Realização
Observatório das Migrações Internacionais
Coordenação do OBMigra
Leonardo Cavalcanti
Tania Tonhati
Conselho Editorial
Leonardo Cavalcanti
Tânia Tonhati
Sandro Martins de Almeida Santos
Capa
Luiz Aragão
Sumário
As migrações internacionais no Brasil: construindo ferramentas para análise -
Observatório das Migrações Internacionais no Brasil....................................................
Apresentação: Políticas migratórias no Brasil, abrindo espaço para a polifonia...............9
1- Migração laboral no Brasil: problemáticas e perspectivas..........................................15
Introdução................................................................................................................ .......15
Retornados............................................................................................................... .......16
Imigrantes estrangeiros: destaque para portugueses e espanhóis....................................19
A imigração haitiana........................................................................................................22
Considerações finais........................................................................................................30
Referências bibliográficas................................................................................................35
2 - Migração Laboral no Brasil: desafios para Construção de Políticas .........................38
Introdução.........................................................................................................................38
Fase I: A Criação..............................................................................................................38
Fase II: A Implementação do CNIg – Os Governos Collor e Itamar Franco...................43
O Governo Itamar Franco.................................................................................................45
Fase III: A Expansão e Reorganização Interna do CNIg..................................................51
Fase IV: Rediscussão do Papel do CNIg (Momento Atual). ...........................................55
Contexto Econômico.........................................................................................................55
O CNIg..............................................................................................................................56
Considerações Finais: Novas Perspectivas e Desafios para o Século XXI. .....................59
Referências Bibliográficas.................................................................................................61
3 - As migrações e o direito dos trabalhadores..................................................................62
Introdução...........................................................................................................................62
O papel do CNIg................................................................................................................66
O Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos Migrantes no Brasil...............67
Os Haitianos.......................................................................................................................68
Conclusão...........................................................................................................................69
4 – Direitos, integração e mobilidades/ Desafios no mercado de trabalho........................71
Referências Bibliográficas.................................................................................................79
5 – Menos nacionalismo e mais direitos humanos: o papel do MPT diante do trabalho do
estrangeiro em situação irregular ......................................................................................80
Introdução...........................................................................................................................80
Nacionalismo. É bom para o país?.....................................................................................81
Distinções por motivo de nacionalidade : o critério da responsabilidade..........................84
Igualdade como ponto de chegada: um passo na direção dos direitos humanos................87
Coordenadas para uma atuação coerente em matéria de imigração ..................................89
O papel do MPT como promotor da ordem jurídica trabalhista e dos direitos humanos dos
imigrantes ..........................................................................................................................92
Conclusão...........................................................................................................................95
Referências Bibliográficas.................................................................................................97
ANEXO I...........................................................................................................................98
Carta da Oficina Migrações e o mundo de trabalho .........................................................98
6 – Entrevista ...................................................................................................................104
Paulo Sérgio de Almeida..................................................................................................104
7 – Anexo.........................................................................................................................118
As Migrações Internacionais no Brasil sob uma perspectiva jurídica: análise da legislação
brasileira sobre estrangeiros entre os séculos XIX e XXI...............................................119
Legislação Migratória Brasileira – Quadro Cronológico.................................................211
As migrações internacionais no Brasil: construindo ferramentas para
análise - Observatório das Migrações Internacionais no Brasil
Leonardo Cavalcanti1
Tania Tonhati2
A necessidade
Nas últimas décadas os países sul-americanos, em geral, e o Brasil em
particular, têm vivenciado diferentes cenários migratórios internacionais, que vão
desde a chegada de novos fluxos imigratórios, passando pela consolidação da
emigração e, mais recentemente, pelo retorno de emigrantes. Nesse contexto, a
necessidade de um órgão destinado a pesquisa sobre o fenômeno migratório no Brasil
justifica-se pela amplitude e complexidade de tal tema. Não obstante, a concepção do
Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) no Brasil fez-se urgente
não somente pela importância do fenômeno migratório no Brasil, mas também pela
necessidade de maior interação, organização e análise dos dados existentes, para que a
partir deles, novas pesquisas e políticas públicas possam ser orientadas e
desenvolvidas. Ademais, torna o Brasil de um importante espaço de Observação, da
mesma forma que outros países com tradição de recepção de fluxos migratórios que
contam com estruturas parecidas, como é o caso da Espanha (OPI – Observatório
Permanente de la Inmigración); Inglaterra (Migration Observatory); Portugal
(Observatório da Imigração); México (Observatorio de Migración Internacional),
entre outros países.
Constata-se, atualmente, grande dispersão de dados, sobretudo quantitativos,
coletados e armazenados pelos diversos órgãos oficiais que, por falta de uma maior
coordenação, de comunicação e interação com unidades acadêmicas, não estão sendo
sistematizados de forma adequada e global. São dados, muitos em estado bruto e
1 Coordenador Geral do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) e Professor adjunto da
Universidade de Brasília (UnB), Centro de Pesquisa de Pós-Graduação sobre as Américas (CEPPAC). 2 Coordenadora Executiva do Observatório das Migrações e doutoranda da Universidade de Londres –
Goldsmiths College.
pouco articulados entre si, essenciais para a compreensão do fenômeno migratório,
inclusive para verificar a amplitude desse. A parceria com o Conselho Nacional de
Imigração (CNIg), através do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), possibilita o
acesso a esses dados, abrindo portas para a sua sistematização, para a elaboração de
indicadores e parcerias que auxiliem na análise das migrações.
O Observatório também contribui para o campo científico, tanto em nível
empírico, como teórico, pois se trata de uma iniciativa pioneira, que serve para reunir,
através de uma rede acadêmica, diversos pesquisadores brasileiros e estrangeiros
interessados na análise do fenômeno migratório brasileiro. A constituição de um
diálogo acadêmico amplo é essencial para o incentivo e promoção de pesquisas
quantitativas e qualitativas sobre os mais diversos temas relativos às migrações
internacionais no Brasil. Assim, espera-se que essas pesquisas possam contribuir com
dados relativos ao fluxo migratório, ao perfil sócio demográfico dos migrantes, à
inserção dos mesmos na sociedade de acolhimento, especialmente no mercado de
trabalho; e que também possam ampliar a compreensão sobre a cotidianidade desses
migrantes, incluindo análises que abordem as relações de classes sociais, gênero e de
geração, assim como as relações étnico/raciais em que estão envolvidos os migrantes.
Identificou-se, ainda, a inexistência de um canal de comunicação que
congregasse as informações disponíveis sobre os fluxos migratórios. Desse modo, a
criação do portal eletrônico (site) do Observatório contribui para a difusão de
informações (dados sobre os fluxos migratórios e, também, produção científica na
área) aos cidadãos e àqueles que trabalham diretamente com a migração. Portanto, a
criação do portal do Observatório das Migrações Internacionais no Brasil é uma
necessidade para a disseminação de informações e conhecimento sobre a temática.
O Observatório colabora, também, para o desenvolvimento científico-
tecnológico na área, articulando a criação de indicadores sobre o fluxo migratório a
partir da analise estatística de bases de dados governamentais. Desse modo, procura
viabilizar construções de plataformas que eventualmente os atores que trabalham na
área temática possam ter acesso aumentando a transparência dos dados. O
Observatório, portanto, providencia levantamento dos dados necessários para
montagem de fluxos de informações, disponibilizando-os por meio de mecanismos
que são desenvolvidos pelos pesquisadores.
Deve ser destacada, ainda, a importância de análises com enfoque em
situações específicas, como podem ser os estudos sobre os fluxos migratórios nos
espaços de fronteiras e a pesquisa com refugiados. Ressalta-se que já há muitos
estudos sendo realizados por diferentes unidades acadêmicas e entidades associativas,
não obstante, ainda é necessária uma maior sistematização e divulgação de seus
resultados. O Observatório busca ser um importante canal para essa divulgação.
A necessidade de criar o Observatório das Migrações Internacionais no Brasil
também se deu pelo potencial de proporcionar desenvolvimento e inovação social da
gestão do fenômeno migratório brasileiro. De acordo com Comeau (2004), o reforço
das orientações neo-liberais que privilegiam o investimento público ligado ao
aumento da competitividade em detrimento da esfera social, engendra novas
necessidades e problemas de natureza coletiva. Nesse contexto a produção do
conhecimento científico voltado para processos de desenvolvimento e inovações
sociais se faz ainda mais necessário, especialmente no âmbito das ciências sociais.
Nesse sentido, André e Abreu (2006) ratificam a necessidade de pensar a
inovação social separada das lógicas do mercado competitivo que inova em
tecnologia visando unicamente o lucro. Pelo contrário, esses autores atribuem o
significado da inovação social, tanto a um processo que se desenvolve fora das
lógicas do mercado e que visa prioritariamente à inclusão social; assim como a
produtos que podem ser materializados em iniciativas sociais ligadas, por exemplo,
aos cuidados de saúde, à ação social, à habitação, à imigração, à integração no
mercado de trabalho, entre outras.
De acordo com Martinelli et al., (2003), a inovação social nas suas duas
dimensões, como produto e processo, deveria cumprir ao menos três características
básicas: a) satisfação de necessidades humanas não atendidas por via do mercado; b)
promoção da inclusão social e aumento do acesso aos direitos sociais; c) facilitação
do empoderamento de grupos sociais e capacitação de agentes, potencial ou
efetivamente, em processos de exclusão e marginalização social.
Apoiados nas ideias de Lovye Leubolt (2005), os autores André e Abreu
(2006) consideram quatro tipos de relação entre sociedade civil e inovação social:
• A inovação social deriva do capital social da sociedade civil (Putnam),
entendida como esfera autorregulada autônoma do Estado (Teoria liberal);
• Inspirados na polis, os cidadãos encontram-se no espaço público para discutir
e encontrar soluções para os problemas coletivos (Arendt). A sociedade civil não é
autônoma do Estado, ela constrói o Estado. A cidadania é a ideia central desta
perspectiva (Tradição republicana);
• A sociedade civil autônoma (elites esclarecidas) influencia as políticas por
via da ação comunicativa (Habermas), ou seja, através da “construção” de uma
opinião pública;
• A sociedade civil protagoniza uma estratégia de resistência para derrubar as
forças hegemônicas (Teoria crítica na tradição Gramsciana).
Em suma, o Observatório busca contribuir de forma contínua para a análise da
migração contemporânea no Brasil, por meio do estudo das migrações internacionais
nas suas principais vertentes: imigração, emigração e migração de retorno. Assim
sendo, esse surge em um momento oportuno, onde as migrações no país estão
passando por processos de maior dinamismo nas suas três versões. E, portanto, o
Observatório vem contribuir e tem um importante impacto, tanto de caráter científico-
acadêmico, como de inovação social.
Da necessidade a criação
O Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) foi pensado e
repensado. Sendo sua concepção discutida e rediscutida pelo CNIg, especialmente
pelo Presidente do Conselho, Sr. Paulo Sérgio de Almeida, pelos técnicos da
Coordenação Geral de Imigração do MTE, pelos professores e alunos do Centro de
Pesquisa Pós-Graduação sobre as Américas (CEPPAC, sobretudo pelos Professores
Leonardo Cavalcanti e Rebecca Igreja). O amadurecimento da ideia e a constante
vontade de todos os envolvidos nessa iniciativa culminou na sua criação em dezembro
de 2013. O Observatório teve amplo apoio das autoridades das duas instituições
promotoras: Universidade de Brasília e Ministério do Trabalho e Emprego. Durante
os seus primeiros meses de execução foi realizado o processo de seleção dos
pesquisadores que compõem atualmente o Observatório. Pesquisadores esses de
diversas áreas de expertise entre elas antropologia, direito, estatística, demografia,
pedagogia, relações internacionais e sociologia. Sendo os pesquisadores pós-doutores,
doutores, doutorandos, mestres, mestrandos e graduandos. Desse modo, o
Observatório teve seu lançamento oficial, no Seminário “Migração Laboral no
Brasil: desafios para construção de políticas” realizado no Senado Federal, em 14
de Maio de 2014, com a presença do Ministro do Trabalho e Emprego, Manuel Dias,
da Vice-Reitora da UnB Dra Sonia Bao e autoridades governamentais, sindicais e
acadêmicas. Nesse evento foi lançado o website do Observatório -
http://portal.mte.gov.br/obmigra/home.htm. Foi também apresentado mapeamentos
para a identificação dos órgãos públicos, organizações não governamentais e grupos
de pesquisas e pesquisadores que trabalham com a temática migratória. Esses
mapeamentos contribuíram para lançar um primeiro olhar sobre como e por quem a
migração internacional brasileira está sendo tratada no Brasil e no exterior. Esses
foram os primeiros passos na consolidação, concretização e divulgação do
Observatório, como um meio de interlocução entre diversos grupos sociais.
Metas
A principal meta do Observatório é desenvolver continuamente o
conhecimento sobre as migrações internacionais no Brasil, mediante pesquisas
quantitativas (analises estatísticas) e qualitativas com estudos teóricos e empíricos, e
apontar estratégias para a inovação social de políticas públicas que dinamizem as
migrações internacionais no Brasil. Para realizar essa tarefa propõe-se analisar
progressivamente três cenários que afetam o Brasil: I- A imigração internacional no
Brasil na atualidade; II- A emigração brasileira para outros países nas últimas
décadas; III- Os projetos migratórios de retorno dos emigrantes brasileiros pós-crise
econômica mundial, a partir do ano 2008. Para tal, definimos como sendo nossos
objetivos específicos:
1. Criação de banco de dados: Compilar e disponibilizar dados estatísticos;
2. Relatório anual sobre mercado de trabalho: Analisar a inserção dos
imigrantes no mercado de trabalho brasileiro;
3. Pesquisas: Formentar o desenvolvimento, divulgação, edição e distribuição
de pesquisas, estudos e publicações;
4. Seminários: Promover seminários, palestras e debates, e
5. Cooperação internacional: Realizar atividades de cooperação com outras
instituições congêneres nacionais e internacionais que permita um maior
conhecimento das migrações no Brasil, Mercosul e no mundo
O desenvolvimento
O Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) ao longo desse
primeiro ano veio se consolidando como uma iniciativa contínua que objetiva a
colaboração conjunta entre o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), através do
Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e a Universidade de Brasília (UnB) através
da coordenação científica do Centro de Pesquisa Pós-Graduação sobre as Américas
(CEPPAC), unidade acadêmica da UnB, vinculada ao Instituto de Ciências Sociais
(ICS). O conhecimento que vem sendo produzido pelo Observatório está contribuindo
para avançar a compreensão teórico-metodológica do fenômeno migratório brasileiro;
auxiliando na sistematização de dados estatísticos sobre a migração e, ainda,
subsidiando elementos para inovação social de políticas públicas mais eficaz e
eficiente, especialmente dos órgãos governamentais que lidam diretamente com as
migrações internacionais no Brasil.
Até o presente momento já foi possível realizar um amplo mapeamento
identificando os principais órgãos públicos, organizações não governamentais e
grupos de pesquisas e pesquisadores (brasileiros e no exterior) que trabalham com a
temática migratória. Informações que já estão disponíveis no website do
Observatório. Já obtivemos, também, acesso aos bancos de dados da Rais (Relação
Anual de Informações Sociais) e do CGI/CNIg (Coordenação Geral de Imigração e
Conselho Nacional de Imigração). Dados esses que estão sendo cuidadosamente
tratados estatisticamente, tabulados e analisados. Fato pioneiro no campo das
migrações no Brasil. Ainda, foi possível ter acesso aos dados do IBGE, o qual
possibilitou o acesso às bases de dados demográficos dos fluxos migratórios dos
Censos de 2000 e 2010.
No âmbito da pesquisa qualitativa e teórica, o Observatório está construindo o
primeiro Dicionário sobre migração em língua portuguesa. Com mais de 70 verbetes,
que estão sendo escritos por pesquisadores de diversos países com expertise na
temática reconhecida internacionalmente. Esse dicionário será uma importante fonte
de consulta para a academia brasileira e gestores envolvido nos estudos migratórios.
Nesse ano de 2014, o Observatório vem proporcionando, ainda, aos estudantes de
pós-graduação e de graduação, gestores públicos e a todos interessados nessa temática
a possibilidade de participarem de debates sobre os mais diversos temas das
migrações. Essa atividade é realizada através dos Diálogos do Observatório, um
espaço de debate onde renomados acadêmicos proferem palestras.
Dentre esses vários produtos, o Observatório criou nesse ano de 2014, os
Cadernos OBMigra. Essa publicação tem o intuito de ser um veículo de divulgação
continuada e periódica. O objetivo é promover um espaço multi e interdisciplinar
capaz de reunir estudos e debates sobre o fenômeno migratório internacional nas suas
principais vertentes: emigração, imigração e retorno. Desse modo, o Observatório
convida a comunidade acadêmica, a sociedade civil e órgãos governamentais
dedicados da migração internacional a apresentar o resultado de seus trabalhos e
manifestar seus pontos de vista por meio dessa publicação que recebe artigos,
surveys, entrevistas, outros textos de pesquisas finalizadas ou em progresso e, ainda,
busca abrir espaço para formas criativas de discutir a temática.
Desse modo, o Observatório tem o prazer de oferecer ao público o primeiro
número dos Cadernos OBMigra organizado inicialmente a partir das contribuições
dos palestrantes e debatedores do Seminário Migrações Laborais no Brasil:
desafios para construção de políticas.
Boa Leitura!
Referências Bibliográficas
ANDRÉ, ISABEL; ABREU; ALEXANDRE. DIMENSÕES E ESPAÇOS DA
INOVAÇÃO SOCIAL. Finisterra, XLI, 81, 2006, pp. 121-141
COMEAU Y (2004) Les contributions des sociologies de l‟innovation à
l‟étude du changement social. Innovations Sociales et Transformations des Conditions
ede Vie. Actes du Colloque - 16 Avril 2004, Cahiers du CRISES, Collection Études
Théoriques, ET0418: 29-44
MARTINELLI F, MOULAERT F, SWYNGEDOUW E, AILENEI O (2003)
Social innovation, governance and comunity building. Singocom - scientific periodic
progress report month 18.
Políticas migratórias no Brasil, abrindo espaço para a polifonia
Sandro M. Almeida Santos3
No dia 14 de maio de 2014, nas dependências do Senado Federal em Brasília,
estiveram reunidos gestores públicos, lideranças patronais e sindicais, acadêmicos e
políticos, todos envolvidos com a pujante questão das migrações laborais
internacionais no Brasil. Aquela quarta-feira foi dedicada à discussão dos desafios
impostos pelo crescimento da imigração no país. Pode-se destacar como questão que
dominou os debates, além do crescimento da imigração em si, a necessidade de
adaptação da legislação e das instituições nacionais para acolher os diversos
imigrantes que aqui chegam, integrando-os ao mercado de trabalho local e o respeito
aos direitos humanos.
O Seminário “Migração Laboral no Brasil: desafios para construção de
políticas” foi dividido em dois turnos, manhã e tarde. Na parte da manhã, a mesa de
abertura contou com a presença do senhor Ministro do Trabalho e Emprego, Manoel
Dias, da vice-reitora da Universidade de Brasília (UnB) Dra Sônia Baum, e, ainda
Francisco Etelvino Biondo da Interlegis, Antonio Lisboa da Central Unica dos
Trabalhadores (CUT) e Alexandre Furlan presidente da Confederação Nacional da
Industria (CNI). O evento marcou o lançamento do Observatório das Migrações
Internacionais no Brasil (OBMigra), fruto de um termo de cooperação entre o
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) – por meio do Conselho Nacional de
Imigrações (CNIg) – e a Universidade de Brasília (UnB). Sob a coordenação
científica do professor Leonardo Cavalcanti (CEPPAC-UnB) e executiva da
pesquisadora Tânia Tonhati, o OBMigra tem como objetivo aprofundar o
conhecimento sobre as migrações internacionais nas suas principais vertentes:
imigração, emigração e migração de retorno.
Ainda pela manhã foi realizada Mesa Redonda sobre o tema “Globalização,
Migração e Cidadania: recomendações para políticas sociais”. Esta mesa pode ser
caracterizada pelo perfil científico dos palestrantes. A professora Rosana Baeneguer
(UNICAMP) e o professor Duval Fernandes (PUC Minas), reconhecidos por suas
3 Pesquisador do Observatório das Migrações Internacionais e doutor em Antropologia pela
Universidade de Brasília (UnB)
pesquisas sobre fluxos migratórios históricos e também contemporâneos, fizeram uma
ampla introdução ao tema das migrações internacionais, apresentando conceitos
fundamentais, as principais correntes teóricas que animam o campo, as principais
tendências de políticas públicas e levantando questionamentos acerca dos desafios
colocados para o Brasil em sua atual condição de país receptor de imigrantes
estrangeiros e brasileiros retornados. A mesa foi moderada pela professora Ana Maria
Nogales (UnB), que ressaltou os desafios impostos para as políticas públicas a partir
da complexidade apresentada pelos palestrantes. O debatedor foi o senhor Jorge
Peraza da Organização Internacional para as Migrações (OIM), que salientou a
questão da cidadania do sujeito migrante e a necessidade de se promover o acesso a
direitos nos locais receptores; para ele, a política migratória não deveria ficar limitada
ao Governo Federal, mas também envolver os governos estaduais e municipais.
O turno da tarde foi aberto pela Mesa Redonda “Direitos, Integração e
Mobilidades: desafios no mercado de trabalho”. Esta mesa reuniu participantes do
CNIg e teve como debatedor o senhor Stanley Gacek, da Organização Internacional
do Trabalho (OIT). A representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI),
Cristina Aires Correa Lima, abriu os debates levantando a preocupação com o
reconhecimento de diplomas e documentos para facilitar a integração dos imigrantes
ao mercado de trabalho nacional bem como a necessidade de uma nova legislação que
não trate os imigrantes como assunto de segurança nacional; ela criticou o Projeto de
Lei nº 5655/2009 e defendeu o CNIg como instância reguladora das questões
migratórias. A representante da Confederação Nacional do Comércio (CNC), a
senhora Marjolaine Canto também apresentou as dificuldades de acesso a documentos
enfrentada pelos imigrantes no Brasil e defendeu a continuidade e expansão do CNIg
enquanto um espaço de diálogo multilateral, que envolve agentes governamentais,
representantes patronais e representantes sindicais. Em seguida, o senhor Valdir de
Barros, representante da Central Geral dos Trabalhadores (CGT), apresentou o ponto
de vista dos empregados, concordou sobre as qualidades do CNIg, ressaltou a
preeminência da questão trabalhista nas questões migratórias e defendeu o fim das
fronteiras que impedem as pessoas de trabalhar. Por fim, o senhor Stanley Gacek da
OIT (Organização Internacional do Trabalho) fez uma explanação geral sobre o atual
estágio das normas internacionais de proteção ao trabalhador migrante, parabenizou o
Brasil em sua atual política baseada em direitos e normas da OIT e ressaltou que o
principal objetivo do Brasil deveria ser regularizar o controle de entradas e saídas,
combatendo o tráfico de pessoas, com o compromisso brasileiro em incorporar o
“trabalho decente” como diretriz de política pública.
A última Mesa Redonda do Seminário tratou das “Perspectivas, tendências e
propostas para políticas migratórias”. Paulo Sérgio de Almeida, Presidente do CNIg,
defendeu a importância do Conselho não somente como órgão consultivo e aberto a
diferentes setores da sociedade, mas como órgão deliberativo no qual o Estado sede
parte da sua soberania legislativa para implementar regulamentos debatidos com
representantes da sociedade civil. Cristiane Sbalqueiro Lopes, representante do
Ministério Público do Trabalho (MPT), salientou a importância do MP na fiscalização
das relações de trabalho, fazendo críticas severas ao mercado de trabalho nacional
pela desigualdade, baixo acesso aos direitos sociais e xenofobia contra o imigrante.
Na sequência, João Guilherme Granja, Diretor do Departamento de Estrangeiros do
Ministério da Justiça (DEST/MJ), argumentou a favor da descentralização da política
migratória brasileira, defendendo a necessidade de uma maior participação do MJ
como gestor dessas políticas; ele ressaltou a importância da primeira Conferência
Nacional sobre Migrações e Refúgio (COMIGRAR) como elemento de
descentralização e fortalecimento da política migratória nacional. A antropóloga
Márcia Sprandel, assessora do Senado Federal, fechou a sessão debatendo sobre a
necessidade de se ampliar os direitos dos imigrantes no Brasil e problematizou sobre a
questão das fronteiras, condenando a atual política baseada em diretrizes militares de
segurança.
Os debates ao longo do dia afirmaram a primazia da questão trabalhista no
contexto das migrações internacionais e a necessidade de fortalecimento da política
tripartite (governo, empregadores e empregados) para lidar com os desafios atuais. As
inquietações dos palestrantes apontaram para as dificuldades de acesso a direitos, a
falta de coordenação da política migratória nacional, a precarização do trabalho
imigrante e a falta de informações e dados, que poderiam ajudar os entes da federação
a planejar suas respectivas políticas. Sobre este último item, os presentes reiteraram a
importância da criação de um instituto de pesquisa com as características do
OBMigra, dedicado a coletar, analisar e organizar os dados provenientes das
diferentes fontes governamentais, divulgando-os para a comunidade acadêmica e para
os gestores e formuladores de políticas públicas.
Como uma das primeiras iniciativas do recém-criado Observatório, nasceu a
proposta dos “Cadernos OBMigra”. Contamos nesta primeira publicação com as
contribuições dos palestrantes Duval Fernandes (PUC-Minas), Marjolaine Canto
(CNC), Valdir Barros (CGT), Stanley Gacek (OIT) e Cristiane Lopes (MPT),
seguidas de uma entrevista exclusiva, com Paulo Sérgio de Almeida, Presidente do
CNIg. O conteúdo e o estilo dos textos são variados, refletindo os diferentes pontos de
vista a partir dos quais um acadêmico, uma representante de organização sindical de
empresários, um representante de organização sindical de trabalhadores, um diretor de
Organização Internacional, uma membro do Ministério Público, um gestor público
expressam e constroem conhecimento sobre o mesmo assunto. Nosso intuito com esta
publicação é revelar parte da polifonia que constitui o fenômeno das políticas
migratórias que não pode ser aprofundado senão a partir de um diálogo multilateral
envolvendo pesquisadores, gestores públicos, lideranças políticas, empresariais e de
trabalhadores.
O demógrafo Duval Fernandes, em coautoria com Juliana Carvalho Ribeiro,
oferece uma visão sistêmica a respeito da nova posição do Brasil em meio aos fluxos
migratórios contemporâneos e alerta para a necessidade de maior atenção à política
migratória nacional. O capítulo, elaborado a partir de sua palestra no Seminário,
analisa as condições de inserção na sociedade e no mercado de trabalho para (a)
brasileiros retornados, (b) imigrantes portugueses e espanhóis e (c) imigrantes
haitianos, identificando contrastes e similaridades entre os diferentes casos. O texto
traz um alerta geral em relação às dificuldades dos imigrantes no tocante à cultura,
documentos, relações de trabalho, acesso a moradia e atendimentos de suas demandas
sociais.
A advogada Marjolaine Canto, representante da CNC no CNIg, escreve em
seu capítulo uma história do Conselho Nacional de Imigração, desde sua criação
formal nos anos 1980, passando por sua implementação no início dos anos 1990,
expansão e reorganização interna na virada para os anos 2000, chegando até o
momento atual e a rediscussão do papel do Conselho. O texto coloca em diálogo as
mudanças políticas e econômicas das últimas décadas com as mudanças na
composição e atuação do CNIg. Atualmente, o incremento de população imigrante,
sobretudo haitiana por razões humanitárias, tem exigido das autoridades brasileiras
algum posicionamento a respeito da presença dessas pessoas. A autora se apresenta
otimista com a revitalização do tema, mas, apresentando o panorama dos projetos de
lei e propostas de políticas para migrações, demonstra que não existe um consenso
entre as instâncias governamentais envolvidas com a realidade dos migrantes.
O sindicalista Valdir Vicente de Barros, representante da CGT no CNIg,
apresenta o ponto de vista dos trabalhadores. Ele começa por resgatar a memória das
muitas migrações de trabalhadores para o Brasil, incluindo africanos escravizados e
também as migrações internas que contribuíram para o crescimento econômico dos
locais receptores. O texto denuncia relações de trabalho análogas à escravidão sendo
vivenciadas por imigrantes atualmente, apresenta as discussões atuais a respeito dos
direitos trabalhistas no âmbito do Mercosul, faz um balanço crítico da atual legislação
migratória brasileira e discute sobre direitos humanos e integração dos migrantes no
Brasil a partir do caso dos Haitianos. Valdir reclama, sobretudo, pelos direitos de ir e
vir e de poder trabalhar.
O Diretor-Adjunto do Escritório da OIT no Brasil, Stanley Gacek, contribuiu
com a transcrição de sua palestra proferida durante o Seminário. Ele faz, ao longo do
texto, uma explanação sobre o estado atual da legislação trabalhista internacional no
âmbito da OIT. Falando desde o ponto de vista de uma Organização Internacional,
Gacek nos apresenta um panorama da política internacional em sua faceta preocupada
com a condição dos trabalhadores pelo mundo. O palestrante defende a ideia de
“trabalho decente” como mecanismo de promoção da cidadania em contextos de
imigração. Ele argumenta que, a despeito das causas da mobilidade, o imigrante
sempre se depara com a questão do emprego e do trabalho decente onde quer que vá.
A Procuradora do Trabalho Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes contribui com
esta publicação discutindo aspectos jurídicos, políticos e filosóficos a respeito da
questão migratória. O capítulo intitulado “Menos nacionalismo e mais direitos
humanos: o papel do MPT diante do trabalho do estrangeiro em situação irregular”
nos faz pensar se o ideal de Nacionalismo é bom para o país, questiona as distinções
por motivo de nacionalidade e as responsabilidades do Estado, defende a igualdade
entre as nacionalidades como fator de promoção dos direitos humanos, oferece
coordenadas para a atuação juridicamente mais acertada em matéria de imigração e
discute o papel do MPT como promotor da ordem jurídica trabalhista e dos direitos
humanos dos imigrantes. Uma questão central debatida por Cristiane Lopes é a
regularização do trabalhador imigrante, sujeito a todo tipo de maus tratos em função
de sua situação irregular. A autora coloca em xeque o pensamento nacionalista e
critica a distinção de acesso a direitos entre os cidadãos nacionais e aqueles não
nacionais.
