1) é possível descobrir o que o autor realmente pretendia?; e (2) isso é realmente importante? O autor lembra que a própria noção de “intenção” pode ser mais problematizada do que uma mera descrição de um estado mental do autor. Através do exemplo de uma montagem contemporânea da peça shakespeariana O Mercador de Veneza, Dworkin ilustra que a repetição estrita das intenções do autor ao conceber a personagem Shylock pode representar uma traição ao próprio propósito do autor ao imaginá-lo e construí-lo inicialmente. O intérprete, então, tem a tarefa de fazer o que Gadamer nomeou de fusão de horizontes, de modo que a “interpretação deve, de alguma maneira, unir dois períodos de ‘consciência’ ao transportar as intenções de Shakespeare para uma cultura muito diferente, situada no término de uma história diferente” (DWORKIN, 1999:68). Os intencionalistas, então, desconsideram que um autor pode separar o que escreveu de suas intenções e crenças, de modo a tratá-las como objeto em si. Por isso mesmo, pode-se compreender que novas conclusões são possíveis, permitindo que um livro possa ser lido de modo mais coerente, da melhor forma possível. Talvez fosse possível isolar as opiniões de um autor – fruto de um momento específico – mas, mesmo que isso fosse considerado como “intenções”, estar-se-ia ignorando outros níveis de intenções, como exemplo, a intenção de criar uma obra que não seja assim determinada. Mas isso passa despercebido pelos defensores da escola de intenção do autor, ao tomarem o valor de uma obra de arte a partir de uma visão restrita às possíveis intenções de quem a produziu.

Page 159: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

159

similares, decididos há décadas ou mesmo séculos por muitos outros juízes, de estilos e filosofias judiciais e políticas diferentes, em períodos nos quais o processo e as convenções judiciais eram diferentes. Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturadas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção (DWORKIN, 2001:283).114

Nenhuma seqüência de decisões, contudo, é isenta de apresentar contra-

exemplos; por isso mesmo é tão importante o desenvolvimento de uma teoria do erro no

julgamento dos casos anteriores, como a desenvolvida por Hércules.115 Além do mais,

Hércules não está sozinho. Seu trabalho se dá continuamente através de um franco diálogo 114 Para ilustrar isso, tem-se a hipótese da tia que, pelo telefone, sofreu dano emocional ao saber que sua sobrinha

tinha sido atropelada, vindo, ao ingressar em juízo, argumentar a seu favor a aplicação de um precedente da Suprema Corte do Estado de Illinois, que considerou indenizável o dano emocional de uma mãe que presenciasse o atropelamento de sua filha por um motorista negligente (DWORKIN, 2001:220). O juiz desse caso “[...] deve decidir qual é o tema, não apenas do precedente específico da mãe na rua, mas dos casos de acidente como um todo, inclusive esse precedente. Ele pode ser obrigado a escolher, por exemplo, entre estas duas teorias sobre o ‘significado’ da corrente de decisões. Segundo a primeira, os motoristas negligentes são responsáveis perante aqueles a quem sua conduta pode causar dano físico, mas são responsáveis perante essas pessoas por qualquer dano – físico ou emocional – que realmente causem. Se esse é o princípio correto, então a diferença decisiva entre esse caso e o caso da tia consiste apenas em que a tia não corria o risco físico e, portanto, não pode ser indenizada. Na segunda teoria, porém, os motoristas negligentes são responsáveis por qualquer dano que é razoável esperar que prevejam, se pensarem sobre sua conduta antecipadamente. Se é esse o princípio correto, então a tia tem direito à reparação. Tudo depende de determinar se é suficientemente previsível que uma criança tenha parentes, além de seus pais, que possam sofrer choque emocional ao saber de seu ferimento. O juiz que julga o caso da tia precisa decidir qual desses princípios representa a melhor ‘leitura’ da corrente de decisões a que deve dar continuidade” (DWORKIN, 2001:238-239). Dworkin (1985:179) fornece ainda um outro exemplo do que seria uma resposta correta, desta vez, através da crítica à decisão proferida pelo Juiz Bork no julgamento do caso Dronenburg v. Zech (741 F.2d 1388, D.C. Cir. 1984) e de sua reconstrução. Dronenburg processou a Marinha Norte-Americana sustentando que sua dispensa se deu em prejuízo de seus direitos fundamentais, que foram violados. Em contrapartida, argumentaram que a causa de sua dispensa havia sido a acusação confessa de ter tido relações homossexuais em um quartel. A decisão de Bork, contudo, limitou-se a afirmar, bem na esteira da tradição positivista, que não existia nenhuma regra positivada na legislação norte-americana que consagrasse uma proteção aos homossexuais. Logo, inexistiria qualquer direito capaz de assegurar o que Dronenburg reivindicava para si. Todavia, Dworkin reconstruirá o caso para lembrar a Bork – textualista, isto é um convencionalista que, como tal, defende que a Constituição não contempla outros direitos que não sejam os que estão expressamente apresentados em seu texto e mais: que esses devem ser interpretados de acordo com a intenção original dos constituintes (BRITO, 2005:58) – que as circunstâncias fáticas individualizadoras daquela demanda exigiam um outro olhar. No Direito positivo norte-americano, existem a Due Process Clause (Cláusula de Devido Processo) e um conjunto de precedentes que afirmam um direito fundamental à privacidade das pessoas. É claro que nenhum desses precedentes trata exatamente do problema de Dronenburg ou de direito para homossexuais. Mas essas decisões indicam uma compreensão que a sociedade tem sobre a necessidade de proteção da privacidade de uma pessoa e da garantia de que o Estado não poderá interferir em suas escolhas privadas (como por exemplo, o precedente Loving v. Virginia, no qual foi declarada a inconstitucionalidade da proibição de casamento inter-racial). Logo, o Direito não pode ser meramente algo preso ao que foi estabelecido pelas convenções sociais do passado e, frente ao julgamento deste novo caso, é sim possível falar que o argumento anteriormente suscitado em defesa da privacidade se estenda também aos homossexuais. Deve ser lembrado, portanto, que não se está criando um direito com a decisão, mas sim reinterpretando o direito já existente a partir de uma base já posta, qual seja, de que as escolhas pessoais não devem ser sujeitas à interferência estatal. Uma decisão diversa, como a proferida pelo Juiz Bork, é sim uma resposta que carece de correção.

115 Importante esclarecer que essa flexibilização não destrói a distinção entre interpretação e decisões novas sobre o que o Direito deve ser (DWORKIN, 2001:240-241). Um juiz, ao verificar a finalidade ou a função do direito, acabará por assumir uma concepção de integridade e de coerência do Direito, tomado como uma instituição, o que irá tutelar e limitar suas convicções pessoais.

Page 160: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

160

com a história institucional de sua sociedade, que está às suas costas; além disso, por força da

exigência de integridade, ele é impulsionado a buscar sempre a melhor decisão – o que faz

com que seus olhos se voltem para o futuro, mas de modo que sempre permaneça a

preocupação em manter uma coerência de princípio na fundamentação de suas decisões.

Ommati faz uma observação: [...] Dworkin não acredita em um juiz Hércules que, sozinho, decidiria todos os casos [...]. Ora, se o Direito deve ser visto como integridade, e a integridade requer a atenção à história e se essa história jurídica se produziu a partir de decisões passadas, decisões essas que foram produzidas em um processo, logicamente esse processo para ser válido utilizou-se dos argumentos das partes para a produção da decisão. (2004:162). No sentido dessa interpretação, a comunidade de princípios116 se mostra

como idéia fundamental, já que é ela condição de possibilidade para as metáforas do Juiz

Hércules e do romance em cadeia.

Para tanto, leva em conta que todas as relações humanas pressupõem-se

como relações sociais, deve-se compreender melhor essa forma de associação, principalmente

no seu aspecto político-jurídico.

Um primeiro modelo compreende que a associação decorreu de um acidente

de fato da história e da geografia. Nesse caso, as pessoas consideram umas às outras apenas

como instrumento para obtenção de seus próprios fins. Um membro de uma instituição

política não detém uma responsabilidade para com essa comunidade; sua responsabilidade

pode, por exemplo, se limitar aos seus eleitores, principalmente se compreender que ela

decorre de uma forma de gratidão, ou de qualquer outro vínculo, por ter sido eleito.

Outro modelo diferente é o da comunidade “de regras”. Aqui os membros

da comunidade aceitam o compromisso geral de obedecer a regras estabelecidas por essa

comunidade. A obediência a essas regras decorre de um sentimento de obrigação e não de

uma mera estratégia; todavia admitem que o conteúdo dessas regras esgote a obrigação para

com o resto da comunidade. Eles não reconhecem que essas regras se assentam sob um

“compromisso comum decorrente de princípios subjacentes, que são eles próprios, uma fonte

de novas obrigações” (DWORKIN, 1999:253); ao contrário, para eles, essas regras

representam o fruto de uma negociação entre interesses antagônicos.117

116 É possível uma leitura que associe a comunidade de princípios dworkiana com uma sociedade de nível pós-

convencional (Estágio 6), conforme dos estudos de Kohlberg. Nesse estágio, a orientação para a ação decorre de princípios universais, que toda a humanidade deve seguir (FERREIRA, 2000:143).

117 Dworkin lembra que a concepção convencionalista do Direito toma como referência o modelo da comunidade “de regras”: “O convencionalismo se ajusta às pessoas que tentam promover sua própria concepção de justiça e de [equanimidade], através da negociação e do acordo, sujeitas apenas à estipulação superior, geral e única de que, uma vez realizado o acordo da maneira apropriada, as regras que formam seu conteúdo serão respeitadas até que sejam alteradas por um novo acordo” (1999:254).

Page 161: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

161

O último modelo é o da comunidade de princípios. Esse modelo concorda [...] com o modelo das regras [no sentido de] que a comunidade política exige uma compreensão compartilhada, mas assume um ponto de vista mais generoso e abrangente da natureza de tal compreensão. Insiste em que as pessoas são membros de uma comunidade política genuína apenas quando aceitam que seus destinos estão fortemente ligados da seguinte maneira: aceitam que são governados por princípios comuns, e não apenas por regras criadas por um acordo político. Para tais pessoas, a política tem uma natureza diferente. É uma arena de debates sobre quais princípios a comunidade deve adotar como sistema, que concepção deve ter de justiça, [equanimidade] e [devido] processo legal e não a imagem diferente, apropriada a outros modelos, na qual cada pessoa tenta fazer valer suas convicções no mais vasto território de poder ou de regras possíveis (DWORKIN, 1999:254). Logo, os direitos e deveres políticos dessa comunidade não estão ligados

apenas às decisões particulares tomadas no passado, mas sim são dependentes de um sistema

de princípios que essas decisões pressupõem ou endossam. A integridade é, então,

compreendida como um ideal aceito de maneira geral e, por isso mesmo, mostra-se como um

compromisso de pessoas, ainda que essas estejam em desacordo sobre a Moral política

(DWORKIN, 1999:255). Uma conclusão importante desse modelo é o igual respeito para com

os demais, de modo a não aceitar que nenhum grupo seja excluído.118

Com Hércules, não poderia ser diferente: ele é um membro dessa

comunidade (DWORKIN, 1999:307; HABERMAS, 1998:295). Logo, suas decisões devem

refletir seu comprometimento com essa, demonstrando para ela que compartilha dos mesmos

princípios – ou seja, explicitando a sua pertença, para usar a linguagem consagrada por

Gadamer. Cattoni de Oliveira (2002:91) lembra que o julgador deve se colocar na perspectiva

de sua comunidade, considerada como uma associação de co-associados livres e iguais

perante o Direito, assumindo uma compreensão crítica do Direito positivo como esforço dessa

mesma comunidade, para desenvolver da melhor maneira possível o “sistema de direitos

fundamentais”. Com a comunidade de princípios, Dworkin expande o rol de co-autores no

empreendimento do romance em cadeia: como Günther (1995:45) observa, todo cidadão é um

participante da corrente histórica do Direito, mesmo que virtual; autores e destinatários estão,

então, ligados a um esquema coerente de princípios.

Além disso, Habermas (1998:292) coloca uma importante questão: o juiz

compartilha – como todo cidadão – de uma compreensão paradigmática do Direito, que

fornece para ele um estoque de interpretações da prática jurídica e orientações normativas,

118 “Faz com que essas responsabilidade sejam inteiramente pessoais: exige que ninguém seja excluído;

determina que, na política, estamos todos juntos para o melhor ou o pior; que ninguém pode ser sacrificado, como os feridos em um campo de batalha, na cruzada pela justiça total” (DWORKIN, 1999:257).

Page 162: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

162

estoque esse compartilhado por todos os membros da comunidade.119 Tais paradigmas ainda

retiram o trabalho hercúleo dos ombros dos membros dessa comunidade, fornecendo certezas

em um mesmo pano de fundo compartilhado. 120

3.2.3. Uma resposta dworkiana ao problema dos requisitos de admissibilidade da

“transcendência” e da “repercussão geral” nos recursos destinados aos Tribunais Superiores:

levando a sério a relação entre princípios e diretrizes políticas

A investigação através do pensamento dworkiano revela principalmente

uma idéia que já está presente no título de seu primeiro livro: em uma sociedade democrática,

o Direito deve ser levado a sério. Dessa forma, a noção de integridade fornece para o Direito

democrático um importante aparato teórico para que esse objetivo seja alcançado.121 No caso

do problema enfrentado na presente investigação, essa pode fornecer algumas luzes, de modo

119 “Pues la precomprensión paradigmática del derecho sólo puede restringir la indeterminación del proceso de

decisión teoréticamente dirigido y garantizar un grado suficiente de seguridad jurídica si es intersubjetivamente compartida por todos los miembros de la comunidad jurídica y expresa una autocomprensión constitutiva de la comunidad jurídica. Mutatis mutandis, esto vale también para una comprensión procedimentalista del derecho que cuenta de antemano con una competencia entre diversos paradigmas, regulada discursivamente. Por esta razón es menester un esfuerzo cooperativo para invalidar la sospecha de ideología bajo la que tal comprensión de fondo se halla. El juez individual ha de entender básicamente su interpretación constructiva como una empresa común, que viene sostenida por la comunicación pública de los ciudadanos” (HABERMAS, 1998:295).

120 “Tales paradigmas descargan a Hércules de la supercompleja tarea de poner en relación con los rasgos relevantes de una situación aprehendida de la forma más completa posible todo un desordenado conjunto de principios aplicables sólo prima facie, y ello a simple vista y sin más mediaciones. Pues entonces también para las partes será pronosticable el resultado, en la medida en que el correspondiente paradigma determine una comprensión de fondo que los expertos en derecho comparten con todos los demás miembros de la comunidad jurídica” (HABERMAS, 1998:292).

121 De todas as obras de Dworkin, O Império do Direito apresenta-se como uma das mais sistematizadas, permitindo compreender por meio de uma visão geral os objetivos desse jurista. Com ela, não há dúvida de que Dworkin se faz digno de ser chamado de ouriço, segundo a classificação mencionada por Berlin e lembrada por Santos Pérez (2003:7). No campo das discussões filosóficas, dizer que alguém é um ouriço é diferente de chamá-lo de raposa; este último representa uma classe de pensadores que mantêm uma visão dispersa e multifacetária da realidade, de modo que perseguem fins diferentes em ocasiões diferentes – o que muitas vezes se mostra como contraditório – sem preocupação de integrar seu pensamento em uma visão mais globalizada. Os ouriços aspiram a articular uma visão de mundo coerente a partir de um princípio reverente ou um conjunto de princípios organizados de maneira harmônica e com unidade. Além disso, como lembra Habermas (1998:295), a compreensão do pensamento de uma totalidade por si só já fornece uma resposta à crítica endereçada pelos partidários do Critical Legal Studies – que questionam a viabilidade de sua teoria em uma realidade diferente da norte-americana. Habermas lembra que o conceito de integridade assenta-se em uma noção de que todas as ordens jurídicas da modernidade são constituídas sob a forma de um Estado de Direito – exigindo igual reconhecimento das autonomias públicas e privadas de todos os cidadãos; logo serve como referência comum a qualquer idéia de sociedade organizada sob a forma do Direito. Por isso mesmo, Bahia (2004:325) afirma que “a teoria de Dworkin não seria menos universal do que as histórias do constitucionalismo e do Estado de Direito”.

Page 163: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

163

a indicar caminhos e fornecer respostas compatíveis com o paradigma procedimental do

Estado Democrático de Direito.

Quatro pontos são merecedores de destaque, uma vez que são pertinentes ao

presente debate: (1) a negativa da discricionariedade judicial; (2) a negativa de que decisões

judiciais possam se apoiar em diretrizes políticas; (3) a importância da noção de devido

processo para a dimensão da integridade; e (4) a própria noção de integridade, que levanta a

exigência de que cada caso seja compreendido como parte de uma história encadeada; não

podendo, portanto, ser descartado sem uma razão baseada em uma coerência de princípios.

Esse primeiro ponto apresentou-se para a história da Teoria do Direito como

uma acalorada discussão com os positivistas jurídicos, em especial com Hart.122 Como foi

demonstrado, a tese da discricionariedade constitui traço caracterizador dessa tradição,

estando presente em seus diversos representantes, de Austin a Hart, incluindo Kelsen.

Todavia, ao que parece, esse debate escapa aos defensores de um

mecanismo de filtragem recursal apoiado na discricionariedade do julgador. Para Martins

Filho (2000:56-57), o julgador ainda é – e deve ser – livre para escolher dentre as várias

alternativas normativas a que deseja aplicar. Ora, tal entendimento, reflete uma compreensão

da atividade judicante tributária do paradigma do Estado Social e, aparentemente, própria da

tradição do positivismo,123 não se mostrando consciente da ruptura para uma compreensão

procedimental. Assim, a liberdade de julgamento que se defende parece desconsiderar uma

compreensão procedimental do devido processo legal – entendido como uma garantia

fundamental do cidadão – que se expressa na exigência de observância do modelo

constitucional de processo,124 construído a partir dos princípios da ampla defesa e do

contraditório. Nesse modelo, o juiz não está isolado em sua atividade, como lembra Cattoni de

122 A pesar da morte de Hart, diversos juristas que compartilhavam de seu pensamento continuaram a discussão.

Todavia, a discussão entre ele e Dworkin não se encontra apenas na réplica de Hart a Dworkin, apresentada no posfácio de O Conceito de direito; a resposta dworkiana no posfácio de Levando os Direitos a Sério – dirigido também a outros críticos – é apenas uma outra parte. Obras como O Império do Direito, se bem analisadas, revelam um diálogo constante com Hart, quase como se o livro fosse escrito tendo, ao lado, sobre a mesa, a obra de Hart. Outro texto dworkiano importante é “Hart’s Postscript and the character of Political Philosophy”, publicado no Oxford Journal of Legal Studies (2004), o qual pretende ser a resposta final por parte de Dworkin à discussão.

123 Deve ser destacado que essa aproximação do positivismo parece ser apenas aparente, uma vez que os argumentos dos defensores de um mecanismo que limite e selecione causas a serem julgadas pelos Tribunais Superiores oscilam em sua argumentação, vindo a defender posições que não são próprias dessa tradição, aproximando-se da concepção do pragmatismo (talvez, o próprio realismo jurídico), já que ora subordinam o Direito ao atendimento de metas coletivas fixadas em diretrizes políticas, ora consideram que a existência de um direito – como o direito ao devido processo – apenas se dá se condicionada a uma melhoria no bem-estar de uma coletividade.

124 Nesse sentido, tem-se o pensamento de Baracho (1994) e Gonçalves (2001), que afirmam que os princípios constitucionais que se referem ao exercício das funções jurisdicionais fornecem a determinação de um verdadeiro e próprio esquema geral de processo.

Page 164: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

164

Oliveira (2001:153), os destinatários desse provimento devem ter a oportunidade de participar

em simétrica paridade da sua construção,125 como condição mínima para sua legitimidade.

Além disso, a concepção do Direito como integridade explica que o

magistrado deve sempre lembrar que a sua atividade pública demanda uma responsabilidade

política, o que obriga à observação dessa virtude e à defesa da busca da “resposta correta”

para o caso pendente de julgamento.

Como colocado anteriormente, a tese dworkiana pretende explicar que a

assunção de uma postura consciente da dimensão histórica do Direito, permitindo aos juristas

identificar uma decisão que pode ser considerada como a melhor – e, por isso, a correta –

através de uma aplicação coerente dos princípios adequados ao caso, dando continuidade a

uma interpretação das práticas jurídicas já expressada em decisões anteriores.

Dada a tamanha integração da decisão presente com as decisões ulteriores,

todo o conjunto ou cadeia de decisões sobre um princípio poderia ser compreendida como o

desenvolvimento de uma mesma história institucional, algo muito semelhante a uma obra

literária escrita por várias mãos. É importante destacar que a decisão do caso presente é

apenas um capítulo dessa obra coletiva, nunca o seu marco final; como integridade, o Direito

lembra aos juristas que deve continuar aberto para seguir seu curso como prática social que é

– para tanto, todo caso deve ser levado a sério e julgado com essa seriedade.

A interpretação, portanto, da história institucional, na sua melhor luz, deve

conduzir a uma melhor leitura dos requisitos de admissibilidade dos recursos para os

Tribunais Superiores. Assim, ter-se-ia que questionar qual a natureza do argumento utilizado

para sua defesa. Apoiando-se nos argumentos do Min. Nunes Leal, Martins Filho (2000:50),

Gomes Jr. (2001:119) e Mattioli (2001:139) levantam que tais mecanismos devem visar à

seleção das causas que atendam a um requisito: a importância para uma maioria e não

apenas para as partes envolvidas. Isso significa que são os magistrados – membros dos

Tribunais Superiores – que devem encontrar uma razão – inclusive, extra-jurídica (social,

econômica ou política) – para motivar o conhecimento do recurso e seu posterior julgamento.

Ora, tal tese apresenta alguns pontos importantes para reflexão: ela

representa uma compreensão jurídica que autoriza que juízes possam, no curso de uma

aplicação judicial do Direito a um caso concreto, decidir se conhecerão ou não de um recurso,

embasando-se, para isso, numa justificativa pautada em uma diretriz política. Dito de outra

forma, significa afirmar que as partes de um processo somente têm direito a um recurso

125 Como argumentado no tópico anterior, é possível sustentar uma leitura que defenda a tese de que nem mesmo

o Hércules dworkiano representaria alguém fechado em sua própria consciência.

Page 165: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

165

destinado a um Tribunal Superior, se esse recurso levantar uma questão que atenda a um

aspecto que não necessariamente deve ser jurídico, mas que pode ter natureza econômica,

política ou social.

A posição dworkiana é radicalmente contrária: (a) os magistrados mostram-

se impossibilitados de fazer tal avaliação. O dever imposto a eles, por força de sua atividade,

obriga-os a decidir sempre com base em argumentos de princípio – caso contrário, não

haveria diferença entre a atividade de aplicação judicial e a de criação (justificação) do

Direito.126 A avaliação de conveniência para implementação de um objetivo coletivo fundado

em uma diretriz política remete a uma discussão bem mais complexa e abrangente da que

pode ser obtida em um processo jurisdicional; (b) o Direito apresenta uma natureza

deontológica – não axiológica –, logo não pode ser reduzido apenas a questões de bem-estar.

Nesse sentido, a tese que sustenta a seleção recursal trata os direitos como se fossem bens (ou

valores), reduzindo-os a uma questão de preferência e dissociando-os de sua ligação com os

referenciais de justiça para o caso concreto. Nesse sentido, coloca Cattoni de Oliveira: Bens e interesses, assim como valores, pode ter negociada a sua “aplicação”, são algo que se pode ou não optar, já que se estará tratando de preferências otimizáveis. Já direitos não. Tão logo, os direitos sejam compreendidos como bens ou valores, eles terão que competir no mesmo nível que estes pela prioridade no caso individual. Essa é uma das razões pelas quais, lembra Habermas, Ronald Dworkin considera os direitos como “trunfos” que podem ser usados nos discursos jurídicos contra argumentos de política (2001:151). Não se pode perder de vista que os princípios materializam direitos

fundamentais que não se reduzem sob uma análise dos custos e vantagens. Dessa forma, a

pretensão de que magistrados exerçam um juízo de admissibilidade baseado em critérios

extra-jurídicos, como de fato aconteceu no caso da argüição de transcendência, representa um

ponto de nossa história institucional que demanda uma releitura crítica ou, até mesmo, a

aplicação da teoria dos erros institucionais desenvolvida por Hércules, já que essa prática não

tem espaço no paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito.

Sendo assim, deve-se retomar o curso da discussão sobre a compreensão

paradigmaticamente adequada do devido processo legal, iniciada no capítulo 2. A teoria

dworkiana pode trazer algumas contribuições importantes. Para tanto, deve ser lembrado que,

para esse autor, a noção de devido processo está relacionada com os procedimentos corretos

que permitem o julgamento sobre se um cidadão infringiu ou não as leis estabelecidas. É,

126 Como será visto mais à frente, a tese sustentada por Günther (1993) no sentido de haver sim uma diferença

lógico-estrutural entre os discursos de justificação e os discursos de aplicação jurídica alerta para os problemas, principalmente quanto ao aspecto da legitimidade das decisões em face do Direito democrático, que podem surgir caso ela não seja considerada.

Page 166: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

166

dessa maneira, uma “virtude” fundamental à concepção do Direito como integridade, não se

situando em um plano menor que os colocados pela equanimidade e pela justiça (?, sugestdo

que aqueles em que estão colocadas a equanimidade e a justiça).

A noção, então, de devido processo coloca uma questão fundamental: ela

representa uma constante busca do correto equilíbrio entre a exatidão de um julgamento e a

eficiência na aplicação de direitos. Para explicar melhor a sua idéia, Dworkin (2001:107)

apresenta um exemplo: supondo-se que pesquisas recentes comprovem que, nas decisões

proferidas pelo júri popular, seria possível aumentar o grau de exatidão dos julgados

mediante o acréscimo de jurados.

Evidentemente, um grupo poderia argumentar que tal fato representaria um

aumento das despesas do Estado e que tal aumento, em especial, não seria conveniente, uma

vez que a exatidão de uma decisão proferida por um júri com o número aumentado seria

pouco maior do que a decisão proferida por um júri composto pelo número atual de membros.

Esse montante gasto pelo Poder Judiciário poderia ter uma melhor destinação, como por

exemplo, ser empregado para a construção de uma escola pública ou um hospital. Essa

posição se caracteriza pela fundamentação em uma diretriz política, orientando-se de acordo

com o que se acredita que irá trazer um maior benefício para uma parcela da coletividade.

Logo, não caberia afirmar um direito a julgamentos mais justos, se, para isso, a comunidade

tiver de pagar um preço maior em seu bem-estar.

Todavia, um outro grupo poderia adentrar no debate com um outro tipo de

argumento: se foi realmente demonstrado pelas pesquisas realizadas – logo, algo

incontroverso – de que há uma diferença nos julgamentos, no sentido de que a nova proposta

produziria julgamentos mais exatos, pesaria, em nome da observância do devido processo,

uma obrigação de proceder a um aumento no número de jurados, já que a referência estaria na

obrigação sempre continuada de se buscar julgamentos mais exatos. O argumento levantado

pelo primeiro grupo está compreendendo o direito à luz do entendimento ao interesse de uma

parcela majoritária da coletividade; ao passo que o segundo compreende que o devido

processo constitui um direito fundamental e, por isso mesmo, está posto para todos.

Pode acontecer ainda que, após ouvir os argumentos apresentados pela parte

opositora, o primeiro grupo repense seus argumentos e apresente uma versão mais sofisticada

de sua tese: o maior grau de exatidão nos julgamentos representa um interesse dessa maioria

da coletividade, todavia, devido aos seus custos, ele somente deve acontecer em determinados

casos.

Page 167: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

167

Mas, ainda assim, poderia sofrer a crítica do segundo grupo: o argumento

que defende uma distinção de julgamentos em favor de determinados casos parece esquecer-

se do princípio da isonomia, continuando assim a desconsiderar a exigência do devido

processo legal; além de se manter através do uso de uma razão utilitarista. Dworkin lembra

que Tribe127 entende haver, nesse posicionamento, uma pretensão discriminatória; para

algumas pessoas, haveria um processo diferente dos demais, com existência paralela,

justificado por uma razão de interesse público e atendendo a uma diretriz política.

Esse pitoresco exemplo pode ser relacionado à discussão sobre a

possibilidade jurídico-democrática de criação de um mecanismo seletivo na ordem recursal.

Como já colocado, a finalidade de tal instrumento seria a de atuar como um redutor dos

recursos e, com isso, “desafogar” o Judiciário sobrecarregado (MARTINS FILHO, 2000:41).

Essa solução parece servir para esquivar o Estado de outras soluções que comprometeriam o

orçamento público, como o aumento do número de magistrados, como alerta Cardoso

(2002:150).

Todavia, essa diretriz política acaba instituindo que algumas pessoas terão

um privilégio no julgamento de sua causa, que não será, por uma razão pragmática, estendido

a toda a sociedade. Com isso, adota-se uma igualdade geométrica128 em vez de uma

igualdade aritmética. Todavia, para o Direito moderno, [...] a igualdade tem de ser concebida como igualdade aritmética, pois qualquer outra forma de igualdade implicaria reconhecer maior ou menor importância às pessoas que, no entanto, o Estado Democrático de Direito tem de conceber como detentoras da mesma possibilidade de intervir nos discursos jurídicos, o que seria impossível se fossem concebidas como geometricamente (des)iguais. Conseqüentemente, a igualdade tem de ser concebida como um procedimento de inclusão formal e material nos discursos de justificação e aplicação das normas, e o direito só pode ser tido como legítimo se garantir essa igualdade nos discursos que realiza (GALUPPO, 2002:207-208, grifos no original). A conseqüência dessa mudança seria, então, a desnaturação da integridade,

uma vez que essa levanta uma exigência tanto para os órgãos da legislação quanto da

jurisdição de observar o princípio de igual consideração e igual respeito. Além disso, não se

pode desconsiderar o pluralismo inerente à sociedade moderna. Logo, mesmo que majoritária,

127 TRIBE, Laurence. American Constitucional Law. Mineola: Foundation Press, 1978. p. 503-504. 128 Para um maior esclarecimento, pode-se afirmar que “a igualdade geométrica é aquela que atenta, antes de

mais nada, para a qualidade dos seres, enquanto a igualdade aritmética faz uma referência direta à sua quantidade” (GALUPPO, 2002:68, grifos no original). As distinções entre essas duas modalidades de igualdade encontram fundamentação no pensamento de Aristóteles, que assim as explica: “os matemáticos chamam geométrica a essa espécie de proporção, pois só na proporção geométrica o todo está para o todo assim como cada parte está para cada parte correspondente” (ARISTÓTELES, 1974:325); na proporção aritmética, o igual é o intermediário entre a linha maior e a menor. Nesse caso, o juiz restabelece a igualdade ao retirar a diferença do seguimento maior, que excede a metade, para acrescentá-lo ao menor (ARISTÓTELES, 1974:325).

Page 168: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

168

uma coletividade não pode assumir-se como totalidade, sob pena de sufocar os diversos

projetos de vida alternativos (GALUPPO, 2002:209). Por essa razão, reforça-se o caráter de

“trunfos” dos direitos na concepção defendida por Dworkin.129

Por fim, a exigência de integridade do Direito pode lançar uma nova

proposta de interpretação para a questão – principalmente para a disciplina do recurso

extraordinário, subordinado, após a Emenda Constitucional n. 45/2004, à figura da

repercussão geral das questões constitucionais discutidas (art. 102, §3º da CR/88) – bem

como uma (re)leitura da argüição de transcendência do recurso de revista.

Uma leitura condizente com essas exigências pode ser explicada da seguinte

forma: a referida exigência de “transcendência” ou de “repercussão geral” traduz-se na

necessidade de articular, no iter processual, de maneira discursiva (lógico-argumentativa), os

pressupostos da integridade. Assim, a condição de conhecimento desses recursos permanece

como questão interna ao Direito, sem nenhum apelo para o plano meta-jurídico, de modo que

o que se exige é a demonstração de que a argumentação sustentada pelo recorrente se integra

– tal qual um capítulo do romancista da obra coletiva dworkiana – à história institucional

daquela sociedade, fornecendo a melhor proposta de interpretação daquele direito.

É apenas desse modo que os Tribunais Superiores podem, no marco do

paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito, assumir devidamente o seu

papel, já que eles não mais podem funcionar como oráculos, que misteriosamente fornecem

solução para uma sociedade consumidora; mas o inverso: eles se transformam em um local de

discussão pública da questão jurídica, que não fica imune às críticas que podem provir da

sociedade.

Por isso, os dois fundamentos dos recursos para Tribunais Superiores

apontados pela dogmática jurídica tradicional – a proteção do ordenamento jurídico (em nível

constitucional e infraconstitucional) e a garantia de uniformização na aplicação e na

interpretação do Direito – representam, para Dworkin, a mesma coisa: um dever de toda a

comunidade em face do atendimento à integridade do Direito e de sua observância. O Direito

somente se encontrará protegido, se lido a partir de uma teoria que busque compreendê-lo

129 Para Habermas (1998), o que garante a inclusão das minorias no discurso em um Estado Democrático de

Direito, possibilitando até mesmo que essas minorias venham a se tornar maiorias, são os direitos fundamentais. Cattoni de Oliveira esclarece que: “A gênese dos direitos se inicia com a aplicação do princípio do discurso à forma jurídica moderna e termina com a institucionalização das condições para um exercício discursivo da autonomia política. O Direito deverá englobar os princípios aos quais os indivíduos devem estar submetidos, quando pretendem orientar a vida social através do Direito. Deverá, portanto, englobar os princípios que tornem possível o processo de legitimação de direitos. Os direitos fundamentais exprimem as condições de possibilidade de um consenso racional acerca da institucionalização das normas do agir” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:70, grifo no original).

Page 169: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

169

sempre à sua melhor luz – isto é, consciente de sua dimensão histórica; sem, contudo,

hipostasiá-lo no passado, nem tratá-lo como metas coletivas a serviço de uma parcela da

sociedade – mas como um conjunto coerente de princípios.

Há ainda um ponto importante. Um caso levado a julgamento, conforme o

pensamento de Dworkin, por si só ultrapassa o âmbito dos sujeitos individuais envolvidos.

Uma decisão “correta” lanças luzes para toda a história institucional, de modo que há uma

dupla exigência envolvida na questão: de maneira imediata, a questão da justiça da decisão

atrai as partes litigantes para o debate jurídico que se desenvolve em torno do caso concreto;

por outro lado, de forma mediata, decisão “correta” assume-se como um capítulo da história

institucional dos direitos. Sob esse prisma, parece que se pode colocar a discussão sobre o

atendimento do interesse público como condição para o atendimento do interesse privado em

uma nova perspectiva,130 que não mais os compreenda como opostos, mas integrados em uma

mesma teoria política.

É, por isso, que a “transcendência” ou a “repercussão geral” não podem ser

satisfatoriamente considerados como requisitos de admissibilidade recursal específicos.

Apoiando-se na posição defendida por Barbosa Moreira (1991:166; ARAÚJO, 2001:201) – e

reconstruída no capítulo anterior – a distinção entre juízo de admissibilidade e juízo de mérito

recursal deve ser levada em consideração. Destarte, o primeiro grupo apenas deveria conter os

chamados pressupostos extrínsecos (tempestividade, preparo, regularidade formal e

inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer), sob pena de dissolver essa

separação, o que geraria conseqüências importantes, uma vez que qualquer outra análise

necessariamente acaba por adentrar na discussão sobre o mérito recursal.

Além disso, como já visto no capítulo 2, o direito ao recurso se fundamenta

numa pretensão juridicamente fundada: a alegação de lesão ou ameaça de lesão a um direito

distingue-se de um mero interesse, recebendo proteção inclusive no nível constitucional (art.

5º, XXXV, CR/88).131

Logo, sob um prisma normativo, tanto a “transcendência” quanto a

“repercussão geral” podem ser compreendidas como uma questão interna à própria pretensão

recursal, bem como conectada a toda e qualquer pretensão jurídica levada a cabo pelas partes

processuais. Uma leitura procedimental percebe que a ausência de demonstração de tais

130 Através de uma reconstrução espelhada na realizada por Dworkin (2001b; 2005:162) com os princípios da

igualdade e da liberdade, pode-se compreender melhor a interligação entre interesses público e privado. Todavia, esse ponto não será explorado aqui, até porque a discussão será conduzida sob o prisma da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas.

131 “Art. 5º. [...] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Page 170: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

170

requisitos acarreta um julgamento de mérito negando tal pretensão. Nesse sentido, o que

seriam “inovações” capazes de fornecer respostas ao problema da “crise do Judiciário”, na

verdade, em nada contribui para sua solução, representando mais uma repetição desnecessária

dos requisitos recursais já exigidos na Constituição da República para o recurso extraordinário

e na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) para o recurso de revista.

Todavia, ressalta-se que essa hipótese, atingida a partir do pensamento de

Dworkin, necessita de um aprimoramento. Conforme Cattoni de Oliveira (2003:116), uma

leitura procedimental da teoria dworkiana apresenta limites. Ainda sim, tem lugar para as

críticas de republicanos – como Michelman – e de realistas – como os partidários do Critical

Legal Studies Movement – sobre o solipsismo do magistrado, que, em Dworkin, aparece de

forma “oscilante”, já que, apesar de ele não desconhecer os pressupostos hermenêuticos e

pragmáticos da interpretação jurídica, acaba por privilegiar a argumentação judicial.

Günther (1995:45) irá indagar: a “integridade”, por si só, representa uma

teoria satisfatória? De fato, a comunidade de princípios teorizado por Dworkin apresenta duas

conquistas: (1) consagra de maneira literal a noção de que os cidadãos devem ser os autores

do Direito; e (2) explica a força de coesão existente entre os membros, pressupondo e

reforçando os compromissos mútuos existentes entre os membros de uma comunidade,

entendidos como livres e iguais a partir de um esquema coerente de princípios.132

Entretanto, dúvidas quanto à adequação dessa teoria ao paradigma

procedimental do Estado de Direito aparecem quando se constata que cabe ao magistrado a

função de personificar essa “comunidade”.133 Materializa-se nele o fardo de levar adiante uma

interpretação do Direito legislado democraticamente à luz de uma visão coerente

(GÜNTHER, 1995:46), bem como de garantir a integridade, a equanimidade e a justiça nos

processos judiciais.

