HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco
Volume 30 Número 2 Julho/Dezembro de 2012
ISSN 0103-7706
A revista Horizontes é um veículo de divulgação e debate da produção científica na área de Educação e está
vinculada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco, Itatiba/SP.
O propósito da revista é servir de fórum para a apresentação de pesquisas desenvolvidas, estudos teóricos e
resenhas na área de Educação, em suas vertentes históricas, culturais e de práticas educativas. Com vistas a manter
uma interlocução com pesquisadores nacionais e internacionais, a revista aceita publicações nas línguas
portuguesa, inglesa, francesa e espanhola. Os textos publicados são submetidos a uma avaliação às cegas pelos
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filosofia, nem do Programa de Pós-Graduação nem da Universidade São Francisco.
A revista é composta de dossiês com temática educacional coerente com a política editorial da mesma e/ou artigos
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Dossiê: Currículo e práticas sociais
Editores
Alexandrina Monteiro
Jackeline Rodrigues Mendes
Paula Leonardi
Conselho Editorial
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Alfredo Veiga-Neto - UFRGS
Beatriz Maria Eckert-Hoff - Unianchieta
Carlos Alberto de Oliveira - Unitau
Celi Espasandin Lopes - Unicsul
Celina Ap. Garcia de Souza Nascimento - UFMS
Daniel Clark Orey - UFOP
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Elisabeth Ramos da Silva - Unitau
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Ernesto Sérgio Bertoldo - UFU
Gelsa Knijnik - UNISINOS
Juliana Santana Cavallari - Unitau
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Maria Auxiliadora Bueno Megid - Puccamp
Maria Carolina Galzerani Boverio - Unicamp
Maria Cristina Soares Gouveia - UFMG
Maria Gorete Neto - UFMG
Maria José Rodrigues Faria Coracini - Unicamp
Maria Laura Magalhães Gomes - UFMG
Maria Tereza Menezes Freitas - UFU
Maura Corsini Lopes - UNISINOS
Maurício Rosa - ULBRA
Patrick Anderson - Université de Franche-Comté
Rebecca Rogers - Université Paris Descartes
Renata Prenstteter Gama - UFScar
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Rosana Giaretta Sguerra Miskulin - UNESP/RC
Samuel Edmundo López Bello - UFRGS
Vera Lúcia Gaspar da Silva - UDESC
Edição
Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Educação
Revisão
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Projeto Gráfico, Revisão e Diagramação
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Publicações:
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Se pide canje
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Psicodoc (Espanha); Clase (México); Francis
(França).
Horizontes / Universidade São Francisco. -- Vol. 14 (1996)-. -- Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 1996-
v. : il.
Anual, 1996-2003; semestral, 2004-
Continuação de: Revista das Faculdades Franciscanas (1983-1985); Revista da
Universidade São Francisco (1986-1989); Horizontes: revista de ciências humanas
(1990-1995)
Disponível on-line: http://www.usf.edu.br/revistas/horizontes
ISSN 0103-7706 (versão impressa)
ISSN 2317-109X (versão on-line)
1. Ciências humanas - Periódicos. 2. Linguagem - Periódicos. 3. Educação -
Periódicos. 4. Educação matemática - Periódicos 5. Historiografia - Periódicos.
I. Universidade São Francisco.
3
Sumário
5 Editorial
Dossiê
7
19
31
43
59
69
81
95
Discursos curriculares da formação docente, projetos de trabalho e seus elos com a
racionalidade neoliberal
Jaqueline de Menezes Rosa
Maria Isabel Edelweiss Bujes
As práticas curriculares em Matemática que se produzem pelo governo do IDEB
Samuel Edmundo Lopez Bello
Currículo e gênero: produção e naturalização das diferenças na escola
Julia Mayra Duarte Alves
Laura Cristina Vieira Pizzi
Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares
Lisandra Veiga dos Santos
Elisabete Maria Garbin
A Concepção de Ensino Médio e de Currículo Expressa na Proposta de São Paulo
Dirce Djanira Pacheco e Zan
Corpo, comida e cultura: Discussão e problematização os padrões contemporâneos de
beleza/saúde no ensino de ciências
Tatiana Souza de Camargo
Nádia Geisa Silveira de Souza
Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio
Leny Cristina Soares Souza Azevedo
Ligia Karam Corrêa de Magalhães
Práticas sociais híbridas: contribuições para os estudos curriculares em Educação Matemática
Marcio Antonio da Silva
Artigos
103
115
119
121
IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior
Lia Scholze
Iolanda Bezerra dos Santos Brandão
Resenha: Do governo dos Vivos – Curso no Cóllege de France, 1979-1980 (excertos)
Clarice Nunes Ferreira Costa
Relação das dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Educação da Universidade São Francisco no período de julho a dezembro de 2012
Normas para publicação
Publishing Norms
4
5
Editorial
A Revista Horizontes, iniciativa do
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Educação da Universidade São Francisco, chega à
sua trigésima edição, consolidando-se como órgão
de divulgação de produções relacionadas a
Linguagem, Discurso e Práticas Educativas;
Matemática, Cultura e Práticas Pedagógicas, bem
como História, Historiografia e Idéias
Educacionais, linhas de pesquisa do programa.
Igualmente, mantém seu espaço aberto a
colaborações de pesquisadores do país e de outras
partes do mundo, fomentando diálogos
interdisciplinares, sempre necessários à pesquisa
educacional. Dossiê temático e contribuições
oriundas de demanda espontânea, ambos
submetidos à avaliação do comitê científico, em
conjunto com resenhas temáticas e os resumos das
dissertações defendidas no programa formam a
estrutura básica dos números da revista.
Neste número, a revista Horizontes
publica o dossiê Currículo e práticas sociais,
composto por 8 artigos, com contribuições de
diferentes pesquisadores que abordam a temática
do currículo relacionada a diversos campos como
os discursos curriculares sobre a formação de
professores, as práticas curriculares e os índices
do IDEB, as relações de gênero, a abordagem do
corpo no currículo escolar, os currículos e a
educação pública voltada para os jovens, a
produção de identidades juvenis na mídia e o
currículo de Matemática.
O primeiro artigo, intitulado Discursos
curriculares da formação docente, projetos de
trabalho e seus elos com a racionalidade
neoliberal, das autoras Jaqueline de Menezes
Rosa e Maria Isabel Edelweiss Bujes apresenta
uma análise discursiva que problematiza os
Projetos de Trabalhos nos currículos da formação
docente atual. Inspiradas em teorizações de cunho
pós-estruturalista de acento foucaultiano,
apresentam uma analítica que incide, inicialmente,
sobre a articulação entre a discursividade
pedagógica da Modernidade e os ideais liberais.
Ao longo da análise as autoras ressaltam a
associação dos Projetos de Trabalho a formas de
governamento dirigidas a sujeitos ideais nas
diversas expressões do liberalismo,
potencializando a governamentalização da
sociedade.
O artigo de Samuel Edmundo Lopez
Bello, As práticas curriculares em Matemática
que se produzem pelo governo do IDEB, traz um
questionamento sobre por que e de que maneira se
mobilizam determinadas práticas curriculares no
espaço escolar. O autor discute as ações de
governo produzidas pelos números do IDEB e
procura analisar de que forma e quais estratégias
são utilizadas para a produção/mobilização dessas
ações de governo. Para isso apresenta o conceito
de numeramentalização, de inspiração
foucaultiana, e ressalta sua operatividade nos
índices produzidos pelo IDEB como forma lógica
e sedutora da ciência de expressão de
racionalidade e razão. Finalmente, sinaliza para
uma postura ética na formação de professores que,
de posse desta analítica, constitua uma
singularidade das práticas curriculares como
contraponto às ações de governo da política
educacional.
O terceiro artigo, intitulado Currículo e
gênero: produção e naturalização das diferenças
na escola, de Julia Mayra Duarte Alves e Laura
Cristina Vieira Pizzi traz uma discussão sobre a
produção de subjetividades em uma escola de
ensino fundamental em um bairro de Maceió/AL.
O artigo problematiza a demarcação de gênero
constituída a partir de duas atividades econômicas
e culturais presentes no lugar, a produção da renda
filé e a pesca. A partir dos enunciados que
circulam na escola sobre essas atividades, com
base nas ferramentas teóricas fornecidas por
Foucault, a análise das autoras incide sobre os
discursos produtores de subjetividades que
operam predominantemente na escola com base
nessa divisão sexual do trabalho.
O artigo Mídia e Juventudes: produzindo
relações curriculares de Lisandra Veiga dos
Santos e Elisabete Maria Garbin analisa como os
discursos midiáticos sobre juventude podem se
constituir em um currículo paralelo ao escolar na
produção de identidades juvenis. Com
contribuições provenientes dos Estudos Culturais,
dos estudos sobre juventude e dos estudos
foucaultianos na Educação, o artigo analisa 20
exemplares do Jornal Mundo Jovem dos anos de
2009 a 2010 e discute como determinadas
identidades juvenis são produzidas pelos discursos
midiáticos e como podem ser associadas às
representações produzidas e colocadas em
circulação nesse meio.
O artigo de Dirce Djanira Pacheco e Zan,
A Concepção de Ensino Médio e de Currículo
Expressa na Proposta de São Paulo, retoma o
debate sobre a identidade do Ensino do Médio nos
documentos curriculares face à recente mudança
no currículo para esse nível, em 2008, promovida
pela Secretaria de Educação do Estado de São
Paulo. No artigo, a autora faz uma retomada
histórica desse debate, a partir dos documentos
divulgados desde a década de 90, e discute as
6 noções concernentes a esse nível de ensino bem
como a concepção de currículo com foco nas
disciplinas de Ciências Humanas.
O sexto artigo, intitulado Educação
pública: currículo e formação de jovens alunas no
Ensino Médio, de Leny Cristina Soares Souza
Azevedo e Ligia Karam Corrêa de Magalhães,
investiga a configuração do currículo no curso de
formação de professores em nível médio, em uma
escola pública estadual. O texto dialoga com o
contexto do ensino médio modalidade normal,
com as políticas de formação docente, situando a
realidade específica da instituição. A discussão
proposta no artigo ressalta o divórcio existente
entre a formação oferecida ao futuro professor da
Educação Básica e as necessidades de
profissionalização da carreira docente e aponta a
necessidade de que seja conferido aos egressos o
protagonismo no exercício da profissão, a partir
de trabalhos que sejam pensados nos contextos
sócio/político/econômico/cultural em que esses
cursos de formação ocorrem.
O artigo CORPO, COMIDA E
CULTURA: Discussão e problematização dos
padrões contemporâneos de beleza/saúde no
ensino de ciências, de Tatiana Souza de Camargo
e Nádia Geisa Silveira de Souza, problematiza a
abordagem do corpo humano nos currículos
escolares como um fenômeno puramente
biológico, desconsiderando os aspectos
sócio/histórico/culturais que o inscrevem
constantemente. O texto propõe uma discussão em
torno das relações entre corpo, comida e cultura
na contemporaneidade como uma possibilidade
para o currículo escolar.
O oitavo e último artigo que compõe o
dossiê, intitulado Práticas sociais híbridas:
contribuições para os estudos curriculares em
Educação Matemática de Marcio Antonio da
Silva, apresenta uma problematização dos
currículos prescritivos no campo da Matemática,
ressaltando a impossibilidade de pensar em
práticas sociais universais que possam gerar
prescrições curriculares centralizadoras que
orientem ações a serem efetivadas nas escolas,
não considerando a incerteza e a diversidade das
práticas educativas, sociais e culturais.
Trabalhando com o conceito de hibridação, o
texto argumenta que as próprias prescrições
curriculares apresentam discursos híbridos que
necessitariam de uma maior investigação, pois
representam misturas e construções que defendem
correntes teóricas distintas, algumas até
antagônicas.
O artigo que finaliza o volume de Lia
Scholze e Iolanda Bezerra dos Santos Brandão,
com o título IES – uma experiência inclusiva no
Ensino Superior, discute a importância do
acolhimento, do desenvolvimento da linguagem
oral e escrita e da reflexão na trajetória de alunos
ingressantes no Ensino Superior, marcado, muitas
vezes, por dificuldades de leitura e escrita,
principalmente os oriundos de classe popular.
Esse processo é discutido a partir da disciplina
Introdução à Educação Superior (IES), criada com
o objetivo de possibilitar uma mediação
pedagógica que apóie os estudantes na construção
da competência acadêmica necessária para sua
formação, introduzindo-os à reflexão teórica e à
compreensão da universidade como espaço de
ensino, pesquisa e extensão.
O volume traz uma resenha do primeiro
livro organizado por Nildo Avelino com excertos
do curso ministrado por Michel Foucault Do
governo dos Vivos – Curso no Cóllege de France,
1979-1980, por Clarice Nunes Ferreira Costa.
Finalmente, é apresentada a relação das
dissertações defendidas no Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Educação da
Universidade São Francisco no período de agosto
a dezembro de 2012, através da publicação de
seus resumos.
Esperamos que a leitura seja prazerosa e
que estes artigos possam estimular o diálogo com
outros grupos e pesquisadores.
Alexandrina Monteiro
Jackeline Rodrigues Mendes
Paula Leonardi
7
* Endereço eletrônico: [email protected]
** Endereço eletrônico: [email protected]
Discursos curriculares da formação docente, projetos de trabalho e seus elos com a
racionalidade neoliberal
Jaqueline de Menezes Rosa*
Maria Isabel Edelweiss Bujes**
Resumo
O estudo propôs-se a problematizar a centralidade dos Projetos de Trabalhos nos currículos da formação
docente atual. Submetendo o material empírico – um conjunto de textos dos livros mais utilizados nos cursos
de Pedagogia da região metropolitana de Porto Alegre – a uma análise discursiva, inspirada em teorizações
de cunho pós-estruturalista de acento foucaultiano, faz-se inicialmente uma articulação entre a discursividade
pedagógica da Modernidade e os ideais liberais. Adicionalmente tal discursividade é articulada a um
conjunto de estratégias pedagógicas do presente, vistas, a partir do referencial teórico como práticas de
administração das condutas, tanto de professores quanto de alunos. Ao longo da análise ressalta-se a
associação dos Projetos de Trabalho a formas de governamento dirigidas a sujeitos ideais nas diversas
expressões do liberalismo, potencializando a governamentalização da sociedade. Investir, nos cursos de
formação, na proposta dos Projetos pode ser visto também como investimento em capital humano, prática
esta que visa promover a maximização dos potenciais de cada um, sendo útil tanto para a constituição
subjetiva dos docentes, quanto para o alcance das metas do projeto neoliberal.
Palavras-chave: Projetos de Trabalho; currículo da formação docente; discursos; governamento;
(neo)liberalismo.
Teacher’s education curricular discourses, project methods and it’s links to a neoliberal rationality
Abstract
This investigation intends to problematize the centrality of project methods in current teacher’s education
curricula. Submiting empirical material – an array of texts from books largely used in Pedagogy courses in
the metropolitan region of Porto Alegre – to a discursive analysis, inspired on post-structuralist theories and
Michel Foucault’s ideas, an articulation is made between Modernity’s pedagogical discursivity and liberal
ideals. Aditionally such discursivity is articulated to a set of today pedagogical strategies seen, due to the
investigation theoretical framework, as practices to administrate teachers and pupils conducts. Along the
analysis the association of project methods to government practices is stressed showing that it is directed to
diversified expressions of ideal subjects under liberalism, thus contributing to potentialize society’s
governmentalization. The emphasis on project methods in teacher’s education can be seen as an investment
on human capital, practice that intends to maximize each one’s potential, promoting the subjective
constitution of teachers as well as the goals of the neoliberal project.
Keywords: Project methods; teacher’s education curricula; discourses; government; (neo)liberalism.
Apresentação
As questões educacionais estão, hoje, na
ordem do dia. Grande parte dos problemas sociais
trazidos à discussão aparecem de alguma forma
associados a discursos que pautam fragilidades
dos processos educativos. Num registro que oscila
da responsabilização da escola por inúmeros
insucessos sociais a posicionamentos
salvacionistas, que creditam a ela a superação dos
descaminhos de toda ordem, pode-se inferir o
papel crucial que a instituição escolar vem
representando para a manutenção da ordem
moderna. À inoperância dos sistemas formais de
ensino tanto se atribui a responsabilidade pelas
situações problemáticas atuais, as mais variadas,
quanto a culpa por não preparar de modo
satisfatório as crianças e jovens para ocupar
competentemente, no futuro, as posições políticas
e sociais e os postos de trabalho de que o país
estaria a precisar. Frente a esse quadro de
mazelas, proliferam sugestões de enfrentamento
para aquilo que vem sendo considerado
genericamente como um déficit de qualidade da
escola brasileira. Soluções que passam por
reformas do sistema educacional, implantação de
avaliações nacionais, projetos de formação e
aperfeiçoamento de professoras/es, reorganização
dos quadros docentes, recomposição de planos de
carreira e de matrizes salariais, entre tantas outras
que seria demasiado enumerar, são anunciadas
e/ou postas em execução neste afã de reformar a
educação e, por meio dela, dar conta de uma
miríade de problemas sociais que lhe seriam
correlatos.
Sem pretender empreender uma discussão
8 Jaqueline de Menezes Rosa, Maria Isabel Edelweiss Bujes
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012
sobre o diagnóstico ou as perspectivas de
enfrentamento dos problemas enunciados
brevemente no parágrafo anterior, buscamos situar
o trabalho aqui apresentado numa perspectiva
muitissimamente mais modesta, atendo-nos ao
campo curricular e pedagógico (ainda que sem
desconhecer suas viscerais articulações com o
sistema político e social, como se verá mais
adiante). O que chama nossa atenção, e que
constituirá o foco do que nos propomos a discutir,
é o modo como ganha força no currículo de
formação de professoras a proposição de uma
estratégia pedagógica na qual parecem repousar
infinitas esperanças, capaz de fazer frente às
questões de aprendizagem, na busca de romper
com ciclo em que a figura docente é central. O
que nos instiga é a proposta amplamente
disseminada de preparação das docentes para a
adoção, nas instituições escolares de todos os
níveis, dos chamados Projetos de Trabalho. Os
Projetos de Trabalho, segundo os seus defensores,
seriam representativos de uma escolha racional e
de um compromisso em constituir uma sociedade
de aprendizagem, de “[...] um modo de viver pelo
uso da razão, como um processo contínuo de
resolução de problemas, no qual o indivíduo
est[aria] ligado ao bem coletivo da sociedade”
(POPKEWITZ; OLSSON; PETERSSON, 2009,
p.74).
Desafiadas, portanto, a compreender
como certas formas de intervenção pedagógica
tornam-se expressão de interesses que
correspondem a objetivos colocados no nível da
administração das populações, propomos neste
trabalho, que decorre de investigação que
detalharemos mais adiante: a) analisar como
determinadas propostas
metodológicas/tecnologias educativas envolvem
pensar e encontrar modos de agir e de intervir
sobre atitudes, disposições e comportamentos dos
alunos de forma a ajustar suas condutas a
objetivos sociais amplos, proclamados como de
interesse coletivo; b) discutir como a invenção de
certas práticas pedagógicas ganha relevo ao
articular-se a preocupações sociais correntes e por
corresponder a uma dinâmica global que lhes dá
sentido.
Para dar conta de tais propósitos, vamos
nos valer de algumas ferramentas teórico-
metodológicas oferecidas pela notável caixa de
ferramentas de Michel Foucault e, orientadas por
uma perspectiva pós-estruturalista, dialogaremos
com teorizações de autores que vêm atualizando
as análises por ele empreendidas. Nas discussões
sobre temas do presente, referentes ao campo
educativo, em geral, e ao da escolarização, em
particular, recorreremos a Alfredo Veiga-Neto,
Thomas Popkewitz, Jorge do Ó e muitos outros.
As ferramentas conceituais às quais nos referimos
são as noções de governamento e
governamentalidade e, adicionalmente, de
disciplinamento e biopoder/biopolítica.
A pretensão mais geral do trabalho é,
portanto, por em evidência o compromisso da
instituição escolar com a gestão da vida social,
tornando mais explícitos os compromissos entre
escolarização e relações de poder. Para atingir tal
propósito colocamos em destaque as relações
entre discursos curriculares da formação docente
e a racionalidade política que domina as práticas
sociais de nosso presente: o neoliberalismo.
O escopo da pesquisa
Tomamos como ponto de partida desta
seção, em que pretendemos apresentar o escopo
da pesquisa que dá origem a este texto, as palavras
com as quais Popkewitz problematiza a questão
das relações entre poder e saber nas práticas
sociais: “O poder se pratica menos pela força
bruta e mais pelos sistemas de saberes e da razão,
no interior dos quais os objetos da escola são
modelados, a fim de serem compreensíveis e
capazes de passar para a ação” (POPKEWITZ,
2008, p. 236).
Michel Foucault é bastante emblemático
em sua obra ao dizer que há uma relação entre
essas duas instâncias, o que não significa que
sejam idênticas. Distanciando-se das definições
tradicionais de poder e saber, inverte a articulação
de que o poder é apenas negativo. Em suas
palavras: “temos de deixar de descrever sempre os
efeitos de poder em termos negativos: ele ‘exclui’,
‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’,
‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade, o poder produz;
ele produz realidade; produz campos de objetos e
rituais de verdade” (FOUCAULT, 2008a, p.161).
A partir de uma teorização de inspiração
foucaultiana, para a qual saber e poder se
implicam mutuamente, interessamo-nos em
problematizar os jogos de verdade presentes nos
discursos de formação docente, sobretudo aqueles
que se referem ao fazer educativo, sem a
pretensão de interpretar o que estaria subjacente a
eles. Entendemos que tal material tem uma
constituição histórica e que a sua linguagem dá
sentido às práticas de escolarização.
Ao problematizarmos as pesquisas sobre a
formação docente, o enfoque dado aos saberes da
prática, o vínculo entre experiência e discurso
como centros do trabalho pedagógico, colocamos
em questão a noção de que o professor, segundo
uma visão hermenêutica, é a “[...] origem das
operações de discursos e não o seu produto”
Discursos curriculares da formação docente, projetos de trabalho e seus elos com a racionalidade neoliberal 9
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012
(DÍAZ, 1999, p.19). A partir das análises
inspiradas nas leituras do filósofo francês Michel
Foucault, é possível discutir essa perspectiva. Os
atos discursivos individuais estão atravessados por
muitas “vozes”, em uma permanente reescritura,
expressão de campos discursivos
institucionalizados. Em outras palavras, o discurso
pedagógico não estaria relacionado a vontades ou
individualidades autônomas, mas às práticas que
organizam a realidade (FOUCAULT, 1996), a
procedimentos que controlam e regulam o fazer
pedagógico e ao que se diz sobre ele, frutos de
relações de poder.
Começamos, assim, a pensar os saberes da
Pedagogia e seus efeitos na conduta dos
professores em formação, pois é notável, entre
estes, o desenvolvimento de práticas que
partilham, de certa forma, um mesmo referencial a
respeito da escola e da aprendizagem. Há, a partir
de vocabulários profissionais compartilhados,
certos modelos de raciocínio que passam a ser
universalizados. Não se trata aqui apenas de uma
questão terminológica, como aponta Larrosa
(2002). As palavras, os vocabulários
compartilhados entre os profissionais da educação
exprimem “lutas em que se joga algo mais do que
simplesmente palavras, algo mais que somente
palavras” (p.21). Isso possibilita pensar que as
palavras vão adquirindo sentidos e significados
em diferentes práticas, nas quais determinados
grupos buscam impor seus modos de pensar o
mundo, as relações sociais, o papel da escola etc.