Inaugurando a seção de Entrevista do “Cadernos OBMigra”, temos uma
conversa com Paulo Sérgio de Almeida, Presidente do CNIg e uma das pessoas
responsáveis pela criação do OBMigra. Paulo Sérgio é gestor público interessado em
melhorar as condições de produção e análise de dados sobre as migrações envolvendo
o Brasil e também os brasileiros no exterior. Ele argumenta que é preciso ampliar a
qualidade dos dados disponibilizados atualmente. O entrevistado aponta para a
necessidade da criação de políticas de acolhimento e estruturas de recepção ao
imigrante, imperativos para lidar com o novo contexto de entrada de cidadãos de
outras nacionalidades a procura de trabalho e melhores condições de vida no Brasil.
Entre outros assuntos, ele avalia a atual legislação para os imigrantes e as recentes
movimentações em torno de uma nova lei, fala sobre os limites e possibilidades de
atuação do CNIg e defende a ampliação e fortalecimento do Conselho como fórum de
discussões e órgão normativo sobre a questão migratória. Para finalizar essa primeira
edição dos Cadernos encontrasse anexo o documento “As Migrações Internacionais
no Brasil sob uma perspectiva jurídica: análise da legislação brasileira sobre
estrangeiros entre os séculos XIX e XXI” o qual se trata de um relatório de pesquisa
elaborado pela pesquisadora Carolina Claro. Esse discerta sobre o panorama histórico
da legislação migratória brasileira.
A equipe do OBMigra expressa aqui sua alegria em oferecer à comunidade de
interessados nos fenômenos migratórios (pesquisadores, gestores públicos, lideranças
sindicais, etc.) uma coletânea de textos que contempla uma pequena amostra da
diversidade de vozes que constitui a realidade do debate sobre políticas migratórias no
presente. Outras publicações para enriquecer as discussões ora iniciadas seguirão.
Almejamos que os “Cadernos OBMigra” sejam legitimados como um meio de
reflexão e aprofundamento do conhecimento sobre o tema. Estamos abertos a
contribuições. Por fim, agradecemos imensamente a colaboração dos palestrantes do
Seminário “Migração Laboral no Brasil: desafios para construção de políticas”.
Migração laboral no Brasil: problemáticas e perspectivas4
Duval Fernandes5
Juliana Carvalho Ribeiro6
Introdução
Diversos autores têm indicado que o Brasil se encontra em um novo patamar
da migração internacional (BAENINGER, 2013; PATARRA, 1996; PATARRA e
FERNANDES, 2011) no qual os processos migratórios não se dão em um único
sentido e com temporalidade restrita. Na verdade a partir do final da primeira década
do século XXI, o país se viu inserido no sistema de migração internacional como país
de origem, destino e trânsito, onde a emigração, a imigração e o retorno acontecem de
forma simultânea.
Esta realidade, ainda não captada por todos os segmentos sociais, indica novos
caminhos para as políticas públicas, principalmente as afeitas à governança
migratória, que passam a ter novo paradigma e não podem ser desenhadas para
atender a somente um dos movimentos, mas devem ser propostas considerando o
cidadão independente da sua situação como imigrante, emigrante ou retornado. As
políticas devem ter como ponto de partida a construção de mecanismos que
contribuam para o processo de integração do cidadão migrante à sociedade brasileira.
No entanto, a ausência de políticas que considerem situações ligadas à
migração internacional levam os imigrantes estrangeiros e retornados a encontrarem
dificuldades semelhantes na chegada ao Brasil no tocante ao trabalho, moradia e
atendimentos de suas demandas na área social. No caso dos imigrantes, ainda há de se
considerar os problemas relacionados ao processo de regularização do seu status
migratório, sempre difícil por conta da arcaica legislação vigente.
4 Texto produzido a partir de apresentação feita no Seminário do Observatório das Migrações realizado
em Brasília (Brasil), em 14 de maio de 2014. 5 Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC-Minas). 6 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Geografia da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC-Minas), bolsista da Capes.
O que se pretende nesse texto é tratar, mesmo que de forma embrionária, de
três situações migratórias que estão na agenda social e política da atualidade.
Primeiramente, a migração de retorno que, mesmo antes da crise econômica iniciada
em 2008, já era perceptível, por conta das diversas ações empreendidas pelos
governos dos países do Hemisfério Norte com vistas a restringir a entrada e
permanência de estrangeiros em situação irregular, e, com o a crise, toma contornos
mais amplos. A segunda situação seria, o aumento do número de estrangeiros que
optam por viver no Brasil, que será tratada sob duas óticas, as experiências de
espanhóis e portugueses que migram após o ano 2005 e, com maior intensidade,
depois do início da crise de 2008 e, por fim, a situação dos haitianos que chegam ao
país no início de 2010 e hoje se constituem em importante grupo de imigrantes.
Retornados
A situação do retorno se resume ao migrante que deixou o país e decide voltar,
por uma infinidade de razões, como a não adaptação ao país que o recebeu,
dificuldades financeiras ou mesmo questões legais, dentre outras inúmeras
possibilidades. Este novo imigrante que volta ao ponto de partida, pode até ocupar o
mesmo espaço físico que cabia a ele antes dele deixar o país, mas nada garante que
ele alcance, pelo menos no curto prazo, a estrutura social anterior (SAYAD, 2000).
Estima-se, o número de brasileiros vivendo no exterior tenha reduzido em
mais de 35%. Em relação aos brasileiros que viviam no Japão, aproximadamente 45%
fizeram a opção pelo retorno, alguns com apoio do governo japonês. No caso da
Europa, mesmo que os números não sejam precisos, o maior impacto foi sentido nos
países da península Ibérica ― Espanha e Portugal ― onde, nos últimos anos, os
pedidos de auxilio ao repatriamento apresentados a instituições internacionais de
apoio aos migrantes7, mais que dobraram. O quadro a seguir (ver tabela 1) mostra,
com base nas informações do Itamaraty, a evolução recente do número de brasileiros
residentes no exterior, nos principais destinos, evidenciando a mencionada redução.
7 Entre 2007 e 2012, o Programa de Retorno Voluntário, administrado pelo escritório da Organização
Internacional para as Migrações (OIM), em Portugal, apoiou o retorno de 2.915 imigrantes, sendo
2.383 brasileiros. O Programa conta com apoio do governo português.
Tabela 1 – Estimativas do número de brasileiros residentes no exterior, nos
países selecionados – 2011 a 2012
País 2011 2012
Variação %
2011/2012
Total
3.122.
813
2.547.
079 -18,4
USA
1.388.
000
1.066.
559 -13,9
Japão
230.55
2
210.03
2 -8,7
Paragua
i
200.00
0
201.52
7 0,5
Espanha
158.76
1
128.00
0 -18,9
Portugal
136.22
0
140.00
0 2,9
Fonte: Itamaraty
Se o impacto desse retorno na região de origem (antigo destino, ou seja, país
que recebeu o imigrante brasileiro) não é muito relevante ― salvo em comunidades
muito específicas ―, por outro lado, na nova região de destino (que recebe o
retornado), o retorno tem contribuído para transferir a essas localidades a crise
observada nos países centrais. Há de se considerar também que o processo de retorno
tende a reduzir as remessas e com isso impactar na economia local via a
desarticulação de cadeias produtivas que atendiam aos investimentos dos emigrantes
na sua terra natal, como a construção civil.
A dificuldade de readaptação ao espaço e de reintegração à sociedade são os
grandes entraves ao retornado, que acaba se traduzindo em um peso econômico para o
seu país. Quanto mais longo o período de permanência no exterior, maiores são as
dificuldades para conclusão desta última etapa com sucesso. No local que vivia antes
da sua emigração, por mais isolado que ele possa ser, a vida continuou e as mudanças
que ele irá encontrar quando do seu retorno, fazem desse local ― antes conhecido e
sempre presente no imaginário do retornado ―, quase outro país no qual o processo
de adaptação será, muitas vezes, mais penoso do que o vivenciado no exterior.
Apesar de todos os benefícios que a experiência no exterior garante ao
retornado, ele tem grande dificuldade de se readaptar. Acredita-se que o tempo
passado fora de seu país, em contato com outra cultura, outros hábitos, outros
costumes, garante ao retornado uma rica vivência, a partir da qual são desenvolvidas
novas habilidades. Além disso, os bens adquiridos no exterior e o estilo de vida
experimentado naquele país podem ser considerados capitais financeiro e humano a
ser realizado no seu país, quando do retorno. Porém, esta bagagem adquirida no
exterior, muitas vezes, acaba se traduzindo em entraves para a sua readaptação e, até
mesmo, pode estimular uma nova migração, quando este capital humano não se
realiza ou não é “investido” na nova região de destino.
O exemplo mais claro dessa dificuldade está no reconhecimento de
certificados e diplomas adquiridos no exterior, fato que atinge também os imigrantes
no Brasil. A não existência de protocolos para avaliação dos cursos e a insistência de
tratar cada processo individual como um caso autônomo, retarda ou impede que o
retornado possa efetivamente utilizar seu capital humano adquirido no exterior.
Outra importante perspectiva que envolve retornados e implica em crise para a
localidade que o recebe quando do seu retorno é a influência que eles exercem sobre
as pessoas que vivem neste local. A simples presença física na cidade de origem
daquele que em momento passado teria partido, pode contribuir para estipular novas
migrações ou mesmo servir como fator relevante na mudança de planos.
Assim, os retornados ocupam posições estruturais fundamentais para a
organização e a sustentação dos sistemas de migração. As redes pessoais contribuem
para o recrutamento, para o agenciamento e para o suporte aos novos migrantes.
Justifica esta realidade o fato das experiências serem apresentadas e filtradas com a
intenção de mostrar sucessos, mesmo em situações que foram adversas.
Para a maioria dos organismos internacionais, o retornado é visto como um
potencial empreendedor e motivador do desenvolvimento local. Os recursos
acumulados no exterior e a vivencia em outro país são considerados instrumentos para
novos investimentos na terra natal. Porém, a realidade, muitas vezes, é diversa à
apresentada. O pouco ou nenhum conhecimento sobre o gerenciamento de
empreendimentos, aliado a perfis pessoais que só vivenciaram funções subalternas no
mercado de trabalho, contribuem para o elevado nível de fracasso e de frustrações.
Tal situação indica que para um retornado sem muita perspectiva e pouco
conhecimento da realidade que o aguarda na sua chegada o empreendedorismo não é
uma opção (OIM, 2013). Contribuindo ou não para o seu país, no seu retorno, o
sujeito não pode contar com políticas públicas eficazes. Este retorno, inclusive, gera
como desafio o desenvolvimento de políticas sociais, já que inexistem políticas
explícitas e eficientes para atender aos migrantes retornados. O que se encontra são
ações pontuais e voltadas para determinados seguimentos, o que não atende este
universo crescente.
A invisibilidade do retornado, porém, dificulta o equacionamento de políticas
públicas. Não há informações para o retornado que viabilizem sua mais rápida
adaptação, bem como o Estado não tem acesso a informações concretas e substanciais
sobre o retornado. A falta de informações do Estado para o retornado e sobre o
retornado fazem as políticas públicas inexistentes ou inexequíveis, tornando a
situação desses sujeitos ainda mais vulnerável.
Imigrantes estrangeiros: destaque para portugueses e espanhóis
Em relação à chegada de estrangeiros no Brasil, devem-se considerar não só os
problemas dos países de origem afetados pela crise econômica, mas também a
situação da economia brasileira em época recente. Ao se considerar o período dos
últimos 20 anos, a economia brasileira passou por profundas transformações, no qual
o combate à inflação, prioridade maior da segunda metade do século XX, cede lugar
às políticas voltadas para o crescimento econômico e para a inclusão social.
Em meados dos anos 1990, a implantação do Plano Real8 abriu espaço para o
crescimento econômico sustentado do Brasil. A este período seguiu-se o de um
Governo com tendência neoliberal9 que aplicou um vasto plano de privatização de
empresas públicas, principalmente na área de telecomunicações, que passaram a ser
geridas por capital estrangeiro. Nesse período, as taxas de crescimento da economia
não foram elevadas e, durante certo tempo, até nulas. No entanto, essas ações foram
decisivas para a entrada do país no mercado globalizado.
8 Plano de estabilização econômica implantado em 1994, que obteve sucesso no combate à inflação,
situação que se tornava endêmica no Brasil. 9 Governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, cujos mandatos foram de 1995 a 1998 e de 1999
a 2002.
Ao se iniciar o século XXI, foi eleito um presidente10
que propunha um
programa de governo calcado na inclusão social, com abertura ao diálogo com a
sociedade e que deu especial atenção à questão migratória. Quando acontece a crise
mundial em 2008, o país estava em plena efervescência econômica, via investimentos
privados e governamentais na área da construção civil pesada11
e da prospecção de
petróleo12
. Ao mesmo tempo, a política de transferência de renda e inserção laboral de
uma parcela da população que se encontrava marginalizada, contribuiu para a criação
de considerável mercado interno que ampliou o poder de compra da população. Essa
situação permitiu que o impacto da crise econômica mundial, iniciada em 2008, fosse
pouco sentido e que, nos anos seguintes, as taxas de crescimento do PIB levassem o
país a ocupar um lugar de destaque no cenário da economia mundial.
É nesse contexto que deve ser entendida a imigração que tem como destino o
Brasil e principalmente a atração pela mão de obra qualificada, que conduz ao país
um contingente expressivo de estrangeiros.
Os registros da Coordenação Nacional de Migração do Ministério do Trabalho
e Emprego permitem avaliar alguns aspectos da migração laboral mais recente. A
partir de 2009, o número de estrangeiros que solicitam autorização de trabalho ao
governo brasileiro tem aumentado, em média, 25% ao ano, passando de 42914, em
2009, para 70524 em 2011, chegando a 73022 em 2012 e reduzindo para 65693 em
2013. A participação das mulheres é ainda muito acanhada, apesar do ligeiro aumento
de 8,8% do total de autorizações de trabalho concedidas em 2009, para 10,3% em
2012.
Nem toda migração, no entanto, é registrada pelos órgãos de governo e a
situação de irregularidade acontece com certa frequência. O procedimento é sempre o
mesmo: chega-se com visto de turista, com prazo de 90 dias, e parte-se para a busca
de trabalho.
Vim para o Brasil em finais de 2005, estou aqui de 7 para 8
anos. Entrei como turista, posteriormente eu fiquei 3 meses, nesses
3 meses consegui trabalho. Obviamente não era um trabalho
10
Luís Inácio Lula da Silva, cujos mandatos foram de 2003 a 2007 e de 2008 a 2011. 11
A construção de obras para atender a Copa do Mundo de 2014, as Olimpíadas de 2016 e a expansão
da produção de energia elétrica. 12
Nos investimentos para a prospecção de petróleo, destaca-se a exploração dos campos do pré-sal.
regularizado, findos estes 3 meses eu pedi uma prorrogação para os
6 meses, permitido. (Imigrante português/RJ).( ICMPD-2013)
Outra forma de garantir a permanência no país, sem cair na irregularidade
migratória é pleitear um visto de estudante e, uma vez estando em solo brasileiros
inicia a busca por um posto de trabalho.
Mesmo que encontre trabalho o imigrante não pode exercer a atividade de
forma regular por duas razões, a primeira pelo fato de não ter a autorização de
trabalho e, mesmo que a tenha, deverá ter o seu diploma validado no Brasil. Tal
situação atinge tanto aos estrangeiros como os brasileiros retornados que tem de
passar pelo processo de homologação de diplomas obtidos no exterior. Esse processo
é demorado e, dependendo da profissão, tem elevado custo. Tal situação contribui
para a vulnerabilidade laboral dos imigrantes.
Tive uns 7 empregos, houve certos trabalhos que eu entrava
e fazia parcerias com as pessoas para fazer trabalhos específicos.
E findos esses trabalhos normalmente seriam escritórios pequenos
que tem trabalhos temporários, eu ficava sem trabalho. Mais a
maioria do tempo trabalhava com empresas grandes. Nas empresas
grandes também possuía trabalho informal. Na arquitetura, a
maioria dos trabalhos são informais. Isso é uma característica da
profissão, em Portugal isso é uma coisa corriqueira também
(Imigrante português/RJ).(ICMPD – 2013)
A não regularização tem fortes reflexos na vida e no cotidiano dos imigrantes,
pois impede o acesso à conta bancária, uma vez que não é possível conseguir o CPF, e
dificulta o acesso à moradia onde o imigrante irá depender de algum amigo ou parente
para afiançar o aluguel de um imóvel.
Apesar da legislação brasileira permitir a regularização de um imigrante que
esteja no país, as possibilidades de se obter sucesso não são muito grandes. Mesmo
que consiga o seu intento o estrangeiro deverá deixar o país para retirar o visto em
uma representação consular brasileira no exterior.
A principal dificuldade é conseguir um dos quatro requisitos
para o visto: ter um filho brasileiro, casar com brasileiro(a),
conseguir um trabalho ou fazer um investimento. Estes são os
caminhos na legislação brasileira. Se não conseguir as primeiras
três, terei que pensar no quarto requisito, fazer investimento.
(Imigrante espanhol/SP).(ICMPD – 2013)
Os relatos levantados pela pesquisa do ICMPD (2013) contribuem para traçar
o perfil desse novo imigrante internacional. Geralmente são jovens que estavam em
situação de desemprego ou subemprego no país de origem. Na maioria dos casos tem
grau de ensino superior, mas pouca possibilidade de regularizar a sua situação laboral.
Assim, utilizam de subterfúgios como o visto de turista ou mesmo de estudante para
permanecer no país de forma regular. Apesar das dificuldades causadas pela situação
de transitoriedade, como o acesso a bancos ou mesmo a outros serviços, a maioria
avalia que a opção de emigrar para o Brasil foi acertada e, alguns, relatam que são
foco de discriminação positiva por serem estrangeiros que observam tanto em relação
ao pagamento recebido como no reconhecimento da atividade que exercem.
A imigração haitiana
Ao mesmo tempo em que acontece a imigração internacional em direção aos
grandes centros urbanos do país, em busca de postos de trabalho com melhor
remuneração, outro processo tem inicio nas fronteiras do Brasil com os países da
América do Sul. Nesse grupo de imigrantes estão sul-americanos que
tradicionalmente optam por residir no país e, em período mais recente, fazem o trajeto
respaldados nos acordos de livre transito no âmbito do MERCOSUL. No entanto, a
partir de 2010, a presença de nacionais de país outros que os da América do Sul se faz
notar, como senegaleses, bengalis e outras nacionalidades, principalmente haitianos,
cujo fluxo iniciado após o terremoto de 2010 tomou contornos de um processo
migratório com características que indicam a sua continuidade por um longo período.
Considerando a história migratória do Haiti, a incorporação do Brasil no
roteiro migratório não é uma surpresa muito grande, mas chama a atenção por se
tratar de um novo destino que não era incluído nas escolhas anteriores dos imigrantes.
Pode-se dizer que após o terremoto estavam presentes no país com maior vigor os
fatores de expulsão que contribuem a criação e ampliação de uma diáspora
(JACKSON, 2011).
Para a escolha dos destinos havia de se considerar a legislação migratória dos
países desenvolvidos que, após setembro de 2001, impõem severas restrições à
imigração de uma maneira geral e, em especial, à migração irregular. As razões para a
incorporação do Brasil na rota do processo migratório dos haitianos, não são muito
claras, alguns autores (FERNANDES, 2010; SILVA, 2013) indicam que a presença
das tropas brasileiras no Haiti poderia ter contribuído para disseminar a ideia do
Brasil como país de oportunidades, principalmente no momento em que grandes obras
estavam em execução e a taxa de desemprego em descenso.
Independente da razão inicial, o fato é que após o terremoto teve inicio o fluxo
migratório de haitianos para o Brasil. Os trajetos são diversos (PATARRA,
FERNANDES, 2011; SILVA, 2013) e vão se alterando no tempo conforme as
facilidades ou dificuldades oferecidas no caminho. Importante notar que dos países da
América do Sul, somente quatro13
, em 2010, não exigiam visto para a entrada de
haitianos no seu território no caso de viagem de turismo. A partir de 2012, sob forte
pressão do governo brasileiro, o Peru passou a exigir visto dos haitianos e no Equador
houve, em 2013, uma tentativa de restringir a entrada dos haitianos, mas a medida não
foi implementada. Mesmo com estas facilidades, nenhum destes países tornou-se um
importante ponto de destino final da imigração haitiana, como foi o caso do Brasil.
Tal fato pode indicar que esta migração não é gestada unicamente pelas facilidades de
entrada no país, como preconizam os que criticam as medidas tomadas pelo governo
brasileiro, mas é determinada também pela intenção de chegar e de se estabelecer na
região de destino.
Durante o ano de 2010 pequenos grupos de haitianos, que não somavam duas
centenas de imigrantes, chegaram à fronteira brasileira com o Peru. Ao final de 2011
havia indicações da presença de mais de 4.000 haitianos no Brasil (COSTA, 2012;
SILVA, 2013), número este que não cessou de aumentar, sendo que ao final de 2013
estimava-se que o montante já teria ultrapassado a casa dos 20.000 imigrantes, com
indicações de que o número total poderia chegar a 50.000 ao final de 2014.
Tal fluxo fez com que a percepção da presença dos haitianos fosse vista com
certa desconfiança por parcela da sociedade, neste grupo se inclui alguns órgãos da
13
Argentina, Chile, Equador e Peru.
impressa nacional que comparam à chegada dos imigrantes a uma invasão14
. Por outro
lado, este movimento migratório teve também efeito positivo de levar o governo e a
sociedade civil a iniciar um processo de discussão da legislação migratória,
introduzindo nos debates a visão do respeito aos direitos humanos dos imigrantes. Ao
mesmo tempo, foi possível avançar no estabelecimento de laços de solidariedade
entre diversos setores da sociedade no acolhimento e atendimento aos haitianos.
No âmbito dos governos federal, estadual e municipal, nas cidades mais
afetadas pela chegada destes imigrantes, as respostas institucionais foram diversas.
Enquanto o governo do estado do Acre se engajava em apoiar a montagem da
estrutura de atendimento aos haitianos que chegavam à cidade de Brasiléia, o governo
do estado do Amazonas, especificamente no caso das cidades de Tabatinga e Manaus,
a princípio ignorou o problema e posteriormente deu pequenas contribuições para
manter as ações da sociedade civil (SILVA, 2013). Estas diferenças nas respostas dos
governos estaduais refletem um pouco a percepção das autoridades sobre o problema
e seus compromissos com os direitos humanos dos imigrantes.
No plano federal, as respostas foram mais efetivas, mas mesmo assim, pouco
ordenadas, com medidas tomadas para solucionar situações pontuais extremas que
não contribuíam em um planejamento, mesmo de curto prazo, para atender às
demandas surgidas com o volume crescente de imigrantes haitianos.
Após o trajeto até a fronteira brasileira, os haitianos ainda têm de enfrentar um
longo processo para a regularização da sua situação migratória. O ponto de partida é a
solicitação de refugio apresentada à autoridade migratória nas cidades fronteiriças. A
abertura deste processo leva a emissão de um protocolo que permite ao imigrante a
obtenção de carteira de trabalho e de CPF provisórios, enquanto a solicitação de
refugio é analisada pelo CONARE15
. Tais documentos são essenciais para o ingresso
do imigrante no mercado formal de trabalho e o envio de remessas. Por tal solicitação
de refúgio não se enquadrar nos requisitos definidos em lei e convenções
internacionais, ela é recusada. Ante esta situação que levaria à permanência irregular
dos haitianos no Brasil, o CONARE repassa ao Conselho Nacional de Imigração os
processos que analisa a situação de cada requerente. Em 2011, com base na Resolução
14
Jornal O Globo do dia 17/01/14 País “Tião Viana, do PT, critica governo federal após invasão de
haitianos”. Jornal O Globo 11/01/12 Capa “Brasil fecha fronteira para conter „invasão‟ de haitianos” 15
CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados
Normativa nº 2716
, o CNIg cria procedimentos para autorizar a permanência de
haitianos no Brasil. No entanto, este processo não teve o resultado esperado e frente a
chegada de contingentes cada vez mais expressivos de haitianos na fronteira da
Região Norte foi necessário criar medidas que permitissem a migração de forma
regular, sem a necessidade de se fazer esse trajeto. Assim em janeiro de 2012, o CNIg
edita a Resolução Normativa – RN nº 97, que permite a concessão de visto
humanitário permanente, pelo prazo de cinco anos, aos imigrantes haitianos. Este
visto seria expedido pelo Consulado Brasileiro na cidade de Porto Príncipe, no Haiti,
sendo, no entanto, o número de vistos restrito a 1.200 por ano. Não incluído neste
total os vistos para reunificação familiar. Está Resolução tinha prazo de vigência de
dois anos.
Ao se avaliar a aplicação desta RN (FERNANDES ET ALLIS, 2013), observa-
se que apesar da louvável tentativa de solucionar um problema que tomava
proporções de calamidade pública, quer nas cidades fronteiriças quer nas que atuavam
como polo de atração desta migração, como a cidade de Manaus, o efeito esperado
não foi alcançado. Não houve redução da chegada de imigrantes haitianos ao Brasil
via a fronteira norte e o número de vistos emitidos pelo Consulado, 100 por mês, não
conseguia atender à crescente demanda. Em novembro de 2012, todos os
agendamentos para a concessão de vistos em 2013 estavam completos e o Consulado
abriu uma lista de espera. Assim, ao final de 2012, voltava-se a repetir na fronteira a
situação observada antes da promulgação da RN nº 97, com a superlotação do abrigo
construído para acolher os imigrantes na cidade de Brasiléia e, em Porto Príncipe,
formavam-se gigantescas filas na porta do Consulado Brasileiro composta por pessoas
que esperavam obter o visto de entrada no Brasil.
Tentando contornar a situação no Consulado, o Governo, por meio da RN nº
102, em abril de 2013, retira a limitação do número de vistos aos haitianos que não
mais ficariam restritos a 1.200, permitindo também a sua concessão em Consulados
Brasileiros em outros países, além do Haiti. A última alteração a RN nº 97 acontece
em outubro de 2013, quanto a o seu prazo de vigência, que encerraria em janeiro de
2014, foi prorrogado por mais um ano.
16
Resolução Normativa nº 27, de 25 de novembro de 1998, que disciplina a avaliação de situações
especiais e casos omissos pelo Conselho Nacional de Imigração. Essa Resolução considera como
“situações especiais” aquelas que, embora não estejam expressamente definidas nas Resoluções do
Conselho Nacional de Imigração, possuam elementos que permitam considerá-las satisfatórias para a
obtenção do visto ou permanência; e como “casos omissos” as hipóteses não previstas em Resoluções
do Conselho Nacional de Imigração
Ao se analisar os resultados das medidas tomadas pelo governo federal fica
claro que elas não conseguiram alcançar os objetivos propostos, inicialmente, quando
da analise da questão pelo CNIg, no momento da aprovação da RN nº 97.
“[...] o controle da atuação dos coiotes na fronteira norte
brasileira; a abertura de um canal para a concessão de vistos de
forma mais simples; a regularização da situação migratória dos
cerca de quatro mil haitianos que já se encontram em território
brasileiro; e o envio de auxílio material para alojamento,
alimentação e cuidados de saúde para esses imigrantes nos estados
do Acre e do Amazonas” (CNIg, 2012).
Pelo contrário as medidas tiveram o efeito de estimulo à migração. A atuação
dos coiotes tem se ampliado com o estabelecimento de rede de tráfico de imigrantes
por todo o trajeto que inclui a passagem pelo Equador e Peru. Tal fato contribui para
que o número de imigrantes chegados às cidades fronteiriças venha se ampliando não
só em volume, mas também pela incorporação de novas rotas via Venezuela, Bolívia
e Argentina. Uma vez mais, no inicio de 2014, a situação na cidade de Brasiléia
mostrou-se caótica com a presença de mais de 1.200 haitianos aguardando o
atendimento para a regularização da sua situação migratória ou uma oportunidade de
trabalho, via a contratação por alguma empresa que chegue à cidade em busca de
trabalhadores.
Considerando informações disponíveis nos registros administrativos dos
Ministérios do Trabalho e das Relações Exteriores é possível traçar, mesmo de forma
preliminar, o perfil desses imigrantes. No entanto, por serem dados de órgãos públicos
e levantados junto a registros administrativos, mais voltados para atender à
procedimentos internos de cada setor, o que aqui é apresentado deve ser considerado
com cautela.
Segundo os registros do Conselho Nacional de Imigração – CNIg do
Ministério do Trabalho, as mulheres representam, aproximadamente 20% do total dos
imigrantes haitianos que receberam permissão de residência no Brasil. Mas a
participação das mulheres vem aumentando, principalmente pelo aumento dos vistos
para reunião familiar. Em relação à idade, mais de 30% destes imigrantes estão
concentrados na faixa etária de 25 a 29 anos, seguida daqueles no grupo etário 30 a 34
anos, que representam, aproximadamente, 25% da população em estudo, conforme
demonstra a figura 1 a seguir.
Figura 1 - Pirâmide Etária dos haitianos demandantes de visto nas
representações consulares do Brasil - 2013
Fonte: MRE. Dados coletados até 29/08/13
Os registros do Ministério das Relações Exteriores indicam que,
aproximadamente, 80% dos imigrantes haitianos que solicitaram visto nas
representações consulares brasileiras se declararam solteiros. Em relação à ocupação
que tinham no Haiti, mais de 50 % dos homens indicou estar exercendo alguma
atividade no setor da construção civil. No caso das mulheres a área de serviços é que
mais absorvia mão de obra, seguida pelo comércio.