132 “But does ‘integrity’ itself represent a satisfactory version of the revised transmission belt model? Obviously,

according to Dworkin, integrity is internally linked to the legal practice of a community that accepts political autonomy or self-rule. This link becomes manifest in two ways. First, Dworkin takes the notion of the citizen as the law’s ‘author’ literally. If every citizen is considered the (virtual) author of the law, he or she has to [interpret] this practice as that of writing a coherent narrative text which was initiated by past authors and has to be continued by future ones. Second, integrity itself has an integrative force for the members of a community that rules itself. It presupposes and endorses mutual commitments between the members of the community, who treat each other as free and equal according to a coherent scheme of principles: […]. Integrity binds self-rule to a coherent scheme of principles, which applies to the authors of the law as well as to the addressees. Hence, a community which governs itself according to integrity is also ‘a community of principle’” (GÜNTHER, 1995:45).

133 “[…] it is the judge who inherits integrity as a device of representation of a fair and just legal practice f the ‘single author’ of a coherent interpretation. By representing integrity, the judge represents a central virtue of the community to the community. In the end, this comes close to the billiard ball model, or even worse, it gives supremacy to jurisdiction over democracy. One could imagine a super Hercules who is legislator and judge according to a coherent scheme of principles of justice and fairness” (GÜNTHER, 1995:46).

Page 171: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

171

E mais, uma vez que é o juiz que assume a exigência de integridade, ainda

se pode questionar se tal modelo não acaba por reduzir o papel dos processos de legislação

democrática; ou, se nessa linha de pensamento, não se acaba colocando a função de jurisdição

como superior à função de legislação (GÜNTHER, 1995:46).

Günther reconhece que o modelo habermasiano pode representar uma

alternativa mais adequada a uma leitura procedimentalista do Direito, uma vez que liga a

legitimidade dos provimentos estatais à possibilidade de participação dos seus destinatários.

O passo seguinte, na presente pesquisa, é submeter a leitura da hipótese

apresentada no final do presente tópico ao crivo da Teoria Discursiva do Direito e da

Democracia de Habermas. Para tanto, antes, far-se-á uma apresentação e buscar-se-á

reconstruir seus pressupostos básicos.

Page 172: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

172

CAPÍTULO 4 – UMA PROPOSTA DE COMPREENSÃO PROCEDIMENTAL DO CRITÉRIO

DE TRANSCENDÊNCIA/REPERCUSSÃO GERAL NO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DOS

RECURSOS DESTINADOS AOS TRIBUNAIS SUPERIORES A PARTIR DA TEORIA

DISCURSIVA DO DIREITO E DA DEMOCRACIA DE HABERMAS

4.1. Um novo olhar sobre a questão da racionalidade: a racionalidade comunicativa

No tópico de abertura do presente capítulo, colocou-se em discussão a

necessidade de pensar a racionalidade humana para além da filosofia da consciência; para

tanto, os estudos sobre a linguagem conduziram a um movimento que ficou conhecido na

História da Filosofia como o giro lingüístico; que teve como principais responsáveis os

pensamentos de Wittgeinstein (giro pragmático) e Gadamer (giro hermenêutico). Todavia, o

movimento do giro não se esgota na figura desses autores, vindo a ser continuado, até os dias

atuais, por uma infinidade de novos personagens. Dentre eles, pode-se mencionar o filósofo e

sociólogo alemão Jürgen Habermas,1 que ganhou renome mundial ao apresentar uma nova

1 É normal encontrar autores traçando comparações entre o pensamento de Habermas e as teorias de filósofos

monumentais, como Kant e Hegel, por exemplo. Entretanto, isso não se deve tanto ao intuito de constatar um suposto impacto causado pela teoria do primeiro no pensamento dos filósofos de seu tempo, mas talvez – e até de certa maneira jocosa – em razão da dificuldade de se iniciar um estudo sobre seu conteúdo; isso se deve mais pela dificuldade – e, quem sabe, até por uma rejeição – de apreender os pressupostos da teoria do que necessariamente pela impenetrabilidade da mesma. Dessa forma, Freitag (2002) ilustra bem a questão, quando justificando sua opção pelo autor, através do exemplo dos campos da moral e da ética, demonstra que o pensamento habermasiano busca abrir-se para um discurso não restrito aos filósofos (Platão, Aristóteles, Kant, Hegel, etc.), sendo mais abrangente em seu conteúdo, a ponto de adentrar em discussões próprias da Sociologia (Weber, Durkhein, Parsons, Luhmann, etc.), da História (Koselleck, Hobsbawn), da Psicologia (Freud, Piaget, Kohlberg, etc.), do Direito (Rawls, Dworkin, Michelman, etc.), entre outras áreas, de modo que os autores por ele mencionados não são apenas referências bibliográficas, mas antes assumem o papel de verdadeiros interlocutores. Além do mais, sua proposta para a Filosofia não é somente lançar um olhar multidisciplinar, mas reconstruí-la como uma guardadora-de-lugar (Platzhalter, no alemão) do conhecimento: isto é, a intérprete mediadora dos conteúdos científicos, uma vez que a filosofia conserva uma ligação interna com o Direito, com a Sociologia, com a Economia, etc., sendo capaz de “transitar de um discurso para outro e de traduzir de uma linguagem específica para outra” (HABERMAS, 2004:321; BERTEN, 2004:120). A noção de guardador-de-lugar foi primeiramente apresentada na conferência de Stuttgart (1981), também fazendo parte da obra Consciência Moral e Agir Comunicativo (publicada, originalmente, em 1983, com tradução para o português em 1989). De maneira sintética, a proposta é abandonar a compreensão de filosofia como indicadora de lugar das ciências e intérprete máxima da cultura, para que venha assumir um papel mais modesto em tempos de pensamento pós-metafísico: o intérprete mediador capaz de estabelecer discursos com e entre as ciências, sem pretensões fundamentalistas e com consciência falibilista. “Se a filosofia é capaz de conservar essa unidade formal de uma razão pluralizada, isso não se deve a um conceito concreto do ente como um todo ou ao bem universal, mas à sua capacidade hermenêutica de transpor as fronteiras da linguagem e do discurso, enquanto ao mesmo tempo permanece sensível aos contextos de fundo holísticos” (HABERMAS, 2004:321). Para tanto, ela faz uso da linguagem ordinária – existente na prática cotidiana – que serve de base para a manutenção da linguagem específica de cada ciência.

Page 173: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

173

proposta de compreensão da racionalidade, fornecendo um novo impulso e direção ao

movimento. Levando a sério a linguagem, esse pensador colocará em cheque a racionalidade

instrumental destacada, principalmente, nos estudos de Max Weber, para contrapô-la a uma

nova compreensão: a racionalidade não apenas está dirigida a execução de tarefas – isto é, a

busca dos meios para se alcançar um fim pré-determinado – mas envolve também a busca por

um entendimento mútuo entre indivíduos. Essa busca por entendimento, contudo, não

representa um aspecto isolado do fenômeno lingüístico, mas situa a linguagem no centro do

problema da integração social.

Para explicar melhor esse ponto, deve-se lembrar que há dois tipos de

experiência: a sensorial e a comunicativa. No primeiro caso, tem-se a figura do observador,

que sozinho examina a rede categorial na qual experiências são organizadas com objetividade;

por sua vez, o sujeito também se faz presente como participante de uma comunicação na base

de uma relação intersubjetiva (envolvendo outros indivíduos) através do compartilhamento de

símbolos (HABERMAS, 1994b:307). Para tanto, regras implícitas ao alcance de qualquer

falante competente transpõem um know how para um know that, permitindo uma nova forma

de compreender a relação entre falar/agir. É, então, possível falar em ações através de um

prisma mais amplo, que englobaria uma ação em sentido estrito e os proferimentos

lingüísticos. Através de uma ação em sentido estrito, pode um indivíduo realizar uma

atividade não lingüística – como correr ou colocar um prego em uma parede, por exemplo –

utilizando, para tanto, sua racionalidade direcionada à seleção dos melhores meios para a

persecução de um fim determinado. Proferimentos lingüísticos, por outro lado, são atos que

exigem que o falante chegue a um entendimento com outro falante a respeito de algo no

mundo (HABERMAS, 1990:65). Dessa forma, emergiria uma diferença também no papel que

um indivíduo deve assumir. Um exemplo pode ser bem ilustrativo: Quando eu observo que um amigo passa correndo no outro lado da rua, eu posso identificar certamente a sua corrida como sendo uma ação. E a proposição “ele corre na rua”pode servir em muitos contextos como descrição de uma ação; através dela podemos atribuir ao ator a intenção de atingir o mais rapidamente possível um lugar situado no ponto em direção ao qual ele está correndo. No entanto, não podemos inferir essa intenção da simples observação; nós supomos, ao invés disso, um contexto geral que justifica a suposição de uma tal intenção. Não obstante, a ação carece ainda de uma ulterior interpretação, o que não deixa de ser curioso. O amigo pode estar correndo porque não quer perder o trem, porque não deseja chegar tarde à aula, ou porque não quer chegar atrasado a um encontro marcado; mas pode ser também que ele está fugindo porque se sente perseguido, que ele escapou de um atentado, ou que ele, por outros motivos, entrou em pânico e simplesmente corra para cá e para lá, etc. (HABERMAS, 1990:66, grifo no original).

Um observador pode ser capaz de constatar a existência da ação, mas não

poderá descrever, com segurança, a execução do plano específico em andamento; somente ao

Page 174: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

174

entrar em interação com o ator, é que se torna possível identificar sua intenção, o que o leva a

assumir a perspectiva de participante.2

Através de uma apropriação da teoria dos atos de fala, originalmente

desenvolvida por Austin (1971) e Searle,3 é possível compreender uma função fundamental

existente na linguagem: a comunicação. Todavia, além dos proferimento constatativos – isto

é, que constatam algo, caracterizando-se por serem verdadeiros ou falsos – existem os

proferimentos performativos, com os quais se realiza uma ação pelo simples fato de serem

proferidos (GALUPPO, 2002:111). Em verdade, eles agem de maneira dúplice: primeiro,

comunicam uma idéia e, em seguida, realizam uma ação diferente da ação de comunicar.4

Pelos aspectos seguintes, os atos de fala distinguem-se das interações não

lingüísticas: (1) através da feição reflexiva da auto-interpretação – isto é, são compreendidos

pelos falantes, quando esses tomam consciência do contexto em que a interação lingüística se

desenvolve; e (2) pelo tipo de fins que podem ser visados, isto é, fins ilocucionários –

voltados para o mútuo entendimento e que, para serem atingidos, dependem do assentimento

racionalmente motivado do ouvinte,5 ou seja, do reconhecimento por parte do outro falante de

que o proferimento pode ser tido como válido (isto é verdadeiro, correto ou sincero,

dependendo da situação).6 O entendimento, então, pode ser compreendido como uma busca

2 É, por isso, que afirma Habermas (1990:66): “[...] a atividade não-linguística não oferece por si mesma essa

perspectiva – ela não revela a partir de si mesma o modo como foi planejada. Somente os atos de fala conseguem preencher essa condição”.

3 Oliveira (2001:172-179) e Bahia (2003:219-220) lembram que Searle difere-se de Austin por procurar analisar a linguagem a partir de um caso neutro, “puro”, o que conduz à afirmação de que seus estudos adquirem um caráter expressamente formal. Sua preocupação é a tematização das “regras de uso” da linguagem, visando à construção de uma linguagem “idealizada”, capaz de servir como ferramenta metodológica a ser aplicada em uma linguagem ordinária.

4 A locução “cale-se!”, por exemplo, apresenta um mesmo significado nos níveis semântico e sintático; todavia, pragmaticamente, ela pode variar conforme o contexto – como coloca Galuppo (2002:110): se enunciada por um juiz ao réu, durante um julgamento, significará uma ordem; mas se enunciada pelo réu ao juiz, representará um desacato à sua autoridade. Dessa forma “[...] um ouvinte pode deduzir do conteúdo semântico do proferimento o modo como a sentença proferida é utilizada, ou seja, pode saber qual é o tipo de ação realizado através dele. [É desta forma que] As ações lingüísticas interpretam-se por si mesmas, uma vez que possuem uma estrutura auto-referencial. [...] A idéia de Austin, segundo a qual nós, ao dizermos algo, fazemos algo, implica a recíproca: ao realizarmos uma ação de fala dizemos também o que fazemos. Esse sentido performativo de uma ação de fala só é captado por um ouvinte potencial que assume o enfoque de uma segunda pessoa, abandonando a perspectiva do observador e adotando a do participante (HABERMAS, 1990:67).

5 Torna-se, então, possível traçar uma distinção entre as ações direcionadas ao entendimento, de um lado, e as ações orientadas à concretização de um fim, de outro – mesmo que, grosso modo, todas as ações sejam orientadas a um fim, ainda que seja o entendimento.

6 “Em geral, cada ação de fala pode ser criticada reiteradamente como inválida sob três aspectos: como inverídica, em relação a uma asserção feita (ou seja, pressupostos em relação à existência do conteúdo da asserção); como incorreta, em relação a contextos normativos existentes (ou em relação à legitimidade das normas pressupostas); e como não-sincera, em relação à intenção do falante” (HABERMAS, 1990:80). Como esclarece Galuppo (2002:118): a pretensão de verdade corresponde ao mundo objetivo, que é compartilhado por todos os seres, é o mundo da ciência, referindo-se à adequação do enunciado lingüístico para a descrição

Page 175: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

175

cooperada, haja vista não poder ser atingido de maneira individual. E mais, para que se possa

chegar ao significado de um ato de fala, faz-se necessário avaliá-lo à luz da pretensão de

validade correspondente que ele levanta.

Habermas irá diferenciar o uso da linguagem: como meio de transmissão de

informação7 ou como forma de buscar-se o entendimento – no primeiro caso, tem-se o que o

autor denomina de ação estratégica; no outro, a ação comunicativa. O agir comunicativo

compreende a ação de uma pessoa para convencer outra da validade de suas pretensões. É

uma ação que somente pode dar-se por um único meio: a fala, e pressupõe a produção de um

entendimento (HABERMAS,1987:1:367). Seu fim é, portanto, a produção do efeito

ilocucionário, ou seja, um consenso intersubjetivamente reconhecido acerca da validade de

uma pretensão criticável (ARAGÃO, 2002:115). Como todo o agir, também o agir comunicativo é uma atividade que visa a um fim. Porém, aqui se interrompe a teleologia dos planos individuais de ação e das operações realizadoras, através do mecanismo de entendimento, que é o coordenador da ação. O “engate” comunicativo através de atos ilocucionários realizados sem nenhuma reserva, submete as orientações e o desenrolar das ações – talhadas inicialmente de modo egocêntrico, conforme o respectivo ator – às limitações estruturais de uma linguagem compartilhada intersubjetivamente. O telos que habita nas estruturas lingüísticas força aquele que age comunicativamente a uma mudança de perspectiva; esta se manifesta na necessidade de passar do enfoque objetivador daquele que age orientado pelo sucesso, isto é, daquele que quer conseguir algo no mundo, para o enfoque performativo de um falante que deseja entender-se com uma segunda pessoa sobre algo (HABERMAS, 1990:130, grifos no original). Na ação estratégica (HABERMAS,1987:1:367), tem-se uma forma de ação

lingüística – porém, semelhante à ação instrumental8 – na qual o falante faz uso de outro

indivíduo como meio (instrumento) para a realização de um fim (seu sucesso pessoal). Tem-

se aqui uma busca pelo sucesso perlocucionário, isto é, influenciar o ouvinte (que se

transforma em mero objeto) para que este realize (ou deixe de realizar) o objetivo principal do

da realidade fática; a pretensão de veracidade corresponde ao mundo subjetivo, absolutamente individual, mundo esse representado pela arte ou pelos sentimentos e emoções, de modo que se refere à adequação entre aquilo que expressamos e aquilo que sentimos; por fim, a pretensão de correção está ligada ao mundo intersubjetivo, que congloba a Moral e o Direito, e refere-se à correspondência entre normas elaboradas para condução da ação humana em sociedade e para a solução dos conflitos práticos existentes.

7 “[..] no agir estratégico, a linguagem transforma-se num simples meio de informação, pois suspende-se o pressuposto de que a orientação tem como base pretensões de validade, em favor de pretensões de poder ou influência. No agir comunicativo, o ato de fala se justifica normativamente conforme pretensões de validade, pretensões à verdade proposicional, à correção normativa e à veracidade subjetiva” (SALCEDO REPOLÊS, 2003:64).

8 Segundo Baxter (2002b:495):”Both instrumental action and strategic action are oriented toward success rather than mutual understanding. They differ, however, along the lines of Habermas’s second distinction. Instrumental action is essentially the solitary performance of a task, according to ‘technical rules’. As such, instrumental action is ‘nonsocial’, in Habermas’s typology. Strategic action, by contrast, is designed to ‘influenc[e] the decisions of a rational opponent,’ according to ‘rules of rational choice.’ Instrumental actions may be elements of a pattern of social action – either communicative or strategic – but they do not themselves comprise a distinct type of social actions”.

Page 176: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

176

falante (WHITE, 1995:52). Dessa forma, o falante age na condição de observador, ou seja, ele

não se coloca na condição de participante da interação, nem busca saber sobre o

reconhecimento da pretensão levantada por parte do ouvinte; o que está em jogo é apenas a

concretização de seu próprio sucesso pessoal. A ação estratégica, portanto, vive de maneira

parasitária, pois depende, para seu sucesso, de que, pelo menos uma das partes, tome como

ponto de partida o fato de que a linguagem está sendo usada como forma de busca do

entendimento (HABERMAS, 1990:73).9

A partir desse prisma, pode-se entender uma nova proposta de compreensão

da racionalidade: enquanto para Weber, toda ação humana seria racional apenas se pudesse

ser justificada à luz da seleção dos melhores meios para a realização de um fim

(HABERMAS, 1987:1:361); para Habermas, além dessa dimensão instrumental da

racionalidade, há um nível comunicativo voltado para o entendimento entre os atores

sociais.10 Como toda ação social, que requer uma forma de interação lingüística, a

9 Para Baxter (2002b:495), a distinção entre ação comunicativa e ação estratégica torna-se mais nítida quando

compreendida não pela ótica da sua orientação – se para o entendimento, se para o sucesso pessoal, mas sim quando vista pela perspectiva dos mecanismos de coordenação desses dois tipos de ações. No caso da ação comunicativa, a ação se desenvolve através da problematização de pretensões de validade criticáveis (verdade, correção e veracidade), que são intersubjetivamente alcançadas e reconhecidas através de argumentos racionais apresentados e sustentados pelos falantes. Diferentemente, a ação estratégica desenvolve-se através de um processo de influência de um dos falantes sobre os demais. Por “influência”, Habermas quer expressar uma causa diversa de uma pretensão de validade, capaz de gerar uma força de convencimento equivalente a um reconhecimento mútuo da validade de uma pretensão. Como Habermas (1990:73) afirmou, o agir estratégico é parasitário, pois somente pode acontecer se pelo menos uma das partes acreditar que a linguagem está sendo utilizada para o entendimento. Um exemplo é bem ilustrativo: F(falante) pretende, através de uma ordem a O (ouvinte), fazer com que este dê dinheiro a Y, possibilitando-o ter condições de realizar um assalto; todavia o crime – que não tem o assentimento de O – não ocorreria se este último soubesse dos reais interesses de F e de Y. Nesse exemplo, temos o que Habermas (1990:75) denomina agir estratégico latente. Outra forma de influência, caracterizadora de um outro tipo, o agir manifestamente estratégico, é o caso do assaltante que profere uma ordem para que alguém lhe entregue dinheiro e bens de valor. Aqui, não há uma pretensão de validade subjacente a toda a dinâmica da interação lingüística. As condições de aceitabilidade racional são substituídas por condições de sanção. A linguagem preenche apenas a função de informação através da estrutura “se-então” da ameaça. Para melhor aclarar a questão, Habermas (1987:1:426) apresente o seguinte esquema:

Ação Instrumental Ação Social Ação Comunicativa Ação Estratégica

Ação Estratégica Latente Ação Manifestamente Estratégica

Engano inconsciente (comunicação

sistematicamente distorcida)

Engano consciente (manipulação)

10 A ação comunicativa distingue-se da ação instrumental (compreendida como modalidade de ação técnica que

busca adequar racionalmente os meios para se alcançar um fim determinado) por ser uma interação lingüisticamente mediada voltada para o entendimento. Como bem lembra Freitag (2002:240), a ação comunicativa tem como mérito a superação da filosofia da consciência e, com isso, a transformação da subjetividade em favor de uma intersubjetividade. As interações lingüisticamente mediadas devem pressupor a existência de um mundo da vida compartilhado, que atua como um pano de fundo de silêncio não problematizado. Assim, as proposições dele retiradas são irrefletidas e conduzem os falantes a uma

Page 177: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

177

racionalidade comunicativa estaria na base da sociedade, permitindo a interação entre os

atores e, conseqüentemente, sua integração.

Uma compreensão adequada da racionalidade comunicativa fornece uma

outra conseqüência importante: a suplantação da racionalidade prática típica da filosofia da

consciência. Mais do que uma simples troca de etiquetas, a proposta habermasiana propõe

que: a razão comunicativa distingue-se da razão prática, porque não está restrita a um ator

particular – ou mesmo a um macrosujeito (Estado ou Sociedade). Ela é possibilitada pelo

medium da linguagem, que concatena interações e estrutura as formas de vida, de modo que,

ao buscar um entendimento, os usuários da linguagem ordinária devem pressupor, entre outras

coisas, que os participantes buscam seus fins ilocucionários sem reservas, que eles vinculam

seu acordo ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis e que eles

estão prontos a assumir as obrigações resultantes de um consenso, relevantes para as

interações seguintes. O que, dessa forma, infiltra-se na base de validade do discurso também

se comunica às formas de vida reproduzidas através da ação comunicativa. A racionalidade

comunicativa, portanto, expressa-se em um complexo descentralizado de condições

transcendentalmente configurativas, mas ela não é uma faculdade subjetiva que diz aos atores

o que devem fazer (HABERMAS, 1998:65-66); os indivíduos que atuam comunicativamente

comprometem-se com pressupostos pragmáticos, assumindo certas idealizações,11 de modo

que serão os próprios atores sociais que, por meio da busca pelo entendimento comum,

chegarão a um consenso sobre as normas de ação válidas.

A assunção dessas idealizações como pressupostos contrafáticos revela que

a separação rígida – de referência platônica – entre o que seja “real” e o que seja “idealidade”

é posta em cheque. Cattoni de Oliveira (2002:37) esclarece que Habermas refere-se, em

substituição, a uma tensão entre realidade e idealidade: “[...] a realidade já é plena de

concordância à primeira vista. Contudo, pode acontecer que a pretensão de validade de uma dada proposição seja questionada em seu conteúdo de verdade da assertiva, na correção da norma apresentada ou na sinceridade do seu falante. O discurso é, então, a suspensão da pretensão de validade da proposição por meio de um procedimento fundamentado em argumentos racionais até que se chega a um consenso, restabelecendo o curso normal da ação comunicativa.

11 “Em primeiro lugar, [...] devem pressupor que estão atribuindo idêntico significado aos proferimentos que utilizam, isto é, devem pressupor a generalidade dos conceitos: presume-se que falantes e ouvintes podem entender as expressões gramaticais que utilizam de forma idêntica [...]. Em segundo lugar, eles devem pressupor que os destinatários estão sendo responsáveis, autônomos e sinceros uns com outros. Ou seja, devem pressupor que entre falante e ouvinte se estabelece uma relação de respeito e reconhecimento mútuo, caso contrário se estaria desqualificando o outro como interlocutor [...]. E em terceiro lugar, pressupor que falante e ouvinte vinculam os seus proferimentos a pretensões de validade que ultrapassam o contexto. Essas pretensões de validade são 1) à verdade proposicional [...]; 2) à veracidade subjetiva [...]; 3) à correção normativa [...]” (SALCEDO REPOLÊS, 2003:49-50).

Page 178: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

178

idealidade, em razão dos próprios pressupostos lingüísticos contrafactuais presentes em toda

interação comunicativa” (2002:37).12

Logo, é através da reconstrução da noção de racionalidade que se encontra o

fio condutor para pensar o problema da integração da sociedade. Mas uma advertência deve

ser feita: pensar a sociedade atual é pensar o problema da diferença, é pensar o pluralismo;

dessa forma, a ação social voltada para o entendimento adquire relevância, buscando

coordenar diversos planos de ação individuais. Por isso, o modelo de que Habermas se serve

não é o da comunicação entre uma comunidade de cientistas e especialistas, como fizera

Pierce, mas o da própria comunicação existente no interior da sociedade. Logo, sempre que

falantes dispostos ao entendimento engajam-se numa interação, eles encontram duas

possibilidades: (1) concordarem mutuamente sobre as pretensões de validade de seus atos de

fala; ou (2) levantarem pontos em que haja discordância, problematizando-os.

Novamente, retorna-se à tensão entre realidade e idealidade: como já

afirmado, para que se atinja o sucesso na busca por entendimento, uma série de idealizações

deverão ser feitas. Essas idealizações tomam lugar no que Habermas denomina de mundo da

vida (Lebenswelt) – conceito chave no pensamento desse autor – que representa [...] uma espécie de pano de fundo compartilhado intersubjetivamente, que está sempre presente para todos os atores lingüisticamente competentes, e que se estrutura através de tradições, instituições e identidades criadas a partir dos processos de socialização (FERREIRA, 2000:95). Uma vez que a maior parte das proposições não são – nem poderiam ser –

problematizadas na prática comunicativa, acabam por fugir da experiência crítica,

condensando-se nas certezas existentes no mundo da vida. Esse pano de fundo de silêncio

implícito no discurso é capaz de estabilizar a pressão problematizadora das experiências

comunicativas (HABERMAS, 1990:91), de modo que o risco de dissenso13 possa ser, pelo

menos em parte, contornado, fornecendo: (1) certeza imediata; (2) força totalizadora, por

12 Por isso mesmo, a teoria habermasiana, como registra Cattoni de Oliveira (2002:36-37), não está presa “[...] a

um único ponto de vista disciplinar, mas, pelo contrário, permanece aberta a diferentes pontos de vista metodológicos (participante x observador), a diferentes objetivos teóricos (explicação interpretativa e análise conceitual x descrição e explicação empírica), a diferentes papéis sociais (do juiz, dos políticos, dos legisladores, dos clientes e dos cidadãos) e a diferentes atitudes pragmáticas de pesquisa (hermenêuticas, críticas, analíticas, etc.), a fim de que uma abordagem normativa não perca o seu contato com a realidade, nem uma abordagem exclua qualquer aspecto normativo, mas permaneçam em tensão”.

13 Bahia (2003:226-227) explica que o risco de dissenso é gerado pela tensão decorrente do posicionamento de afirmações e negações frente às pretensões de validade e da própria instabilidade gerada pelo caráter contrafático dos pressupostos da comunicação.

Page 179: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

179

possuir um ponto central, mas limites indeterminados; (3) natureza holística, pois trata-se de

um saber intransparente, no qual seus conteúdos encontram-se liqüefeitos.14

Como um todo, o mundo da vida só atinge o campo da visão no momento em que nos colocamos às costas do ator e entendemos o agir comunicativo como elemento de um processo circular no qual o agente não mais aparece mais ? como indicador, mas como produto de tradições nas quais ele está inserido, de grupos solidários aos quais ele pertence e de processo de socialização e de aprendizagem, aos quais ele está submetido (HABERMAS, 1990:83). É, por isso, que o mundo da vida tem como estruturas: (1) a cultura,

entendida como “o armazém de saber do qual os participantes da comunicação extraem

interpretações no momento em que se entendem mutuamente sobre algo” (HABERMAS,

1990:83), logo é responsável por fornecer substratos simbólicos diferentes aos falantes; (2) a

sociedade, composta por ordens legítimas nas quais participantes regulam sua pertença a

grupos sociais e garantem solidariedade, tais ordens mostram-se como institucionais por

fornecerem as normas do Direito ou práticas e costumes; e (3) as estruturas de personalidade,

que representam o substrato dos organismos humanos. Destarte, a sociedade forma-se e

reproduz-se por meio do agir comunicativo que tem como pressuposto um mundo da vida

simbolicamente compartilhado.

Mas deve ser lembrado que as sociedades modernas apresentam uma

pluralização das formas de vida, além de uma individualização das biografias, fenômeno esse

que faz com que se diminuam as zonas de convergência do mundo da vida (BAHIA,

2003:227).15 Após o rompimento das amarras tradicionais (ligadas à religião e à obediência

14 “Durante la acción comunicativa el mundo de la vida nos envuelve en el modo de una certeza inmediata, desde

la que vivimos y hablamos sin distancia respecto a ella. Esta presencia penetrante, a la vez que latente y desapercibida, del trasfondo de la acción comunicativa puede describirse como una forma imensificada y, sin embargo, deficiente de «saber» y de poder. Por un lado, hacemos involuntariamente uso de este saber, sin saber reflexivamente que poseemos tal saber. Lo que dota al saber de fondo de tal certeza absoluta y le presta subjetivamente la calidad más elevada y apurada de saber, es, considerado objetivamente, esa propiedad que precisamente le priva de un rasgo constitutivo del saber: hacemos uso de ese tipo de saber sin tener conciencia de que pudiera ser falso. En la medida en que todo saber es falible y en que nos resulta consciente como tal, el saber de fondo no representa saber alguno en sentido estricto. La falta de relación interna con la posibilidad de volverse problemático, porque sólo en el instante en que queda dicho u expresado entre en contacto con pretensiones de validez susceptibles de crítica, pero en ese mismo instante en que es tematizado ya no opera como trasfondo sino que se deshace, se viene abajo en esa su modalidad de saber de fondo. El saber de fondo no puede ser «falsado» como tal; pues se decompone tan pronto como, al volverse temático, cae en el remolino de las posibilidad de problematización. Lo que presta su peculiar estabilidad y lo inmuniza contra la presión de las experiencias generadores de contingencia, es la peculiar neutralización que en ese saber se efectúa de la tensión entre facticidad y validez: en la dimensión misma de la validez queda apagado ese momento contrafáctico de una idealización que apunta más allá de lo dado en cada caso, el cual momento es el que empieza posibilitando una confrontación con la realidad, en la que ésta pueda defraudar nuestras expectativas; a la vez permanece intacta la dimensión como tal de la que el saber implícito extrae la fuerza que tienen las convicciones” (HABERMAS, 1998:84, grifos no original).

15 Freitag (2005:161) afirma que é possível encontrar dentro do projeto habermasiano uma “teoria da modernidade” conectada ao conceito de razão comunicativa integrando sistemas sociais e mundo da vida, que, todavia, se encontra espalhada e imersa em suas múltiplas publicações. Habermas, diferentemente de teóricos

Page 180: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

180

consuetudinária), tudo pode ser alvo de questionamento. Mas isso não pode ser

compreendido apenas por um prisma negativo: “[...]só se produz consenso a partir do

dissenso, ao mesmo tempo em que todo consenso é apenas o primeiro passo para um dissenso

futuro” (BAHIA, 2003:228). Duas são as saídas apontadas por Habermas: (1) uma limitação

do campo de problematização dado aos participantes; ou (2) reconhecer que, em sociedades

complexas, a ação comunicativa pode – e deve – desempenhar um importante papel de

integração social, para tanto, ela tem de se valer de seus próprios recursos para “domesticar” o

risco de dissenso. Logo, o mundo da vida e a ação comunicativa representam duas noções

fundamentais. O conceito “mundo da vida”, explicitando desta maneira, não fornece apenas uma resposta à questão clássica: como é possível a ordem social? Através da idéia do entrecruzamento dos componentes do mundo da vida, é possível responder também a uma outra questão da teoria clássica da sociedade, ou seja, ao problema da relação entre indivíduo e sociedade. O mundo da vida não forma um ambiente cujas influências contingentes o indivíduo teria que combater a fim de auto-afirmar-se. O indivíduo e a sociedade não formam sistemas que se encontram em seu ambiente e que se referem um ao outro de modo externo, como se fossem observadores. De outro lado, porém, o mundo da vida não constitui uma espécie de recipiente no qual os indivíduos estariam incluídos como partes de um todo. A figura de pensamento utilizada pela filosofia do sujeito fracassa do mesmo modo que a teoria do sistema (HABERMAS, 1990, p. 99). A partir dessa nova perspectiva, torna-se possível compreender por que

tanto as explicações providas pela filosofia do sujeito – por centraram sua leitura na figura dos

indivíduos isolados da sociedade – quanto as da teoria dos sistemas – que buscando fugir da

primeira, anula a figura do indivíduo, compreendendo a sociedade a partir de subsistemas

sociais que operacionam funções próprias, mas não interconectadas – acabam por fracassar na

explicação da ordem social. Todavia, Habermas não nega a importância dos estudos sobre os

sistemas sociais; na realidade, ele discorda dessas abordagens por considerá-las apenas

capazes de enxergar um lado da questão: ao assumirem o papel de observador, apenas são

capazes de descrever os processos funcionais que acontecem na sociedade, sem se dar conta

da relação existente entre esses sistemas e o mundo da vida; uma vez que a abordagem

sistêmica lança mão apenas da racionalidade instrumental, própria dos sistemas que

simplesmente funcionam, sem se preocupar com questões referentes à validade. Além do

mais, a racionalidade sistêmico-instrumental tende a se expandir, causando uma patologia que

como Lyotard, Derrida, Souza Santos, compreende a modernidade à luz de caráter normativo, formulado como um “projeto” atado aos ideais racionais iluministas. Sobre isso ver, principalmente: (1) HABERMAS, Jürgen. Discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção Tópicos); (2) HABERMAS, Jürgen. Concepções da Modernidade: um olhar retrospectivo sobre duas tradições. In: HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001; e (3) FREITAG, Barbara. A teoria da modernidade de Jürgen Habermas. In: FREITAG, Barbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005.

Page 181: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

181

Habermas denominará de colonização do mundo da vida.16 Assim, as dúvidas sobre a

possibilidade de manutenção da ordem social apenas vão se acumulando: por um lado, devido

à constante ameaça de destruição do mundo da vida por parte dos imperativos funcionais dos

sistemas sociais; por outro, em razão do constante risco de dissenso causado pelo

enfraquecimento do mundo da vida devido à crescente pluralização das formas de vida e pela

possibilidade de se lançar mão de ações estratégicas (HABERMAS, 1998:87).

É, diante desse quadro, que Habermas compreenderá a crescente importância

atribuída ao Direito: de maneira dúplice, o Direito moderno é capaz de limitar o campo de

ações estratégicas por meio da imposição de sanções – de modo que essas adaptem-se ao

padrão de comportamento socialmente aceito, revelando a tensão entre coerção factual e

validade legitimadora – e de organizar o sistema econômico e o sistema administrativo,

equilibrando-os com a racionalidade comunicativa (HABERMAS, 1998:102) de forma a

conferir legitimidade aos seus imperativos funcionais e a integrá-los nos processos de

manutenção da ordem social. Mas, para que o Direito cumpra essa função, primeiro ele deve

passar por um complexo processo de reconstrução.

4.2. O Direito como um dos mecanismos de garantia da integração social: a mediação da

tensão entre facticidade e validade

A obra de 1994, Faktizität und Geltung17 – ou, como se tornou conhecida

pelos pesquisadores brasileiros, Facticidade e Validade – representa um marco no

pensamento habermasiano no que se refere à compreensão do Direito. Aqui o autor apresenta

uma revisão completa das idéias apresentadas na sua Teoria da Ação Comunicativa (1987) –

TAC – abrindo-se para uma nova perspectiva, o que veio causar estranhamento em diversos

16 A colonização do mundo da vida é explicada por Freitag (2002:239) como o processo resultante da expansão

da racionalidade instrumental utilizada pelos imperativos funcionais do sistema econômico e do sistema político-burocrático, que invadem o mundo da vida desalojando e expulsando a racionalidade comunicativa. Assim, onde antes havia processos de interação sociais regidos por uma racionalidade comunicativa, passa-se a ter uma racionalidade instrumental. Como conseqüência, aponta-se uma crise de legitimidade das decisões sobre o Direito, o que põe em risco o processo de integração social, uma vez que o Direito não somente mantém contato com o código proveniente na linguagem coloquial ordinária, como por ele ainda transitam mensagens provenientes dos códigos do sistema econômico e do sistema político-burocrático (HABERMAS, 1998:146).

17 A pesar de haver uma tradução para o português da referida obra sob o título de Direito e Democracia (1997), a presente pesquisa serve-se das versões para o espanhol, de Jiménez Redondo (1998), e para o inglês, de Rehg (1996) por considerá-las mais adequadas.

Page 182: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

182

leitores,18 que passaram a adotar três atitudes divergentes: (1) procuraram assimilar a nova

posição;19 (2) ignoraram essa posição, mantendo seu posicionamento a partir das bases

fixadas na TAC, como se as obras posteriores não tivessem a mesma relevância;20 ou (3)

criticaram pesadamente o autor, alegando que o mesmo estaria promovendo um abandono –

ou até mesmo uma diluição – da tradição filosófica para o pensamento jurídico.21 A mudança

de curso, para alguns, chega a ser tão radical, que passa-se a identificar a existência de dois ou

mais Habermas – ordenando-os cronologicamente, tal qual aconteceu com Wittgenstein

(NIQUET, 2002:67; 2002:95). Todavia, uma outra interpretação pode ser assumida: o que

alegam ser um giro para o Direito, na realidade, não destoa tanto do projeto habermasiano;

tratar-se-ia de um desenvolvimento da idéia inicial, presente já nos primeiros escritos sobre a

linguagem, que, entretanto, para se firmar com coerência, certamente levou o autor a perceber

a necessidade de correção e reestruturação da compreensão de Direito22 – lançada em

escritos posteriores ao Facticidade e Validade – principalmente no que toca a relação entre

esse e a Moral e ao seu entendimento como categoria da integração social.

De maneira sintética – uma vez que uma abordagem mais detalhada foge do

escopo da presente pesquisa – a TAC apresenta o Direito a partir de dois prismas: (1) atrelado

aos sistemas sociais, funcionando como meio de organização desses. Aqui o Direito

18 Esse ponto foi objeto de um questionamento explícito em entrevista fornecida a Jiménez Redondo, transcrita

na obra Más allá del Estado Nacional (2000:170-171). Aqui, Habermas revisa sua idéia de juridização (Verrechtlichung) apresentada na TAC (1987:2:503), que, em linhas gerais, era concebida como: (1) um aumento do Direito escrito nas sociedades modernas, em razão de uma maior extensão dos assuntos absorvidos pelo Direito e em substituição aos meios informais de resolução; (2) uma densificação do tratamento jurídico, levando a sua subdivisão a fim de acomodar toda a complexidade de questões em uma ótica especializada (CHAMON JUNIOR, 2005:184). Agora, o modelo da juridização representa um modelo atrelado aos paradigmas do Estado Liberal e Estado Social, o qual quer contrapor com sua leitura procedimentalista do Estado Democrático de Direito. Isso não significa que a questão esteja posta de lado, pois ela ainda representa uma preocupação para o autor, principalmente no plano de aplicação do direito constitucional, uma vez que, na seqüência do Tribunal Constitucional alemão, os Tribunais Constitucionais (mas também os demais Tribunais Superiores, de um modo geral) acabam convertendo-se em uma espécie de legislador paralelo ou, até mais grave, em um Poder Constituinte permanente, como o caso alemão (HABERMAS, 2000:171), tomando a Constituição como uma “ordem concreta de valores”.