Assim, se a formação docente passa a ser
o nosso interesse primordial, os discursos em que
a docência está implicada tornam-se matéria-
prima para esta investigação. O foco deste
trabalho, portanto, direciona sua atenção para os
discursos da formação, para o modo como os
currículos dos cursos de Pedagogia, ao serem
vertidos em programas e reinterpretados pelos
seus atores, podem contribuir para nossa
compreensão das dinâmicas sociais do presente.
Nesse sentido, tomamos como corpus de
análise os livros que aparecem de forma
recorrente nas bibliografias básicas e
recomendadas de cursos de Pedagogia,
referenciados nas disciplinas de Didática ou
similares¹, de três universidades da região
metropolitana de Porto Alegre. Foi preciso, então,
selecionar os livros e tomar como critério de
escolha aqueles mais utilizados nas três
universidades. Com essa tarefa, foi possível
apontar títulos que são recorrentes na bibliografia
recomendada por essas instituições.
Os levantamentos iniciais apontaram
como mais utilizados os seguintes livros: 1)
HERNÁNDEZ, Fernando; VENTURA,
Montsserrat. A organização do currículo por
Projetos de Trabalho: o conhecimento é um
caleidoscópio. Porto Alegre: Artmed, 1998; 2)
HERNÁNDEZ, Fernando. Transgressão e
mudança na educação: os projetos de trabalho.
Porto Alegre: Artmed, 1998; 3) SACRISTÁN, J.
Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a
prática. Porto Alegre: Artmed, 2000; e 4)
SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e
interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto
Alegre: Artmed, 1998.
O interessante é perceber que tais obras,
apesar de suas características próprias e de várias
diferenças em suas proposições, permitem
entrever um conjunto de enunciados que, como
regras, se repetem nas teorizações dos autores.
Há, ao que tudo indica na leitura dos livros aqui
analisados, um tema comum que parece permear
de modo bastante particular o conjunto das
propostas dos autores. Trata-se do tema dos
Projetos de Trabalho, centralizador do discurso da
atividade docente, que aqui nos propomos a
problematizar. Este tema nos ofereceu
possibilidades de analisar algumas rupturas e
redefinições nos discursos que vêm produzindo o
sujeito professor na atualidade, bem como
questionar alguns significados da docência
presentes nas práticas históricas de formação não
apenas direcionadas às subjetividades docentes,
mas também a metas políticas mais amplas.
Nas seções a seguir, passamos a tratar da
densidade e da amplitude do problema, tomando a
Pedagogia e os discursos pedagógicos como
“produto[s] de um complexo processo de
definição [...], resultado[s] de um processo de
construção social [que] depende[ra]m de um
conjunto de possibilidades que se conjuga[ra]m
em determinado momento da história [...]”
(BUJES, 2001, p. 26). Isso significa que os
discursos sobre os “Projetos de Trabalho”, aqui
analisados, não são naturais ou dados: são aquilo
que pode ser dito dentro de certas matrizes ou
modelos orientados pelos saberes de uma
determinada época. E, ao adentrarmos um espaço
que vem constituindo determinadas formas de ser
professor, tratamos de buscamos perceber como
se articularam interesses e estratégias de poder
com os discursos que se servem dos ideais liberais
na produção da docência contemporânea.
O governamento da docência
Colocar sob análise alguns dos discursos
que circulam na formação de professores não
envolve apenas examinar as relações de tais
discursos com orientações para a prática futura,
tais como noções sobre o que fazer e o que
10 Jaqueline de Menezes Rosa, Maria Isabel Edelweiss Bujes
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012
conhecer nos ambientes educativos. Envolve
também as disposições, consciência e
sensibilidade (POPKEWITZ, 1994) que eles
pretendem forjar nos docentes em relação ao
campo que está sendo descrito (atitudes
apropriadas, formas particulares de agir).
“A idéia do currículo corporifica uma
organização particular do conhecimento pela qual
os indivíduos devem regular e disciplinar a si
próprios [...], é uma imposição do conhecimento
do ‘eu’ e do mundo [...]” (POPKEWITZ, 1994,
p.186). Como um sistema de regulação, o
currículo orienta a forma como o futuro professor
deve compreender o ensino, a aprendizagem e sua
função social em prol da cidadania, categorizando
e classificando as questões educacionais a partir
de determinados enquadramentos que o docente
em formação passa a ver como os melhores
possíveis, sem questioná-los.
Os enunciados presentes na literatura
pedagógica estabelecem “[...] regras e padrões que
guiam os indivíduos ao produzir conhecimento
sobre o mundo” (POPKEWITZ, 1994, p.192) no
que se refere à formação de professores, regras e
padrões que guiam a docência, inscrevendo
atributos de subjetividade (LUKE apud
POPKEWITZ, 1994). Considerando isso, ao
examinar algumas das formulações discursivas
recorrentes na formação de professores, esta
análise problematiza o vínculo de determinados
discursos com práticas de governamento, isso é,
com “ações calculadas para agir tanto sobre os
indivíduos quanto sobre o conjunto da população
com a finalidade de potencializar a capacidade de
alguns para agirem sobre as condutas alheias –
suas forças, suas atividades, as relações que os
sujeitos constituem entre si, etc.” (BUJES, 2009,
p.270).
Tal vínculo foi sendo estabelecido à
medida que nos interrogávamos, mais
especificamente, com base em Veiga-Neto (2000),
Ó (2009) e muitos outros, como o campo
educativo entra em relação direta, em sintonia
com o sistema social. Percebendo o notável peso
dado à liberdade e à autonomia, que se expressa
desde as relações econômicas até a conduta dos
indivíduos particulares (Ó, 2009), entendemos que
também os discursos pedagógicos estão
submetidos a uma dada racionalidade política
mais ampla.
A fim de atingir os objetivos propostos
para este estudo, utilizamos algumas das
contribuições desenvolvidas por Foucault (2008b)
a respeito da noção de governamento. Apesar de
não ser a educação o objeto de exame do filósofo,
o estudo sobre os mecanismos disciplinares que
caracterizam as instituições (prisão, fábrica,
escola, quartel, hospital) e suas semelhanças
ajuda-nos a ampliar o campo de discussão sobre a
Pedagogia, sobretudo no que se refere aos
discursos sobre a formação. Porém, é preciso
advertir que essa noção de governamento, mais do
que se referir às instituições disciplinares, indica a
proliferação de lugares a partir dos quais se exerce
o poder.
Nesse sentido, consideramos importante
retomar algumas das discussões feitas por
Foucault a respeito do Estado Moderno. Veiga-
Neto (2000, p. 185) afirma que é especialmente no
curso Segurança, território, população que se
pode “[...] compreender a Modernidade como
resultado da combinação de duas superfícies de
emergência: o deslocamento das práticas pastorais
e o advento da Razão do Estado”. Tal
combinação, segundo o autor, estabelece dois
jogos antagônicos: o jogo da cidade e o jogo do
pastor, que, ao se complementarem, criam
condições de possibilidade para a existência do
Estado Moderno.
O jogo do pastor tem a disciplina como
elemento individualizador – o olhar do soberano
instala-se em cada indivíduo. Cada um é
governado, ou seja, sua conduta é conduzida para
torná-lo pessoa de certo tipo (MARSHALL,
1994). O poder do pastor não se exerce sobre um
território, mas sobre um rebanho em
deslocamento, sobre uma multiplicidade em
movimento (FOUCAULT, 2008b).
Nessa relação, são interessantes as
metáforas utilizadas: pastor e rebanho. É o pastor
o responsável pelo rebanho, é ele que cuida de
cada ovelha em particular. “Uma forma de poder
que não cuida apenas da comunidade como um
todo, mas de cada indivíduo em particular,
durante toda a sua vida” (FOUCAULT, 2008b,
p.173).
Para o autor, o poder pastoral pode ser
considerado o prelúdio do que vai se desenvolver
a partir do século XVI. Os movimentos da
Reforma e, depois, da Contra-Reforma geraram
novas relações entre o pastor e o rebanho,
ocasionando a problemática da pastoral católica e
protestante: “como se governar, como ser
governado, como governar os outros, por quem
devemos aceitar ser governados, como fazer para
ser o melhor governador possível?”
(FOUCAULT, 2008b, p.118). Intensificaram-se,
de um lado, o pastorado em suas dimensões
espirituais e, de outro, diferentes tipos de
condução dos seres humanos fora do ambiente
religioso.
As exigências do capitalismo
mercantilista, por sua vez, desafiavam a
constituição de um saber sobre o Estado,
Discursos curriculares da formação docente, projetos de trabalho e seus elos com a racionalidade neoliberal 11
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012
implicando, um pouco mais adiante, a
estruturação de novos conhecimentos, referentes
primeiramente à Estatística, à Economia e à
Demografia, posteriormente, à Saúde Pública, à
Psiquiatria, à Psicologia e à Psicanálise (VEIGA-
NETO, 2000). Tratava-se de saberes associados à
instauração do jogo da cidade, um poder
totalizador voltado para o âmbito civil e da
população.
Novas maneiras de governar, mais
precisamente a partir do século XVIII, passaram a
ser instituídas em relação à população, a fim de
produzir mais riqueza, fornecer meios de
subsistência suficientes e favorecer o incremento
populacional (FOUCAULT, 2004). O Estado
passou a reorganizar a forma de utilizar o poder
pastoral, assumindo nesse contexto os cuidados
com a saúde, o bem-estar, a segurança e a
proteção contra acidentes como formas de
salvação a serem asseguradas neste mundo. Para
Foucault (1995, p. 238), “isto [implicou] que o
poder do tipo pastoral, que durante séculos – por
mais de um milênio – foi associado a uma
instituição religiosa definida, [se ampliasse]
subitamente por todo o corpo social;
[encontrando] apoio numa multiplicidade de
instituições”.
Portanto, é no âmbito das artes de
governar que se passa a destacar a existência de
muitas e diferentes formas de governo: de si, da
família e do Estado. Diferentes formas que
possuem uma continuidade essencial.
Ao diferenciar essas três formas de
governo e sua continuidade, Foucault
problematizou: “como introduzir a economia –
isto é, a maneira de administrar corretamente os
indivíduos, os bens, as riquezas no seio de uma
família [...] na gestão do Estado?” (2008b, p. 126).
A partir dessa problemática, o autor diz que a arte
de governar permaneceu bloqueada até quando se
tornou possível perceber os problemas específicos
da população isolados do quadro jurídico da
soberania. A população passa a ser o objeto final
do governo organizado, segundo uma
racionalidade planejada.
O gerenciamento familiar passa também a
interessar ao domínio político, e o Estado assume
parte das funções de manutenção da vida, antes
exclusivas da família. A economia em favor dos
fenômenos populacionais vai revelar pouco a
pouco que a população tem suas próprias
características, irredutíveis às da família
(FOUCAULT, 2004). Trata-se das características
próprias que passam a ser estudadas nas suas
regularidades por meio da medição estatística;
referem-se aos fenômenos associados com a
manutenção e a promoção da vida que ensejam o
que Foucault denominou de biopolítica. Os
índices de natalidade, mortalidade, de doenças, de
produção etc. são alvos dessa tecnologia de poder.
Talvez seja interessante lembrar que,
enquanto a disciplina exerce poder sobre o corpo,
com efeitos individualizantes, o biopoder se
exerce sobre o conjunto da população. Assim, nos
deslocamentos pelos quais passam as formas de
exercício do poder, não ocorre a substituição de
uma sociedade por outra, como observou Foucault
(2008b): da sociedade de soberania para a
disciplinar e desta para a sociedade de governo.
“Temos, de fato, um triângulo – soberania,
disciplina e gestão governamental –, uma gestão
governamental cujo alvo principal é a população e
cujos mecanismos essenciais são os dispositivos
de segurança” (p. 143).
A instituição escolar não fica imune aos
deslocamentos que ocorrem na sociedade, sendo
importante aqui destacar que há pelo menos duas
escolas modernas: uma posicionada na lógica
disciplinar2 e outra na da seguridade
(COUTINHO, 2008). “Ou então, melhor ainda:
considerando que a incorporação de novos
elementos não faz desaparecerem os anteriores,
mas os desloca e re-significa seu papel, pode-se
dizer que a própria escola foi também
governamentalizada” (id., 2008, p. 44). Nesse
deslocamento, o sentido dado à liberdade vai
significar novas possibilidades de movimento,
novas tecnologias, novos saberes e mecanismos
de segurança. A escola, como imensa maquinaria
cujas práticas sempre estiveram mais ou menos
ajustadas ao funcionamento do mundo, tem uma
articulação produtiva com a Modernidade
(VEIGA-NETO, 2000). E é a partir dos preceitos
pedagógicos que dão sustentação aos chamados
Projetos de Trabalho que procuramos mostrar
como a escola opera tal articulação, cujo principal
intuito é “preparar as massas a viverem num
Estado governamentalizado” (p. 190).
Sendo o campo pedagógico o cerne da
formação de professores, pensamos ser legítimo
que tanto um quanto outra possam ser
considerados como articulados a uma
problemática de governamento3, uma vez que
estão comprometidos em estruturar “o eventual
campo de ação dos outros” (FOUCAULT, 1995,
p. 244). Com base nessa premissa, percebemos os
professores enredados em práticas que
potencializam a conduta própria e alheia, práticas
estas que, fazendo parte de um currículo,
inscrevem nos sujeitos “certas disposições, modos
de pensar, modos de classificar e hierarquizar”
(BUJES, 2008, p.109). Em outras palavras, as
práticas discursivas dos currículos de formação
instrumentalizam a maneira como os futuros
12 Jaqueline de Menezes Rosa, Maria Isabel Edelweiss Bujes
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012
docentes conduzem o seu trabalho, mas também
produzem modos de ver a si mesmos e aos demais
implicados no processo de escolarização.
Por tudo isso, mesmo quando os discursos
curriculares da formação governam as condutas
individuais dos professores, podemos pensar sua
conexão com a população, pois a prática dos
futuros professores estará voltada para a formação
dos alunos – dos cidadãos da sociedade.
A educação docente é, pois, um fenômeno
de interesse coletivo, e em alguns discursos que
examinamos podemos percebê-la associada à
biopolítica da população, o que nos leva à
discussão da noção de governamentalidade. Há
enlaces dos discursos pedagógicos com as formas,
os modos, as táticas de bem exercer o
governamento. São discursos que, no âmbito da
arte de governar, se valem da verdade produzida
pela ciência para potencializar o exercício de
poder (BUJES, 2008).
Talvez seja bom aqui lembrar que
Foucault (2004) concebe a governamentalidade
como um conjunto formado por instituições,
procedimentos, análises e reflexões, cálculos e
táticas. Composta por arranjos técnicos (notações,
computações, avaliações, etc.), por uma
conjugação de forças (legais, arquiteturais,
financeiras, etc.) e pela utilização de instrumentos
(levantamentos, pesquisas, sistemas de
treinamento, etc.), ela tem tornado possível, a
diferentes autoridades – das mais diversas
proveniências –, levar a efeito programas de
administração social que têm por finalidade
regular não só as decisões, mas as ações
individuais, grupais, institucionais.
A governamentalidade implicaria, assim,
que o poder, para ser exercido racionalmente e
tornar os sujeitos passíveis de serem governados,
precisaria se valer de uma série de
mecanismos/estratégias, e no seu âmbito
inventaram-se o que Foucault chamou de
tecnologias de poder, os meios que se valem as
autoridades (de todas as ordens) para
instrumentalizar e normalizar as condutas.
O termo governamentalidade, é associado
por Fymiar (2009) a novas formas de pensar o
exercício do poder com o paulatino processo de
governamentalização do Estado, correspondendo
a mutações que ocorreram na forma de pensar as
finalidades do Estado, o exercício do poder, a vida
econômica e, em especial, a população quando
esta passou a ser vista como um campo de
intervenção. A ampla escolarização das crianças
pode ser situada no âmbito destes deslocamentos
que alteram as formas como as relações de poder
atingem os indivíduos. No movimento de
organização dos Estados liberais na passagem dos
séc. XVIII para o XIX, estendendo-se por parte do
séc. XX, segundo Rose (1999), evidencia-se a
criação de uma nova matriz de racionalidade, que
orientou a invenção de uma série de tecnologias,
envolvendo cálculos e estratégias, para intervir em
novos campos que se ofereciam ao exercício do
poder: a economia, a saúde e os hábitos da
população, a civilidade das massas, a educação.
As tecnologias analisadas por Foucault
permitem-nos tematizar a constituição subjetiva
dos docentes por discursos, como os dos Projetos
de Trabalho, sustentados nos ideais de liberdade,
interesse e aprendizagem. Por meio de pretensões
de verdade dos discursos pedagógicos, operam-se
relações de poder-saber que atingem uma
população sob um Estado moderno liberal. É com
base em ideais como esses que a educação
escolarizada tem funcionado como uma estratégia
de governamento dos sujeitos.
A racionalidade neoliberal na constituição do
sujeito professor e a adoção dos Projetos de
Trabalho
De acordo com Coutinho (2008), a
segunda escola moderna, aquela com a qual
convivemos hoje, encontra-se numa relação
imanente, com acontecimentos da sociedade,
como a “revolução industrial, o Iluminismo, o
transcendental kantiano, a idéia de futuro como
progresso, a fisiocracia e o liberalismo”, (p.34)
entre outros. O poder disciplinar continua
operando em uma nova lógica, na qual a
mobilidade é o elemento diferencial em relação à
ordenação tipicamente disciplinar e às formas que
começam a se instituir no século XVIII (ibidem.).
Entre essas formas, no que se refere ao campo da
educação, estão as modificações em relação aos
espaços, rotinas e recursos da sala de aula. No
entanto, não são apenas modificações em termos
estruturais que podemos perceber nos discursos
pedagógicos do século XVIII: há a
problematização de alcançar a liberdade e a
autonomia, antes que coação, direção e
heteronomia (NOGUERA-RAMÍREZ, 2008).
Nessa perspectiva, em contraposição aos
métodos baseados na repetição e memorização
utilizados pela escola moderna numa lógica
disciplinar, destacam-se as ideias preconizadas
por Rousseau, filósofo suíço que defende as
experiências realizadas pelo próprio aluno.
Os pressupostos rousseaunianos não se
inseriram de imediato no campo da prática: foi
necessária toda a ‘revolução romântica’, toda a
imposição de uma visão positiva da ciência e mais
um século de intervalo para que eles revivessem
num núcleo ‘renovador’ da Pedagogia, no
Discursos curriculares da formação docente, projetos de trabalho e seus elos com a racionalidade neoliberal 13
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012
alvorecer do século XX.
Trata-se do Movimento da Escola Nova,
que tomou proporções peculiares em diferentes
localidades. Acontecimentos sociais marcados
pelos efeitos da Revolução Industrial objetivavam
uma sociedade mais democrática, atribuindo à
escola um importante papel nessa tarefa. Isso pode
ser percebido, por exemplo, quando alguns
autores escolanovistas defendem a escola popular
e de massas, que, além de democrática, deve estar
preparada para o desenvolvimento tecnológico –
“o que a nutrição e a reprodução representam para
a vida fisiológica, a educação é para a vida social”
(DEWEY apud LOURENÇO FILHO, 1965, p.7).
As orientações didáticas, até então
voltadas à constituição de um indivíduo dócil e
obediente, deslocam agora o seu interesse em
direção a outro tipo de sujeito, autorregulado por
seu próprio interesse e desejo. Há, segundo
Noguera-Ramírez (2008), “[o] deslocamento da
preocupação pela instrução, o ensino, a disciplina,
para a ‘formação’, a ‘educação’” (p.11), uma vez
que se referem a este novo tipo de sujeito, “[...]
produto da ação individual para atingir a virtude, a
moralidade, no marco das novas ideias de
cidadania” (p.12).
Para Foucault (2008b), há uma sintonia
entre variados discursos e a forma de organização
política e econômica das sociedades, relacionada,
na época, com o liberalismo, representado pela
máxima: [...] deixar as pessoas fazerem, as coisas
passarem, as coisas andarem, laisser-faire,
laisser-passer e laisser-aller [...]”(p.62-63).
Nos discursos pedagógicos, percebe-se o
enfoque dado ao desenvolvimento das crianças,
que consistiria em deixá-las seguir um caminho
seu, pessoal, orientado por suas escolhas (mas, de
algum modo, dirigido pela natureza). O
Movimento da Escola Nova, por exemplo, desloca
o eixo da reflexão educativa em direção à criança.
A escola, como uma das instituições que se
encarrega de controlar e disseminar novas
tecnologias, vai sendo produzida no campo
político de discursividade liberal.
John Dewey foi o principal representante
deste Movimento e vai dar sustentação ao enfoque
dos Projetos, tendo em conta o aspecto inovador
dado à capacidade de pensar. As teorizações desse
autor articulam-se à racionalidade governamental
liberal, já que tratam o indivíduo como sujeito de
uma natureza em desenvolvimento que será
favorecida pela contínua reorganização e
reconstrução da experiência, para a qual a
liberdade é condição essencial (TEIXEIRA,
1965).
Nesse sentido, é possível estabelecer
relações entre uma orientação curricular que
privilegia os Projetos de Trabalho, principal
objeto de análise deste estudo, a formas de
governamento dirigidas aos sujeitos ideais no
liberalismo e no neoliberalismo. Nos discursos
dos livros dos cursos de Pedagogia aqui
analisados, os Projetos de Trabalho são
apresentados como a tentativa que melhor
responderia às exigências de reorganização da
informação no âmbito da escola para atender às
demandas da realidade social, econômica e
cultural contemporânea. Sua função, segundo
Hernández e Ventura (1998, p.61),
é favorecer a criação de estratégias de
organização dos conhecimentos escolares
em relação a: 1) o tratamento da
informação, e 2) a relação entre os
diferentes conteúdos em torno de
problemas ou hipóteses que facilitem aos
alunos a construção de seus
conhecimentos, a transformação da
informação procedentes dos diferentes
saberes disciplinares em conhecimento
próprio (grifos dos autores).
Nessa perspectiva, os Projetos são
apresentados como estratégias pedagógicas que
visam a transgredir, “explorar novos caminhos
que permitam que as escolas deixem de ser
formadas por compartimentos fechados, horários
fragmentados, arquipélagos de docentes e passem
a converter-se numa comunidade de
aprendizagem” (HERNÁNDEZ, 1998,
contracapa). Assim, essa metodologia apresenta-
se como diferenciada das demais, por pretender
construir intercâmbios de culturas e biografias em
sala de aula, “ultrapassar os limites das
disciplinas” (SANTOMÉ, 1998, p.25). Os
discursos pedagógicos da escola, no presente,
declaram a possibilidade de cada aluno se
autodesenvolver. O forte desejo de transformar o
aluno em um sujeito capaz de solucionar
problemas e responsável pelas suas escolhas,
insere-o numa comunidade de aprendizagem onde
se diz que – com o empenho necessário e a
orientação pedagógica adequada – ele será capaz
de exercer e cumprir seu papel de cidadão, de
constituir-se como sujeito moral e
intelectualmente autônomo, de preparar-se para
exercer determinadas funções na sociedade e de
tornar-se um trabalhador competente.