Em relação ao local de residência dos imigrantes haitianos no Brasil, os dados
da Polícia Federal indicam 267 municípios. No entanto, 18 deles receberam mais de
75% desses imigrantes, como indica a figura 2 a seguir. Os maiores destaques são por
conta de São Paulo com 24% do total e Manaus com 13%.
Figura 2 - Proporção de imigrantes haitianos por cidade de residência Brasil
Janeiro de 2010 a Março de 2014
Fonte: SINCRE - Sistema Nacional de Cadastramento e Registro de
Estrangeiros/DPF
Considerando informações disponibilizadas pela OIM (2014) observa-se que
em relação à instrução não há uma diferença muito grande entre homens e mulheres
em termos do grau de instrução nos níveis mais elevados. 42,1% dos homens
indicaram um grau de ensino no mínimo secundário completo, enquanto, 43,2% das
mulheres indicaram a mesma situação.
No entanto, ao se somar os que declaram ter segundo grau completo e
incompleto, 50,8% das mulheres estariam nessa situação contra 41,8% dos homens.
Como observado em outros países (GÓIS, 2009) a migração dos haitianos para
o Brasil seguiu o padrão onde aqueles com maior qualificação predominavam no
primeiro grupo que chegou em 2010 e 2011. As informações disponibilizadas pela
OIM (2014) indicam que nos anos seguintes, houve o crescimento da participação
daqueles que, apesar de um menor nível de instrução, estavam, antes de emigrar, em
ocupações técnicas, em sua maioria na área da construção civil. No entanto, em
momento recente, observou-se a ampliação do número de pessoas com mais baixo
nível de instrução dentre aqueles que chegam ao país. A pouca instrução, as
dificuldades com o aprendizado da língua portuguesa e a impossibilidade de
0% 5% 10% 15% 20% 25% 30%
outros
Pato Branco
Chapecó
Balneário Camboriu
Sorocaba
Cuiabá
Navegantes
Itajaí
Bento Gonçalves
Pinhais
Esmeraldas
Contagem
Macapá
Cascavel
Caxias do Sul
Curitiba
Porto Velho
Manaus
São Paulo
conseguir a equivalência de diplomas, tem contribuído para que parcela importante do
contingente de imigrantes haitianos se engaje em ocupações que exigem pouca
qualificação, como na construção civil, em atividades auxiliares ou em linhas de
montagem industrial. Em se tratando das mulheres, a situação é mais delicada, pois ao
lado das dificuldades com o idioma, soma-se a pouca oferta de postos de trabalho para
as mesmas. As ofertas de emprego são, em sua maioria, no setor de serviços
domésticos, onde há necessidade de maior interação patrão e empregado, dificultada
pela barreira linguística (OIM, 2014).
Por outro lado, a avaliação dos empresários sobre o trabalho dos haitianos tem
mostrado aspectos contraditórios, enquanto a maioria tem um discurso positivo – “os
trabalhadores haitianos faltam pouco ao trabalho, não se envolvem em situações de
conflito com colegas e superiores hierárquicos” – outro conjunto de empresários
indica que eles não se adaptam ao ritmo de trabalho exigido – “os haitianos são mais
„moles‟ para realizar tarefas e apresentam um ritmo muito diferente dos brasileiros”
(OIM, 2014).
Ainda segundo o levantamento da OIM (2014), os postos de trabalho
ocupados pelos haitianos são, na maioria dos casos, de baixa remuneração, com
salários que variam entre um a um e meio salário mínimo. Ao considerar os gastos
para se manter no Brasil, a maioria dos imigrantes, não consegue poupar o suficiente
para enviar remessas às famílias e pagar as dívidas contraídas com os coiotes para
fazer a viagem. Tal situação leva alguns a dividir moradias insalubres e a reduzir os
gastos ao mínimo necessário para sobreviver, fazendo a estadia no país de destino ser
pior do que a situação vivenciada no Haiti.
Em uma ampla visão desse processo observa-se que, apesar de todas as
medidas tomadas pelo governo, algumas louváveis como a RN nº 97, a questão da
migração dos haitianos para o Brasil ainda é um problema que necessita de uma ação
coordenada e não de ações pontuais. Não se pode colocar ênfase em uma só direção,
como a regularização do status migratório, mas tem de se pensar em políticas que
possam permitir a integração dos haitianos na sociedade brasileira, como assim,
fizeram vários outros imigrantes que aqui chegaram no passado.
Trata-se, sem a menor sombra de dúvida, de um processo longo e que deverá
contar com a participação da sociedade civil e do governo, que agora tem pela frente a
responsabilidade de dar respostas às demandas da comunidade dos haitianos e levar o
país a se tornar um exemplo no respeito aos direitos humanos dos imigrantes.
Considerações finais
Se, de meados do século XIX até o início da 2ª Guerra mundial, o Brasil
poderia ser rotulado como país de imigração, e como país de emigração nas décadas
de 1980 e 1990, na atualidade, nenhum destes rótulos se aplicaria. Na realidade, o
país está hoje inserido no sistema da migração internacional, sendo, ao mesmo tempo,
ponto de origem, de destino e de trânsito de migrantes.
Neste cenário, a chegada de migrantes ao Brasil não pode ser analisada como
algo corriqueiro, sem qualquer problema para os sujeitos envolvidos, bem como para
as nações envolvidas ― a de origem dos migrantes e a de destino dos mesmos.
A grande dificuldade encontrada pelos imigrantes no Brasil é a sua inserção na
sociedade brasileira. Hábitos diversos e, principalmente, o idioma, são, em alguns
casos, barreiras intransponíveis. O que se percebe é que a convivência entre os
imigrantes de mesma origem acaba sendo, na maior parte das vezes, circunscrita ao
próprio grupo onde estão inseridos. São, em regra, majoritariamente deslocados do
convívio com a população brasileira.
Com isso, os imigrantes mostram dificuldades de se apropriarem do espaço e
de reproduzi-lo a seu favor. A apropriação do espaço potencializa o movimento de
interligação entre a história individual do sujeito e a história coletiva. Diógenes (2003,
p. 189) defende que no “[...] corpo [...] se coloca a possibilidade de transbordamento,
de desfiguração das fronteiras entre o individual e o social”, o que grifa a distância
entre os imigrantes e a sociedade brasileira.
Ao mesmo tempo em que se grifa a dificuldade de apropriação do espaço,
compreende-se a não concepção das cidades brasileiras enquanto lugar17
para os
imigrantes, se os lugares são “[...] uma porção do espaço em que os homens se
reconhecem. Reconhecem a sua história, o seu ambiente, o seu universo de relações,
experiências, lembranças, desejos, conflitos, vivências.” (MELO, 2006, p. 65).
O convívio socioespacial, que ajudaria na construção de uma identidade entre
esses sujeitos e a sociedade brasileira, é ainda dificultado pela limitação financeira
dos imigrantes. Com a indústria do lazer consolidada, tornam-se cada vez mais
17
Concebe-se aqui o termo lugar enquanto categoria socioespacial, muito empregada pela geografia
para remeter a um local com o qual se estabelece laços afetivos, sentimentos de pertencimento, vínculo,
identidade.
dispendiosos os momentos de lazer. “Concomitante, observa-se também a redução
dos espaços de sociabilidade aos espaços de consumo. O que acaba por condicionar a
acessibilidade à cultura e ao lazer ao poder econômico, forjando nichos de reunião
entre iguais.” (SENRA, 2009, p. 6). Muitas vezes, a renda dos imigrantes é, em sua
maior parte, destinada aos seus familiares que ficaram no país de origem. Dessa
forma, eles se veem impossibilitados de investir em práticas sociais, sendo privados
de lazer.
A dificuldade da inserção e do convívio dos sujeitos estrangeiros com a
sociedade brasileira pode se refletir, ainda, nas condições de trabalho desses
imigrantes. A condição migratória, muitas vezes, acarreta um problemático vínculo
com a atividade de trabalho. Há limitações para a comunicação entre eles e os colegas
de trabalho brasileiros, bem como entre eles e os gestores da empresa que os emprega.
Diferenças culturais também podem se impor enquanto entraves, uma vez que podem
interferir na rotina, no cotidiano desses sujeitos e, dessa forma, pode vir a
comprometer a dinâmica da empresa. Esse vínculo laboral torna-se ainda mais
precário quando se toma por base imigrantes com baixa escolaridade. Por esses
motivos, eles podem vir a desenvolver estresse pela dificuldade de adaptação.
A própria condição de vida desses sujeitos, enquanto imigrantes, estrangeiros,
sujeitos de outra cultura, que falam e entendem outra língua, mais uma vez podem
interferir no seu cotidiano, pois os submete, salvo raras exceções, a piores alternativas
no mercado de trabalho, inferiorizando-os.
Por outro lado, como, muitas vezes, imigrantes desqualificados se concentram
onde o índice educacional também não é alto entre os brasileiros da região, eles
tornam-se mais competentes para desempenhar certas funções quando comparados a
esses brasileiros. Esse fato acaba acarretando dificuldades para os nativos e
estranhamento entre os brasileiros e os imigrantes. A economia local, inclusive, pode
sentir reflexos dessa situação, o que não é interessante para o país que recebe esses
sujeitos.
Todo o exposto se mostrou como uma preocupação do Sr. Odilon dos Santos
Braga, Conselheiro do CNIg representando a Central dos Trabalhadores e
Trabalhadoras do Brasil (CTB), quando defendeu que “o debate não deve perder de
vista a necessidade de que sejam preservados os interesses do trabalhador brasileiro e
o impacto dessa necessidade nas medidas que porventura venham a ser adotadas.”
(Ata da Reunião Extraordinária do CNIg 12/01/2012, p. 3). Assim, ele expõe a
importância do Estado se ater às duas partes, favorecendo a inserção do imigrante,
sem trazer qualquer dano social e profissional aos brasileiros.
Este novo paradigma migratório brasileiro não foi totalmente assimilado pela
sociedade e seus representantes. Imposto esse cenário, as intervenções do Governo
brasileiro nesse processo migratório tornam-se ainda mais urgentes e imprescindíveis,
considerando o constante e grande fluxo de imigrantes que entram dia após dia no
país. Esse movimento migratório configura uma situação delicada para o Governo ―
e para a sociedade brasileira ―, consistindo em desafios para a sua governança, em
termos da migração internacional em direção ao país, que, se bem gerido, pode se
traduzir em amplos benefícios para o país receptor.
Porém, propostas de reformulação de instrumentos jurídicos que tratam da
migração ― como a Lei nº 6815, também conhecida como Estatuto do Estrangeiro,
um dos últimos resquícios do período ditatorial ― não encontram respaldo entre a
classe política. O Projeto de Lei nº 565518
, apresentado em 2009, serve de exemplo,
pois em quase cinco anos de tramitação no Congresso Nacional ainda não conseguiu
vencer as fases iniciais do processo para a sua aprovação..
Na área do Executivo, por sua vez, a questão migratória é tratada de forma
excepcional. Medidas são tomadas para atender demandas emergenciais, sem a devida
avaliação dos desdobramentos das ações. Uma proposta de política migratória
preparada pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e encaminhada, em 2010, à
Casa Civil da Presidência da República, ainda não mereceu qualquer atenção.
O conjunto de medidas tomadas pelo Governo, em lugar de permitir traçar
uma política migratória que respeite os direitos humanos dos imigrantes, tem levado a
situações de criação de privilégios para algumas nacionalidades, como os haitianos,
enquanto os nacionais de outros países devem seguir procedimentos morosos, como
os relacionados à obtenção de documentação para sua inserção no mercado de
trabalho.
Neste escopo, perde o Brasil, já que, ao mesmo tempo em que é possível
listarmos uma série de limitações das migrações para o país de destino desses sujeitos,
uma infindável lista de vantagens acompanha a chegada dos mesmos. Uma primeira
18
O PL 5655/2009 “dispõe sobre o ingresso, permanência e saída de estrangeiros no território nacional,
o instituto da naturalização, as medidas compulsórias, transforma o Conselho Nacional de Imigração
em Conselho Nacional de Migração, define infrações e dá outras providências.”. Informação extraída
do sítio da Câmara dos Deputados, cujo acesso foi feito em 11 de agosto de 2014:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=443102.
vantagem garantida, entre as diversas que se descortinam nesses fluxos, são de cunho
econômico, mais propriamente vantagens ao capital. A possibilidade de suprir lacunas
no mercado de trabalho brasileiro, nos postos de difícil incorporação da mão de obra
local.
Ainda tomando os aspectos positivos, o discurso para justificar a atratividade
se volta para o público como prática de uma função social. Ao empregar imigrantes ,
o Brasil, via as empresas privadas, pode se projetar, perante o mundo, enquanto
sensível às dificuldades desses países de origem . A solidariedade é, sem dúvida,
concebida de forma extremamente positiva pelas grandes nações, o que pode se
traduzir em ganhos para o Brasil.
Porém, para isso, há demandas que devem ser atendidas pelo governo
brasileiro. Uma delas seria maior eficiência para conclusão do processo de
regularização, ajudando os imigrantes estrangeiros a conseguirem os documentos
mais rapidamente. Outra intervenção que poderia ter o Estado seria no que tange o
mercado de trabalho. Os imigrantes estrangeiros precisam de ajuda para conquistar
uma vaga profissional, para encontrar uma moradia digna e para reduzir os custos das
remessas que empreendem.
Uma alternativa para consolidar tais propostas é a manutenção de diálogos
regulares entre os governos dos países envolvidos, buscando as soluções para os
problemas e visando benefícios para suas populações. Desta forma, o fluxo migratório
se vê cada vez mais distante de lacunas e limitações traumáticas.
Com a vinda desses sujeitos, o Brasil se torna o palco para o desenho de uma
nova história. Os migrantes, que muitas vezes se deslocam, deixando seus países por
questões socioeconômicas, configuram, com a iniciativa da migração, um cenário de
busca de um ideário, de vida nova, com perspectivas de melhoria da qualidade de vida
de cada um deles, bem como de seus familiares.
Nessa dinâmica, a cada dia, são construídas novas ideias, novos percursos,
novas perspectivas. “O processo social está sempre deixando heranças que acabam
constituindo uma condição para as novas etapas.” (SANTOS, 2002, p. 140). A partir
da decisão de deixarem seu país rumo ao Brasil, desenham novas etapas das suas
vidas, e, muitas vezes, conseguem, mesmo que de forma limitada, trilhar caminhos
que os garantem maior retorno financeiro que tinham no seu país.
O país de destino, ao mesmo tempo, também garante ganhos com a chegada
dos migrantes, uma vez que esses sujeitos geram riquezas nos locais que os acolhem:
eles trabalham, estudam, consomem e não representam peso financeiro para o Estado,
Independentemente dos benefícios que o país pode alcançar com a chegada dos
imigrantes, o século XXI expõe como desafio a necessidade de sensibilizar as
populações acerca do respeito às diferenças, da convivência entre os povos e da
aceitação do pluralismo cultural, tendo em vista o intenso e constante fluxo migratório
internacional da contemporaneidade. O mundo globalizado potencializa a necessidade
de trocas ― culturais, principalmente ― entre os diferentes povos, uma vez que
amplia o contato entre as pessoas de nações distintas. Nesse interim, valores como o
respeito e a fraternidade são urgentes no mundo hoje.
38
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42
Migração Laboral no Brasil: desafios para Construção de Políticas
Marjolaine Canto19
Introdução
O atual Conselho Nacional de Imigrações (CNIg) cumpre uma importante
função na autorização de entrada dos estrangeiros que desejam permanecer no Brasil.
O CNIg, em sua história, passou por diversos momentos. Em linhas gerais, o
Conselho atravessou quatro grandes fases, que serão discutidas a seguir:
- Fase I: A Criação. O Conselho foi criado no Governo Figueiredo (1980) pela
Lei n° 6.815, de 19 de agosto de 1980. 20
- Fase II: A Implementação do CNIg. Após uma pequena alteração no
Governo Collor, o CNIg passa a atuar de forma mais permanente no Governo Itamar
com a introdução da Lei 8.490 de (19/11/1992). Menos de um ano depois, o Governo
Itamar promulga o Decreto n. 840 (22/06/93) que dispunha sobre a organização e
funcionamento do CNIg.
- Fase III: A Expansão do CNIg. O Governo FHC propôs uma expansão da
composição do Conselho e delegou competência ao Ministro de Estado do Trabalho e
Emprego, para designar os membros do Conselho Nacional de Imigração (Decreto nº
3.574, 23/08/ 2000).
- Fase IV: Rediscussão do Papel do CNIg (Momento Atual). Novos Rumos da
Questão Imigratória no Governo Lula e Governo Dilma. Novas propostas surgem
para discussão no Congresso.
Fase I: A Criação
O Conselho (CNIg) foi criado no Governo Figueiredo (1980) durante o final
do ciclo militar de manutenção de uma política restritiva aos investimentos e às
19
Conselheira do CNIg. Representante da Confederação Nacional do Comércio, Bens, Serviços e
Turismo (CNC) 20 Houve uma pequena alteração pela Lei nº 6.964, de 09/12/81, mas que não modificou a essência de
atuação e funcionamento do Conselho.
43
importações. O modelo econômico em vigência ainda era de industrialização via
substituição de importações (ISI), que perdurou até o início do governo Sarney.
Como observou Mendes (2001), a estrutura básica do capitalismo brasileiro
assentava-se desde os anos 30 no seguinte tripé: a) a empresa estatal, em que por
muitos anos experimentamos o monopólio das estatais, as quais alimentavam o
chamado “estado-empresário”; b) a empresa nacional familiar (do qual o grupo
Votorantim era exemplo); e c) as empresas estrangeiras, que atuavam em setores
autorizados, podendo mesmo vir a dominar alguns segmentos, como o
automobilístico e o farmacêutico. Mendes (2001) ainda nos lembra que:
(...) O nível de importação era pequeno por duas razões
básicas: a) as alíquotas (leia-se impostos) de importação eram
muito elevadas, sendo que muito produtos eram taxados em mais de
100%, o que inviabilizava as importações; e b) muitos produtos não
podiam sequer ser importados, ou seja, não se tratava de taxar, mas
sim de proibir terminantemente a importação, sob a alegação de
que deveríamos proteger a indústria nacional, por ser esta ainda
“infante” (...). (Mendes, 2001: 2; grifo nosso)
Nesse contexto, a atração de cérebros e de executivos estrangeiros era muito
limitada. De qualquer forma, tanto a Lei n° 6.815, de 19 de agosto de 1980, quanto
a Lei nº 6.964, de 09/12/81, ambas editadas no Governo Figueiredo, previam a
importação de cérebros, mas de maneira limitada. Nesse sentido, a criação do CNIg
foi um grande passo, previsto no art. 128 da Lei 6.815 (19/08/1980), reproduzido
abaixo „in verbis‟:
Art. 128. Fica criado o Conselho Nacional de Imigração,
vinculado ao Ministério do Trabalho, a quem caberá, além das
atribuições constantes desta Lei, orientar, coordenar e fiscalizar as
atividades de imigração.
Além a criação do Conselho, a Lei 6.815 (19/08/1980) estipulava que
poderiam vir trabalhar no Brasil aqueles que contribuíssem para o progresso
tecnológico nacional, como fica claro nos artigos 13 a 16 da referida lei (6.815),
reproduzidos abaixo:
44
(...)Art. 13. O visto temporário poderá ser concedido ao
estrangeiro que pretenda vir ao Brasil:
I - em viagem cultural ou em missão de estudos;
II - em viagem de negócios;
III - na condição de artista ou desportista;
IV - na condição de estudante;
V - na condição de cientista, professor, técnico ou
profissional de outra categoria, sob o regime de contrato ou a
serviço do Governo brasileiro; e
VI - na condição de correspondente de jornal, revista, rádio,
televisão ou agência noticiosa estrangeira. (...).
Ou seja, já havia uma abertura para a vinda de cientistas e professores
estrangeiros, mas com o enfoque de atender as empresas estatais, uma vez que estes
profissionais vinham a serviço do governo brasileiro, como evidenciaram o art. 13 e o
art. 15. Esse enfoque tinha duas razões: primeiro, fortalecer as empresas estatais, e o
segundo assegurar que os cientistas e professores universitários e pesquisadores
estrangeiros que se candidatassem a vir ao Brasil estariam dentro do controle e da
tutela governamental.
Esse enfoque relativo ao progresso tecnológico seria alterado pela Lei nº
6.964, de 09/12/81, que alterou o Art. 16 21
. A preocupação se alarga da questão
técnica e tecnológica para atingir todos os aspectos do desenvolvimento (quando se
fala de „Política Nacional de Desenvolvimento‟, em todos os seus aspectos) e atinge
as questões centrais nas discussões contemporâneas sobre desenvolvimento, que são:
- A mão-de-obra especializada;
- O aumento da produtividade;
- Assimilação de tecnologia; e
- A captação de recursos para setores específicos.
Infelizmente, a Lei nº 6.964, de 09/12/81, não definia o que era mão-
de-obra especializada, nem como se obteria o esperado aumento de produtividade,
21 O art. 16 passa a ter a seguinte redação “Art. 16. Parágrafo único. A imigração objetivará,
primordialmente, propiciar mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional,
visando à Política Nacional de Desenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao aumento da
produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de recursos para setores específicos”.
45
nem de que forma se daria a assimilação de tecnologia e a captação de recursos para
setores específicos dentro de um modelo restritivo de substituição de importações 22
.
No entanto, a Lei nº 6.964 (09/12/81) reforça a estrutura do Conselho ao insistir no
vínculo do CNIg de forma orgânica ao Ministério do Trabalho, conforme fica
evidente no art. 129 da Lei nº 6.964 (09/12/81). Com efeito, o art. 129 afirma que („in
verbis‟):
Art. 129. Fica criado o Conselho Nacional de Imigração,
vinculado ao Ministério do Trabalho, ao qual caberá, além das
demais atribuições constantes desta Lei, orientar e coordenar as
atividades de imigração.
§ 1º O Conselho Nacional de Imigração será integrado por
um representante do Ministério do Trabalho, que o presidirá, um do
Ministério da Justiça, um do Ministério das Relações Exteriores,
um do Ministério da Agricultura, um do Ministério da Saúde, um do
Ministério da Indústria e do Comércio e um do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, todos nomeados pelo
Presidente da República, por indicação dos respectivos Ministros
de Estado.
§ 2º A Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional
manterá um observador junto ao Conselho Nacional de Imigração.
Ou seja, por um lado fica clara a preocupação com a Segurança Nacional por
meio da citação da presença da Secretária-Geral do Conselho de Segurança Nacional
(art. 129 §2), já presente na Lei 6.815 (19/08/1980). No entanto, por outro lado, a Lei
nº 6.964 (09/12/81) ampliou a participação de outros membros do governo ao incluir
22
A questão do controle da entrada de estrangeiros permaneceu na Lei nº 6.964 (09/12/81)
especialmente no seu artigo 13, inciso VII, o qual afirmava que: Art. 13. O visto temporário poderá ser
concedido ao estrangeiro que pretenda vir ao Brasil: VII - na condição de ministro de confissão
religiosa ou membro de instituto de vida consagrada e de congregação ou ordem religiosa. No entanto,
os artigos 24 e 30 limitavam o direito de ir e vir dessas pessoas ao estabelecer que:
- Art. 24. Nenhum estrangeiro procedente do exterior poderá afastar-se do local de entrada e
inspeção, sem que o seu documento de viagem e o cartão de entrada e saída hajam sido visados pelo
órgão competente do Ministério da Justiça).
- Art. 30. O estrangeiro admitido na condição de permanente, de temporário (incisos I, e de IV
a VII do art. 13) ou de asilado é obrigado a registrar-se no Ministério da Justiça, dentro dos trinta dias
seguintes à entrada ou à concessão do asilo, e a identificar-se pelo sistema datiloscópico, observadas as
disposições regulamentares." Lei nº 6.964 (09/12/81).
46
um membro do Ministério da Indústria e do Comércio e um membro do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Essa ampliação fica evidente
no quadro abaixo.
Tabela X - Alterações na Estrutura do CNIg no Governo Figueiredo
Lei 6815 (19/08/1980)
Lei 6964 (09/12/1981)
Art. 128. Fica criado o Conselho Nacional
de Imigração, vinculado ao Ministério do Trabalho,
a quem caberá, além das atribuições constantes
desta Lei, orientar, coordenar e fiscalizar as
atividades de imigração.
Art. 129. Fica criado o
Conselho Nacional de Imigração,
vinculado ao Ministério do Trabalho,
ao qual caberá, além das demais
atribuições constantes desta Lei,
orientar e coordenar as atividades de
imigração.
Membros Totais (5) Membros Totais (7)
Ministério do Trabalho, que o presidirá:
um membro do Ministério da Justiça;
um membro do Ministério das Relações
Exteriores;
um membro do Ministério da Agricultura; e
um membro do Ministério da Saúde.
Ministério do Trabalho, que o
presidirá:
um membro do Ministério da
Justiça;
um membro do Ministério das
Relações Exteriores;
um membro do Ministério da
Agricultura;
um membro do Ministério da
Saúde;
um membro do Ministério da
Indústria e do Comércio; e
um membro do Conselho
Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico.
Observador: A Secretaria Geral do Conselho
de Segurança Nacional manterá um observador
junto ao Conselho Nacional de Imigração.
Observador: A Secretaria Geral
do Conselho de Segurança Nacional
manterá um observador junto ao
Conselho Nacional de Imigração.
47
Assim, tanto na Lei 6.815 quanto na Lei 6.964, já estava prevista a vinculação
do CNIg ao Ministério do Trabalho e o conceito que a política migratória estaria
associada ao desenvolvimento econômico, e que cabe àquele Ministério orientar e
coordenar as atividades de imigração (art. 128), em ambas as leis. Pela Lei 6.964 a
política migratória é um instrumento do desenvolvimento, mas subordinado à questão
laboral. Na perspectiva dos militares, a participação da sociedade civil não era
relevante. Na oportunidade que teve de expandir o número de membros do CNIg, o
governo Figueiredo incluiu apenas o Ministério do Desenvolvimento e o CNPQ, mas
não a Sociedade Civil.
Fase II: A Implementação do CNIg – Os Governos Collor e Itamar
Franco.
O Governo Collor ao tomar posse recebeu como herança do Presidente Sarney
quatro planos econômicos mal-sucedidos (Cruzado I e II, Bresser e Verão), uma
inflação que atingiu 1.973% em 1989 e uma dívida externa equivalente a 28% do PIB.
A resposta do Presidente Collor foi um Plano radical de combate à inflação23
e uma
abertura econômica unilateral, que reduziu as tarifas alfandegárias de mais de 100%
em alguns produtos para em média de 32% em 1990. Além do bloqueio das contas
correntes e das poupanças, parte substancial do Plano Collor era baseado na abertura
comercial. Alguns autores consideram o Governo Collor como o que promoveu a
maior abertura comercial no Brasil desde o governo Vargas. Esta é a opinião, por
exemplo, de Gennari (2001):
“(...) Nesse sentido [de redução tarifária], no Governo
Collor, teve início o mais radical processo de abertura comercial já
registrado desde pelo menos a chamada mudança do eixo dinâmico,
nos anos trinta, brilhantemente descrito por Celso Furtado em sua
obra Formação Econômica do Brasil (...)”.
Essa opinião é compartilhada por Azevedo & Portugal (1998):
23 O Plano Collor (I) previa, entre outras medidas: i) Volta do Cruzeiro como moeda, com retirada de 3
zeros; ii) Congelamento de preços e salários; iii) Bloqueio de contas correntes e poupanças no prazo de
18 meses; iv) Reorganização da máquina pública, com demissão de funcionários e diminuição de
órgãos públicos.
48
“(...) Sob o novo governo [Collor], foram tomadas várias
medidas no sentido de ampliar o grau de inserção da economia
brasileira na economia mundial, através de uma mudança profunda
na política de importações. Neste sentido, foram revogadas uma
série de barreiras não-tarifárias (...).
Como procurou se observar acima, as mudanças, porém, não se limitaram à
abertura comercial. Elas impactaram igualmente a política industrial e o
desenvolvimento tecnológico do Brasil. Com efeito, como afirmou Romero (2011):
“(...) Com o governo Collor implantou-se uma nova política
industrial visando materializar uma mudança radical em relação às
políticas anteriores. A competitividade, antes que o
crescimento, era o principal objetivo estratégico a ser atingido em
conformidade com os enfoques prevalecentes nos países
industrializados ou de recente industrialização. (...) Isso tudo
dentro da filosofia de que a tecnologia passa a ter o mercado como
referência e a empresa como o agente fundamental para a
estratégia de capacitação tecnológica (...)”(grifo nosso).
Essas mudanças estruturais se refletiriam igualmente no CNIg.
De fato, o Decreto 662 de 29/11/92, promulgado pelo Governo Collor,
mantinha, em essência, a composição original do Conselho. Collor substituiu, porém,
o Ministério da Indústria e Comércio pelo Ministério da Economia, Fazenda e
Planejamento. O CNPq, por sua vez, foi substituído pela Secretaria de Ciência e
Tecnologia, recém criada.
Essa mudança evidenciava a importância que o Pres. Collor dava ao Conselho
de Imigração como parte da estratégia de abertura econômica ao incluir o poderoso
Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento (dirigido inicialmente por Zélia
Cardoso de Mello) entre os membros do Conselho (no lugar do Ministério da
Indústria e Comércio), e a Secretaria de Ciência e Tecnologia no lugar do CNPq.
49
O Governo Itamar Franco
O Presidente Itamar Franco preocupou-se em dar maior operacionalidade ao
CNIg, ao mesmo tempo em que fortalecia o aspecto Colegiado do seu governo.