19 Nesse sentido, têm-se as pesquisas conduzidas por Carvalho Netto, Cattoni de Oliveira, Souza Cruz, Chamon Junior, que, cada vez mais, ganharam destaque no cenário nacional no estudo da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia.

20 Sobre esse segundo grupo, ver Chamon Junior (2005:219). 21 Esse é o caso da posição assumida por Niquet (2002:103): “Os discursos de aplicação da moral passam então a

ser discursos de aplicação e de fundamentação do direito, e a teoria do discurso a partir da moral passa a ser uma teoria do discurso do direito”.

22 “Definitivamente Habermas parte, em seu capítulo I de Faktizität und Geltung, a uma reapresentação das questões antes trabalhadas em sua Theorie des kommunikativen Handelns. O enfoque lingüístico-pragmático mantém a obra de Habermas conectada ao seu projeto anteriormente lançado, qual seja, de determinar, ou mesmo clarificar, aquilo que venha a ser considerado como ‘racionalidade’ em um mundo dessacralizado como o mundo moderno. Mas, [...] se este é o cordão que mantém uma continuidade em seus escritos, por outro lado Habermas, no que tange ao Direito, rompe com a compreensão que vinha desenvolvendo desde a Theorie des kommunikativen Handelns e passando pelas Tanner Lectures” (CHAMON JUNIOR, 2005:218).

Page 183: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

183

apareceria como um meio,23 isto é, instrumentalizado para a organização dos sistemas sociais

que operam através de uma linguagem própria – poder e dinheiro. Como conseqüência, o

Direito ficaria aliviado da problemática acerca de sua fundamentação material, bastando que

suas normas tivessem observado o processo correto de produção. Seria o caso das normas de

direito civil, direito empresarial, direito econômico, etc. (HABERMAS, 1987:2:516;

CHAMON JUNIOR, 190). E (2) ligado ao mundo da vida, como uma instituição. Toda

questão referente aos “fundamentos” do Direito bem como os princípios estariam ligados a

uma estrutura mais complexa que combina procedimento formal e legitimidade material para

a formação das normas jurídicas – é o que Habermas chama de institucionalização do Direito.

Isso porque tais princípios materiais refletiriam uma determinada “moralização” da parte do

Direito – como o direito constitucional, direito penal, etc. – de forma a encontrar, no campo

da Moral, uma fundamentação legitimadora (HABERMAS:2:516; CHAMON JUNIOR,

2005:191). O Direito, então, estaria de alguma forma subordinado à Moral. Enquanto o Direito como meio teria o papel de organizar e constituir controladamente o Estado e a Economia, o Direito como via institucionalizadora de questões de conteúdo moral não teria qualquer papel constitutivo, mas antes tão-somente regulativo. Isso porque as instituições jurídicas, na medida em que se apresentam conectadas ao mundo da vida, encontram-se num âmbito político-cultural e social, guardando, assim, uma relação de continuidade das normas éticas pelo fato de que são institucionalizadas através da sanção estatal aquilo que anteriormente já se encontrava informalmente constituído (CHAMON JUNIOR, 2005:191, grifos no original). A conseqüência dessa separação seria a constatação de uma colonização do

mundo da vida pelo Direito: o Direito tomado como meio servia aos sistemas sociais,

permitindo o desalojamento da ação orientada pelo entendimento, substituindo pretensões

compartilhadas e presentes no mundo da vida por uma racionalidade instrumental unicamente

limitada pela correção do procedimento de produção normativo.24 A solução, então,

decorreria da criação de espaços de discussão, nos quais o controle institucional não estivesse

presente, possibilitando a racionalidade comunicativa alcançar seu curso, sem o uso de

respostas jurídicas prontas e acabadas (HABERMAS, 1987:2:527; CHAMON JUNIOR,

2005:193). [Todavia, a] falha de Habermas foi ter excluído, de antemão, a questionabilidade de uma “legitimidade material” do Direito como meio, seja pelo fato de a legitimidade ser

23 “O direito como meio tem um papel puramente funcional, mais precisamente no sentido de que suas normas

servem para estabilizar as relações de troca econômica e dizem respeito ao agenciamento administrativo ou mesmo burocrático da sociedade. Sua função é de ordem sistêmica, pois consiste em assegurar a reprodução do sistema econômico e do sistema administrativo tornados amplamente autônomos nas sociedades contemporâneas. O direito como meio serve de instrumento para a coordenação da ação social sem recurso direto às instituições normativas dos atores” (BILLIER e MARTYOLI, 2005:434, grifos no original).

24 “[...] o Direito acaba regulando situações do mundo da vida que ao invés de se legitimar perante esta mesma esfera – como seria o esperado na lógica do campo denominado ‘Direito como Instituição’ – acabaria sendo legitimado por um mero procedimento formal de produção legislativa” (CHAMON JUNIOR, 2005:193).

Page 184: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

184

“transferida”pelas normas constitucionais ligadas ao mundo da vida, seja pelo fato de determinadas questões serem “alheias” ao mundo da vida. Preferiu uma legitimidade pelo mero procedimento que, por sua vez, obscurecia e, como dito, às vezes excluía uma possível argumentação de justificação fundada em princípios morais (CHAMON JUNIOR, 2005:201). Essa posição será revista na obra Facticidade e Validade, abolindo a

distinção de Direito meio/Direito instituição, uma vez que reconhecerá a capacidade de o

Direito, tomado como um todo, ser justificado perante o mundo da vida, mas sem subordiná-

lo à Moral; isto é, reconhecendo que o Direito não representaria um caso especial da

argumentação moral, tese defendida por Alexy (HABERMAS, 1987:1:60; CHAMON

JUNIOR, 2005:203)25 e que será tão duramente criticada pelo próprio autor. Todavia, esse é

um estágio final de seu pensamento, que contou ainda com uma fase preliminar de maturação,

como se verá a seguir; pois, em sua Tanner Lectures, em 1986, Habermas retoma a questão.

Inicia-a pela reconstrução dos estudos de Weber sobre o conceito positivista de Direito:

Direito é o que o Legislador político estabeleceu conforme um procedimento juridicamente

institucionalizado (HABERMAS, 1998:535). A racionalidade jurídica, então, estaria referida

à sua forma jurídica em si, de modo que sua legitimidade decorreria das formalidades

necessárias para sua positivação, sem que fossem necessárias quaisquer outras razões,

inclusive referentes às questões morais (CHAMON JUNIOR, 2005:205). No entanto, tal tese

será criticada: a legitimidade do Direito também, dirá Habermas (1998:544-545), está atrelada

a uma relação interna entre Direito e Moral.26

É importante esclarecer que essa relação interna entre Direito e Moral não

representa a assunção de uma concepção metafísica ou tradicional; a legitimidade do Direito é

compreendida a partir de uma perspectiva procedimental, de modo que deriva de um

conteúdo moral implícito que norteia o processo de produção de normas sob à luz de uma

racionalidade prático-moral.27 Por isso mesmo, ganha relevo a questão da imparcialidade –

25 “Mas é interessante perceber que nem o próprio Habermas leva a sério esta sua afirmação de que o discurso

jurídico seja um caso especial do discurso moral. O princípio da ‘ética’ do discurso não está, sequer, sendo tomado a sério, em termos morais, equivale dizer, perante determinadas situações jurídicas delineadas, que referir-se a um discurso jurídico ‘especial’ de um discurso moral se mostra impreciso como no tocante a questões referentes, por exemplo, ao Direito como meio. Na medida em que Habermas entende o mundo da vida, sendo alheio a questões morais, como tratar uma discussão atinente ao Direito como meio através de um discurso especial da moral? A inadequação aqui se faz em dois níveis: a) entender o princípio do discurso argumentativo do Direito como um caso especial do princípio moral e b) pretender fazer uma separação entre Direito de ‘conteúdo moral’ e Direito ‘sem conteúdo moral’, ou indiferente a este/independente desde” (CHAMON JUNIOR, 2005:204).

26 Vê-se, então, que Habermas abandona de vez a separação efetuada na TAC (1987), reconhecendo que mesmo normas de Direito Empresarial podem trazer um princípio moral (CHAMON JUNIOR, 2005:211).

27 “[...] es posible la legitimidad a través de la legalidad en la medida en que los procedimientos establecidos para la producción de normas jurídicas sean también racionales en el sentido de una racionalidad procedimental práctico-moral y se pongan en práctica de forma racional. La legitimidad de la legalidad se debe a un

Page 185: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

185

seja nos processos de legislação, seja nos processos de aplicação do Direito. Imparcialidade,

para Habermas, deve ser compreendida em termos morais e conforme as teorias da justiça que

propõem uma solução que antecede a institucionalição do Direito, centrando-se no moral

point of view (HABERMAS, 1998:555; CHAMON JUNIOR, 2005:213). A argumentação moral surgiria como processo racional de formação da vontade em que os participantes deste discurso assumem que todos aqueles que serão afetados poderiam também participar na formação dessa “vontade” de maneira livre e igual, entendendo como coerção aquela verificada em face dos melhores argumentos (CHAMON JUNIOR, 2005:213). Nessa perspectiva, tanto o Direito quanto a Moral compartilhariam de uma

racionalidade procedimental, de modo que um não se confunde com a outra, como queriam os

jusnaturalistas, mas há um compartilhamento: Agora, enquanto os discursos institucionalizados permitem uma aproximação a uma racionalidade procedimental “perfeita” – porque um não implicado poderia questioná-la a partir do próprio Direito –, o procedimento moral já se apresentaria como “imperfeito”, pois somente os envolvidos poderiam realizar um juízo acerca da validade em razão da falta de critérios externos ou prévios (CHAMON JUNIOR, 2005:214). Direito e Moral, então, estariam em uma relação de complementaridade –

não mais de subordinação. Mas, mesmo assim, trata-se de uma complementação da Moral

pelo Direito que se dá moralmente.28 O Direito, nessa visão, surge como “compensação de

uma Moral autônoma e que apresenta déficits na medida em que se verifica em um momento

pós-tradicional” (CHAMON JUNIOR, 2005:215, grifo no original). Além disso, o Direito

acaba exonerando os indivíduos de uma fundamentação moral para suas ações, bastando

apenas uma referencia ao Direito (HABERMAS, 1998:558-559).

Em síntese: a Moral encontrar-se-ia no interior do Direito; sem, contudo,

esgotá-lo. Essa moralidade não se refere ao conteúdo jurídico – como queriam os

jusnaturalistas – mas direciona-se aos procedimentos de justificação e aplicação das normas

jurídicas. No primeiro caso, a legitimidade jurídica deriva do princípio moral que levanta uma

exigência de assentimento geral para que se alcance a imparcialidade – princípio de

universalização. Ao passo que, nos processos de aplicação do Direito, a idéia de

entrelazamiento de procedimientos jurídicos con una argumentación moral que a su vez obedece a su propia racionalidad procedimental” (HABERMAS, 1998:545).

28 “[...] na medida em que os discursos jurídicos também se baseiam em um ‘princípio moral’ de tratar todos como livres e iguais, temos que a efetividade de tais normas legítimas, embora não possa ser cobrada de um ponto de vista moral, pode ser determinada desde uma ótica jurídica, o que vem, então, justamente, justificá-lo moralmente – na medida da igualdade – tanto do ponto de vista da efetividade quanto da exigibilidade – como complemento da Moral, pois se nesta há necessidade de observância da norma por todos, todos devem individualmente reconhecê-las e motivar-se por elas; no campo jurídico tal déficit é superado funcionalmente ainda que o Direito seja justificado moralmente” (CHAMON JUNIOR, 2005:215).

Page 186: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

186

imparcialidade decorre da compreensão adequada de todos os aspectos relevantes da situação

concreta – senso de adequabilidade.29

Como já adiantado, na obra Facticidade e Validade, Habermas apresentará

uma reformulação das propostas anteriores. Aqui a análise passa para a discussão acerca das

condições, possibilidade e legitimidade do Direito nas sociedades contemporâneas pós-

tradicionais, nas quais o Direito se tornou positivo – isto é, tem-se um Direito escrito,

histórico, contingente, modificável e coercitivo, mas que também é garantidor de liberdade

(CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:174). O Direito positivo, então, apresentaria duas

propriedades importantes: ele atua como fator de limitação, uma vez que estabiliza

expectativas de comportamento generalizáveis, podendo, para isso, fazer uso de sanções; e

como fator de deslimitação, já que abre a possibilidade de que todas as normas sejam

criticáveis – seja no processo legislativo, seja nos processos de aplicação de normas (BAHIA,

2003:230).30

Assim o Direito moderno consegue artificialmente garantir a integração

social, sem necessidade de apoiar-se em algum vínculo ético. A solidariedade social está

baseada, em um nível pós-tradicional, numa fundamentação procedimental: na afirmação de

que o destinatário da norma é também seu criador (HABERMAS, 1998:96). Além do mais, o

Direito adquiriu a capacidade de funcionar como dobradiça entre sistemas sociais e o mundo

da vida (HABERMAS, 1998:120; BAHIA, 1998:232)31. Uma vez que os sistemas sociais

29 “Como ha demostrado Klaus Günther, en los contextos de fundamentación [discursos de justificação] de

normas la razón práctica se hace valer examinando si los intereses son susceptibles de universalización, y en los contextos de aplicación de normas [discursos de aplicação] examinando si se han tenido en cuenta de forma adecuada y completa todos los aspectos relevantes a là luz de normas que pueden colisionar entre si” (HABERMAS, 1998:585).

30 “El mecanismo de coordinación de la acción que representa el lenguaje introduce en la propia empiria social una tensión, que, desde un punto de vista funcional, por ser ella misma una fuente sistemática de dorden, ha de quedar elaborada y estabilizada mediante mecanismos diversos. El derecho positivo moderno es uno de esos mecanismos, tan inverosímil como sorprendente; limita estrictamente la necesidad de acuerdo en la interación corriente sustituyéndola por la posibilidad de apelar en todo momento a normas coercitivas a las que el destinatario queda sujeto sin posibilidad de cambiarlas, a la vez que en el plano de la producción del derecho deslimita por entero la posibilidad de desacuerdo (y, por tanto, de introducir cambios en las nromas de primer orden) sometiéndola a la vez a una estricta regulación reflexiva que, por tanto, prevé, (dejándolo libre a la vez que regulándolo) incluso el desacuerdo que verse, no ya sólo sobre las normas de primer orden, sino sobre esa misma regulación reflexiva; también la Constitución puede cambiarse conforme a derecho; ello suscita la cuestión acerca de la naturaza de las normas o del sistema de normas com el que todo ello es posible” (JIMÉNEZ REDONDO, 1998:18).

31 No transcurso da tradição filosófica contratualista que vai de Hobbes a Hegel, o Direito Natural serviu como categoria chave para explicar a mediação de todas as relações sociais; mas, a partir das críticas dos filósofos morais escoceses e, especialmente, a partir de Smith e Ricardo, esse Direito Natural racional perde terreno para uma economia política que interpreta a sociedade civil à luz de uma esfera do comércio e do trabalho, regulada por lei autônomas – uma “mão invisível” ou um “sistema de necessidades”, como queria Hegel – de modo que os indivíduos perdem sua liberdade (HABERMAS, 1998:106-108). Marx, por sua vez, irá criticar essa economia política, compreendendo que a sociedade burguesa transforma-se em um sistema social autônomo, dotado de lógica própria e regido por imperativos econômicos. Assim, o Direito perde sua posição

Page 187: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

187

desenvolveram linguagens próprias e especializadas, carecem de meios para receber os

influxos comunicativos provindo do mundo da vida; todavia este por ater-se a uma linguagem

ordinária e reflexiva, continua capaz de compreender aqueles, mas o inverso não ocorre. O

Direito, então, fornece essa ligação através de seu próprio código (HABERMAS, 1998:120;

BAHIA, 2003:232).32

O Direito, portanto, é capaz de substituir o lugar das garantias metassociais

que – em sociedades tradicionais de tipo medieval – eram derivadas de uma amálgama que

estabilizava a tensão entre facticidade e validade das pretensões, “na medida em que o

‘sagrado’ não só significava uma autoridade, como também limitava o campo de

problematização” (CHAMON JUNIOR, 2005:227). As práticas passadas ao longo de cada

geração seriam dotadas de uma natureza sagrada, imutável, o que as imunizaria de críticas, de

modo que sua observância seria garantida pelo medo da sanção; isso acabaria por fundir

facticidade (coerção/ameaça) e validade (força vinculante).33

Todavia, uma saída que encontre forças de coesão social em um elemento

considerado sagrado ou em qualquer outra forma de justificação metassocial, não está

disponível para uma sociedade pós-tradicional e pluralista, como é a sociedade

contemporânea. As antigas instituições fortes não mais conseguem dar cabo da tarefa de

compensação ou atenuação dos déficits de estabilidade social; as certezas, que antes eram

postas como inquestionáveis pela tradição, não são mais suficientes, a questão da integração

social desloca-se, agora, para os processos de entendimento mútuo, regidos pela ação

comunicativa (HABERMAS, 1998:87; CHAMON JUNIOR, 2005:230).

chave e, em especial, seu caráter normativo. A coesão social, então, nessa teoria assentar-se-ia sobre as relações de produção (HABERMAS, 1998:108-109, SALCEDO REPOLÊS, 2003:45). Todavia, as teorias sociológicas de natureza sistêmicas devolvem ao Direito parte de sua autonomia perdida, mas sob a forma de um subsistema social, isolado funcionalmente. A compreensão normativa é substituída por uma leitura funcionalista: o Direito serve para estabilizar expectativas de comportamento e para solução de conflitos apoiado em um código binário: licitude/ilicitude. A leitura habermasiana, contudo, segue por uma outra via: opta por uma leitura “não-derotista” da racionalidade humana, lançando para o estudo do Direito um questionamento profundo acerca de suas condições de legitimidade, assentadas em pretensões de validade compartilhadas a partir de um mundo da vida. É justamente o empreendimento de um estudo meticuloso dessa última categoria que permitirá a Habermas lançar uma nova proposta para o Direito, uma proposta reconstrutiva.

32 “Para la traducción a códigos especiales depende del derecho, el cual está en comunicación con los medios del control o regulación que son el dinero y el poder administrativo. El derecho funciona, por así decir, como un transformador, que es el que asegura que la red de comunicación social global sociointegradora no se rompa. Sólo en el lenguaje del derecho pueden circular a lo ancho de toda sociedad mensajes de contenido normativo; sin la traducción al complejo código que el derecho representa, abierto por igual a sistema y mundo de la vida, esos mensajes chocarían con oídos sordos en aquellos ámbitos de acción regidos por medios sistémicos de regulación o control” (HABERMAS, 1998:120).

33 “En las instituciones de las sociedades tribales, protegidas siempre por algún tipo de tabú, expectativas cognitivas y normativas se afianzan indivisas formando un complejo de convicciones asociado con motivos y con orientaciones valorativas” (HABERMAS, 1998:85).

Page 188: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

188

Percebe-se, então, que em uma sociedade tão diferenciada não há mais que se pretender vislumbrar uma neutralização entre faticidade e validade, enquanto integração garantida pelas certezas tradicionais homogêneas do mundo da vida ou da redução sacro-autoritária (de autoridade) da validade à faticidade: a estabilidade moderna só pode ser alcançada, na instabilidade, de maneira comunicativa – o que não impede os indivíduos de buscarem seus próprios interesses (CHAMON JUNIOR, 2005:230-231, grifos no original). Dessa forma, o Direito também ganha importância ímpar: já que é aberta a

possibilidade de os indivíduos buscarem seus próprios interesses, lançando mão, inclusive, da

ação estratégica – em vez da ação comunicativa. O Direito é capaz de apresentar um freio

normativo, regulando e limitando a ação estratégica; são os próprios atores sociais que – por

meio de um acordo ou entendimento a partir de pretensões de validade intersubjetivamente

reconhecidas – fixam os espaços e condições nos quais essa racionalidade estratégica seria

aceitável (HABERMAS, 1998:88-89). E isso acontece com o Direito como um todo, o que

joga por terra a antiga diferenciação de Direito como meio/Direito como instituição: o fato de

o Direito ser meio de organização do Estado e da Economia não retira do mesmo a

necessidade de voltar-se para questões de legitimidade. O Direito surge em Faktizität und Geltung como meio de organização, mas também como instituição, simultaneamente e contraditoriamente na medida em que a validade, agora vislumbrada na faticidade da coerção normativamente delineada, pode ser sustentada comunicativiamente perante todos na exata medida em que é justificável em um sistema de direitos que abre a todos a possibilidade participativa [...] (CHAMON JUNIOR, 2005:234, grifos no original). O Direito moderno ainda acaba por aliviar os sujeitos do fardo da

integração social: os conflitos que trazem um alto grau de dissenso – principalmente porque

os envolvidos deixam de estar submetidos à busca por um entendimento mútuo – podem ser

resolvidos a partir da própria tensão entre facticidade (coerção) e validade (aceitabilidade),

garantindo uma resposta adequada e legítima; o mesmo, todavia, não pode ser constatado na

posição decisionista assumida pela tradição positivista, que vira as costas para as pretensões

de legitimidade jurídica (HABERMAS, 1998:101). Resumindo a questão, tem-se que: O papel principal do Direito no que se refere à integração social se deve ao fato de que o risco do dissenso resta neutralizado agora não mais por uma autoridade sacra ou por instituições fortes que mantinham fora do criticável determinados conteúdos axiológicos e deontológicos. O posto de centralidade do Direito se deve a uma limitação na medida em que a validade das normas não pode ser questionada quando de uma pretensão individual orientada ao êxito. O Direito legítimo é coercitivo e esta coercibilidade possível reflete a aceitabilidade racional e não-questionabilidade da validade desse fato – cisão entre facticidade e validade. Do contrário, o risco de dissenso estaria absurdamente largado, o que colocaria em risco a própria solidariedade social garantida, em última instância, pela ação comunicativa que, assim, fica aliviada de buscar soluções orientadas ao entendimento (CHAMON JUNIOR, 2005:236).

Page 189: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

189

4.3. A formação do sistema de direitos a partir de uma compreensão de eqüiprimordialidade

entre autonomia pública e autonomia privada e a reconstrução dos princípios informadores do

Estado de Direito

Uma vez que foi possível compreender o papel que é posto ao Direito

positivo moderno no processo de integração social – bem como a mudança de posição

assumida por Habermas em seus últimos trabalhos publicados – deve-se passar a um olhar

mais aprofundado sobre a construção do sistema de direitos à luz de uma compreensão

equiprimordial entre autonomia pública e autonomia privada.

Com o processo de desencantamento, o Direito moderno se configura como

parte de um sistema de normas positivas e obrigatórias; todavia essa positividade vem

associada a uma pretensão de legitimidade, de modo que normas expressam uma expectativa

no sentido de preservar eqüitativamente a autonomia de todos os sujeitos de direito

(HABERMAS, 2002b:286; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:174). Segundo Habermas

(2002b:286), o processo legislativo deve ser suficiente para atender a essa exigência. Há uma

relação entre o caráter coercitivo e a modificabilidade do Direito positivo, por um lado, e o

processo de positivação ou de estabelecimento desse Direito capaz de gerar legitimidade, por

outro – isto é, uma relação entre Estado de Direito e democracia; contudo essa relação não é

meramente fruto de uma histórica causal, mas uma relação conceitual que está alicerçada nas

pressuposições da práxis jurídica cotidiana. Isso porque na própria validade jurídica a facticidade da imposição do Direito por via estatal entrelaça-se com a força legitimadora de um processo legislativo que pretende ser racional, justamente, por fundamentar a liberdade. Em outros termos, isso se revela no modo ambíguo com que o próprio Direito se endereça aos seus destinatários e deles espera obediência: eles podem agir estrategicamente em face das conseqüências previsíveis de uma possível violação das normas ou podem cumprir as normas por respeito aos resultados da formulação comum da vontade que exige legitimidade para si. O conceito kantiano de legalidade já expressava, segundo Habermas, esse duplo sentido da validade jurídica: As normas jurídicas são a um só tempo “leis coercitivas” e “leis de liberdade” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:175). A validade de uma norma jurídica pode ser considerada, portanto, como

equivalente da explicação para o fato de o Estado garantir simultaneamente a efetiva

imposição jurídica e a institucionalização legítima do Direito.34 Daí decorre a pergunta: como

se deve fundamentar a legitimidade de normas que podem, a qualquer momento, ser alteradas 34 “[...] ou seja, garantir de um lado a legalidade do procedimento no sentido de uma observância média das

normas que em caso de necessidade pode ser até mesmo impingida através de sanções, e, de outro lado, a legitimidade das regras em si, da qual se espera que possibilite a todo momento um cumprimento das normas por respeito à lei” (HABERMAS, 2002b:287).

Page 190: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

190

pelo legislador?35 Enquanto era possível recorrer a um Direito Natural – quer de cunho

religioso, quer metafísico – podia-se tentar conter o “turbilhão da temporalidade” que o

Direito positivo atraía para si; mas, aliado à crescente dessacralização das imagens de mundo

e à desintegração de eticidades ou formas de vida tradicionais com o processo de

modernização social e cultural, o Direito moderno, dotado de um caráter formal, exime-se da

ingerência direta advinda de uma “consciência moral remanescente” (HABERMAS,

2002b:288; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176).

O conceito de direitos subjetivos, então, apresenta um papel importante na

compreensão moderna do Direito: desligados dos mandamentos morais de origem religiosa ou

do Direito Natural (MATTOS, 2002:90), eles estão ligados ao conceito de liberdade subjetiva

de ação (HABERMAS, 1998:147), uma vez que fixam os limites dentro dos quais um sujeito

está legitimado para afirmar livremente sua vontade. Esses direitos fixam iguais liberdades

subjetivas para todos os indivíduos, que passam a se considerar sujeitos de direito,36 ou seja,

garantem aos sujeitos um espaço de ação de acordo com sua própria preferência

(HABERMAS, 2002:288; 1999:330), bem como de acordo com a máxima de que “tudo o que

não está proibido está permitido” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176). Na tradição da

dogmática do direito civil alemão, que vai de Savigny a Puchta, os direitos subjetivos são

direitos negativos, pois protegem os espaços da ação individual, na medida em que

fundamentam pretensões, reclamáveis judicialmente, contra intervenções ilícitas na liberdade,

na vida e na propriedade (BAXTER, 2002:39). Todavia, o século XIX demonstra que o

direito subjetivo, estritamente de ordem privada, depende, para legitimar-se, de uma

autonomia privada do sujeito, que estava apoiada em uma autonomia moral da pessoa. Na

Introdução à Metafísica dos Costumes, Kant (1980) apresenta uma lei moral de liberdade e

dela retira as leis jurídicas. O Direito, portanto, não estaria conectado à vontade livre do

indivíduo, mas ao seu arbítrio, extendendo-se às relações externas e abrindo espaço para que

seja exercitada uma coação no caso de intromissão na esfera alheia. Nessa construção,

Habermas (1998:171) identifica uma herança platônica no sentido de compreender a ordem

jurídica senão como ligada ao mundo fenomenológico e ao “reino dos fins”.

35 Habermas (2002b:287) lembra que mesmo as normas constitucionais, as quais deveriam ter uma maior

permanência – sendo algumas, em tese, imodificáveis, como o caso das chamadas cláusulas pétreas – estão sujeitas à alteração, até em caso extremo de mudança de regime.

36 Habermas (1998:147) lembra que o artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, afirma que: “La libertad consiste en poder hacer todo lo que no cause perjuicio a otro. Así, el ejercicio de los derechos naturales de un hombre no tiene otros límites que los que aseguran a los demás miembros de la sociedad el disfrute de los mismos derechos. Esos límites sólo pueden establecerse por ley”.

Page 191: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

191

Ao compreender o Direito não mais a partir de uma racionalidade

instrumental, a relação entre Direito e Moral adquire novos contornos.37 Aqui Habermas

inova ao apresentar uma proposta de substituição da teoria da subrodinação por uma visão de

complementaridade entre Direito e Moral. Empreendendo um olhar sociológico, Direito,

Moral e Ética sofrem uma separação simultânea da antiga amálgama que os prendia em uma

sociedade pré-moderna.

Tanto o Direito quanto a Moral ainda buscam, sob ângulos diferenciados,

respostas para as mesmas questões: (1) como é possível ordenar legitimamente relações

interpessoais e coordenar entre si ações servindo-se de normas justificadas?; e (2) como é

possível solucionar consensualmente conflitos de ação na base de regras e princípios

normativos reconhecidos intersubjetivamente?

Uma primeira diferença fundamental é o fato de que uma Moral pós-

tradicional representa apenas uma forma de saber cultural, enquanto o Direito apresenta-se

também no nível institucional – isto é, além de um sistema de símbolos, o Direito é também

um sistema de ação. Ao passo que na Moral, encontra-se uma simetria entre direitos e

deveres; no Direito, as obrigações resultam somente da restrição de liberdades subjetivas.

Essa atribuição de privilégio aos direitos em face dos deveres pode ser explicado através dos

conceitos de sujeitos de direto e de comunidade jurídica: “uma comunidade jurídica, situada

no tempo e no espaço, protege a integridade de seus integrantes exatamente na medida em que

esses assumem o status de titulares de direitos subjetivos” (CATTONI DE OLIVEIRA,

2004:176). Em contrapartida, o universo moral não apresenta limites espácio-temporais,

estendendo-se a todas as pessoas em sua complexidade biográfica, plenamente individuadas.

Por isso mesmo, as matérias jurídicas são, ao mesmo tempo, mais restritivas do que as

questões morais e mais amplas, uma vez que o Direito, como meio de organização, não se

refere exclusivamente à regulação de conflitos interpessoais, mas também ao cumprimento de

programas políticos e demarcações políticas de objetivos. Logo, as “regulamentações

jurídicas tangenciam não apenas questões morais em sentido estrito, mas também questões

pragmáticas e éticas, como o estabelecimento de acordos entre interesses conflitantes”

(HABERMAS, 2002b:289). Isso faz com que a praxis legislativa dependa não só de 37 Situando-se em um outro ponto da tradição da Dogmática jurídica alemã, Kelsen promove um desengate do

Direito em face da Moral: o direito subjetivo representa um interesse protegido pelo direito objetivo – ou, como afirmou Windcheid, um “poder querer”. A validade jurídica decorre não por via de sua natureza deontológica, mas por uma via empírica na qual o legislador garante a observância de suas decisões através de normas punitivas (HABERMAS, 1998:151). Esse desengate foi principalmente sentido com o regime nazista e, com sua queda, retornaram as tentativas de conexão entre autonomia privada e autonomia moral, que não conseguiram fazer-se convincentes por muito tempo; diante das imposições da ordem liberal, os direitos subjetivos tiveram sua compreensão individualista renovada (HABERMAS, 1998:152).

Page 192: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

192

discussões morais mas de uma rede ramificada de discursos abertos a razões de outras ordens,

bem como a negociações.

Uma vez que o Direito positivamente válido pode tirar das pessoas o ônus

causado pelas grandes exigências (cognitivas, motivacionais e organizacionais) impostas por

uma Moral ajustada segundo a consciência subjetiva; ele é capaz de compensar as fraquezas

de uma moral exigente. Isso não libera os participantes de uma prática legislativa ou

jurisdicional da preocupação de que o Direito permaneça em consonância com a Moral

(HABERMAS, 2002b:289; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:177); todavia as

regulamentações jurídicas são complexas demais para serem legitimadas por princípios

morais. Habermas (2002b:189) coloca então uma questão importante: “[...] se o direito

positivo não pode obter sua legitimidade de um direito moral superior, de onde ele poderá

obtê-la”?

A Moral, tanto quanto o Direito, deve defender a autonomia de todos os

envolvidos e atingidos por suas normas; essas devem ser analisadas pelo prisma do princípio

do discurso (D) – “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos

poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”38 –

que é neutro em relação ao Direito e à Moral, uma vez que sua referência se assenta em toda e

qualquer norma de ação, sem qualquer especificação (LEITE ARAÚJO, 2003:167).

Cabe considerar que validade, aqui, é tomada como um termo

indeterminado, que não se refere em específico à validade moral ou à legitimidade jurídica;

assim, refere-se à possibilidade de satisfação das pretensões de validade (verdade, correção

normativa ou veracidade), remetendo-se à noção de prescrição indireta da ação comunicativa

– em contraposição à razão prática kantiana, apoiada em uma moral diretamente prescritiva de

normas de ação.

Outro ponto de destaque fica a cargo da questão da aceitabilidade racional;

isso que dizer que o consenso acerca de pretensões de validade é obtido através do uso de

38 “En esta formulación se contienen conceptos que necesitan de explicación. El predicado «válido» se refiere a

normas de acción y a los correspondientes enunciados normativos generales o universales; expresa un sentido inespecífico de validez normativa, que es todavía indiferente frente a la distinción entre moralidad y legitimidad. Por «normas de acción» entiendo las expectativas de comportamiento generalizadas en la dimensión temporal, en la social y en la de contenido. «Afectado» llamo a cualquiera a quien puedan concernir en sus intereses las consecuencias a que presumiblemente pueda dar lugar una práctica general regulada por normas. Y por «discurso racional» entiendo toda tentativa de entendimiento acerca de pretensiones de validez que se hayan vuelto problemáticas, en la medida en que esa tentativa tenga lugar bajo condiciones de comunicación que dentro de un ámbito público constituido y estructurado por deberes ilocucionários posibiliten el libre procesamiento de temas y contribuciones, de informaciones y razones. Indirectamente esa expresión se refiere también a las «negociaciones», en la medida en que éstas vengan reguladas también por procedimientos discursivamente fundados” (HABERMAS, 1998:172-173, grifo no original).

Page 193: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

193

razões.39 Essa afirmação, no campo dos discursos práticos sobre normas, atesta que o

importante é o reconhecimento de que a argumentação ser racionalmente motivada: A proposta de Habermas, ao formular o princípio D, é que só se pode distinguir o ‘bom’ motivo, ou o melhor motivo, para validade uma norma, ao se apresentarem razões, em favor da aceitação das mesmas. Assim, uma norma de ação torna-se válida se as pretensões de validade por ela levantadas podem ser reconhecidas pelos possíveis atingidos (intersubjetivamente) na medida em que esses levantam razões; ou seja, pelo reconhecimento motivado racionalmente e que a todo momento pode ser problematizado (SALCEDO REPOLÊS, 2003:98). Todavia, a questão da neutralidade do princípio do discurso ainda parece

levantar diversas críticas, originadas até mesmo de radicais defensores do pluralismo

democrático (LEITE ARAÚJO, 2003:157). Por isso, é crucial um olhar mais detalhado: a

neutralidade a que se faz referência diz respeito às normas de ação em geral; além disso, o seu

caráter abstrato deve ser entendido no sentido de que apenas torna explícito o ponto a partir

do qual é possível fundamentar normas de ações imparcialmente. Isso o leva a não assumir

conteúdo algum, já que os argumentos que poderão ser utilizados para justificação de normas

de ação não podem ser determinados a priori, mas apenas dentro da própria discussão.40

Logo, seu caráter procedimental sinaliza uma exigência no sentido de que

toda forma de vida comunicativamente estruturada pode ter condições de participação, de

reconhecimento mútuo e de inclusão nesses discursos (SALCEDO REPOLÊS, 2003:98). Por

essas características, o princípio do discurso consegue evitar tanto uma interpretação

moralizante do Direito quanto o seu confinamento em afirmações comunitárias de valores

compartilhados. Enquanto princípio de justificação imparcial das normas de ação em geral, o princípio do discurso (D) está igualmente na base da moralidade e do direto. E é graças à mencionada diferenciação de usos da razão prática [questões éticas, de um lado, e questões morais, de outro] que Habermas insiste no delineamento sutil entre tal princípio, que explica o sentido da imparcialidade de juízos práticos, e sua especificação como princípio moral (U) – segundo o qual “toda norma válida deve satisfazer a condição de que as conseqüências e efeitos colaterais, que (previsivelmente) resultem para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos os concernidos” [HABERMAS, 1989:86] – ou como princípio da democracia (De) – de acordo com o qual “somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva” [HABERMAS, 1998:175] (LEITE ARAÚJO, 2003b:231, grifos no original).

39 Pizzi (2005:49) lembra bem que a proposta habermasiana é, ainda, uma aposta na racionalidade humana –

todavia, uma racionalidade que tem seu conceito ampliado pela racionalidade comunicativa, desinflacionada e consciente de suas limitações – e em critérios universais, em oposição à “moda” dos estilos relativistas.

40 A questão da neutralidade leva Habermas a afirmar uma distinção radical entre questões morais e questões éticas, como será oportunamente visto.

Page 194: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

194

O princípio discursivo moral (U) refere-se a normas de ação que exigem,

para ser justificadas, a consideração simétrica de todos os interesses;41 é, portanto, regulador

dos argumentos – uma regra de argumentação (SALCEDO REPOLÊS, 2003:99) – que

pergunta sobre a possibilidade de universalização de um determinado interesse, de modo que

sua pretensão possa ser passível de aceitação e reconhecimento pelos seus afetados em

qualquer tempo e contexto espacial.42

Diferentemente, o princípio discursivo democrático (De) visa a explicar o

sentido performativo da prática da autodeterminação dos membros de uma comunidade

jurídica – estabelecida livremente – que reconhece seus membros como parceiros livres e

iguais (HABERMAS, 1998:175). Seu objetivo, então, é a “institucionalização de um

procedimento legislativo legítimo, produzido discursivamente com a potencial participação de

todos [os afetados]” (BAHIA, 2003:235). Por isso mesmo, O sentido performativo pressuposto no princípio da democracia está nessa mudança de perspectiva para o ponto de vista dos participantes que, como sujeitos de direito, se autodeterminam, e constroem uma ‘associação’. Nesse sentido, o princípio da democracia coloca uma regra de constituição do jogo argumentativo e de instrumentação de espaços que tornam possível as diversas formas de argumentação (SALCEDO REPOLÊS, 2003:101). Deve ser destacado que o princípio democrático não busca um conteúdo a

priori às questões quando as mesmas são propostas, “mas apenas diz como podem a formação

da opinião e da vontade serem institucionalizados por um sistema de direitos que assegura

participação no processo legislativo em condições de igualdade” (BAHIA, 2003:236). Assim,

aceita o risco de que qualquer tema ou contribuição, informação ou razão, sejam ventilados no

espaço público (HABERMAS, 1998:646).43 Essa formação da vontade é dependente de

pressupostos comunicativos que asseguram aos melhores argumentos a prevalência.