Apesar de os Projetos de Trabalho darem
sequência à defesa de uma prática de trabalho que
valoriza o papel decisório dos alunos desde
Dewey, analisar isso nos discursos vigentes não
significa falar da mesma coisa, uma vez que tais
discursos estiveram sujeitos a condições materiais
14 Jaqueline de Menezes Rosa, Maria Isabel Edelweiss Bujes
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012
de enunciação muito distintas.
É preciso então compreender o
deslocamento da produção para o consumo, da
(re)significação da liberdade como algo natural e
espontâneo – no liberalismo – para um objeto de
consumo – no neoliberalismo. De uma lógica que
reproduz passamos a uma outra lógica, que cria,
inventa, inova. O trabalho ultrapassa a atividade
física. É preciso utilizar diferentes estratégias, ser
criativo e fazer diferença. A educação tem um
papel importante na orientação dessas mudanças.
E não é por acaso que na educação percebemos os
efeitos de atravessamento das ideias de
“consumir”, gerir informações, flexibilizar, criar e
desenvolver competências. A escola moderna não
dá mais conta de seu papel na formação do sujeito
para uma época neoliberal e passa a reorganizar e
reconfigurar seus processos educativos. A
organização curricular proposta por Sacristán
(2000) e Santomé (1998), bem como a retomada
dos Projetos de Trabalho proposta por Hernández
(1998) e Hernández e Ventura (1998), insere-se na
matriz discursiva associada a uma racionalidade
política neoliberal.
Os Projetos de Trabalho elevam a máxima
preconizada de levar o sujeito a reaprender a
aprender ao longo de sua vida. Cada um descobre
que tem responsabilidade na sua própria
aprendizagem – o sujeito empresário de si
(VEIGA-NETO; SARAIVA, 2009) –, sendo apto
a desenvolver suas capacidades na tentativa de
melhor solucionar os desafios e resolver
problemas de seu cotidiano. Aprender, nesse
contexto, significa ter cada vez mais liberdade
para gerir o próprio caminho, fazer escolhas,
responsabilizar-se por elas na busca de realização
pessoal, mas, sobretudo, inserir-se produtivamente
num mundo voltado para o consumo e para a
competição. Com o objetivo de produzir capital
humano, dotado de aptidões para os novos tipos
de trabalho, a educação teria reforçada sua
posição de grande empreendimento na produção
de novos sujeitos.
E aqui é preciso dar um destaque
especial, diante do objeto desta análise, ao
professor como figura emblemática do esforço
empreendedor: “[...] ‘serão os professores aqueles
que em definitivo, mudarão o mundo da escola,
entendendo-a” (HERNÁNDEZ; VENTURA,
1998, p.27).
Essa individualização, que implica a
responsabilização do professor, estimula cada vez
mais a sua procura de embasamento, de leituras na
busca de legitimação. Enfatiza-se a ele, de forma
significativa, um vocabulário composto de termos,
tais como: flexibilidade, espírito inovador,
trabalho em equipe, entusiasta, facilitador,
autonomia, aprender a aprender. Essas palavras
ou expressões funcionam como ideias-chave,
peças de uma narrativa, conjunto da mesma
natureza, para constituir a referência a partir da
qual cada professor deverá se examinar e fazer a
reflexão sobre os modos como exercerá a sua
docência.
Ser flexível, por exemplo, seria o traço
que possibilitaria ao professor relacionar as
questões desse tempo, os interesses dos alunos,
traduzindo-os na mudança da organização dos
conhecimentos escolares. Essa flexibilidade
aparece, tanto em Santomé como em Hernández,
de forma muito semelhante, como uma hipotética
sequência, alguns passos, não fixos, “mas [que]
serve[m] de fio condutor para a atuação docente
em relação aos alunos” (HERNÁNDEZ, 1998,
p.81):
Parte-se de um tema ou de um problema
negociado com a turma; inicia-se um
processo de pesquisa; buscam-se e
selecionam-se fontes de informação;
estabelecem-se critérios de ordenação e
de interpretação das fontes; recolhem-se
novas dúvidas e perguntas; estabelecem-
se relações com outros problemas;
representa-se o processo de elaboração
do conhecimento que foi seguido;
recapitula-se (avalia-se) o que se
aprendeu; conecta-se com um novo tema
ou problema (id., 1998, p.81).
Há, em contrapartida à flexibilidade,
prescrições que orientam o exame das ações dos
professores. E, assim, arriscamo-nos a dizer que
os discursos sobre os Projetos de Trabalho operam
no interior das práticas de formação de
professores, no sentido de criar sujeitos
governáveis através da utilização de várias
técnicas que têm por finalidade controlar,
normalizar e moldar a conduta desses futuros
profissionais. Há constante referência à relevância
da atuação do professor na construção de um
aluno, de um sujeito ideal capaz de analisar e
interpretar o mundo em que vive. De sujeitos
ideais que
são levad[os] a reconstituir em narrativas
e textos, as experiências vividas
reconhecendo-se como ‘protagonistas’
das mesmas. Nesse tipo de experiência há
um constante incitamento para que [eles]
se vejam, se narrem, se julguem, mas mais
do que isso, há uma recorrência tenaz e
oportunidades sempre reiteradas para
que ajam no sentido de transformar-se
Discursos curriculares da formação docente, projetos de trabalho e seus elos com a racionalidade neoliberal 15
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012
(BUJES, 2009, p.280).
A elaboração do índice, por exemplo, tem
um forte papel nesse processo. Trata-se de um
instrumento que possibilita ao aluno antecipar o
desenvolvimento do Projeto, planejar as diferentes
atividades a serem realizadas, prevendo ações e o
envolvimento do grupo. São os alunos que
realizam as escolhas e tomam as iniciativas do
trabalho a ser realizado. No entanto, como
apontam Veiga-Neto e Saraiva (2009, p.198),
“[devem] encaixar-se dentro de um recorte
estabelecido pelo professor. A vinculação dos
Projetos ao currículo não permite uma escolha
assim tão livre, de modo que o interesse da
criança é produzido por intervenções do
professor”. De certa forma, o índice gerencia e
programa todas as ações feitas - a serem
realizadas e as que não foram realizadas – nesse
mecanismo de controle, automonitoramento e
confissão.
O portfólio é outra estratégia dos Projetos
a ser analisada. É neste que ficam reunidos os
registros das hipóteses, das construções
individuais ou coletivas feitas durante todo o
desenvolvimento do Projeto. É uma modalidade
de avaliação vinculada à evolução do processo de
aprendizagem. Trata-se de uma estratégia de
governo que afeta as aspirações e desejos pessoais
de forma indireta, maximizando as capacidades
intelectuais:
[...] acumulando registros contínuos do
progresso dos estudos [...] se pode
utilizar não só para manter os estudantes
ativamente implicados em seu próprio
progresso (e, portanto, comprometendo-
os em manter seus esforços para alcançar
o êxito), mas sim também para “deixar
frios” os estudantes que estão tendo
dificuldades com seus estudos, baixando
suas expectativas e tendo que assumir por
si mesmos, momento a momento,
fragmento a fragmento, a natureza e a
extensão de seus fracassos
(HERNÁNDEZ, 1998, p.98).
O portfólio possibilita indicar os
momentos-chave das aprendizagens conquistadas,
superadas e a superar de ambos os sujeitos
escolares: alunos e professores. O anseio de que
possam, juntos, reaprender a aprender vai
possibilitar trajetos e aspirações de próximos
desejos, traçando, segundo Rose (1998, p.44), “a
distância entre aquilo que somos e aquilo que
podemos nos tornar”.
Nesse sentido, poderia se dizer que a
análise dos Projetos de Trabalho, central nos
discursos curriculares de formação de professores,
articulada à governamentalidade neoliberal, incita
a constituição de novos sujeitos. É sobre estes que
está o grande investimento da contemporaneidade,
uma vez que empreender se associa aos processos
de ensino e aprendizagem. Investir na proposta
dos Projetos de Trabalho seria investir em capital
humano, promover a maximização dos potenciais
de cada um, não sendo apenas útil ao
desenvolvimento do trabalho, mas ao crescimento
pessoal ao longo da vida.
Por todas essas razões, ao nos
interessarmos pelos discursos curriculares da
formação docente, foi possível destacar a sua
estreita vinculação com as práticas de constituição
do sujeito professor na atualidade. Problematizar
tais discursos possibilitou que os percebêssemos
atravessados por relações de poder, em diferentes
momentos e contextos, e reforçou nossa
convicção de que fizeram e fazem parte dos
processos produtivos da sociedade, permitindo-
nos entender sob um prisma bem menos idealista
as aspirações da formação docente deste nosso
tempo.
E é nesse sentido que desejamos enfatizar
que não tivemos a pretensão de apresentar um
estudo que traçasse direções para a formação
docente nem demarcar um campo de convicções
ou soluções para os problemas educacionais.
Substituir um modo de pensar por outro não
garante a promoção de uma investigação mais
comprometida e arguta (BUJES, 2008). Nossos
propósitos são outros – talvez um tanto menos
ambiciosos, como cremos ter explicitado ao longo
deste texto –, uma vez que nos afastamos das
crenças dominantes acerca da verdade e do
progresso que ainda marcam o campo pedagógico.
Acreditamos ser produtivo pensar em como
chegamos a conceber a relevância dos Projetos na
atividade docente, para depois contestá-los e até
mesmo desconstruí-los, no sentido atribuído por
Veiga-Neto (2007) de abrir outros espaços,
espaços de liberdade, indagação e mudança.
Referências Bibliográficas
BUJES, Maria Isabel E. Infância e Maquinarias.
(2001). Tese (Doutorado em Educação) –
Faculdade de Educação, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001.
BUJES, Maria Isabel E. Para pensar pesquisa e
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(UFScar), v.2, 2008, p.106-124. Disponível em:
16 Jaqueline de Menezes Rosa, Maria Isabel Edelweiss Bujes
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012
<http://www.reveduc.ufscar> Acesso em: 06 fev.
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BUJES, Maria Isabel E. Manuais Pedagógicos e
Formação docente: elos de poder/saber.
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18 Jaqueline de Menezes Rosa, Maria Isabel Edelweiss Bujes
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul./dez.2012
Notas
1 Por similar, entendemos disciplinas que tratam dos temas didáticos, mas recebem denominações tais como:
Organização do Trabalho Pedagógico, Organização Escolar, Prática Pedagógica Interdisciplinar, Ação
Pedagógica na Educação Infantil e Anos Iniciais, Ação Pedagógica na Educação Básica, Projetos
Educativos Interdisciplinares, etc.
2 Nessa lógica, o enfoque no ensino e na instrução reforça a importância do mestre, centro da ação
pedagógica, sobre a conduta das crianças. O conjunto das ordens, da organização dos espaços, dos tempos,
da estrutura dos conteúdos, irá constituir uma rotina inflexível na obtenção da obediência e disciplina.
Modelo pedagógico que se sucede no ensino dos jesuítas e se generaliza a partir do século XVIII, através
da consolidação das idéias propagadas na Didática Magna de Comenius.
3 A fim de evitar problemas léxicos com a palavra governo, valemo-nos do termo utilizado por Bujes (2001)
e Veiga-Neto (2002): governamento. “Justifico a utilização do termo com a intenção de diferenciá-lo de
governo – como uma instância de controle político, como instituição a quem cabe o exercício de
autoridade –, do ato que se exerce sobre uma pessoa ou que ela exerce sobre si mesma, para controlar suas
ações” (BUJES, 2001, p.73).
Sobre as autoras:
Jaqueline de Menezes Rosa: Mestre em Educação, professora do Curso de Pedagogia da Universidade
Luterana do Brasil (Canoas/RS).
Maria Isabel Edelweiss Bujes: Doutora em Educação, professora do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Luterana do Brasil (Canoas/RS) e pesquisadora da infância.
19
* Endereço eletrônico: [email protected]
As práticas curriculares em Matemática que se produzem pelo governo do IDEB
Samuel Edmundo Lopez Bello*
Resumo
Este texto analisa por que e de que maneira se mobilizam determinadas práticas curriculares no espaço
escolar. Trata-se de mostrar como e por que se dá o Governo da instituição escolar pelos números do IDEB;
quais estratégias se utilizam para a produção/mobilização dessas ações de governo. A partir do conceito de
numeramentalização, de inspiração foucaultiana, é que se vê a operatividade do índice numa lógica sedutora
da ciência como expressão de racionalidade e razão, a qual encontra no imperativo da contextualização do
ensino a sua força impulsionadora. Sugere-se, por fim, uma postura ética na formação de professores que, de
posse desta analítica, constitua uma singularidade das práticas curriculares como contraponto às ações de
governo da política educacional.
Palavras-chave: Práticas curriculares – avaliação e desempenho em matemática – Educação Básica –
Governo dos números.
Curricula Practices of Mathematics and the government of IDEB
Abstract
This text aims to analyze why and how certain practices are mobilized in the school curriculum. Our goal is
to show how and why the government of the school by the numbers of IDEB, what strategies are those that
are used for the production / mobilization of these government actions. From the concept of Foucauldian
inspiration so-called “numeramentality”, we can realize the operativity of the index in a seductive logic of
science as an expression of rationality and reason, which takes the context of teaching as imperative of their
driving force. We suggest an ethical stance in teacher education which, from our analitical point of view,
institutes a singularity of curriculum practices as a counterpoint to the actions of government of education
policy.
Keywords: Curricula Practices – Evaluation and Performance in mathematics – Schooling – Government by
numbers.
Introdução
Tem sido cada vez mais recorrente sentir
a preocupação, nas diversas instâncias
institucionais (Universidades, Escolas, Secretarias
de Governo) e pelos mais diversos segmentos da
sociedade (Pais de Família, professores, meios de
comunicação), que o ensino na escola e o
aproveitamento dos nossos estudantes não andam
bem, em particular no ensino de Matemática.
Esses dizeres ganham fôlego e encontram uma
sustentação de caráter empírico-objetivo em
índices que são produzidos para essa finalidade, a
partir de avaliações em larga escala. Refiro-me,
neste caso particular, ao IDEB - Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica, o qual tem
se tornado um dos principais indicadores de como
anda a “saúde” da Educação no Brasil. Como é
sabido, os índices para 2012 foram calculados
com base no desempenho dos estudantes em
avaliações de português e matemática
combinando-se com as taxas de aprovação,
reprovação e abandono escolar.1
No caso da “realidade educacional
revelada” por esses índices, a situação
caracterizada para o Estado do Rio Grande do Sul
tem sido considerada por diversos setores da
opinião pública como preocupante: 5,1 para o
IDEB ao final dos anos inicias; 3,8 para os anos
finais do Ensino Fundamental e 3,4 para o IDEB
Ensino Médio2.
Muitas críticas e ressalvas poderão ser
feitas à maneira como este índice é construído, em
particular, se considerarmos que:
Os resultados representam uma espécie
de “fotografia” do momento, não
revelando a complexidade do processo de
aprendizagem, em razão da qual, embora
seja um indicador importante, ele por si
só não explica as reais condições de
aquisição do conhecimento (RIO
GRANDE DO SUL, SEDUC/RS).3
Sob a questão: Por que o mau
desempenho dos jovens estudantes, em particular,
na disciplina de Matemática? Ou, por que 89%
chegam ao final do Ensino Médio sem aprender o
esperado? Tem sido muito insistente a procura,
por parte da Mídia, pelas causas da situação
educacional para o estado do RS que evidenciam
esses índices. Certamente, não podem ser
igualados os sentidos atribuídos aos termos
desempenho e aprendizado. Contudo, nós,
20 Samuel Edmundo Lopez Bello
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012
professores universitários, temos uma percepção
ainda que intuitiva, de que alguma coisa não está
funcionando de modo adequado no processo de
ensino-aprendizagem. Podemos, inclusive, dizer
que cada vez mais alunos chegam ao ensino
Superior sem saber mobilizar minimamente
objetos matemáticos considerados básicos para
“resolver” situações-problema que são propostas.
De modo geral, a mídia tem apontado
como causa desse insucesso nos resultados
obtidos pelo IDEB ao processo de Formação de
professores, particularmente à formação
pedagógica dos professores em exercício na rede
pública de ensino, quando não referido situações
mais sistêmicas como baixos salários e falta de
infraestrutura. Em se tratando do Ensino Médio, a
essas causas poderiam se agregar a evasão escolar
e a infrequência às aulas por parte dos estudantes,
as quais, até alguns anos, eram facilmente
“naturalizadas” ao olhar de professores e das
equipes diretivas nas diferentes escolas públicas
estaduais da cidade de Porto Alegre, ao serem
visitadas quando da realização dos trabalhos de
orientação nas disciplinas de Prática de Ensino do
Curso de Licenciatura em Matemática da
UFRGS4.
No entanto, quando Poder público,
Pesquisadores, Profissionais do Centros de
Formação Universitária são desafiados e
tensionados a oferecer respostas, os
encaminhamentos podem ser outros. Poder-se-ia
dizer que os problemas da Educação Básica, em
geral, não respondem apenas às questões da
gestão escolar, mas há uma responsabilização dos
resultados no Ensino Médio a partir dos processos
de ensino-aprendizagem que ocorrem no Ensino
Fundamental, nos anos iniciais e, antes ainda, na
educação Infantil.
De modo geral, para as autoridades e
profissionais da educação, o problema da falta de
interesse e da indisciplina na escola Básica,
quando não se vincula diretamente às “lacunas”
na formação acadêmica dos estudantes, é porque
ora o professor não vincula o conteúdo
matemático às aplicações ou problemas do dia-a-
dia, ou porque a escola não investe em práticas de
culturização escolar. Sobre este ultimo aspecto,
Xavier (2008, p. 21) nos lembra que a categoria
aluno é uma categoria cultural e precisa ser
produzida pela escola contemporânea; posturas
devem ser ensinadas através de procedimentos
que componham as rotinas escolares. Da mesma
forma, “as áreas de conhecimento precisam ser
vistas como instrumentos para autoconhecimento,
conhecimento do outro, conhecimento do mundo
social e natural” (idem, ibidem, p. 27).
Do meu lugar de pesquisador e como
professor do Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, vinculado à linha de pesquisa das
filosofias da diferença, em meio a todas essas
possíveis causas do baixo desempenho, sinto-me
desafiado a (re)tomar a questão pelo lado da
análise curricular. Nesse sentido, tomarei o
Currículo como foco de experiência, no sentido
foucaultiano, isto é, como ponto de inflexão no
qual se articulam e se sobrepõem, primeiro, as
formas de saber possível, segundo, as matrizes
normativas de comportamento para os indivíduos;
para posteriormente se constituírem os modos de
existência virtuais para sujeitos possíveis de um
determinado tempo histórico (FOUCAULT, 2010,
p. 4).
Para tanto, deve-se tomar o Currículo
como objeto de pensamento e de reflexão;
pesquisá-lo, revisitá-lo, desconstruí-lo, reinventá-
lo, em outras palavras, tornar o Currículo um
acontecimento na pesquisa em Educação. Nesse
sentido, Corazza (2004, p. 10) lembra-nos que
pesquisar não quer dizer ultrapassar uma situação
de desconhecimento, superar uma condição de
ignorância ou uma passagem de um saber a um
não saber. Fazer do currículo um acontecimento
na pesquisa significa fazer “o choque com o já
feito, uma experimentação dos conceitos e das
imagens do pensamento que animam uma
Pesquisa do acontecimento” (idem, ibidem, p.
11); suspender os modos de pensar consagrados
pela instituição escolar; desarmar os modelos que
prescrevem as formas em que acontece ou não o
aprendizado, os princípios sobre os quais se
sustenta a seleção de conteúdos, o que se
consideram aprendizagens significativas, entre
outros.
Assim, esse pensar curricular não se
refere a uma reestruturação ou (re)acomodação
dos conteúdos escolares considerados esperados, e
sim a uma uma analítica sobre por que e de que
maneira se mobilizam determinadas práticas
curriculares no espaço escolar, como se
constituem os saberes que as compõem; mostrar
como e por que se dá o Governo da instituição
escolar pelos números do IDEB; que estratégias
são aquelas que se utilizam para a
produção/mobilização dessas ações de governo;
como atuam os princípios que orientam e
constituem as práticas curriculares com vistas à
melhoria da melhoria da qualidade de ensino. É
disto que trata este artigo.
Do Governo das práticas curriculares escolares
pelo IDEB
As práticas curriculares em Matemática que se produzem pelo governo do IDEB 21
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012
O que impacta na reformulação de um
currículo? Alunos de graduação, professores em
exercício na educação básica consideram que as
disciplinas escolares, em particular a Matemática,
são mais ou menos as mesmas há muito tempo,
dada a tradição com que tem se apresentado o seu
ensino. No entanto, segundo Santos L. (1994),
uma análise cuidadosa nos revela que há uma
variação na forma e no conteúdo, isto é, nas
formas metodológicas a serem privilegiadas no
processo de ensino-aprendizagem quanto à
própria seleção de conteúdos. Para a autora, a
literatura mostra que na análise de tais mudanças
podem ser encontrados fatores diretamente
ligados ao contexto social (eventos sociais,
políticos e de natureza intelectual-cultural). Da
mesma forma, é importante destacar que questões
relacionadas à realização de políticas curriculares
envolvem poder, controle, coalisões, negociações
e compromissos entre grupos e indivíduos
operando dentro e fora do sistema escolar.
Da mesma forma a pesquisadora sustenta
que: “em decorrência disto, é importante verificar
quais são as propostas de ensino na área,
envolvendo conteúdo e método, bem como os
eventos que estariam propiciando a hegemonia de
determinada tendência em períodos e locais
definidos.” (idem, ibidem, pp. 159-160). Dessa
forma, a história das matérias ou disciplinas
escolares deve abranger não apenas os
conhecimentos incluídos em um curso de estudo,
mas também os excluídos, devendo ainda
analisarem-se os efeitos sociais dessa inclusão ou
exclusão.
Entre as causas apontadas por Santos
(1994) que influenciariam a organização
curricular, além dos estudos advindos da
psicologia do desenvolvimento, do controle
assumido por especialistas da comunicação pela
elaboração dos livros didáticos e os vestibulares,
aponta autora, deve se dar especial atenção aos
exames nacionais e a relação dos mesmos com as
políticas e os movimentos internacionais.
Tomar-se-á como ponto de partida esse
último aspecto apontado por Santos, isto é, o dos
Exames Nacionais e sua relação com os
movimentos internacionais, para tratar daquilo
referente ao “Governo da escola e das práticas
curriculares pelos números” para seguidamente
mostrar como o currículo, nessa ação de governo;
ou melhor, as práticas curriculares5 escolares em
matemática sofrem impactos a partir do que
denominaremos de “A Curricularização dos
descritores da avaliação”.
Para Sousa (2003) não se pode falar de
impactos de políticas de avaliação sem levar em
consideração o procedimento ou processo que é
tomado como referência. No caso da Educação
básica brasileira, o IDEB – índice de
desenvolvimento da educação Básica - assume
centralidade na política educacional do país, visto
que apontaria ao alcance dos objetivos de uma
melhoria da eficiência e da qualidade da
Educação. E pelos termos eficiência e melhoria
Sousa (idem, p. 177) expressa:
Melhoria da eficiência refere-se ao fluxo
escolar (taxas de conclusão, de evasão, de
repetência, estimulando-se por exemplo, a
implantação da progressão continuada,
classes de aceleração, organização
curricular em ciclos) [...] Quanto à
concepção de qualidade do ensino
adotada, será possível sua explicitação
[...] sob o pressuposto de se dar
visibilidade e controle público aos
produtos ou resultados educacionais,
disponibilizando aos usuários elementos
para escolha dos serviços ou para
pressão sobre as instituições ofertantes.