Com efeito, três aspectos influenciaram o governo Itamar e contribuíram para
explicar o funcionamento do seu Governo, e até mesmo o fortalecimento do CNIg:
- O Contexto Econômico: A abertura comercial promovida pelo Presidente
Collor (já mencionada);
- A instabilidade política existente naquele momento no Brasil (1992-1994);
- A busca de consenso político e de órgãos colegiados para dirimir conflitos.
A Abertura comercial promovida pelo Presidente Fernando Collor
Conforme já mencionado na seção anterior, o contexto que antecede o
Governo Itamar é um ambiente de forte abertura econômica, ou seja, uma mudança
profunda das políticas que prevaleceram no regime militar, que deu preferência ao
modelo de Industrialização via Substituição de Importações (ISI). Como se sabe, o
modelo ISI se caracterizava justamente pelo reduzido coeficiente de importações.
Naturalmente, no governo Collor, em função da abertura econômica, houve uma
elevação considerável de importações, as quais, por sua vez, implicavam em uma
série de ajustes ao funcionamento da economia brasileira e ao governo federal como
gestor desse novo modelo. Os Investimentos Diretos Estrangeiros (IDEs) tenderam a
crescer no período Collor. Com os novos IDEs, as empresas recém instaladas no
Brasil trouxeram executivos de seus países de origem, o que implicou na aprovação
pelo CNIg da entrada desses executivos. Como se pode verificar, a abertura comercial
gerou outras consequências que ultrapassaram o mundo econômico (como a
concessão de vistos) e supunham que o governo federal estivesse preparado para elas.
No caso do Vice-Presidente Itamar Franco, ele foi um pouco surpreendido
com as responsabilidades que o aguardavam ao assumir a Presidência da República.
Com efeito, com a saída de Collor, devido ao processo de impeachment, muitos se
perguntaram como o Pres. Itamar reagiria às ideias e reformas implantadas pelo ex-
50
Presidente Collor, uma vez que Itamar sempre se apresentava como refratário da
abertura econômica e do livre comércio.24
Para surpresa de muitos, Itamar, já no cargo de Presidente, não apenas
manteve os compromissos assumidos por Collor na área de redução de tarifas de
importação, como os acelerou, como lembra Azevedo e Portugal (1998):
No que tange à tarifas, foi implementado um cronograma de
redução das alíquotas de importação, que previa a
queda gradual da tarifa média, modal e de seu desvio padrão, entre
janeiro de 1991 e dezembro de 1994. (...) Entretanto, o cronograma
foi antecipado em 1992, 1993 e 1994 [no Governo Itamar], em
razão da utilização da abertura comercial como peça-chave no
controle da inflação, tanto no período que antecedeu o Plano Real,
como naquele que se seguiu à sua implementação. A tarifa média
foi reduzida gradualmente de 33,2%, que vigorava em 1990 para
25,3% no primeiro ano, 20,8% no segundo, 16,5% no terceiro e
14% em 1994 (...).
Como se pôde ver acima, o Presidente Itamar reduziu ainda mais as tarifas
brasileiras de importação, aumentando, consequentemente, a inserção do Brasil na
economia mundial. Esse fato gerou uma demanda ainda maior por mão-de-obra
qualificada, que muitas vezes não existia no Brasil. Essa nova demanda se refletiria
no CNIg, como veremos a seguir, o qual teria de ser cada vez mais ágil para tratar
dessas questões. Ao contrário do Gov. Figueiredo, o qual privilegiava as empresas
estatais, a partir de 1992 o Governo Itamar procurou criar um novo locus para as
empresas estrangeiras recém-chegadas, que buscavam autorizações no Poder
Executivo para agilizar a vinda de seus executivos, a fim de assumir os postos recém-
criados no Brasil.
A instabilidade política existente no Brasil (1992-1994).
24 Cabe lembrar que Itamar Franco pertencia à antiga ala esquerda do PMDB, os denominados
‟autênticos,‟ que combateram fortemente o regime militar.
51
Como se sabe, o impeachment de Collor gerou grande instabilidade política no
Brasil. Como nota, Philippe Faucher (1998):
“(...) O trauma institucional causado pelas denúncias de
corrupção que levaram ao impeachment do presidente Collor (...)
teve também o efeito de aumentar a audiência para os defensores
das reformas. Mas, no caso brasileiro, é preciso olhar além do
anedótico e das forças circunstanciais para compreender os fatores
que contribuíram para a restauração da governabilidade. (...).”
Qual o segredo para a recuperação da governabilidade por Itamar Franco face
à ingovernabilidade do Governo Collor? A busca de uma coalizão estável. Como bem
observou o jornalista e analista político Luciano Suassuna:
“(...) Contra o veneno da fragmentação política e da falta de
apoio, ele [Itamar] ofereceu um governo de coalizão. Depois da
desilusão nacional causada por um presidente que bloqueou
poupanças e caiu sob graves acusações de corrupção, a classe
política estava tão desgastada que a ela só restou aceitar a união
proposta. (...).”
Essa foi a marca do Governo Itamar: a busca pela união e pelo consenso. Essa
característica ele levaria para todo o seu governo, inclusive os Conselhos por eles
criados ou já existentes, que ele deu novo formato de Conselhos Colegiados, mais
participativos. Com efeito, a Lei 8.490, de 19/11/92, previa órgãos de assessoramento
colegiado ao Presidente Itamar. Nessa lei, o Pres. Itamar estabeleceu como órgãos de
assessoramento imediato ao Presidente da República25
:
1. o Conselho de Governo;
2. a Consultoria-Geral da República;
3. o Alto Comando das Forças Armadas;
25 Lei 8.490 de 19/11/92.
52
4. o Estado-Maior das Forças Armadas.26
E junto à Presidência da República foram estabelecidos igualmente órgãos
de consulta do Presidente da República, tais como:
1. o Conselho da República;
2. o Conselho de Defesa Nacional.27
Fica evidente a busca de soluções colegiadas pelo Pres. Itamar, não apenas na
sua assessoria direta, como em todos os Ministérios. Foi igualmente o caso do
Ministério do Trabalho com o CNIg. De fato, a mesma lei (Lei 8490, de 19/11/92)
previu no Art. 19, que:
“(...) São órgãos específicos dos ministérios civis (...):
VII - no Ministério do Trabalho (...)
b) o Conselho Nacional de Imigração (...).”
A referida Lei 8.490, de 19/11/92, estabeleceu, em seu art. 16, os assuntos que
constituíam área de competência de cada ministério civil. No caso do Ministério do
Trabalho (em seu inciso VIII) seria inter alia tratar da política de imigração (item d).
Ora, a Lei 8.490 estabeleceu ainda que o órgão vinculado ao Ministério do Trabalho,
que teria a atribuição para formular a política de imigração e coordenar e orientar as
atividades de imigração, seria o CNIg. Assim, ficou confirmado o CNIg como órgão
assessor encarregado de formular a política imigratória.
iii. A busca de consenso político e de órgãos colegiados para dirimir os
conflitos.
O Decreto nº 840, de 22/06/93, que dispunha sobre a organização e o
funcionamento do Conselho Nacional de Imigração, foi ao encontro da orientação de
Itamar Franco de fortalecer os órgãos colegiados. O Decreto nº 840 destaca que o
26 Art. 1 (§ 1°). 27 Art. 1 (§ 2°).
53
Conselho Nacional de Imigração é um órgão de deliberação coletiva (art. 1º). As
atribuições do CNIg ficam claras no Decreto n° 840, e incluiriam28
:
I - formular a política de imigração;
II - coordenar e orientar as atividades de imigração;
III - efetuar o levantamento periódico das necessidades de mão-de-obra
estrangeira qualificada, para admissão em caráter permanente ou temporário;
IV - definir as regiões de que trata o art. 18 da Lei n° 6.815, de 19 de
agosto de 1980, e elaborar os respectivos planos de imigração;
V - promover ou fornecer estudos de problemas relativos à imigração;
VI - estabelecer normas de seleção de imigrantes, visando proporcionar
mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional e captar
recursos para setores específicos;
VII - dirimir as dúvidas e solucionar os casos omissos, no que diz respeito
a imigrantes;
VIII - opinar sobre alteração da legislação relativa à imigração, quando
proposta por qualquer órgão do Poder Executivo;
IX - elaborar seu regimento interno, que será submetido à aprovação do
Ministro do Trabalho.
Note-se que foi dada liberdade para o CNIg elaborar seu próprio regimento
interno, o qual deveria ser submetido à aprovação apenas do Ministério do Trabalho e
não dos demais Ministérios membros do CNIg. Outra novidade introduzida pelo Pres.
Itamar por intermédio do Decreto nº 840 foi a expansão dos seus membros. Além dos
membros previstos no Decreto nº 662 de 29/11/92, Itamar substitui o representante do
Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, introduzido por Collor, pelo
representante do Ministério do Desenvolvimento, tal como ocorria no governo
Figueiredo (Lei n° 6.815, de 19/08/1980 e Lei nº 6.964, de 09/12/81). Além disso, o
Pres. Itamar devolveu, por intermédio do Decreto nº 840, o assento do Ministério da
Ciência e Tecnologia.29
Mas, a grande novidade foi realmente a entrada da sociedade
civil no Conselho Nacional de Imigração (CNIg). De fato, o artigo 2º. do Decreto
28 De certa forma, o Decreto nº 840 reforça as atribuições já previstas nos termos da Lei n° 8.490, de
19/11/ 1992. 29 Então ocupado pelo CNPq.
54
nº840 destinou espaço para quatro representantes dos trabalhadores (inciso VII),
quatro representantes dos empregadores (inciso VIII)30
, um representante da
comunidade científica e tecnológica (inciso IX).31
Assim, Itamar democratizou o CNIg e criou um Conselho triparte. Ou seja, o
Pres. Itamar criou um locus onde se encontravam os representantes do governo, dos
empresários e dos trabalhadores, tornando o CNIg um órgão deliberativo e
participativo, como era o próprio Governo Itamar.
A nova composição do CNIg no Governo Itamar ficou da seguinte forma:
Membros Totais no Governo Collor (7) Membros Totais no Governo
Itamar (16)
Ministério do Trabalho (na Presidência): um
membro do Ministério da Justiça;
um membro do Ministério das Relações
Exteriores;
um membro do Ministério da Agricultura;
um membro do Ministério da Saúde;
um membro do Ministério da Indústria e do
Comércio; e
um membro do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Ministério do Trabalho e, além
deste, terá mais os seguintes
membros:I - um representante do
Ministério da Justiça;
II - um representante do
Ministério das Relações Exteriores;
III - um representante do
Ministério da Agricultura, do
Abastecimento e da Reforma Agrária;
IV - um representante do
Ministério da Ciência e Tecnologia;
V - um representante do
Ministério da Indústria, do Comércio e
do Turismo;
VI - um representante do
Ministério da Saúde;
VII - quatro representantes dos
trabalhadores;
VIII - quatro representantes dos
empregadores;
IX - um representante da
comunidade científica e tecnológica.
30 Que viriam a ser a CNC, a CNI, a CNA e a CNT. 31 Que viria a ser um(a) representante da SBPC.
55
O Presidente Itamar revogou o Decreto n° 662, de 29 de setembro de 1992 (do
governo Collor), e deu uma feição nova ao Conselho. Os membros do Conselho e os
seus respectivos suplentes seriam designados pelo Presidente da República, mediante
proposta do Ministro do Trabalho e indicação:
a) dos respectivos Ministros de Estado, no caso dos incisos I a VI deite artigo;
b) das Centrais Sindicais, e das Confederações Nacionais da Indústria, do
Comércio, do Transporte e da Agricultura;
c) da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, no caso do inciso IX.
Por último, não menos importante, ao final do governo Itamar tem-se a
Portaria nº. 1.442, de 3 de dezembro de 1993, a qual estabelece o Regimento Interno
do CNIg. Ela tratava desde a composição e o funcionamento do Conselho, as suas
competências, as atribuições dos membros do Conselho e sua organização
administrativa. 32
Portanto, do exposto, pode-se concluir que a expansão do CNIg durante o
governo Itamar refletiu:
- Preocupação com a transparência, característica do Governo Itamar;
- Busca de consenso por meio de discussão pública;
- Descentralização e divisão de responsabilidades.
Ainda que o resultado das reuniões do Conselho de Imigração nessa nova fase
tenham ficado abaixo do esperado, houve um ganho de legitimidade. Nessa nova fase,
o Conselho se ateve por muito tempo em atender as demandas processuais
acumuladas no Ministério do Trabalho, que estavam aguardando pareceres. Apesar
dessa falta de maturidade institucional, o Conselho de Imigração durante o governo
Itamar manteve o novo formato tripartite e ganhou em participação social. Com
efeito, as decisões tomadas no âmbito do CNIg passaram a ser mais discutidas com os
atores envolvidos e houve uma democratização nas intervenções.
Fase III: A Expansão e Reorganização Interna do CNIg.
32
Não se tratará desta resolução aqui por ela ter estado em vigor por um curto período. Ela seria
substituída em 1996 pela Portaria nº. 634, de 21 de junho de 1996.
56
Durante o governo Fernando Henrique (1994-2002) houve uma consolidação
do Plano Real e uma estabilização da economia brasileira. As linhas gerais da
abertura econômica iniciada no final do Governo Sarney, e expandida pelos
Presidente Collor e Itamar, foi mantida. A busca de concessão de visto de trabalho
para empresários que desejavam permanecer no Brasil com visto de trabalho foi a
tônica do CNIg no Governo Cardoso.
Além disso, no intuito de expandir ainda mais a participação social no
Conselho de imigração, o governo Fernando Henrique aumentou o número de
representantes da sociedade civil (trabalhadores e empregadores) no CNIg.
Com efeito, o Decreto nº 3.574, de 23 de agosto de 2000, deu nova redação ao
art. 2º do Decreto nº 840, de 22 de junho de 1993, do governo Itamar, que tratava da
organização e composição do Conselho Nacional de Imigração, especialmente no que
tange ao seu número de membros.
Dessa forma, o número total de membros do Conselho passa de 16 no
Governo Itamar para 18 no Governo Fernando Henrique. Os acréscimos foram: mais
1 (um) representante para a bancada dos trabalhadores (a ser indicado pelas Centrais
Sindicais) e 1 (um) representante adicional para a bancada dos empregadores,
indicado pela Confederação Nacional de Instituições Financeiras (não incluída no
Decreto nº 840, de 22 de junho de 1993, do Governo Itamar).33
33 O assento da comunidade científica passou a ser indicada pela SBPC, independentemente da
nomeação do representante do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A representação do MCT
foi retomada no Governo Itamar. Renato Archer e membros da comunidade científica se mobilizaram e
encaminharam a proposta de criação do Ministério da Ciência e Tecnologia ao primeiro governo civil
que sucedeu o regime militar. O grupo teve a reivindicação acatada pelo presidente eleito Tancredo
Neves e mantida pelo Presidente José Sarney, que criou o Ministério. Renato Archer foi nomeado
como ministro, em 1985. A gestão de Archer foi sucedida, em curtos períodos, por
quatro administrações conduzidas por ministros da área antes de ocorrer a fusão do Ministério da
Ciência e Tecnologia com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, em janeiro de
1989. Em março do mesmo ano, uma medida provisória dividiu as duas pastas e o que era ministério
passou a ser a Secretaria Especial da Ciência e Tecnologia, órgão central do Governo Federal para
assuntos da área. Ainda em 1989, o Ministério da Ciência e Tecnologia foi recriado por outra medida
provisória e, em 1990, o presidente Fernando Collor o extinguiu mais uma vez e implantou a Secretaria
da Ciência e Tecnologia, ligada à Presidência da República. Em 1992, o presidente Itamar Franco
editou nova Medida Provisória que voltou a criar o ministério, que permanece como pasta da área até
hoje. Baseado em http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/78973/Historico.html. Acessado em 01/07/2014.
57
Membros Totais no Governo Itamar
(16)
Membros Totais no Governo Cardoso
(18)
Ministério do Trabalho e, além deste,
terá mais os seguintes membros:
I- um representante do Ministério da
Justiça;
II - um representante do Ministério
das Relações Exteriores;
III - um representante do Ministério
da Agricultura, do Abastecimento e da
Reforma Agrária;
IV - um representante do Ministério
da Ciência e Tecnologia;
V - um representante do Ministério
da Indústria, do Comércio e do Turismo;
VI - um representante do Ministério
da Saúde;
VII - quatro representantes dos
trabalhadores;
VIII - quatro representantes dos
empregadores;
IX - um representante da
comunidade científica e tecnológica.
Ministério do Trabalho e, além deste,
terá mais os seguintes membros:
I - um representante do Ministério da
Justiça;
II -um representante do Ministério das
Relações Exteriores;
III - um representante do Ministério da
Agricultura, do Abastecimento e da Reforma
Agrária;
IV - um representante do Ministério da
Ciência e Tecnologia;
V - um representante do Ministério da
Indústria, do Comércio e do Turismo;
VI - um representante do Ministério da
Saúde;
VII - cinco representantes dos
trabalhadores;
VIII - cinco representantes dos
empregadores;
IX - um representante da comunidade
científica e tecnológica.
Outra novidade do Decreto nº 3.574, de 23/08/2000, foi delegar competência
ao Ministro de Estado do Trabalho e Emprego para designar os membros do Conselho
Nacional de Imigração (art. 2º).
Uma importante característica do período Fernando Henrique (1995-2002) foi
a busca de regularização e normatização das atividades do CNIg. Nesse aspecto, foi
fundamental a aprovação do Regimento do órgão, ocorrida por meio da Portaria nº
634, de 21 de junho de 1996, na gestão do Ministro Paulo Paiva.34
A partir do governo Cardoso, o CNIg passou a atuar por meio de Resoluções
Normativas, Resoluções Administrativas e Resoluções Recomendadas.
A primeira Resolução Administrativa no Governo Cardoso foi a Resolução
Administrativa nº 01, de 29/07/1996. Esta Resolução trata de prazos para pedidos de
recursos, o qual foi estipulado em 40 (quarenta) dias consecutivos, incluídos sábados
34 Paulo Paiva foi ministro do Trabalho no governo Fernando Henrique Cardoso, de 1 de
janeiro de 1995 a 31 de março de 1998. A Portaria nº 634, a qual continha apenas três artigos, aprovava
o Regimento Interno do Conselho Nacional de Imigração e revogava a Portaria nº 1.442, de 3 de
dezembro de 1993.
58
e domingos. A Resolução Administrativa nº 02, de 28/09/99, por sua vez, tratava dos
critérios para a concessão de visto temporário ou permanente, ou permanência
definitiva ao companheiro ou companheira. Ela representou quebra de paradigmas no
CNIg por um temor que qualquer legislação que amparasse a união estável pudesse
estimular a imigração irregular.35
Entre as Resoluções Recomendadas cabe destacar a de nº 02 de 05/12/2000.
Ela tinha um caráter humanitário e era voltada para estrangeiros que desejavam tratar
de sua saúde no Brasil, independente de já estarem no país ou não.
As Resoluções Normativas podem ser divididas em 3 Grupos: as econômicas,
voltadas para facilitação de negócios, as científicas e as sociais.
Entre as Resoluções Normativas de cunho econômico, pode-se destacar a
Resolução Normativa nº 18, de 18/08/98. Essa Resolução disciplinava a concessão
de visto permanente a estrangeiro que pretenda vir ao País na condição de
investidor, administrador ou diretor de empresa localizada em Zona de
Processamento de Exportação - ZPE. Segundo essa Resolução, os requerimentos para
Autorização de Trabalho para investidor estrangeiro em empresa localizada em Zona
de Processamento de Exportação - ZPE, bem como para os respectivos
administradores ou diretores, serão apresentados obrigatoriamente perante o Conselho
Nacional das Zonas de Processamento de Exportação - CZPE, que os encaminhará ao
Ministério do Trabalho devidamente instruídos e com parecer quanto à conveniência
do deferimento do pedido. Após essa fase, o pedido é encaminhado ao Ministério do
Trabalho, com a documentação exigida. Caso seja concedida a Autorização de
Trabalho, o Ministério das Relações Exteriores fica apto para expedir o visto
permanente para investidor estrangeiro, administrador ou diretor.
Das Resoluções Normativas com cunho científico, cabe destacar a Resolução
nº 01 de 29/04/1997, que previa a concessão de visto temporário, ou permanente, a
professor, técnico ou pesquisador de alto nível e cientista estrangeiro, que pretendesse
exercer atividades de ensino, ou de pesquisa científica e tecnológica. Dessa forma, o
CNIg revelou, mais uma vez, sua preocupação com o progresso tecnológico.
Na área social, uma Resolução de suma importância foi a Resolução
Normativa de nº 6 (21/08/97) na qual o Conselho Nacional de Imigração autorizava o
Ministério da Justiça a conceder a permanência definitiva a estrangeiro detentor da
35
Ela seria alterada pela Resolução Administrativa nº 05 de 03/12/2003. Esta será vista posteriormente.
59
condição de refugiado ou asilado, que comprovadamente preencher os requisitos
legais com a finalidade oferecer concessão de permanência definitiva a asilados ou
refugiados e suas famílias.36
Esse foi um ponto que caracterizou a atuação do CNIg nos anos noventa: a
reunião familiar de modo que estrangeiros que tivessem familiares em primeiro grau
no Brasil pudessem receber um visto de permanência.
Um outro exemplo desse ponto foi a Resolução Normativa nº 36, de
28/09/1999, que previa concessão de visto a título de reunião familiar. Nessa
resolução, o CNIg autorizava o Ministério das Relações Exteriores a conceder visto
temporário ou permanente a título de reunião familiar, aos dependentes legais de
cidadão brasileiro ou de estrangeiro residente temporário ou permanente no país,
maior de 21 anos. 37
Fase IV: Rediscussão do Papel do CNIg (Momento Atual).
Contexto Econômico
Os governos Lula e Dilma mantiveram, em linhas gerais, a abertura econômica
promovida nos anos noventa, muito embora tenham sugerido uma política industrial
mais proativa em alguns segmentos em que o Brasil fosse mais competitivo. Não
houve uma alteração quanto à política de facilitação e abertura para vistos para
empresários estrangeiros que quisessem vir trabalhar no Brasil.
36
Os requisitos eram: a) residir no Brasil há no mínimo quatro anos na condição de refugiado ou
asilado (posteriormente alterada pela Resolução Normativa n° 91, de 10/11/2010); b) ser profissional
qualificado e contratado por instituição instalada no país, ouvido o Ministério do Trabalho; c) ser
profissional de capacitação reconhecida por órgão da área pertinente; d) estar estabelecido com negócio
resultante de investimento de capital próprio, que satisfaça os objetivos de Resolução Normativa do
Conselho Nacional de Imigração relativos à concessão de visto a investidor estrangeiro. Em qualquer
situação, deveria ser ouvido o Ministério do Trabalho (MTE). 37
Essas solicitações de visto poderiam ser apresentadas diretamente às Missões diplomáticas ou
Repartições consulares de carreira no exterior desde que houvesse jurisdição sobre o local de residência
do pretendente. Isso foi possível em função da Resolução Normativa de n° 09 de 10/11/1997 que
disciplinava o tipo de vistos a ser concedido no exterior ao estrangeiro que pretendesse entrar no
território nacional (temporário, trânsito etc.) e em quais situações poderia ser estendido a seus
dependentes legais. A referida Resolução autorizava o Ministério de Relações Exteriores inclusive, a
critério da Secretaria de Estado das Relações Exteriores, os vistos referidos poderão ser concedidos
excepcionalmente no Brasil (Art. 2º ).
60
O CNIg
Quanto ao CNIg, este entendeu que deveria democratizar ainda mais os
Grupos de Trabalho para ouvir os diversos segmentos sociais.38
Nesses Grupos de
Trabalho, se discutia com cada segmento suas necessidades e desafios frente à
abertura comercial. Como se sabe, os investimentos estrangeiros e a chegada de
empresas transnacionais geravam uma demanda por mão-de-obra altamente
qualificada, por vezes não existente no Brasil. O papel do CNIg nos governos Lula e
Dilma foi o de um „normatizador‟, buscando soluções em vista da falta de previsão
legal para atrair essa mão–de-obra.39
A tônica das discussões do CNIg durante os
governo Lula e Dilma foi a concessão de autorizações de trabalho, que prevaleceram
sobre todas as demais decisões entre os anos de 2003 e 2014, conforme pode ser visto
na tabela a seguir: Resoluções Normativas: 2003-2014
38
Cabe lembrar que os Grupos de Trabalho foram criados em 1998. 39
Uma vez que a Lei de imigração nº 6.815/19/08/1980 (o Estatuto do Estrangeiro) não foi criado
voltado para uma economia aberta, conforme já foi visto.
61
Tema Quantidade (%)
Autorização de Trabalho para
Estrangeiros
21 48,8
Pesquisa e /ou Cooperação
Científica
3 7,0
Investimentos Estrangeiros 2 4,7
Reunião Familiar e União
Estável
2 4,7
Turismo 2 4,7
Jornalismo e Imprensa 1 2,3
Cumprimento de Penas por
Estrangeiros
1 2,3
Haiti 1 2,3
Tráfico de Pessoas 1 2,3
Humanitária 1 2,3
Alteração de Resoluções já
Aprovadas
8 18,6
Total 43 100,0
Com efeito, as Autorizações de Trabalho para estrangeiro representaram quase
a metade (48,8%) das Resoluções Normativas aprovadas entre 2003 e 2014. Se
adicionarmos as autorizações para investidores estrangeiros, elas ultrapassaram mais
de 55% das Resoluções Normativas do Conselho no período citado.
Além das questões relacionadas a autorizações de trabalho, emergiram
questões na área social. De fato, um dos reflexos dessa democratização foi a entrada
para discussão de temas considerados como tabus, com a união homoafetiva. Essa
união foi tratada pela Resolução Administrativa nº 05, já mencionada anteriormente,
de 03/12/2003.40
40
Dispõe sobre as solicitações de visto temporário ou permanente, ou permanência definitiva, para
companheiro ou companheira, sem distinção de sexo. Ela ainda revogou a Resolução Administrativa nº
02, de 28/09/1999. Posteriormente, a Resolução nº05 foi revogada pela Resolução Normativa nº 77, de
29/01/2008.
62
Outro tema que absorveu a atenção dos Conselheiros foi a Questão dos
Haitianos. Com efeito, a questão dos emigrantes haitianos alcançou repercussão
internacional.41
Os haitianos vieram para o Brasil em face do terremoto ocorrido no
país. Eles chegavam ao Brasil provenientes da República Dominicana, do Panamá,
Equador, Peru ou Bolívia. Em geral, entraram pela fronteira norte do Brasil, a mais
difícil de se controlar, solicitando refúgio ao governo brasileiro. O órgão chamado
para decidir inicialmente foi o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE). Este
órgão, no entanto, defendeu o ponto de vista que a questão dos haitianos não era de
refúgio e solicitou ao CNIg que se manifestasse, por entender que o Conselho poderia
decidir em função da Resolução Normativa nº 27, que disciplina a avaliação de
situações especiais e casos omissos pelo Conselho Nacional de Imigração.42
Para lidar com essa situação, o governo brasileiro solicitou então, uma ação do
Conselho Nacional de Imigração – CNIg, que editou a Resolução Normativa nº 97, de
12/01/2012. Segundo essa Resolução, ao nacional do Haiti seria concedido o visto
permanente previsto no art. 16 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, por razões
humanitárias, condicionado ao prazo de 5 (cinco) anos.43
O CNIg considera razões
humanitárias as resultantes do agravamento das condições de vida da população
haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de 2010.
Além disso, o governo brasileiro buscava legalizar o fluxo de haitianos para que eles
não recorressem aos coiotes e pudessem retirar seus vistos (até 1.200 por ano) no
próprio Haiti, em Porto-Príncipe. Ou seja, o terremoto orientou uma ação pontual do
governo brasileiro que acabaria por ter continuidade ao longo do tempo. Em função
da grande demanda por vistos, o governo brasileiro teve de impor limites à entrega de
vistos a haitianos.44
A vinda de haitianos para o Brasil pode ser considerada uma das maiores
ondas imigratórias ao país desde a Segunda Guerra Mundial. Com efeito, as medidas
adotadas na Resolução apresentam quatro grandes finalidades: concessão de visto
regular aos imigrantes haitianos; regularização da situação dos imigrantes haitianos
que já estão no Brasil; uso de maior rigor contra os coiotes e as máfias internacionais
de tráfico de pessoas, com o argumento de que não se permitirá fluxo migratório sem
41
Foge do objetivo deste artigo fazer uma análise histórica ou aprofundada da Questão Haitiana.
Apenas busca destacar a reação do CNIg a ela. 42
Resolução Normativa nº 27 de 25/11/1998 / CNIg - Conselho Nacional de Imigração. 43
Nos termos do art. 18 da Lei 6.815 de 19/08/1980. 44
Segundo o Itamaraty, foi a primeira vez nos últimos 20 anos que o governo brasileiro teve de impor
limites à entrega de vistos a estrangeiros.
63
controle; e a cooperação com os Estados do Acre e do Amazonas com a ajuda
humanística.
Considerações Finais: Novas Perspectivas e Desafios para o Século XXI
A questão migratória evoluiu profundamente no Brasil nas últimas três
décadas. A Lei 6.815/1980 tratava a questão migratória como uma questão de
Segurança Nacional e se tornou inadequada e defasada para as necessidades do século
XXI.
O Governo Itamar teve um grande mérito em propor mudanças nessa lei e
tornar o CNIg um órgão mais operativo e proativo. O CNIg exerceu um papel da
maior importância tanto na área econômica quanto na área social e científica ao
aprovar Resoluções que normatizariam a entrada de empresários, mão-de-obra
qualificada e pesquisadores que muito tem contribuído para o progresso tecnológico
do país.
No início do século XXI, surgiram discussões no Congresso acerca de uma
nova legislação para tratar das questões imigratórias.