Quando vistos em paralelo, fica possível compreender que o princípio

democrático está situado em um plano diferente do princípio moral:

41 Segundo Habermas (1989:147, grifos no original): “Toda norma válida tem que preencher a condição de que

as conseqüências e efeitos colaterais que previsivelmente resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo indivíduo possam ser aceitas sem coação por todos os concernidos”.

42 “Isso quer dizer que as únicas regras que decidem em um discurso moral são aquelas que justificam os interesses incorporados nas normas como universalizáveis. Ao regular quais razões podem ser aduzidas para justificar os interesses incorporados nas normas, o princípio U opera no plano da constituição interna do jogo argumentativo. É nesse sentido que se pode afirmar, novamente, que ele é uma regra de argumentação” (SALCEDO REPOLÊS, 2003:99).

43 “Manifiestamente, la única fuente metafísica de legitimidad la constituye el procedimiento democrático de producción del derecho. Pero, ¿qué es lo que confiere a este procedimiento su fuerza legitimadora? A ello la teoría del discurso da una respuesta bien simple, que a primera vista resulta bien improbable: el procedimiento democrático posibilita el libre florar de temas y contribuciones, de informaciones y razones, asegura a le formación políticos de la voluntad su carácter discursivo fundado con ella la sospecha falibilista de que los resultados obtenidos conforme al procedimiento sean más o menos racionales” (HABERMAS, 1998:646).

Page 195: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

195

U refere-se ao plano interno do jogo argumentativo, examinando se os argumentos utilizados para justificação de uma norma passam pelo crivo da universalização. Já o princípio da democracia opera no plano de institucionalização externa da participação simétrica nos processos de formação da opinião e da vontade. Ou seja, ele permite que tais processos sejam eficazes ao institucionalizar as condições de participação. Para tal, ele lança mão da forma do Direito, visto pelo papel que esse desempenha em sociedades complexas, é possível garantir juridicamente as formas de comunicação, por meio de um sistema de direitos, em que a participação nos processos de formação das normas jurídicas se dê em condições de igualdade. Essas condições, já estão, por sua vez, garantidas nos pressupostos da comunicação, enunciados no princípio do Discurso (SALCEDO REPOLÊS, 2003:101-102, grifos nosso). Assim, enquanto o princípio moral está correlacionado ao procedimento de

validação de normas e discursos morais, o princípio democrático mostra-se mais amplo,

aberto a outros tipos de razões. Com o processo de modernização, emerge a questão do

pluralismo ideológico na sociedade; a religião e o ethos nela enraizado se decompõem como

fundamento público de validade de uma moral que pode ser compartilhada por todos. As

regras morais passam a designar o que é obrigatório para todos e, por consegüinte,

universalizável; ao passo que os pontos de vista éticos estão ligados a orientação axiológicas

(de valor) pertencentes a pessoas ou grupos. Questões éticas estão relacionadas ao ponto de

vista da primeira pessoa do plural (nós), de modo que vinculam-se ao que os membros de

uma determinada comunidade entendem como critérios (ou valores) que devem orientar suas

vidas, isto é, o que pode ser considerado como o melhor para nós (HABERMAS, 2002b:38) –

questões acerca das concepções de vida boa ou, pelo menos, de uma vida que não seja mal

sucedida. Nesse sentido, as questões éticas não demandam um descentramento do sujeito, que

permanece ligado ao telos de uma vida comum da sociedade (HABERMAS, 2000b:106). Por

isso mesmo, questões que demandam uma busca sobre o que seja do interesse de todos

apontam para mais além do que seja melhor para nós (Ética). Aqui, Habermas lembra as

afirmações de Rawls e de Dworkin acerca da diferença entre o justo (moral) e o bom (ético) e

da supremacia do primeiro sobre o segundo (HABERMAS, 2002b:41). O bom é aquilo

almejado por um grupo de pessoas, a partir de um valor compartilhado; a noção de justo, bem

como a de direitos, por outro lado, traz uma compreensão normativa da questão.

Page 196: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

196

Normas e valores, então, apresentam diferenças:44 (1) normas obrigam seus

destinatários por igual e não apresentam exceções, enquanto valores exprimem concepções

que são tidas como almejáveis e, por essa razão, podem ser compreendidas à luz de uma

ordem de preferência; (2) normas, portanto, somente podem ser obedecidas – cumprindo sua

função de estabilizar expectativas de comportamentos generalizados – a partir de uma

aplicação universalmente integral e binária, isto é, algo é válido ou não é válido, sem uma

terceira opção; ao passo que valores, representando uma ação direcionada, podem ser

realizados de maneira gradual, a partir do quadro de preferências daquela comunidade. Dito

de outra forma, normas, segundo Habermas (1998:328, 2004:291), são justificadas a partir de

uma pretensão de correção (referência ao justo), devendo poder contar com a aceitação

racional daqueles que serão seus afetados (1998:172). Dessa forma, diante de uma pretensão

normativa, os atores sociais podem tomar dois caminhos diversos: concordarem mutuamente

sobre as pretensões de validade de seus atos de linguagem, ou levantarem pontos em que haja

discordância, problematizando-os; instala-se, assim, a possibilidade de avaliação através de

uma ação comunicativa. De maneira diferente, os valores apontam para uma concepção ética

– ligada ao que seja o bem – que não apresenta esse potencial de universalização, contido nos

discursos sobre a correção das normas, uma vez que se encontra enraizada sob valores pré-

reflexivos, isto é, concepções culturais partilhadas intersubjetivamente por uma determinada

forma de vida concreta. Portanto, a noção de bem liga-se à idéia de um nós, uma comunidade

determinada assentada sob uma mesma concepção de vida boa. Desse modo, as referências

para as ações oriundas dessa comunidade apenas podem ser compreendidas como respostas a

fins específicos (caráter instrumental) julgados a partir das preferências comuns de seus

44 “A primeira distinção entre princípios [normas] e valores, propõe Habermas, é o caráter deontológico daqueles

e axiológicos, ou teleológicos, destes. As normas válidas correspondem a expectativas generalizadas no seio da sociedade, enquanto os valores expressam tão-somente a preferência por certos bens em determinado grupo ou entre certas experiências de vida compartilhadas e que não poderiam, portanto, ser estendidos aos demais por se tratarem de preferências éticas. Os valores, aqui, são aplicados com vistas a determinados fins, de acordo com os fins desde determinado número de pessoas. A noção de bem é uma visão parcial, constituindo-se, segundo Habermas, em bom para nós, ou para mim, mas não necessariamente válido perante um sistema coerente de normas, como exige um discurso jurídico de aplicação. O bom para determinado grupo se liga a questões que dizem respeito ao uso da razão prática sob o seu ponto de vista ético e referente, portanto, a concepções de vida boa. Se pretendermos os princípios de acordo com uma leitura axiológica ou teleológica, não mais seria possível manter aquela diferença que Dworkin plantará entre diretrizes políticas – argumentos políticos – e argumentos de princípio. Percebe-se, então, que este autor difere, e muito, da noção alexyana, pelo fato de adotar e entender os princípios sob uma ótica deontológica” (CHAMON JUNIOR, 2004:110, grifos no original). Complementa, ainda, o mesmo autor: “outra questão entre valores e princípios diz respeito à já referida diferença entre o código dos valores, que é gradual, e o código do Direito, que é binário. Se há possibilidade de preferir um princípio a outro, é porque ele é mais atrativo que o contrário. Percebe-se, então, uma noção de graduação, e não de ‘sim’ e ‘não’ como acontece no caso de adequabilidade normativa. Numa perspectiva deontológica há uma pretensão binária de validade” (CHAMON JUNIOR, 2004:110, grifos no original).

Page 197: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

197

membros, perdendo-se de vista a ação comunicativa em favor de uma ação instrumental; e (3)

diferentes normas pretendem manter sua validade para o mesmo conjunto de destinatários,

não podendo contradizer-se mutuamente, sob pena de deixarem de representar referenciais

para a ação humana; logo devem constituir um sistema. A questão sobre qual norma é

adequadamente aplicável a um determinado caso, todavia, constitui uma pergunta diferente da

indagação sobre sua validade, devido a isso, como será visto no próximo tópico, discursos de

justificação diferem-se da lógica dos discursos de aplicação. Contrariamente, os valores

naturalmente concorrem entre si pela primazia, por isso são passiveis de flexibilizações a

partir de critérios utilitários.

Além de razões morais e razões éticas, o princípio da democracia também

recebe argumentos de ordem pragmática, ligados à definição de meios necessários/adequados

à realização de preferências ou objetivos da comunidade (SOUZA CRUZ, 2004:219). Nesse

caso, a avaliação se dá não apenas com relação aos meios, mas também com relação aos fins.

Trata-se de um elemento eminentemente instrumental, finalístico, trazendo ao discurso

“comparações e ponderações diante de alternativas para as técnicas/estratégias de ação”

(SOUZA CRUZ, 2003:220).

As normas jurídicas são dotadas de um caráter artificial – no sentido de que

“elas são produzidas intencionalmente e de modo reflexivo, aplicando-se a si mesmas”

(SALCEDO REPOLÊS, 2003:102). Como conseqüência, não basta ao princípio democrático

a tarefa de fixação dos procedimentos de normatização legítima do Direito, deve ainda

pressupor a criação de um comunidade jurídica que institucionalize os direitos de participação

de todos os seus membros no processo de instauração dessas normas.

Logo, segundo Habermas (1998:177), a distinção entre o princípio moral e o

princípio democrático acaba apontando as duas tarefas que deverão ser enfrentadas pelo

sistema de direitos: (1) institucionalizar uma formação racional da vontade política; e (2)

garantir o próprio medium no qual essa vontade pode ser expressa – como vontade comum

dos membros de uma comunidade jurídica capaz de se autocompreender como uma

associação livre. Dessa forma, mesmo que o processo de legislação democrática seja poroso a

uma série de argumentos – como visto, argumentos de ordem moral, ético-políticos e

pragmáticos – a fim de que o Direito não ceda lugar à política, é preciso que as normas

jurídicas sejam formuladas a partir da linguagem jurídica – utilizando-se, para tanto, do

código do Direito – e do princípio da soberania popular (SOUZA CRUZ, 2004:220).

Page 198: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

198

O Direito moderno, não mais subordinado à moral – mas sim funcionando

de maneira complementar – passa a se organizar a partir de um código próprio,45 partindo de

dois elementos restantes da dissolução da amálgama pré-moderna: soberania popular –

relacionada com a noção de autonomia pública – e direitos humanos – ligados à noção de

autonomia privada. Desse modo, tanto uma quanto outro representam uma mediação pelo

Direito no tocante à autodeterminação moral (direitos humanos) e autodeterminação ética

(soberania popular), de modo a falar-se em uma co-originariedade.46 Assim, Habermas

pretende superar a disputa entre liberais e republicanos acerca de qual das duas deveria ter

prevalência.

Segundo Cattoni de Oliveira (2000:54), a tradição republicana remete-se a

Aristóteles, desenvolvendo-se pela Filosofia romana republicana e pelo Humanismo Cívico

do pensamento político italiano do Renascimento, vindo a ser recepcionada por Harrington –

influenciando os debates da Convenção de Filadélfia – e por Rousseau – lançando luzes sobre

o movimento da Revolução Francesa (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:54-55; SELLERS,

1997:02). Contemporaneamente, assumem-se como republicanos diversos pensadores, como:

Taylor, Walzer, Sandel, McIntyre, Perry e Michelman. Já na tradição liberal, encontram-se

pensadores a partir do movimento iluminista, como Locke, Kant, Sièyes, Paine, Constant e

Stuart Mill. Contemporaneamente, a tradição é disseminada a partir diferentes leituras feitas

pelas obras de Berlin, Rawls, Nozick e Dworkin – sendo Rawls o seu maior expoente. Em

comum a ambas, tem-se a defesa da liberdade e da igualdade dos cidadãos, da existência de 45 Chamon Junior (2005:254) destaca que as discussões envolvendo o código do Direito ainda demandam um

maior aprofundamento, o que foge ao escopo da presente pesquisa. Mas em síntese vêm representar o seguinte problema: trata-se de uma recepção da Teoria dos Sistemas de Luhmann, após muitos anos de debates? Segundo a posição do tradutor espanhol, Jiménez Redondo, em nota de rodapé (HABERMAS, 1998:175). Em Luhmann, o código do Direito é definido conforme o par Recht/Unrecht, traduzido por Chamon Junior (2005:154) como licitude/ilicitude. Todavia, no capítulo 4 da obra Facticidade e Validade, o original alemão afirma que tribunais decidem “was recht und was unrecht ist”, de modo a ficar visível a utilização de termos diferentes. Mesmo assim, Jiménez Redondo procede à compreensão de que se trataria de um código binário e utiliza em sua tradução a distinção entre “justo” jurídico/“injusto” jurídico, notadamente entre aspas reconhecendo a dificuldade de tradução dos termos. Na versão norte-americana, Rehg compreende a questão à luz do par legal/illegal. A questão, todavia, que parece ter mera implicação secundária adquire primeira ordem quando se lembra que Habermas supera a compreensão do Direito como um caso especial da Moral (CHAMON JUNIOR, 2005:255): se Direito e Moral são co-originários e complementares, não pode haver interferência da Moral sobre o Direito, de modo que este deve desenvolver seu código próprio. Assim, a tradução espanhola cai em impropriedade ao se referir a um “justo”jurídico/“injusto” jurídico, pois o argumento sobre a justiça é objeto da argumentação moral, correndo o risco de apagar a diferenciação que tenta afirmar. Todavia, não é possível concluir que versão para o inglês tenha tido maior sorte, pois “se mostra falha ao traduzir por legal/illegal (jurídico/antijurídico), pelo fato de que Recht/Unrecht, como substantivos que são, se referem, definitivamente, como valor positivo e negativo ao código, à licitude/ilicitude” (CHAMON JUNIOR, 2005:256, grifo no original).

46 “A relação interna entre soberania popular e direitos humanos está no modo como é alcançada a formação da opinião e da vontade pública: nem a autonomia pública deve se subordinar a pretensos direitos racionalmente universais (como em Kant), nem os direitos humanos ficam à mercê de uma ‘vontade geral ética’ (como em Rousseau)” (BAHIA, 2003:238).

Page 199: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

199

uma Constituição, de um regime democrático e da constitucionalização dos direitos

fundamentais – o que, todavia, não significa que esses pontos recebem a mesma

interpretação.47 Para os republicanos, a Constituição é tomada como uma ordem concreta de

valores, que materializa uma identidade ético-cultural de uma sociedade política que tem a

pretensão de ser, na medida do possível, homogênea (HABERMAS, 2002b:270); por sua vez,

a Democracia é compreendida como forma política de plena realização dessa identidade

coletiva, de sua felicidade pública e de seu bem-estar coletivo. A ênfase é dada para as

chamadas liberdades positivas,48 visando a assegurar a participação política autônoma. Para

os liberais, o processo democrático tem uma tarefa básica: programar o Estado segundo o

interesse da sociedade a partir de um sistema de negociações estruturado ao modo do

Mercado – entre pessoas privadas – (HABERMAS, 2002b:270). A Democracia é, então,

compreendida de maneira reduzida, como um processo de eleição regido conforme o

mecanismo formal da regra da maioria que confere legitimidade às decisões (GALUPPO,

2004:344). Direitos fundamentais, por sua vez, transformam-se em garantias de proteção da

esfera privada contra intervenções estatais, de modo a possibilitar que cada indivíduo possa

participar no cenário político defendendo seus próprios interesses (HABERMAS, 2005:1;

2002b:271).49

47 Uma advertência deve ser feita: escapa do escopo da presente pesquisa apresentar um aprofundamento das

tradições republicanas e liberais, por isso mesmo, a mesma tem de se limitar a apresentar um esquema aproximado – ciente de que, com isso, assumem-se os riscos de olvidar as próprias divergências internas que se apresentam em cada tradição e que acabam ficando apagados em tal forma de reconstrução. Fato é que, devido à complexidade e extensão do tema, uma reconstrução dos pontos comuns e divergentes interna e externamente a cada tradição, por si só, já constituiria um objeto de pesquisa à parte. Recomenda-se, para uma leitura inicial, os capítulos respectivos nas obras: (1) CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000; (2) GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado e o problema da tolerância. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2004; (3) SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004; (4) HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução: George Speiber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002; (5) HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998; (6) BUNNIN, Nicholas. TSUI-JAMES, E.P. Compêndio de Filosofia. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2002; (7) SELLERS, Mortimer. Republicans, Liberalism, and the Law. Kentucky Law Journal. v. 86. n. 1. 1997/1998; e (8) BERTEN, André; SILVEIRA, Pablo da; POURTOIS, Hérvé (orgs.). Libéraux et communauteiriens. Paris: PUF, 1997.

48 “Segundo o modelo republicano, a cidadania não é apenas determinada pelo modelo das liberdades negativas que podem ser reivindicadas pelos cidadãos enquanto sujeitos de direito privado. Os direitos políticos são, antes de tudo, liberdade positivas, pois garantem não a liberdade de coerção externa, mas a possibilidade de participação política comum pela qual os cidadãos, na construção de uma identidade ético-política comum, reconhecem-se como co-associados livres e iguais” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:64, grifo no original).

49 “O status de cidadão, para o liberalismo, é fundamentalmente determinado por direitos negativos perante o Estado e em face dos outros cidadãos. Como titulares desses direitos, eles gozam da proteção estatal à medida que buscam realizar seus interesses privados nos limites estabelecidos pela lei, e isso inclui a proteção contra intervenções estatais. Direitos políticos como o direito ao voto ou à liberdade de expressão, não têm apenas a mesma estrutura, mas também um significado semelhante enquanto direitos civis que fornecem um espaço no qual questões pragmáticas, através de um agir estratégico funcionalmente regulado, tornam-se livres de

Page 200: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

200

Contudo, como já adiantado, a opção habermasiana não é a de endossar uma

ou outra tradição, mas a de apresentar uma (re)construção da relação entre soberania popular e

direitos humanos, superando as tradições anteriores, uma vez que leva em conta a

identificação de uma relação interna entre ambos os conceitos, constitutiva do que chamará de

sistema de direitos: o conjunto de direitos (fundamentais) que os membros de uma

comunidade atribuem-se reciprocamente quando decidem regular legitimamente sua

convivência através do Direito Positivo (HABERMAS, 2003:162; 2002b:229; BAHIA,

2003:238). E, para tanto, a modernidade aponta que a fundação desse sistema deve-se dar

através de um importante meio institucional – a Constituição.

O sistema de direitos, então, é responsável por garantir aos indivíduos

determinadas liberdades subjetivas de ação a partir das quais podem agir em conformidade

com seus próprios interesses – é o que se chama de autonomia privada50 – “liberando” esses

indivíduos da pressão inerente à ação comunicativa (HABERMAS, 1998:186). Habermas

conclui que o Direito não é – nem pode ser – capaz de obrigar os indivíduos a permanecer o

tempo todo na esfera pública, devendo abrir a eles a possibilidade de escolha do uso de sua

liberdade comunicativa (HABERMAS, 2000d:527).51 Em contrapartida, o princípio

discursivo democrático compreende a autonomia pública a partir da ótica da garantia de

legitimidade do procedimento legislativo através de iguais direitos de comunicação e de

participação (HABERMAS, 2002b:290); trata-se do fato de que os sujeitos de direito têm de

se reconhecer como autores das normas às quais se submetem.

Explicando melhor essa noção, tem-se que a reconstrução da noção de

autonomia leva Habermas a afirmar que os indivíduos, como sujeitos de direito, devem ao

mesmo tempo sempre ser autores e destinatários do Direito por eles produzidos. Conferir uma

fundamentação estritamente moral aos direitos humanos acabaria por afirmar que o poder

constituinte democrático simplesmente encontra esses direitos a priori, ou seja, como fatos

coerção externa, fundando um processo político moldado no funcionamento do mercado” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:63, grifos no original).

50 “De ahí que la autonomía privada del sujeto jurídico pueda entenderse esencialmente como la libertad negativa de abandonar la zona pública de obligaciones ilocucionarias recíprocas y retraerse a una posición de observación mutua y de mutuo ejercicio de influencias empíricas. La autonomía privada llega hasta allí donde el sujeto jurídico tiene que empezar a dar cuenta y razón, hasta allí donde tiene que dar razones públicamente aceptas de sus planes de acción. Las libertades subjetivas de acción autorizan a apearse de la acción comunicativa y a negarse a contraer obligaciones ilocucionarias. Fundan una privacidad que libera de la carga aneja a una libertad comunicativa recíprocamente reconocida y mutuamente supuesta y exigida” (HABERMAS, 1998:186).

51 Bahia (2003:239) lembra que, por isso, a liberdade comunicativa deve ser compreendida como a “possibilidade dos indivíduos tomarem posição frente a uma pretensão de validade levantada por outrem, destinada ao entendimento intersubjetivo. Essa liberdade pressupõe uma atitude performativa (obrigação ilocucionária) dos participantes, que querem se entender sobre algo e pressupõem uma tomada de posição do outro”.

Page 201: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

201

morais prévios, para ter sua atividade limitada a uma positivação. Essa noção contraria o

princípio democrático. Por outro lado, deve-se reconhecer que os cidadãos, no papel de co-

legisladores, não podem mais escolher o medium pelo qual eles tornam efetiva sua autonomia;

é apenas na condição de sujeitos de direito que eles podem tomar parte do processo

legislativo; por isso uma autolegislação democrática apenas se pode valer do medium do

Direito. Quando da institucionalização das condições para um processo legislativo democrático, sob a forma de direitos políticos, é necessário que o código do direito já esteja à disposição. Para a criação desse código ou forma jurídica moderna, é necessário criar o status de sujeitos de direito que pertençam, enquanto titulares de direitos subjetivos, a uma comunidade jurídica (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:182). Logo, para que haja o Direito, deve haver a autonomia privada dos sujeitos

de direito; de modo que, sem os direitos fundamentais que assegurem essa autonomia, faltaria

o próprio medium para institucionalização jurídica das condições necessárias a que os sujeitos

de direito possam fazer uso da autonomia pública ao atuarem no papel de cidadãos do Estado

(HABERMAS, 2002b:293; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:182). Como conseqüência: “a

autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente, sem que os direitos humanos

possam reivindicar um primado sobre a soberania popular, nem essa sobre aquele”

(HABERMAS, 2002b:293).

É, então, a partir dessa consciência de co-originalidade entre autonomias

público e privada que os cidadãos, ao constituírem seu sistema de direitos, devem criar uma

“ordem” que preveja a qualquer membro (seja atual, seja futuro) dessa comunidade uma série

de direitos subjetivos, iniciando por três categorias: (i) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito, que prevê a maior medida possível de liberdades subjetivas de ação para cada um. (ii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do status de membro de uma associação livre de parceiros do direito. (iii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do igual direito de proteção individual, portanto da reclamabilidade de direitos subjetivos (HABERMAS, 2003:169, grifo no original). Essas três categorias decorrem de um resultado direto da aplicação do

princípio do discurso ao meio do Direito; estão associadas às condições de “socialização

horizontal” produzidas pelo Direito. Assim, não podem ser compreendidas como os clássicos

direitos liberais de defesa, uma vez que regulam apenas relações entre co-cidadãos livremente

associados, anteriormente a qualquer organização estatal. A função básica, então, desses

direitos é a garantia da autonomia privada dos sujeitos de direito, mas apenas à medida que se

reconhecem mutuamente como destinatários das leis, levantando um status que lhes

possibilita a pretensão de obter direitos e de fazê-los valer reciprocamente (HABERMAS,

Page 202: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

202

1998:188). Somente no passo seguinte, é que esses sujeitos de direito assumem o papel de

autores de sua ordem jurídica. Uma vez que pretendem fundar uma associação de cidadãos que se dão a si mesmos suas leis, eles tomam consciência de que necessitam de uma quarta categoria de direitos que lhes permita reconhecerem-se mutuamente, não somente como autores desses diretos, mas também como autores do direito em geral. Se quiserem continuar mantendo um aspecto importante de sua prática atual, a autonomia, eles têm que se autotransformar, pelo caminho da introdução de direitos fundamentais políticos, em legisladores políticos. Se, as primeiras três categorias de direitos fundamentais, não poderiam existir nada parecido com o direito, porém, sem uma configuração política dessas categorias, o direito não poderia adquirir conteúdos concretos (HABERMAS, 2003:169). Nessa quarta categoria, encontram-se os “(iv) Direitos fundamentais (de

conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito para uma

participação, em igualdade de condições, na legislação política” (HABERMAS, 2003:169).

Assim, para que os membros de uma dada comunidade possam atribuir reciprocamente

direitos subjetivos de maneira legítima, necessitam da institucionalização de procedimentos

de produção desse Direito, que pressupõe o reconhecimento mútuo como pessoas livres e

iguais.

Resta, todavia, mais um categoria de direitos, que são: (v) Direitos

fundamentais [...] ao provimento do bem-estar e da segurança sociais, à proteção contra riscos sociais e tecnológicos, bem como ao provimento de condições ecologicamente não danificadas de vida e, quando necessário, sob as condições prevalecentes, o direito de igual oportunidade de exercício dos outros direitos elencados (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:72). Esse sistema de direitos ainda necessita de um meio de institucionalização:

o Estado de Direito, que possui, desde seu surgimento, o propósito de garantir

institucionalmente à co-originalidade das autonomias pública e privada, buscando para tanto a

legitimidade de suas decisões no Direito (HABERMAS, 1998:199),52 cumpre sua função a

partir dos princípios que o informam.

52 “Con el sistema de los derechos nos hemos asegurado de las presuposiciones de las que los miembros de una

comunidad jurídica moderna tiene que partir si es que han de poder tener por legítimo su orden jurídico sin que a tal fin puedan buscar arrimo en razones de tipo religioso o metafísico. Pero una cosa es la legitimidad de los derechos y la legitimación de los procesos de producción del derecho, y otra muy distinta la legitimidad de un orden de dominación y la legitimación del ejercicio de la dominación política. Los derechos fundamentales que hemos reconstruido en una especie de experimento mental son constitutivos de toda asociación que pueda entenderse como una comunidad jurídica de miembros libres e iguales; en estos derechos se refleja in statu nascendi, por así decir, la «sociación» horizontal de los ciudadanos. Pero ese acto autorreferencial de institucionalización jurídica de la autonomía ciudadana queda incompleto en aspectos esenciales; no puede estabilizarse a sí mismo. El instante del mutuo reconocimiento de derechos se queda en un suceso metafórico; puede quizá ser recordado y ritualizado, pero no puede ni consolidarse ni perpetuase sin organizar, o sin recurrir funcionalmente a un poder estatal” (HABERMAS, 1998:199).

Page 203: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

203

Um desses princípios é a soberania popular,53 que funcionaria como ponto

de unificação entre as noções de Direito e Estado de Direito, já que fundamenta a participação

popular em condições de igualdade na formação da vontade estatal. Todavia, a leitura

habermasiana é feita a partir de uma concepção procedimental (HABERMAS, 1998:238;

1998:612; 1999:333) – ou seja, ela não se encontra ligada a um ethos ou a um povo

determinado, seja ele presente, passado ou futuro, revelando-se uma soberania popular sem

sujeito.54 Lembrando os estudos, já apresentados nessa pesquisa, de Michel Rosenfeld (2003):

uma vez que o poder político é derivado do Poder Comunicativo, as questões políticas, para

serem tratadas de forma racional, necessitam ser institucionalizadas, passando por uma rede

de formas de comunicação que, em tese, destina-se a assegurar que todas as questões, tema e

contribuições relevantes sejam ouvidas e elaboradas na forma de discursos e negociações,

que, por sua vez, estão pautados na busca pelo melhor argumento (HABERMAS, 1998:238;

1999:333; BAHIA, 2003:241-242).55 É justamente essa institucionalização jurídica de

determinados procedimentos e condições de comunicação que faz possível o uso e o emprego

efetivos de iguais liberdades comunicativas, uma vez que obriga, além de estimular: o uso

pragmático, ético e moral da razão prática; e a busca por um equilíbrio de interesses através

de um resultado eqüitativo (HABERMAS, 1998:238).

Lembra Bahia (2003:242) que Habermas escapa do extremismo de

Rousseau em sua busca por uma democracia direta, não representativa; ele irá apostar na

defesa de um modelo democrático deliberativo que combine – mesmo defendendo que 53 Outros princípios são derivados do princípio da soberania popular. São eles: (1) princípio da proteção

abrangente dos direitos individuais, que se refere ao Judiciário (HABERMAS, 1998:240); (2) princípio da legalidade da Administração Pública (HABERMAS, 1998:241); e (3) princípio da separação entre Estado e Sociedade (HABERMAS, 1998:243).

54 “La soberanía, enteramente dispersa, ni siquiera se encarna en las cabezas de los miembros asociados, sino – si es que todavía se quiere seguir hablando de encarnaciones – en esas formas de comunicación discursiva de la opinión y la voluntad, que sus resultados falibles tienen a su favor la presunción de razón práctica. Una soberanía popular exenta de sujeto (esto es, no asociada a sujeto alguno), que se ha vuelto anónima, que queda así disuelta en términos intersubjetivistas, se retrae, por así decir, a los procedimientos de la implementación de esos procedimientos democráticos. Es una soberanía que se sublima y reduce entre la formación institucional de la voluntad organizada en términos de Estado de derecho y los espacios públicos políticos culturalmente movilizados. Esta soberanía, comunicativamente fluidificada, se hace valer en el poder que desarrollan los discursos públicos, en el poder que brota de los espacios públicos autónomos, pero ha de tomar forma en las resoluciones de instituciones democráticamente organizadas de formación de la opinión y la voluntad porque la responsabilidad de las decisiones importantes en la práctica, exige que esas decisiones se puedan imputar con claridad a esta o aquella institución. El poder comunicativo es ejercido a modo de un asedio. Influye sobre las premisas de los procesos de deliberación u decisión del sistema político, pero sin intención de asaltarlo, y ello con el fin de hacer valer sus imperativos en el único lenguaje que la fortaleza asediada entiende: el poder comunicativo administra el acervo de razones, a las que, ciertamente, el poder administrativo recurrirá (y tratará) en términos instrumentales, pero sin poder ignorarlas, estando estructurado como está en términos jurídicos” (HABERMAS, 1998:612).

55 “Public communication must be inclusive and selective at the same time; it must be channeled in such a way the relevant topics com up, interesting contributions and reliable information come in and good arguments or fair compromises decide what comes out” (HABERMAS, 1999:333).

Page 204: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

204

decisões políticas sejam tomadas em interações simples – o princípio da soberania popular

com o princípio parlamentar, que, em termos de uma Teoria do Discurso, “deve garantir um

procedimento que leve em conta as condições comunicativas, de forma que discursos éticos,

pragmáticos, morais e negociações fair tenham lugar” (BAHIA, 2003:242, grifo no original).

Uma síntese dessa proposta é apresentada por Cattoni de Oliveira: Nesse quadro, o processo legislativo, enquanto processo de justificação democrática do Direito, pode ser caracterizado como uma seqüência de diversos atos jurídicos que, formando uma cadeia procedimental, assumem seu modo específico de interconexão, estruturado em última análise por normas jurídico-consitucionais, e, realizados discursiva ou ao menos em termos negocialmente equânimes ou em contraditório entre agentes legitimados no contexto de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição (2000:109). Nessa ótica, o Estado de Direito acaba por garantir tanto a

institucionalização do uso público das liberdades comunicativas, como por regular a

transformação do Poder Comunicativo em Poder Administrativo (HABERMAS, 1988:245).

Não é sem razão que se pode reconhecer que a arena pública atrai e

converte-se em um meio de aprendizado democrático, como lembra Bahia (2003:243): aqui,

uma comunidade pode colocar [...] em prática políticas racionalmente acordas, experimentando-as e aprendendo como fracassos e vitórias. Isso porque não é concebível hoje se falar em pressupostos materiais para elevar o cliente a cidadão, para que este então possa tomar das mãos do Estado (inclusive do Judiciário) as rédeas de sua existência política (2003:243, grifo no original). Assim, é necessário compreender – como já colocado no primeiro capítulo

da presente pesquisa – que o paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito

representa uma ruptura completa quando comparado com o paradigma do Estado de Direito.

Logo, é preciso mais que uma mudança de rótulos ou uma troca de etiquetas. Ainda deve ser

lembrado que esse último paradigma não se apresenta como um projeto pronto e acabado; ao

contrário, ele demanda uma constante revisão a fim de que se possa compreender melhor o

sistema de direitos, isto é, através de uma melhor interpretação (cada vez mais adequada) de

seu processo de institucionalização (HABERMAS, 1998:466; 2003:165).

Quanto à relação entre Poder Comunicativo e Poder Administrativo, o

recurso à circulação oficial do poder acaba por impedir que o segundo adquira autonomia em

relação ao primeiro.56 Para melhor compreensão, deve-se lembrar de um ponto importante: Desde a Teoria do Discurso, as estruturas de comunicação tomam o Princípio do Discurso em um duplo sentido: cognitivo – para que os resultados da comunicação sejam racionais, o procedimento discursivo filtra as contribuições, razões e temas trazidos à arena pública

56 Um esclarecimento faz-se necessário. Habermas toma de Arendt o conceito de Poder Comunicativo. Segundo

a autora, o poder comunicativo brota do acordo público entre cidadãos (HABERMAS, 1998:217). Todavia, na leitura habermasiana, algumas críticas serão feitas: do fato de o poder comunicativo poder potencialmente influenciar no Poder Administrativo não decorre que ele assim agirá (1998:608-609), por isso mesmo, a necessidade de colocar o Direito como meio de ligação entre ambos.

Page 205: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

205

de discussão; e prático – o princípio dos discursos garante que o entendimento se dê em relações de simétrica paridade e que desencadeie a força produtiva própria da liberdade comunicativa (BAHIA, 2003:243-244, grifo no original). Portanto, o Poder Comunicativo apenas se forma nos espaços públicos que

produzem relações intersubjetivas apoiadas em processos de reconhecimento mútuo e que

possibilitem o uso das liberdades comunicativas. Assim, as decisões vinculantes do Estado,

regidas por fluxos comunicativos provindos da periferia – passando pelas “eclusas” dos

procedimentos democráticos57 – devem fornecer garantia de que, antes que essas sejam

lançadas no sistema político, passem por um rastreamento das questões referentes ao

problemas latentes de integração social subjacentes no meio social (HABERMAS, 1998:438;

BAHIA, 2003:244). Ou seja, o modelo de “eclusas” permite que espaços não

institucionalizados (opinião pública) constituídos na forma de uma rede de comunicações

intersubjetivas sejam filtrados visando a influir no centro (Legislativo, Executivo ou

Judiciário). Para tanto, são necessários pressupostos próprios a uma cultura política liberal,58

capaz de permitir uma espontaneidade nos processos de formação da opinião e da vontade

pública. Por sua autonomia e espontaneidade, a estrutura dos espaços públicos pode até ser estimulada, mas escapa em boa medida à regulação jurídica, à intervenção administrativa ou à regulação política. Partindo de interações simples (face a face), os indivíduos têm a possibilidade de tomar postura frente a uma questão, assumindo como isso obrigações ilocucionárias. Além das interações simples, o espaço público também conta com interações virtuais que se dão pelos meios de comunicação (BAHIA, 2003:245, grifos no original). Assim, é por meio do Direito – como mediador normativo entre facticidade

e validade (CHAMON JUNIOR, 2005:260) – que esse Poder Comunicativo pode se

transformar em Poder Administrativo, já que através do Poder Comunicativo é autorizado e

outorgado “um determinado poder instrumentalizante no marco de cargos estabelecidos

legalmente” (CHAMON JUNIOR, 2005:260). Esta ligação entre o poder comunicativo – possível em razão de uma autonomia pública – e o poder administrativo – regido, ou controlado, pelo código poder – confere legitimidade, portanto, ao uso de um poder que, em realizando coerção, não há que reproduzir a si mesmo, mas antes manter-se “regenerado” no marco das transformações levadas adiante pelo poder comunicativo. Mas é claro que esta transformação ou metamorfose do poder comunicativo somente poderá “regenerar” o poder administrativo através do Direito, que em se mantendo como legitimamente produzido, estabelece novas autorizações em um plano legalmente delineado. É, inclusive, esta legitimidade conferida ao uso do poder

57 Segundo o modelo de eclusas, as decisões vinculantes do Estado devem provir não do centro (Legislativo,

Executivo ou Judiciário) mas da periferia, de modo que os cidadãos possam, por meio de influxos comunicativos procedimentalizados, ultrapassar as comportas de discussão, caminhando sempre em direção a esse centro.

58 Segundo Cattoni de Oliveira (2000:93) e Bahia (2003:245), a noção de cultura liberal está ligada à existência de um reconhecimento recíproco da dignidade de diferentes concepções éticas, ou seja, a uma cultura que leva em conta o pluralismo.

Page 206: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

206

administrativo que pretende manter as interferências advindas das mostras individuais de poder como ilegítimas (CHAMON JUNIOR, 2005:260-261, grifos no original).59 O espaço da opinião pública, contudo, não segue a lógica da especialização

como os sistemas, abrindo-se para o livre acesso de todos e assentando-se sobre o pano de

fundo de um mundo da vida compartilhado; por isso mesmo, é tão cara, para o estudo do

paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito, a conclusão a que chega Peter

Häberle (1997), vindo a afirmar e reconhecer uma multiplicidade de interpretações da

Constituição, surgidas a partir das mais variadas interações existentes no interior da sociedade

civil. Como lembra Cattoni de Oliveira (2000:95), o núcleo institucional da sociedade civil é

hoje formado por uma diversidade de grupos, movimento, associações e organizações de

ordem não estatais e não econômicas – ou seja, desligadas dos sistemas Administrativo e

Econômico – capazes de captar os ecos dos problemas sociais oriundos da esfera privada,

condensando-os e transmitindo-os para a esfera pública.