Porém, cabe perguntar: por que o IDEB
impactaria tanto nas práticas curriculares de
professores e escolas em Matemática?
Em princípio, poder-se-ia dizer que isso
ocorre porque o índice tem como parâmetro o
rendimento dos alunos na Prova Brasil nas
disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática,
combinando-se com indicadores de fluxo como
taxas de promoção, repetência, evasão, calculados
a partir do Censo Escolar6. Do ponto de vista das
mobilizações produzidas, estudos empíricos como
os desenvolvidos por LIMA e SILVA-NETO
(2010) mostram que no momento da divulgação
dos resultados do IDEB, os mesmos são assunto
de reuniões, conversas e indagações, entre
professores de Matemática, principalmente no
sentido de se decidir o que fazer para se atingirem
as metas em anos seguintes.
Por enquanto, se a proposta é entender o
porquê e como um índice propicia toda uma
possibilidade de mobilizar uma série de condutas
e procedimentos quanto à melhoria da eficiência
da Educação e do desempenho escolares, a
questão do poder parece ser central nessa
discussão. Segundo Foucault (1988), é pela
compreensão relacional do poder-saber e das
formas de Governo (FOUCAULT, 2008a), ou,
como nos sugere Veiga-neto (2005)
Governamento7, que se abre a possibilidade de
compreender artes, racionalidades, saberes,
regimes específicos de formas de pensar e agir
envolvidos na produção de práticas e tecnologias,
para a produção de condutas em si mesmo e nos
22 Samuel Edmundo Lopez Bello
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012
outros. Essa definição de governo como condução
da conduta é importante para se entender o
funcionamento, controle ou direcionamento de
comportamentos e atitudes dentro de instituições
ou comunidades, na alteridade e na relação
consigo mesmo. É importante destacar que, no
entendimento relacional que Michel Foucault faz
do poder-saber, que utiliza o termo
governamentalidade (FOUCAULT, 2008b) para
se referir à disposição, organização, distribuição,
estudo, análise de práticas, racionalidades e
técnicas de governamento8 e na produção de
práticas e tecnologias específicas, ora no que se
refere à relação entre as tecnologias de
governamento dos outros (populações) e as
tecnologias próprias de governamento de si
(indivíduos). Gordon (1991) e Rose (1997), bem
como o próprio Foucault (idem), discutiram como
o liberalismo e o neoliberalismo se constituíram
contemporaneamente como racionalidades
políticas, princípios racionais de ação para a
orientação das condutas, dos modos de ser e de
agir. Nesse sentido, e tomando como referência a
noção foucaultiana de Governamentalidade
(Foucault, 2008a) e fazendo o embaralhamento de
suas possibilidades (processos de governo,
racionalidade, práticas, tecnologias), é que
utilizar-se-á a “Numeramentalidade” (Bello,
2011)9 . Essa noção é uma entre tantas outras
perspectivas analíticas para o estudo de
normatividades produtoras, orientadoras e
reguladoras de condutas, modos de pensar e agir
na contemporaneidade baseadas fortemente na
quantificação, na medição, no uso e registro de
números. A noção Foucaultiana de
Governamentalidade e/ou governamento, e aquilo
que ele denomina de “processos de
governamentalização” das artes e técnicas de
governar, serviu-me de base à invenção do
neologismo Numeramentalidade, em português,
que poderia ser melhor expresso como:
Numeramentalité, em francês, em analogia ao
termo Gouvernementalité, próprio da teorização
Foucaultiana10
.
Essa noção – a de Numeramentalidade,
ora também referida em vários momentos como
numeramentalização – será entendida como “a
combinação entre as artes de governar e as
práticas e as normatividades em torno do numerar,
do medir, do contabilizar, do seriar, as quais
orientam a produção enunciativa das práticas
sociais, em âmbitos institucionais – como o da
escola, por exemplo - e nos planos de
agenciamentos comportamentais contemporâneos
- como nos do currículo. Esses agenciamentos
tendem posicionar a Numeramentalidade não
apenas como um dispositivo, como referido por
Foucault, mas como um processo, no qual se
operam práticas, constituem-se discursos e
identidades, regulam-se condutas, incitando-se,
sempre que possível, a processos de subjetivação.
Neste caso, tanto a ferramenta
metodológica e conceitual da Governamentalidade
como a numeramentalização são aqui
consideradas não apenas como dispositivos de
uma época, modos e formas de se expressar uma
racionalidade de governo; elas são ferramentas
para se entender a produção de tecnologias de
governamento das instituições e da gestão
(escolas, práticas curriculares) com impactos na
tomada de decisão de caráter político.
Governamentalidade e Numeramentalização são
conceitos que operam como grades analíticas que
auxiliam no entendimento da produtividade e da
centralidade das quantidades, dos números
(medições, índices, taxas), seus registros e usos
como expressão da verdade nos modos de pensar
e se conduzir dos indivíduos de uma sociedade.
Se entendermos como tecnologia de
governamento aqueles meios a que, em
determinada época, autoridades de tipo diverso
utilizam para moldar, instrumentalizar e
normalizar as condutas de indivíduos e também
parcelas da população, então a estatística11
, por
exemplo, pode ser considerada uma tecnologia
para governar (Traversini e Bello, 2009, p. 143),
principalmente se a mesma serve normativamente
para o controle e a regulação de riscos sociais:
A estatística pode ser entendida como um
meio, composto por saberes e por
procedimentos técnicos específicos que é
utilizada por governos das diferentes
esferas públicas, para situar comunidades
[…] como sendo de risco social. Analisar
como se conduz a conduta desse conjunto
de indivíduos para sair da condição de
analfabetismo [por exemplo] é tomar a
prática da gestão do risco como uma
forma de governar que necessita do saber
estatístico para tomar decisões
(TRAVERSINI e BELLO, 2009, p. 143).
Segundo Popkewitz e Lindblad (2001, p
114), as estatísticas cumprem uma função prática
na governança educacional moderna. Isto porque
as estatísticas participam da lógica sedutora da
ciência num momento histórico de racionalidade e
razão. Segundo os autores, muitas das relações
entre governança, ações sociais e efeitos
educacionais em relação a inclusão social são
estatísticas. “A informação aparece como dados
que convidam a comparações entre categorias no
tempo e no espaço e podem ser utilizados em
As práticas curriculares em Matemática que se produzem pelo governo do IDEB 23
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012
vários tipos de análises quantitativas, mais
particularmente quando a pesquisa lida com
política educacional” (idem, ibidem, p. 114).
O IDEB, para o caso da política
educacional brasileira, pode ser visto como um
exemplo disso. Em princípio porque o conceito de
comparação é constituinte do índice como produto
estatístico, as próprias medidas obtidas a partir
dos dados estatísticos são resultados de
comparação com unidades ou sistemas-padrão
consideradas desejáveis. Segundo Sousa (2003), a
avaliação realizada na produção dos dados que
comporão o IDEB predispõe a: uma ênfase nos
produtos e resultados; uma atribuição de mérito
tornando-se o mesmo individual para instituições
e alunos; uma classificação de desempenhos
escalonados; uma comparação a padrões externos
não articuladas à auto-avaliação12
. Vê-se também
que o trabalho desenvolvido por Lima e Silva-
neto (2010) conduziu a uma busca pela relação
entre o resultado da avaliação expressa pelo índice
com as condições socioeconômicas dos estudantes
e suas concepções sobre matemática. O índice não
apenas orienta políticas, mas também pesquisas.
Dessa maneira, o índice torna-se
propulsor de condutas e encaminhamentos a
serem adotados pelas escolas, cabendo ao Estado
um papel mais regulador, avaliador, fiscalizador,
do que propositor.
Diferente do que foi argumentado em
Traversini e Bello (2009, p. 147), a figura do
professor, nesse contexto, adquire centralidade
tanto quanto os índices, visto que o esforço do
professor estará em relação direta com o aumento
do indicador. No dizer de Popkewitz e Lindbland
(2001, p. 116-117), os indicadores educacionais
tornam-se “a linguagem que atravessa as
declarações do Estado, dos profissionais e das
fundações sobre os professores e suas práticas
educacionais […] nada é mais poderoso, para
influenciar os ganhos de realização dos alunos,
que a qualidade do professor”. Da mesma forma,
continua o autor, esses indicadores também
definem o problema das mudanças educacionais
em relação a números: números de professores
não licenciados, números de professores
ensinando na área de formação, porcentagem de
variância entre realização e experiência do
professor, e assim por diante. Portanto, conclui,
começamos nossa discussão sobre estatísticas com
uma observação a respeito das funções práticas
dos números; eles intervêm nos processos de
governo, uma vez que moldam nossa maneira de
ver as possibilidades de ação, de inovação e até a
nossa visão de nós mesmos. A produção de
estatísticas oficiais é, hoje, “um empreendimento
rotineiro que tem uma ampla infraestrutura em
programas de Estados e de Universidade cuja
escala e sofisticação se estende a campos mais
vastos da vida social e que se infiltra
profundamente no funcionamento da sociedade”
(Starr, apud POPKEWITZ e LINDBLAND, 2001,
p. 117).
Os efeitos da Curricularização dos descritores
da avaliação
A relação poder-saber ora constituída,
poder para produzir condutas - saberes/índices
estatísticos (como objetivação de uma condição,
expressão de uma verdade) - incide sobre os
viventes13
, tornando-os indivíduos para uma
determinada realidade histórica e social. Como
modeladores de conduta, as estatísticas não são
apenas meros sistemas lógicos, mas um campo de
práticas culturais que normaliza, individualiza,
divide. Os números governam não como números
em si, mas pela possibilidade que oferecem de
entrecruzar discursos outros que circulam
traçando perfis e inventariando/inventando
individualidades – daí o caráter tecnológico dos
índices estatísticos como o IDEB. Ao mesmo
tempo em que o uso de estatísticas é uma maneira
de construir classes humanas para abrir
possibilidades para o futuro, é também um modo
para que a individualidade seja descrita de novo e
que as pessoas possam experimentar a si mesmas.
Criar novas maneiras de classificar as pessoas é
também mudar a maneira do que podemos pensar
de nós mesmos, mudar nosso sentido de valor
próprio e, inclusive, mudar os modos de significar
nossas próprias experiências (POPKEWITZ e
LINDBLAND, 2001).
Em Bello e Traversini (2011), ao
discutirmos a inserção curricular do saber
estatístico no contexto dos PCN (Parâmetros
Curriculares Nacionais), consideramos que essa
Curricularização atendia muito mais a objetivos
políticos no que se refere à formação de um tipo
específico de sujeito/indivíduo aluno, do que
propriamente a preocupações epistêmicas.
Ao curricularizarem o saber estatístico,
os PCN trazem para si a expectativa de
formação de um determinado tipo de
sujeito que tome esse saber e,
consequentemente, a matemática numa
dimensão instrumental como auxílio para
suas atividades […] A conduta esperada,
a nosso ver, consiste no aluno saber
decidir, ter iniciativa e segurança para
utilizar os conhecimentos no momento
oportuno. Os conteúdos aprendidos têm
efeitos, e, na racionalidade neoliberal
24 Samuel Edmundo Lopez Bello
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012
vigente, o pressuposto é que o aluno seja
capaz de posicionar-se como um sujeito
produtivo, a partir das diferentes
situações relacionadas à sua vida (Idem,
ibidem, p. 866-867).
Nesse sentido - e considerando o currículo
não apenas uma seleção de conteúdos, mas o
conjunto de experiências que a escola dispõe para
as aprendizagens escolares -, entender os
descritores em Matemática - organizadores das
matrizes de referência para a Prova Brasil/SAEB e
o ENEM14
- como saberes normativos das práticas
curriculares de professores de Matemática e em
resposta aos problemas de ensino-aprendizagem
supostamente revelados pelos índices do IDEB
implica também significar os comportamentos
docentes em termos de “boas” formas de ser-
professor.
Seguindo os rastos de Miguel et al (2008)
e Miguel (2010), em Bello (2010), Pinho e Bello
(2011) e recentemente em Bello (2012), temos
mostrado que uma concepção normativa de
“saber” nos possibilitaria investigar também como
os sujeitos operam e se constituem seguindo
regras de práticas sociais distintas. O
entendimento do que seria seguir uma regra para
discutirmos as práticas curriculares escolares
matemáticas, poria “em suspenso” as teorizações
construtivistas ou socioculturais do saber
matemático, que localizam nos objetos (pela via
da experimentação), nos sujeitos (pela via da
abstração) ou nas relações sociais (por um viés
sócio-histórico-cultural), a “construção” dos ditos
conhecimentos matemáticos, bem como o
convencimento sobre quais as ações que devem
ser realizadas para que isso ocorra. Desse modo,
as práticas curriculares, como práticas sociais
regradas, no âmbito institucional da escola,
conduzem-nos para um sentido normativo do
próprio fazer matemático forjado por linguagens
que não estão em um plano ideal ou funcionam
como uma irredutível máquina lógica (como na
visão platônica), mas encontram suas explicações
e razões de sua existência em suas próprias ações.
A referência sobre o que é seguir as regras desse
fazer matemático é dada pelas suas próprias
práticas e não fora delas.
Não me deterei na analítica da linguagem
que organiza as práticas curriculares matemáticas
e nem na enumeração enunciativa de cada um dos
descritores. O objetivo é mostrar como eles, ao
mesmo tempo que são parâmetros de avaliação,
tornam-se conteúdos escolares e constituintes
normativos das práticas curriculares escolares em
termos de condutas que deverão ser produzidas.
Afinal, espera-se que, a partir do IDEB e da média
obtida por cada escola na sua avaliação, proceda-
se a uma análise por parte das escolas e
professores, principalmente identificando-se as
habilidades já conquistadas, as que estão em
processo de construção e aquelas que precisam ser
retomadas e trabalhadas pedagogicamente. Para
isso,
é preciso identificar e descrever itens
acertados pelos alunos com nota no ponto
que se quer interpretar. Só com a
construção e a disseminação desse tipo de
interpretação pedagógica, a Prova Brasil
poderá influenciar mais decisivamente o
ensino (BRASIL, 2010, p. 8).
Em consonância com os PCN e PCNEM,
os descritores da matriz de Matemática se inserem
na perspectiva de um ensino-aprendizagem de
qualidade sustentados principalmente no
desenvolvimento de competências e habilidades
necessários para o convívio social, inserção e
participação do/no espaço público. Ainda sob os
pressupostos da psicologia cognitiva, espera-se
que o aluno alcance determinados níveis de
abstração para compreender o conhecimento
científico que o ajudariam nessa tarefa. A
expectativa que se sobrepõe a qualquer
justificativa do porquê este ou aquele descritor é
de ordem epistêmica. Assim, reconhecer15
e
identificar16
são verbos muito recorrentes nos
descritores para vincular as ações didáticas a
conceitos e procedimentos como tradicionalmente
trabalhados na instituição escolar.
Contudo, melhores resultados nas
avaliações, na esteira da política pública
educacional, são traduzidas como melhorias de
desempenho não apenas dos alunos, mas da
qualidade das práticas pedagógicas que realizam
professores, instituições - escolas e universidades
– e sistema como um todo. Nesse sentido, tomar,
por exemplo, comentários, sugestões de trabalho
evidenciados nos documentos oficiais das
Matrizes de Referência ou, até mesmo, questões
propostas nas provas sobre os temas matemáticos
e seus descritores - seja para o Ensino
Fundamental ou Ensino Médio - como normativas
para as práticas curriculares pode significar um
melhor desempenho nas avaliações. Considerando
o que dizem TRAVERSINI e BELLO, 2009, (p.
147) tomar os indicadores como normativos
constituintes de uma prática curricular e ensinar
os estudantes a ter um bom desempenho nas
provas poderia ser uma possibilidade de confronto
frente aos objetivos educacionais expressos numa
política de avaliação nacional. Confronto esse que
assume a forma contemporânea de investimento,
As práticas curriculares em Matemática que se produzem pelo governo do IDEB 25
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012
visto existem politicas publicas que redistribuem
os recursos conforme a melhoria dos indicadores.
Entretanto, o sistema em conexão com a sua
racionalidade governamental neoliberal quer mais.
Sob a consigna de resolver problemas, espera
mudanças no tipo de respostas dadas pelos alunos,
bem como nos encaminhamentos curriculares
feitos pelos professores.
Utilizando-se este ou aquele conteúdo
com fins prático-aplicativos, deseja-se por parte
do aluno uma “compreensão do que está sendo
ensinado e, muitas vezes, de sua aplicação no
cotidiano, [para tanto] é preciso utilizar um tipo
de linguagem acessível e, também, delimitar o
nível de complexidade do conhecimento que será
abordado pelo professor (BELLO e
TRAVERSINI, 2011, p. 864 [grifo nosso]). Para
Ribeiro e Lise (2010, p. 334 - 335) os descritores
das Matrizes de referencia em consonância com
os PCN procuram
“reconectar os diferentes blocos de
conteúdos, ligar a Matemática com as
situações cotidianas e as outras áreas de
conhecimento; [...] o gosto pela
matemática, o incentivo à pesquisa,
desenvolvendo no aluno uma atitude
investigativa diante das situações-
problema proposta em sala de aula, são
alguns exemplo dessa compreensão mais
ampla do que é ensinar e aprender
Matemática segundo os PCNs.
Nessa esteira das situações-problema e da
aplicabilidade de conhecimentos, vemos os
saberes ligados à contextualização do ensino
constituirem-se como imperativo de boas práticas
pedagógicas, consequentemente da fabricação de
certas identidades-aluno, bem como de
identidades “bons – professores” de Matemática.
As críticas à contextualização e ao uso da
realidade para o ensino de matemática não são
recentes. Trabalhos como os de Bampi (1999),
Santos C, (2008) e Knijnik et al (2006) e Santos
S. (2009) e, de um modo mais amplo, em se
tratando da Interdisciplinaridade, os trabalhos de
Veiga-Neto (1995,1997) questionam, sob um viés
analítico pós-estruturalista, que esses temas estão
longe de se constituírem em remédios ou soluções
para os problemas do ensino. Essa seria apenas
uma política de verdade da Educação Matemática,
na teia do poder-saber, para se produzirem
determinados tipos de identidades-sujeito
(BELLO, 2010). Sujeito aqui entendido não
como aquele que do ponto de vista cognitivo
apreende conhecimentos, mas como aquele que se
assujeita, se governa, se gerencia, se analisa, se
julga, em último caso, produz-se, segundo as
relações que estabelece com as verdades do seu
tempo. Se os saberes estatísticos, por exemplo,
desenham e regulam os sujeitos produtivos,
criativos, que buscam segurança, que se
responsabilizam por si mesmos (BELLO e
TRAVERSINI, 2011, p. 867); da mesma forma,
vemos a contextualização tornar-se um imperativo
para a constituição do EU – sujeito - bom
professor, o qual produz boas práticas
curriculares, visto que essa contextualização opera
- para além da teoria e da cientificidade da
produção acadêmica em Educação Matemática -
como regra de conduta.
O que se quer dizer com isso é que a
contextualização mobiliza e produz a busca pela
sua objetivação, sua realização não pela
cientificidade que a produziu, mas pela
moralidade que lhe dá sustentação. Se se entende
por moral um conjunto de valores e regras de ação
propostas aos indivíduos e às comunidades por
intermédio de aparelhos prescritivos diversos -
como podem ser as instituições educativas, as
associações científicas, instancias públicas de
gestão -, observa-se um dizer da educação
matemática prescrevendo a contextualização do
ensino como regra constituinte das práticas
escolares. Se por moral entende-se a avaliação e
medição das nossas ações pelo código prescrito,
ter-se-á, pois, a contextualização como regra ou
princípio de conduta desejável à constituição do
bom professor. Aquele que quiser ser visto como
bom professor contextualizará e incitará seu
colega a fazê-lo. Afinal, a conjuntura normativa,
que opera como verdade, captura esse seu sentido
desde os tempos do platonismo na aproximação
do homem ao que possa existir de mais puro,
inteligível, virtuoso, justo.
É importante destacar que esses aspectos
morais são propostos e sustentados desde o
engendramento da modernidade como maneiras
de se dirigir não apenas a finitude do homem, sua
humanização por meio da razão, mas também para
que se produza o estatuto metafísico da verdade e
das regras constituintes das boas ações do agir dos
indivíduos acima de seus contextos e finalidades.
Nessa moral moderna, da qual está muito
impregnada a escola, as boas razões para agir
devem valer para todos os sujeitos escolares; por
isso a moralidade possui um caráter normativo:
trata-se de uma lei válida para todos na exata
medida da sua racionalidade.
Contextualizar passa assim a ser
entendido como um dever que gerará obrigação de
uma determinada conduta escolar e uma culpa
caso não se atinjam as finalidades educacionais, já
que, o que parece, não realizamos nossa tarefa de
26 Samuel Edmundo Lopez Bello
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012
bons professores – e o IDEB está ai para revelar
essa nossa falta ao dever17
. A contextualização
opera nessa linha de pensamento: um dever que
conjugado a outras boas ações produzirá práticas
pedagógicas de sucesso. Assim, tornar a
contextualização um imperativo significa dotá-la
de uma unidade e de um caráter verdadeiro
constituinte de toda prática curricular.
Algumas considerações
Até o momento verificou-se que, mesmo
sendo ainda muito tímidas as teorizações em torno
da noção de Numeramentalização, a partir da
noção foucaultiana de Governamentalidade, a
ferramenta analítica proposta mostra-se bastante
produtiva para se discutir o caráter normativo dos
saberes em torno dos índices de desempenho para
se governar e se conduzir as condutas dos sujeitos
escolares, como uma questão de verdade que
orienta modos de pensar e agir pelas práticas
curriculares que institui e as posições identitárias
que produz.
Ao se trabalhar com a
numeramentalização como conceito, extrapola-se
o âmbito da Educação matemática, uma vez que
se amplia a discussão da operatividade discursiva
das formas e modos de subjetivação individuais e
coletivos por diferentes espaços socialmente
institucionalizados. Assim, não falamos de uma
educação disciplinada ou disciplinar, mas de uma
educação que diz respeito à produção de
imperativos tomados mais como compromissos
constitutivos de práticas e de individualidades
num determinado momento histórico.
A analítica em torno do IDEB, como
índice contemporâneo de produção de conduta,
mostra-se mais como um compromisso moral e
político do que epistemológico. E nesse sentido a
resposta a ser dada deverá circular antes pelo
plano da ética, para não se assumirem os
descritores como constituintes de currículo, mas
como ponto de partida para as ressignificações das
práticas curriculares. A reflexão em termos éticos
não deverá desconsiderar o caráter científico-
normativo dos discursos, nem os valores
contemporâneos sobre o que se consideram boas
práticas pedagógicas, boas práticas de ensino-
aprendizagem. A ética, como sugerida por
Foucault (2007, 2009), refere-se à constituição de
si mesmo como sujeito moral na sua relação com
o outro; isso então poderia ser lido, em se tratando
da nossa discussão sobre a constituição normativa
de identidades escolares e de práticas curriculares,
como a maneira de ser e de conduzir-se
singularmente como professores. E isso deve ter
também impactos na formação.