Assim, por exemplo, existe o Projeto de Lei do Senador Aloysio Nunes
Ferreira, o qual propôs uma nova Lei de Migração para regular a entrada e estada de
estrangeiros no Brasil. A ênfase da nova Lei de Migração seria o tratamento
humanitário, em substituição ao Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980), herança do
governo militar que foca na segurança nacional. A Comissão de Constituição, Justiça
e Cidadania (CCJ) aprovou no dia 04/06/2014 o Projeto de Lei do Senado (PLS)
288/2013, com 65 artigos e sete títulos, que estabelece direitos e deveres relacionados
a vários aspectos da imigração e emigração, como a concessão de vistos, a
repatriação, a deportação, a expulsão e a naturalização. A proposta do senador
Aloysio Nunes (PSDB-SP) define como um princípio da política externa a proteção
da dignidade do emigrante brasileiro no exterior e institui mecanismos para o combate
ao tráfico internacional de pessoas.
O Ministério da Justiça, por sua vez, deve enviar ao Congresso Nacional um
projeto de lei para modernizar as regras relativas às migrações para o Brasil. O
Ministério da Justiça constituiu um grupo de notáveis, o qual elaborou uma proposta
64
de nova legislação.45
O objetivo da nova proposta do Ministério da Justiça é suprir
lacunas identificadas na legislação atual, como uma definição clara dos direitos dos
imigrantes no país. Com efeito, a proposta confere aos imigrantes direitos
semelhantes aos dos brasileiros, equiparando-os a cidadãos brasileiros em vários
aspectos. A proposta prevê ainda a criação de uma Autoridade Nacional Migratória
subordinada ao Ministério da Justiça. O Ministério da Justiça entende que o novo
órgão poderia contribuir para reduzir a burocracia na obtenção e substituição de
vistos.
Cabe lembrar que já existe em tramitação no Congresso Nacional o PL
5.565/2009, de autoria do Poder Executivo, que dispõe sobre o ingresso, permanência
e saída de estrangeiros no território nacional, o instituto da naturalização, as medidas
compulsórias e transforma o Conselho Nacional de Imigração em Conselho Nacional
de Migração.
A SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos), por sua vez, também tem
procurado influenciar a política migratória por meio de propostas próprias. Ela
trabalha em três frentes com a finalidade de atrair talentos estrangeiros para o
mercado nacional46
:
- Diagnóstico da questão migratória;
- Pesquisas de opinião com as empresas e a população; e
- Proposição de mudanças na política migratória.
A SAE também defende a criação de um novo órgão (p. ex.: uma Agência ou
uma Autarquia) que seria responsável pela gestão das questões migratórias.
Essas discussões refletem ao mesmo tempo a importância do tema e a falta de
consenso e necessidade de um maior aprofundamento acerca de qual deveria ser a
política imigratória ideal para o Brasil.
45
A comissão era composta por André de Carvalho Ramos, Aurélio Veiga Rios, Clèmerson Merlin
Clève, Deisy de Freitas Lima Ventura, João Guilherme Lima Granja Xavier da Silva, José Luis Bolzan
de Morais, Paulo Abrão, Pedro de Abreu Dallari, Rossana Rocha Reis, Tarciso Dal Maso Jardim e
Vanessa Oliveira Berner. 46 Fonte: http://www.sae.gov.br/site/?p=16827#ixzz36iuViiGl. Acessado em 01/07/2014.
Referências Bibliográficas
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Brasileira e Instabilidade da Demanda de Importações. In Nova Economia, 1998, vol. 8,
issue 1, pages 37-63
FAUCHER, Philippe. Restaurando a Governabilidade: O Brasil (afinal) se
Acertou?. In Dados, vol. 41, no. 1. Rio de Janeiro, 1998.
GENNARI, Adilson Marques. Globalização, Neoliberalismo e Abertura
Econômica no Brasil nos anos 90. In Pesquisa & Debate, volume 13, n. 1(21), p. 30-45,
2001.
MENDES, Judas Tadeu Grassi. In Revista FAE BUSINESS, n.1, nov. 2001.
ROMERO, Carlos Cortez. Lei de Inovação Tecnológica: críticas e
contribuições. Disponível em http://www.senac.br/BTS/282/boltec282d.htm. Acessado em
30/06/2014.
SUASSUNA, Luciano. Itamar Franco, o presidente que garantiu a democracia.
Disponível em http://lucianosuassuna.ig.com.br/2011/07/02/itamar-franco-o-presidente-que-
garantiu-a-democracia/
As migrações e o direito dos trabalhadores
Valdir Vicente de Barros47
Introdução
A discussão sobre as migrações no Brasil vem ganhando relevância e destaque
na mídia e na sociedade civil, com a recente onda migratória dos Haitianos para o
Brasil. Mas este fenômeno, relacionado com um desastre natural ocorrido no Haiti, nem
de longe reflete o longo processo migratório histórico do Brasil; este é dotado de uma
diversidade cultural, social e linguística que torna nosso processo migratório um
fenômeno único.
Podemos olhar para as migrações no Brasil a partir de alguns momentos da
história:
Primeiro, os nordestinos que, fugindo da fome migraram para o sudeste do
Brasil, notadamente para o Rio de Janeiro e São Paulo. Este movimento migratório
interno trouxe para a região, em especial para São Paulo, desenvolvimento e riqueza. É
inegável a contribuição dos nordestinos para o desenvolvimento do Brasil.
Além deste primeiro movimento de nordestinos para o sudeste, posteriormente,
quando da construção da nova capital, muitos nordestinos migraram para o centro-oeste
para construir Brasília, se tornando os primeiros candangos, fundamentais para o
sucesso do plano de construção da capital federal. Dentro do plano de expansão do
Brasil para o Centro-oeste, os migrantes nordestinos desempenharam um papel
fundamental, povoando e desenvolvendo as cidades do altiplano brasileiro. A
miscigenação com os cariocas que mudavam para Brasília para trabalhar na nova
Capital Federal dotou Brasília de uma riqueza inestimável, e ainda hoje se percebe em
diversas cidades-satélites as raízes nordestinas consolidadas e perenes, fundidas com
diversas outras culturas, mas sem perder seus elementos centrais de tradição nordestina.
Uma segunda onda migratória se deu com a vinda de estrangeiros para o Brasil,
ainda no período escravocrata. Estes migrantes são os que imprimiram um
multiculturalismo em tudo que fizeram. Artes, culinária, música, dança, organização dos
bairros, riqueza linguística; muito do que temos hoje como traços da cultura brasileira,
47
Conselheiro do CNIg. Representante da Central Geral dos Trabalhadores (CGT).
em especial nos grandes centros urbanos, devemos a estes migrantes que vieram
construir, junto com os brasileiros, esta nação grande e rica em diversidade cultural.
Cidades inteiras no Brasil devem aos migrantes sua existência e sua cultura. No sul do
país, onde se deu uma grande colonização de italianos e alemães, há cidades onde essas
línguas são aprendidas desde pequeno, e onde a cultura desses países é passada de pai
para filho, provendo de uma riqueza inestimável este país multicultural e diversificado.
Um terceiro fenômeno migratório que se deu e se dá no Brasil ainda é o dos
brasileiros que migraram para outros países nas últimas décadas, mas que devido a
dificuldades econômicas e até barreiras sociais e xenofóbicas nos países de destino,
decidiram fazer o caminho inverso e voltar à sua terra. São os retornados, que estão
vindo em número cada vez maior, em parte devido à crise mundial eclodida em 2008.
Um fenômeno mais recente, que vem ganhando mais força na medida em que o
Brasil é visto por muitos como a terra das oportunidades, é a vinda de estrangeiros sul-
americanos para o Brasil. Este tipo de migração foi potencializado após a entrada em
vigor do Acordo de Residência do MERCOSUL (2009) e da anistia concedida a
migrantes que residiam irregularmente no Brasil (2009). Estes dois instrumentos
permitiram não somente aos que já se encontravam no país regularizar sua situação
migratória, como também promoveram um aumento considerável no número de pessoas
que vieram ao Brasil buscar emprego, além das famílias daqueles que conseguiram sua
regularização.
Este movimento migratório possui duas características que devem ser levadas
em conta: a primeira se refere à dificuldade dos agentes públicos em implementar de
forma eficiente o Acordo de Residência; muitos migrantes ainda se encontram em
situação irregular pela falta de informação acerca do acordo, e pela morosidade do
sistema de concessão de vistos, especialmente na cidade de São Paulo, onde há uma
maior concentração de migrantes sul-americanos.
Muitos destes migrantes se encontram hoje submetidos a um regime de trabalho
análogo ao escravo, em uma das várias oficinas têxteis clandestinas que produzem
roupa para o mercado fashion brasileiro. Marcas famosas e multinacionais utilizam-se
da fragilidade da condição destes migrantes, e através da subcontratação de empresas,
promovem uma verdadeira precarização no setor. Trabalhadores em situação irregular
no país, com documentos confiscados pelos empregadores, com salários muito abaixo
do valor de mercado, submetidos a condições de trabalho e moradia precários. Essa é a
realidade de muitos migrantes que vivem e trabalham hoje em São Paulo. Geralmente
são aliciados nos seus países de origem por outros migrantes, muitos de origem asiática
e outros nacionais dos mesmos países de onde vem os trabalhadores. A eles é prometido
um trabalho estável, com bom salário (ou pelo menos melhor do que onde estão), com
situação trabalhista regularizada. Mas quando chegam, acabam por aceitar as condições
que lhes são impostas, pois sequer tem dinheiro suficiente para pagar uma passagem de
volta, e às vezes ficam sem documento.
Ainda que a legislação que trata dos migrantes nos países do MERCOSUL esteja
em um processo de humanização, no Brasil há muito que se fazer ainda para que os
migrantes que aqui chegam possam viver em igualdade de condições com os nacionais.
Experiências bem sucedidas podem ser utilizadas como exemplo.
Na Argentina, a criação de um órgão civil para cuidar da questão migratória, no
espírito da chamada Pátria Grande, inspirado nos ideais de Simón Bolivar, pode ser um
caminho para que o Brasil avance nesta questão e trate aos migrantes não mais pautado
pelo paradigma da segurança nacional, mas sim pela ótica dos direitos humanos e do
respeito ao direito de ir e vir, que se defende nos órgãos sociolaborais do MERCOSUL
pela Coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul.
A Coordenadoria, como órgão de articulação das Centrais Sindicais da região,
tem atuado na defesa da livre circulação dos trabalhadores e de suas famílias no
MERCOSUL e países associados, e teve um papel fundamental no processo de
negociação dos acordos de residência e seguridade social do MERCOSUL.
Os âmbitos de discussão dos temas de trabalho e Livre Circulação no
MERCOSUL hoje são:
- Subgrupo de Trabalho 10: “Relações Laborais, Emprego e Seguridade Social”,
de caráter intergovernamental, cujo trabalho é coordenado pelas autoridades laborais e
que conta com a participação dos representantes das organizações de trabalhadores e
empregadores. O SGT-10 debate a política de emprego no MERCOSUL, e divide-se em
três comissões temáticas (1 - Relações Trabalhistas; 2 - Emprego, Migrações,
Qualificação e Formação Profissional; 3 - Saúde, Segurança no Trabalho, Inspeção do
Trabalho e Seguridade Social). Na comissão de Emprego, Migrações, Qualificação e
Formação Profissional, se discutem os marcos fundamentais para facilitar a livre
circulação de trabalhadores no MERCOSUL. Do Trabalho do SGT-10 surgiu o Plano
Regional para Facilitação da Livre Circulação no MERCOSUL, que está em fase de
finalização, e que prevê a harmonização das políticas de emprego e migrações, para
criar as condições necessárias para a livre circulação.
O Grupo de Alto Nível para a Estratégia MERCOSUL de Crescimento do
Emprego, constituído a partir da referência estabelecida pela Declaração de Ministros
do Trabalho do MERCOSUL, produzida no âmbito da Conferência Regional de
Emprego do MERCOSUL, celebrada em Buenos Aires em abril de 2004, com o
objetivo de gerar diretrizes regionais para a construção de uma estratégia comum para a
promoção e a geração de emprego de qualidade - que reúne representantes dos
ministérios responsáveis pelas políticas laborais, econômicas, produtivas e educativas, e
com a participação dos representantes dos empregadores e trabalhadores.
A Comissão Sociolaboral do MERCOSUL – CSL é um órgão tripartite auxiliar
do Grupo Mercado Comum (GMC), com caráter promocional e não sancionador. A
CSL debate hoje a reformulação da Declaração Sociolaboral do MERCOSUL – DSL,
instrumento que busca estabelecer princípios norteadores das políticas de trabalho dos
países signatários. Sendo considerada a primeira carta social do MERCOSUL, a DSL
tem caráter não sancionador e não vinculante, o que a transforma em uma simples carta
de princípios, mas que ainda assim pode ser um importante instrumento para a defesa
dos trabalhadores na região.
A Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul – CCSCS defende a
transformação da Declaração em um Protocolo Sociolaboral do MERCOSUL, com
vinculação imediata e de caráter sancionador. Entre as propostas da CCSCS está a
vinculação ao respeito à DSL para empresas que acedam a recursos do MERCOSUL
para executar os projetos do Fundo de Convergência Estrutural do MERCOSUL ou para
participar de licitações de obras públicas no bloco. Esta posição tem encontrado grande
resistência do meio empresarial, e a questão foi levada a outros Foros internacionais,
como a Conferência Internacional do Trabalho, que, por pressão dos trabalhadores,
discutiu neste ano, na comissão sobre a transição da economia informal para a economia
formal, na sua 103ª edição, a questão das cadeias globais de produção e o acesso a
recursos públicos vinculados ao respeito aos princípios do trabalho decente.
Hoje, um trabalhador dos países membros do MERCOSUL, além dos
associados, pode trabalhar e residir em qualquer país que tenha ratificado o acordo de
residência, bastando para isso a vontade de fazê-lo.
No Brasil, o mesmo não se aplica a pessoas de outros países, como os europeus,
que para obter o visto para trabalhar no Brasil devem se submeter aos critérios
estabelecidos pelas Resoluções Normativas do CNIg. Dentre estes critérios estão o
vínculo familiar, seja por casamento ou por filiação, contratos de trabalho para
profissionais especializados, para suprir as carências de profissionais existentes no país,
ou então o investimento estrangeiro no valor mínimo de R$150.000,00 (cento e
cinquenta mil Reais), assim como a contratação de mão-de-obra nacional em empresas
cujos donos ou sócios sejam estrangeiros.
O papel do CNIg
Esta regulamentação se dá no Conselho Nacional de Imigração – CNIg. O
Conselho é composto por representantes governamentais, de empregadores e
trabalhadores, além de ter como observadores organizações da sociedade civil. O
Conselho é responsável por definir os procedimentos de concessão de visto de trabalho,
analisar as solicitações de visto encaminhadas pelo Ministério do Trabalho, além de
decidir sobre casos omissos, onde a legislação brasileira ainda não tenha uma
regulamentação clara.
O CNIg foi instituído em 19 de agosto de 1980, pela Lei nº 6.815, e é hoje
presidido pelo Ministério do Trabalho. O CNIg discutiu e propôs mudanças na atual lei
de migrações. O tema está atualmente sendo debatido no Congresso Nacional.
Ainda pautada pelo paradigma da segurança nacional, a Lei apresenta uma série
de restrições aos migrantes, incompatíveis com a promoção de uma área de livre
circulação que o MERCOSUL vem construindo. Entre outros pontos, a Lei 6.815, de 19
de agosto de 1980, proíbe ao migrante ser proprietário de empresa de radiodifusão ou
até de possuir um rádio difusor em casa. Proíbe também ao migrante o porte de arma ou
trabalhar em empresa de segurança. Além destas restrições de segurança, a atual Lei
conflita com a própria Constituição Federal ao atacar o artigo 1º, que estabelece a
igualdade de direitos e deveres entre todos os seres humanos. Ao cercear o direito a
votar e a ser votado, a Lei estabelece duas classes de cidadãos: os cidadãos plenos de
direitos e os cidadãos de direitos limitados, os migrantes. Esta proibição coloca o
migrante como mero expectador do processo democrático brasileiro, sendo obrigado a
aceitar as decisões que os nacionais tomam nas urnas.
O problema é que o migrante possui todas as obrigações dos nacionais, inclusive
as que são consequentes das decisões dos legisladores eleitos sem sua participação,
como impostos e demais taxas devidas por todos, mas não tem a possibilidade de
decidir quem o representará, nem pode se candidatar a nenhum pleito. Assim, deve
acatar, para bem ou para mal, tudo que lhe é imposto como resultado do processo
democrático.
O Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos Migrantes no
Brasil
As Centrais Sindicais filiadas à Confederação Sindical das Américas - CSA,
assim como as entidades de direitos humanos e defesa dos migrantes e as comunidades
de migrantes, com o propósito de contribuir para a melhoria das condições de vida e
trabalho dos migrantes no Brasil, criaram, em 2010, o Fórum Social pelos Direitos
Humanos e Integração dos Migrantes no Brasil. O Fórum, proposto pelas Centrais
Sindicais junto à CSA, teve a adesão de mais de 25 entidades ligadas à luta pelos
direitos migrantes, e hoje é uma importante ferramenta de luta, estando presente nos
principais foros de discussão da matéria, especialmente em São Paulo.
Dentre as principais reivindicações do Fórum estão a campanha “Aqui vivo, aqui
voto”, que defende a importância de que os migrantes sejam cidadãos plenos de direitos,
com direito a votar e ser votado. Esta campanha obteve seu primeiro grande resultado
na I COMIGRAR, a primeira conferência nacional de imigrações, que elegeu
conselheiros migrantes para as subprefeituras da cidade de São Paulo. Além de eleger
conselheiros, a I COMIGRAR se caracterizou como um passo importante na
valorização do migrante como ser humano, enfatizando a necessidade de que os poderes
públicos voltem seus olhos para essa comunidade e pense em políticas específicas para
estes.
Ainda há um longo caminho a ser percorrido, pois como diz um ditado latino
americano, “entre el dicho y el hecho hay un trecho” (entre o dito e o feito há um
trecho). Mas a perspectiva é de que com o trabalho integrado das entidades que
compõem o Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos Migrantes no Brasil
(FSDHIMB), aliado ao trabalho ostensivo e comprometido do CNIg na regulamentação
da vinda de migrantes com o propósito de trabalhar no Brasil, a política migratória se
aproximará cada vez mais da ideia sul-americana da Pátria Grande, e o país se
beneficiará, como historicamente se beneficiou, da valiosa contribuição dos migrantes
no desenvolvimento do Brasil.
Os Haitianos
A recente vinda de migrantes haitianos, impulsionada por um desastre climático
ocorrido naquele país é um fenômeno de destaque na história das migrações no Brasil,
ainda requer das autoridades e dos órgãos de tratamento das migrações (Ministério do
Trabalho e Emprego, Ministério da Justiça, Ministério de Relações Exteriores e CNIg),
uma atenção especial e um acompanhamento em tempo real do deslocamento dos
haitianos no Brasil.
Em 2009, um terremoto devastou o Haiti, em especial sua capital, Porto
Príncipe, e iniciou uma diáspora haitiana pelos países vizinhos. O fechamento das
fronteiras ao norte, pelos Estados Unidos, e a fragilidade das economias dos países
centro-americanos fez com que o Brasil se tornasse o principal destino dos Haitianos
que fugiam da crise que se abateu sobre aquele país.
Uma grande quantidade de migrantes haitianos, algumas centenas, entraram pela
fronteira norte do país a partir de 2010, principalmente pelas cidades de Tabatinga, no
Amazonas e Brasiléia e Assis Brasil, no Acre.
Estima-se que até 2013, entre quinze e vinte mil haitianos tenham vindo para o
Brasil, entre os que entraram pelas fronteiras terrestres e os que solicitaram visto em
Porto Príncipe, provocando um inchaço populacional e um caos social sem precedentes
para as cidades onde se instalaram no norte do país. E a cada dia mais haitianos
entravam pelas fronteiras, muitos deles pela ação dos chamados coiotes, que assim
como os coiotes que atuam na fronteira dos Estados Unidos com o México, cobravam
valores exorbitantes para passar os haitianos pela fronteira. Muitos haitianos juntavam
as economias de uma vida inteira para poder pagar aos coiotes para entrarem no Brasil.
O Estado do Acre declarou situação de emergência, e o CNIg criou um Grupo de
Trabalho para discutir mecanismos de solução para o problema que se havia instaurado
na região. Uma força tarefa foi enviada à fronteira norte do país, com a missão de
subsidiar o CNIg na tomada de decisão. Enquanto isso, centenas de pedidos de refúgio
eram protocolados no Conselho Nacional para os Refugiados – CONARE.
O CONARE decide pela concessão de refúgio em casos específicos, e o caso dos
haitianos não se encaixa no estabelecido pela Convenção de Genebra, que regula o
instituto do refúgio.
Portanto, o CONARE, ao negar o refúgio, passou a encaminhar os processos ao
CNIg, que passou a decidir pela concessão do visto por questões humanitárias.
Entretanto, era necessário organizar a vinda dos haitianos, e ao mesmo tempo combater
a ação dos coiotes.
Com esse propósito, o CNIg estabeleceu, através de Resolução Normativa,
regras para a concessão de visto para os haitianos, assim como limitou a concessão de
vistos em 1200 por ano, baseado nas estatísticas levantadas da vinda de haitianos até
então. Além da limitação de concessão de vistos, que visava organizar o processo,
também se estabeleceu que os migrantes devessem solicitar o visto em Porto Príncipe, e
seguir o rito legal naquela capital para obtenção do visto.
Mais tarde derrubou-se a limitação de 1200 vistos por mês, assim como a
necessidade de requerer o visto em Porto Príncipe. A avaliação era a de que muitos
migrantes já não estavam mais no Haiti, e a exigência de início do processo em Porto
Príncipe impedia a regularização de muitos migrantes que, ou já estavam no Brasil, ou
estavam em países vizinhos em trânsito para o Brasil, especialmente na República
Dominicana.
Além das medidas legais para solução do problema, outras medidas de natureza
social foram tomadas. Empresas foram às cidades onde os haitianos se concentravam
oferecer trabalho em diversas regiões do país, ajudando assim a distribuí-los
geograficamente e diminuir o inchaço que causava a presença deles nessas cidades.
Ainda assim, mais recentemente, no primeiro semestre de 2014, muitos haitianos que
estavam nas cidades do norte do Brasil foram deslocados para diversas cidades do
Brasil sem contratos de trabalho, sem moradia e sem dinheiro para retornar. São Paulo
foi o principal destino desses migrantes, que foram acolhidos nas igrejas e nas
associações de auxílio. Muitos passaram a viver no centro de São Paulo, no bairro do
Glicério, em condições precárias, muitas vezes nas ruas, buscando trabalho onde se
pudesse achar, fazendo bicos para sobreviver. A prefeitura de São Paulo então montou
mutirões de auxílio aos migrantes, para ajudar a conseguir documentos e a buscar
trabalho legal e formal.
Conclusão
É clara a necessidade de ampliar a discussão sobre os trabalhadores migrantes,
seja no âmbito nacional, seja no âmbito regional, para dar voz e vez aos migrantes, aqui
ou em qualquer outro país. Longe de ser um problema isolado, as migrações são hoje,
como sempre foram, uma realidade à qual as legislações nacionais devem se adaptar.
É um contrassenso um país que, em sua construção, contou com o auxílio e
dedicação de migrantes hoje negar-lhes os direitos mais fundamentais, como o de ir e
vir e o de decidir o futuro do país em um processo de eleições. Há migrantes que estão
no país há décadas, e nunca puderam sequer decidir por representantes locais, quanto
mais participar na eleição de governadores ou Presidente da República. Este é um ponto
crucial para empoderar os nossos irmãos migrantes e contribuir assim para o
desenvolvimento deste país tão rico em sua diversidade cultural, com uma contribuição
fundamental dos migrantes.
Vivemos em um mundo onde as grandes corporações multinacionais
ditam o ritmo das economias em muitos países, e para equilibrar a balança é importante
que os trabalhadores do mundo possam estar em condições iguais de discutir estratégias
de defesa dos seus direitos.
Direitos, integração e mobilidades: Desafios no mercado de trabalho
Stanley Gacek48
Boa tarde a todos e todas. Antes de prosseguir com meus comentários, gostaria
de cumprimentar os palestrantes ilustres da mesa, Christina Aires Correia Lima da CNI,
Marjolaine Tavares do Canto da CNC, e meu colega de longa data devido à minha
história anterior com o movimento sindical americano e internacional, Valdir Vicente da
UGT. Também gostaria de cumprimentar os Ministros de Estado, Autoridades,
Pesquisadores, Representantes da Sociedade Civil e dos Órgãos Governamentais,
Líderes Sindicais e Representantes dos Empregadores.
Também quero parabenizar a iniciativa dos coordenadores deste seminário pelo
lançamento oficial do Observatório das Migrações Internacionais, especialmente por
meio do Ministério do Trabalho e Emprego e do Conselho Nacional de Imigração
(CNIg). Quero reconhecer os esforços e as contribuições especiais do Dr. Paulo Sérgio
de Almeida, Secretário da Inspeção do Trabalho e Presidente do CNIg, e também do
Professor Leonardo Cavalcanti da UnB.
Realmente é uma honra para nosso Escritório da OIT em Brasília estar presente
neste seminário e participar no painel intitulado “Direitos, integração e mobilidades:
Desafios no mercado de trabalho”. O tema deste seminário é de importância central para
a OIT e para sua missão. Ele vai nortear um debate transversal e crucial na próxima
Conferência Internacional do Trabalho em Genebra, na 103ª sessão, que começa no
final deste mês49
. Haverá uma discussão sobre o Relatório Especial do Diretor Geral
Guy Ryder, intitulado “Migração Justa – a Criação de uma Agenda da OIT” (OIT,
2014). Aliás, vou me referir bastante ao conteúdo desse documento do Diretor Geral nos
meus comentários de hoje como debatedor.
Haverá uma comissão especial na Conferência para discutir o futuro das normas
da OIT sobre a eliminação do trabalho forçado e trabalho escravo, e, especialmente em
relação à Convenção 29, ratificada pelo Brasil em 1957, para que haja uma nova
48
Advogado trabalhista norte-americano, Diretor-Adjunto do Escritório da OIT no Brasil desde 2011,
membro da Ordem de Advogados do Distrito de Columbia (Washington, D.C.) desde 1979, juris doutor
em Direito pela Harvard Law School, Cambridge, Massachusetts, EUA, e professor visitante, Harvard
University, Departamento de Sociologia, em 2008. 49
A 103ª sessão da CIT já foi realizada entre o dia 28 de maio e o dia 12 de junho de 2014. Este discurso
foi proferido no seminário sobre migração laboral no Brasil, duas semanas antes do começo da 103ª CIT.
recomendação e um novo protocolo para enfrentar com mais precisão e detalhe os
desafios do aliciamento ao tráfico de pessoas, da exploração do seu trabalho, e a
decorrente privação de sua liberdade e o abuso de direitos humanos básicos.50
Também gostaria de relatar muito brevemente o que o sistema de controle de
normas da OIT, e especificamente o Comitê de Peritos, tem concluído e recomendado
no caso do Brasil e a Convenção 97 da OIT sobre trabalhadores migrantes. Mesmo que
haja uma variedade de motivos para a mobilidade de pessoas, - fugas dos locais de
conflito armado, de repressão política, e de desastres naturais, sem nenhuma dúvida, a
privação e as dificuldades econômicas no país de origem (remetente), e a demanda pelo
trabalho no país destinatário, constituem uma explicação fundamental da seguinte
realidade: há 232 milhões de migrantes no mundo fora do seu país de origem (OIT,
2014: 3).
Embora algumas situações migratórias ultrapassem o tema do trabalho no
sentido estrito e entrem na esfera da ajuda humanitária, como no caso dos haitianos no
Brasil, sempre aparecem afinal os desafios de trabalho decente. (O trabalho decente,
conceito formalizado pela OIT em 1999, sintetiza a sua missão histórica de promover
oportunidades para que homens e mulheres possam ter um trabalho produtivo e de
qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana.
Também ele é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da OIT:
- o respeito aos direitos no trabalho (em especial aqueles definidos como
fundamentais pela Declaração Relativa aos Direitos e Princípios Fundamentais de
1998: liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva;
eliminação de todas as formas de trabalho forçado; abolição efetiva do trabalho infantil;
eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação);
- a promoção do emprego produtivo e de qualidade;
- a extensão da proteção social; e o fortalecimento do diálogo social. (OIT, 2011)
Obviamente a Resolução Normativa nº 106, publicada pelo CNIg no ano
passado para providenciar um visto especial aos migrantes haitianos51
, foi elaborada
para enfrentar esses desafios eventuais de trabalho decente, inclusive por meio de todos
os auxílios oferecidos pelos ministérios e pelas autoridades federais e estaduais,
inclusive pontos de atendimento, abrigo, formação, e a intermediação.
50
A Recomendação 203 sobre os Meios Suplementares à Supressão do Trabalho Forçado e o Protocolo
relativo à Convenção 29 foram adotados na 103º Sessão da CIT. 51
Resolução Normativa No. 106 do 24 de outubro de 2013. Ver:
portal.mte.gov.br/trab_estrang/resolucoes-normativas.htm
Para resumir, seja o que for o motivo principal da mobilidade, a realidade final
sempre envolverá a questão de emprego e trabalho decente.
Também quero destacar os seguintes comentários do Diretor Geral no Relatório
Especial dele:
“A OIT pretende trazer à discussão (sobre migrações)
uma abordagem de direitos do trabalho (chamada uma “rights-based
approach”, em inglês) baseada nos valores universais de tratamento
igual e uma eliminação total de discriminação. Trabalhadores e
trabalhadoras migrantes devem receber remuneração igual pelo
trabalho de valor equivalente. Também eles devem ter a oportunidade
de exercer seus direitos fundamentais, inclusive os direitos sindicais.