Nesse sentido, as controvérsias que forem expostas publicamente,

elaboradas a partir de razões – ao invés de imperativos funcionais de poder ou de mercado –

podem se transformar de opinião pública para vontade pública – isto é, adquirindo um caráter

de decisão vinculante.60 Todavia, essa mudança dependerá de procedimentos

institucionalizados, de tal sorte que a opinião pública poderá influenciar61 a formação de uma

59 “La idea de Estado de derecho puede interpretarse entonces en general como la exigencia de ligar el poder

administrativo, regido por el código «poder», al poder comunicativo creador de derecho, y mantenerlo libre de las interferencias del poder social, es decir, de la fáctica capacidad de imponerse que tienen los intereses privilegiados. El poder administrativo no tiene que reproducirse a sí mismo, sino sólo regenerarse a partir de la metamorfosis de poder comunicativo. En última instancia es esta transferencia la que el Estado de derecho ha de regular, dejando, sin embargo, intacto el código mismo que el poder representa, es decir, sin intervenir en la lógica de la autorregulación del poder administrativo. Desde un punto de vista sociológico, la idea de Estado de derecho no hace sino iluminar el aspecto político del establecimiento de un equilibrio entre los tres poderes de la integración social: el dinero, el poder administrativo y la solidaridad” (HABERMAS, 1998:218, grifo no original).

60 “A ponte entre a esfera pública e os sistemas sociais institucionalizados é feita pela sociedade civil que representa os movimentos, as associações e as organizações sociais. Habermas defende que a sociedade civil, em certas circunstâncias, pode ter opiniões próprias, capazes de influenciar o complexo parlamentar, obrigando o sistema político a modificar o rumo do poder oficial. Para que a esfera pública consiga cumprir sua finalidade, é imprescindível a existência de um mundo racionalizado, capaz de questionar os valores tradicionais e de uma cultura política livre. Quando o Sistema político não está ligado à sociedade civil e à esfera pública temos a possibilidade de manipulação das massas para fins plebiscitários” (MATTOS, 2002:100).

61 “La «influencia» la introdujo Parsons como una forma simbólicamente generalizada de comunicación, que gobierna las interacciones en virtud de la convicción razonada o de la pura sugestión retórica. Por ejemplo, las personas o instituciones pueden disponer de un prestigio que les permite ejercer con sus manifestaciones influencia sobre las convicciones de otros, sin necesidad de demostrar en detalle sus competencias o sin necesidad de dar explicaciones. La «influencia» se nutre del recursos que es el entendimiento, pero se basa en una especie de anticipo, es decir, en la confianza que se pone en posibilidades de convicción actualmente no comprobadas. En este sentido las opiniones públicas representan un potencial político de influencia que puede utilizarse para ejercer influencia sobre el comportamiento electoral de los ciudadanos o sobre la formación de la voluntad e los organismos parlamentarios, en los gobiernos y en los tribunales. Ahora bien, el influjo

Page 207: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

207

vontade (HABERMAS, 1998:443; 1999:333); a isso, Habermas chama de política

deliberativa.

A partir de Cohen e Arato, Habermas (1998:452) afirma uma concepção de

sociedade civil distanciada dos pilares republicanos – isto é, como instância de auto-

realização da sociedade. Para a efetivação de uma “democracia radical”, reconhece a

necessidade de limitações: (1) do espaço de atuação de movimentos não institucionalizados,

pois pesa o risco de se cair em movimentos populistas apegados cegamente a tradições, pois o

espaço público exige um mundo da vida racionalizado;62 (2) o espaço de formação da vontade

política não pode ser controlado pelos atores que apenas fazem uso da influência na formação

do poder comunicativo – esses exercem influência na produção do Direito com a intenção de

conquista sobre o poder administrativo, programando-o e controlando-o; (3) os movimentos

sociais devem ter consciência de que, nas sociedades atuais – funcionalmente diferenciais,

não existe uma instância reguladora do todo social; ainda que a política possa, até certa

medida, resolver problemas de integração social, esse papel escapa a seus limites de

competência, podendo apenas se dar por meios indiretos que não interferem nas lógicas

internas a cada sistema social (HABERMAS, 1998:453).

Como conseqüência, tem-se que o processo legislativo deve ser sensível ao

torvelinho das discussões ocorridas nos meios não institucionalizados. Por sua vez, os

procedimentos judiciais visam à proteção, decisão e estruturação dos espaços argumentativos

(sem, contudo, interferir no fluxo dessas argumentações). Nesse último caso, lembra

Habermas (1998:266) que a tensão entre facticidade e validade se manifesta no fato de que as

decisões devem levar em conta, simultaneamente, a tensão entre segurança jurídica (aqui,

positividade do Direito) e pretensão de decisões corretas (legitimidade).

Assim, por um lado, o Direito vigente é capaz de garantir a imposição

coercitiva de expectativas de comportamento. Por isso mesmo, as decisões judiciais devem

estar consistentes com o Direito vigente, formado a partir de uma cadeia de decisões passadas

político de tipo publicístico, es decir, apoyado por convicciones de tipo público, sólo se transforma en poder político, es decir, en un potencial para tomar decisiones vinculantes, cuando opera obre las convicciones de los miembros autorizados del sistema político y determina el comportamiento de electores, parlamentarios, funcionarios, etc. El influjo publicístico político, al igual que el poder social, sólo puede transformarse en poder político a través de procedimientos institucionalizados” (HABERMAS, 1998:443).

62 “Quando escreveu Mudança estrutural da esfera pública [1961], Habermas identificou a destruição da esfera pública burguesa do século X, a qual havia feito uma revolução política e moral da sociedade. A troca de informações e o debate criado pela esfera pública burguesa propiciava a reflexão, a crítica e a autonomia dos indivíduos acerca das questões que eram postas em discussão. O princípio para o debate público era a discussão baseada em argumentos. A necessidade de argumentação era inovadora, pois desconsiderava qualquer espécie de apelo externo à comunicação como, por exemplo, o econômico, criticando inclusive a tradição que não permitia a justificação de ações políticas” (MATTOS, 2002:101).

Page 208: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

208

– tanto de processos legislativos quanto judiciais, bem como de tradições articuladas

(HABERMAS, 1998:267). Por outro lado, a decisão não pode estar limitada ao passado e ao

Direito vigente; uma pretensão de aceitabilidade racional (correção) é esperada.

Por isso mesmo, Bahia faz uma advertência pertinente também à presente

pesquisa: [...] a discussão em torno da posição dos Tribunais num Estado Democrático de Direito é bem mais complexa do que a de um simples “aplicador do direito”. A circulação oficial do poder mostra a precedência do Legislativo na percepção e na própria discussão pública das várias questões surgidas nos vários espaços públicos. Contudo, transparece também que a função dos Tribunais não pode se resumir à mera “subsunção” dos fatos às leis. Por outro lado, se o Judiciário não deve ser mera bouche de la loi, não deve, outrossim perder de vista que ele não é o repositório das “virtudes” de uma comunidade: assumindo uma posição conservadora – como , e.g., o “Senado Conservador” francês – ou uma atitude “ativista” (2003:250, grifo no original). O problema, então, gira em torno da possibilidade de conciliar a facticidade

do Direito – isto é, estabilização de expectativas de comportamentos, até por uma via

coercitiva – com uma validade – ou seja, uma autonomia pública que reclama a legitimidade

do processo de formação de normas. Logo, a questão da legitimidade do Direito não se

resume ao factum de uma decisão judicial; ainda é necessário que esta seja consistente de dois

aspectos: por meio de uma justificação interna – deve encontrar motivações no Direito

positivo; e por meio de uma justificação externa – aceitável racionalmente, explicitando uma

fundamentação jurídica (HABERMAS, 1998:267; BAHIA, 2003:250).

Contribuições podem ser encontradas no pensamento de Gadamer e

Dworkin, já reconstruídos em um momento anterior à apresentação da Teoria Discursiva do

Direito e da Democracia de Jürgen Habermas. Todavia, é nas pesquisas de Klaus Günther –

que, ao mesmo tempo em que partem dos estudos habermasianos, trazem contribuições,

lançando novas luzes sobre velhas questões – que Habermas (1998:62), reconhecidamente,

encontra seu interlocutor jurídico. Conforme será visto no tópico seguinte, a separação feita

por Günther entre discursos de justificação e discursos de aplicação, seja do Direito, seja da

Moral, é decisiva para o desenvolvimento da Teoria do Discurso. Questões de validade de

uma norma passam a ser dissociadas de questões referentes à aplicação adequada da mesma.

Page 209: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

209

4.4. A contribuição e os limites da teoria de Günther: a distinção entre discursos de

justificação e discursos de aplicação como fundamento para uma reconstrução da função

jurisdicional

Günther (1993:11), no capítulo de abertura de sua obra principal, Der Sinn

für Angemessenheit, esclarece que questões referentes à validade de uma norma devem ser

separadas das questões referentes à sua aplicação adequada.63 Por isso mesmo, o jurista

alemão reconstrói e apresenta, por meio de uma separação lógica, uma distinção entre

discursos de justificação e discursos de aplicação. No primeiro, tratar-se-ia de perquirir sobre

a validade das normas que seriam, posteriormente, aplicáveis prima facie, utilizando-se, para

tanto, de um teste de universalização – a partir do princípio do discurso; no outro, pretender-

se-ia considerar aquelas normas válidas e, então, diante de um caso concreto especifico, busca

encontrar a norma que seja adequada. O pressuposto aqui é semelhante ao de Dworkin, a

unicidade do caso concreto: cada caso é único, assim como cada evento reconstruído no

interior de cada processo é singular.

Segundo Günther (1992), se um olhar através da história da Filosofia for

lançado, poderá ser percebido que, desde muito, se busca um princípio de universalização,

capaz de explicar de maneira suficiente uma troca de papéis entre o agente e a pessoa

envolvida na ação buscada. Uma proposta foi a “regra de ouro”, a qual exige que no curso do

julgamento sobre a ação, o agente se coloque no lugar daqueles que poderão ser atingidos.

Outras versões levantam exigências de imparcialidade, de modo que o agente não se deixe

dominar por seus próprios interesses, podendo defender publicamente suas ações à luz de

razões guiadas por uma “lei universal”. Contudo, na compreensão de Wiggins,64 lembra

Günther, a simples mudança não basta para garantir a justeza moral de uma ação; sua

proposta, então, concebe o princípio de universalização a partir de uma análise conjunta de

três posições: do agente, do afetado e do espectador. Essa mesma idéia – isto é, a busca por

critérios que afirmam a possibilidade de se chegar a uma justificação racional moral – parece

63 “The following section is concerned with the justifications of the thesis that, in moral action, questions of

norm validity must be separated from questions of application. […] it may be sufficient to point out that two distinct activities are involved: on the one hand, justifying a norm by showing that there are reasons, of whatever kind, to accept it, and, the other, relating a norm to a situation by inquiring whether and how it fits the situation, whether there are not other norms which ought to be preferred in this situation, or whether the proposed norm would not have to be changed in view of the situation” (GÜNTHER, 1993:11).

64 WIGGINS, David. Universalizability, impartiality, truth. In: WIGGINS, David. Needs, Values, Truth: essays in the philosophy of value. Oxford: Oxford University Press, 1987.

Page 210: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

210

estar presente na Teoria do discurso; todavia, onde Wiggins fala em “ações”, se substitui por

“normas” (rever este trecho).

O que se busca, portanto, é uma justificativa geral para uma norma de ação

do ponto de vista moral ou jurídico; e, para tanto, Günther apóia-se em Habermas (1987), que

já traz uma versão forte desse princípio de universalização na forma do princípio do discurso

(D) – “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o

seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais” – que incorpora a

crítica de Wiggens, indo além e eliminando qualquer vestígio egocêntrico.65 Agora, todos

devem colocar-se mutuamente na posição do outro e avaliar, de uma maneira conjunta, se a

norma corresponde ao interesse universal (GÜNTHER, 1993:23-24; 2000:86).66

Günther (1993:23; MORAL SORIANO, 1998:193) reconhece que toda

norma acaba por fazer referência a uma situação de aplicação, bem como às conseqüências e

efeitos colaterais resultantes de sua aplicação. Se os participantes de um discurso de

justificação dispusessem de um conhecimento ilimitado e de tempo infinito, atingiriam uma

condição ideal; em decorrência, poderiam prever todas as conseqüências e os efeitos

resultantes da observação dessa norma, bem como se o interesse universal foi respeitado

(GÜNTHER, 2000:87). Contudo, o próprio autor reconhece que essa pressuposição é irreal; o

que não descarta o seu papel contrafactual. Logo, A tese que pretendo desenvolver é que queremos dizer coisas diferentes quando dizemos que estamos justificando uma norma imparcialmente e quando dizemos que estamos aplicando uma norma a um caso imparcialmente. Se for possível apontar que nosso entendimento pragmático da validade de uma norma não contém sua aplicabilidade a todos os casos, então não precisamos da suposição irrealista (GÜNTHER, 1993:87-88). É, por isso, que, para toda norma que for aceita como válida a partir de um

princípio de universalização, haverá situações nas quais, essa mesma norma, aparentemente,

65 Por isso mesmo, tanto para Habermas (1998) quanto para Günther (1993), normas devem ser observadas a

partir da uma racionalidade comunicativa, representando pretensões de validade ligadas à correção de uma ação. Tanto nos discursos de justificação quanto nos discursos de aplicação do Direito e da Moral o princípio discursivo de universalização, em suas respectivas variações – princípio da democracia e princípio moral – deve ser observado, preservando a exigência de intersubjetividade e afastando uma justificação/aplicação pautada em uma racionalidade instrumentalizante.

66 “Um acordo a respeito de normas ou ações atingido pelo discurso em condições ideais tem mais do que força autorizadora, ele garante a correção dos juízos morais. A assertibilidade idealmente justificada é o que queremos dizer com validade moral; ela não significa apenas que se tenham esgotado os prós e contras a respeito de um [sic] pretensão de validade controversa, mas ela mesma esgota o sentido da correção normativa como o fato de ser digna de reconhecimento. Diferentemente da pretensão de verdade, que transcende toda justificação, a assertibilidade idealmente justificada de uma norma não aponta além dos limites do discurso para algo que poderia ‘existir’ independentemente do fato estabelecido de merecer reconhecimento. A imanência à justificação, característica da ‘correção’, apóia-se num argumento de crítica semântica: porque a ‘validade’ de uma norma consiste no fato de que ela seria aceita, ou seja, reconhecida como válida sob condições ideais de justificação, a correção é um conceito epistêmico” (HABERMAS, 2004:291, grifos no original).

Page 211: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

211

poderá se “chocar” com outra norma igualmente válida, de modo que será possível seguir uma

sem descumprir outra.67 No campo da moral, temos um exemplo típico: o dever de dizer a

verdade pode “conflitar” com o dever de prestar auxílio a uma pessoa necessitada.68 Todavia,

nem um dever nem outro deixam de ser válidos, simplesmente porque irão existir situações

em que haja conflito. Por isso, afirma Günther, para a validade de uma norma não se deve

considerar uma incompatibilidade empírica.

É, portanto, necessário distinguir duas classes de “colisões”.

No primeiro caso, tomando novamente as normas morais como exemplo,

tem-se que: a norma que autoriza a quebra de uma promessa, em caso de ganho de vantagem

para o promitente, apresenta uma idéia contrária à norma que ordena que uma promessa deve

ser cumprida; enquanto a segunda apóia-se em uma pretensão de validade que encontra

assentimento universal de todos e, por isso mesmo, pode ser considerada válida, a outra é

carecedora dessa mesma condição. Assim, tem-se à frente o que Günther (1995:281) chama

de colisão interna, ou seja, aquela que afeta a conclusão sobre a validade de uma determinada

norma. Assim, em todas as situações em que a primeira norma for aplicada, teriam sido

lesionados os interesses daqueles que confiavam na sua manutenção; essa norma não pode ser

válida, uma vez que não satisfaz o teste de universalidade.69

Günther explica a necessidade do desenvolvimento de um conceito

normativo de coerência – lembrando a concepção de integridade de Dworkin (1999). Assim,

coerência aqui é tomada, não apenas como uma exigência de racionalidade, mas de maneira

mais ampla: o ideal de coerência é capaz de conduzir a um sistema de princípios (e de regras,

secundariamente) válidos; que, por vez, podem ser identificados por estarem amparados, cada

um, a pretensões de validade normativa – no caso, de correção – e por serem produtos de

discursos universalizantes, que levam em consideração – como já visto – os interesses de 67 Adiantando um pouco a conclusão do presente raciocínio, Bahia lembra que “Günther torna claro que a

questão do ‘conflito’ entre normas, na verdade é um falso problema. Quando se descobre a norma adequada, percebe-se que as demais permanecem igualmente válidas, apenas que nunca foram cabíveis [isto é adequadas] para aquele caso” (2003:255, grifo no original).

68 Esse exemplo é muitas vezes ilustrado com um fato vivido por Kant: durante uma aula, Kant teria sido interrompido por um aluno que, fugindo de uma perseguição injusta da política do Kaiser, solicita permissão para se esconder debaixo de sua mesa. Kant consente. Todavia, quando a polícia chegar e indagar ao professor se sabe do paradeiro do perseguido, esse informa-lhe que o mesmo está escondido debaixo de sua mesa. Para Kant, o dever de ajudar os necessitados (ainda mais alguém perseguido injustamente) e o dever de dizer a verdade representavam, ambos, máximas universalizáveis à luz do imperativo categórico. O fato gerou – e ainda gera – longas discussões; por exemplo, ver: Kant, Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens, e Constant, Das reações políticas (Dos princípios), ambos em REY PUENTE, Fernando (org). Os filósofos e a mentira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. (Travessias).

69 Segundo Günther (1995:281): “Si se muestra que ya, bajo circunstancias que permanecen iguales, en cualquier situación se lesiona un interés común, puede que la norma dudosa no sea válida. En este caso sólo se puede generalizar realmente uno de los dos intereses que colisionan entre sí. El cambio de perspectiva fuerza a los participantes en el discursos a tomar una decisión excluyente (Entweder-Oder-Entscheidung).

Page 212: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

212

todos os sujeitos envolvidos (GÜNTHER, 1995:277). Nessa ótica, encontrar-se-iam, no

interior desse sistema, apenas as normas válidas produzidas por meio do discurso de

justificação.70 Todavia Günther (1995:283) explica que não é possível ordenar essas normas

através de critérios hierárquicos; todas elas apresentam igual validade.71 Mesmo assim, o

sistema não está completo, falta uma idéia fundamental: se todas as normas são igualmente

válidas e, por isso mesmo, aplicáveis potencialmente a um caso, qual das normas deverá ser

aplicada?

A pergunta acima remete a um problema diferente e que pode ser ilustrado

por outro exemplo moral: a norma que obriga a manutenção de uma promessa é válida da

mesma forma que a norma que afirma um dever de auxílio a uma pessoa necessitada; em

ambos os casos, fica claro que os interesses são universalizados e estão igualmente apoiados

por pretensões sobre a correção normativa. A colisão, então, é considerada como uma colisão

externa, que apenas pode ser identificada em situações de aplicação da norma.72 Por isso,

lembra-se que: não é todo caso de ajuda a um necessitado que demandará a quebra de uma

promessa; bem como, nem toda vez que uma promessa for feita, logo em seguida, aparecerá

um necessitado precisando de ajuda. E mais, também os necessitados têm interesse de que

promessas sejam cumpridas, de modo que a validade da primeira norma permanece

inquestionada.

O problema, então, transfere-se para uma esfera do discurso normativo: a

aplicação das normas. Em um caso concreto, diversas normas se apresentam como aplicáveis

prima facie (GÜNTHER, 1995:283). Todavia, quando as circunstâncias de aplicação dessas

normas mostram-se próximas, faz-se necessária uma descrição completa do caso,

considerando as circunstâncias individualizantes e sinais característicos em cada situação.

70 “O discurso de justificação cuida saber quais normas no ordenamento são válidas (isto é, que protegem

adequadamente um interesse universalizável). Segundo o exemplo de Günther [2000:89], quando a aplicação de uma norma sempre signifique a violação de um interesse universalizável, tal norma não é válida (o que seria diferente se a mesma, protegendo um interesse, ocasionalmente ofendesse outro interesse universal). Para o discurso de justificação basta a aferição de validade da norma, isto é, a verificação de que há ‘reciprocidade de interesses em circunstâncias constantes’ [GÜNTHER, 2000:90; 1992:278]. No discurso de justificação abstrai-se de considerações sobre hipóteses de conflito (aparente) em situações concretas de aplicação. Observa-se no caso hipotético que ambas normas morais representam interesses moralmente universalizáveis, logo, são válidas” (BAHIA, 2004:329, grifos no original).

71 Tal conclusão é contrária à tese sustentada por alguns dos adeptos da tradição da Jurisprudência de Valores; para esses haveria princípios (no caso do Direito) mais importantes que os demais, como o caso do princípio da dignidade humana.

72 É através da distinção entre colisões internas e colisões externas que Günther (1995:281) pretende pôr em cheque a distinção entre regras e princípios de Alexy, enquanto uma distinção estrutural das normas. O raciocínio de Alexy para as regras, na realidade, refere-se à colisão interna; todavia esse e a colisão externa acontecem tanto com princípios quanto com regras; e mais, com qualquer outra ordem normativa – por exemplo, a moral. Günther, então, lança mão de um critério procedimental e não materializante (ou semântico), como faz Alexy.

Page 213: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

213

[...] logo ao tomarmos conhecimento de um fato, podemos tomar as normas como somente prima facie aplicáveis. Todo o Direito nos surge como sendo, em princípio, aplicável em sua totalidade de princípios válidos. Todavia, o juízo de adequabilidade perante essas normas válidas é que permitirá aos envolvidos alcançar, com retidão, aquela norma não meramente aplicável prima facie. Da consideração das “normas candidatas” (prima facie aplicáveis) à norma adequada entremeia o discurso que envolve, necessariamente, a reconstrução completa da situação de fato. Disso concluímos que não basta uma descrição “completa” do fático: esta tem que se relacionar com todas as normas aplicáveis, ainda que de maneira virtual – o que leva, também, a uma reconstrução interpretativa e realizativa do Direito (CHAMON JUNIOR, 2004:114, grifos no original). Um aprofundamento deve ser feito: Günther considera importante distinguir

uma descrição de um estado de coisas de uma interpretação de uma situação; a primeira

consiste em proposições que podem ser avaliadas como verdadeiras ou falsas, de acordo com

a existência de fatos; todavia, se por um lado, a interpretação de uma situação também contém

descrições verdadeiras dessa situação, por outro, mostra-se mais abrangente, pois o locutor é

responsável por expor em sua interpretação quais descrições verdadeiras do estado de coisas

são significativas, e quais não são. Logo, uma interpretação da situação somente pode ser

completa se ela contiver todas as descrições do estado de coisas que são simultaneamente

verdadeiras e significativas. Todavia, o que se quer dizer com “significativo”? Aqui, o termo é

conectado à compreensão que pode ser obtida de uma norma – há uma identidade entre o

estado de coisas veiculado no nível da norma e a descrição do caso.

É, por isso, que a compreensão normativa de coerência do sistema jurídico

(ou moral) somente pode ser atingida, levando-se em conta os discursos de aplicação.73 Uma

vez que as colisões externas são invisíveis quando apartadas de um caso concreto, a coerência

normativa somente pode ser estabelecida – porque reconstruída – em um estágio final, perante

cada caso concreto (CHAMON JUNIOR, 2005:115). Com isso, tanto a exigência de

imparcialidade74 quanto o ideal da “norma perfeita” – nesse caso, apenas indiretamente –

foram alcançados (GÜNTHER, 1995:283).75

73 “La coherencia a la que se refiere Günther no es un criterio de valoración sino que más bien resume una

relación: la que debe existir entre la norma, el resto de normas que prima facie eran aplicables a un caso y, finalmente, la completa descripción de la situación: «Una norma en todas sus variantes semánticas y en relación con otras normas aplicables sea adecuada a la situación descrita completamente». Tanto la adecuación de la norma a una completa situación, cuanto la coherencia de la norma y los aspectos relevantes de una situación, carecen de un contenido material. Más bien resume las relaciones entre la norma y la situación descrita completamente (en el caso de la adecuación) y entre la norma adecuada, el resto de normas aplicables y la situación descrita (en el caso de la coherencia)” (MORAL SORIANO, 1998:202).

74 Segundo Günther, a imparcialidade é agora uma exigência de ordem procedimental, de modo que somente se pode estabelecer a norma aplicável legitimamente ao caso, se são levadas em consideração todas as características relevantes, a partir de uma interpretação coerente de todas as normas aplicáveis. “[...] on ne peut établir qu’un norme peut pégitemement s’apliquer dans une situation que si on été preses en considération toutes les caractéristiques de la situation qui sont relevantes en regard d’une inteprétation cohérente de toutes les normes applicables” (GÜNTHER, 1992:269).

75 “[...] alcançamos o ideal de uma norma perfeita por via indireta: apenas o dividimos em duas etapas distintas. Não antecipamos todas as características de cada situação a um único momento, mas em cada situação, em um

Page 214: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

214

Para essa tarefa, lembra Günther (1992:294), os paradigmas são de

importância ímpar:76 eles determinam certos acentos que são relevantes normativamente em

um caso concreto. Os paradigmas, então, reduzem a complexidade da tarefa de redefinição

das relações de primazia – e não de preferência – entre as normas, de forma que essas são

postas em relação dentro de uma ordem transitiva.77

Normalmente, nos referimos a uma destas ordens transitivas, quando nos ocupamos com um caso típico de colisão. Estes paradigmas são determinados por uma forma de vida comum, que é partilhada. Então, por exemplo, toda forma de vida tem sua própria regra de prioridade a respeito da relação entre liberdade e igualdade. Apesar disso, dois aspectos destes paradigmas podem ser criticados por meio do discurso, independentemente de qual seja a forma de vida: a validade das normas singulares, se os interesses vão se alterando e a relação de coerência entre outras normas válidas, se as descrições de situações vão se alterando (GÜNTHER, 2000:97, grifos no original). As decisões discursivamente tomadas nos processos de aplicação do Direito

são para aqui e agora, além de estarem voltadas para um caso determinado e contarem com a

participação de sujeitos individualizados. Não há necessidade de empreender a uma

reconstrução de toda a história institucional. Todavia, o processo de aplicação deve

possibilitar o aporte de interpretações divergentes acerca da interpretação jurídica e da

situação concreta (GÜNTHER, 1992:288). A norma adequada será aquela capaz de fornecer

uma justificação para um imperativo singular – isto é, o caso concreto único e irrepetível –

representando uma maneira de agir, sustentada por uma pretensão de validade referente à

correção normativa, na situação in casu (BAHIA, 2004:332).

determinado momento, todas as suas características. Então, o problema pode ser resolvido pela aceitação de algumas normas como válidas, apesar de sabermos que eles irão colidir com outras normas válidas em alguns casos” (GÜNTHER, 2000:90-91).

76“Un paradigme ccontient une interprétation globale cohérente des normas e des interprátations normatives relatives à certaines descriptions généralisées de situation. L’entrecroisement de la norme et de la description de l’étet de choses s’y situe à un niveau plus général que dans la justifications d’un impératif singuler. L’interpretation globale cohérente est liée à un ensemble déterminé d’interpretations de situation généralisées et collectivement partagées. L’ensemble des interprétations pertinentes est ainsi circonscrit sur la base d’un principe de cohérence interpretative. Pour un ensemble de situations, on affirme que toputes les descriptions de situation signifiants on été prises en considération par un paradigme. Les paradigmes sont liés à des formes de vie. Ils ordonnent un ensemble déterminé de normes intersubjectivement partagées que appartiennent à une form de vie” (GÜNTHER, 1992 :294).

77 Como já afirmado em face da teoria de Dworkin, em Günther, os paradigmas também aliviam os participantes de um discurso de aplicação do Direito dos encargos excessivos de racionalização: os paradigmas tornam óbvias certas formas de interpretação e de ver a realidade e a normatividade subjacente (BAHIA, 2004:331). “[A] tentativa de se reduzir a complexidade da interpretação jurídica através da reconstrução de um paradigma jurídico concreto (ou, ainda, da determinação nada isenta de problemas de uma ‘ideologia constitucionalmente adotada’ ou um ‘quadro de valores comum superiores’), que desde o início já estabeleceria um horizonte histórico de sentido para a prática jurídica, só retiraria em parte dos ombros do juiz a tarefa hercúlea de pôr em relação os traços relevantes de uma situação concreta, apreendida de forma a mais completa possível, com todo o conjunto de normas em princípio aplicáveis (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:107-108).

Page 215: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

215

Pode-se, então, afirmar que há uma divisão de tarefas entre os processos

legislativo e jurisdicional, a partir da distinção e correspondências desses processos com os

discursos de justificação e aplicação, respectivamente.

Logo, em um discurso de aplicação, o operador do Direito deve pressupor

que as normas legisladas são válidas – haja vista elas terem sido positivadas a partir de um

discurso de justificação, procedimento esse capaz de garantir, à primeira vista, sua validade. A

discussão, portanto, estaria restrita à busca pela norma adequada ao caso concreto. Em um

primeiro momento, deve-se proceder a uma justificação interna – ou seja, perquirir um exame

semântico dos textos normativos, incluindo referências a precedentes judiciais e

considerações teóricas (doutrinárias). Todavia, bem lembra Souza Cruz (2004:225): isso não é

suficiente. Como segundo passo, deve-se passar para uma análise dos elementos e aspectos

descritivos da realidade fática, de modo a permitir a seleção das características relevantes do

caso sub judice. Assim, todas as possibilidades semânticas do texto devem poder cruzar-se

com os elementos fáticos do caso – de acordo com um método concretista de aplicação

imparcial das normas. Diferentemente, então, do que pensavam os positivistas, “o operador do

Direito precisa estar ciente de que mais de uma norma válida pode concorrer prima facie

como a mais adequada ao problema” (SOUZA CRUZ, 2004:225-225, grifos no original).78 A

questão, agora, é determinar um âmbito/grau de restrição à aplicação de uma norma, sem,

com isso, questionar a sua validade – regredindo a um discurso de justificação como, por

exemplo, faz a ponderação de princípios.

Mas, então, cabe uma questão: como fica a noção de “segurança jurídica”,

tão cara para os positivistas? Habermas (1998:291) responde afirmando que a única saída dá-

se através de uma reconstrução do conceito. Uma vez que o “modelo de regras” foi

completamente ultrapassado, a “nova” leitura assenta-se na base da função do Direito – qual

seja, a garantia de expectativas de comportamento – entretanto, o que aqui representa

previsibilidade deve estar aberto para a dupla dimensão da tensão entre facticidade e validade.

A proposta positivista virava as costas para essa última dimensão, diluindo decisões

institucionais sob uma facticidade, todavia, questionável. Logo, a proposta discursiva

transfere o conceito de “segurança” para a garantia dos direitos processuais; aqui, todos os

cidadãos deverão ter garantida a sua participação, além de que todas as questões fático-

jurídicas pertinentes sejam ventiladas e debatidas. A “segurança”, portanto, migra da 78 “No processo de aplicação, seleciona-se, em meio às normas [justificadas] que apenas se candidatam para um

caso dado, aquela que é cada vez [adequada]. Aqui se manifesta a descoberta hermenêutica de que a norma apropriada é concretizada à luz das características da situação dada e, que, inversamente, o caso é descrito à luz das determinações normativas pertinentes” (HABERMAS, 2004:277).

Page 216: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

216

previsibilidade de resultado para a garantia de direitos participatórios nos processos de

tomada de decisão estatal. Conclui, então, Souza Cruz (2004:237) que a decisão adequada –

ou a resposta correta, como quer Dworkin – não se encontra sob a base de um consenso ético-

substantivo majoritário; ela está no procedimento que levanta exigência de observância dos

princípios informadores do devido processo constitucional, de uma reciprocidade entre

participantes e do “discurso jurídico”, que conjuntamente podem realizar uma filtragem dos

direitos fundamentais.

Todavia, Günther (1992:298) construiu sua tese a partir de uma

compreensão do Direito como caso especial do discurso moral; isso porque os discursos

jurídicos, apesar de particularidades frente aos discursos morais, ainda guardariam muitas

similitudes – a principal é a de que normas jurídicas poderiam ser justificadas moralmente;

vindo a ser muito criticado por Habermas (1998:304). Importante, então, aprofundar um

pouco mais a tese já apresentada quando foi discutido o posicionamento de Alexy, no capítulo

anterior. Como já visto, o jurista de Kiel sustenta que a correção de uma decisão judicial é

sempre relativa, haja vista a impossibilidade de haver uma legislação isenta de colisões entre

normas, principalmente no tocante aos princípios (em sua leitura, valores). Mas, em

Habermas, é possível extrair legitimidade da legalidade (SOUZA CRUZ, 2004:227), tornando

autônomo o discurso jurídico na sua relação com a moral. Diversas, então, são as razões para

a crítica da tese do caso especial:79 (1) na argumentação jurídica, diferentemente da moral, as

partes não estão obrigadas a proceder a uma busca cooperada pela verdade; o Direito abre

espaço para ações estratégicas que possam conduzir a uma decisão favorável. Mesmo assim, 79 Interessante a análise a que procede Atienza (2002:288-289, grifos no original): “A tese central da teoria de

Alexy [...] consiste em afirmar que a argumentação jurídica – o discurso jurídico – é um caso especial do discurso prático geral. A essa tese pode-se dirigir tanto uma crítica conceitual quanto uma crítica centrada no alcance prático da teoria ou, então, em seu significado ideológico. [...] Do ponto de vista conceitual, a primeira crítica que se pode fazer à tese do caso especial é que ela é ambígua e por partida dobrada. Uma primeira ambigüidade deriva do fato de a ênfase de que o discurso jurídico seja um caso do discurso prático geral, o que destaca o caráter racional da argumentação jurídica, sua proximidade em relação ao discurso moral, ou então no fato de que se trata de um caso especial, o que ressalta as deficiências de racionalidade do discurso jurídico [...]. O segundo tipo de ambigüidade consiste [...] na falta de clareza quanto ao que Alexy entende por argumentação jurídica ou discurso jurídico: em sentido estrito, o discurso jurídico seria um procedimento não-institucionalizado que se situa entre o procedimento de estabelecimento estatal do Direito e o processo judicial; em sentido amplo, também se argumenta juridicamente no contexto desses últimos procedimentos, embora Alexy reconheça que, neles, não só é questão de argumentar como também de decidir. E aqui, a propósito do que chamei de ‘discurso jurídico em sentido estrito’ (e que Alexy chama de ‘discurso jurídico como tal’ [2001]), surge, de novo, uma certa ambigüidade. Por um lado Alexy indica que esse – o discurso jurídico como tal – é um tipo de procedimento não-institucionalizado (para ele isso significa – é preciso lembrar – que não está regulado por normas jurídicas que assegurem a chegada a um resultado definitivo e que seja, além disso, obrigatório, o que faz pensar que com isso ele está se referindo basicamente à argumentação da dogmática jurídica). Mas, por outro lado, quando Alexy contrapõe o ‘discurso jurídico como tal’ ao discurso no processo judicial [...], ele inclui, nesse último item, as argumentações que as partes do processo empreendem, ao passo que a argumentação levada a efeito pelo juiz pertenceria ao primeiro contexto (que – lembre-se – ele havia caracterizado como ‘não-institucional’).

Page 217: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

217

em razão do elevado grau de racionalidade presente no processo, pode-se atingir um juízo de

aplicação imparcial (SOUZA CRUZ, 2004:228); (2) com isso, são apagadas as linhas

fundamentais da diferenciação entre discursos de justificação e discursos de aplicação – o

melhor exemplo é a técnica de ponderação de Alexy. Nos discursos de aplicação, pesa a

limitação da argumentação mais ampla existente nos discursos de justificação – argumentos

pragmáticos e ético-políticos devem ficar excluídos, sob pena de se aceitar uma reabertura do

processo legislativo, todavia, com um rol de legitimados à discussão muito inferior. Com isso,

não se quer negar que, ao longo de um discurso de aplicação jurídico, não surjam questões

políticas e pragmáticas; alerta-se para o fato de que a decisão não poderá reabrir a discussão

de justificação, ou seja, o magistrado deve tomá-las como produto do discurso anterior e tratá-

las como válidas prima facie, avaliando-as e posicionando-se apenas no tocante à

adequabilidade das mesmas frente às circunstâncias do caso concreto, sem, com isso, buscar

construir novos argumentos de ordem pragmática ou ético-política.80 (3) Habermas

(1998:305) ainda lembra que a legitimidade das normas jurídicas não pode ser medida pelo

“critério de universalização de interesses” de Günther, mas somente pela racionalidade

inerente ao processo legislativo.

Esse segundo ponto é justamente um problema que transparece na tese de

Alexy sobre a técnica da ponderação. Habermas irá criticar principalmente a ausência de uma

racionalidade (discursiva) capaz de legitimar a decisão. Todavia, mesmo em artigos recentes,

Alexy (2005:573) ainda não parece – ou não quer – compreender bem esse ponto; em sua

réplica, esclarece que a ponderação parte de uma estrutura complexa de sub-regras e busca

atingir um resultado que encontra respaldo, até mesmo, em uma fórmula matemática.81 Dessa

forma, tal resposta apenas reforça a crítica habermasiana: a racionalidade matemática é típica

de uma busca pela verdade de uma afirmação e difere-se, radicalmente, de um juízo sobre a

correção de uma ação (HABERMAS, 2004). A principal diferença decorre do fato de o juízo

sobre a verdade seguir correspondência com um mundo objetivo, completamente diverso do

mundo intersubjetivo,82 no qual se situam as normas. Naquele a relação se dá entre sujeitos e

80 “No controle de constitucionalidade das leis, o Judiciário deixa de aplicar uma norma ordinária, válida prima

facie, para aplicar diretamente a norma constitucional ao caso concreto” (SOUZA CRUZ, 2004:230). 81 Segundo, Alexy (2005:575-576): “The simplest form of the Weight Formula goes as follows: Wi,j = Ii/Ij. Let Ii

stand for the intensity of interference with the principle Pi, for example, the principle granting the freedom of expression of Titanic. Let Ij stand for the importance of satisfying the competing principle Pj—in our case, the principle granting the personality right of the paraplegic officer. And let Wi,j stand for the concrete weight of Pi. The Weight Formula makes the point that the concrete weight of a principle is a relative weight. It does this by making the concrete weight the quotient of the intensity of interference with this principle (Pi) and the concrete importance of the competing principle (Pj)”.