Como enunciamos no início deste
trabalho, tomar o currículo ou as práticas
curriculares como foco de experiência quer dizer
conhecer as formas de saber construídas e
constituídas, para o próprio currículo e suas
práticas; para a educação; para a pedagogia; para a
escola. Da mesma forma, conhecer as matrizes
normativas prescritas para as formas de
comportamento possíveis no espaço institucional
escolar, sua gestão, seus princípios, suas
estratégias, suas tecnologias de governo, sua
disciplina, seu ordenamento. Nesse sentido, a
formação teórico-acadêmica é importante, mas
insuficiente para se fazer frente aos desafios que
na contemporaneidade se oferecem no espaço
institucional escolar. Não se podem ignorar os
estudos do currículo e de suas práticas construídas
pela história dos educadores. Porém, como nos
lembra Corazza (2002, p.111-112), ao falar do que
denomina de um currículo da diferença:
A ética de nossa ação educacional [...]
está aliançada com culturas e políticas de
muitos mundos, grupos, racionalidades,
línguas, inteligências, grandezas,
sensibilidades, histórias, realidades.
Pluraliza nossas ações, ideias, palavras,
relações, sujeitos, ver e ser visto, dizer e
ser dito, representar e ser representado.
Coloca-nos no fluxo de educar todos os
que vêm se reinventando, os que estão em
metamorfose, os não-idênticos [...]
Estimula diferentes formas de formular e
de viver práticas educacionais
alternativas ao projeto neoliberal e
positiva meios de divulgar tais práticas,
fazê-las circular e serem debatidas, de
maneira a inspirar outras tantas.
Uma prática curricular contemporânea
deverá agir inventando e reinventando sujeitos
escolares com base em temáticas culturais que
rejeitem estrategicamente currículos, provas,
avaliações, desempenhos para todos e cada um.
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17-32.
As práticas curriculares em Matemática que se produzem pelo governo do IDEB 29
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012
Notas
1 A Prova Brasil/Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), cujos resultados estão sendo
divulgados pelo IDEB 2012, foi realizada em novembro de 2011, de forma censitária na 4ª série/5º ano e
na 8ª séries/9º ano do Ensino Fundamental das escolas públicas das redes municipais e estaduais, e por
amostragem no Ensino Médio, neste caso envolvendo apenas os alunos do 3º ano que realizam o ENEM.
c.f. http://www.educacao.rs.gov.br/pse/html/noticias_det.jsp?ID=9560 Acessado em 01 de outubro de
2012.
2 A meta brasileira de um IDEB nacional igual a 6,0 para 2022 tem como referência a qualidade dos
sistemas em países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
3 Nota de esclarecimento da Secretaria de Educação do RS (SEDUC), disponível em: http://www.educacao.
rs.gov.br/pse/html/noticias_det.jsp?ID=9560 Acesso em 01 de novembro de 2012.
4 Essas visitas faziam parte do trabalho que era realizado como Professor de Prática de Ensino nos anos de
2007 a 2010.
5 Não é o intuito deste artigo desenvolver ou discutir uma noção de Prática. Para tanto, será tomado o
sentido do termo dado por Miguel et al (2010), como sendo um conjunto articulado de ações já produzidas,
significadas, realizadas, reconhecidas, legitimadas nos processos relacionais que envolve, parcial ou
totalmente, os integrantes de uma comunidade social, política ou cultural. A rigor, as práticas não
precisariam ser adjetivadas, pois as mesmas, seja em qualquer um desses âmbitos envolvem sempre uma
produção simbólica. Contudo, permitir-me-ei adjetivar as mesmas de curriculares para situá-las no campo
de forças que incidem na instituição escolar, tendo sua forma-objeto simbólico o Currículo.
6 Essas informações referem-se basicamente ao cálculo do índice para o ensino fundamental uma vez que
para o Ensino Médio é utilizado o ENEM e a coleta de outros dados é feito por amostragem e não com um
caráter censitário.
7 Segundo Veiga-Neto o termo Governamento, para falar de Governo, traduziria melhor aquilo que Michel
Foucault na língua francesa denominaria de Governamentalité (Governamentalidade) para falar tanto das
práticas de governo, como conjunto de saberes que institui uma racionalidade própria de Estado, quanto
aos saberes necessários à maneira de se dirigir a conduta dos indivíduos ou de comunidades, instituições.
8 Utilizaremos o termo Governamento, ao invés de governo, para distingui-lo do sentido capturado e
atribuído pela ciência política nos séculos XVII e XVIII.
9 Trabalho apresentado no 63 CIEAEM (Barcelona, Spain) e publicado no QUADERNI DI RICERCA IN
DIDATTICA / Mathematics (QRDM). Quaderno n.22, Supplemento n.1 - PALERMO 2012, p. 114-118.
10 Para uma discussão sobre o termo ver também Bello (2012) no prelo.
11 A palavra estatística tem mais de um sentido: seu emprego no plural se refere às estatísticas descritivas
como os dados colecionados, mas no singular se refere à teoria estatística e ao método pelo qual os dados
são analisados. Assim, o termo podemos aplicá-lo tanto à interpretação de uma série de números como aos
próprios números.
12 Essa desarticulação remete ao que em Traversini e Bello (2009) referimos como a auditabilidade de
políticas e processos de avaliação, isto é, ao assumirem uma forma de auditoria por se tratarem de provas
elaboradas por especialistas externos ao processo escolar desencadeado, as práticas pedagógicas tornam-se
comparáveis umas às outras evidenciando assim seus resultados. Desta forma, a maquinaria avaliativa
institui a evidência de práticas e estilos pedagógicos de sucesso, sugerindo fortemente a sua replicação
independente de situação ou contexto de produção, advertência e destinação de recursos para as
instituições que muito abaixo dos índices são vistas como problemáticas.
13 De janeiro a março de 1980, M. Foucault ofereceu no Collège de France o curso intitulado: Du
gouvernement des vivants, traduzido para o português como o governo dos vivos. Um curso anterior a um
outro intitulado o Governo de si e dos outros, oferecido de janeiro a março de 1983, para tratar da forma de
constituição dos sujeitos pelos atos e práticas do dizer-verdadeiro. Neste texto preferimos traduzir o termo
Vivants por viventes, por acreditarmos dar todavia um caráter mais provisório e em constituição à
existência de um ser. O termo vivo pode nos remeter a um dito ”ser vivo” e nos posicionar na grade de
leitura das Ciências Biologias.
14 No que se refere à Matemática na Prova Brasil/SAEB e no ENEM, são elaboradas com base na Matriz de
Referência de avaliação dessa disciplina para os Ensinos Fundamental e Médio, respectivamente. Essa
Matriz é constituída a partir dos blocos de conteúdos propostos pelos PCN e pelos PCNEM e pelas
habilidades e competências consideradas básicas para o final de cada um desses níveis de ensino. A
relação conteúdos-habilidades/competências é expressa na matriz a partir de 37 descritores, em se tratando
do ensino fundamental e 35 descritores para o Ensino Médio.
30 Samuel Edmundo Lopez Bello
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 19-30, jul./dez.2012
15 Reconhecer que as imagens de uma figura construída por uma transformação homotética são semelhantes,
identificando propriedades e/ou medidas que se modificam ou não se alteram. (D7 – Espaço e forma –
Matriz de referencia – EF)
16 Identificar a representação algébrica e/ou gráfica de uma função exponencial (D27 – Números e
Operações – Matriz de referencia – EM)
17 Em 15 de agosto de 2012, o programa Conversas Cruzadas exibido pela TVCOM/Rio Grande do Sul do
grupo RBS, trouxe como tema: RS tem os piores números da educação no sul do país, naquela ocasião
insistia-se na contextualização e na aplicabilidade dos saberes escolares, bem como questionava-se a
formação do professor para levar adiante este trabalho. http://mediacenter.clicrbs.com.br/tvcom-rs-
player/131/player/264251/conversas-cruzadas-15-08-2012-bloco-1/1/index.htm
Sobre o autor:
Samuel Edmundo Lopez Bello: Professor do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre.
31
*Endereço eletrônico: [email protected]
**Endereço eletrônico: [email protected]
Currículo e gênero: produção e naturalização das diferenças na escola
Julia Mayra Duarte Alves*
Laura Cristina Vieira Pizzi**
Resumo
Este artigo apresenta uma pesquisa no qual se analisou a produção de subjetividades em uma escola de
ensino fundamental em um bairro de Maceió/AL. A pesquisa problematizou a demarcação de gênero
constituída a partir de duas atividades econômicas e culturais presentes no lugar, a produção da renda filé e a
pesca. A partir dos enunciados que circulam na escola sobre essas atividades, com base nas ferramentas
teóricas fornecidas por Foucault, a pesquisa analisou os discursos produtores de subjetividades que estão
operando predominantemente na escola com base nessa divisão sexual do trabalho. As estratégias
metodológicas utilizadas foram observações, entrevistas e grupos de discussão com estudantes. Observamos
que os modos de ser dos sujeitos são resultados de técnicas de governo das relações de gênero que objetivam
determinar as possibilidades de ser e viver, estabelecendo fronteiras fortemente demarcadas entre o que é
feminino e o que é masculino.
Palavras-chave: Currículo; Gênero; Subjetividade; Ensino fundamental.
Curriculum and gender: production and naturalization of differences in school
Abstract
This article presents a research intended to analyze the production of subjectivities in an elementary school
in a neighburhood area of Maceió/AL. It also aimed at a discussion about the demarcation of gender formed
by two economic and cultural activities taking place there, the production of lace of file and fishing. From
the statements circulating in school about these activities, based on theoretical tools provided by Foucault,
the research examined the discourses producing subjectivities in terms of gender, which goes on
predominantly in school as to the sexual division of labor in the community. The methodological strategies
used were observations, interviews and discussion groups with students. We noticed that the children’s ways
of being are the result of techniques of ruling gender relations in order to determine the possibilities of being
and living, establishing borders sharply demarcated between what is feminine and what is masculine.
Keywords: Curriculum; Gender, Subjectivitie, Elementary School.
Considerações iniciais
Este artigo apresenta resultados de uma
pesquisa de mestrado que buscou entender como
determinadas subjetividades são produzidas a
partir dos enunciados que circulam no currículo
de uma escola localizada em um bairro periférico
e turístico de Maceió. A pesquisa problematizou a
demarcação de gênero constituída com base em
duas atividades econômicas e culturais presentes
nesse bairro que instituem a pesca como uma
atividade masculina e a produção da renda do filé1
como feminina.
No bairro, a pesca (atividade
tradicionalmente considerada masculina) foi
durante muito tempo a principal fonte de renda,
mas desde o final da década de 1980 vem se
tornando pouco lucrativa e viável devido à
degradação ambiental da lagoa que margeia a
comunidade. Ao mesmo tempo, a produção e
comercialização do filé (realizada,
tradicionalmente, pelas chamadas rendeiras), vêm
se consolidando como uma interessante
possibilidade de renda em decorrência da
atividade turística na região.
Essas reconfigurações econômicas locais
chamaram nossa atenção e foram um convite para
estudar as relações de gênero na única escola do
bairro, a partir dos enunciados discursivos sobre
essas atividades que, ao mesmo tempo em que
demarcam, se constituem por uma forte divisão de
gênero.
O filé e a pesca se apresentam, então,
como elementos estratégicos para se pensar a
subjetivação dos/as meninos/as que estudam na
escola pesquisada e que são moradoras do bairro.
Desde o nascimento, as crianças
acompanham a confecção do filé. Toda produção
dessa renda acontece no ambiente doméstico. Por
volta dos cinco ou seis anos de idade, as crianças
começam a participar da confecção da renda, seja
dentro de suas casas ou nas calçadas do bairro, à
vista dos turistas e da comunidade. No cotidiano,
elas começam a se interessar pela renda como
atividade, observando e fazendo os primeiros
pontos (MESQUITA et al, 2011).
A aprendizagem do filé na infância indica
que essa atividade é parte crucial do processo de
32 Julia Mayra Duarte Alves, Laura Cristina Vieira Pizzi
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012
socialização das crianças na família e no bairro.
Elas aprendem a técnica observando, em geral, as
mulheres adultas (mães, tias, avós e vizinhas), que
se organizam para tecer em pequenos grupos ou
sozinhas em casa.
Mesquita et al (2011) apontam que, na
fase incial da infância, pelo fato de o filé estar
associado ao ambiente doméstico, todas as
crianças aprendem e fazem a renda; no entanto, as
meninas são mais incentivadas e cobradas pelo
trabalho. Estas prosseguem na atividade por toda a
sua vida, ou, pelo menos, por um período maior
que os meninos, que, na maioria das vezes,
abandonam a atividade em função da
discriminação associada à feitura da renda por
homens. Esse momento em que os meninos se
afastam do filé coincide com a passagem pelo
ensino fundamental, em especial nas séries finais,
o que tornou esse período interessante para
pesquisar os modos de subjetivação de gênero na
escola do bairro.
A pesquisa aqui relatada buscou destacar
que, além do aspecto econômico, essas atividades
são centrais na produção de subjetividades das
crianças que lá moram, mais especificamente, nos
modos como elas vivenciam as demarcações de
gênero.
Currículo e subjetividade
Nas análises sobre currículo, a pesquisa
baseou-se em autores pós-estruturalistas como
Silva (2006) que compreende o currículo como
um campo cultural, como uma instância de
produção e circulação de discursos, na qual se
estabelecem lutas em torno da significação sobre
os sujeitos e o mundo, impregnado de valores e
práticas.
O currículo, nessa perspectiva, é
entendido como um lugar de produção discursiva
que forja subjetividades e que vai além do
conjunto dos conteúdos escolares, sendo
composto também pelas formas de organização do
espaço, do tempo e pelos discursos que circulam
na escola.
Na perspectiva pós-estruturalista, o
currículo constitui regulações sociais no nível do
conhecimento e da subjetividade (POPKEWITZ,
1994), ou seja, quando falamos em currículo
colocamos em jogo o que deve ser conhecido,
qual conhecimento é válido e autorizado a circular
na escola. Ademais, o currículo não apenas
informa como também guia as pessoas a pensarem
de determinadas formas o seu eu no mundo,
moldando/ as nossas subjetividades.
A perspectiva pós-estruturalista rejeita a
hipótese de uma consciência centrada, unitária,
coerente. Nesse sentido, não há um núcleo
subjetivo pré-social no pensamento pós-
estruturalista (SILVA, 2005). Nossas
subjetividades são forjadas a partir de processos
sociais, de dispositivos de subjetivação. O
currículo, desse modo, não pode mais ser visto
como o “primo pobre” (SILVA, 1995) das
análises pedagógicas, uma vez que ele direciona o
processo educativo e a produção de subjetividades
na escola.
A noção de subjetividade que norteou a
pesquisa é diferente daquela que se relaciona com
a versão individualizada dos sujeitos. Essa
perspectiva fortemente influenciada pelo projeto
da Psicologia enquanto ciência sustentou vertentes
teóricas que se baseavam em uma concepção de
subjetividade correspondente a um sujeito
psicológico universalizado, particularizado e
finalizado, como se tivesse uma essência. A noção
de subjetividade utilizada aqui é baseada no
pensamento de Foucault (2006b) e a entende
como um efeito de modos de subjetivação, como
“a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de
si mesmo em um jogo de verdade, no qual ele se
relaciona consigo mesmo” (FOUCAULT, 2006b,
p. 236).
Ao afirmar que “não é o poder, mas o
sujeito, que constitui o tema geral de minha
pesquisa” (1995, p. 232), Foucault procurou
refutar a ideia de um sujeito transcendental, sem
história, estável, centrado e individualizado. Para
ele, não existe sujeito fora dos processos sociais,
fora de um discurso que o produz como tal.
Foucault desloca o sujeito antes relacionado a
uma posição de origem para uma posição de
efeito.
Nesse sentido, a subjetividade pode ser
entendida como resultado de modos de
subjetivação, ou seja, como parte de um “processo
pelo qual se obtém a constituição de um sujeito,
mais precisamente de uma subjetividade, que
evidentemente não passa de uma das
possibilidades dadas de organização de uma
consciência de si” (FOUCAULT, 2006a, p. 262).
Rose (2001) traz elementos que ajudam a
entender por que uma subjetividade é apenas uma
possibilidade, e não a única. Ele aponta que as
formas pelas quais os seres humanos atribuem
sentido as suas experiências têm um sistema
próprio, ou seja, “os dispositivos de produção de
sentidos – grades de visualização, vocabulários,
normas e sistemas de julgamento, não são
produzidos pela experiência; eles produzem a
experiência” (ROSE, 2001, p. 36).
Existem, portanto, práticas que localizam
e limitam nossas experiências e sentidos. Estas
práticas, segundo Rose, são disseminadas em
Currículo e gênero: produção e naturalização das diferenças na escola 33
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012
diferentes locais e através de diferentes formas:
escolas, famílias, ruas, locais de trabalho,
tribunais. Nesta direção, Rose utiliza o termo
tecnologias humanas para se referir a “montagens
híbridas de saberes, instrumentos, pessoas,
sistemas de julgamento, edifícios e espaços,
orientados no nível programático, por certos
pressupostos e objetivos sobre os seres humanos”
(ROSE, 2001, p.38). Para ele, a escola, assim
como a prisão e o hospício, faz parte dessas
tecnologias que buscam moldar os sujeitos a partir
do controle de suas condutas.
Larrosa (1994) aponta que a obra de
Foucault é útil para questionar as concepções
inertes de subjetividade antes exclusivas e válidas,
sem que isto implique que o sujeito não seja capaz
de refletir sobre si, mas sim “porque mostra como
a pessoa humana se fabrica no interior de certos
aparatos (pedagógicos, terapêuticos,...) de
subjetivação” (LARROSA, 1994, p. 37). Isto
implica que a subjetividade, facilmente remetida a
uma interioridade ou identidade, passa a ser
entendida como produto provisório das formas de
experiência de si, atravessadas pelas relações de
poder e de saber. A divisão pensada outrora entre
o corpo e a subjetividade é desfeita uma vez que o
corpo longe de ser o outro da subjetividade é o
lugar onde ela se inscreve. O corpo, portanto, é
um dos objetos mais importantes do controle.
Para Foucault (1996), é o discurso que
fornece as condições de possibilidade para a
produção de determinados tipos de subjetividade.
É nele que podem ser encontrados os mecanismos
de subjetivação, junto às táticas das relações de
poder que excluem outras possibilidades
discursivas seja interditando, rejeitando ou
separando o verdadeiro do falso, ou fazendo tudo
isso de uma só vez.
O pensamento de Foucault é o território
no qual podemos pensar a subjetivação, não
mergulhando e se afogando em uma suposta
interioridade do sujeito. Com ele, é possível
captarmos esse processo pelo discurso, pela
história, pelo que, de fato, é possível acessar: a
exterioridade. O currículo faz parte desta
exterioridade. Mais que isso, ele está localizado
em uma posição estratégica. É ele quem dá o
contorno de nossas experiências, produz as nossas
experiências quando cerca nosso terreno de
sentidos. Ele é a condição de possibilidade de
sermos o que somos, ou melhor, de estarmos
como estamos.
Currículo, gênero e subjetividade
Na pesquisa, gênero é entendido como um
“mecanismo através do qual se produzem e se
naturalizam as noções de masculino e feminino”
(BUTLER, 2006, p. 70). Para além das diferenças
sexuais, compreendemos gênero como um
conjunto de normas, como um efeito performático
de subjetivação, que adquire estabilidade em
função da repetição e reiteração de normas. Essa
noção de gênero mostra que é possível pensá-lo
não apenas em termos das diferenças sexuais, mas
como um conjunto de normas, de discursos e de
práticas, como uma tecnologia2 social que envolve
relações de poder que participa diretamente no
processo de subjetivação.
Butler (2006) coloca que é justamente
pela confirmação das normas de gênero que os
corpos sexuados vão passar a ser pensados como
diferentes e naturais. Ou seja, antes de ser apenas
aquela categoria que dá sentido social às formas
pretensamente naturais dos sexos, gênero é
também responsável por reiterar este caráter
natural dos sexos.
A autora traz a noção de gênero como
norma, que tanto pode naturalizar como subverter
as noções estabelecidas de masculino e de
feminino. Nesse sentido, ela aponta que gênero
pode ser entendido também como mecanismo que
pode desconstruir e desnaturalizar padrões. Ela
afirma ainda que a generificação é construída,
dentre outras coisas, pelas relações que buscam
diferenciar os sujeitos. Com isso, “submetido ao
gênero, mas subjetivado pelo gênero, o ‘eu’ não
precede nem segue o processo dessa
generificação, mas emerge apenas no interior das
próprias relações de gênero e como matriz dessas
relações” (BUTLER, 2007, p. 160).
Conforme já pontuamos, o currículo
direciona o processo educativo, produz
subjetividades e, portanto, enquadra pessoas em
determinados modelos. A noção de gênero aqui
utilizada ajuda na compreensão e na visualização
das tecnologias e normas de gênero presentes no
currículo. Alambert (2008) coloca que a escola é
uma instituição que “ocupa um lugar
preponderante quanto à educação diferenciada,
reforçando de modo formal a postura assumida
pela família no processo discriminatório; filas de
meninos e meninas, brincadeiras e esportes
diferenciados, orientação profissional distinta para
ambos os sexos” (ALAMBERT, 2008, p. 317).
Sendo uma instituição moderna, a escola vem se
caracterizando ainda hoje como disciplinadora
(ALVES, 2010) e diferenciadora (LOURO,
2007a).
Desde seus inícios, a instituição escolar
exerceu uma ação distintiva. Ela se
incumbiu de separar os sujeitos –
tornando aqueles que nela entravam
34 Julia Mayra Duarte Alves, Laura Cristina Vieira Pizzi
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012
distintos dos outros, os que a ela não
tinham acesso. Ela dividiu também,
internamente, os que lá estavam, através
de múltiplos mecanismos de classificação,
ordenamento e hierarquização. A escola
que nos foi legada pela sociedade
ocidental moderna começou por separar
adultos de crianças, católicos de
protestantes. Ela também se fez diferente
para ricos e para os pobres e ela
imediatamente separou os meninos das
meninas (LOURO, 2007a, p. 57).
Negando esse interesse pelas questões de
gênero, de maneira silenciosa, a escola normaliza
e disciplina os sujeitos com padrões estabelecidos,
regulamentos e legislações que separam, ordenam
e normalizam os/as alunos/as.
Segundo Britzman (2007), a escola
tradicionalmente tem feito com que se esperem
respostas estáveis, uma vez que esse lugar é
povoado por modos autoritários de interação
social, o que impede o desenvolvimento de uma
curiosidade que poderia levar professores/as e
estudantes a multiplicar as possibilidades dos
modos de viver as relações de gênero e as
sexualidades. Para a autora, o lugar do
conhecimento mantém as problematizações de
gênero e sexualidade no campo da ignorância.
Nesse sentido, a escola busca normalizar
as condutas, reduzindo as possibilidades das
formas de ser e viver. Podemos fazer essa
afirmação porque, conforme observaram Meyer e
Soares (2004), “os espaços e os processos
pedagógicos estão atravessados de mecanismos e
estratégias de vigilância, controle, correção e
moldagem dos corpos dos indivíduos – estudantes
e docentes – que povoam as instituições
escolares” (p. 7 - 8).
É via currículo que ocorre a produção das
diferenças e que meninos e meninas são
interpelados, por meio de regimes de verdade que
ditam modos de vidas diferenciados. Nas filas,
nos desenhos, nas danças, nas vestimentas, nas
cores, nos gestos, no modo de falar, nos planos em
que projetam as futuras profissões, em todos esses
elementos e em outros incontáveis, meninos e
meninas são diferenciados e colocados em
determinadas posições. Nas práticas cotidianas, os
processos de subjetivação que incluem as
tecnologias e as normas de gênero operam e
tentam captar, padronizar, governar e produzir
determinados tipos de subjetividades na escola.