Não é apenas uma questão básica de direitos humanos, mas também
será a melhor maneira de assegurar que a migração não for
explorada para solapar os termos e condições existentes de
trabalho”. (OIT, 2014: 7)
Há outros pontos e observações da OIT a ser consideradas no debate também.
Em primeiro lugar, migrações e imigrações justas são alicerces básicos do sistema
normativo da OIT desde o inicio da organização. Por exemplo, o Preambulo da
Constituição da OIT de 1919 faz uma referência explícita “à defesa dos interesses dos
trabalhadores empregados no estrangeiro”52
. E a Declaração da Filadélfia de 1944 (da
OIT) fala de “garantias adequadas”, inclusive na área de formação profissional, para
trabalhadores migrantes53
.
A menos que se explicite o contrário, todos os instrumentos normativos da OIT
cobrem os trabalhadores migrantes, independentemente de sua situação regular ou
irregular.
Aliás, são 82 convenções da OIT em vigor que foram ratificadas pelo Brasil.
As convenções da OIT são tratados internacionais que definem padrões mínimos
a serem observados por todos os países que as ratificam. A ratificação de uma
convenção da OIT por qualquer de seus Estados-Membros é um ato soberano e implica
52
Ver a Constituição da OIT, www.oitbrasil.org.br/documentos 53
Ver a Declaração da Filadélfia da OIT, www.oitbrasil.org.br/documentos
sua incorporação ao sistema jurídico, legislativo, executivo e administrativo do país em
questão, tendo, portanto, um caráter vinculante (OIT, 2012: 4; Gunther, 2011: 49-53).
Há três convenções da OIT (97, 143 e 181) que tratam especificamente as
condições dos migrantes. Convenção 97, adotada em 1949, estipula as condições e
direitos gerais para os trabalhadores/as migrantes; Convenção 143, adotada em 1975,
trata a questão das imigrações efetuadas em condições abusivas; Convenção 181,
adotada em 1997, é relativa às agências privadas de emprego, e garante no Artigo 7º que
“as agências de emprego privadas não devem impor aos trabalhadores (inclusive aos
trabalhadores migrantes), diretamente ou indiretamente, o pagamento de honorários ou
outros encargos”54
e o Artigo 4º, garante os direitos de liberdade sindical e de
negociação coletiva para os trabalhadores recrutados e contratados, inclusive os
migrantes. 55
A Convenção 97 foi a única dessas três normas ratificada pelo Brasil, e isso foi
em 1965. O Artigo 1º da norma obriga ao Estado Membro que ratificou a Convenção a
providenciar:
“a- informações sobre a política e a legislação nacional
referente à emigração e imigração;
b- informações sobre disposições especiais relativas ao
movimento de trabalhadores migrantes e às suas condições de
trabalho e de vida;
c- informações sobre os acordos gerais e os entendimentos
especiais nestas matérias, celebrados pelo Membro em apreço.” 56
Artigo 2º obriga que o Estado Membro mantenha “um serviço gratuito
adequado incumbido de prestar auxílio aos trabalhadores migrantes e, especialmente, de
proporcionar-lhes informações exatas ou assegurar que funcione um serviço dessa
natureza.”57
E o Artigo 3º obriga as medidas cabíveis nacionais contra a propaganda
falsa e enganadora utilizada no aliciamento e no recrutamento dos trabalhadores
migrantes.58
Artigo 6º diz que
54
Convenção 181 da OIT, http://www.oitbrasil.org.br 55
Id. 56
Convenção 97 da OIT, http://www.oitbrasil.org.br 57
Id. 58
Id.
“se obriga a aplicar aos imigrantes que se encontrem
legalmente em seu território, sem discriminação de nacionalidade,
religião ou sexo, um tratamento que não seja inferior ao aplicado a
seus próprios nacionais com relação aos seguintes assuntos:
a) sempre que estes pontes estejam regulamentados pela
legislação ou dependem de autoridades administrativas: I) a
remuneração, compreendidos os abonos familiares quando estes
fizerem parte da mesma, a duração de trabalho, as horas
extraordinárias, férias remuneradas, restrições do trabalho a
domicílio, idade de admissão no emprego, aprendizagem e formação
profissional, trabalho das mulheres e dos menores; II) a filiação a
organizações sindicais e o gozo das vantagens das convenções
coletivas; III) a habitação;
b) a seguridade social (isto é, as disposições legais relativas
aos acidentes de trabalho, enfermidades profissionais, maternidade,
doença, velhice e morte, desemprego, e encargos de família, assim
como a qualquer outro risco que, de acordo com a legislação
nacional esteja coberto por um regime de seguridade social), sob
reserva: I) de acordos adequados visando à manutenção dos direitos
adquiridos e dos direitos em curso de aquisição; II) de disposições
especiais estabelecidas pela legislação nacional do país de imigração
sobre auxílios ou frações de auxílio pagos exclusivamente pelos
fundos públicos e sobre subsídios pagos às pessoas que não reúnam
as condições de contribuição exigidas para a percepção de um
benefício normal;
c) os impostos, taxas e contribuições, concernentes ao
trabalho, percebidas em relação à pessoa empregada;
d) as ações judiciais relativas às questões mencionadas na
presente convenção.”59
O Anexo 1º da Convenção 97 fala sobre as medidas necessárias para
regulamentar e fiscalizar as agências privadas de recrutamento para o emprego – ou
59
Id.
seja, nos casos de trabalhadores migrantes “que não tenham sido recrutados em virtude
de acordo sobre migrações coletivas celebrados sob controle governamental.”60
Em relação à Convenção 97, o Comitê de Peritos enviou um requerimento direto
ao governo brasileiro em 2013, pedindo o seguinte:
“a) mais informações sobre os avanços relativos ao PL No.
5655 de 2009 que estabelece um novo regime migratório e fortalece o
mandato do CNIg;
b) mais informações sobre os avanços em relação à questão
migratória nos acordos MERCOSUL sobre Inspeção de Trabalho e
Seguridade Social;
c) mais informações sobre as medidas concretas adotadas e
destinadas à proteção dos brasileiros que migram ao exterior, e
especialmente para prevenir o abuso, a exploração e a violência
contra as trabalhadoras migrantes do Brasil;
d) mais informações sobre as medidas adotadas para garantir
que os trabalhadores migrantes não sejam as vítimas de propaganda
enganadora;
e) mais informações sobre as medidas que garantem a
igualdade de tratamento para os trabalhadores migrantes no Brasil,
especialmente em relação à Copa, sobre a evolução da reforma da
Lei No. 6815 de 1980 quanto ao estrangeiro, e sobre as medidas
adotadas quanto à proteção das trabalhadoras e dos trabalhadores
domésticos migrantes, e, por fim,
f) informações sobre a aprovação do decreto presidencial para
regulamentar a aplicação do Anexo 1º da Convenção sobre as
agências privadas e os trabalhadores migrantes”.61
Gostaria de destacar algumas políticas e medidas que poderiam ser tomadas no
futuro, conforme recomendadas pelo Diretor-Geral da OIT em seu Relatório Especial
sobre as migrações:
60
Id. 61
Direct Request (CEACR) – adopted 2013, published 103rd
ILC Session (2014), Migration for
Employment Convention (Revised), 1949 (No. 97) – Brazil (Ratification: 1965). Disponível em
http://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=1000:13100:0::NO:13100:P13100_COMMENT_ID:3113071
A promoção do trabalho decente nos países de origem,
inclusive através das contribuições dos migrantes no exterior, que
significam um grande potencial para o desenvolvimento sustentável e
o combate à pobreza e à privação econômica. Em 2013, o valor total
das remessas dos migrantes para os países de origem foi $404
bilhões de dólares- ou seja, três vezes mais o valor da assistência
oficial ao desenvolvimento sustentável no exterior!
Regulamentação e garantias de migração justa nos regimes de
integração regional. Acordos e tratados regionais e bilaterais sobre a
portabilidade de direitos de seguridade social (os chamados acordos
de “totalização”) fazem parte deste sistema de regulamentação.
Promoção de acordos bilaterais para garantir migração justa
entre os Estados membros da OIT – e inclusive entre os constituintes
– por exemplo, as centrais sindicais. As centrais sindicais dos países
destinatários, inclusive na América do Norte e na Europa, têm
proporcionado informações sobre os direitos trabalhistas e sindicais
(nos países destinatários) para os trabalhadores e trabalhadoras
imigrantes, e através das centrais dos países remetentes.
A incorporação de processos de recrutamento justo – inclusive
nas agências privadas de emprego.
Erradicação das situações e das formas inaceitáveis de
trabalho para os migrantes.
Abordagem de políticas baseadas nos direitos e nas normas da
OIT – o “rights based approach”.(OIT, 2014: 21-23)
Nós da OIT gostaríamos de parabenizar o Brasil pela abordagem de políticas
baseadas nos direitos para os migrantes. A nosso ver, o principal objetivo da Política
Nacional do Brasil sobre Migrações é proporcionar que os movimentos migratórios
ocorram de forma regular e documentada, buscando a proteção dos direitos humanos e
das normas da OIT e combatendo, dessa forma, a prática do tráfico de pessoas,
exploração laboral e sexual entre os migrantes. Neste sentido a OIT continua sendo uma
parceira fiel e constante com o governo brasileiro, e com as organizações de
empregadores e trabalhadores brasileiros, para apoiar na construção das ações de
proteção aos migrantes.
Sendo estrangeiro com o privilégio de muita experiência na área internacional,
posso testemunhar que o Brasil é impar entre todos os 185 Estados Membros da OIT em
termos do seu compromisso nacional, estadual, regional e municipal de incorporar o
Trabalho Decente como uma política fundamental. E a iniciativa deste seminário é outro
comprovante desse compromisso exemplar.
Quero concluir com as palavras de um presidente do meu país – Franklin Delano
Roosevelt. Em 1938, ele estava falando no congresso da organização chamada, “As
Filhas da Revolução Americana”. Naquela época, essa associação de mulheres estava
defendendo “os valores anglo saxões” em contraste, e, às vezes, contra as outras
nacionalidades e etnias nos Estados Unidos. Com muita coragem, Roosevelt fez o
seguinte comentário sábio no discurso dele: “todos nós, inclusive as senhoras, somos os
descendentes de imigrantes do exterior e de revolucionários.”
Referências Bibliográficas
GUNTHER, Luiz Eduardo. A OIT e o Direito do Trabalho no Brasil. Curitiba:
Juruá Editora, 2011.
OIT – Organização Internacional do Trabalho. A OIT no Brasil – Trabalho
Decente Para uma Vida Digna. Brasília: OIT/Escritório no Brasil, 2012. Disponível em
www.oitbrasil.org.br
OIT – Organização Internacional do Trabalho. O que é Trabalho Decente.
OIT/Escritório no Brasil, Brasília: 2011. Disponível em
http://www.oitbrasil.org.br/content/o-que-e-trabalho-decente
OIT – Organização Internacional do Trabalho. Report of the Director-General:
Fair Migration/Setting an ILO Agenda. International Labor Conference, 103rd
Session,
Report 1 (B), Genebra, 2014.
Menos nacionalismo e mais direitos humanos: o papel do MPT diante
do trabalho do estrangeiro em situação irregular
Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes62
Introdução
Saiu estampada na primeira página da Folha de São Paulo de 23/01/2011:
“Países ricos fazem oferta de mão-de-obra para o Brasil”. A reportagem, em tom
claramente sensacionalista, chegava a afirmar que “a fila de espera para entrar no país,
sobretudo no setor de construção, inclui americanos, espanhóis, italianos, portugueses e
ingleses”, além dos vizinhos chilenos e argentinos, e que há um interesse “brutal” em
vir para cá.
Abstraindo o exagero evidente da noticia, o fato é que ela marca um ponto de
virada, causado tanto pela carência de formação de mão de obra qualificada no Brasil
quanto pela conjuntura de crise econômica nos países que antes recebiam trabalhadores
brasileiros imigrantes (provavelmente não por casualidade, as nacionalidades citadas na
manchete de primeira página citam especificamente os países que mais atraíam
brasileiros nos últimos anos).
Esse exagero também revela um traço bem brasileiro: um certo ufanismo
nacionalista. Duplo perigo. Esconde o colapso na educação e instiga juízos infundados
de pretensa superioridade do brasileiro agora também em face aos cidadãos de países de
“primeiro mundo”63
.
Estarão as instituições brasileiras preparadas para lidarem com um novo boom
de imigração para o Brasil? A se julgar pelos atuais procedimentos adotados em face
dos estrangeiros encontrados trabalhando em situação irregular no país, como os
bolivianos em São Paulo e os mercosulinos em geral, a pergunta dá o que pensar.
62
Procuradora do Trabalho. Mestre e doutora pela Universidad Pablo de Olavide de Sevilla.
Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Migrações da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho
Escravo - CONAETE, do Ministério Público do Trabalho. 63
Historicamente, autores importantes já descreveram um traço característico do comportamento do
brasileiro: uma atitude de subserviência e supervalorização dos estrangeiros, especialmente aqueles
provenientes dos Estados Unidos e Europa. A notícia, portanto, incita uma reviravolta nesse
comportamento, equiparando “civilizados” a “latinoamericanos”. Porque com respeito aos cidadãos da
América Latina, esse juízo de superioridade brasileira já é bastante evidente, principalmente se os
latinoamericanos aqui presentes pertencerem a classes sociais desfavorecidas.
Temos uma legislação seletiva para a imigração, que, no que diz com a mão de
obra qualificada, é permissiva, apesar de burocrática. No entanto, a aplicação da
legislação, principalmente diante dos casos de imigração espontânea (no sentido de não
ter sido oportunizada por nenhuma empresa), é dificultada pela presença de alguns
preconceitos e ideias distorcidas bem arraigadas na cultura brasileira (superioridade em
face aos latino-americanos e temor a que o estrangeiro roube nossos empregos). Se
somarmos a isso o maniqueísmo de alguns agentes públicos (“é preciso defender os
empregos brasileiros do ataque dos estrangeiros”), teremos os ingredientes necessários
para ferir muitos direitos humanos, sem com isso garantir nenhum benefício ao Brasil
ou aos cidadãos brasileiros.
Esse artigo pretende oferecer uma perspectiva teórica para o enfrentamento dos
problemas que a imigração para o Brasil poderá acarretar, bem como, a partir dessa
perspectiva, oferecer uma proposta concreta de atuação para o membro do Ministério
Público de Trabalho que for chamado a atuar em situações de exploração do trabalho
estrangeiro.
Nacionalismo. É bom para o país?
Há pessoas que relacionam o patriotismo com o nacionalismo, e por isso,
concluem que se tratam de ideologias valorosas e benéficas. Realmente, patriotismo e
nacionalismo possuem aspectos comuns, relacionados com o amor a uma comunidade,
mas o patriotismo desconsidera a questão da homogeneidade cultural, enquanto que o
nacionalismo a evidencia. Pode parecer que a noção de patriotismo seja mais
democrática, mais pluralista. Mas, sem entrar na discussão sobre qual dessas ideologias
seria “melhor” (afinal, o patriotismo também pode ser manipulado como quando, por
exemplo, existem conflitos internos separatistas dentro de um mesmo país), sustentamos
que qualquer coalizão de pessoas com o objetivo de criar as condições que permitam
dominar/expulsar outras pessoas tidas por não pertencentes ao grupo é ruim.
O fato é que movimentos que pretendem a afirmação do grupo têm natureza
excludente, muito embora possam ser originados como resposta a agressões ilegítimas.
O desafio é não estancar o diálogo cultural quando predomina o movimento de
autoafirmação, pois, em sua base está frequentemente, disfarçado ou não, o sentimento
de superioridade. Quando é assim, o sentimento de pertencimento superdimensiona as
diferenças para fazer delas o fator de incompatibilidade entre as pessoas. A divisão entre
grupos, a desigualação e a hierarquização propiciadas por essas ideologias levam ao
embrutecimento cultural e podem, em casos extremos, legitimar comportamentos
violentos, cuja expressão máxima é o genocídio.
A esta altura, já está claro nosso posicionamento sobre nacionalismo e direito.
No entanto, com as mais nobres intenções, há quem defenda, ainda, o nacionalismo
como estratégia de resistência às imposições de um cosmopolitismo que esconde os
interesses das corporações transnacionais, apátridas por interesse próprio sem
instituições nem práticas. RUBIO CASTRO defende essa espécie de nacionalismo
cívico, respeitoso das diferenças, e baseado na relevância política da nacionalidade,
entendida como alíquota individual de pertencimento ao poder constituinte (RUBIO
CASTRO e MOYA ESCUDERO, 2003).
A proposta é arriscada. O interesse de autopreservação é facilmente manipulado
para justificar as medidas deliberada ou disfarçadamente xenófobas no âmbito das
políticas de imigração dos países ricos64
. Para solucionar esse impasse deve-se enfrentar
uma grande falácia: a de que o elemento nacional está sob ameaça das culturas bárbaras
dos povos imigrantes. Será possível repensar os nacionalismos, para que deixem de ser
utilizados ideologicamente como instrumento de manipulação popular?
É preciso levar em conta a fragilidade de base dos movimentos nacionalistas:
fundamentam-se no conceito tradicional de nação, calcado em abstrações que
“imaginam” uma “homogeneidade” populacional que é tomada por certa, muito embora
tal homogeneidade não exista no mundo real. Essas abstrações invisibilizam ou mesmo
reprimem as diferenças existentes na sociedade em prol da figura (abstrata) de um
“cidadão ideal”, imaginado com as características da classe detentora do poder. Por isso,
o nacionalismo costuma ir muito além da “união de um povo contra os inimigos”
(apesar de servir para isso em tempos de guerra). O nacionalismo constitui-se em
fundamento ideológico a justificar a repressão de parte desse povo em prol de uma
uniformidade que certamente beneficiará apenas a parte dominante da sociedade (e
assim funcionará ininterruptamente; em tempos de guerra e de paz).65
64
Isso é o que BENHABIB afirma ser a tentativa de assegurar a pureza da nação no tempo através do
controle policial das fronteiras (BENHABIB, 2005: 24). 65
Historicamente, as sociedades europeias consideram-se como “conjuntos já povoados e constituídos”,
diferentemente dos Estados Unidos, Canadá e Austrália, que construíram seu “ideal nacional”, bem como
seu orgulho nacional baseado na característica de “países de imigração”, conforme informa
MARTINELLO (2003: 37). Na prática, no entanto, apesar dessas diferenças, sempre imperou um modelo
de “cidadão ideal” e, no caso dos países de imigração, é evidente que a imigração admitida é uma
imigração pretérita, que se bem contribuiu para formar um povo, atualmente é desnecessária, pois o povo
Exemplos históricos induzem a reprovar os nacionalismos convertidos em
instrumentos de tomada de poder. Por isso cabe aqui a referência a FRANTZ FANON
(1963), que vai ao cerne da questão do nacionalismo para advertir, com clarividência,
que o nacionalismo, como projeto, não é nada mais que a ausência de projeto. E, mais
além, que o nacionalismo radicalizado converte-se em racismo. O sentimento nacional
deve ser respeitado, mas em nome de um projeto de libertação que olhe para o futuro.
Não basta desejar a autonomia, a superação das dificuldades, dias melhores. É
necessário planejar esses dias melhores, discutir como se alcançará o objetivo, que não
é a simples independência, mas a construção de uma sociedade mais justa. Com efeito:
el nacionalismo nos es una doctrina política, no es un
programa, Si se quiere evitar realmente al país ese retroceso, esas
interrupciones, esas fallas, hay que pasar rápidamente de la
conciencia nacional a la conciencia política y social. […] El
nacionalismo, si no se hace explícito, si no se enriquece y se
profundiza, si no se transforma rápidamente en consciencia política y
social, en humanismo, conduce a un callejón sin salida (FANON,
1963: 185-6).
HABERMAS (2002) também advertiu que “no mundo, tal qual o conhecemos, é
o acaso histórico, normalmente o simples resultado de conflitos armados, guerras e
guerras civis, quem decide a quem caberá, em cada caso, o exercício do poder e definirá
as fronteiras controvertidas de um Estado” (HABERMAS, 2002: 166), e que o
nacionalismo é alimento para esse tipo de conflito. Por isso, afirma que “enquanto todos
os habitantes gozarem dos mesmos direitos e ninguém for discriminado, não existe
nenhum motivo normativamente convincente para a separação da comunidade
existente” (ibid: 169).66
Para HERRERA FLORES (2005: 258), o nacionalismo é um produto ideológico
que impede os seres humanos de “reagir simbolicamente frente ao mundo” (expressar
sua maneira de ser, sua diferença); e não serve para nada mais que manter as estruturas
já está constituído – basta pensar na questão dos “hispânicos” nos EUA. Não há fatos que demonstrem
que atualmente se possa afirmar que a mentalidade dos Estados Unidos e Canadá seja mais aberta. 66
A afirmação do autor é realizada no contexto de análise dos movimentos separatistas, para os quais o
autor só vê justificativa no caso em que o Estado nega seus direitos a uma parte da população,
concentrada num território. Nada obstante, entendemos que o raciocínio pode ser estendido para o
fenômeno nacionalista em geral, sem prejuízo e sem contradição com o pensamento do autor citado.
do poder à custa da propulsão da vaidade, do orgulho, da intolerância e da violência. Por
não levar ao diálogo, mas ao embrutecimento, deve ser rechaçado.
Assim, concluímos que o nacionalismo, por si mesmo, não será fator de impulso
da solidariedade social, pois a solidariedade dos nacionalistas é restrita ao grupo
nacional, que pode não representar todos os habitantes do país. Como o nacionalismo é
excludente, ainda que a solução óbvia (eliminar do país os não-nacionais) pudesse ser
implementada, algumas novas diferenças surgiriam entre as pessoas, e essas diferenças
passariam a ser relevantes, incômodas, “insuperáveis”. Sempre funciona desta maneira
quando a lógica que permeia a relação entre pessoas é a lógica da dominação. Assim, o
grande desafio das sociedades atuais permanece o mesmo: fazer valer os ideais de
liberdade e igualdade, sem preferência de um sobre o outro ou, em outras palavras,
buscar uma cidadania democrática mais forte e, por esse caminho, recuperar a
solidariedade perdida entre os “indivíduos” que integram hoje tão apaticamente as
atomizadas nações.
Distinções por motivo de nacionalidade: o critério da responsabilidade
O nacionalismo não pode estar na base de qualquer raciocínio jurídico. Isso é
mais evidente, ainda, quando se trata de distinguir, de compatibilizar o princípio da
igualdade com as diferenças de nacionalidade. Nada obstante, o fato é que a igualdade
entre nacionais e estrangeiros é mitigada, pelo menos no que diz com dois direitos
fundamentais: de ir e vir, e de trabalhar.
Onde residirá o discrimen relevante para promover distinção entre brasileiros e
estrangeiros? Vejamos a opinião de alguns autores e o estado da questão no direito
internacional.
Para DE LUCAS, o que induz ao tratamento diferenciado entre estrangeiros e
nacionais é a representação do estrangeiro como pessoa presente de maneira temporária,
somente durante o período em que é necessário para o mercado de trabalho.
por eso, vale para el inmigrante el viejo principio de
discriminación pretendidamente justificada de extranjero respecto al
nacional: sus derechos, empezando por los básicos, no pueden ser los
mismos que los del nacional. Las otras vías de reconocimiento del
inmigrante como sujeto son subordinadas a ésta, y, en particular eso
es así por lo que se refiere al reagrupamiento familiar. (DE LUCAS et
ali, 2001: 51)
Essa ideia se reflete nas normas internacionais sobre a matéria. Nem o Tratado
Constitutivo da Comunidade Europeia, nem o Tratado da União Europeia estabelecem
taxativamente o princípio da não discriminação por motivo de nacionalidade.
As Convenções Internacionais de Direitos Humanos pouco avançam com
relação a este tema. A efetiva proibição de discriminação no acesso ao emprego e
durante o contrato de trabalho, com alguma força vinculante, somente se encontra nas
Convenções 97 e 143 da OIT, esta última ratificada por pouquíssimos países.
Por isso MARÍN Y GALLEGO afirmar que, “que el derecho al trabajo no sea
considerado un derecho humano imprescindible para la garantía humana sólo se explica
por razones de política económica, o si quiere, de geopolítica” (MARÍN e GALLEGO
MOYA, 2005: 24).
BALLESTER PASTOR (2006), após examinar outros dispositivos de Direito
Comunitário (Diretivas 2000/78 e 2000/43), conclui que os países europeus não
renunciaram a sua prerrogativa de estabelecer os critérios e procedimentos específicos
para acesso de nacionais de terceiros países, provavelmente porque pretendem manter
as políticas internacionais de preferência a nacionais de certos países, razão pela qual
conclui que:
Al final, la política antidiscriminatoria por razón de
nacionalidad queda reducida a multitud de documentos sin fuerza
vinculante en los que se reafirma la postura contraria a los actos
xenófobos de los países de la Unión. Algunos de dichos actos son los
siguientes: la Acción Común 96/443 JAI relativa a la acción contra el
racismo y la xenofobia, el Consejo Europeo de Tampere de 1999, el
Acuerdo de 1999 entre la Comunidad Europea y el Consejo de
Europa con el fin de establecer una estrecha cooperación entre el
Observatorio Europeo del Racismo y la Xenofobia y el Consejo de
Europa; y Decisión Marco del Consejo relativa a la lucha contra la
trata de seres humanos. (BALLESTER PASTOR, 2006: 6-7)
Assim, a questão se desdobra em duas. Primeiro, a validade jurídica de uma
política migratória que não aceite a incorporação de estrangeiros é justificada pela
soberania estatal e, segundo, a possibilidade das políticas de admissão de estrangeiros
serem seletivas, admitindo inclusive a eleição de nacionalidades preferenciais, é
justificada por essa mesma soberania, somada a um critério de “autoproteção”.
O fato é que os Estados costumam alegar ser a soberania o motivo das restrições
ao estabelecimento de estrangeiros, justamente para evitar expor as razões políticas e
econômicas que as determinam. Em outras palavras, a soberania, por si só, não seria
fundamento suficiente, pois indica apenas o poder e não a efetiva decisão. Abstendo-se
de indicar a decisão (originada do poder), os Estados pretendem abster-se de
questionamentos quanto a eventuais abusos, evadindo-se de eventual controle por parte
da comunidade internacional e dos padrões básicos de direitos humanos.
Além disso, setores político-ideológicos europeus, passada a calmaria pós 2ª
guerra, começaram a defender um direito da coletividade proteger suas instituições, sua
cultura e seu patrimônio da influência ou usufruto alheio67
. Esse critério de
autoproteção expõe a inconfessável xenofobia daqueles que lhe apregoam. Ora, sem
diminuir a importância do direito-dever de preservação da cultura, é preciso ter muita
cautela para definir a forma como esse direito deve ser exercido; seja porque nenhuma
cultura é estanque, seja porque a preservação de um direito não pode lesar a outros de
igual ou maior importância, seja porque nem mesmo a soberania é uma prerrogativa
ilimitada. A comunidade internacional demanda reciprocidade e respeito aos direitos
humanos.
Assim, entendemos que os fundamentos da soberania e da autopreservação não
podem ser utilizados para justificar a distinção entre nacionais e estrangeiros candidatos
a imigração. Ou melhor, entendemos que é preciso ressignificar o que se entende por
“soberania”, para fundamentar essa decisão. A soberania não pode estar associada ao
absolutismo. Deve ser associada à responsabilidade de gerir um país.
Explicamos: admitimos que todos os governos de países têm um interesse
legítimo de bem gerir seu próprio sistema econômico e seu mercado de trabalho, em
razão do compromisso assumido com o povo. E é certo que esses dois pilares da
sociedade podem ser afetados na hipótese de ocorrer imigração massiva e desordenada.
67
A Afirmação pode dar a entender que esse “direito de autoproteção seja coisa nova”. Mas esse tipo de
ideologia não é nem novo, nem exclusivamente europeu. O Brasil já lançou mão desse tipo de orientação
ao definir a política migratória mais conveniente após a proclamação da república, com o objetivo de
branqueamento da raça. Assim, o imigrante branco valia mais que o imigrante japonês, que valia mais
que o negro (LOPES, 2009).
Esse é, pois, o fundamento que defendemos para a admissão da validade de uma
política de migrações. Responsabilidade, estabilidade das instituições e não
simplesmente “soberania ou autoproteção”. Essa perspectiva admite até mesmo certas
restrições de acesso ao trabalho para os estrangeiros, sem afronta o princípio da
igualdade, por considerá-los, em tese, ausentes.
No entanto, por essa perspectiva, a partir do momento em que ocorre a
incorporação do estrangeiro ao mercado de trabalho, ainda que na economia informal,
não haverá como negar-se o reconhecimento da igualdade de direitos para com o
nacional, pois essa premissa de que o estrangeiro é uma pessoa ausente (e que portanto
as situações não são comparáveis), se desvanece diante da imigração como fato (e não
mera hipótese).
Por isso, só se pode concluir que os direitos humanos garantidos pela
Constituição de 1988 valem inclusive para estrangeiros não residentes ou residentes
ilegais. Só cabe a ressalva quanto ao motivo ensejador da situação concreta que afasta o
residente irregular da regularidade administrativa. A admissibilidade da restrição a
direitos decorre de que o exercício das liberdades não é independente de eventual
atendimento a requisitos legais. Assim, por exemplo, o fato do imigrante estar
trabalhando informalmente pode privá-lo do direito ao emprego específico caso não seja
promovida a sua regularização (e isso para os estrangeiros comuns, pois os
mercosulinos têm um status privilegiado, que lhe garantem o direito a qualquer trabalho
lícito), mas não pode privá-lo dos direitos decorrentes do trabalho que tenha sido
exercido, inclusive de sua tutela jurisdicional, devidamente previstos dentre os direitos e
garantias fundamentais no seio da Constituição Federal.