82 “Diferentemente da pretensão de verdade, que transcende toda justificação, a assertabilidade idealmente justificada de uma norma não aponta além dos limites do discurso para algo que poderia ‘existir’

Page 218: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

218

objetos e, por isso, pesa uma racionalidade de tipo instrumental; enquanto no segundo, tem-se

uma relação entre sujeitos e, por isso mesmo, apoiada por uma racionalidade de tipo

comunicativo. Ao transpor essa lógica instrumental para o universo normativo, conclui

Habermas, abre-se para o aplicador um espaço de subjetividade (discricionariedade),

desligando-o do dever de apresentar razões capazes de encontrar assentimento racional nos

demais membros da sociedade. A fixação de meio e fins é tarefa que cabe aos co-partícipes do

processo legislativo, não aos aplicadores jurídicos.83

No caso dos adeptos da “jurisprudência de valores”, a tentativa por

relativizar a Constituição, bem como sua supremacia, lendo-a conforme uma ordem concreta

de valores, compromete a própria idéia de Constituição: uma vez que essa é a fonte do código

de funcionamento do Direito, código esse apoiado em uma lógica binária que separa o lícito

(constitucional) do ilícito (inconstitucional). Decisões não apoiadas nesse código são,

conseqüentemente, decisões desprovidas de razões jurídicas. Retorna aqui o problema já

apresentado sobre as complicações que podem advir de uma equiparação de normas à

valores.84

independentemente do fato estabelecido de merecer reconhecimento. A imanência à justificação, característica da ‘correção’, apóia-se num argumento de crítica semântica: porque a ‘validade’ de uma norma consiste no fato de que ela seria aceita, ou seja, reconhecida como válida sob condições ideais de justificação, a correção é um conceito epistêmico” (HABERMAS, 2004: 291).

83 “Em síntese, confere-se mais uma vez poderes discricionários ao Judiciário, no sentido de colocar-se na ‘pele’ do legislador político e verificar se, a seu juízo, haveria uma medida que fosse melhor. Esse elemento impõe um decisionismo absoluto, na medida em que propõe ao Judiciário o papel de definição das diretrizes políticas e de argumentos pragmáticos” (SOUZA CRUZ, 2004:240).

84 Para que isso fique claro, pode-se partir do raciocínio seguinte. Normas, segundo Habermas (1998:328, 2004:291), são justificadas a partir de uma pretensão de correção (referência ao justo), devendo poder contar com a aceitação racional daqueles que serão seus afetados (1998:172). Dessa forma, diante de uma pretensão normativa, os atores sociais podem tomar dois caminhos diversos: concordarem mutuamente sobre as pretensões de validade de seus atos de linguagem, ou levantarem pontos em que haja discordância, problematizando-os. Instala-se assim a possibilidade de avaliação através de uma ação comunicativa. As discordâncias advindas dessa forma de ação podem ser solucionadas a partir do uso de razões (argumentos) capazes de convencer ambos os lados (HABERMAS, 2004:295). Contudo, o que se percebe é que o consenso sobre normas apresenta um outro lado importante. Através do Princípio U (Princípio de Universalização), os participantes voltam-se para a possibilidade de universalização das normas de ação capazes de transcender contextos culturais específicos e, com isso, adquirir validade para todos os seus destinatários de maneira igual, ou seja, sem exceções. Diferentemente das normas, uma concepção ética - ligada ao que seja o bem - não apresenta esse potencial de universalização contido nos discursos sobre a correção das normas, uma vez que se encontra enraizada sob valores pré-reflexivos, isto é, concepções culturais partilhadas intersubjetivamente por uma determinada forma de vida concreta. Por isso, a noção de bem liga-se à idéia de um nós, uma comunidade determinada assentada sob uma mesma concepção de vida boa. Desse modo, as referências para as ações oriundas dessa comunidade apenas podem ser compreendidas como respostas a fins específicos (caráter instrumental) julgados a partir das preferências comuns de seus membros. Logo, apenas uma concepção normativa (deontológica) é capaz de satisfatoriamente apresentar respostas à solução de controvérsias práticas, porque, no procedimento de justificação de normas, acontece um discurso argumentativo, pautado em pretensões de validade que retiram os falantes do contexto em que se encontram enraizados, de modo que posições e preferências pessoais sejam analisadas e criticadas a partir de uma perspectiva intersubjetiva abrangente.

Page 219: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

219

A Teoria do Discurso, então, permite repensar a dinâmica da atividade

jurisdicional, sempre pressupondo a dimensão democrática. Torna-se importante distinguir

bem dois modelos apresentados por Günther (1995:37):85 (1) o modelo da correia de

transmissão, segundo o qual o juiz deve aplicar o Direito que é elaborado anteriormente por

um legislador democrático. A legitimidade da decisão, então, decorre da observância à

legalidade, ou seja, ao Direito pré-fixado nos processos de legislação; e (2) o modelo do

bilhar, que afirma que a atividade de aplicação jurídica tem legitimidade por si mesma,

independentemente da existência do legislador. Aqui a aplicação do Direito e a legislação, às

vezes, correm em sentido paralelo, e até mesmo contrário.86 Uma vez que o Direito legislado

é permeado por indeterminações, ou mesmo incapaz de exprimir o “verdadeiro” Direito pelo

qual o povo anseia – principalmente em razão de o processo legislativo poder ser regido pelo

sabor das forças políticas, os magistrados vêem-se forçados a adaptar o que foi positividado,

podendo até mesmo criar novos direitos. Para esse modelo, caso os juízes não estejam

representando bem a vontade popular, sempre há espaço para que os legisladores interfiram,

produzindo novas leis, mudando o curso das decisões futuras. Todavia, adverte Günther

(1995:37), o círculo vicioso se reinstala, podendo o Judiciário compreender diferentemente a

mensagem provinda do Legislativo.87 A validade jurídica, então, encontra-se fracionada: em

parte, deriva dos processos de legislação, mas também decorre das decisões proferidas pelo

Judiciário.

Acontece que nem um nem outro modelo são referências adequadas aos

processos de aplicação do Direito democrático. O primeiro caso ainda está preso à noção de

“vontade geral” de Rousseau, ao passo que o segundo lança similitudes com o realismo

jurídico. A bem da verdade, ambos deixam de observar um problema importante: a questão da

aplicação particular (GÜNTHER, 1995:43).

85 Como lembra Günther (1995:38), trata-se de modelos ideais, que não necessariamente apresentam todas as

suas características na prática social. 86 “The law which is made by the legislator and the law which is made by the judge are like billiard balls, rolling

in different directions or bouncing off each other. They can roll in the same direction, but they do not necessarily do so. In most cases, the law given by the legislator is like a message from another planet, its meaning is indeterminate, many terms are vague, and the circumstances under which it is made change rapidly. This has to do with the fact that often the law is not made by the people for the people, but is the result of a compromise between political groups struggling for power. The judge has to reconstruct the law, has to adapt it to changed circumstances, and, in some cases, or in every case, she invents the law, generates a new meaning. Law is indeterminate, so the judges invent new general rules which have a curtain binding force for others judges” (GÜNTHER, 1995:37).

87 “To be sure, the billiard ball model concedes that the democratic legislator can always intervene in the judge-made law in order to change it for the adjudication of future cases. In this way, the legislator retains an institutional supremacy over adjudication. But then, it’s the same old story: the intervention of the legislator is only a new message from another planet, and the judges will again have to interpret the new law according to their own rules” (GÜNTHER, 1995:37).

Page 220: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

220

Um procedimento imparcial de aplicação do Direito, então, deve levantar

exigências de iguais considerações de todas as particularidades apresentadas pelo caso. Desta

sorte, uma aplicação imparcial de uma norma significa compreendê-la como a norma

adequada capaz de, simultaneamente, ser interpretada como se fizesse parte de um sistema

coerente de normas e fornecer uma resposta para o caso particular, preenchendo uma

exigência de correção normativa para aquela ação singular.

Nesse caso, a proposta, então, passa não por adotar um dos dois modelos

apresentados mas por lançar um olhar reconstrutivo para um novo – que, todavia, encontra no

modelo da correia de transmissão o seu ponto de partida. Esse novo modelo, bem mais

satisfatório, decorre das pesquisas habermasianas (GÜNTHER, 1995:46). A mudança

principal decorre do fato de os discursos jurídicos institucionalizados interpretarem – e aqui,

um alerta: Habermas e Günther tomam o conceito de interpretação conforme a noção

gadameriana; assim, interpretar é, simultaneamente, compreender e aplicar – todo o direito à

luz do sistema de direitos, já que esse é o núcleo tanto da atividade de legislação democrática

quanto da atividade de aplicação jurídica.88 Como conseqüência, as respostas funcionais

dessas atividades estão, ambas, conectadas à forma do Direito – garantia de liberdade

individual (autonomia privada) e de igual consideração (autonomia pública) (GÜNTHER,

1995:46).

Por meio dos discursos de justificação, o legislador político avalia um

espectro ilimitado de razões de normativas e pragmáticas, traduzindo-as à luz do código do

Direito. O aplicador jurídico, por outro lado, encontra uma constelação de normas bem mais

limitadas – ele apenas pode lançar mão das escolhas já feitas pelo legislador. Além disso,

todas as escolhas do legislador, uma vez traduzidas conforme o código do Direito, agora

funcionam sob a lógica jurídica; por isso mesmo, a tarefa deixada a cargo do aplicador não é

mais de justificar tais razões, mas de encontrar, dentre as que o legislador considerou como

prima facie válidas, a adequada para fornecer uma fundamentação acerca da correção da ação

singular trazida pelo caso sub judice.

Assim, é o caso concreto – através de suas particularidades – que vai

fornecer o espectro de normas a serem examinadas. A noção de aplicação imparcial aqui é

entendida como uma exigência de que o procedimento de aplicação leve em conta a 88 “To be sure, the system of rights is not given in advance as an independent code which has only to be applied

by legislation. It does not represent God’s point of view, as He gave the law to Moses. Instead, it is something like an idealized internal reference point for the members of a society who conceive of themselves as authors and addressees of equal rights. As such an idealizes internal reference point, the system of rights functions like a generative grammar for the language in which the members of a legally institutionalized rational discourse express their particular opinions for and against a suggested law” (GÜNTHER, 1995:47).

Page 221: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

221

participação daqueles que são os destinatários da norma a ser aplicada. Logo, lembra Günther

(1995:50), tanto as partes quanto o juiz são partícipes dessa dinâmica; todavia eles

desempenham papéis diferentes, mas nem por isso menos importantes. O juiz, então,

desempenha um papel de terceiro observador do conflito: cabe a ele questionar sobre a

coerência das interpretações levantadas pelos participantes (autor e réu) quanto ao caso, bem

como quanto à norma adequada. Dessa forma, a decisão não é apenas sua mas uma construção

conjunta que deve ainda se voltar para a sociedade – uma vez que a mesma é a real titular (e

atingida) pelo sistema coerente de normas válidas, representado pelo Direito. Uma decisão

pode ser considerada fundamentada quando, além de demonstrar a reconstrução

argumentativa dos acontecimentos relevantes do caso concreto, explicita a norma adequada a

servir de justificativa para a ação singular. Essa decisão, então, não é apenas dirigida aos

litigantes, mas a toda a sociedade.89

Uma vez que os litigantes detêm espaço para agir estrategicamente, seu

assentimento não é necessário para que decorra a obrigatoriedade natural do provimento

(GÜNTHER, 1995:50); a legitimidade da decisão está preservada se for garantido aos

mesmos a oportunidade de se manifestarem – isto é, o princípio do contraditório – de modo a

poderem reconhecer-se como co-autores desse provimento. Por isso mesmo, o conflito entre

litigantes, à luz da Teoria do Discurso, aparece de modo diferente: um conflito jurídico

emerge como uma disputa particular entre dois (ou mais) sujeitos de direito, que questionam o

significado das razoes jurídicas que podem ser aceitas pelos participantes de um discurso

público (GÜNTHER, 1995:52).

Todavia, a possibilidade de alternância entre os papéis de autor e

destinatário das normas vê-se bloqueado: paras partes que não podem entender-se,

exclusivamente, como autores das normas, já que, da discussão, estão excluídos os demais

cidadãos, bem como, por força da ação estratégica, submeter-se-ia a “vontade geral” à 89 Em recente trabalho, Alexy (2005:578) busca justificar a legitimidade de uma Corte Constitucional, não em

razão da potencial participação e aceitação racional da sociedade, mas a partir do que ele considera uma representação argumentativa: “The representation of the people by a constitutional court is, in contrast, purely argumentative. The fact that representation by parliament is volitional as well as discursive shows that representation and argumentation are not incompatible. On the contrary, an adequate concept of representation must refer—as Leibholz puts it—to some ‘ideal values’. Representation is more than—as Kelsen proposes—a proxy, and more than—as Carl Schmitt maintains—rendering the repraesentandum existent. To be sure, it includes elements of both, that is, representation is necessarily normative as well as real, but these elements do not exhaust this concept. Representation necessarily lays claim to correctness. Therefore, a fully-fledged concept of representation must include an ideal dimension, which connects decision with discourse. Representation is thus defined by the connection of normative, factual, and ideal dimensions” (2005:579, grifos no original). Nesse sentido, o déficit de legitimidade das Cortes Constitucionais poderia ser superado pela existência de pessoas capazes de avaliar as pretensões de validade de correção das normas. O que é bem diverso de Habermas, para quem a racionalidade não está nos sujeitos, mas no procedimento de tomada de decisão.

Page 222: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

222

vontade particular; nem para o juiz, já que o discurso de aplicação impede o retorno às razões

que levaram a justificação da norma.

O principal, então, será realizar o desbloqueio por meio da troca

interpretativa entre as partes, lembrando-as de seu papel como participantes iguais dos

discursos públicos. Transcendendo o particularismo do caso sub judice, a decisão, para

considerar-se fundamentada, deve ainda se pautar em razões jurídicas que poderiam ser

aceitas racionalmente pela sociedade. Günther (1995:52), então, reconhece que a opinião

pública adquire um papel importante no paradigma procedimental do Estado Democrático de

Direito.

A crítica pública à decisão, permanentemente, lembra aos aplicadores do

Direito (conceito esse compreendido em sentido amplo e não apenas relacionado aos

magistrados) que são meros representantes do papel que desempenham na aplicação do

Direito. É, por isso, que Günther (1995:53) afirma que a interpretação jurídica não pode ser

assumida como uma questão de escolha ou opção pessoal do aplicador, mas sim ligada a um

esquema coerente de princípios de justiça, de igualdade e de liberdade amparado por razões

de natureza pública compartilhadas pela sociedade.

4.5. Uma resposta habermasiana ao problema dos requisitos de admissibilidade da

“transcendência” e da “repercussão geral” nos recursos destinados aos Tribunais Superiores:

adequabilidade da decisão à luz de um sistema coerente de princípios jurídicos

A partir da reconstrução operada no final do tópico anterior, é possível

perceber que Habermas (1998:266) reconstrói uma questão importante presente na dogmática

processual tradicional acerca da tensão entre decisões que sejam coerentes com o tratamento

dado ao tema e aceitáveis racionalmente, e a necessidade de a decisão judicial resolver a

questão conflituosa.

Os movimentos em prol de uma “simplificação e celeridade” nos processos

de aplicação judicial do Direito não podem perder de vista o entendimento de que as garantias

processuais, como a do contraditório e a da ampla defesa, não podem ser violadas em nome

de um rápido andamento do processo (GONÇALVES, 2001:125; THEODORO JÚNIOR,

1996:179).

Page 223: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

223

A partir de Habermas (1998:306), é possível compreender que a estrutura

presente nas normas processuais é capaz de compensar as condições comunicativas,

garantindo a formação de um provimento (legislativo, administrativo ou jurisdicional)

legítimo.90 É essa compensação que permite à Teoria do Discurso abrir mão da metáfora do

juiz Hércules de Dworkin, capaz de garantir por si só interpretações coerentes dos princípios

jurídicos em sede de sua aplicação, corporificando o ideal de integridade (GÜNTHER,

1995:46).91 A exigência normativa de imparcialidade, então, pode-se despersonificar através

de uma separação entre discursos de justificação normativa e discursos de aplicação do

Direito.

Nos discursos de justificação, explicados no tópico anterior, busca-se chegar

à normas válidas, por meio do reconhecimento de que tais normas podem encontrar aceitação

racional por todos os atores sociais.

Diferentemente, nos discursos de aplicação, a tentativa é de alcançar a

norma adequada conforme as particularidades do caso concreto específico. Para tanto, deve-se

desenvolver uma interpretação coerente do sistema jurídico, o que significa compreender o

Direito à luz de princípios, ao invés de regras. Assim, os processos de aplicação judicial do

Direito devem correlacionar as perspectivas concretas das partes com as normas prima facie

aplicáveis, frutos de discursos de justificação, a fim de que seja possível identificar os traços e

sinais individualizadores de cada situação concreta de aplicação.

Nesse sentido, traça-se uma linha que liga os participantes do processo e os

demais membros da comunidade. Assim, um processo judicial revela uma dimensão que, por

si só, ultrapassa os limites de uma situação específica, que, segundo a dogmática tradicional,

estaria representando apenas o interesse particular das partes envolvidas (HABERMAS,

1998:300). Para tanto, deve-se resgatar a importância da distinção entre direitos e interesses, 90 “De nuevo el derecho ha de aplicarse a sí mismo en forma de normas organizativas, para crear no sólo

competencias en lo tocante a la administración de justicia, sino para establecer discursos jurídicos como ingredientes de los procesos judiciales. Las normas relativas al orden del proceso institucionalizan la práctica de la decisión judicial de manera que la sentencia y la fundamentación de la sentencia puedan entenderse como resultado de un juego argumentativo que viene programado de forma especial. Y de nuevo se entrelazan procedimientos jurídicos con procedimientos argumentativos no debiendo interferir el establecimiento que se hace de discursos jurídicos en términos de derecho procesal con el lado interno de la lógica de esos discursos. Pues el derecho procedimental o procesal no regula la argumentación normativo-jurídica como tal, sino que no hace más que asegurar en el aspecto temporal, social y objetivo el marco institucional para decursos de comunicación que así quedan libres, es decir, que así puedan producirse, los cuales sólo obedecen a ala lógica interna de los discursos de aplicación” (HABERMAS, 1998:307, grifo no original).

91 “On the one hand, Habermas speaks of the coherence of a legal system as a whole, which should guide consistent decision making in particular case. This sounds similar to Dworkin’s theory of law as integrity, which has to be realized by the judge alone. But Habermas rejects Dworkin’s suggestion of constructive interpretation, because ii links the validity of a legal proposition to the ideal of a complete theory, which is necessarily metaphysical in character. Furthermore, it leaves interpretation up to the judge as an individual” (GÜNTHER, 1995:48).

Page 224: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

224

realizada no final do capítulo 2. Os discursos de aplicação servem-se de normas já fixadas nos

discursos de justificação. Logo, para serem consideradas normas, devem passar pelo teste de

universalização, o que significa que todo direito, por mais individualista que seja sua leitura,

expressa um interesse compartilhado por toda a sociedade e, por isso mesmo, uma

materialização do interesse público.

Além do mais, Habermas (1998:300) adverte que, nos discursos de

aplicação do Direito, o atendimento ao interesse de todos os possíveis afetados deve ficar para

segundo plano, cedendo lugar para a busca da norma mais adequada a partir da reconstrução

do caso concreto. Em razão disso, a reconstrução da situação de aplicação, que ocorre em

simétrica paridade com as partes processuais, ganha relevo. As visões de mundo destas

entrecruzam-se com descrições de estados de coisas impregnadas normativamente cuja

validade é pressuposta.

Dessa forma, o regresso ao discurso de justificação representa uma via

fechada em suas múltiplas formas. Nem as partes nem o juiz podem ocupar o lugar dos

debatedores daquele discurso: as partes, em razão do conflito de interesse, são incapazes de

assumir uma perspectiva que leve à troca recíproca de papéis (GÜNTHER, 1995:49); o juiz,

que desempenha um papel de terceiro em relação ao conflito, apenas atua como um

representante do sistema jurídico, cujo titular é a sociedade. Por isso, a ele não é dada a

possibilidade de negar validade às normas previamente fixadas como tal pela sociedade,

muito menos de apresentar novas razões, quer de maneira supletiva, quer de maneira

concorrente (GÜNTHER, 1995:50).

Todavia, o público não fica excluído totalmente da questão. Uma vez que a

decisão não é apenas para as partes – no sentido de que, ao desenvolver uma compreensão

dos direitos que se integram em um mesmo sistema coerente – ela volta-se para o resto da

comunidade, que pode assumir uma importante participação – para além da sua representação

pelo juiz – através da crítica pública da decisão, a qual lembra aos magistrados que são

apenas representantes de um Direito que pertence a toda a sociedade, e não o seu agente

materializador, como pode transparecer em Dworkin (GÜNTHER, 1995:52).92 Portanto, em

todo julgamento, deve-se buscar reconstruir as situações características e particulares dos

casos para determinar a norma adequada dentre uma constelação de outras prima facie 92 “The participants who play the role of the third party can only represent the system of all valid norms which

all participants share equally. But they cannot deny the validity of any one of the norms which they represent who does not belong to the third party; that is, the discourse participant who is involved in the concrete case. As representatives of the valid norms, the participants who play the role of the third party can only argue about the coherent interpretations of the valid norms with regard to all relevant features of the case” (GÜNTHER, 1995:50, grifos no original).

Page 225: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

225

aplicáveis. Ao magistrado cabe somente fundamentar suas decisões com base em razões

normativamente justificáveis – os argumentos de princípio, para usar a expressão de Dworkin.

Também em Habermas, a aplicação judicial do Direito norteia-se pela “decisão correta”, o

que exclui a possibilidade de decisão discricionária ou de qualquer atividade legislativa

supletiva ou concorrente pelo Judiciário.

No caso dos julgamentos envolvendo os recursos destinados aos Tribunais

Superiores, as considerações feitas acima não podem ser olvidadas. Esses Tribunais, segundo

Habermas (1998:309), transformam-se em locais de discussão acerca das pretensões jurídicas

em face de casos concretos, centralizando questões provindas da periferia – isto é,

interpretações que as partes processuais fazem do Direito – e filtrando-as a fim de se construir

um juízo de aplicação adequado a esses casos.

O direito ao recurso, qualquer que seja ele, para a Teoria Discursiva, está

relacionado ao direito titularizado pela parte recorrente de obter uma decisão judicial

“correta”, por meio da revisão de uma decisão anterior (HABERMAS, 1999:309); mas

também leva em conta a existência de um direito pertencente a toda a sociedade de ter um

sistema eficaz de recursos, capaz de realizar tais correções. Esse direito geral ao recurso, ao

associar-se ao direito processual da parte recorrente, expressa a exigência de igual

consideração e respeito, no sentido de que pesa um interesse geral de que todos, nas mesmas

situações, recebam igual tratamento.

Em face disso, tem-se negativa para os membros da dogmática tradicional,

que vislumbram a possibilidade de se adotar um “processo objetivo” como forma de

agilização dos julgamentos nesses Tribunais, pois a exclusão da participação das partes, com

um fechamento apenas para as razões oriundas dos membros do Tribunal, denota uma

situação de carência de legitimidade;93 desfigurando-se, pois, a própria função dos Tribunais

93 Souza Cruz (2003:62-63) lembra os riscos quanto à perda de legitimidade que podem advir se os Tribunais

assumirem uma postura maximalisma, criticada nos estudos de Sunstein (1999) e Dorf (1998): “Para ele [Sunstein], a Suprema Corte deveria ter se abstido de se posicionar antes que a sociedade americana tivesse amadurecido” (SOUZA CRUZ, 2003:63). Esse amadurecimento apenas poderia ser “sentido” quando as discussões atingissem notoriedade nas demais Cortes anteriores – Cortes Estaduais. Somente depois de observada essa demanda de decisão não resolvida ou contida por esses Tribunais, é que caberia a resposta da Suprema Corte. Dorf (1998), em complementação, propõe a adoção de uma perspectiva experimentalista através da utilização das demais Cortes, como forma de checar qual decisão seria mais bem aceita pela sociedade. Apesar de Habermas (1998; 2004) concordar com esses juristas quanto à vedação de decisões maximalistas por parte dos Tribunais, a decisão adequada afasta-se muito da proposta de uma decisão minimalista. Afinal, a adequabilidade aponta para uma resposta que resolva a questão à luz de uma pretensão de universalidade, o que significa que o problema não é abandonado ou respondido de maneira incompleta. Todavia, essa mesma noção compartilha do fato de que toda resposta jurídica é limitada, finita e reversível; por isso mesmo está aqui para ser alterada ao longo das mudanças de interpretações assumidas pelos membros no interior de uma determinada sociedade.

Page 226: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

226

Superiores em uma ordem democrática, haja vista a redução da correção normativa à mera

necessidade funcional de se tomar uma decisão, qualquer que seja ela.

À luz dos pressupostos da teoria habermasiana, os Tribunais devem

assegurar que as interpretações da Constituição – e da legislação – construam-se em um

espaço processualizado, organizado a partir do modelo constitucional de processo, que

determina inclusive a necessidade de fundamentação da decisão.

Contudo, ao que parece, a dogmática tradicional desconsidera que os

recursos para Tribunais Superiores representam um prolongamento de um mesmo processo,

iniciado na primeira instância, e que, portanto, trata-se de uma discussão sobre uma alegação

de lesão ou ameaça de lesão a direito, a qual – para ser bem examinada, a fim de que se atinja

uma “decisão correta” – exige um exame e uma discussão para determinar a norma mais

adequada àquele caso. Também esquece que a figura do “caso igual” ou do “caso repetitivo”

apenas pode existir se diante da figura da coisa julgada – repetição de uma questão jurídica

sob a qual pesa decisão irrecorrível – ou da litispendência – processos diferentes que

apresentam mesmas partes, mesmo pedido e mesmas causas de pedir.

A partir desse prisma, a multiplicidade de propostas interpretativas de um

direito, veiculada pelos diversos recursos apresentados aos Tribunais Superiores, não

representa algo negativo. Primeiro, porque, como já afirmado, cada caso representa um evento

único e, por isso, deve ser examinado à luz de suas particularidades, não podendo receber uma

decisão em bloco, com demais casos distintos.

Ao contrário do que pesam e do que pensam alguns juristas tradicionais e

ministros desses Tribunais, quanto maior a oportunidade de problematização, maior é o

espaço para desenvolvimento de uma “cidadania ativa” (SOUZA CRUZ, 2004:247).

Principalmente, porque a conclusão a qual se chega não é no sentido de que os Tribunais

Superiores funcionam como um “terceiro grau” de jurisdição, mas que os recursos a eles

destinados apresentam uma importante função: assegurar a aplicação de normas adequadas

aos casos concretos, de modo a sempre integrá-las num mesmo sistema coerente – o que, em

termos dworkianos, visa à garantia de integridade do Direito.

Assim, também em Habermas, os recursos permitem que sejam produzidas

novas respostas jurídicas, mantendo a expectativa de que essas sejam mais adequadas que as

anteriores. As decisões proferidas no passado e no presente, então, não podem ser descartadas,

pois indicam uma linha de raciocínio na compreensão de um direito e contribuem para uma

leitura coerente.

Page 227: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

227

A inclusão de um “novo” requisito de admissibilidade recursal, como a

transcendência para o recurso de revista, ou a “repercussão geral” para o recurso

extraordinário, mostra-se problemática à luz de uma compreensão procedimental do Direito.

Aqui, não mais se pode defender a utilização de um mecanismo de seleção que poupe os

Tribunais Superiores de “causas de menor importância”, já que toda causa lança luzes sobre a

compreensão do sistema jurídico.

Sendo assim, todo direito, para ser considerado como tal, deve representar

uma confluência de interesses de todos os membros da sociedade por meio de um discurso de

justificação. Todavia, isso não é suficiente. Ainda é necessário que se proceda a uma

compreensão do Direito a partir de um sistema coerente de normas prima facie aplicáveis – o

que significada identificá-las como princípios (HABERMAS, 1998:300-301).94

Como afirmado, com base na teoria dworkiana, os dois fundamentos

necessários para a interposição de um recurso para um Tribunal Superior apontados pela

dogmática jurídica tradicional – a proteção do ordenamento jurídico (em nível constitucional

e infraconstitucional) e a garantia de uniformização na aplicação e na interpretação do Direito

– acabam adquirindo a mesma função também em Habermas: um direito apenas pode ser

protegido se compreendido à luz de um sistema coerente de normas, isto é, como conjunto

coerente princípios.

Por tanto, falar em “transcendência” ou em “repercussão geral” não pode

nunca adquirir uma interpretação de que direitos estão ligados a pretensões privatísticas. Os

direitos são construídos à luz de uma história institucional, abrindo um espaço argumentativo

que não se desenvolve no vácuo, como já explicou Gadamer. Destarte, a exigência de

demonstração da “transcendência” ou da “repercussão geral” apenas pode-se dar através da

articulação, no iter processual, de maneira discursiva (lógico-argumentativa), de uma

interpretação do direito pretendido à luz de um sistema coerente de normas.

Mas, ao se proceder assim, pode-se constatar que a condição de

conhecimento do recurso de revista e do recurso extraordinário permanece como questão

interna ao Direito, haja vista a desnecessidade de qualquer apelo para o plano meta-jurídico,

bem como a sua impossibilidade lógica, como lembra Günther. 94 “Ahora bien, en los discursos de aplicación las perspectivas particulares de los participantes han de conservar

simultáneamente la conexión con aquella estructura general de perspectivas, que en los discursos de fundamentación había estado tras las normas cuya validez se da ahora aquí por supuestas. De ahí que las interpretaciones de los casos particulares, que se hacen a la luz de un sistema coherente de normas, se vean remitidas a la forma de comunicación de un discurso que socioontológicamente está articulado de suerte que las perspectivas de los participantes y las perspectivas de los miembros no implicados de la comunidad jurídica, representados por un juez imparcial, se dejen transformar unas en otras” (HABERMAS, 1998:300-301).

Page 228: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

228

Seguindo essa lógica, a “transcendência” ou a “repercussão geral” não

podem ser satisfatoriamente consideradas como requisitos de admissibilidade recursal

específicos. Novamente, valendo-se da posição defendida por Barbosa Moreira (1991:166;

ARAÚJO, 2001:201) – reconstruída no segundo capítulo, a distinção entre juízo de

admissibilidade e juízo de mérito recursal deve ser levada em consideração. Reafirma-se,

portanto, que o primeiro grupo apenas apresenta os pressupostos extrínsecos (tempestividade,

preparo, regularidade formal e inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de

recorrer), sob pena de se proceder a uma dissolução dessa separação, correndo o risco de

desconsiderar conseqüências importantes: qualquer outra análise, necessariamente, acaba por

adentrar a discussão sobre o mérito recursal, prejulgando a causa.

Em conclusão, uma compreensão normativa leva a entender tanto a

“transcendência” quanto a “repercussão geral” como questões internas à própria pretensão

recursal; e, por isso mesmo, estão conectadas a toda e qualquer pretensão jurídica levada a

cabo pelas partes processuais.

Uma leitura procedimental, então, percebe que a ausência de demonstração

de tais requisitos acarreta um julgamento de mérito negando tal pretensão, o que, nesse

sentido, demonstra que tais “inovações” são incapazes de responder ao problema da “crise do

Judiciário”. Em verdade, elas em nada contribuem, já que representam mais uma repetição

desnecessária dos requisitos recursais já exigidos na Constituição da República para o recurso

extraordinário e na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) para o recurso de revista.

Tal entendimento, então, mostra-se adequado ao paradigma procedimental

do Direito, uma vez que alia a compreensão desses recursos como via da defesa de direitos à

função unificadora desempenhada pelos Tribunais, ambas guiadas por uma interpretação

coerente do Direito, capaz de gerar respostas adequadas aos casos concretos apresentados ao

Judiciário. Logo, não se toma o público como oposto ao privado, mas apresentam-se ambas as

esferas sob o prisma de uma relação de eqüiprimordialidade.

Como argumentado anteriormente, se levada a sério a dimensão pragmática

da linguagem jurídica, não é possível a priori, por meio da legislação, identificar as causas

que supostamente não interessariam ao resto da sociedade. Proceder assim equivaleria a ainda

defender a possibilidade de se atingir, por meio do discurso de justificação, o ideal de uma

norma perfeita. Todavia, Günther (2000; 1995b) mostrou que isso é inalcançável; daí a

necessidade de proceder-se a uma distinção entre os discursos de justificação e de aplicação

do Direito. Nesse sentido, é apenas no interior do discurso de aplicação que se poderia

reconstruir uma norma, dotando-a de sentido. Logo, a separação individual/coletivo/difuso,

Page 229: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

229

defendida pela dogmática tradicional, cai por terra à luz das complexidades impostas pela

linguagem. Tudo deve passar pelo fio da argumentação que será desenvolvida a partir do uso

de razões capazes de gerar convencimento, com a participação daqueles que serão os

destinatários de tais provimentos.

Finalizando, a defesa dos adeptos do movimento do “acesso à justiça” –

criticados no capítulo 2 –, então, deveria ser no sentido de buscar uma ampliação de todos os

espaços procedimentais, para que haja condição de exercício de uma cidadania ativa – que

preserva tanto sua autonomia privada quanto sua autonomia pública – e não apenas restrita ao

primeiro grau de jurisdição.

O cidadão tem direito de, por ele mesmo, atuar na busca pela defesa e

proteção de seus direitos (BAHIA, 2003:355), como exercício de sua autonomia privada. Para

tanto, a garantia dos princípios processuais e uma compreensão acerca dos mesmos são

fundamentais, bem como a existências de recursos que permitam ventilar o debate jurídico

sobre a interpretação coerente de direitos.

Page 230: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

230

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da presente pesquisa buscou-se reconstruir os institutos atuais da

transcendência e da repercussão geral das questões constitucionais discutidas como requisitos

de admissibilidade específicos, respectivamente, para o recurso de revista e para o recurso

extraordinário, a partir de uma compreensão procedimental do Estado Democrático de

Direito.

É preciso lembrar, preliminarmente, que esses dois institutos representam

medidas tomadas para a solução ou, pelo menos, a minimização de um problema institucional,

comummente denominado de “crise” do Judiciário. Assim, ao se analisar reconstrutivamente

a história institucional brasileira, como procedido no capítulo 1, a questão foi encarada,

sinteticamente, do ponto de vista de uma insuficiência pelo Judiciário de dar conta do volume

de processos pendentes de decisões (BUZAID, 1972:144). Todavia, não se trata de um

problema recente: os primeiros sinais foram percebidos e discutidos no início da República,

em um Supremo Tribunal Federal (STF), recém-criado (1972:145). Nessa época, mesmo com

um número de processos inferior a duzentos, o acúmulo já podia ser constatado.

Desde então, diversas medidas foram adotadas no intuito de solucionar esse

problema ou atenuá-lo. Todavia, nenhuma conseguiu dar uma resposta adequada ao problema.

Ao longo dos anos, o número de recursos continuou a aumentar, o que levou a uma mudança

na compreensão do problema: a “crise”, na realidade, não estava restrita ao STF, mas atingia

todo o Judiciário de maneira generalizada.

Recentemente, a Emenda Constitucional n. 45/2004 apresentou duas

inovações constitucionais: (a) a possibilidade de o STF publicar súmulas de efeito vinculante

(art. 103-A); e (b) a necessidade de se demonstrar, em sede de recurso extraordinário, a

repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso (art. 102, §3.o),

funcionando como um requisito de admissibilidade desse recurso.

Todavia, anteriormente, por meio da Medida Provisória n. 2.226/01, criou-

se o requisito da transcendência, como condição de conhecimento do Recurso de Revista.

Conforme reconstrução no tópico 1.2 do primeiro capítulo, o objetivo desse instituto é

funcionar como um filtro de seleção de recursos, através da demonstração pelo recorrente de

que aquela causa transcende – econômica, política, social ou juridicamente – os limites do

caso concreto e do interesse privado das partes processuais; conseqüentemente, os Tribunais

Page 231: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

231

poderiam negar-se a conhecer as “causas menos importantes e repetitivas”, segundo seus

defensores (MARTINS FILHO, 2000; SILVA, 2001).

Ao que parece, o raciocínio, aqui, seria equivalente ao aplicado à argüição

de relevância, de modo que tanto a argüição de transcendência quanto a repercussão geral

seriam institutos análogos, obedecendo à mesma lógica – ver tópico 1.3. É esse o problema

que impulsiona a presente investigação e, para ser respondido, demanda a resolução de

questões que lhe são pressupostas.

Toda leitura de qualquer instituto jurídico deve-se pautar nas bases de um

Estado Democrático de Direito – forma de legitimação do poder político moderno – que,

segundo Habermas (1998; 1996b), apresenta dois paradigmas mais populares: o paradigma do

Direito formal burguês (ou paradigma do Estado Liberal, como ficou mais conhecido) e o

paradigma materializante do Direito (ou mais conhecido como paradigma do Estado Social).

Entretanto, uma terceira proposta pode ser identificada e reconstruída: um paradigma

procedimental, cujo traço, dentre outras características, está na redefinição da relação entre a

autonomia pública e a autonomia privada, e da relação entre constitucionalismo (direitos

fundamentais) e democracia (soberania popular), ambas a partir da noção de coesão interna

(CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:10), como forma de manter tensionada a facticidade e a

validade inerentes ao Direito moderno. É importante lembrar que esse paradigma pretende

absorver uma nova compreensão da racionalidade, fruto do movimento conhecido na

Filosofia como giro lingüístico, que se desenvolveu primeiramente a partir de uma mudança

de compreensão quanto ao papel da linguagem nas interações sociais. Dois pensadores

ganham destaque: Wittgenstein (1980), responsável pela vertente pragmática, através de sua

tese dos jogos de linguagem; e Gadamer (2001), responsável pela vertente hermenêutica,

através de uma compreensão dialógica do entendimento e da tomada de consciência de uma

dimensão histórica, constitutiva de toda compreensão.

Ao longo do desenvolvimento dessa nova postura perante a linguagem,

diversos outros pensadores deixaram suas marcas na história da Filosofia. Habermas

apresenta-se como um desses; todavia sua proposta inova em um ponto fundamental: a

racionalidade prática humana – consagrada desde Kant a uma lógica instrumental, de modo a

adequar meios conformes fins de maneira solipsista – não pode ser reputada como a única. Ao

seu lado, o projeto habermasiano (1987) irá reconstruir a noção de uma racionalidade

comunicativa, voltada para o entendimento nas interações entre atores sociais. Será essa

racionalidade comunicativa a responsável por garantir os processos de integração social,

assentando-os sob as bases de pretensões de validade criticáveis à luz de razões.

Page 232: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

232

A partir dessa nova proposta, o Direito pode ser reconstruído de modo a

compatibilizar provimentos – decisões estatais de caráter imperativo de natureza legislativa,

administrativa ou jurisdicional (FAZZALARI, 1996:7; GONÇALVES, 2001:102-103) – que

sejam, ao mesmo tempo, coercitivos e legítimos (HABERMAS, 1998:88-89). A condição de

validade (legitimidade) de uma norma jurídica, então, descansa sobre um processo que se abre

para a possibilidade de que os seus destinatários também possam assumir-se como seus co-

autores (HABERMAS, 1998:96).