Para Louro (2000), mesmo que estas
ações estejam mais sutis, mais refinadas, ainda há
uma vigilância constante quando se trata de
gênero nas escolas e no currículo, uma vez que
“expectativas distintas são projetadas para o
desempenho intelectual e físico; critérios
implícitos de avaliação insinuam-se na apreciação
de comportamentos e resultados escolares;
aptidões ou tendências são ‘identificadas’ e
sugerem orientações profissionais diferentes” (p.
49-50).
Segundo Novelino (2008), ser homem ou
ser mulher constituem traços que compõem a
subjetividade, delimitando padrões apropriados de
conduta. Assim como Butler, a autora entende a
subjetividade não como algo particular ao sujeito
relacionada apenas ao aspecto psicológico, mas
sim como produto de tecnologias que operam a
partir de diversos artefatos culturais. Nesse
sentido, ela coloca que “A entrada nos códigos da
masculinidade e feminilidade começa nos
primeiros momentos de vida com roupas, cores,
brinquedos, gestos adequados” (NOVELINO,
2008, p. 311) que depois, como sugere Butler
(2007), são reiterados durante toda a vida a partir
das relações de poder exercidas pela família,
escola, televisão, cinema, especialmente, pela
própria pessoa, que, devidamente subjetivada, vai
atuar no governo de si.
As subjetividades generificadas são
efeitos dessas normas e não condições naturais.
Os sujeitos estão cercados de processos de
naturalização, de subjetivação que tentam
demarcar diferenças de gênero e que ocorrem de
maneira privilegiada na escola e no currículo.
A escola e o currículo estão longe de ser
meros reflexos das condições sociais. A
partir de múltiplas práticas cotidianas
banais, a partir de gestos e expressões
pouco perceptíveis, pelo silêncio, pelo
ocultamento ou pela fala, constroem-se,
no espaço propriamente escolar, lugares
e destinos sociais. Talvez essa dinâmica
nos escape, tal a “naturalização” de que
esses processos estão revestidos. Talvez
sejam muito sutis os jogos de poder que
tecem os currículos, os programas, as
normas ou as avaliações escolares
(LOURO, 2005, p. 91-92).
A escola exerce uma pedagogia de gênero
e coloca em ação as tecnologias de governo,
processos que se completam com o autogoverno.
Por outro lado, ela abre possibilidades para as
resistências. Por isso, o currículo pode ser
entendido como “prática subjetivadora”
(CORAZZA, 2001, p. 57) que proporciona
reações múltiplas, incluindo as de resistências aos
padrões de gênero.
Currículo e gênero: produção e naturalização das diferenças na escola 35
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012
Aspectos metodológicos da pesquisa
A partir dos enunciados sobre o filé e a
pesca veiculados na comunidade escolar, pelas/os
alunas/os, pelos/as professores, pela direção e
pelos/as funcionários/as, a pesquisa concentrou-se
em como os meninos são interpelados por esses
enunciados, ou seja, nas técnicas de subjetivação
em termos de gênero que estão operando na
escola. As análises se desenvolveram com base
nas ferramentas teóricas fornecidas por Foucault,
principalmente a noção de discurso como produtor
de verdades, de normalidades e anormalidades,
enfim, de formas de ser e de viver (FOUCAULT,
1996), representadas no currículo.
O recorte que direcionou a realização da
investigação para as turmas dos anos finais do
ensino fundamental e também para os processos
de subjetivação dos meninos foi sugerido pelas
indicações de outra pesquisa (MESQUITA et al,
2011), onde se observou que no bairro os meninos
são afastados da confecção do filé logo que vão
crescendo, com aproximadamente onze, doze
anos, em um momento que coincide com a
passagem deles nos anos finais do ensino
fundamental.
Foram realizadas observações nos
diversos ambientes da escola, entrevistas e grupos
de discussão como meios de acesso aos
enunciados sobre o filé e a pesca, que permitiram
pensar os processos de subjetivação em termos de
gênero na escola. Tanto as entrevistas como as
discussões dos grupos foram registrados por meio
de gravador de voz, após o prévio acordo com
os/as participantes/responsáveis3. As observações
foram registradas em diário de campo, estas quase
sempre foram atravessadas por conversas
informais, também registradas neste instrumento
de pesquisa.
Nas análises da pesquisa foram utilizadas
algumas atitudes metodológicas sugeridas por
Fischer (2003) com base nas contribuições de
Foucault. Partimos, então, dos seguintes aspectos:
a linguagem e o discurso são lugares de lutas
permanentes; os enunciados são raros e não são,
portanto, únicos e óbvios; é preciso atentar às
práticas discursivas e não discursivas; é preciso
manter uma atitude de distanciamento e de dúvida
diante dos aspectos investigados.
Partir da noção de que o discurso é um
lugar de luta permanente é considerar, assim como
Foucault, que o discurso não pode ser visto apenas
como um conteúdo representado por um sistema
de signos, mas sim como “práticas que formam
sistematicamente os objetos de que fala”
(FOUCAULT, 2012, p. 60). Para Foucault, as
palavras e as coisas se relacionam de maneira
complexa, porque essa relação é histórica, estando
repleta de construções e interpretações, sendo
perpassada por relações de poder, produzindo
sujeitos, subjetividades e compondo modos de
subjetivação.
Para analisar esses modos de subjetivação,
é preciso, então, descrever a dispersão dos
acontecimentos discursivos “através dos quais,
graças aos quais e contra os quais” (GREGOLIN,
2007) se estabelecem os regimes de verdade que
atravessam e constituem os sujeitos. Considerar
que os enunciados são raridades é pensá-los com
base em suas condições de existência, é
problematizá-los e localizar seus efeitos de
verdade, é questionar sua aparição mostrando, por
exemplo, como eles surgem em detrimento de
outros que são excluídos, rejeitados e tidos como
falsos em determinados momentos e lugares.
Nesse sentido, descrever enunciados é
entender como as coisas ditas são acontecimentos
que ocorrem em contornos muito específicos “no
interior de uma certa formação discursiva – esse
feixe complexo de relações que ‘faz’ com que
certas coisas possam ser ditas (e serem recebidas
como verdadeiras), num certo momento e lugar”
(FISCHER, 2003, p. 373).
Atentar para as práticas discursivas e não
discursivas é investigar e tornar visíveis os efeitos
dessas práticas, que podem tanto ser exercidas a
partir daquilo que é “propriamente discursivo
(linguagem, discurso, enunciado) como também
podem ser observadas em práticas institucionais
(exercícios, rituais, definição de lugares e
posições, distribuição espacial dos sujeitos, etc.) –
práticas que jamais “vivem” isoladamente”
(FISCHER, 2003, p. 387).
É interessante, nessa perspectiva, observar
essas práticas produzidas nas relações de
saber/poder de determinada época e descrever os
enunciados considerados verdadeiros, que estão
presentes no cotidiano, interpelando os sujeitos e
produzindo determinadas formas de viver. Desse
modo, buscamos “ampliar o leque das práticas a
descrever no que se refere a uma temática e a um
problema levantado, entendendo que há uma força
nas práticas institucionais e que há igualmente
uma força considerável nas construções
discursivas correspondentes” (FISCHER, 2003, p.
382).
Nesse sentido, a noção de discurso de
Foucault mostrou-se bastante interessante para as
análises desta pesquisa, uma vez que o a
investigação buscou entender como ocorre a
produção de subjetividades na escola a partir dos
enunciados sobre o filé e a pesca.
36 Julia Mayra Duarte Alves, Laura Cristina Vieira Pizzi
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012
Produção e naturalização das diferenças na
escola
O pensamento de Foucault vem servindo
de ferramenta para diversos estudos que buscam
entender como nos tornamos sujeitos, mais
precisamente como se constituem nossas
subjetividades, como se dão os processos de
subjetivação em diferentes contextos.
Determinados modos de agir, de viver, de
se vestir, de se divertir, de falar, de se comportar,
de se conduzir são amplamente divulgados, por
exemplo, por meio do cinema (LAURETIS, 1994;
GIROUX, 1996), dos programas televisivos
(FISCHER, 2007), da mídia (PARAISO, 2007),
dos periódicos científicos, jornais e internet
(HÜNING, 2008). Neste trabalho,
especificamente, buscamos analisar como nos
tornamos sujeitos de gênero. Dito de outra forma,
buscamos analisar as tecnologias de subjetivação
que atuam na vida dos meninos a partir dos
enunciados que circulam na escola em que
estudam, sobre uma determinada norma de
gênero, que amarra o filé ao feminino e a pesca ao
masculino.
Esta norma pode ser entendida como um
elemento a partir do qual “certo exercício do
poder se acha fundado e legitimado”
(FOUCAULT, 2002, p. 62). Nesse sentido, ela
atua nos processos de subjetivação na escola
estudada, qualificando condutas e, principalmente,
corrigindo as consideradas inadequadas.
A frequência diária na escola, a
convivência com os professores, com os demais
colegas, com a direção, com os que ali trabalham
em outras diversas funções, aliada às experiências
vividas para além do espaço escolar configura-se
como um campo de possibilidades de subjetivação
composto por manifestações e propagação de
supostas verdades.
Rose (2001) coloca que as formas pelas
quais atribuímos sentido às nossas experiências
têm um funcionamento específico, composto por
dispositivos de produção de sentidos, grades de
visualização, vocabulários, normas e sistemas de
julgamento tidos como verdadeiros e que moldam
as nossas vivências através de práticas que ditam
as condições de nossas experiências e que operam
em diferentes locais: escolas, famílias, ruas,
ambiente de trabalho, por exemplo.
Uma dessas verdades, dessas grades de
visualização, dessas normas, ou seja, um desses
dispositivos de produção de sentidos presente nas
vidas dos sujeitos que participaram da pesquisa
aqui apresentada é a de que homens pescam e
mulheres fazem filé. O propósito da pesquisa foi
utilizar estes dois elementos, presentes no
cotidiano dos alunos, para pensar as relações de
gênero e tentar captar as tecnologias de
subjetivação que atuam na escola.
Partimos do pressuposto de que o que
falamos não está descolado das nossas
experiências, do que ouvimos. As nossas palavras
propagam discursos produzidos e envolvidos
numa rede de supostas verdades e de relações de
poder e que estamos sempre obedecendo a um
conjunto de regras dadas historicamente e tidas
como verdadeiras (FISCHER, 2001). Ou seja,
partimos do pressuposto de que os enunciados
das/os alunas/os, dos/ professores/as, dos/as
funcionários/as trazem indícios dos discursos que
circulam na escola.
Desse modo, quando um aluno diz “Oxe,
eu sou macho, professor! Eu sou espada! E eu sou
mulher pra fazer filé?”4, seu enunciado põe em
jogo um conjunto de elementos referente às
possibilidades de aparecimento, às normas de
gênero do lugar em que vive, faz parte de uma
formação discursiva relacionada, principalmente,
à divisão sexual do trabalho.
Dizer que não faz filé, nesse caso,
significa mais do que dizer que não tem vontade,
que não tem interesse, que não gosta dessa
atividade artesanal. Significa dizer que não é
mulher para fazer filé.
Foucault observou, ao investigar a história
da sexualidade, que existem técnicas que fazem
com que os indivíduos efetuem “operações sobre
os seus corpos, sobre as suas almas, sobre o seu
próprio pensamento, sobre a sua própria conduta,
e isso de tal maneira a transformarem-se a eles
próprios, a modificarem-se” (FOUCAULT, 1993,
p. 201). Essas operações foram por ele nomeadas
de tecnologias ou técnicas do eu. Para Foucault, a
partir daí, tornou-se interessante levar em conta as
técnicas do eu além das de dominação nas análises
genealógicas do sujeito nas sociedades ocidentais,
ou seja, quando se buscar investigar as formas de
constituição das subjetividades.
Digamos que se tem de levar em conta a
interação entre estes dois tipos de
técnicas, os pontos em que as tecnologias
de dominação dos indivíduos uns sobre os
outros recorrem a processos pelos quais o
indivíduo age sobre si próprio e, em
contrapartida, os pontos em que as
técnicas do eu são integradas em
estruturas de coerção (FOUCAULT,
1993, p. 207).
Nesse sentido, o modo como os sujeitos
são conhecidos relaciona-se ao modo como se
conhecem a si próprios. É nessa relação que
Currículo e gênero: produção e naturalização das diferenças na escola 37
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012
Foucault vai colocar que o governo não é “uma
maneira de forçar as pessoas a fazer o que o
governador quer. O governo é sempre um difícil e
versátil equilíbrio de complementaridade e
conflito entre técnicas que asseguram a coerção e
processos por meio dos quais o eu é construído e
modificado por si próprio” (FOUCAULT, 1993,
p. 207).
Nos enunciados que circulam na escola
sobre o filé e a pesca estão presentes algumas
tecnologias de subjetivação de gênero que
funcionam regulando, organizando, moldando,
enfim, demarcando os modos de ser dos sujeitos
que lá estudam. O principal propósito dessas
tecnologias é naturalizar crenças, fazendo com
que elas passem a operar como verdades para os
sujeitos e produzindo, então, maneira de ser e
viver. Esses discursos, essas tecnologias estão no
currículo e visam ao governo das condutas,
buscam subjetivar.
São estabelecidos modos considerados
corretos de brincar, de estudar, de falar, de se
relacionar com o filé e com a pesca, modos de
viver que acabam se tornando conhecidos e tidos
como naturais pelos sujeitos. Um conjunto de
condutas que busca parecer o mais correto, o mais
viável, o mais conveniente, em última análise, o
único possível para os sujeitos. Os enunciados dos
próprios/as alunos/as, dos/as professores/as,
dos/as funcionários/as convidam os meninos a
viverem de determinadas formas, como “meninos
de verdade”, “cabra macho mesmo”, a não fazer
filé.
As análises empreendidas na pesquisa
buscaram localizar os acasos dos discursos que
camuflam os processos de naturalização e que
apresentam verdades como inquestionáveis.
Buscaram analisar as relações de poder que fazem
com que determinadas formas de ser e viver sejam
contempladas nestes discursos ao mesmo tempo
em que outras são desqualificadas, colocadas no
campo da impossibilidade. O masculino e o
feminino são divulgados nos enunciados como
características inatas e universais e, portanto, são
as bases para a padronização das formas de viver
a feminilidade e a masculinidade.
Louro (2005) aponta que “há uma
obrigatoriedade de ‘preferir’ determinados
interesses, de desenvolver habilidades ou saberes
compatíveis com as referências socialmente
admitidas para masculinidade e para
feminilidade” (p. 91). Isso resulta no desconforto
dos meninos, quando diante de atividades ou
práticas tidas como não naturais para o gênero
masculino e também quando não possuem
habilidades em atividades que tidas como próprias
ao masculino.
Desse modo, observamos alguns
enunciados através dos quais os meninos buscam
mostrar na escola que não fazem filé e, portanto,
que não se envolvem com o que é feminino: “de
filé, eu não sei nada não”5, “eu não quis
aprender”6, “não gosto”
7.
Rose (1998) coloca que, mesmo que
pareça que “pensamentos, sentimentos e ações
constituem o próprio tecido e constituição do mais
íntimo eu, eles são socialmente organizados e
administrados nos mínimos detalhes” (p. 31).
Nesse sentido, esses enunciados, longe de
expressarem as mais íntimas vontades dos
meninos, atuam na relação do sujeito consigo,
como técnicas de si que:
Permitem aos indivíduos efetuarem um
certo número de operações sobre seus
corpos, sobre suas almas, sobre seu
próprio pensamento, sobre sua própria
conduta, e isso de tal maneira a
transformarem-se a eles próprios, a
modificarem-se, ou a agirem num certo
estado de perfeição, de felicidade, de
pureza, de poder sobrenatural e assim por
diante (FOUCAULT, 1993, p. 207).
Nesses enunciados, os meninos avaliam-
se e posicionam-se como aqueles que não fazem
filé. Eles produzem um saber sobre si mesmo,
amparados na normatividade da demarcação de
gênero entre o filé e a pesca. Nesse mesmo
movimento eles produzem também um saber
sobre outros, que são posicionados de diferentes
formas caso estejam ou não envolvidos com o filé,
eles pensam e avaliam uns aos outros, conforme o
enunciado a seguir “Eu acho bom, mas não sei, os
meus colegas, eles acham meio esquisito homem
que faz filé”8.
São essas estratégias de governo de si e
dos outros que dão sentido ao caráter performático
de gênero, ao produzir subjetividades
generificadas, uma vez que a performatividade “é
sempre uma reiteração de uma norma ou conjunto
de normas” (BUTLER, 2007, p. 167). As normas
de gênero “expressam-se por meio de
recomendações repetidas e observadas
cotidianamente, que servem de referência a todos”
(LOURO, 2008, p. 22). Quem aceita as sugestões
é considerado “normal”, quem se posiciona fora
delas é tido como “anormal”.
Por meio dos enunciados e dos seus
efeitos de verdade, de maneira exaustiva e
contínua, os meninos produzem verdade sobre
eles mesmos. Para isso, utilizam as técnicas de si
que não são inventadas por eles. De acordo com
Corazza (2001), essas técnicas são “esquemas que
38 Julia Mayra Duarte Alves, Laura Cristina Vieira Pizzi
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012
eles encontram em sua cultura e que lhes são
propostos, sugeridos, impostos pela sociedade e
grupos sociais” (p. 61).
Na escola investigada, os meninos são
discriminados, caso haja indícios de que
participam de alguma forma do processo de
confecção do filé, sendo chamados publicamente
de “mulherzinhas” e “gayzinhos” quando são
vistos fazendo ou vendendo filé. Sales (2010)
observa que as técnicas de zuação, ou seja,
aquelas que funcionam apontando publicamente
os sujeitos de forma a ironizar ou ridicularizar
seus comportamentos tidos como desviantes das
normas atuam com fins de governo e de maneira
bastante eficiente. A pesquisadora mostra que, em
sua investigação, além dos alunos, os profissionais
também acionam estas técnicas na escola com
objetivos considerados pedagógicos.
Na pesquisa realizada por Sales, a
professora observada usa essa técnica quando diz
publicamente na sala de aula que irá obrigar
alguns alunos a usarem rosa em uma atividade
com o objetivo de fazer com que eles parassem de
atrapalhar a aula, ou seja, como castigo.
De maneira semelhante, na escola aqui
analisada, o funcionário responsável por observar
os/as alunos/as no pátio também utiliza esta
técnica para chamar a atenção dos meninos. Com
a pergunta “E aí, já fez um filezinho hoje?” feita
estrategicamente quando os meninos estão muito
agitados, ele objetiva colocar estes sujeitos em
uma situação constrangedora e assim deixá-los
mais calmos e pensativos. A técnica da zuaçao,
apontada por Sales (2010) e observada também
nesta pesquisa visa governar o comportamento
dos meninos, moldando uma conduta considerada
adequada a um verdadeiro menino e fazendo
também com que eles fiquem quietos.
Há, nos enunciados que circulam na
escola, um interessante processo de naturalização,
uma recorrente tentativa de mostrar que é natural
a mulher gostar de fazer filé, ter mais jeito, mais
habilidades motoras finas, mais paciência, senso
estético e que os homens são naturalmente bons
pescadores porque são mais fortes fisicamente,
mais corajosos: “Filé é mais pra feminino e pesca
é mais pra masculino”9; “Oxe, se brincar menina
já nasce sabendo fazer filé10
” “Filé é mais para
mulher mesmo, pesca é pro homem, todo mundo
diz isso aqui, o pessoal do bairro, as mulheres
também”11
.
Desse modo, notamos que “Nossas
personalidades, subjetividades e
‘relacionamentos’ não são questões privadas, se
isso significa dizer que elas não são objeto de
poder. Ao contrário, elas são intensivamente
governadas” (ROSE, 1998, p. 30).
Considerações finais
O fato de grande parte dos meninos não
demonstrarem interesse pelo filé, conforme
observamos nesta pesquisa, é resultado do
investimento de um processo de governo das
relações de gênero que objetiva determinar as
possibilidades de ser e viver como um menino,
estabelecendo fronteiras claras entre o que é
feminino e o que é masculino. As técnicas de si e
as técnicas de dominação parecem atuar
conjuntamente na escola analisada, buscando
desqualificar aqueles meninos que fazem filé.
Estas técnicas produzem efeitos, fazem um nó
cego entre ser homem e pescar e ser mulher e
fazer filé, levando os sujeitos a desacreditarem na
possibilidade de ser menino e ser rendeiro.
Essas técnicas fazem muitos meninos
desistirem de qualquer aproximação com o filé
mesmo que essa seja uma possibilidade de se
ganhar dinheiro, mesmo que eles gostem de fazer
e achem bonito o artesanato. Estas técnicas
governam, demarcam a conduta dos meninos que
passam a se autogovernar e a governar os outros.
As demarcações de gênero estão
fortemente enraizadas na comunidade onde a
escola está situada e definem como norma a
divisão social e sexual do trabalho em torno do
filé e da pesca. As técnicas de governo na escola
propagam discursos sobre os modos de ser com
base em uma política de verdade, que divulga o
conhecimento sobre certas noções particulares de
gênero, em especial, de que fazer filé é coisa de
mulher.
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Currículo e gênero: produção e naturalização das diferenças na escola 41
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 31-41, jul./dez.2012
Notas
1 O filé é uma renda artesanal de origem desconhecida cujo processo de confecção não deixa dúvida de que
surgiu a partir da rede de pesca, a tarrafa, tendo também múltiplas influências européias. A confecção do
filé passa, inicialmente, pela preparação de uma rede, também chamada de malha que é esticada em um
tear, Posteriormente, esta rede é preenchida com diversos pontos e formas, na maioria das vezes, bastante
coloridas dando forma as peças (marcadores de páginas, toalhas de mesa, blusas, vestidos, saias, dentre
outras), que ficam prontas para serem utilizadas ou comercializadas.
2 O termo tecnologia é aqui utilizado como a articulação de certas técnicas e de certos tipos de discursos
acerca de gênero, de maneira semelhante à sugerida por Foucault (1993), quando ele trata da genealogia do
sujeito.
3 O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa do Centro Universitário Cesmac,
com o nº de protocolo 1274/2012.
4 Trecho da fala de um aluno do 6º ano durante uma observação no pátio da escola ao responder a pergunta:
“E aí, já fez um filezinho hoje?” feita por um funcionário, chamado de professor pelo aluno.
5 Trecho da fala de um aluno do 8º ano durante o grupo de discussão.
6 Trecho da fala de um aluno do 9º ano durante entrevista.
7 Trecho da fala de um aluno do 7º ano durante entrevista
8 Trecho da fala de um aluno do 7º ano, durante entrevista.
9 Trecho da fala de um aluno do 9º ano durante entrevista.
10 Trecho da fala de uma aluna do 8º ano durante entrevista.
11 Trecho da fala de um aluno do 8º ano durante entrevista.
Sobre as autoras:
Julia Mayra Duarte Alves: Universidade Federal de Alagoas (Maceió).
Laura Cristina Vieira Pizzi: Universidade Federal de Alagoas (Maceió).