Assim, devem ser definitivamente afastadas interpretações simplistas do caput
do art. 5º, que neguem direitos a estrangeiros considerados “não-residentes” pela
situação de irregularidade migratória68
. E toda alteração legislativa que pretenda
instituir disparidade de tratamento, terá de ser justificada com base em fundamento que
respeite os direitos humanos, os valores de reciprocidade da comunidade internacional,
a proibição do retrocesso histórico, a razoabilidade, a proporcionalidade e o direito ao
pertencimento de todo cidadão do mundo.
68
Com efeito, apesar do paradoxo, pode ser possível que o estrangeiro viva e trabalhe no país, mas não
seja considerado residente. Porque o conceito de “residente” tem sido historicamente atrelado à
“residência legal”, o que implica a pessoa ser legalmente admitida no país. Para ser legalmente admitida
em um país, é necessária a concessão do visto, em função da atividade que o estrangeiro pretenda realizar
no país.
Igualdade como ponto de chegada: um passo na direção dos direitos
humanos
A oposição entre nacionais e estrangeiros revela sempre uma desigualação, que
se costuma justificar justamente pela nacionalidade como critério diferenciador.
Os instrumentos internacionais que versam sobre os direitos dos imigrantes
procuram assegurar “igualdade de tratamento” aos estrangeiros, mas o que se vê na
prática (principalmente no processo de interpretação de leis) é que se parte sempre de
uma distinção sobre a nacionalidade para depois averiguar se, apesar dessa diferença, os
imigrantes merecem usufruir os mesmos Direitos que os nacionais. Entendemos que
essa lógica de raciocínio deveria funcionar ao contrário. A nacionalidade estrangeira de
um determinado imigrante não deveria ser, a priori, tomada como uma situação que o
exclui da sociedade em que vive, dependendo as igualações de previsão legal. A
isonomia deveria ser pressuposta, razão pela qual a eventual desigualação, por
excepcional, deveria estar prevista em lei.
A aparente simplicidade deste raciocínio não diminui seu valor para os
excluídos. Senão vejamos o exemplo da discriminação de gênero. O princípio da
igualdade, em sua fórmula abstrata (“todos são iguais perante a lei”), apesar de nunca
haver distinguido especificamente os gêneros; nem ter excluído expressamente as
mulheres, foi utilizado por séculos de forma excludente. O mesmo se diga em relação à
escravidão, que conviveu pacificamente com o princípio abstrato da igualdade, sem que
os filósofos, sejam gregos, medievais ou iluministas, proclamassem qualquer
incompatibilidade.
Em termos de abstração, foi dos filósofos contratualistas de quem o mundo
ocidental herdou a atual concepção do princípio da igualdade. As teorias do contrato
social preconizavam que os homens livres se reuniriam para firmar um contrato que
legitimaria um governo comum. Independentemente das posições sociais que cada
indivíduo ocupasse, seria respeitada sua condição de ser humano para integrar o
contrato social. Assim, suas necessidades específicas não teriam importância, mas sim
sua liberdade de pactuar (ou de aderir) ao contrato proposto. Nesse sentido, a igualdade
era concebida como um ponto de partida.
HERRERA FLORES convida a repensar o princípio de igualdade como um
lugar de chegada, e não ponto de partida. Não se trata de simples jogo de palavras. A
compreensão do princípio da igualdade como um ideal a ser atingido (os ideais são
importantes, desde que não substituam a realidade), autoriza a implementar ações que se
destinem a promover a igualação social. Em certa medida, o argumento que aqui
desenvolvemos assemelha-se ao já assentado princípio de “igualdade de oportunidades”,
que constitui um desdobramento do princípio da igualdade fruto do liberalismo político.
Mas com ele não se confunde porque vai além.
A concepção de igualdade como ideal a ser atingido impõe o repensar das
estruturas sociais, com vistas a eliminar as hierarquias (e correspondentes
subordinações) que impedem, concretamente, que grupos de pessoas tenham as mesmas
condições de acesso aos bens e direitos (mulheres, negros, imigrantes, etc.). Ou seja,
trata-se de combater as desigualdades estruturais da sociedade, objetivo realmente
grandioso por exigir a transformação social (e não simples adaptação pontual a uma
situação individual). Aí reside a diferença em relação ao princípio liberal da igualdade
de oportunidades que, a propósito, revela-se insuficiente por carregar a mesma lógica
competitiva que produz, por sua vez, desigualdades sociais.
Afinal, estamos com BENHABIB, que reconhece a existência de um direito ao
pertencimento a um imigrante que se radicou em uma nação que não é a própria. “O
direito do residente temporário a ser membro é um direito humano que pode justificar-se
sob os princípios de uma moral universalista” (BENHABIB, 2005: 39-40).
Os interesses da sociedade não se confundem com a simples produção de
riqueza. Deve haver dignidade para todos.
Coordenadas para uma atuação coerente em matéria de imigração
Em decorrência do princípio da responsabilidade, qualquer política de imigração
só pode ser concretizada mediante participação ativa do Estado e da sociedade, de
maneira a compor todos os interesses envolvidos. Se a imigração fosse simplesmente
deixada “nas mãos do mercado”, ocorreria uma substituição do trabalhador nacional por
trabalhadores estrangeiros, submetidos a “regulamentos” estrangeiros. Converter
qualquer parte do território nacional em “terra sem lei” é sinônimo de falência do
Estado, ou de seu poder de influir na realidade para melhorá-la. Assim, o tratamento dos
assuntos de extranjería demandará, sempre, uma dupla perspectiva. Por um lado, devem
ser garantidos os direitos humanos de todos trabalhadores, inclusive os estrangeiros. Por
outro lado, em benefício da sociedade brasileira (integrada pelos brasileiros e
estrangeiros que aqui decidiram viver), deve-se atuar de maneira a corrigir abusos por
parte daqueles que se apropriam do trabalho humano. Em outras palavras, a Fiscalização
do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho exercerão papel fundamental na
garantia de que, mesmo em caso de repatriação, sejam respeitados os direitos dos
trabalhadores eventualmente em situação irregular.69
O estabelecimento de políticas migratórias não é tarefa fácil. O controle dos
fluxos de pessoas pelas Administrações Públicas está sujeito a mais percalços do que
acertos. A realidade impõe que se revejam expectativas que se têm com respeito aos
efeitos das políticas de imigração. Em vez de limitar a entrada de “indesejáveis”, o foco
deve ser o combate à informalidade laboral. É nesse passo que a utilização abusiva de
mão de obra estrangeira deve ser, sim, controlada, de maneira a garantir que o mercado
de trabalho brasileiro seja, efetivamente, brasileiro: sujeito às regras de proteção laboral
e seguridade social locais, aproveitando majoritariamente a mão-de-obra local. Mas,
claro, o controle deve enfocar as empresas que exploram trabalhadores estrangeiros,
pois são elas que deverão demonstrar sua adequação à legislação laboral brasileira,
considerando todos os seus colaboradores.
Tampouco convém atribuir às empresas o grau de responsabilidade da diretiva
européia sobre as sanções aplicáveis aos empresários de residentes ilegais nacionais de
terceiros países (que impõe não só que 10% dos estabelecimentos sejam fiscalizados,
anualmente, para verificar a presença de estrangeiros, como também impõe sanções
pesadíssimas aos empregadores). Os empregadores devem sim ser responsabilizados,
mas as sanções não podem ser superiores àquelas aplicáveis para as situações em que o
vínculo de emprego está dissimulado e a vítima é um nacional, sob pena de configurar
tratamento discriminatório para com os imigrantes, ainda que por via reflexa. O grau de
penalização do empregador (aqui sustentamos a preponderância da penalização
civil/econômica, sem excluir as sanções criminais, eventualmente aplicáveis) deverá ser
proporcional ao grau de intencionalidade de sua conduta, ao número de trabalhadores
atingidos e à natureza dos direitos fundamentais lesados. Vale lembrar que no Brasil são
admissíveis três esferas de penalização: administrativa (multas aplicadas pela
fiscalização do trabalho), civil (decisões judicias em reclamações trabalhistas
69
No Brasil, o caso dos trabalhadores estrangeiros em navios de pesca ou prospecção de petróleo é
paradigmático. O governo (Ministério do Trabalho) e o Ministério Público do Trabalho tiveram de atuar
para evitar que prevalecessem os interesses de reduzir o custo da mão-de-obra, de sua formação, e os
gastos com a promoção de um meio ambiente de trabalho saudável; todos eles favorecidos pela utilização
exclusiva de trabalhadores estrangeiros a bordo das embarcações.
individuais e/ou ações civis públicas propostas pelo Ministério Público do Trabalho) e
penal.
No mais, e agora enfocando a condição dos imigrantes individualmente
considerados (e que, no caso brasileiro, diz sobremaneira respeito aos brasileiros que
emigraram para o exterior), comungamos do que já é consenso (teórico), entre os vários
membros da Comunidade Ibero-americana de Nações, manifestado no Compromisso de
Montevidéu sobre Migrações e Desenvolvimento, aprovado na XVI Cúpula Ibero-
americana, realizada em novembro de 200670
. A título de conclusão do presente tópico,
destacamos alguns dos consensos do aludido compromisso, que reputamos adequados
para orientar a perspectiva de atuação em matéria de migrações, seja por parte do
governo, seja por aqueles legitimados à defesa da ordem jurídica (especialmente o
Ministério Público). São eles:
A - Necessidade de abordar o tema a partir de uma perspectiva que considere
tanto suas causas (falta de desenvolvimento, o desrespeito aos direitos humanos, a
pobreza, os desastre naturais, a instabilidade política, a busca de melhores condições de
vida, a iniquidade na distribuição da riqueza e a falta de oportunidades para o
desenvolvimento humano) como seus efeitos e que, fundada no respeito aos direitos
humanos e na realização do desenvolvimento, favoreça a busca de mecanismos para seu
tratamento integral. O objetivo deve ser gerar condições sócio-econômicas inclusivas
que permitam superar as condições de pobreza em que vivem setores importantes da
população; transformando a migração em uma decisão e não uma necessidade.
Nesse passo, o investimento na integração regional, no mínimo no âmbito do
Mercosul, é uma medida positiva, pois em tese, implicaria desenvolvimento para toda a
região, diminuindo desequilíbrios e a consequente necessidade de imigrar. Está claro
que a integração regional não depende só do Brasil, mas colaborar proativamente para
que ela ocorra é o que se espera do país.
B - Fortalecer o multilateralismo (repudiar toda ação unilateral ou coercitiva de
efeito internacional que atente contra o clima de diálogo e contra as normas de respeito
mútuo em matéria migratória), sem prejuízo da jurisdição dos Estados.
70
O Compromisso de Montevidéu está disponível in
http://www.mte.gov.br/trab_estrang/compromisso_montevideu.pdf
Nesse passo, a ratificação e efetiva aplicação das normas internacionais sobre
migrações e tráfico de pessoas (veja-se a Convenção nº 147 da OIT e a Convenção da
ONU – trabalhadores migrantes) é uma medida importante.
C - Favorecer a imigração legal, pois a entrada e permanência de trabalhadores
estrangeiros de acordo com as vias estabelecidas nas respectivas legislações constitui a
melhor garantia para o respeito dos direitos humanos e laborais dos migrantes e para sua
plena integração social, e contribui dessa forma para aumentar o caráter globalmente
positivo da migração. A migração não-documentada e a existência de mercados de
trabalho informais geram condições favoráveis à exploração dos migrantes. O tráfico de
migrantes deve ser combatido.
Nesse passo, várias ações são esperadas do governo, da polícia e especialmente
do Ministério Público do Trabalho, em razão de seu papel de defensor da ordem jurídica
e articulador social, como veremos a seguir.
O papel do MPT como promotor da ordem jurídica trabalhista e dos
direitos humanos dos imigrantes
As autoridades públicas com autoridade em matéria de imigração e trabalho, na
maioria dos casos em que se encontrou estrangeiros trabalhando irregularmente a
serviço de empresas interessadas em rebaixar o custo da mão-de-obra, têm adotado a
providência de tramitar a deportação imediata (ou após o pagamento das verbas
rescisórias) dos estrangeiros flagrados “em situação irregular”. Nesse tipo de casos, a
Polícia Federal tem assumido a liderança da atuação governamental, mas essa liderança
se revela limitada pela sua própria função de controlar fluxos de pessoas. Para a Polícia
Federal, a consequência lógica da irregularidade administrativa é a deportação; logo,
verificada a hipótese, deve-se aplicar a sanção: a deportação. No entanto, esta forma de
agir acaba apenando injustamente o imigrante.
Os casos de exploração de trabalhadores estrangeiros, principalmente quando
excedem a esfera dos direitos individuais, devem ser tratados em conjunto por
autoridades do Ministério do Trabalho, Ministério das Relações Exteriores, Polícia
Federal e Ministério Público do Trabalho (e Ministérios Públicos Federal e Estadual,
quando couber71
). Somente assim, exercendo todas as atribuições estatais envolvidas
nessa espécie de conflito, será possível dar ao tema a abrangência e complexidade que
nele identificamos.
Não existe, por ora, norma jurídica que preveja ou determine esta forma
específica de atuação concertada entre autoridades em matéria de imigração nos casos
concretos referidos acima. A solução de casos pontuais (e coletivos), se ultrapassado o
aspecto da polícia de fronteiras, está sujeita à atuação do Ministério Público do Trabalho
perante o poder judiciário, se e quando provocado; bem como à intervenção
discricionária do Chefe de Estado: o Presidente da República, se e quando provocado
por autoridades diplomáticas. Por isso, defendemos a criação de um mecanismo para
articulação imediata entre os órgãos públicos envolvidos, podendo o Conselho Nacional
de Imigração, realizar tal mister, até porque possui atribuição de coordenar e orientar as
atividades de imigração (art. 1º do Dec. 840/93).
A propósito da articulação governamental para fazer frente aos problemas da
imigração, sustentamos a preponderância da motivação social e, especificamente
trabalhista, da oferta e demanda de mão-de-obra estrangeira. A imigração é uma questão
de mercado de trabalho, e assim deve ser tutelada pelos poderes executivo, legislativo,
judiciário, e pelo Ministério Público. Vale lembrar que o Brasil é um dos poucos países
que possuem uma Justiça Específica para solucionar os conflitos do trabalho: a Justiça
do Trabalho. E também é um dos poucos países que possui um Ministério Público
Especial para atuar nesta seara: o Ministério Público do Trabalho. À instituição do
Ministério Público Brasileiro também foram conferidos amplos poderes investigatórios,
bem como a atribuição de defender os direitos e interesses de natureza coletiva. As
questões de política de imigração, na seara trabalhista, transcendem a esfera dos direitos
individuais: representam conflitos coletivos por excelência.
Ademais, nos casos concretos de exploração de mão-de-obra imigrante, cuja
situação fática exceda a esfera dos direitos meramente individuais, o MPT é figura
essencial para garantir a efetiva responsabilização daqueles que exploram mão-de-obra
estrangeira. Essas pessoas não são, naturalmente, os próprios imigrantes, razão pela qual
os problemas não se resolvem com a simples deportação de estrangeiros. O Ministério
Público tem a missão de defender os interesses sociais, ainda que esses interesses
71
Por exemplo, nas hipóteses de crimes contra a organização do trabalho, ou quando for necessário
garantir direitos relacionados com prestações devidas pela Administração Pública nas esferas Estadual ou
Federal.
contradigam, em momentos específicos, os interesses das autoridades governamentais
no exercício do poder. Esse independência do governo, somada à disponibilização de
um instrumento jurídico de responsabilização pelos danos causados aos interesses
sociais (a ação civil pública), faz o Ministério Público do Trabalho interlocutor social
privilegiado, que sempre que puder atuar, exercerá não só as atribuições judiciais, mas
também a necessária atuação promocional de maneira a catalisar o comprometimento do
sistema jurídico com a ordem social.
Vale lembrar que o Brasil é um país que, por determinação constitucional, deve
ser sensível aos Direitos Humanos. Além disso, no que diz com as relações
internacionais, segundo o parágrafo único do artigo 4˚: “A República Federativa do
Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América
Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
Nesse passo, vale lembrar que os tratados de livre circulação e residência entre
os integrantes do Mercosul expandido (Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, mais Chile
e Bolívia) já estão em vigor. De fundamental importância é o Decreto 6975/2009, que
publicou o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Parte do Mercosul,
Bolívia e Chile! Por esse acordo, os cidadãos do Mercosul expandido podem viver no
país que desejarem (dentre os integrantes do Acordo), podendo tramitar os expedientes
burocráticos diretamente no país de destino, provando apenas a inexistência de
antecedentes penais. Pelo acordo, os cidadãos tem direito garantido à livre circulação e
ao livre estabelecimento (exercício de qualquer atividade econômica).
Assim, no que diz com o caso do Mercosul, deve-se concluir que o Brasil, no
exercício da sua soberania (ou responsabilidade pela gestão das pessoas, como
preferimos), optou por eliminar suas fronteiras no que diz com a livre movimentação e
residência de estrangeiros provenientes do Mercosul em seu território. Conseqüência
disso é que o direito do trabalho também passará a ser reconhecido para os cidadãos do
Mercosul, eliminando quaisquer possibilidades de distinções.
Infelizmente, essa nova realidade é desconhecida por boa parte dos imigrantes
irregulares que aqui se encontram. Ademais, o aparato burocrático do Estado não está
preparado para implementar verdadeiramente a normativa (apesar do acordo, o
imigrante é instado a deixar o país sob pena de deportação, como uma garantia de que
promova os procedimentos necessários à regularização, que ainda não são possíveis
dentro do país, ou demoram mais que o prazo concedido para tanto).
Esse quadro instiga o MPT a atuar proativamente como promotor de direitos
humanos. Uma iniciativa eficaz é a realização de convênios em âmbito nacional,
regional e local, de maneira a concertar as atuações dos órgãos legitimados em matéria
de migrações. Por meio dessa articulação, poder-se-á perseguir várias metas: a) fazer
prevalecer os direitos humanos sobre as normas punitivas do estatuto do estrangeiro; b)
manter a política de migrações no prumo da ordem jurídica laboral e c) fazer acontecer
os acordos que preveem a livre circulação e estabelecimento no âmbito do Mercosul
(expandido para Chile e Bolívia), que já estão em vigor, mas são desconhecidos pelos
cidadãos e, o que é pior, por muitas autoridades com atribuição em matéria de
migrações.
Por fim, pelo tipo de funções constitucionalmente atribuídas ao Ministério
Público do Trabalho, seria conveniente reivindicar representação no Conselho Nacional
de Migrações. E essa representação, para ser mais eficaz, deveria ser na condição de
membro efetivo, com direito a voto (o que depende de alteração legislativa).
Conclusão
A imigração é uma questão de mercado de trabalho, e assim deve ser tutelada
pelos poderes executivo, legislativo, judiciário, e pelo Ministério Público.
A ideologia nacionalista não pode influir na gestão da imigração. As restrições
ao estabelecimento de estrangeiros no país devem ser compreendidas numa perspectiva
de preservação da ordem jurídica e do mercado de trabalho brasileiros. Assim, devem
ser coibidas as tentativas de exaurir a jurisdição local, não para preservar o elemento
nacional, mas para garantir que o Brasil não seja “terra sem lei”, sujeita à livre
exploração por empreendedores que, se puderem, importariam até a mão de obra
necessária a seus empreendimentos, caso isso custasse mais barato.
As restrições à imigração são válidas sob a perspectiva da preservação do
mercado de trabalho, logo, valem sob uma perspectiva de responsabilidade do governo
para com o povo. Porém, uma vez que o imigrante cruza a fronteira e aqui se estabelece,
ainda que sem realizar os procedimentos legais, a irregularidade administrativa não
pode operar efeitos que neguem aos imigrantes os direitos fundamentais, sob pena de
ferir os princípios da igualdade e não-discriminação. A perspectiva da regularização
deve valer mais do que a deportação, mormente em se sabendo que, pelo menos no
âmbito do Mercosul expandido, a liberdade de circulação e estabelecimento é direito
adquirido (O Acordo de Residência vige na forma do Decreto 6975/2009).
O MPT deve assumir o papel pró-ativo na realização dessa forma de entender a
imigração. Assim, apesar de todas as dificuldades que possam aparecer nos casos
concretos, o Procurador do Trabalho deve ter bem claro seus objetivos: a) buscar uma
forma de regularizar a situação encontrada, do ponto de vista administrativo e
trabalhista; b) na impossibilidade de regularização administrativa, solucionar a questão
trabalhista em primeiro lugar, adotando-se as medidas necessárias, ainda que judiciais,
para a satisfação dos créditos dos trabalhadores; c) efetivar medidas sancionatórias
apenas após a solução dos itens antecedentes (isso depende de articulação com a Polícia
Federal), e direcioná-la para a parte responsável pela exploração da mão-de-obra
imigrante.
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Granada, 2003. pp. 105-153.
ANEXO I
Carta da Oficina Migrações e o mundo de trabalho
A experiência acumulada pelo exercício das atribuições conferidas pela
Constituição Federal ao Ministério Público do Trabalho faz desta Instituição uma
interlocutora capacitada para dialogar quando o assunto é reformulação da política
migratória e a elaboração de um novo marco legislativo, uma nova lei de migrações.
Na visão do Grupo Permanente do Ministério Público do Trabalho para
avaliação das estratégias de atuação a respeito do trabalho dos migrantes, apoiado pelos
trabalhos realizados na Oficina "Trabalho e Migrações", realizada em Brasília, 28 a 30
de abril de 2014, pode-se sintetizar o posicionamento consensual, em três pontos
fundamentais, seguidos de tópicos para uma lei de migrações. São esses pontos que
constituem a presente Carta da Oficina.
Cidadania mundial como horizonte
Para adequar a legislação a um sistema jurídico que privilegie a prevalência dos
Direitos Humanos, revela-se a necessidade de incorporar, já nas normas gerais sobre a
imigração, princípios que favoreçam o horizonte de uma cidadania mundial. Para isso, a
legislação deve estar articulada com a consolidação dos blocos regionais, notadamente o
Mercosul, mas sem descurar outras possibilidades de agregação como a UNASUL
(União de Nações Sulamericanas) ou o PALOP (Países Africanos de Língua Oficial
Portuguesa).
É aqui se pode afirmar que essa é a mais abrangente expressão do interesse
nacional, qual seja, que o acolhimento de estrangeiros seja realizado também numa
perspectiva de reciprocidade, como fundamento adicional ao princípio da prevalência
dos Direitos Humanos, para que os horizontes dos brasileiros sejam também alargados.
Assim, os esforços devem ser direcionados à consolidação da livre circulação no âmbito
do Mercosul, com a implementação de mecanismos regionais que auxiliem a efetiva
integração (incluindo agências ou órgãos de ligação que facilitem a tramitação de
documentos).
O fomento à cidadania mundial inclui também: a) aparelhamento das
repartições consulares brasileiras no exterior, para que passem a desempenhar mais do
que funções meramente notariais, constituindo a verdadeira casa dos brasileiros; b)
diminuir custos dos processos de legalização de documentos; c) investir em campanhas
educativas sobre a diversidade cultural e contra a discriminação e xenofobia; d)
reconhecer a contribuição dos brasileiros que vivem no exterior, como apta a produzir
frutos econômicos e culturais para o país.
Política de migrações como gestão de fluxos
O favorecimento à consolidação dos blocos regionais constitui a base da política
de migrações, porque disciplina os fluxos de pessoas, com base na reciprocidade. Mas
para além das fronteiras regionais, no entender do GT- Trabalho e Migrações, não é
possível que uma política migratória pretenda estancar o fenômeno migratório.
O que está ao alcance de um projeto de política de migrações é gerir a imigração
de maneira a que ela resulte em integração sociocultural e laboral, em benefício da
diversidade e reforçando o sistema solidariedade social brasileiro. Isso implica investir
na seguridade social compartilhada entre países que compartilham população migrante,
especialmente no âmbito do Mercosul. Também integra a gestão política das migrações
a instituição de mecanismos legais que permitam o resgate da população imigrante da
informalidade, como a concessão de residência por arraigo, a valoração do fato
consumado e dos vínculos pessoais no país de acolhida (reunião familiar estendida).
Sob o ponto de vista do acesso à Justiça, e privilegiando o princípio do contrato
realidade é bom que seja previsto expressamente que eventual irregularidade
administrativa da situação migratória não pode impedir a produção de efeitos dos
contratos de trabalho de fato estabelecidos. (art. 25.3 da Convenção da ONU para
proteção dos trabalhadores migratórios e suas famílias).
Salvaguarda do mercado de trabalho pela prevalência princípios de direito
laboral
A incorporação do Princípio da Prevalência dos Direitos Humanos também
significa que o Brasil não pode abdicar de fazer valer suas leis e de preservar seu
ordenamento jurídico, pois os direitos sociais são também direitos humanos. A
atribuição para gerir o mercado de trabalho interno, com vistas a manter a higidez da
seguridade social, não pode ser afastada sob argumentos liberalizantes da livre
circulação de mão de obra.
É preciso assegurar a eficácia de princípios de fundamentação eminentemente
trabalhista, que complementarão, do ponto de vista coletivo, a perspectiva centrada nos
direitos individuais dos trabalhadores migrantes.
Assim, e para prevenir conflitos de aplicação de leis, deve ficar expressamente
garantida a aplicação da lei brasileira, especialmente as normas de proteção mínima
laborais aos contratos transnacionais executados no país (princípio com especial
aplicabilidade nos setores de trabalho embarcado). Na mesma esteira, deve ficar
ressalvada a aplicação do direito do trabalho às relações jurídicas de fato envolvendo
indocumentados e preservar o trabalho enquanto valor eminentemente global, proibindo
iniciativas que visem uma desterritorialização precarizante das relações de trabalho.
As regras mínimas de proteção não são apenas destinadas à tutela das relações
jurídicas privadas, mas também constituem normas de ordem pública, incidentes
independentemente da vontade das partes, porque são necessárias à preservação do
tecido social.
Nessa perspectiva, sobreleva-se a necessidade de tutela efetiva das relações de
trabalho a bordo de embarcações, setor que mais demanda a contratação de estrangeiros
no Brasil (a ponto de constituir maioria com ampla folga). Apesar de laborarem em
território brasileiro (águas costeiras) e frequentemente para empresas brasileiras (setor
de petróleo e off shore), os trabalhadores embarcados (tanto os marítimos típicos,
responsáveis por trabalhos técnicos, quando o pessoal de serviços de limpeza e
hotelaria) vem sofrendo abusos em razão da indefinição quanto à legislação aplicável e
autoridade competente, já que os navios ativados na costa brasileira ostentam bandeiras
estrangeiras.
O caminho para relações de trabalho mais dignas passa necessariamente pela
ratificação da Convenção do Trabalho Marítimo (CTM/2006, da OIT), e pela afirmação
legal da aplicabilidade das normas mínimas de proteção laboral a todos os embarcados,
independentemente de nacionalidade.
Claro está o imigrante não pode ser responsabilizado pela concorrência desleal,
pelo dumping social. Mas é necessário impedir que a imigração venha a ser utilizada
com essa finalidade, e é preciso que fique claro que a substituição de mão de obra
nacional pela estrangeira com objetivo de precarizar as relações de trabalho nacionais
constitui dumping social, ensejando a responsabilização da empresa e o ressarcimento à
coletividade dos danos materiais e imateriais decorrentes da conduta antijurídica.
Somente desta maneira, poderá ser superada a perspectiva de reserva de mercado
contida no capítulo da CLT que dispõe sobre nacionalização do trabalho (art. 352 e
seguintes) sem cair num liberalismo desagregador das relações de trabalho.
Tópicos para uma nova Lei de Migrações:
a) Nacionalidade: Emenda à Constituição para garantir a dupla nacionalidade
adquirida (atualmente o Brasil só admite a dupla nacionalidade por nascimento).
b) Participação política: não cercear a participação de estrangeiros em
associações e sindicatos.
c) Igualdade de gênero: 1. reconhecer o direito à reunião familiar (direito
subjetivo); 2. excluir o cônjuge/companheiro do rol de dependentes do trabalhador
chamado, reconhecendo a corresponsabilidade familiar e em consequência 3. permitir o
trabalho do cônjuge/companheiro, filhos maiores de 18 anos no caso dos trabalhadores
convidados com visto temporário. 4. garantir a possibilidade de permanência de cônjuge
de residente temporário em caso de divórcio.
d) Prevalência das normas mínimas de direito do trabalho, incluindo convenções
internacionais de direito do trabalho e direitos humanos, nos contratos de trabalho que
impliquem relações bi ou transnacionais.
e) Garantia de tutela das relações de trabalho a bordo de embarcações, pelas
autoridades brasileiras e em favor de todo trabalhador independente de nacionalidade,
sempre que o serviço seja executado no todo ou em parte no território nacional (nele
compreendido o espaço de navios em operação nas águas nacionais, independentemente
da bandeira ostentada pela embarcação).
f) Prevalência dos princípios laborais básicos na regulação das relações de
trabalho, inclusive nos contratos tidos como administrativamente irregulares.
g) Fortalecimento dos mecanismos de integração regional, incluindo trâmites de
permanência e seguridade social compartilhada.
h) Burocracia: rever a sistemática de concessão de vistos de maneira a
estabelecer um processo previsível e com garantias ao imigrante, dentre elas: 1. abolição
de referências de consulta ao Diário Oficial da União, 2. adoção de procedimentos pela
internet; 3. fomento aos acordos internacionais para facilitação de certidões criminais e
educacionais; 3. treinar profissionais que atuarão em agências de imigração,
preferencialmente ligadas ao Mercosul. 4. Estabelecer taxas semelhantes às praticadas
para os nacionais para a confecção de documentos e tramitação dos processos.
i) Regularização migratória: instituir mecanismos legais que permitam o resgate
da população imigrante da informalidade, como a concessão de residência por arraigo, a
valoração do fato consumado e dos vínculos pessoais no país de acolhida (reunião
familiar estendida).
j) Reconhecimento de títulos: rever a sistemática atual, retirando a exclusividade
das universidades e priorizando acordos regionais com estipulação de conteúdos
mínimos, envolvendo também os Ministérios da Educação e organizações
representativas de trabalhadores e empregadores dos países acordantes.
l) repressão do dumping social: positivar que a substituição de mão de obra
nacional pela estrangeira com objetivo de precarizar as relações de trabalho nacionais
constitui dumping social, ensejando a responsabilização da empresa e o ressarcimento à
coletividade dos danos materiais e imateriais decorrentes da conduta antijurídica.
m) ratificação das seguintes convenções internacionais: Convenção da ONU
para proteção dos trabalhadores migrantes e suas famílias, Convenção 143 da OIT e
CTM/2006 (Trabalho Marítimo), da OIT.
n) atender às especificidades das regiões de fronteira, concebidas como espaços
de encontro por excelência, redefinindo a abrangência das áreas fronteiriças do limite
municipal para as zonas definidas como área de fronteira e ampliando as possibilidades
de interação dos cidadãos.