Mas aqui aparece um problema: a solução da “crise” do Judiciário brasileiro

– até a CR/88 – mostrou-se conectada a uma dogmática jurídica tradicional, que apenas

recorria a uma racionalidade instrumental e ignorava a dimensão pragmática na linguagem e

no Direito. Destarte, ao longo dos paradigmas do Estado Liberal e do Estado Social, a

“segurança jurídica” era lida somente como sinônimo de previsibilidade de decisões estatais,

principalmente, as de natureza jurisdicional.

Nesse sentido, a “crise” do Judiciário traz à tona o fato de que múltiplas

interpretações, provindas não apenas dos canais formais do Estado, passam a adentrar o

cenário das discussões no Judiciário, buscando ressonância e reconhecimento (SOUZA

SANTOS, 2005:177). Todavia, isso – que representa uma contribuição democrática para os

processos de tomada de decisões institucionais, transparecendo uma preocupação com a

legitimidade dessas, é interpretado como um risco de dissenso, o qual deve ser eliminado a

todo custo para que se possa (re)estabelecer o primado da “segurança jurídica”

(previsibilidade). Assim, retoma-se a crença, já presente em Kelsen (1999:395), de que a

solução decorreria do estabelecimento de uma única interpretação autorizada – no caso, a do

STF – como forma de garantir simultaneamente a segurança jurídica e o desafogamento em

relação às demandas. No entanto, com o advento da Modernidade, não pode ser olvidado que,

simultaneamente ao fato de as instituições ligadas ao Estado de Direito contribuírem para a

redução da complexidade social; essas, em movimento contrário, são também responsáveis

por mantê-la (HABERMAS, 1998:405-406). No caso, então, da “crise” do Judiciário, a

mesma mostra-se como elemento fundamental – e, por isso mesmo, sem solução – uma vez

que atua no sentido de colocar o Judiciário em evidência, como tema permanente dos debates

públicos.

Esta leitura complementar ainda pode ser bastante esclarecedora: a noção de

“crise” do Judiciário está ligada a uma forma de intervenção por parte do Mercado, que opera

a partir do medium do dinheiro e à luz de uma racionalidade instrumental condicionada por

exigências de eficiência. Parasitariamente, o sistema econômico intervém nos processos de

Page 233: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

233

decisões jurídicas através de sua própria lógica de racionalidade (adequação de meios a fins),

buscando a sua expansão, mas sob pena de perda da legitimidade do Direito, como

conseqüência da expulsão da ação comunicativa de seu habitat natural (FREITAG,

2002:239). A reforma do Judiciário, então, pautar-se-ia na busca por uma aplicação das leis

previsível e eficiente – ou seja, o mais célere possível – e pela garantia da propriedade

privada (DAKOLIAS, 1996:3). Assim, o Estado, por meio do Judiciário, proporcionaria uma

ordem de estabilidade causada pela previsibilidade e celeridade na aplicação do Direito e pela

garantia da obrigatoriedade dos contratos, minimizando o risco das atividades econômicas. É

a partir desse prisma – ou seja, racionalidade voltada aos interesses do capital

despersonalizado – que também pode ser compreendido o processo de centralização das

decisões jurídicas, como a súmula vinculante ou mesmo a adoção de mecanismos de filtragem

de recursos para os Tribunais Superiores. Ao limitar a interpretação jurídica, centrando-a em

órgãos especializados, entendidos como os únicos autorizados a decidir, miniminiza-se o risco

de dissenso, mas assume-se, por outro lado, o risco de perder de vista o papel comunicacional

presente nos processos de decisões jurídicas, responsável pela manutenção de sua

legitimidade democrática.

Assim, o problema deve-se deslocar para situar a análise dos requisitos de

“transcendência” e de “repercussão geral” como critérios de admissibilidade para o recurso de

revista e o recurso extraordinário, respectivamente, a partir de uma leitura adequada a uma

compreensão procedimental do Direito. Logo, um primeiro passo é suspender a validade da

afirmação de que os requisitos recursais da “transcendência” e da “repercussão geral”

destinam-se a funcionar como um critério eficiente de exclusão de causas de “menor

importância” – isto é, processos cujas decisões supostamente interessariam aos litigantes, não

tendo o condão de ultrapassar a esfera do interesse privado desses – tópico 1.3.

Sendo assim, novas questões emergem. A primeira delas indaga se, no

marco de um paradigma procedimental do Direito, cabe ainda afirmar a possibilidade de

decisão discricionária por parte do magistrado (1). Como desdobramento, pode-se indagar

também sobre a possibilidade de esse mesmo magistrado ter liberdade para decidir, inclusive

com base em razões extrajurídicas, pela seleção de causa que atenda o “interesse público”.

E mais, o que se pode considerar, no atual paradigma, como sendo o

interesse público e qual relação ele estabelece com o interesse privado; já que é supostamente

a afirmação de que o interesse privado deve-se curvar ao interesse público que justifica essa

nova lógica de admissibilidade recursal (2). Todavia, será que esse axioma, muito presente

nos manuais de Direito Administrativo, ainda encontra respaldo na jurisprudência do STF?

Page 234: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

234

Segundo alguns constitucionalistas, seria possível identificar uma relativização desse dogma

que estaria embasada na utilização do “princípio” da proporcionalidade, muito difundido na

doutrina constitucional alemã. Mas ainda cabe um questionamento quanto à adequabilidade

desse “método” a uma leitura procedimental do Direito (3), como fazem Habermas (1998) e

Günther (1993). Assumindo a crítica desses dois pensadores, acaba-se por constatar que as

propostas trazidas pela dogmática tradicional mostraram-se insuficientes ao paradigma

procedimental do Direito. Logo, duas outras propostas podem concorrer: a tese dworkiana da

integridade do Direito (4) e a Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas (5).

(1) Partindo da pergunta sobre a possibilidade de o magistrado decidir

discricionariamente, como querem Kelsen e Hart, há um pressuposto que deve ser explicitado:

a compreensão de processo, que está subjacente. Reconstruindo as compreensões de processo

assumidas pelo Direito ao longo do seu desenvolvimento, no tópico inicial do segundo

capítulo, pode-se constatar que o mesmo passou de uma compreensão privatística

(CAPPELLETTI e GARTH:1988:9; NUNES, 2003:38) para uma leitura publicista, assumida

principalmente pela teoria de Bülow (1964:2), para quem o processo seria uma espécie de

relação jurídica, que implica direitos e obrigações para os participantes (autor, réu e juiz) e

coloca o magistrado em uma posição central, privilegiada, como o responsável solitário pela

aplicação da vontade concreta de lei ao caso (MARINONI, 2005:12). O Judiciário, então,

seria o responsável por guardar a paz e a harmonia das relações sociais dentro da sociedade.

Assim, o pensamento da ciência processual brasileira manteve-se conectado a uma

racionalidade instrumental, de modo a compreender que o processo seria um instrumento a

serviço da jurisdição para a realização, inclusive, de escopos meta-jurídicos (DINAMARCO,

1988:120-121).

Todavia, essa concepção de processo sofreu diversas críticas,

principalmente devido à hipertrofia do papel do magistrado (CALMON DE PASSOS,

2001:24-25), o que permitiu a abertura para o desenvolvimento de novas teorias. Por isso, a

partir dos estudos de Fazzalari (1996), no final da década de 70, apresentou-se uma nova

proposta: o ponto de partida foi a reconstrução dos conceitos de processo e procedimento,

invertendo-se a relação de gênero e espécie que antes havia. A noção de provimento passa a

ser decisiva para o deslocamento do procedimento como instituto da Teoria do Direito

(GONÇALVES, 2001:109). O processo, por sua vez, torna-se uma espécie de procedimento,

cujo marco caracterizador está na presença do contraditório (FAZZALARI, 1996:82),

entendido como simétrica paridade das partes na preparação do provimento; logo é garantia

Page 235: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

235

daqueles a quem se destinam os efeitos do provimento. Para essa nova teoria, o juiz não está

sozinho; da construção do provimento, participam, em princípio, todos os destinatários do ato

(CATTONI DE OLIVEIRA, 2001:153-154).

Em razão disso, afirmar a possibilidade de um mecanismo de seleção de

causas recursais pautado na discricionariedade judicial levanta pontos para reflexão: (a) uma

compreensão procedimental do Direito e do processo repudia a possibilidade de uma atuação

instrumental e solipsista por parte do magistrado, exigindo uma abertura para a participação

dos atingidos; e (b) os recursos destinados aos Tribunais Superiores, não se distinguem em

nada dos demais recursos e, por isso mesmo, são garantias tanto de ordem processual quanto

de ordem constitucional, não podendo sofrer restrições arbitrárias – como visto no tópico 2.2.

(2) A finalidade de padronização semântica por parte dos Tribunais

Superiores, entretanto, não é exclusiva da teoria das possibilidades de julgar, estando presente

na quase totalidade dos manuais escritos sobre o tema: os recursos destinados aos Tribunais

Superiores prestar-se-iam a atender as exigências de garantia da uniformidade da

interpretação e da aplicação do ordenamento jurídico em nível constitucional (recurso

extraordinário) e em nível infraconstitucional (recurso especial e recurso de revista). Desse

modo, tais recursos apresentariam uma natureza eminentemente pública, deixando de lado

qualquer discussão sobre a “justiça” da decisão (MANCUSO, 2003:105) e apenas de modo

“reflexo” seria abordada a questão de direito individual (2003:124). Por isso mesmo, esses

recursos seriam dependentes não apenas de uma exigência de sucumbência – como acontece

com a apelação, por exemplo – mas ainda da existência de uma questão constitucional ou

federal – que inclui as normas trabalhistas – de natureza eminentemente pública.

Todavia, para os defensores da “transcendência” e da “repercussão geral”,

como mecanismo de filtragem recursal, nem toda questão que envolva uma lesão ou uma

ameaça de lesão a direito é suficiente para caracterizar-se como uma exigência necessária ao

conhecimento do recurso. Segundo eles, uma vez que o Judiciário não apresenta condições

para proporcionar um julgamento de todos os recursos, soluções pragmáticas devem ser

adotadas, buscando promover o julgamento de causas que sejam “mais importantes”, tendo

em vista o que se está chamando de “interesse público”. Logo, a solução viria através do não

conhecimento dos recursos que não atendam essa condição. Mas um problema inicial surge:

como é possível identificar num recurso, preliminarmente, isto é, por meio de um juízo de

admissibilidade, uma questão que muitas vezes parece apontar para o mérito?

Page 236: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

236

A distinção entre juízo de admissibilidade (exame de requisitos formais) e

juízo de mérito (exame da questão de fundo que leva ao conhecimento do recurso

propriamente dito pelo Tribunal ad quem) não é sem propósito e traz conseqüências práticas,

como alerta Barbosa Moreira (1997:126; 1997:132). Partindo da divisão dos pressupostos

recursais entre extrínsecos (tempestividade, preparo, regularidade formal e inexistência de

fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer) e intrínsecos (cabimento, legitimação para

recorrer e interesse em recorrer), apenas os pressupostos extrínsecos seriam passíveis de

exame pelo órgão a quo (ARAÚJO, 2001:201).

No caso dos pressupostos de “transcendência” e de “repercussão geral”,

entretanto, permanece a questão: tais requisitos são passíveis de serem identificados de

maneira a não envolver uma discussão que acabe por sinalizar para uma decisão de mérito?

O que parece óbvio para a dogmática tradicional, por se apoiar em uma

compreensão meramente semântica do que seja “interesse público” e “interesse privado”, é

refutado por uma compreensão procedimentalista. Não há como, à luz de uma leitura que leve

a sério a dimensão pragmática, identificar o que seja um interesse público e o que seja um

interesse privado; tais conceitos só podem apresentar algum significado no momento em que

são definidos em um processo, isto é, a partir da discussão travada em um caso concreto – ver

tópico 2.3.

(3) Ao longo da história institucional brasileira, a relação que se estabelece

entre interesse público e interesse privado pareceu sempre apontar para uma relação

hierárquica, na qual o primeiro prevaleceria sobre o segundo. Como lembra Ávila (2005:171),

para a dogmática jurídica, seu desenvolvimento teórico viria a partir dos estudos do Direito

Administrativo, mas com ramificações e influências para outros “ramos” do Direito, como o

Direito Tributário.

Todavia, não é possível atingir um conceito de interesse público, razão pela

qual, muitas vezes, ele acaba sendo tomado como o interesse de uma maioria da sociedade.

Mas isso é insuficiente, já que ignora a dimensão imposta pela vida em sociedade. A

dimensão privada não pode servir como metáfora da ilha imaginada por Crusoé, ou ser

entendida como uma fortaleza que coloque o público na porta da rua, visto que o processo de

socialização acontece concomitantemente com o processo de individualização. Proceder

assim é olvidar o que Sarmento (2005:47) lembra: a sociedade contemporânea é por demais

complexa para se apoiar em pilares estanques; vive-se num tempo que imprime um novo

sentido à concepção de espaço público, que não vem mais associada unicamente ao elemento

estatal. Trabalhos como os de Müller (1998) e Rosenfeld (2003) são fundamentais para

Page 237: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

237

demonstrar a impossibilidade de se atingir um conceito final de “povo”. A solução, como

visto no tópico 2.3.2, é justamente a inversa, compreendê-lo como um eterno hiato, aberto a

um processo dinâmico de elaboração e revisão.

O uso do “princípio” da proporcionalidade principalmente pela

jurisprudência do STF e por diversos teóricos marca um reconhecimento de que a dogmática

tradicional não é mais suficiente para apresentar respostas adequadas aos problemas de

autocompreensão do Direito. No presente problema, passa-se a reconhecer a necessidade de

“compatibilizar” ambos os interesses, tomados como princípios, e, por isso mesmo,

ponderados pelo método defendido por Alexy.

Mas será que essa compreensão, bem como o uso da proporcionalidade,

apresentam-se como leituras adequadas do paradigma procedimental do Estado Democrático

de Direito? Para Baracho Júnior (2004:520), o dogma ainda persistiria, sendo apenas

relativizado em situação especiais. Cattoni de Oliveira (2006:12), entretanto, apresenta uma

outra compreensão: a relativização acontece não quanto à posição entre interesses público e

privado, mas quanto à separação entre Direito e política. Nesse sentido, o STF assumiria não

só as vezes de um “legislador negativo” como, nos casos do controle abstrato de

constitucionalidade, o papel de um “legislador positivo” em prol de um “interesse público ou

social maior”.

Cattoni de Oliveira (2004b:535), pautando-se no pensamento de Habermas

(1998:327-333), apresenta os problemas que pesam contra a utilização da ponderação: (a) ao

admitir-se uma compreensão dos princípios jurídicos enquanto mandamentos de otimização,

aplicáveis de maneira gradual, emprega-se uma operacionalização própria dos valores. Isso,

então, faria com que os princípios perdessem a sua natureza deontológica, transformando o

código binário (licitude/ilicitude) do Direito em um código gradual; (b) como conseqüência

desse raciocínio, o Direito passaria a indicar o que é preferível, ao invés do que é devido; (c) o

Direito – como pretensão de universalidade sobre a correção de uma ação – não mais pode ser

considerado como um “trunfo”, como quer Dworkin, nas discussões políticas que envolvam o

bem-estar de uma parcela da sociedade; desnatura-se, portanto, a tese de Rawls (2003:199;

1996:171) sobre a prevalência do justo sobre o bem; (d) além disso, a tese de Alexy nega a

diferenciação entre discursos de justificação e discursos de aplicação, transformando a

atividade judiciária num poder constituinte permanente; e, por fim, (e) é olvidada a

racionalidade comunicativa, uma vez que todo raciocínio é pautado a partir de uma

racionalidade instrumental, deixando a aplicação jurídica a cargo de um raciocínio de

adequação de meios a fins, ficando para segundo plano a questão da legitimidade da decisão

Page 238: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

238

jurídica; por essa razão, o raciocínio sobre a ponderação acaba por cair num decisionismo de

cunho irracionalista – isto é, ausência de uma racionalidade comunicativa (HABERMAS,

1998:332).

Outro ponto que necessita ser repensado a fim de que se atinja uma

compreensão procedimental parte da relação que se estabelece entre direitos e interesses –

tópico 2.3.2. Maciel Júnior (2004:22) lembra que a compreensão contemporânea existente

sobre a relação entre direitos e interesses ainda é uma derivação do pensamento de Bentham

(1979) e de Ihering, o que tem levado a uma assimilação dos dois institutos sem uma devida

distinção. Mas tal leitura é problemática: (a) a afirmação de um direito dá-se a partir de um

processo institucional: seja tomando consciência do consenso da sociedade sobre sua

existência, caracterizando o processo legislativo; seja através do processo judicial, que

reconhece a existência do direito dentro da história institucional daquela sociedade. Como

conseqüência, todo interesse juridicamente protegido é um direito; logo possui natureza

pública; e (b) a afirmação de equiparação entre direito e interesse deixa escapar que os

interesses, como reconhece Maciel Júnior (2004:28), trazem um conteúdo axiológico,

diferentemente dos direitos, como lembra Habermas (2002b), que são dotados de uma

natureza deontológica. Assim, interesses são expressão de uma preferência (a partir de valores

e de fins) do sujeito, ao passo que direitos são referência a pretensões de validade ligadas à

correção de uma determinada ação; a mesma crítica feita à tese de Alexy repete-se aqui.

Logo, uma compreensão procedimental do Direito aponta para o fato de

que, mesmo o que se quer chamar de direito individual, aponta para algo de natureza pública,

não restrita ao âmbito de seu titular. Cattoni de Oliveira (2003:132) chega ainda a uma outra

conclusão: “propomos compreender a distinção entre direitos individuais e coletivos, direitos

sociais e direitos difusos como uma distinção lógico-argumentativa”. Por isso mesmo, direitos

individuais, direitos coletivos e direitos difusos não devem obedecer a uma interpretação

literal (semântica), como feita no texto do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, mas a

uma reconstrução discursiva no curso do processo jurisdicional (discurso de aplicação). Por

isso, a partir do novo paradigma, percebem-se a insuficiência das “teorias semânticas da

interpretação” e a necessária defesa de teorias procedimentais que incorporem as conquistas

do movimento do giro lingüístico.

(4) O movimento do giro-lingüístico, reconstruído no início do capítulo 3,

na Filosofia levou à tomada de consciência sobre a importância da linguagem, bem como da

dimensão pragmática. Os estudos de Wittgenstein sobre os jogos de linguagem apontam que o

Page 239: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

239

significado de uma palavra não se dá apenas em uma relação com outras palavras (semântica),

mas também é dependente de uma relação que se estabelece entre os participantes de uma

determinada forma de vida (pragmática). Como conseqüência, tem-se a compreensão de que a

norma não pode situar-se em um plano completamente dissociado das situações de sua

aplicação (GÜNTHER, 1993:92-93). Gadamer é outro pensador que muito contribuiu para o

“giro”. Para ele, a compreensão dá-se através de uma circularidade dentro de um determinado

horizonte histórico (OLIVEIRA, 2001:227-228). Outra contribuição importante foi defender a

impossibilidade de separação entre os momentos de compreensão/interpretação/aplicação.

Assim, buscou-se desconstituir a compreensão até então dominante de que a hermenêutica

representava tão somente uma ferramenta que permitia desvelar o sentido de um texto

normativo obscuro.

Partindo das contribuições do “giro” e assumindo uma proposta de

interpretação construtiva, como postura crítica em relação à hermenêutica gadameriana, tanto

Habermas quando Dworkin pretendem apresentar suas teorias.

Dworkin pretende situar essa interpretação construtiva co-relacionando-a à

pergunta clássica sobre o “conceito de Direito”. Para ele, tal pergunta não deriva de

controvérsias fáticas – ligadas apenas a um exame do que as instituições jurídicas decidiram

no passado – mas antes de uma controvérsia teórica sobre o Direito – ligada a uma discussão

sobre os fundamentos jurídicos. Por isso, pretende um ataque às teorias semânticas, que

reduzem o Direito a uma questão de fato (DWORKIN, 1999:38).

O Direito, então, para Dworkin (1999:55-57) só pode ser compreendido por

meio da assunção de uma atitude interpretativa especial de natureza construtiva. Nessa leitura,

três concepções do que seja Direito surgem e são reconstruídas no tópico 3.2.1: o

convencionalismo, o pragmatismo e o Direito como integridade. Para o convencionalismo, o

Direito é dependente de convenções sociais que determinam quais instituições detêm o poder

de elaborar leis e como fazem isso. Todavia, reconhece que o Direito não é completo, de

modo que autoriza os magistrados, por meio de um poder discricionário, a decidirem o caso,

criando um direito novo e aplicando-o retroativamente. O pragmatismo, por sua vez,

compreende que as pessoas não possuem direitos a nada, a não ser a uma decisão judicial que

deve revelar-se a melhor para a comunidade. Logo, enquanto o juiz convencionalista tem os

olhos voltados para o passado, um adepto do pragmatismo volta-se para o futuro em

construção, não tendo qualquer obrigação de observar o que as autoridades públicas fizeram

no passado (DWORKIN, 1999:186). Aqui, também, desaparece a separação entre legislação e

aplicação judicial do Direito: o juiz, ao posicionar-se desvinculado de toda e qualquer decisão

Page 240: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

240

política do passado, pode decidir os casos concretos aplicando um direito novo, que ele

mesmo criou. A última forma de concepção é a defendida por Dworkin (1999:199). A

integridade, inicialmente, parece ligada ao clichê segundo o qual casos semelhantes devem

receber o mesmo tratamento e, por isso, explora uma forma de coerência diferente – coerência

de princípio – da coerência defendida pelo convencionalismo. A integridade nega que as

manifestações do Direito sejam meros relatos factuais voltados para o passado, como quer o

convencionalismo, ou programas instrumentais voltados para o futuro, como pretende o

pragmatismo. Para o Direito como integridade, as afirmações jurídicas são, ao mesmo tempo,

posições interpretativas voltadas tanto para o passado quanto para o futuro (DWORKIN,

1999:272-273).

Segundo Dworkin, a concepção da integridade do Direito seria capaz de, no

curso dos processos judiciais, chegar a uma “resposta correta”, fazendo uso das seguintes

metáforas: o juiz Hércules, o romance em cadeia e a comunidade de princípio – tópico 3.2.2.

Visando a explicar como é possível uma aplicação “correta” de regras e

princípios pelo Judiciário – haja vista que o mesmo não pode motivar suas decisões em

diretrizes políticas – Dworkin apresenta o juiz Hércules: um juiz filósofo dotado de sabedoria

e paciência sobre-humanas, capaz de resolver os casos difíceis através de uma análise

completa da legislação, dos precedentes e dos princípios aplicados ao caso. Uma metáfora

complementar pode aliviar uma parte das exigências contrafactuais que pesam sobre

Hércules, o romance em cadeia: um grupo de romancistas escreve um romance em série, cada

romancista interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então

acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Logo, cada um deve

escrever seu capítulo de modo a criar, da melhor maneira possível, o romance em elaboração

(DWORKIN, 1999:276). Assim, a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de

decidir um caso difícil à luz da concepção do Direito como integridade. Por fim, Dworkin

apresenta sua comunidade de princípios: uma comunidade política ligada não apenas a um

conjunto de decisões do passado, mas principalmente por um mesmo sistema coerente de

princípios, que essas decisões pressupõem ou endossam (DWORKIN, 1999:254).

Os argumentos dworkianos são, então, importantes para o problema

levantado nesta pesquisa no tópico 3.2.3: (a) a negativa da discricionariedade judicial; (b) a

negativa de que decisões judiciais possam apoiar-se em diretrizes políticas; (c) a importância

da noção de devido processo para a dimensão da integridade; e (d) a própria noção de

integridade, que levanta a exigência de que cada caso seja compreendido como parte de uma

Page 241: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

241

história encadeada, não podendo, por isso, ser descartado sem uma razão baseada em uma

coerência de princípios.

A exigência de integridade do Direito pode lançar uma nova proposta de

interpretação para a questão: a referida exigência de “transcendência” ou de “repercussão

geral” traduz-se na necessidade de articular, no iter processual, de maneira discursiva (lógico-

argumentativa), os pressupostos da integridade. Assim, a condição de conhecimento desses

recursos permanece como questão interna ao Direito, sem nenhum apelo para o plano meta-

jurídico, de modo que o que se exige é a demonstração de que a argumentação sustentada pelo

recorrente se integra – tal qual um capítulo do romancista da obra coletiva dworkiana – à

história institucional daquela sociedade, fornecendo, portanto, a melhor proposta de

interpretação daquele Direito. Por isso, os dois fundamentos dos recursos para Tribunais

Superiores apontados pela dogmática jurídica tradicional – a proteção do ordenamento

jurídico (em nível constitucional e infraconstitucional) e a garantia de uniformização na

aplicação e na interpretação do Direito – representam, para Dworkin, a mesma coisa: um

dever de toda a comunidade em face da observância e do atendimento à integridade do

Direito, que somente se encontrará protegido se lido a partir de uma teoria que busque

compreendê-lo sempre à sua melhor luz – isto é, consciente da dimensão histórica dos

direitos, sem, contudo, hipostasiá-los no passado, nem tratá-los como metas coletivas a

serviço de uma parcela da sociedade – como um conjunto coerente princípios.

É por isso que a “transcendência” ou a “repercussão geral” não podem ser

satisfatoriamente consideradas como requisitos de admissibilidade recursal específicos. Na

posição defendida por Barbosa Moreira (1991:166; ARAÚJO, 2001:201), a distinção entre

juízo de admissibilidade e juízo de mérito recursal deve ser levada em consideração. Logo,

sob um prisma normativo, tanto a “transcendência” quanto a “repercussão geral” podem ser

compreendidas como uma questão interna à própria pretensão recursal, bem como conectada a

toda e qualquer pretensão jurídica levada a cabo pelas partes processuais. Uma leitura

procedimental percebe que a ausência de demonstração de tais requisitos acarreta um

julgamento de mérito negando tal pretensão. Nesse sentido, o que seriam “inovações”

capazes de fornecer respostas ao problema da “crise do Judiciário”, na verdade, em nada

contribui para sua solução, representando mais uma repetição desnecessária dos requisitos

recursais já exigidos na Constituição da República para o recurso extraordinário e na

Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) para o recurso de revista.

Todavia, a teoria desenvolvida por Dworkin pode apresentar alguns

problemas, como lembra Günther (1995:45-46). Dúvidas aparecem quanto à adequação dessa

Page 242: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

242

teoria ao paradigma procedimental do Estado de Direito, quando se constata que cabe ao

magistrado a função de personificar essa “comunidade”. Assim materializa-se nele o fardo de

levar adiante uma interpretação do Direito legislado democraticamente à luz de uma visão

coerente (GÜNTHER, 1995:46), bem como de garantir a integridade, a equanimidade e a

justiça nos processos judiciais. Por isso mesmo, Günther reconhece que o modelo

habermasiano pode representar uma alternativa mais adequada a uma leitura

procedimentalista do Direito, uma vez que liga a legitimidade dos provimentos estatais à

possibilidade de participação dos seus destinatários.

(5) Para Habermas (1998), como visto no capítulo 4, de maneira dúplice, o

Direito moderno é capaz de limitar o campo de ações estratégicas por imposição de sanções,

de modo que um comportamento adapte-se ao padrão socialmente aceito, revelando a tensão

entre coerção factual e validade legitimadora. Assim, são os próprios atores sociais que – por

meio de um acordo ou entendimento, a partir de pretensões de validade intersubjetivamente

reconhecidas – fixam os espaços e condições nos quais essa racionalidade estratégica seria

aceitável (HABERMAS, 1998:88-89). O Direito é, ainda, capaz de organizar o sistema

econômico e o sistema administrativo, equilibrando-os com a racionalidade comunicativa,

(HABERMAS, 1998:102) de forma a conferir legitimidade aos seus imperativos funcionais e

a integrá-los nos processos de manutenção da ordem social. Mas, para que o Direito cumpra

essas funções, ele deve, primeiro, passar por um complexo processo de reconstrução. Essa

reconstrução é, principalmente, feita na obra Faktizität und Geltung – ou Facticidade e

Validade, como também ficou conhecida.

O conceito de direitos subjetivos apresenta um papel importante na

compreensão moderna do Direito: desligados dos mandamentos morais de origem religiosa ou

do Direito Natural (MATTOS, 2002:90), eles estão ligados ao conceito de liberdade subjetiva

de ação (HABERMAS, 1998:147), uma vez que fixam os limites dentro dos quais um sujeito

está legitimado para afirmar livremente sua vontade. Todavia, o século XIX que demonstra o

direito subjetivo, estritamente de ordem privada, depende, para se legitimar, de uma

autonomia privada do sujeito, que está apoiada em uma autonomia moral da pessoa.

Mas, ao compreender o Direito não mais a partir de uma racionalidade

instrumental, a relação entre Direito e Moral adquire novos contornos. Aqui, Habermas inova,

ao apresentar uma proposta de substituição da teoria da subrodinação por uma visão de

complementaridade entre Direito e Moral.

Page 243: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

243

A Moral, tanto quanto o Direito, deve defender a autonomia de todos os

envolvidos e atingidos por suas normas, que devem ser analisadas pelo prisma do princípio do

discurso (D) – “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos

poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais” –

que é neutro em relação ao Direito e à Moral, uma vez que sua referência assenta em toda e

qualquer norma de ação, sem qualquer especificação (LEITE ARAÚJO, 2003:167). Esse

princípio apresenta dois desdobramentos : (a) o princípio discursivo moral (U) refere-se a

normas de ação que exigem, para serem justificadas, a consideração simétrica de todos os

interesses. É, portanto, regulador dos argumentos – uma regra de argumentação (SALCEDO

REPOLÊS, 2003:99) – que pergunta sobre a possibilidade de universalização de um

determinado interesse, de modo que sua pretensão possa ser passível de aceitação e

reconhecimento pelos seus afetados em qualquer tempo e contexto espacial; e (b) o princípio

discursivo democrático (De) visa a explicar o sentido performativo da prática da

autodeterminação dos membros de uma comunidade jurídica – estabelecida livremente – que

se reconhecem como parceiros livres e iguais (HABERMAS, 1998:175). Seu objetivo, então,

é a “institucionalização de um procedimento legislativo legítimo, produzido discursivamente

com a potencial participação de todos [os afetados]” (BAHIA, 2003:235).

O Direito moderno, então, não mais subordinado à moral – mas sim

funcionando de maneira complementar a ela – passa a se organizar com base em um código

próprio, partindo de dois elementos restantes da dissolução do amálgama pré-moderno:

soberania popular, relacionada à noção de autonomia pública; e direitos humanos, ligados à

noção de autonomia privada. O sistema de direitos é responsável por garantir aos indivíduos

determinadas liberdades subjetivas de ação a partir das quais podem agir em conformidade

com seus próprios interesses – é o que se chama de autonomia privada – “liberando” esses

indivíduos da pressão inerente à ação comunicativa (HABERMAS, 1998:186). Por isso,

Habermas conclui que o Direito não é – nem pode ser – capaz de obrigar os indivíduos a

permanecer o tempo todo na esfera pública, devendo abrir-lhes a possibilidade de usarem sua

liberdade comunicativa (HABERMAS, 2000d:527). Em contrapartida, o princípio discursivo

democrático compreende a autonomia pública a partir da ótica da garantia de legitimidade do

procedimento legislativo através de iguais direitos de comunicação e de participação

(HABERMAS, 2002b:290). Trata-se do fato de que os sujeitos de direito têm de se

reconhecer como autores das normas às quais se submetem.

Explicando melhor essa noção no tópico 4.3, tem-se que a reconstrução da

noção de autonomia leva Habermas a afirmar que os indivíduos, como sujeitos de direito,

Page 244: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

244

devem, ao mesmo tempo, ser autores e destinatários do Direito por eles produzidos. Logo,

para que haja o Direito, deve haver a autonomia privada dos sujeitos de direito, de modo que,

sem os direitos fundamentais que assegurem essa autonomia, faltaria o próprio medium para

institucionalização jurídica das condições necessárias a que os sujeitos de direito possam fazer

uso da autonomia pública ao atuarem no papel de cidadãos do Estado (HABERMAS,

2002b:293; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:182). Como conseqüência, a autonomia privada

e a pública pressupõem-se mutuamente, sem que os direitos humanos possam reivindicar um

privado sobre a soberania popular (HABERMAS, 2002b:293). É, então, a partir dessa

consciência de co-originalidade entre autonomias pública e privada, que os cidadãos, ao

constituírem seu sistema de direitos, devem criar uma “ordem” que assegure a qualquer

membro (seja atual, seja futuro) desta comunidade uma série de direitos subjetivos.

Günther (1993), utilizando-se do pensamento habermasiano, irá desenvolver

uma diferenciação importante entre uma atividade discursiva de criação de normas e uma

atividade discursiva de aplicação jurídica – ver tópico 4.4. Logo, em um discurso de

aplicação, o operador do Direito deve pressupor que as normas legisladas são válidas, já que

elas foram positivadas por meio de um discurso de justificação, procedimento capaz de

garantir, à primeira vista, sua validade. A discussão, portanto, estaria restrita à busca pela

norma adequada ao caso concreto.

Essa distinção é relevante, porque a proposta discursiva transfere o conceito

de “segurança” para a garantia dos direitos processuais. Aqui, todos os cidadãos deverão ter

garantida a sua participação, bem como todas as questões fático-jurídicas pertinentes deverão

ser ventiladas e debatidas. A “segurança”, portanto, migra da previsibilidade de resultado para

a garantia de direitos participatórios nos processos de tomada de decisão e para a busca por

uma decisão adequada.

Conclui, então, Souza Cruz (2004:237) que a decisão adequada não se

encontra sobre a base de um consenso ético-substantivo majoritário. Ela está no procedimento

que, por sua vez, levanta a exigência de observância dos princípios informadores do devido

processo constitucional, de uma reciprocidade entre participantes e do “discurso jurídico”.

Esse procedimento ainda deverá ser imparcial, levantando exigências de iguais considerações

de todas as particularidades apresentadas pelo caso.

Logo, o processo de aplicação judicial do Direito revela uma dimensão que

por si só já ultrapassa os limites de uma situação particular, que, segundo a dogmática

tradicional, estaria representando apenas o interesse particular das partes envolvidas. Uma vez

que o processo jurisdicional deve correlacionar as perspectivas concretas das partes e as

Page 245: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

245

normas prima facie aplicáveis, fruto de discursos de justificação, traça-se uma linha que liga

os participantes do processo e os demais membros da comunidade. Por isso mesmo, a decisão

não é apenas para as partes, mas, ao desenvolver uma compreensão dos direitos que se

integram em um mesmo sistema coerente, volta-se para o resto da comunidade (GÜNTHER,

1995:52), que pode assumir uma participação importante através da crítica pública da decisão.

No caso dos julgamentos envolvendo os recursos destinados aos Tribunais

Superiores, isso fica bem evidenciado: esses Tribunais transformam-se em locais de discussão

da questão jurídica, centralizando questões provindas da periferia – isto é, da interpretação

que as partes processuais têm sobre o Direito daquela sociedade – e filtrando-as a fim de

atingir uma compreensão adequada da norma jurídica aplicável àquele caso concreto. Por

isso, a inclusão de um “novo” requisito de admissibilidade recursal, como a “transcendência”

para o recurso de revista ou a “repercussão das questões constitucionais” para o recurso

extraordinário, como visto no tópico 4.5, em nada inova.

Como já afirmado, com base na teoria dworkiana, os dois fundamentos

necessários para a interposição de um recurso para um Tribunal Superior que são apontados

pela dogmática jurídica tradicional – a proteção do ordenamento jurídico (em nível

constitucional e infraconstitucional) e a garantia de uniformização na aplicação e na

interpretação do Direito – acabam adquirindo a mesma função também em Habermas: um

direito apenas pode ser protegido se compreendido à luz de um sistema coerente de normas,

isto é, como conjunto coerente princípios.

Portanto, falar em “transcendência” ou em “repercussão geral” não pode

nunca adquirir uma interpretação de que direitos estão ligados a pretensões privatísticas. Os

direitos são construídos à luz de uma história institucional, abrindo um espaço argumentativo

que não se desenvolve no vácuo, como já explicou Gadamer. Destarte, a exigência de

demonstração da “transcendência” ou da “repercussão geral” apenas pode-se dar através da

articulação, no iter processual, de maneira discursiva (lógico-argumentativa), de uma

interpretação do direito pretendido à luz de um sistema coerente de normas.

Mas nessa lógica, a “transcendência” ou a “repercussão geral” não podem

ser satisfatoriamente consideradas como requisitos de admissibilidade recursal específicos.

Novamente, valendo-se da posição defendida por Barbosa Moreira (1991:166; ARAÚJO,

2001:201) – e reconstruída no segundo capítulo – a distinção entre juízo de admissibilidade e

juízo de mérito recursal deve ser levada em consideração. Reafirma-se, portanto, que o

primeiro grupo apenas apresenta os pressupostos extrínsecos, sob pena de se proceder a uma

dissolução dessa separação, correndo o risco de desconsiderar conseqüências importantes:

Page 246: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

246

qualquer outra análise, necessariamente, acaba por adentrar a discussão sobre o mérito

recursal, prejulgando a causa. Em conclusão, uma compreensão normativa leva a entender

tanto a “transcendência” quanto a “repercussão geral” como questões internas à própria

pretensão recursal, daí estarem conectadas a toda e qualquer pretensão jurídica levada a cabo

pelas partes processuais.

Uma leitura procedimental, então, percebe que a ausência de demonstração

de tais requisitos acarreta um julgamento de mérito negando tal pretensão, o que demonstra

que tais “inovações” são incapazes de responder ao problema da “crise do Judiciário”. Em

verdade, elas em nada contribuem, já que representam mais uma repetição desnecessária dos

requisitos recursais já exigidos na Constituição da República para o recurso extraordinário e

na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) para o recurso de revista.

Tal entendimento, então, mostra-se adequado ao paradigma procedimental

do Direito, uma vez que alia a compreensão desses recursos como via da defesa de direitos à

função unificadora desempenhada pelos Tribunais, ambas guiadas por uma interpretação

coerente do Direito, capaz de gerar respostas adequadas aos casos concretos apresentados ao

Judiciário. Portanto, não se toma o público como oposto ao privado, mas apresentam-se

ambas as esferas sob o prisma de uma relação de eqüiprimordialidade.

Page 247: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

247

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Iduna Weinert. A argüição de relevância da questão federal. Revista de Informação Legislativa. Brasília. a. 16. n. 61. jan./mar. 1979.

AFONSO DA SILVA, José. Do recurso extraordinário. São Paulo: RT, 1963.

AFONSO DA SILVA, Virgílio. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005. (Teoria & Direito Público)

AFONSO DA SILVA, Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais. a. 91. v. 798. abr./2002.

ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional law in the age of balancing. Yale Law Journal. v. 96, n. 5, abr./1987.