42
43
* Endereço eletrônico: [email protected]
** Endereço eletrônico: [email protected]
Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares
Lisandra Veiga dos Santos*
Elisabete Maria Garbin**
Resumo
É objetivo deste artigo perceber como estes discursos podem operar na constituição de um currículo paralelo
na escola ou como se dão suas relações no cenário escolar, bem como na construção de identidades juvenis.
Com base no campo dos Estudos Culturais, Estudos sobre Juventudes e algumas ferramentas foucaultianas,
bem como de discussões sobre currículo de Silva, foram analisados 20 exemplares do Jornal Mundo Jovem
dos anos de 2009 a 2010. As análises permitiram inferir que há um investimento na formação do jovem
voltando-se para a ênfase religiosa. Bem como prescrições sobre o modo “verdadeiro” de ministra aulas e as
formas mais corretas de fazê-lo. Com este artigo pode-se pensar como determinadas identidades juvenis são
produzidas por discursos midiáticos e como podem ser associadas às representações produzidas e colocadas
em circulação pelo Jornal Mundo Jovem.
Palavras – Chave: Juventudes – Mídia - Currículo – Práticas Pedagógicas
Media and Youth: producing relations curriculum
Abstract
It is the aim of this article to see how these discourses can operate in the formation of a parallel curriculum in
school or build their relationships in a school setting as well as in the construction of youth identities. From
the field of Cultural Studies, Youth Studies and some tools Foucault, as well as discussions about curriculum
Silva, were analyzed 20 copies of the Official World Youth the years 2009 to 2010. The analysis allows to
infer that there is an investment in the education of youth turning to the religious emphasis. And
prescriptions on how "true" minister of classes and more accurate ways of doing it. With this article can be
thought of as certain juvenile identities are produced by media discourses and how they can be associated to
the representations produced and put into circulation by the Official World Youth.
Keywords: Youth - Media - Curriculum - Pedagogical Practices
[...] em outras palavras, eu diria que a
mídia "caça" o jovem principalmente
naquilo que o ‘incrimina’, tornando-o
visível no seu poder de juventude, sexo e
beleza, resistência e agressividade, ao
mesmo tem que na sua condição de
miséria física e existencial. Assim, para
além de objetivamente informarem sobre
fatos, esses textos também afirmam e
constroem um modo de diferentes vidas
jovens existirem e serem expostas.
(Fischer, 1996, p.249).
A epígrafe que inicia este artigo visa a
introduzir a forma como irei abordar o tema da
mídia, das juventudes e do currículo e de como
pretendo tomar a mídia como produtora e
produzida nessas relações. Esse incriminar, que
Fischer cita, não é no sentido pejorativo, mas no
sentido de que a mídia localiza as culturas juvenis
para que possa “encaixotar, enquadrar, etiquetar,
categorizar a juventude” (Garbin, 2000, p.10) e
utilizá-la nos processos de adequação aos
comportamentos socialmente aceitos, como se a
produção de uma juventude ‘normal’ partisse de
aspectos das juventudes denominadas pela
sociedade como transgressoras para se instituir.
Um exemplo da forma de ‘pedagogização’ das
juventudes
Também é intento deste artigo discutir os
discursos culturais que produzem os sujeitos e
suas práticas escolares, atentando para o fato de
que a mídia produz os sujeitos e suas relações
com o entorno. Não quero afirmar nesse artigo
que a mídia apenas produz; esse efeito de
produção é uma via dupla, na qual a mídia produz
e é produzida por discursos localizados em uma
determinada época, por determinados sujeitos e
suas relações de poder. É nessa relação de
processo que pretendo desenvolver a linha de
discussão desse artigo, não pensando em
dominados ou ‘alienados’, mas sim em sujeitos
que buscam um sentimento de pertença, um
sentimento de segurança frente a um tempo – pós-
modernidade- em que tudo se liquefaz, e se
questiona e as estruturas fixas desmoronam.
Este artigo é um recorte de estudo maior
pertencente a uma dissertação de mestrado,
intitulada “Juventudes Contadas no Jornal Mundo
Jovem: Modos de Pensar o sujeito jovem
contemporâneo”, e objetiva discutir, através dos
exemplares de um jornal de grande circulação no
44 Lisandra Veiga dos Santos, Elisabete Maria Garbin
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012
Brasil, a saber Jornal Mundo Jovem, as produções
dos sujeitos jovens e das práticas pedagógicas
ligadas a eles operando no currículos.
A metodologia constitui-se na análise de
20 exemplares dos anos de 2010 e 2011 através da
leitura atenta e posterior debate em grupo de
pesquisa. Os conceitos utilizados, a saber:
discursos (Foucault, 2009), juventudes (Feixa,
2004; Garbin, 2002), currículo (Silva, 2007)
foram um forma de “iluminar” as discussões
dessas análises.
Na primeira seção, intitulada Inventário
da mídia – percorrendo outras produções de
sujeitos e espaços escolares, faço um breve
levantamento de estudos que tomaram a mídia e
suas relações – pedagogizantes ou não - e a
juventude. Na segunda seção, Juventudes
produzidas e/ou em processo de produção – dos
discursos culturais que constituem os sujeitos
jovens, analiso alguns discursos do jornal e suas
produções de sujeitos contemporâneos jovens,
bem como seus grupos culturais e o papel do
pertencimento nesses grupos. Já na terceira seção,
O currículo – da constituição e transversalidade
das diferenças, apresento algumas discussões
acerca das concepções de currículo, bem como
alguns trechos de análise dos discursos do Jornal
Mundo Jovens que prescrevem modos e práticas
pedagógicas. E na seção Da incompletude das
discussõe, apresento as conclusões ainda que
breves e parciais, tendo em vista que, se fossem
analisadas sob outra ótica epistemológica, teriam
outros encaminhamentos possíveis.
Inventário da mídia – percorrendo outras
produções de sujeitos e espaços escolares
Apresento estudos já realizados sobre os
temas mídia e juventude, os quais foram
encontrados no Banco de Teses e Dissertações da
CAPES e no repositório digital da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (LUME/UFRGS).
A saber: Neuman (1989) em sua dissertação de
mestrado estudou a empresa que produz o Jornal
Mundo Jovem, analisou como estava a situação da
comunicação de massa no Brasil e no Rio Grande
do Sul e a possibilidade dos indivíduos trilharem
seus caminhos independentes desse meio. Fischer
(1996) abordou em seu estudo a adolescência e a
produção de sua subjetividade mediante a mídia.
Garbin (2000) trabalhou com jovens e a sua
relação com chats da internet, apontando os vários
pertencimentos que estes jovens produzem e se
identificam na internet. Schmidt (2006) lançou
mão da Revista da MTV para explorar o termo
“ter atitude” amplamente conhecida pelos jovens.
Marques (2007) problematizou as culturas juvenis
no Jornal Kzuka - um complemento do Jornal
Zero Hora, do Rio Grande do Sul. Rossi (2007), a
qual foi integrante do grupo de pesquisa do qual
faço parte - investigou as culturas juvenis nas
páginas do caderno Patrola, suplemento também
do jornal Zero Hora. Souza (2008) analisou as
formas pelas quais o Jornal Mundo Jovem
comunica os paradigmas educacionais adotados
no país desde a década de 1960, com o propósito
de formar pessoas autônomas, criativas, críticas e
solidárias, capazes de explorar o universo de suas
construções intelectuais.
Em outros estudos, Gobbi (1999) analisou
o jornalismo para teens e os espaços
disponibilizados pelos jornais do Brasil para este
público específico, também inventariou o perfil
dos suplementos veiculados nas regiões Centro-
oeste, Nordeste, Norte, Sudeste e Sul, localizados
na Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e
O Globo para compreender como se dá a
participação dos leitores juvenis, bem como os
objetivos da manutenção destas publicações pelas
empresas jornalísticas nacionais. Gumes (2004)
também trabalhou com o jornal Folha de São
Paulo, mas analisando a identificação das culturas
juvenis representadas no Folhateen, suplemento
jovem e buscou também revelar como as
identidades se configuram nos textos do jornal.
Silva dos Santos (2005) analisou a imprensa de
Fortaleza operando na construção das juventudes
leitoras na década de 50. Nascimento (2008)
direcionou seu olhar para a revista Veja e o jornal
Folha de São Paulo dos anos de 1970 e 1980 e o
modo como ela interfere nas produções da
juventude e de suas estratégias. Pedrosa (2008)
em seu estudo objetivou analisar o discurso da
mídia, com destaque aos jornais impressos, sobre
atos e fatos envolvendo jovens infratores, de
forma mais específica na periferia de Natal.
Oliveira (2009) analisou o discurso sobre a
adolescente negra veiculado nas páginas da revista
Atrevida. Stein (2011) focalizou seu trabalho na
participação de jovens em um grupo religioso de
orientação católica, o ONDA, pertencente a uma
pastoral de paróquia da região do Vale do Rio dos
Sinos. Com base na forma como vinte jovens
participantes constroem o referente ONDA, em
oficinas e entrevistas, a pesquisa investiga que
representações os jovens constroem do trabalho
realizado no grupo e quais as possíveis
repercussões desse trabalho em relação à
estruturação da vida em sociedade.
Tais trabalhos contribuem grandemente
para o desenvolvimento deste artigo. Junto a eles
agregamos discussões obtidas no grupo de
pesquisa do qual faço parte, com essa combinação
de concepções apresentadas, as quais produzem
Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares 45
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012
sujeitos jovens transitórios, com marcas culturais.
Tais sujeitos se constituem de inúmeras formas e
se utilizam de discursos midiáticos para
comporem suas identidades.
Os discursos veiculados nesses estudos
operam na lógica de outros artefatos culturais
(revistas, internet, televisão, etc), mostrando
juventudes, conscientes, disciplinadas, enfim,
identidades juvenis. Este artigo analisa a mídia
escrita de um jornal de uma determinada época,
com discursos próprios, mas que de forma produz
a juventude e seu modo se relacionar com as
práticas pedagógicas contemporâneas. Segundo
Foucault (2009), as práticas são resultados dos
discursos e acabam de certa forma produzindo-os,
nesse caso os discursos que produzem as
juventudes também acabam por produzir práticas
pedagógica, midiáticas, comportamentais
específicas a conter ou desenvolver as culturas
juvenis.
Necessita-se pensar que a mídia não é
uma via de mão única e muito menos as pessoas
são “coagidas” ou deixam-se levar pelos
discursos, mas sim por que fora desses discursos
nada faz sentido. Por anos a juventude foi vista
como rebelde, soaria estranho comportamentos
“adequados” ou jovens que não protestariam por
nada. A barreira do adequado, do rebelde é a
normalidade, ou seja, o que a sociedade espera do
jovem como o seu “verdadeiro”, o seu “normal”
modo de se portar. Pode-se inclusive ampliar esse
pensamento ao cotidiano da sala de aula, isto é,
existem práticas que são legitimadas e tornadas
verdadeiras, “normais” pelo currículo. As práticas
pedagógicas também são produzidas pelos
discursos contidos nos currículos, os quais
expressam uma forma epistemológica de se
conceber o sujeito e seus processos de
aprendizagem.
Logo, pode-se conceber que a mídia tenha
um papel de grande relevância na produção de
discursos e que ela legitima modos de ser e de se
conduzir o trabalho docente, seja em revistas ou
programas destinados à exibir práticas
pedagógicas, seja nos pareceres e diretrizes que
veiculam, por meio de discursos inclusive, o
modelo de sujeito que a escola Moderna busca
formar.
Nessa concepção precisa-se sempre
considerar o tempo histórico e seus processos nas
construções dos discursos. Um exemplo dessa
historicidade é pensarmos que o Jornal Mundo
Jovem surgiu inicialmente no Seminário1 Maior
de Viamão-RS, mas ainda não com esta
denominação e com tal público. Em setembro de
1963 foi lançada a Revista "S.O.S. Vocações",
(editada em português e espanhol) com o objetivo
de atrair público para os seminários católicos.
Servia basicamente de subsídio para as equipes
vocacionais3. Em agosto de 1964, trocou sua
nomenclatura para "Lançai as Redes", ainda com
objetivos especificamente vocacionais, porém
ampliando a abrangência. Destinava-se também
aos trabalhos vocacionais nas paróquias e escolas.
Em outubro-novembro de 1967, ainda no
Seminário Maior de Viamão, o Jornal deu início a
sua aproximação com público jovem, abordando e
refletindo “suas inquietações, suas ansiedades e
esperanças” (Jornal Mundo Jovem, 20112). Foi
neste período que adotou o atual nome de Jornal
Mundo Jovem. Em janeiro de 1972 o Jornal
Mundo Jovem passou do Seminário Maior de
Viamão para a Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, sob a responsabilidade da
Faculdade de Teologia, onde se mantém até hoje.
Vale ressaltar também nesse contexto que,
em 1972, foi criado pela Igreja Católica, o
primeiro Curso de Liderança Juvenil (CLJ) em
Porto Alegre, organizado pela Igreja São Pedro4.
Tais Cursos são pautados nos princípios do
catolicismo, articulados aos discursos de
liderança, autonomia, cidadania e
responsabilização por decisões e escolhas. São
culminados pelos chamados Retiros – espaços
para reflexão e oração, organizados, em geral,
locais afastados do centro urbano, para onde os
jovens são levados e lá permanecem por alguns
dias –, para reflexão, convidados a construir um
mundo a parte, possível, ‘melhor’, dentro do
cenário católico. Nesse cenário foi se constituindo
o Jornal Mundo Jovem – um artefato que ensina
modos de ser/estar jovem, professor, mulher,
homem, cristão baseado nos preceitos da crença.
O jornal é composto por 21 seções, a
saber, Espiritualidade, dos Leitores, Língua e
Literatura, Projetos Pedagógicos, Educação,
Ciências Naturais, Geografia, Ecologia,
Sociologia, Arte e Cultura, Realidade brasileira,
Filosofia, Ensino Religioso, Psicologia,
Juventudes, Política e Cidadania, História, Vida
saudável, Sexualidade, Pais e Filhos, Curtas e
dicas, têm modos de endereçamentos distintos e
formas de ‘ensinamentos’ sobre diferente, modos
de pensar a docência. Separei para efeitos de
visualização, as seções em três grandes vieses a
partir das leituras das mesas, como por exemplo,
as seções Espiritualidade, Filosofia, Ensino
Religioso, Bíblia5, as quais tratam do aspecto
religioso tendo contribuições de padres, irmãos,
estudiosos de teologia que apontam para os
benefícios de se fazer parte de um grupo de jovens
da Igreja, as reflexões proporcionadas pela
campanha da fraternidade, passagens bíblicas,
valores éticos segundo a religião católica. Já nas
46 Lisandra Veiga dos Santos, Elisabete Maria Garbin
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012
seções: Projetos Pedagógicos, Educação, Ciências
Naturais, História, Geografia, Ecologia, Língua e
Literatura, podem se observar modos de
endereçamento a professores, com discussões e
materiais de apoio ao pé da página, como
perguntas sugeridas para debate em grupo. Um
vocabulário mais complexo e com professores de
cada área que dão contribuições de artigos àquelas
seções.
Para analisar este artefato cultural, do qual
constitui-se o jornal Mundo Jovem, lancei mão do
campo dos Estudos Culturais para analisar os
discursos do referido jornal. Os Estudos Culturais
propõem um conjunto de abordagens,
problematizações e reflexões situadas na
confluência de vários campos já estabelecidos,
buscando inspiração em diferentes conceitos,
rompendo com lógicas cristalizadas. Esses estudos
têm início nas análises das sociedades industriais
modernas (Nelson; Treichler; Grossberg, 2009),
de suas práticas e de seus sujeitos. Com o passar
do tempo e das rupturas político-históricas, os
Estudos Culturais tiveram suas direções ampliadas
para outras discussões, tais como: a educação, a
tecnologia, gênero, etnia, juventudes, sociologia,
etc.
No entanto, sempre mantiveram seu
objeto de observação: a cultura. Inicialmente a
cultura foi pensada por três modos conforme
Williams citado por Costa
No primeiro, [modo] diz ele, há o “ideal”
– a cultura como tomada como um
processo de aperfeiçoamento, direção a
valores universais e absolutos. O segundo
se refere a cultura como “o
documentário”, o conjunto da produção,
do trabalho intelectual e criativo. Em
terceiro lugar está uma definição social
de cultura – a cultura como descrição de
um modo de vida. É esta última definição
que inspirou e orientou os Estudos
Culturais. (WILLIAMS apud
COSTA,2004, p.24).
Este primeiro conceito de cultura cunhado
por Williams (1965) foi se transformando ao
longo de tempo, como outros autores, outras áreas
de estudo envolvidas e foi inevitável o
deslocamento para uma outra forma de pensar a
cultura. Para os Estudos Culturais, tal
deslocamento é algo importante pelo próprio
campo considerar os processos de ressignificação
ou até mesmo o borramento de determinadas
metanarrativas. Podemos conceber a cultura e
suas inúmeras relações com outros campos como
formas de articulação desses estudos, como sendo
a possibilidade de integração e de modos de
concepção diferenciados da vida social, sem
necessariamente restringi-las a classe social. A
educação vista sob a perspectiva dos Estudos
Culturais, por exemplo, apontam para uma
parceria produtiva para discussão,
É possível dizer que os estudos
conduzidos na direção apontada tem
facilitado a não circunscrição da
pesquisa em educação, bem como das
ações educativas, às tradições tomadas
como prevalentes às compreensões
definidas como hegemônicas, às histórias
de progressos cumulativos e as análises
interpretativas que buscam o sentido
oculto das coisas, ou que reduzem a
crítica e a denúncia” (Wortmann, 2005,
p. 174).
A autora aponta a elasticidade que os
Estudos Culturais proporcionam ao utilizá-los em
pesquisas no campo da educação, o quanto tais
estudos podem contribuir para pensar sobre
escola, aluno, relação professor-aluno, etc.
Discutir a educação do ponto de vista dos Estudos
Culturais, além de incitar outras formas de olhar,
não restringe o sujeito ou suas práticas a
determinismos sociais. Hall (2003) ainda destaca
que os Estudos Culturais abarcam discursos com
múltiplos saberes veiculados através práticas
sociais cotidianas e que o campo de estudo
procura não organizar o conhecimento em
disciplinas, mas sim misturá-los, borrar suas
fronteiras. Esse ‘borramento’ se daria de maneira
que se possa entender, de múltiplos modos,
questões que muitas vezes ficariam na esteira de
discussões localizadas e perderiam outras
possibilidades de análise se não inscritas no
campo dos Estudos Culturais. Tal campo tem
ressignificado e tornado dinâmicas as discussões
acerca de identidade, discurso e representação
(Costa, Silveira, Sommer, 2003).
Nas seções Projetos Pedagógicos,
Educação e Psicologia explicitam-se tais
discursos acerca de como concebemos a cultura
do bom aluno, como podemos observar no excerto
a seguir, da edição de Março de 2009
Na escola foi possível perceber que houve
melhora no desempenho dos alunos, bem
como uma maior integração entre eles.
Também foi possível identificar que a
experiência do diálogo entre as
disiciplinas [...] contribui para o aumento
da responsabilidade e do interesse dos
alunos pelas aulas, assim como sua
Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares 47
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012
atuação como cidadãos, para além do
espaço escolar. (Neves, 2009, p.21).
A melhora à qual o excerto se refere tem a
ver com o “aumento da responsabilidade e do
interesse dos alunos pelas aulas (Neves, 2009)”,
ou seja, o modo de ser aluno que contribuiria com
o bom andamento das aulas seria o responsável e
interessado. Não se questiona se tal excerto é
adequado ou não, nem se emitem opiniões acerca
da publicação, mas sim problematizam-se os tipos
de discursos que percorrem, inclusive o currículo,
as práticas pedagógicas. O sujeito aluno precisa
ser incentivado a ter determinados
comportamentos que auxiliariam na melhora da
escola.
No excerto da seção Educação, da edição
de Maio de 2009, em uma reportagem acerca da
escrita, pode-se observar algumas prescrições e
modos de ser que seriam adequados a boa prática
da escrita, “O texto como um espaço em que o
aluno possa ser leitor e também autor, utilizando
suas experiências de vida, seu conhecimento
prévio como fonte de produção.” (Cargnin, 2009,
p.5) Também visualizamos as mesmas prescrições
no excerto retirado da Seção Educação, da edição
de Abril de 2010, que “exige dos estudantes uma
atitude investigativa, na qual o confronto com o
que se sabe e o que deseja saber resulte no
questionamento da realidade. (Jucá, 2010, p.18)”.
O referido trecho faz parte de uma reportagem que
trata da importância de uma postura de
pesquisador cientifico. Ao longo da reportagem a
autora busca atentar para a importância de se
estimular a pesquisa desde cedo nas escolas.
Inclusive, a pesquisa que também é um elemento
que faz parte do currículo, é produzida como uma
forma de se “aproximar o mercado e trabalho da
formação como seu produto (Jucá, 2010, p. 18)”.
Em se tratando de trabalho por projetos,
pode-se observar que o comportamento sugerido
ao aluno, retirado da Seção Projeto Pedagógico,
da edição de Julho de 2009, é o de desenvolver
“competências e habilidades como observação,
trabalho em equipe, criatividade, organização,
registro de situações de aprendizagens. [...]
(Pereira, 2009, p.19)”. Tais habilidades estão
ligadas a uma concepção de sujeito
contemporâneo, o qual deve-se investir no capital
cognitivo (Foucault, 2009) do sujeito como forma
de desenvolvimento da sociedade do
conhecimento, a qual se desenha com as
tendências atuais na educação. A escola na
percepção dessa sociedade não mais atua como
formadora única, mas estimula o sujeito a se auto-
gerir na perspectiva do trabalho em equipe e por
projetos. Existem relatos de algumas escolas
públicas trabalhando nessa perspectiva.
Também, no sentido de produzir discursos
acerca do currículo, observou-se modos de se
conceber as práticas do cotidiano como sendo
encaminhadas e prescritas, como no excerto
retirado da seção Educação, da edição de 2009
O conselho deve ser um espaço de
decisão coletiva. Desta forma permite
enfrentar o desafio de construir um novo
projeto para escola. Tem como um dos
objetivos refletir sobre a aprendizagem,
proporcionando um espaço de reflexão
coletiva sobre o trabalho pedagógico.
(Edição Outubro, p.12).
Segundo, Steinberg (1997), a mídia
produz no sujeito e em suas relações uma
pedagogia cultural, na qual ensina modos de ser
que são considerados aceitáveis na sociedade em
que vive. Corroborando tal ideia, Foucault (2009)
nos diz que a produção desse sujeito e do modo de
ser é datada de cada época, a qual possui um
conjunto de discursos específicos, o que o autor
chama de episteme. À cada momento história as
relações e os sujeitos são produzidos e produzem
relações de poder através das epistemes que
regem a sociedade. No excerto anterior, o jornal
coloca as funcionalidades e objetivos de um
Conselho de Classe, uma prática típica na escola
moderna, sugerindo ao leitor outro modo de
condução e concepção do mesmo.
Juventudes produzidas e/ou em processo de
produção – dos discursos culturais que
constituem os sujeitos jovens
Dentro de nós há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes
direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo
continuadamente deslocadas. Se sentimos
que temos uma identidade unificada desde
o nascimento é porque construímos uma
cômoda estória sobre nós mesmos ou uma
confortadora ‘ narrativa do eu’. (Hall
citando Hall, 2006, p.13).
Ao analisar o Jornal Mundo Jovem a
partir do campo dos Estudos Culturais, tornou-se
possível depreendê-lo como um artefato que, por
meio da linguagem, dos discursos, produz
compreensões sobre ser/estar jovem.