Contexto Migratório Atual
Paulo Sérgio de Almeida
Paulo Sérgio de Almeida é o atual Presidente do Conselho Nacional de
Imigração (CNIg), órgão de caráter consultivo e normativo que acolhe processos
relativos aos trabalhadores estrangeiros no Brasil. Ao longo da entrevista, ele faz um
mapa sobre a situação trabalhista dos imigrantes no país, argumenta sobre a necessidade
de melhoria das estruturas de recepção, avalia as condições atuais de aprimoramento da
legislação e dos serviços públicos oferecidos àquelas pessoas que chegam ao Brasil para
viver e trabalhar, e reflete sobre as limitações encontradas atualmente na tentativa de
coordenação entre as diferentes instâncias governamentais quem lidam com a questão
migratória.
O CNIg tem em sua formação nove ministérios, cinco centrais sindicais, cinco
confederações de empregadores e um representante da sociedade civil. Há um pleito de
longa data para o alargamento dessa composição, onde a ideia é que outros órgãos,
sejam do governo, sejam da sociedade civil possam se fazer presente. Além disso, há
projeto de lei propondo a ampliação do CNIg e fornecendo base legal para atuar na
emigração de brasileiros ao exterior.
A entrevista foi realizada em 2014, no Gabinete do entrevistado nas
dependências do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), pelo pesquisador Atila
Rabelo Tavares da Câmara, Universidade de Brasília (UnB), colaborador do
Observatório das Migrações Internacionais.
AT: “Dr. Paulo Sérgio a ideia dessa entrevista é contribuir para pesquisa
sobre a articulação entre as instituições governamentais na resposta aos fluxos
migratórios para o Brasil nos últimos dez anos. A primeira pergunta, então seria,
de que forma o senhor caracteriza no seu entendimento esses fluxos migratórios
para o Brasil e quais as principais demandas inerentes a esses fluxos, na sua
visão?”
Nesses últimos dez anos houve uma mudança crucial nos fluxos migratórios
para o Brasil. Em 2003- 2004 o país vivia um cenário onde o maior fluxo era o de
emigração. Os brasileiros migravam para o exterior em busca de melhores
oportunidades de vida e de trabalho, enquanto que havia um pequeno fluxo de
imigrantes para o Brasil. Tanto assim que, em 2007, o Itamaraty estimou em mais de
três milhões o número de brasileiros que viviam no exterior, enquanto que, naquela
época, a Polícia Federal indicava menos de 900 mil estrangeiros vivendo no Brasil. São
números que, embora precisem ser relativizados, já que não são muito precisos, eram os
que o CNIg aceitava trabalhar naquela ocasião. Os fluxos de imigração basicamente
eram regionais, principalmente dos países que nos fazem fronteira, e havia
pouquíssimos fluxos trans-oceânicos e de outras regiões.
A partir dos anos 2008-2009, com a crise financeira internacional e também com
o processo de exposição do sucesso das políticas de desenvolvimento econômico-
sociais do país no cenário internacional, gerando maior visibilidade (surgimento dos
BRICS, reconhecimento das políticas que garantiram crescimento mais rápido e com
modelo fundado na geração de empregos), houve não somente a redução da emigração,
mas também o início do fluxo de retorno desses brasileiros. Também neste período
ocorre um aumento significativo no processo de imigração, tanto em termos de
quantidade de imigrantes, como na diversidade de nacionalidades. Passamos a receber
pessoas de outras regiões do mundo, que não tinham a tradição de vir ao Brasil. Embora
não se possa dizer que o Brasil viva um grande movimento migratório, o número de
imigrantes no Brasil passou a crescer de forma acelerada.
Todavia, o Brasil segue sendo um país com poucos imigrantes, já que,
atualmente, são estimados em menos de 2 milhões, comparado com uma população de
cerca de 200 milhões de habitantes (menos de 1% do total da população). Mesmo
havendo dificuldades em aferir a precisão desses dados, eles apontam um país uma
baixa taxa de imigração. Ainda assim, esse cenário de crescimento dos fluxos de
imigração traz desafios enormes para o país.
Ate 2004/2005, o CNIg trabalhava com uma imigração pequena, uma imigração
seletiva, até porque havia baixa demanda de migração espontânea ao Brasil. A
imigração era composta por trabalhadores que chegavam aqui com emprego, em razão
da demanda de empresas, com sua "vida já resolvida". Então, mais recentemente
passamos a receber uma migração espontânea, em maiores quantidades, mas sem as
estruturas de recepção apropriadas.
AT: “Pois é Paulo, exatamente essa questão, o que seriam essas estruturas
de recepção, na sua visão?”
Na medida em que o país adote uma política de acolhimento aos novos fluxos
migratórios, essa política necessariamente tem que criar uma estrutura de recepção, no
sentido de haver locais onde os migrantes possam obter informações sobre direitos de
cidadania, como qualquer outra pessoa que resida em nosso país, e ter acesso aos
direitos que a lei assegura. Os órgãos que proporcionam esses serviços devem estar
preparados para lidar com a demanda dos imigrantes.
Creio que as políticas deveriam proporcionar que esses imigrantes sejam
reconhecidos como cidadãos e tratados da forma mais próxima possível ao tratamento
assegurado a todos os brasileiros. Começando com a emissão de documentos. Os
imigrantes deveria utilizar os mesmos locais onde os brasileiros tiram os seus
documentos, em especial o documento de identidade. Creio que já é hora de fazermos
uma avaliação se deveríamos ou não manter a estrutura que existe hoje para
atendimento aos migrantes. Essa política deveria abarcar todos os documentos, como a
emissão da carteira de trabalho, o acesso ao Sistema Nacional de Emprego, além de
todos os direitos que compõem a cidadania, especialmente educação e saúde.
AT: “Você acredita que seja uma questão da estrutura local, como também
da preparação das pessoas que lidam com os imigrantes? A questão do idioma, a
questão do conhecimento da legislação. Como é que fica também a questão da
atualização da legislação? Porque as vezes a mudança é repentina e a preparação
das pessoas não acompanha. Essa também são questões importantes?”
Essa mudança de cenário há muito tempo já demandava uma mudança
legislativa. O Brasil está atrasadíssimo na mudança de seu marco normativo. Neste
contexto, o Conselho Nacional de Imigração foi demandado para solucionar problemas
que originalmente não estariam na sua esfera de atuação. Por exemplo, toda a parte de
critérios para reunião familiar, a concessao de residência por união estável e para
estrangeiros que estejam cumprindo pena no Brasil, para que possam ter acesso a
documentos quando em liberdade condicional ou em progressão de regime. Questões
que não deveriam estar sobre a responsabilidade do CNIg, mas que, por falta de outras
instâncias, o CNIg passou a ser demandado e teve que dar respostas. Mas,
fundalmentalmente, o CNIg é um orgão que está focado no tema de imigração para o
trabalho, que é sua expertise e sua principal de atuação.
AT: “Essa ideia mudaria também a missão do CNIg ou se aplica ao viés da
questão do trabalho, como seria isso exatamente?”
Nós entendemos que a maior parcela das migrações, há estudos da OIT
(Organização Internacional do Trabalho) que demonstram isso, é composta por
trabalhadores migrantes. A OIT, que tem uma vasta experiência na questão trabalhista,
tem duas convenções internacionais voltadas às migracoes laborais, além de um Marco
Multilateral, que consagra as melhores práticas, aprovado em 2005. A Constituição da
OIT lhe confere mandato que abrange políticas para migrantes que estejam trabalhando
fora do seu país de origem. Recentemente, a OIT tem lançado novos estudos sobre
trabalhadores migrantes, estando na vanguarda da questão das migrações internacionais.
Um desses estudos aponta que os trabalhadores migrantes e suas famílias representam
mais de 90% da mobilidade internacional de pessoas. Outro estudo importante da OIT
aponta que o foco das políticas migratórias dos países deveria ser o tema dos direitos
dos migrantes. É claro que há outras questões de importância como os refugiados, o
deslocamento de populações por catástrofes ambientais e por conflitos. Mas a questão
de maior realce são as migrações para trabalho.
O CNIg, dentro desse cenário restritivo que a legislação brasileira estabelece
(Lei n. 6.815/80 - elaborada durante os governos militares), procurou alargar as
possibilidades migratórias, estabelecendo novos canais para a vinda de imigrantes ao
Brasil. O conselho vem quebrar esse paradigma de que o trabalhador estrangeiro vem
aqui para tirar trabalho dos brasileiros. Essa discussao evoluiu muito no CNIg e
aprovamos, por consenso, novas Resoluções que garantiram mais possibilidades de
vinda de trabalhadores migrantes o Brasil.
AT: “Até por essa questão vou me adiantar, a política nacional de migração
que talvez, que ainda está em gestação com essa releitura ou com essa proposta de
atualização. Ela acaba sendo capaz de suprir isso com a formalização ou o senhor
acredita que não haverá tempo hábil para esperar que seja desenhada uma política
nacional de migração, temos que fazer na prática? Há como esperar uma nova lei
do estrangeiro?
Isso ficou claro no caso da migração dos haitianos. Estabelecemos uma
possibilidade de migração formal ao Brasil, por meio da criação de um visto especial
humanitário. As pessoas entram no país e pedem refúgio, mas na verdade o que elas
querem são documentos para trabalhar, por isso temos atuado em parceria com o
CONARE, e com isso conseguimos regularizar a situação migratória desses migrantes.
Entretanto, como mencionado, as políticas não são explicitadas de maneira
formal. Essas políticas indicam foco na proteção de direitos, no respeito aos direitos
fundamentais dos migrantes, mas não há uma política claramente estabelecida. O CNIg
propôs uma política explícita em 2009, a “Política Nacional de Imigração e Proteção ao
Trabalhador Migrante”, mas que até hoje não obteve consenso para aprovação no
âmbito do Governo. Percebemos que há setores do Governo que têm dificuldades em
tornar explícita uma política com esse viés.
O Brasil é um país continental, tem fronteiras extensas e é muito difícil impedir
a mobilidade nas fronteiras terrestres. As pessoas chegam e estão conseguindo se inserir
e trabalhar, pois há demanda por esses trabalhadores migrantes e é preciso reconhecer
que não estávamos preparados para esse fluxo.
Por outro lado, também estamos muito atrasados na formulação de políticas para
a recepção, o acolhimento e a integração de migrantes. Este é um segundo nível de
políticas, diferente das políticas de admissão, no qual há outros atores de Governo e da
Sociedade Civil. Há ainda uma questão federativa, porque estamos falando de serviços
prestados por estados e municípios.
AT: “Paulo Sérgio, essa também seria uma das missões do CNIg, organizar
esses pontos desarticulados?”
Essas questões não eram debatidas. Em 2008 ocorreu uma mudança profunda,
uma inversão de sinal do fluxo migratório, mudando bastante o cenário. Pela primeira
vez depois de muitos anos recebemos mais imigrantes do que tivemos a saída de
emigrantes e tivemos ainda retorno dos brasileiros que viviam no exterior. Isso começa
com os haitianos, mas se expande para outras nacionalidades. A partir daí houve o
aprofundando o debate interno, e as posições foram evoluindo dentro do próprio
Governo e na Sociedade.
Então, as políticas específicas não estavam desenhadas e as decisões acabaram
por ser tomadas de uma forma desarticulada, com muitas iniciativas pontuais, em menor
escala. Por isso, é fundamental que tanto a política como a lei mudem para que haja
mecanismos de recepção, acolhida e integração estabelecidos. Hoje há muitas iniciativas
pontuais, que vão acomodando essas novas realidades, mas o país ainda carece de uma
política, de um plano e de uma nova legislação para as migrações.
O papel do CNIg nunca foi de organizar a questão da integração, não está entre
as nossas competências. Além disso, o CNIg nunca havia sido demandado para
trabalhar este nível de políticas. No contexto migratório que nós tínhamos até 2008-
2009, essas questões não eram tratadas no CNIg. Assim como também não eram no
CONARE.
Porém a partir de um determinado momento, essas questões surgiram e o CNIg
se viu numa situação em que não tinha nem capacidade, nem articulação para elaborar
essas políticas.
O Ministério da Justiça tem desempenhado um importante papel na condução
desse processo de articulação dos vários orgãos do Governo nas políticas de
acolhimento, seja o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, a
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência e outros.
Então, as políticas de acolhimento tem que ser debatidas, sem que se queira
forçar situações de difícil implementação. Por exemplo, havia uma ideia de que os
haitianos deveriam ficar no Acre, ter um grande abrigo no Acre e só sair do Acre se
tivessem empregos já oferecidos em outros estados. Isso não funcionou, porque os
migrantes não vão ficar forçados, além de provocar um estresse enorme para o Estado
do Acre. Essa medida gerou uma situação que não se sustentou na realidade. Gerou toda
a crise que envolveu Acre e São Paulo. São Paulo é o estado onde estão os empregos
para esses migrantes, além dos três estados da região sul. Então é natural que as pessoas
saíssem do Acre e se dirigissem a São Paulo e aos estados da região Sul. Então era um
processo que no nosso modo de ver era inevitável. Foi ruim porque ocorreu de forma
espontânea e desorganizada.
AT: “É quase como se sobressaltasse a necessidade de um pacto federativo
em torno do tema das migrações, eu não sei se isso já entrou na agenda ou se ainda
pode entrar na medida que for ganhando mais importância.”
É preciso avaliar a necessidade de um pacto federativo em torno do tema das
migrações. A lei da migração ainda é uma lei de crtitérios de admissão, de direitos, mas
ela não abarca a atuação de estados e municípios. O CNIg recentemente celebrou um
Termo de Cooperação com a OIT, para nos ajudar a melhorar nossas políticas
migratórias. E nosso objetivo é implantar algo que na verdade já existe nas convenções
da OIT, os centros de orientação para migrantes. Não seria um centro de ofertas de
serviços, seria um centro exclusivamente de informações e encaminhamentos. A
experiência que nós temos de Foz do Iguaçu, onde já temos um centro que funciona
desde 2008 é muito positiva. O migrante tem ali um referencial, ele sai orientado, sai
encaminhado seja para a Assistência Social, se for o caso, seja para obter documentos,
ou para uma unidade de referencia no sistema nacional de emprego. A nossa unidade
em Foz do Iguaçu, a “Casa do Migrante”, é uma parceria com o município, e é a nossa
referência para esse projeto com a OIT, de forma que seja sustentável.
AT: “Uma próxima pergunta é, esse entendimento que é tão perceptível em
relação aos conselheiros do CNIg, começando com o senhor a perceber isso
também, esse entendimento a respeito das migrações com esse viés, está baseado
em algum tipo de princípio ou diretriz, é ... claro não é aquela questão de
segurança nacional, não é questão de soberania, mas que princípios e diretrizes
norteiam esse entendimento das migrações sob essa perspectiva?”
Para nós do CNIg, a migração deveria ser reconhecida como um direito, porque
ninguém é obrigado, não se pode exigir de ninguém que morra ou que pereça ou que
passe privações onde viva, sem que possa tentar a sorte em outro país ou região. Isso
não é exígivel de ninguém. As pessoas têm direito a buscar uma vida melhor, isso é um
direito universal.
É claro que as sociedades também têm direito de buscar um tipo de organização
que lhes permita se desenvolver enquanto sociedade. Não queremos dizer com isso que
qualquer pessoa possa entrar em qualquer país do mundo a qualquer tempo, mas
considerar as migrações como um direito significa, por exemplo, não criminalizar o
migrante. Ele não é um criminoso, porque está lutando pelo direito humano, que é
fundamental, que é sobreviver. Então essa é a primeira questão que nos parece crucial.
Isso está claro para todo mundo: Ninguém migra por querer violar a ordem jurídica de
um país. As pessoas vivem em busca de oportunidades.
A segunda questão é que se nós avaliarmos a história das migrações no Brasil,
ela é positiva, ou seja, os imigrantes que aqui vieram, ajudaram a construir o país que
vivemos, de uma forma que eles contribuíram, foram agentes nesse processo do
desenvolvimento. Então, as migrações de maneira geral constituem um fenômeno
positivo, para os países e para as pessoas. Sobretudo no Brasil, até pela história do país,
proporcionaram esse valor de um país miscigenado, um país multicultural, com
diversidade, o que nos parece muito positivo.
A terceira questão é que, na medida em que as migrações ocorrem, e muitas
vezes elas ocorrem sem que o país possa impedir, na medida em que os migrantes
conseguem estabelecer vínculos com o país, com a sociedade de recepção, eles têm que
ter a chance, a oportunidade, de ter um documento para viver dignamente nesse país.
Essa pessoa que está aqui, está trabalhando e achamos que a questão do trabalho é muito
importante, essa pessoa está contribuindo, está integrada, constitui família, esse
migrante tem uma integração com o país, então isso deveria ser considerado para que
essa pessoa possa obter uma residência, um documento que lhe permita residir no país.
A última questão que colocamos é que ao país também é lícito estimular as
migrações, aquelas migrações que lhes são mais interessantes. Não estamos dizendo que
não possibilitaremos documentos aos migrantes que não tem qualificação educacional
ou profissional. Se estão aqui, se estão trabalhando, estão vivendo normalmente, deve-
se proporcionar sua documentação. Outra política é ir ao exterior e chamar pessoas para
aqui residir. Cremos que esse tipo de política coloca o Brasil na competição por
talentos, pelas pessoas que tem algum diferencial e que possa trazer esse diferencial.
Assim, vemos o CNIg inserido nesse cenário, ou seja, migrações como direito, visão
positiva das migrações, possibilidade de qualquer migrante que aqui estabeleça vínculos
poder obter documentos e política ativa de busca de pessoas que tenham um diferencial
e que possam contribuir para o desenvolvimento mais rápido do país.
AT: Dr. Paulo Sérgio até acelerando para não tomar muito seu tempo,
estamos nos aproximando do final. Esse posicionamento, o senhor, os conselheiros
do CNIg como um todo, está baseado em algum tipo de tradição, costume ou teoria
que, não sei, se caracterizou os últimos anos do próprio Ministério do Trabalho e
Emprego, o senhor consegue identificar isso? Ou, é uma visão muito pessoal das
pessoas que estão dentro dessa estrutura hoje?”
O Ministério do Trabalho e Emprego e o CNIg evoluíram muito ao longo do
tempo. É interessante essa evolução do CNIg, porque ele foi criado pela lei como um
órgão de controle. Depois, passou por uma transformação, na qual a sociedade civil
obteve protagonismo, principalmente as entidades ligadas ao mundo do trabalho. Aos
poucos, as políticas, os pensamentos, a forma de ver as migrações no país, mudaram
muito.
Uma questão que ajudou muito nessa mudança de pensamento foi todo o
processo que o país viveu com seus emigrantes no exterior. A questão do sofrimento
que os brasileiros passaram no exterior, a forma discriminatória, intolerante que eles
foram tratados no exterior, isso repercutiu muito na visão das pessoas sobre os
migrantes, sobre as migrações. E acabou por afastar argumentos que não encontram
respaldo na realidade, de que o migrante é alguém que vai poder fazer algum mal ou vai
competir deslealmente com os nacionais. Isso foi evoluindo ao longo do tempo. Em
2007 realizamos um evento com a OIT que nos ajudou a traçar as diretrizes da política
migratória brasileira. Naquela época, a OIT propunha que a migração deveria ser tratada
desde uma perspectiva dos direitos dos migrantes, mas naquele momento ainda existia a
visão do controle muito duro, muito rígido por parte de vários atores governamentais.
Mas as coisas foram mudando com a sequência de estudos, de eventos, de
acontecimentos. O relatório da final da CPMI da emigração ilegal foi um marco. A
primeira grande discussão que culminou no projeto de lei 5.655 foi um marco.
O CNIg em várias oportunidades fez contato com as comunidades brasileiras no
exterior, presenciou o sofrimento dos brasileiros que vivem indocumentados,
discriminados no exterior. Isso refletiu na forma como o imigrante passou a ser visto
aqui no Brasil.
Houve ainda uma grande evolução na forma de pensar das centrais sindicais em
relação ao migrante, com mais aprofundamento e o melhor entendimento do fenômeno
migratório. O migrante passa a ser visto como um trabalhador que, se não for
devidamente protegido, poderá ser mais facilmente explorado por maus empregadores,
que vêem oportunidade de uma mão de obra barata, contratado no mercado de trabalho
informal e sem acesso aos mecanismos de proteção que existem no país.
Então, essas questões foram evoluindo muito ao longo do tempo, até chegar na
atual configuração, que embora ainda haja divergências, claramente se tem conseguido
avançar de forma bastante consensual nas questões.
AT: “Com certeza, vou avançar para as últimas perguntas, a primeira das
três últimas seria: como que o senhor avalia hoje na esfera do governo federal essa
articulação e a coordenação entre os órgãos e as instâncias governamentais para
atender as demandas das migrações?”
O Brasil, apesar de tudo, apesar de todos os problemas que existem na questão
migratória, conseguiu desenvolver um modelo, que é um modelo que, embora nossa
legislação seja atrasada e nós tenhamos vários problemas em razão disso, permite algo
presente em pouquíssimos países, que é o governo compartilhar com a sociedade civil a
responsabilidade na construção de regras migratórias. O CNIg não é um colegiado
meramente consultivo. A Lei vigente possibilitou a este conselho o poder de deliberar e
criar novas possibilidades migratórias, por meio da aprovação de resoluções. Hoje, a
maior parte do CNIg é, inclusive, composta por representações da sociedade civil. Dos
20 membros, nós temos onze da sociedade civil e nove do governo. Apesar disso há
uma metodologia de trabalho que consegue harmonizar esses interesses, consegue
aprovar normas que atendam aos interesses de todas as partes que estão envolvidas.
É preciso compreender que cada orgão do governo tem um papel na questão das
migrações. As migrações não têm “um dono”, um órgão que seja 100% encarregado.
Todo país que adotou essa postura acabou privilegiando determinada visão, na maioria
das vezes voltada para a segurança pública.
A maciça maioria dos migrantes quer a integração no mercado de trabalho. Essa
é a sua razão de migrar. Por isso, cremos que os Ministérios Trabalho devam ter um
papel central nesta questão. Este papel deve, claro, ser exercido dentro de sua
competência, sua atribuição principal. No caso do Ministério do Trabalho, nossa visão é
de que aqui é o orgão das migrações laborais, não mais do que isso. E aqui nós nos
sentimos bem à vontade em estabelecer as políticas focadas nas migrações laborais.
Outras políticas não tem que estar aqui. Não é necessário que o CNIg seja o órgão que
decide tudo em todos os aspectos em relação às migrações. Agora, nessa visão deve
haver uma estrutura de coordenação intensa, senão ocorrem sobreposições, que geram
conflitos, que não é o mais adequado.
Cremos que a experiência do CNIg é de muita coordenação entre os orgãos que
desempenham funções na questão migratória. Por exemplo, no final de 2013
articulamos junto ao CONARE a regularização definitiva de 4.500 imigrantes que
estavam com pedidos pendentes naquele órgão. O CONARE entendia que não eram
refugiados, mas nós entendíamos que eram trabalhadores migrantes que não deveriam
sair do país, então isso foi encaminhado de forma coordenada para uma regularização
migratória.
O caso dos haitianos, nós entendemos que era uma questão humanitária. Por
outro lado, são migrantes que vieram ao Brasil em busca de trabalho. Então se buscou
soluções conjuntas entre o MTE/CNIg, o Ministério das Relações Exteriores e o
Ministério da Justiça. Então, não nos parece que haja um processo de descoordenação
entre os Ministérios. Claro que há espaço melhorar a coordenação, dentro dos limites
das competências de cada orgão. O Ministério do Trabalho não tem nenhuma vocação,
não tem nenhuma diretriz em assumir coisas que vão além do tema do trabalho.
Portanto, cremos que há um desafio em construir um sistema que melhore a
coordenação entre os Ministérios e que aprimore a forma democrática que o Brasil
desenvolveu para regular as migrações.
AT: “Nessa questão, além da melhorar a definição das competências de
cada órgão o senhor consegue ver outras lacunas nessa articulação hoje que
poderiam ser supridas?
Existe a lacuna das políticas de integração. Neste aspecto, cremos que está
claríssimo que o Brasil não tem uma política. Primeiro há uma lacuna legal. Falta uma
Lei para regular esta questão e estabelecer competências, seja da União, sejam dos
estados e municípios. Depois, falta uma política específica. A política orienta a ação dos
orgãos, para que os operadores entendam as diretrizes do seu trabalho, por exemplo, o
órgão que é responsável pela emissão de documentos de identidade deve ter a exata
noção de como tratar e atender aos migrantes, dentro de uma política claramente
estabelecida de proteção de direitos. Então, a ausência da Lei e de uma política são
lacunas importantes. Nós criamos diretrizes que permitem mais migração ao Brasil,
então deve haver uma política específica para a recepção e a acolhida dessas pessoas,
que articule ações de diferentes órgãos a nível federal, mas também seja articulada com
estados e municípios. Essa política deveria responder a questões que hoje levam muitos
migrantes recém-chegados a depender da assistência social ou mesmo da caridade ou da
ação de instituições ligadas às igrejas, que, aliás, no Brasil fazem um belíssimo trabalho
na questão migratória. Defendemos, entretanto, que o Estado tenha uma maior presença.
AT: “Minha última pergunta - se o senhor poderia oferecer sugestões
específicas que possam aprimorar esse mecanismo e quais as tendências para os
próximos anos para a política nacional de migração no Brasil?”
Aprimoramento de mecanismos nós já estamos tratando. O Ministério da Justiça
tem feito um bom trabalho, articulando outros orgãos. Nós estamos desenvolvendo uma
série de oficinas de trabalho buscando articular melhor o processo de acolhida, entre
assistência social, qualificação profissional, por meio da oferta de cursos específicos via
PRONATEC, emissão de documentos e acesso ao emprego, com a ideia de criar
protocolos de atendimento, onde cada orgão entenda com clareza seu papel, ainda que
não haja um marco normativo estabelecido. Em outubro de 2014, realizamos a primeira
oficina de trabalho em São Paulo, envolvendo estado e município, e nos próximos
meses faremos outras, principalmente nos estados da região sul.
Prever o futuro em termos de fluxos migratórios é muito difícil. Não prevíamos
que em 2008-2009 haveria uma mudança tão grande. Nossa percepção é de que os
fluxos migratórios são muito dinâmicos. Qualquer mudança de cenário, do país ou da
região ou mesmo no plano global, tem impacto nas migrações. Então é difícil dizer o
que vai acontecer. Agora, mantidas as atuais circunstâncias, principalmente às que
permitem que o Brasil continue com baixo desemprego, continue gerando postos de
trabalho e garantindo melhores condições de vida a sua população, é provável que
venhamos a passar por uma situação que nos países desenvolvidos já tem ocorrido há
vários anos, que é a existência de postos de trabalho que os trabalhadores brasileiros já
não desejam mais ocupar. Essa situação está acontecendo em alguns setores econômicos
e em algumas regiões brasileiras. Quem está assumindo esses postos de trabalho são os
imigrantes, são os haitianos, são os senegaleses, são eles que estão chegando. Então,
mantida essa circunstância, é provável que as migrações no Brasil tendem a aumentar
nos próximos anos. O Brasil está se transformando em polo de atração de imigrantes,
pois há países que, infelizmente, continuam sendo polos de “expulsão” de pessoas, por
razões variadas, principalmente econômicas, ligadas à pobreza. Essa maior atração de
pessoas tem sua intensidade multiplicada pelo fenômeno da formação das redes, pois
essa é uma característica das migrações. Os migrantes que chegam vão formando redes
de contato entre pessoas, que vão formando comunidades, onde cada migrante se
comunica com 10, 20 outros potenciais migrantes e essas pessoas vêem a oportunidade
e decidem migrar e isso vai se expandindo. Há um efeito multiplicador ao longo do
tempo (tanto para aumentar as migrações, quanto para diminui-la). Além do efeito da
reunião familiar, ou seja, do migrante que depois de certo tempo traz a família. Se
formos checar os dados, por exemplo, dos haitianos em 2010 quando começou a
migração depois do terremoto, quase multiplicou por dez, ano a ano, o número de
haitianos que aqui chegam. No final de 2014 perto de 50 mil haitianos já estavam no
Brasil. Ao lado dos haitianos há uma nova corrente migratória oriunda de países
africanos, que certamente vai passar pelo mesmo processo. Há limites, porque são
migrações que dependem, como falamos não só do cenário econômico, mas também do
cenário das políticas regionais, já que são migrantes que chegam passando por outros
países sul-americanos. Há ainda a questão do custo das migrações, havendo limites, já
que é processo migratório caro, envolvendo passagem aérea e outros recursos para a
viagem. Então há limites que podem impactar no número final no futuro, mas cremos
que no curto prazo a tendência é de aumentar as migrações ao Brasil.
AT: “Muito obrigado pela entrevista”
Anexo
As Migrações Internacionais no Brasil sob uma perspectiva jurídica: análise da legislação
brasileira sobre estrangeiros entre os séculos XIX e XXI
Legislação Migratória Brasileira – Quadro Cronológico
(Disponível separadamente no sumário da Revista “Cadernos do Observatório das
Migrações Internacionais”)