ALEXY, Robert. Balancing, constitutional review, and representation. International Journal of constitutional Law. Oxford University Press e New York University School of Law, 2005. v. 3. n. 4.

ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing and Rationality. Ratio Juris. v. 16. n. 2. jun./2003. (O presente trabalho também faz uso da tradução exclusiva para fins acadêmicos de Menelick de Carvalho Netto).

ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001.

ALEXY, Robert. Derecho y Razón Práctica. 2. ed. México: Fontamara, 1998.

ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. 1997.

ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. 2. ed., Trad. Jorge M. Seña. Barcelona: Gedisa, 1997b.

ALMEIDA SANTOS, Francisco Cláudio. Recurso Especial: visão geral. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. a. 14. n. 56. out./dez. 1989.

ANDOLINA, Ítalo. VIGNERA, Giuseppe. Il modelo costituzionale del processo civile italiano – corso di lesioni. Torino: Giappichelli, 1990.

ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Interpretação e Aplicação de Normas de Direito Tributário. São Paulo: CD, 2002.

ARAGÃO, Alexandre Santos. A “supremacia do interesse público” no advento do Estado de Direito e na Hermenêutica do direito público contemporâneo. In: SARMENTO, Daniel. (org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Jures, 2005.

Page 248: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

248

ARAGÃO, Lúcia Maria de Carvalho. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

ARAGÃO, Lúcia Maria de Carvalho. Razão Comunicativa e Teoria Social Crítica em Jürgen Habermas. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

ARAÚJO, Marcelo Cunha. Mérito e mérito recursal: aspectos distintivos. In: LEAL, Rosemiro Pereira (org.). Estudos Continuados de Teoria do Processo: a pesquisa jurídica no curso de Mestrado em Direito Processual. Porto Alegre: Síntese, 2001. v. 2.

ARAÚJO, Marcelo Cunha. “O Império do Direito” de Ronald Dworkin. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte: PUC Minas. v. 4. n. 7 e 8, jan./jun. 2001b.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

ARRUDA ALVIM, José Eduardo. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. WAMBIER, Luiz Rodrigues. GOMES JR., Luiz Manoel. FISCHER, Octavio Campos. FERREIRA, Willian Santos (coord.). Reforma do Judiciário: primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. 2 ed. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2002.

AUSTIN, John L. Como hacer cosas con palabras: palabras y acciones. Trad. Genaro R. Carrió e Eduardo A. Rabossi. Barcelona: Paidós, 1971. (Paidós Studio, n. 22).

ÁVILA, Humberto. Repensando o “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”. In: SARMENTO, Daniel. (org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Jures, 2005.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

ÁVILA, Luiz Augusto Lima de. Tópica e jurisprudência comunitária: breve estudo sobre a Hermenêutica Comunitária na fundamentação da obrigatoriedade do Direito Comunitário. 2000. Dissertação (Mestrado em Direito Internacional e Comunitário) – Faculdade Mineira de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. A interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito: contribuição a partir da Teoria do Discurso de Jürgen Habermas. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Controle judicial difuso de constitucionalidade das leis e atos normativos: contribuição para a construção de uma democracia cidadã no Brasil. 2003. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo:

Page 249: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

249

Malheiros, 2003.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Cidadania: a plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e processuais. São Paulo: Saraiva, 1995.

BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. A Nova Hermenêutica na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Duelo e Processo. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 112. a. 28. out./dez. 2003.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processual Civil. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense: 2002, v. V.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Julgamento do Recurso Especial ex art. 105, III, a, da Constituição da República: sinais de uma evolução auspiciosa. Revista forense. Rio de Janeiro: Forense. v. 349. a. 96. jan./mar. 2000.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Que significa “não conhecer de um recurso?”. Temas de direito processual: sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Juízo da admissibilidade e juízo de mérito no julgamento do recurso especial. In: TEIXEIRA, Sávio de Figueiredo (coord.). Recursos no Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991.

BARROSO, Luís Roberto. O Estado contemporâneo, os direitos fundamentais e a redefinição da supremacia do interesse público. In: SARMENTO, Daniel. (org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Jures, 2005.

BARROSO, Luís Roberto. BARCELLOS, Ana Paula de. O Começo da História: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

BAPTISTA, N. Doreste. Da argüição de relevância no recurso extraordinário: comentários à Emenda Regimental n. 3, de 12-6-1975, do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Forense, 1976.

BARIONI, Rodrigo. O recurso extraordinário e as questões constitucionais de repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. WAMBIER, Luiz Rodrigues. GOMES JR., Luiz Manoel. FISCHER, Octavio Campos. FERREIRA, Willian Santos (coord.). Reforma do Judiciário: primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

BATISTA DA SILVA, Ovídio A. GOMES, Fábio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

BAXTER, Hugh. Habermas's Discourse Theory of Law and Democracy. Buffalo Law Review. n. 50. 2002.

Page 250: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

250

BAXTER, Hugh. System and Lifeworld in Habermas's Theory of Law. Cardozo Law Review. n. 23. 2002b.

BELL, David. Kant. In: BUNNIN, Nicholas. TSUI-JAMES, E.P. Compêndio de Filosofia. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2002.

BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Trad. Luiz João Baraúna. In: Os Pensadores. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

BERTEN, André. Filosofia Social: a responsabilidade social do filósofo. Trad. Márcio Anatole de Souza Romeiro. São Paulo: Paulus, 2004. (Coleção Filosofia).

BILLIER, Jean-Cassien. MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Trad. Maurício de Andrade. Barueri: Manole, 2005.

BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o Direito Administrativo. In: SARMENTO, Daniel. (org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Jures, 2005.

BIX, Brian. H. L. A. Hart and the “open texture” of language. Law and Philosophy. London: Kluwer Academic. v. 10. 1991.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

BRASIL. Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/bndpj/default.asp>. Acessado em: 14 de março de 2005.

BRITO, Miguel Nogueira. Originalismo e interpretação constitucional. In: AFONSO DA SILVA, Virgílio (org.). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. (Teoria & Direito Público).

BÜLOW, Oskar von. La teoría de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Trad. Miguel Angel Rosas Lightschein. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa América, 1964.

BUZAID, Alfredo. Estudos de Direito. São Paulo: Saraiva, 1972. v. 1.

CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Instrumentalidade do processo e devido processo sobre o tema. In: FIÚZA, César Augusto de Castro. FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima. CARVALHO DIAS, Ronaldo Brêtas (coord.). Temas Atuais de Direito Processual Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Da argüição de relevância no recurso extraordinário. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense. a. 73. v. 259. set./1977.

CALSAMIGLIA, Albert. El Concepto de Integridad em Dworkin. Doxa. n. 12. a. 1992.

CAMARA, Bernardo Ribeiro. SILVA, Bruno Cesar Gonçalves. MACHADO, Daniel Carneiro. Processo, Ação e Jurisdição em Liebman. In: LEAL, Rosemiro Pereira (coord.). Estudos Continuados de Teoria do Processo: a pesquisa jurídica no curso de Mestrado em

Page 251: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

251

Direito Processual. Porto Alegre: Síntese, 2004. v. 5.

CAMBI, Eduardo. Critério da transcendência para a admissibilidade do recurso extraordinário (art. 102, § 3º, da CF): entre a autocontenção e o ativismo do STF no contexto da legitimação democrática da jurisdição constitucional. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. WAMBIER, Luiz Rodrigues. GOMES JR., Luiz Manoel. FISCHER, Octavio Campos. FERREIRA, Willian Santos (coord.). Reforma do Judiciário: primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. As teias da razão: Wittgenstein e a crise da racionalidade moderna. Belo Horizonte: Argumentum, 2004. (Scientia/UFMG).

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Brian. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

CARDOSO, Libânio. Transcendência: a Media Provisória n. 2.226/01. Síntese Trabalhista. Porto Alegre: Síntese. a. XIII, n. 151. jan./2002.

CARNEIRO, Athos Gusmão. Recurso especial, agravos e agravo interno. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Elementos de teoria geral do processo. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

CARVALHO NETTO, Menelick de. Racionalização do Ordenamento Jurídico e Democracia. Revista brasileira de estudos políticos. Belo Horizonte. n. 88. dez./2003.

CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003b.

CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos Pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado. Belo Horizonte: Mandamentos. v.3. mai./1999.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. O Caso Ellwanger: uma crítica à ponderação de valores e interesses na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.leniostreck.com.br/midias/ArtigoCaso Ellwanger.doc>. Acessado em: 3 de janeiro de 2006.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Coesão interna entre Estado de Direito e Democracia na Teoria Discursiva do Direito de Jürgen Habermas. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Argumentação Jurídica e Decisionismo: um ensaio de teoria da interpretação jurídica enquanto teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da

Page 252: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

252

Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2004b.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria discursiva da argumentação jurídica de aplicação e garantia processual jurisdicional dos direitos fundamentais. Revista brasileira de estudos políticos. Belo Horizonte. n. 88. dez./2003.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.

CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na Alta Modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. “Tertium non datur”: pretensões de coercibilidade e validade em face de uma teoria da argumentação jurídica no marco de uma compreensão procedimental do Estado Democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

CHAUÍ, Marilena. Público, Privado, Despotismo. In: NOVAES, Adalto (org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

CONSTANT, Benjamin. Das reações políticas (Dos princípios). Trad. Thereza Calvet de Magalhães. In: REY PUENTE, Fernando (org). Os filósofos e a mentira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. (Travessias).

COSTA, Cláudio. Filosofia da Linguagem. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (Filosofia passo-a-passo).

COUTURE, Eduardo. Introdução ao estudo do Processo Civil: discurso, ensaios e conferências. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003.

DAKOLIAS, Maria. The judicial sector in Latin American and the Caribbean: elements of reform. Washington: The World Bank, 1996. (World Bank Technical Paper. n. 319).

DERZI, Mizabel de Abreu Machado. Pós-moderno e tributos: complexidade, descrença e corporativismo. Revista brasileira de estudos políticos. Belo Horizonte. n. 88. dez./2003.

DIAS, João Luís Fisher. O efeito vinculante: dos precedentes jurisprudenciais e das súmulas dos tribunais. São Paulo: IOB Thomson, 2004.

Page 253: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

253

DINAMARCO, Cândido Rangel. Liebman e a cultura processual brasileira. In: RIBEIRO COSTA, Hélio Rubens Batista. REZENDE RIBEIRO, José Horácio Halfeld. DINAMARCO, Pedro da Silva (coords.). Linhas mestras do Processo Civil: comemoração dos 30 anos de vigência do CPC. São Paulo: Atlas, 2004.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. 2 v.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

DORF, Michael. The Supreme Court 1997 term – The Limits of Socratic Deliberation. Harvard Law Review. Cambridge: Harvard University. n. 4. a. 1998.

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Coleção Direito e Justiça).

DWORKIN, Ronald. Hart’s Postscript and the character of Political Philosophy. Oxford Journal of Legal Studies. Oxford: Oxford University. v. 24. n. 1. 2004.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção Direito e Justiça).

DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. 2. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Coleção Direito e Justiça).

DWORKIN, Ronald. Isaac Marks Memorial Lecture: Do Values Conflict? A hedgehog’s approach. Arizona Law Review. n. 43. 2001b.

DWORKIN, Ronald. Direitos Fundamentais: a democracia e os direitos do homem. In: DARNTON, Robert. DUHAMEL, Olivier (org.). Democracia. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2001c.

DWORKIN, Ronald. É o direito um sistema de regras? Trad. Wladimir Barreto Lisboa. Estudos Jurídicos: Revista do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo: Unisinos. V. 34.n. 92. 2001d.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção Direito e Justiça).

DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law: the moral reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996.

DWORKIN, Ronald. Constitutionalism and Democracy. European Journal of Philosophy. Essex: Blackwell Publishers. v. 3. n. 1. abr./1995.

DWORKIN, Ronald. Law’s Ambitions for Itself. Virginia Law Review. v. 71. n. 2. mar./1985.

FALLON JR., Richard. Foreword: Implementing the Constitution - The Supreme Court 1996 Term. Harvard Law Review. n. 111. 1998.

FARIA, Jose Eduardo; SOUZA SANTOS, Boaventura de. Direito e justiça: a função social

Page 254: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

254

do judiciário. São Paulo: Ática, 1989.

FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. 8. ed. Padova: CEDAM, 1996.

FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia. Trad. Maria Stela Gonçalves et alli. São Paulo: Loyola, 2001. 4 v.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direto: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Apresentação. In: LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte-Real. Brasília: UnB, 1980.

FERREIRA, Rodrigo Mendes. Individualização e Socialização em Jürgen Habermas: um estudo sobre a formação discursiva da vontade. São Paulo: Annablume, 2000.

FONTOURA, Lucia Helena Ferreira Palmeiro. Recurso Especial: questão de fato / questão de direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993.

FREITAG, Barbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005.

FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona: a questão da moralidade. 3. ed. Campinas: Papirus, 2002.

FREITAG, Barbara. A questão da moralidade: da razão prática de Kant à ética discursiva de Habermas. Revista de Sociologia Tempo Social. São Paulo: USP. n. 1. a. 2. jul./1989.

FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

FREITAS, Juarez. A melhor interpretação constitucional versus a única resposta correta. Revista Latino-americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey. n. 2. jul./dez. 2003.

GADAMER, Hans-Georg. FRUCHON, Pierre, (org.). O problema da consciência histórica. 2. ed. Trad. Paulo César Duque Estrada. Rio de janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2003.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: Fundamentos de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2001.

GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado e o problema da tolerância. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

GALUPPO, Marcelo Campos. Princípios jurídicos e a solução de seus conflitos: uma

Page 255: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

255

contribuição da obra de Alexy. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte: PUC Minas. v. 1. n. 2, jun./dez. 1999.

GERAIGE NETO, Zaiden. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional: art. 5.o, inciso XXXV, da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. (Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman; v. 56).

GIORGI, Raffaele de. A Memória do Direito. Revista Latino-americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey. n. 2. jul./dez. 2003.

GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. O Pressuposto da Transcendência no Recurso de Revista – art. 896-A da CLT – Considerações Iniciais. Síntese Trabalhista. Porto alegre: Síntese. a. XIII. n. 149. nov./2002.

GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. A argüição de relevância: a repercussão das questões constitucional e federal. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: AIDE, 2001.

GOUVÊA, Ligia Maria Teixeira. WRONSKI, Ana Paula Volpato. VILLAR, Gustavo Gouvêa. Recurso de Revista sob o Enfoque da Transcendência: Impasse ou Solução?. Síntese Trabalhista. Porto Alegre: Síntese. a. 13. n. 150. dez./2001.

GRINOVER, Ada Pellegrini. A necessária reforme infraconstitucional. In: TAVARES, André Ramos. LENZA, Pedro. LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. (coord.). Reforma do Judiciário: Emenda Constitucional 45/2004, analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005.

GRONDIN, Jean. Introdução à Hermenêutica Filosófica. Trad. Benno Dischinger. São Leopoldo: Unisinos, 1999. (Coleção Focus).

GÜNTHER, Klaus. Uma concepção normativa de coerência para uma teoria discursiva da argumentação jurídica. Trad. Leonel Cesarino Pessoa. Cadernos de Filosofia Alemã. São Paulo. n. 6. a. 2000.

GÜNTHER, Klaus. Legal adjudication and democracy: some remarks on Dworkin and Habermas. European Journal of Philosophy. Essex: Blackwell Publishers. v. 3. n. 1. abr./1995.

GÜNTHER, Klaus. Un concepto normativo de coherencia para una teoría de la argumentación jurídica. Trad. Juan Carlos Velasco Arroyo. Doxa. n. 17-18. a. 1995b.

GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriateness: application discourses in morality and law. Trad. John Farrell. New York: State University of New York, 1993.

GÜNTHER, Klaus. Justification et application universalistes de la norme en droit et en morale. Trad. Hervé Pourtois. Archives de Philosophie du Droit. Sirey, t. 37. a. 1992.

HABERMAS, Jürgen. Equal Treatment of Cultures and the Limits of Postmodern Liberalism. The Journal of Political Philosophy. V. 13. n. 1. 2005.

Page 256: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

256

HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. (Humanística).

HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditórios?. In: HABERMAS, Jürgen. Era das transições. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2. ed. Trad. Vamireh Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução: George Speiber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002b.

HABERMAS, Jürgen. Concepções da Modernidade: um olhar retrospectivo sobre duas tradições. In: HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001.

HABERMAS, Jürgen. Más allá del Estado nacional. Trad. Manuel Jiménez Redondo. México: Fundo de Cultura Económica, 2000. (Sección de obras de política y derecho).

HABERMAS, Jürgen. Acerca do uso pragmático, ético e moral da razão prática. In: HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso. Trad. Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 2000b. (Pensamento e Filosofia, n. 52).

HABERMAS, Jürgen. Discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000c. (Coleção Tópicos).

HABERMAS, Jürgen. Remarks on Erhard Denninger’s Triad of Diversity, Security, and Solidarity. Constellations. Oxford: Blackwell. v. 7. n. 4. 2000d.

HABERMAS, Jürgen. Introduction. Ratio Juris. Oxford: Blackwell Publishers. v. 12. n. 4. dez./1999.

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998.

HABERMAS, Jürgen. Derecho y Moral: Tanner Lectures, 1986. In: HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998.

HABERMAS, Jürgen. La Soberanía Popular como procedimiento (1988). In: HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998.

HABERMAS, Jürgen. ¿Cómo es posible la legitimidad por vía de legalidad?. Doxa. n. 5. a. 1998b.

HABERMAS, Jürgen. What is Universal Pragmatics? (1976). HABERMAS, Jürgen. On the pragmatics of communication. Cambridge: MIT Press, 1998c.

HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of

Page 257: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

257

Law and Democracy. Trad. William Rehg. Cambridge: MIT Press, 1996.

HABERMAS, Jürgen. Paradigms of Law. Cardozo Law Review. n. 17. mar./1996b.

HABERMAS, Jürgen. La crisis del Estado de bienestar y el agotamiento de las energías utópicas. In: HABERMAS, Jürgen. Ensayos Políticos. 2. ed. Ramón García Cotarelo. Barcelona: Península, 1994.

HABERMAS, Jürgen. ¿Qué significa pragmática universal?. In: Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. Trad. Manuel Jimenez Redondo. Madrid: Cátedra, 1994b.

HABERMAS, Jürgen. Historia y crítica de la opinión pública: la transformación estructural de la vida pública. 4. ed. Trad. Antonio Doménech. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1994. (Colección GG Mass-Media).

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Taurus, 1987. 2 v. (Tomo I: Racionalidad de la acción y racionalización social; Tomo II: Crítica de la razón funcionalista).

HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Trad. Álvaro Valls. São Paulo: L&PM, 1987b.

HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. Trad. José N. Heck. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987c.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – contribuição para uma interpretação pluralista e “procedimental”da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.

HARRISON, Ross. Bentham, Mill e Sidgwick. In: BUNNIN, Nicholas. TSUI-JAMES, E.P. Compêndio de Filosofia. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2002.

HART, H. L. A. O Conceito de Direito. 2. ed. Trad. A. Ribeiro Mandes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

HEGEL, Georg Wilhelm. Princípios de Filosofia do Direito. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

JIMÉNEZ REDONDO, Manuel. Introducción. In: HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”? (“Aufklãrung”). In: Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2003. (Coleção a obra-prima de cada autor, n.111).

Page 258: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

258

KANT, Immanuel. Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens. Trad. Thereza Calvet de Magalhães e Fernando Rey Puente. In: REY PUENTE, Fernando (org). Os filósofos e a mentira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. (Travessias).

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. In: Os Pensadores. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

KELLY, Paul. Ronald Dworkin: Taking Rights Seriously. In: FORSYTH, Mürray. KEENS-SOPER, Maurice. The Political Classics: Green to Dworkin. Oxford: Oxford University Press, 1996.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Trad. João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

KNIJNIK, Danilo. O recurso especial e a questão de fato: por uma teoria tricotômica. 2002. Tese (Doutorado em Direito Processual) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, Porto Alegre.

KOZICK, Kátia. Conflito e estabilização: comprometendo radicalmente a aplicação do Direito com a democracia nas sociedades contemporâneas. 2000. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 6. ed. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2001. (Coleção Debates, n.115).

KUSH, Martin. Linguagem como cálculo versus linguagem como meio universal: um estudo sobre Husserl, Heidegger e Gadamer. Trad. Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo: UNISINOS, 2001. (Coleção Idéias).

LAGES, Cíntia Garabini. A proposta de Ronald Dworkin em “O Império do Direito”. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte: PUC Minas. v. 4. n. 7 e 8, jan./jun. 2001.

LAMY, Eduardo de Avelar. Repercussão geral no recurso extraordinário: a volta da argüição de relevância? In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. WAMBIER, Luiz Rodrigues. GOMES JR., Luiz Manoel. FISCHER, Octavio Campos. FERREIRA, Willian Santos (coord.). Reforma do Judiciário: primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

LANGLOIS, Luc. Discurso moral e discursos ético segundo Habermas: uma distinção fundada? In: Leite Araújo, Luiz Bernardo. Corrêa Barbosa, Ricardo José (org.). Filosofia Prática e Modernidade. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2003.

LARA, Leonardo Augusto Leão. CARVALHO, Newton Teixeira. PENNA, Saulo Versiani. Processo, Ação e Jurisdição em Fazzalari. In: LEAL, Rosemiro Pereira (coord.). Estudos Continuados de Teoria do Processo: a pesquisa jurídica no curso de Mestrado em Direito Processual. Porto Alegre: Síntese, 2004. v. 5.

LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

Page 259: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

259

LASPRO, Oreste Nestor de Souza. O duplo grau de jurisdição no direito preocessual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

LEITE ARAÚJO, Luiz Bernardo. Teoria discursiva e o princípio da neutralidade. In: Leite Araújo, Luiz Bernardo. Corrêa Barbosa, Ricardo José (org.). Filosofia Prática e Modernidade. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2003..

LEITE ARAÚJO, Luiz Bernardo. Moral, direito e política: sobre a Teoria do discurso de Habermas. In: OLIVEIRA, Manfredo. AGUIAR, Odílio. SAHD, Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva (org.). Filosofia Política Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2003b

LINS E SILVA, Evandro. O recurso extraordinário e a relevância da questão federal. Revista Forense. Rio de Janeiro. v. 255. a. 72. jul./set. 1976.

LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedade. Trad. Javier Torres Nafarrate. México: Universidad IberoAmericana, 2002. (Colección Teoria Social).

MACEDO, Gisela Márcia Araújo. O contraditório e a decisão ex officio no Procedimento Civil. In: LEAL, Rosemiro Pereira (coord.). Estudos Continuados de Teoria do Processo: a pesquisa jurídica no curso de Mestrado em Direito Processual. Porto Alegre: Síntese, 2001. v. 2.

MACIEL, Débora Alves. KOERNER, Andrei. Sentidos da judicialização da política: duas análises. Lua Nova. São Paulo. n. 57. 2002.

MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria do Direito Coletivo: direito ou interesse (difuso, coletivo e individual homogêneo)?. Virtuajus – Revista eletrônica da Faculdade Mineira de Direito – PucMinas. Disponível em: <http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/ 1_2004/TEORIA%20DO%20DIREITO%20COLETIVO%20DIREITO%20OU%20INTERRESSE%20DIFUSO%20COLETIVO%20E%20INDIVIDUAL%20HOMOGENEO.pdf> Acessado em: 05 de outubro de 2005.

MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Convenção coletiva de consumo: estudo dos interesses difusos, coletivos e de casos práticos; aspectos comparativos entre a experiência do Direito do Trabalho e do Direito do Consumidor na formação da legislação material e processual. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 8.a ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. (Recursos no processo civil; v. 3).

MARÍAS, Julián. História da Filosofia. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

MARINGONI DE CARVALHO, Maria Cecilia. Utilitarismo: ética e política. In: OLIVEIRA, Manfredo. AGUIAR, Odílio. SAHD, Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva (org.). Filosofia Política Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2003.

MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdição no Estado Constitucional. Disponível em: <http://www.professormarinoni.com.br/admin/users/27.pdf>. Acessado em: 30 de maio de

Page 260: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

260

2005.

MARINONI, Luiz Guilherme. A questão do convencimento judicial. Disponível em: <http://www.professormarinoni.com.br/admin/users/18.pdf>. Acessado em: 30 de maio de 2005.

MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela antecipada e julgamento antecipado: parte incontroversa da demanda. 5. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2002.

MARREY NETO, José Adriano. Recurso Extraordinário: argüição de relevância da questão federal. Revista dos Tribunais. São Paulo. a. 75. v. 604. fev./1986.

MARTINS, Ives Gandra da Silva. A reforma do Judiciário. In: TAVARES, André Ramos. LENZA, Pedro. LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. (coord.). Reforma do Judiciário: Emenda Constitucional 45/2004, analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005.

MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. O critério de transcendência no recursos de revista: projeto de Lei n.o 3.267/00. Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Porto Alegre: Síntese. a. 66. n. 4.out./dez. 2000.

MATTIOLI, Maria Cristina. Transcendência: uma resposta política à morosidade da Justiça. Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Porto Alegre: Síntese. a. 67. n. 4.out./dez. 2001.

MATTOS, Patrícia Castro. As visões de Weber e Habermas sobre Direito e Política. Porto alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.

MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade – o papel da atividade jurisprudencial na "sociedade órfã". Trad. Martônio Lima e Paulo Albuquerque. Novos Estudos CEBRAP. n. 58. nov./2000.

MEDINA, José Miguel Garcia. WAMBIER, Luiz Rodrigues. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Repercussão geral e súmula vinculante: relevantes novidades trazidas pela EC n. 45/2004. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. WAMBIER, Luiz Rodrigues. GOMES JR., Luiz Manoel. FISCHER, Octavio Campos. FERREIRA, Willian Santos (coord.). Reforma do Judiciário: primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

MELO FILHO, Hugo Cavalcanti. A reforma do Poder Judiciário brasileiro: motivações, quadro atual e perspectivas. Revista do Centro de Estudos Judiciários. Brasília. n. 21. abr./jun. 2003.

MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: uma análise das Leis 9868/99 e 9882/99. Revista Diálogo Jurídico. n. 11. fev./2002. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acessado em: 23 de fevereiro de 2005.

MENDES, Gilmar Ferreira. Legitimidade e perspectiva do controle concentrado de constitucionalidade no Brasil. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

MENDES, Gilmar Ferreira. A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal

Page 261: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

261

Federal. Repertório IOB de jurisprudência: tributário, constitucional e administrativo. n. 23. 1994.

MENDONÇA LIMA, Alcides de. O recurso extraordinário na Constituição Federal de 1988. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. a. 14. n. 56. out./dez. 1989.

MORAL SORIANO, Leonor M. ¿Qué discurso para la moral? Sobre la distinción entre aplicaron y justificación en la teoría del discurso práctico general. Doxa. n. 21. t. 1. a. 1998.

MORENO, Arley R. Wittgenstein: os labirintos da linguagem – ensaio introdutório. São Paulo: Moderna, 2000. (Coleção Logos).

MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Trad. Peter Naumann. São Paulo: Max Limmonad, 1998.

NAVES, Nilson Vital. Panorama dos problemas no Poder Judiciário e suas causas: o Supremo, o Superior Tribunal e a reforma. Revista do Centro de Estudos Judiciários. Brasília. n. 13. jan./abr. 2001.

NERY JR., Nelson. Aspectos da teoria geral dos recursos no processo civil. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. a.51. n. 159.

NIQUET, Marcel. Teoria Realista da Moral: estudos preparatórios. Trad. F. José Herrero Botin e Nélio Schneider. São Leopoldo: UNISINOS, 2002. (Coleção Idéias, n. 6).

NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. O direito processual brasileiro e o efeito vinculante das decisões dos tribunais superiores. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. a. 27. n. 105. jan./mar. 2002.

NOJIRI, Sérgio. O dever de fundamentar as decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. (Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman).

NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil. Porto Alegre: Síntese. a. v. n. 29. mai./jun. 2004.

NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa. 2003. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) – Faculdade Mineira de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2001. (Coleção Filosofia).

OMMATI, José Emílio Medauar. A teoria jurídica de Ronald Dworkin: o direito como integridade. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

PÁDUA RIBEIRO, Antônio de. Do recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça. In: TEIXEIRA, Sávio de Figueiredo (coord.). Recursos no Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991.

Page 262: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

262

PAIXÃO CÔRTES, Osmar Mendes. Recurso Extraordinário: origens e desenvolvimento no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

PALMER, Richard. Hermenêutica. Trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1986.

PEARS, David. Wittgenstein. In: BUNNIN, Nicholas. TSUI-JAMES, E.P. Compêndio de Filosofia. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2002.

PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da sentença civil. São Paulo: Saraiva, 2001.

PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica Filosófica e Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

PIMENTA, André Patrus Ayres. MARQUES, Cláudio Gonçalves. QUEIROZ, Flávia Gonçalves de. VIEIRA, Lara Piau. Processo, ação e jurisdição em Chiovenda. In: LEAL, Rosemiro Pereira (coord.). Estudos Continuados de Teoria do Processo: a pesquisa jurídica no curso de Mestrado em Direito Processual. Porto Alegre: Síntese, 2004. v. 5.

PIZZI, Jovino. O conteúdo moral do agir comunicativo: uma análise sobre os limites do procedimentalismo. São Leopoldo: UNISINOS, 2005. (Coleção Focus, n.16).

QUADROS DE MAGALHÃES, José Luiz. Direito Constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. t. 1.

RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção Direito e Justiça).

RAWLS, John. Liberalismo político. Trad. Sergio René Madero Báez. México: Fondo de Cultura Econômica, 1996. (Política y Derecho).

REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991. 3 v.

RIBEIRO COSTA, Hélio Rubens Batista. A “súmula vinculante”e o processo civil brasileiro. In: RIBEIRO COSTA, Hélio Rubens Batista. REZENDE RIBEIRO, José Horácio Halfeld. DINAMARCO, Pedro da Silva (coords.). Linhas mestras do Processo Civil: comemoração dos 30 anos de vigência do CPC. São Paulo: Atlas, 2004.

ROCHA, Heloísa Helena Nascimento. Elementos para uma compreensão constitucionalmente adequadas dos direitos fundamentais. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal: da defesa das liberdades civis. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. 2v.

ROHDEN, Luiz. Hermenêutica Filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo: Unisinos, 2002. (Coleção Idéias).

ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Trad. Menelick de Carvalho

Page 263: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

263

Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.

SADEK, Maria Thereza Aina. Poder Judiciário: perspectivas de reforma. Opinião Pública. Campinas. v. X. n. 1. mai./2004.

SALCEDO Repolês, María Fernanda. Habermas e a desobediência civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.

SALLES, Carlos Alberto de. Processo Civil de Interesse Público. In: SALLES, Carlos Alberto de (org.). Processo Civil e Interesse Público: o processo como instrumento de defesa social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

SANCHES, Sydney. Argüição de relevância da questão federal. Revista dos Tribunais. São Paulo. a. 77. v. 627. jan./1988.

SANTOS PÉREZ, Maria Lourdes. Una filosofía para erizos: una aproximación al pensamiento de Ronald Dworkin. Doxa. n. 26. 2003.

SARAT, Austin. KEARNS, Thomas. The cultural lives of Law. SARAT, Austin. KEARNS, Thomas. (org.) Law in the domains of culture. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1998.

SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. Interesses privados na perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In: SARMENTO, Daniel. (org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Jures, 2005.

SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

SARTÓRIO, Elvio Ferreira. JORGE, Flávio Cheim. O recurso extraordinário e a demonstração da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. WAMBIER, Luiz Rodrigues. GOMES JR., Luiz Manoel. FISCHER, Octavio Campos. FERREIRA, Willian Santos (coord.). Reforma do Judiciário: primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais. In: SARMENTO, Daniel. (org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Jures, 2005.

SELLERS, Mortimer. Republicans, Liberalism, and the Law. Kentucky Law Journal. v. 86. n. 1. 1997/1998.

SILVA CANDEAS, Ana Paula Lucena. Valores e os judiciários: os valores recomendados pelo Banco Mundial para os judiciários nacionais. Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros. Brasília: AMB. a. 7. n. 13. jan./jun. 2004.

SILVA, Antônio Álvares da. Reforma do Judiciário. Belo Horizonte: SITRAEMG, 2003.

SILVA, Antônio Álvares da. A questão da inconstitucionalidade da MP 2.226. Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Porto Alegre: Síntese. a. 67. n. 4.out./dez. 2001.

Page 264: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

264

SORJ, Bernardo. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Privilégio de foro e improbidade administrativa. In: SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de (coord.). O Supremo Tribunal Federal Revisitado: o ano judiciário de 2002. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. O Direito à Diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas portadoras de deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

SOUZA JÚNIOR, Antonio Umberto. O Supremo Tribunal Federal e as questões políticas: o dilema brasileiro entre o ativismo e a autocontenção no exame judicial das questões políticas. Porto Alegre: Síntese, 2004.

SOUZA SANTOS, Boaventura. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

STRECK, Lenio Luiz. A crise da hermenêutica e a hermenêutica da crise: a necessidade de uma nova crítica do direito (NCD). In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

SUNSTEIN, Cass R. One Case At a Time: judicial minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University, 1999.

TAVARES, André Ramos. A repercussão geral no recurso extraordinário. In: TAVARES, André Ramos. LENZA, Pedro. LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. (coord.). Reforma do Judiciário: Emenda Constitucional 45/2004, analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005.

TAVARES, André Ramos. Recurso Extraordinário: modificações, perspectivas e propostas. In: RIBEIRO COSTA, Hélio Rubens Batista. REZENDE RIBEIRO, José Horácio Halfeld. DINAMARCO, Pedro da Silva (coords.). Linhas mestras do Processo Civil: comemoração dos 30 anos de vigência do CPC. São Paulo: Atlas, 2004.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Celeridade e efetividade da prestação jurisdicional: insuficiência da reforma das leis processuais. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 125. a. 30. jul./2005.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Alguns reflexos da Emenda Constitucional 45, de 08.12.2004, sobre o Processo Civil. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 124. a. 30. jun./2005b.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo e Cidadania. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos. Belo Horizonte, 1996. v. 3. n. 3.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Princípios Gerais do Direito Processual Civil. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 23. a. 4. jul./set. 1981.

Page 265: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

265

TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

VEIGA, Aloysio Corrêa da. Admissibilidade do Recurso de Revista. Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Porto Alegre: Síntese. a. 69. n. 2. jul./dez. 2003.

VILLELA, José Guilherme. Recurso extraordinário. Revista de Informação Legislativa. Brasília. a. 23. n. 89. jan./mar. 1986.

VIANNA, Luiz Werneck. BURGOS, Marcelo. Revolução processual do direito e democracia progressiva. In: VIANNA, Luiz Werneck (org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: UFMG / IUPERJ / FAPERJ, 2002. (Humanitas).

VIANNA, Luiz Werneck. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. et alli. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

WHITE, Stephen K. Razão, Justiça e Modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Trad. Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. (Coleção Elementos de Direito).

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. In: Os Pensadores. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

TEXTOS NORMATIVOS.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Diário Oficial da União. Brasília, 5 de outubro de 1988.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1967.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 18 de setembro de 1946.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 16 de junho de 1934.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 1891.

BRASIL. DECRETO-LEI N. 6. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1937.

BRASIL. DECRETO N. 20.889. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 23 de novembro de 1931.

BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45. Diário Oficial da União. Brasília, 8 de

Page 266: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

266

dezembro de 2004.

BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 32. Diário Oficial da União. Brasília, 11 de setembro de 2001.

BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 29. Diário Oficial da União. Brasília, 13 de setembro de 2000.

BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 7. Diário Oficial da União. Brasília, 1º de janeiro de 1995.

BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 3. Diário Oficial da União. Brasília, 17 de março de 1993.

BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 7. Diário Oficial da União. Brasília, 13 de abril de 1977.

BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 1. Diário Oficial da União. Brasília, 17 de outubro de 1969.

BRASIL. LEI N. 10.352. Diário Oficial da União. Brasília, 26 de dezembro de 2001.

BRASIL. LEI N. 9.882. Diário Oficial da União. Brasília, 03 de setembro de 1999.

BRASIL. LEI N. 9.868. Diário Oficial da União. Brasília, 10 de novembro de 1999.

BRASIL. LEI N. 9.756. Diário Oficial da União. Brasília, 17 de dezembro de 1998.

BRASIL. LEI N. 8.078. Diário Oficial da União. Brasília, 11 de setembro de 1990.

BRASIL. LEI N. 7.347. Diário Oficial da União. Brasília, 24 de julho de 1985.

BRASIL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO. LEI N. 5.869 . Diário Oficial da União. Brasília, 11 de janeiro de 1973.

BRASIL. CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS TRABALHISTAS. DECRETO-LEI N. 5.452. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 1º de maio de 1943.

BRASIL. LEI N. 3.396. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 02 de junho de 1958.

BRASIL. MEDIDA PROVISÓRIA N. 2.226. Diário Oficial da União. Brasília, 04 de setembro de 2001.

BRASIL. MEDIDA PROVISÓRIA N. 2.152-2. Diário Oficial da União. Brasília, 1º de junho de 2001.

Page 267: Dissertação Flávio Quinaud Pedron - Texto Completo Revisado

267

TÁBUA DE DECISÕES JUDICIAIS

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AR n. 140.211. Relator: Min. Nilson Naves. Brasília, 03 de abril de 1992.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resp n. 27.331-0 / AM. 20 de setembro de 1993. Relator Min. Vicente Cernicchiaro.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resp n. 197 / SP. 28 de outubro de 1989. Relator Min. Cláudio Santos.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADC n. 9-6. Relator: Min. Nery da Silveira. Brasília, 29 de junho de 2001.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI n. 1.610-5. Relator Min. Sydney Sanches. Brasília, 05 de dezembro de 1997.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI n. 1.397-1. Relator: Min. Celso de Melo. Brasília, 18 de agosto 1997.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI n. 855-2. Relator Min. Octavio Gallotti. Brasília, 18 de outubro de 2000.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI n. 47. Relator: Min. Octavio Gallotti. Brasília, 13 de junho, 1997.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC n. 82.424 / RS. Relator: Min. Moreira Alves. Brasília, 17 de setembro de 2003.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE n. 153.531-8 / SC. Relator: Min. Francisco Rezek. Brasília, 03 de junho de 1997.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE n. 87.355. Relator Min. Décio Miranda. Brasília, 04 de março de 1980.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE n. 62.739/SP. Relator Min. Aliomar Baleeiro. Brasília, 23 de agosto de 1967.

TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL DE SÃO PAULO. AP. n. 341.731/1. Relator Desembargador Canguçu de Almeida. 8. Câm. São Paulo, 20 de junho de 1984.