Considerando as múltiplas possibilidades que se
produzem na contemporaneidade, perpassando a
constituição de identidades efêmeras, fluidas e,
por vezes, contraditórias como afirma Hall (2006),
48 Lisandra Veiga dos Santos, Elisabete Maria Garbin
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012
analisei nesta seção os modos, os discursos nos
quais o jornal procura produzir as identidades das
juventudes contemporâneas. Por se tratar de um
jornal que possui em sua trajetória as fortes
marcas da própria história do catolicismo, passo
também a ‘tensionar’ em que medida também não
estaria produzindo identidades católicas.
Partindo da compreensão de que as
identidades podem ser múltiplas e cambiantes,
essas convocam o sujeito simultaneamente a
diversos pertencimentos. Nosso tempo líquido faz
com que as experiências que temos sejam mais
valorizadas quando em grupo, o grupo seria o
porto seguro, a garantia que foi levada com a
Modernidade.
O jovem pode ser católico, no entanto
gostar de roupas de marca, de rock n’ roll,
frequentar bate-papos virtuais, andar de skate, ou
vir hip-hop sem, no entanto, romper com sua
identidade católica. Esta seção dará visibilidade a
alguns discursos acerca das juventudes, dentre
tantos que habitam a mídia e o próprio jovem de
modo simultâneo.
Conforme Ellsworth (2001, p.20) sugere,
o filme, com seus modos de endereçamento,
espera que o espectador aja “como se ele fosse
aquele alguém que o filme quer que ele seja, que o
filme pensa que ele é, ou ambas as coisas.”, essa é
a maneira de funcionamento dos modos de
endereçamento. Descrever detalhadamente um
sentimento, atribuir uma característica que chame
a atenção do espectador. No caso do jornal,
atribui-se a juventude um caráter de dinâmica,
“que sabe lidar com novos meios eletrônicos”, que
devemos aprender com essa juventude. No
entanto, mais do que isso o artigo que destaco a
seguir chama a importância de se aprender com as
gerações, tendo em vista que parece endereçado a
outra geração que não a da juventude. É esse
endereçamento que produz a identidade, ou os
processos de identificação (Hall, 2006), pelos
quais as juventudes se reconhecem no jornal e
pelos quais os professores e a escola também se
reconhecem como sujeitos da ação e da reflexão.
O sentimento de que temos uma
identidade apenas e que vivemos eternamente sob
os parâmetros dela é uma visão comumente
confundida com a ética e a moral, as quais pautam
nossas ações desde que a aprendemos para o resto
da vida. Em parte essa ética é formada pela
religião e pelos discursos sobre o que é
certo/errado de se agir. No jornal encontramos os
modos de endereçamento aos jovens para que
estes pautem suas ações pela religião, que implica
a moral e ética, mas que é construída sob maneira
através dos processos de identificação desses
jovens com o catolicismo sob o viés dos discursos
presentes no jornal, como nos mostra os excertos
a seguir
Para captar toda a riqueza de vida
presente na Bíblia, é importante de um
lado olhá-la como produto literário que
pode e deve ser analisado à luz da
história e da crítica textual. Essa leitura
responde às nossas buscas no
entendimento da palavra, pois queremos
compreender o seu sentido. Isso é bom,
mas não suficiente. É que a Bíblia não é
um conjunto de conhecimentos teóricos
como as demais ciências. Não é um livro
de biologia ou de astronomia, de física ou
de história, mas é um livro de teologia,
um livro de fé, escrito por pessoas de fé
para comunidades também de fé. (Uma
palavra para a nossa vida, Edição de
Fevereiro, p.15, 2009).
A palavra de Deus deve ser o nosso
alimento cada dia e nela precisamos
buscar o sustento para nossa vida. (Bíblia
(ainda não) é um livro ecumênico, Edição
de Setembro, p.9, 2010).
Mas atenção!Ao lado de toda a sede de
poder, fama e dinheiro existe uma
necessidade ou exclusão correspondentes.
(Consumismo quem é vencedor?, Edição
de Março,p.16, 2009).
Os excertos apresentados procuram
ressignificar as identidades juvenis, as quais são
produzidas através dos modos de endereçamento
sugeridos nos excertos. Não basta ser católico,
tem que seguir uma série de práticas, de modos de
se conduzir para pertencer ao grupo. Podemos
transpor tais conclusões às práticas pedagógicas,
as quais buscam trabalhar com o grupo ao sujeito,
homogeneizar ao ver a heterogeneidade do
cotidiano escolar. Esses modos de endereçamento
também estão presentes no currículo, tendo em
vista que eles são endereçados a certas classes
sociais e modos de se produzir sujeitos na escola
Moderna.
Essas verdades, ao endereçar-se ao
público juvenil, o Jornal produz como estratégia
de interpelação a aproximação de seus temas a
assuntos que a equipe editorial julga presente
neste “Mundo Jovem”. Cito os seguintes
exemplos pela sua recorrência
Vale ressaltar o uso do graffiti em escolas
e instituições como forma de socialização
e expressão cultural, bem como a
Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares 49
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012
abertura de espaços cada vez mais
significativos em galerias de artes de arte
e museus. (Graffiti: outros olhares para a
escrita das ruas, Edição de Maio, p.2,
2009).
Também seria legal convidar alguns
grafiteiros para um debate na escola a
fim de conhecer essa expressão da cultura
juvenil. (Graffiti: outros olhares para a
escrita das ruas, Edição de Maio,
p.2,2009).
Conhecer para entender (Funk:
embalando as comunidades e a escola,
Edição de Setembro, p.5, 2009).
É possível aproveitar as culturas juvenis
para enriquecer a relação entre professor
e aluno?
Ela (a escola) precisa compreender como
se dá essa escrita e utilizá-la a favor do
ensino de língua principalmente. (A
(nova) escrita digital, Edição de Março,
p.22, 2010).
Portanto, é notório o movimento do
Jornal em debater temas articulados a culturas
juvenis, tanto pela sua recorrência na análise do
artefato como pela sua referência conforme a
narrativa da equipe editorial.
As juventudes que são retratadas no
Jornal Mundo Jovem não são apenas católicas ou
de orientação cristã; são exibidas nas páginas do
Jornal as juventudes rurais, as juventudes em
condições economicamente desfavoráveis, bem
como suas culturas, como podemos observar nos
títulos do artigos a seguir: Graffiti: outros olhares
para a escrita das ruas; Corpos jovens: espaços de
comunicação de si; Sites de Relacionamento: uma
mania mundial, Vida Urbana e Vida Rural -
desafios ao jovem agricultor; Formação Integral
do Jovem; Funk embalando as comunidades e a
escola; Mitos e Preconceitos em torno da
homossexualidade; Hip-Hop: um grito por
liberdade.
As juventudes descritas no jornal são
produzidas a partir de seus estilos (Feixa, 2004)
musicais, artísticos, etc, assim como modos de
ser. Jovens que fogem ao padrão de
comportamento também são tema das publicações
no sentido de servirem de exemplificação de
modos de ser adequados ou não. Se pensarmos
nessa lógica, a mídia também produz o aluno
indisciplinado, mas não modo passivo e unilateral,
e sim inserido no contexto da escola (Xavier,
2003), onde se espera desse sujeito determinados
comportamentos, amplamente tratados na mídia.
Para tanto, quando se fogem desses modos de ser,
logo produz-se o sujeito indisciplinado, aquele
cujo modo de ser extrapola a normalidade e
“atrapalha” o andamento da aula. O jornal
trabalha numa perspectiva combativista de
comportamentos que vem de encontro ao que a
escola preconiza, tais como bullying, violência,
consumismo, relações pessoais e relações nas
redes sociais.
Sabe-se que o modo como a mídia conduz
suas relações tem muito a ver com o que se espera
do sujeito. Nesse sentido o sujeito aluno é
produzido por um currículo Moderno que tem no
modo contemporâneo o referencial de
comportamento do alunado. Aceita-se que o
sujeito aluno jovem tenha muitas distrações e
mesmo assim aprenda, não aceita-se é o seu não
aprendizado, sua dificuldade. Logo, problematiza-
se na mídia e no dia-a-dia mais a incapacidade e
dificuldade, que os avanços e do que tal sujeito é
capaz de aprender.
O currículo – da constituição e
transversalidade das diferenças
O currículo tem significados que vão
muito além daqueles os quais as teorias
tradicionais nos confinaram. O currículo
é lugar, espaço, território. O currículo é
relação de poder. O currículo é trajetória,
viagem, percurso. O currículo é
autobiografia, nossa vida, curriculum
vitae: no currículo se forja nossa
identidade. O currículo é texto, discurso,
documento. O currículo é documento de
identidade. (Silva, 2007, p.150).
A partir do excerto do autor Tomaz Tadeu
da Silva podemos refletir acerca do papel do
currículo na escola e como este produz e é
produzido através das diferenças veiculadas pela
mídia. A mídia, longe de ser vilã, atua, conforme
referendei anteriormente, na constituição dos
sujeitos e também na constituição das práticas
vividas por esses sujeitos em seu cotidiano. Além
do Ministério da Educação que produz
legislações, currículos e diretrizes, a mídia
impressa e televisiva também expõe modelos do
que uma educação “precisa”, até propõe em
alguns casos “respostas à educação”6. Algumas
revistas especializadas no assunto propõem
conteúdos, sequências didáticas e modos de se
abordar temas do currículo. Esse currículo é a
vida do aluno, do professor, da escola, conforme
pudemos observar na epígrafe. Seria a vida da
escola também produzida? Produzida sob quais
50 Lisandra Veiga dos Santos, Elisabete Maria Garbin
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012
perspectivas na mídia? Faz-se importante pensar
acerca dessa produção.
Se os sujeitos e suas relações são
produzidos através dos discursos midiáticos
também, e tomo como assertivo o enunciado que
os sujeitos também produzem os discursos,
podemos pensar no Silva (2007, p.148) apresenta
“através das relações sociais de currículo, as
diferentes classe aprendem quais são seus
respectivos papéis nas relações sociais mais
amplas.”. Longe de empreendermos uma
discussão materialista ou até mesmo na teoria da
ideologia proposta por Althusser, o currículo tem
esse papel de constituir a subjetividade dos
sujeitos e os sujeitos a criarem situações de
resistências7 ao currículo num jogo dinâmico de
poder. O que se deve aprender e como se deve
estão intimamente ligados às relações culturais e
às funções que determinado público irá tomar
parte na sociedade.
As relações culturais implicam o currículo
sob uma perspectiva de discussão do sujeito
enquanto partícipe de uma determinada época, de
um determinado cenário cultural e trabalhar com
essas questões parecem mais fundamentais à
mídia que as pessoas responsáveis pela construção
do currículo. É nesse encontro de culturas e
conhecimentos formais que Silva (2007, p.136)
propõe pensar no “[...] conhecimento como um
objeto cultural, uma concepção do currículo
inspirada nos Estudos Culturais equipararia, de
certa forma, o conhecimento propriamente escolar
com, por exemplo, o conhecimento explicíta ou
implicitamente transmitido através de anúncio
publicitário.”, ou seja, a possível trégua ou
vivência simultânea da mídia, das culturas e dos
conhecimentos escolares poderia ser uma das
possibilidades de se trabalhar a constituição do
sujeito e transformar sua condição, de sujeito
passivo receptor, para ativo e produtor.
Propõe-se pensar na relação dialógica que
o cenário contemporâneo tem na escola, ignorar o
que os sujeitos fazem fora da sala de aula é
ignorar sua constituição cultural. As juventudes
culturais que se formam fora da escola trazem
seus pertencimentos para dentro dela, continuam
vivenciando-os, ainda que separadamente do que
é considerado conhecimento escolar formal. A
maioria dos docentes propagam a ideia de que as
juventudes contemporâneas são diferentes das que
eles viveram, mas o discurso para por aí. Ao invés
de se pensar nessas juventudes enquanto
comparativo, deveríamos mesclar os seus
conhecimentos culturais ao currículo, torná-lo
flexível dentro de um sistema Moderno e rígido.
Desafiar os jovens a compreenderem o tempo em
que vivem pelas experiências que têm, dentro e
fora da escola. Desacreditar em enunciados como
“essa juventude está perdida!”, “é isso que serão
os adultos de amanhã?” e ajustar o foco ao
dinamismo, ao convívio pacífico com as
diferenças e a possibilidade infinita de adaptação.
Pensando nesse modo de conceber o
currículo, analisei as 21 seções do jornal e por
motivos de recorrência, escolhi dois temas de duas
seções: Educação e Projetos Pedagógicos, pois
notei regularidades nessas duas grandes seções, as
quais permeiam em grande parte o Jornal –
modos de ser professor e modos de se conduzir o
trabalho docente. Não podemos deixar de
conceber o currículo sem as relações de docência
que também estão implicados neles e também são
produzidos e produtores
Na seção Projetos Pedagógicos dos anos
de 2009 e 2010, podemos observar o seu
endereçamento aos docentes, principalmente a
realização do trabalho docente. São artigos que
sugerem práticas pedagógicas ao professor de
acordo com assunto do mês da capa. É possível
notar algumas correntes de pensamento
pedagógico sobre educação, como no excerto a
seguir do artigo Ensinar é aprender
Os estudantes estão abastecidos por uma
carga de informações cuja capacidade de
assimilação nem comporta. O ser humano
tem potência de semideus, com emoções
de mortal. O avanço da era espacial em
que vive se tornou o ser humano
angustiado pela consciência de sua
fragilidade para absorver e superar os
desafios a sua volta. (Edição de
Fevereiro, p.6, 2009).
Excetuando o caráter poético do trecho
anterior, podemos inferir uma concepção
construtivista do aprender, que vê nos processos
de assimilação um de seus principais elementos de
desenvolvimento. No entanto, o excerto destaca
também o sentimento que possivelmente habita os
seres da pós-modernidade, a angústia pela
“consciência de sua fragilidade para absorver e
superar os desafios a sua volta.” (p.6, Fevereiro,
2009), mas que o excerto traz como uma
característica do desenvolvimento do ser humano,
numa provável referência a sua evolução.
Há também presentes nos artigos do
Jornal prescrições sobre como se deve
empreender o projeto, o papel do professor e da
escola. Poderíamos inferir que tais indicações para
o desenvolvimento do trabalho docente seriam
uma forma de conduzir a conduta desses docentes;
seria uma forma de explicitar os modos certos,
verdadeiros de ser professor. O excerto a seguir,
Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares 51
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012
retirado do artigo Educar para a cidadania
Educar para a cidadania é aspirar uma
escola que prepare pessoas não apenas
para o trabalho, mas para participar no
mundo globalizado de forma crítica,
reflexiva e emancipatória. (Edição de
Abril,p.15, 2009).
É interessante observar que conceitos
complexos como participação crítica, reflexiva e
emancipatória aparecem como de comum acordo
sobre seus significados, e que isso levante a
questão sobre que referenciais o Jornal ou a
escritora do texto concebe a crítica. Por exemplo,
numa perspectiva foucaultiana, a crítica vai além
de se levantar os pontos negativos, interpretar
possíveis relações de causa e conseqüência, mas
atentar para que jogos estratégicos essa crítica põe
em circulação e quais verdades ela movimenta.
Também podemos observar que a
estrutura da seção aparece, quase sempre, da
mesma forma, apresentando um quadro abaixo do
texto principal, no qual há a descrição do projeto,
intitulado Acontecendo na prática ou ainda Passo
a passo, com base na fala de outros docentes que
já o realizaram e obtiveram sucesso. Já em uma
outra coluna dentro do texto há a subseção
Avaliação e Objetivos, que prescreve de que
forma pode se dar a avaliação do projeto e dos
sujeitos envolvidos nele. Também há uma
estrutura à esquerda da página denominada Ficha
Técnica, com dados dos objetivos do projeto, tais
como turmas envolvidas, equipe envolvida,
duração, recursos materiais, avaliação e
premiação.
Podemos inferir também diferentes modos
de se conceber o mundo contemporâneo que
acabam por permear as escritas dos artigos, por
exemplo as oposições de “moderno e antigo”, ou
das práticas que tínhamos com as que temos
agora, como se nossa linha do tempo fosse de fato
uma linha linear e que nos levasse à evolução,
como no trecho a seguir extraído do artigo
Atividade Física e Qualidade de Vida
Convém lembrar que a vida moderna tem
vantagens e desvantagens que podem
levar o ser humano a se tornar inativo.
Automóvel, computador, telefone,
televisor e CD são excelentes
instrumentos para locomoção,
comunicação, educação e lazer. No
entanto, toda essa tecnologia contribui
para o atual estilo de vida: sedentarismo,
alimentação inadequada e hábitos
nocivos. Por outro lado a missão das
pessoas é manter-se saudável. (Edição de
Agosto, p.7, 2009).
O provável objetivo do artigo é incentivar
a prática de esportes e dar ênfase aos projetos
ligados a ele; no entanto, para atender ao publico
leitor, que além de professores também é
composto por jovens, ou seja, aproxima-se esse
artigo com o que a contemporaneidade oferece
para dar maior valor a prática de esportes, isto é,
com uma vida “moderna” sedentária, precisamos
realizar esportes.
Os artigos que estão presentes nessa
seção, ao contrário da seção Projetos
Pedagógicos, são escritos por especialistas em
educação, psicólogos. e não por professores com
seus relatos de experiência; logo, seu modo de
endereçamento é diferente no que tange à
legitimidade do discurso, pois são especialistas
que conferem o código de verdade necessário ao
texto.
As temáticas abordadas são múltiplas,
mas na maioria das vezes apresentando
posicionamentos firmes e delineados, como
podemos observar no excerto a seguir, retirado do
artigo Aprendizagem para Todos
Discutir a educação de alunos com
necessidades especiais implica resgatar o
sentido da educação especial, ainda que
isso possa desagradar aos que se colocam
à frente das discussões sobre educação
inclusiva. Diante de necessidades
educacionais especiais, a educação
escolar deve promover situações de
ensino e aprendizagem diferentes das
organizadas para a maioria dos
educandos. (Edição de Março,p.15,
2009).
O autor defende que a inclusão deve ser
pensada de forma mais cuidadosa, mas ainda sob
a égide de incluir a todas as necessidades. Não é
objetivo deste artigo discutir este posicionamento,
nem fazer juízo de valor acerca dos assuntos
tratados pelo Jornal, mas sim propor outros
olhares a leitura desse artefato cultural, que
possibilita pedagogizar as discussões acerca da
educação e do trabalho docente. Os artefatos não
possuem poder de influência sobre seus leitores,
mas sim de sedução aos processos de subjetivação
e encontram na prescrição a sua sustentabilidade.
Ao oferecer modos de ser docente, de se conceber
a educação, essas verdades subsidiam técnicas de
si, atuam diretamente no governo de si, como
podemos visualizar no trecho a seguir extraído do
artigo Educação Infantil, muito mais do que
52 Lisandra Veiga dos Santos, Elisabete Maria Garbin
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012
cuidar
Com o passar do tempo, a
responsabilidade do educador é de
desenvolver uma educação que promova
o amadurecimento da autonomia,
direcionando suas ações, sem esquecer-se
dos limites essenciais do ambiente e o que
ela tem internamente, como afetividade,
conhecimento, sociabilidade entre outros
fatores. (Edição de Maio, p.6, 2009).
Essas concepções de educação nos dão
pistas de como o trabalho docente está implicado
no discurso do campo pedagógico. Apesar de ser
um artigo voltado à Educação Infantil, podemos
depreender daí toda uma rede discursiva que visa
a produzir verdades disponíveis aos sujeitos que
empreendem a carreira docente. Podemos
observar nos excertos que se seguem a força
desses discursos prescritivos nas concepções de
educação vigentes na nossa sociedade
Educar, portanto, significa propiciar
situações de cuidado, brincadeiras e
aprendizagem, orientadas de forma
integrada visando ao desenvolvimento das
capacidades de relação com o outro,
atitudes de aceitação, respeito, confiança
e também possibilitar o acesso ao
conhecimento da realidade social e
cultural. (Edição de Maio, p.6, 2009).
Educar envolve, ainda, o desenvolvimento
das capacidades de conhecimento e das
potencialidades corporais, afetivas,
emocionais, estéticas e éticas. (Edição de
Maio, p.6, 2009).
A Educação deve ser um instrumento que
possibilite a emancipação social do ser
humano, capacitando para a sua vida
para a vivência coletiva e a conquista da
dignidade. (Edição de Maio, p.6, 2009).
Podemos inferir, ainda que parcialmente,
que as prescrições não são ideológicas ou
coercitivas, mas agem de tal modo que, fora dessa
rede discursiva, a educação, o trabalho docente
não tem sentido. Não é uma rede que age
silenciosamente, mas que se tornar parte do que é
considerado verdadeiro no trabalho docente.
Da incompletude das discussões
Neste artigo busquei trabalhar com a
noção de currículo aliada a discursos do Jornal
Mundo Jovem, debatendo e problematizando a
produção da mídia de sujeitos e das relações
desses com o currículo. A cultura, as juventudes, a
mídia agem de forma cíclica no currículo
evidenciando assim um sujeito totalmente
contraditório e ‘silenciado’ em sua cultura.
No entanto, se tomarmos o Jornal Mundo
Jovem como artefato cultural, também pode
significar tratá-lo como uma prática que constitui
discursos sociais próprios da cultura referida,
como exemplificam Costa; Silveira & Sommer
um noticiário de televisão, as imagens, os
gráficos, etc. de um livro didático ou as
músicas de um grupo de rock, por
exemplo, não são apenas manifestações
culturais. Eles são artefatos produtivos,
são práticas de representação, inventam
sentidos que circulam e operam nas
arenas culturais onde o significado é
negociado e as hierarquias são
estabelecidas. (Costa; Silveira & Sommer,
2003, p.38).
Os artefatos são os objetos concretos, são
as práticas culturais que acabam por veicular
‘ensinamentos’ a sociedade, tais como o Jornal
Mundo Jovem, que busca endereçar à comunidade
jovem modos de pensar a sua juventude, modos
de propor pautas para o debate da condição
juvenil. De um modo geral, este estudo concebe o
Jornal, que será material de análise, como um
artefato, o qual Bujes (2000).
Refere-se a qualquer objeto que possui
um conjunto de significados construídos
sobre si. ‘Produtos’ de culturas que dão
visibilidade a determinadas
representações sobre as coisas. Tais
representações atuam nos processos de
significação que produzem sentidos na
vida da cada sujeito. Estes significados só
podem ser construídos através da
linguagem. É no âmbito das práticas
discursivas que se dão tais construções.
Ao mesmo tempo em que um artefato
cultural se caracteriza por ter sobre si
determinados significados, ele é também
um produtor de significados. Muitos deles
criam realidades e verdades sobre as
coisas, as quais são postas em circulação
para serem consumidos. (Bujes, 2000, p.
205-228).
Du Gay (1997) assinala que “para estudar
os artefatos culturais precisamos não apenas
explorar como são representados, que identidades
Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares 53
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012
sociais estão a eles associadas, mas também como
são produzidos, consumidos e que mecanismos
regulam sua distribuição e uso”. Os artefatos são
resultados de uma produção cultural específica
datada historicamente e constituída por sujeitos
sociais. Estudando artefatos culturais também
podemos depreender inúmeros modos de pensar e
de ser sujeito. Du Gay et. all,(1997), estudando o
walkman, assim argumentam,
[...] nós não estamos apenas tratando do
modo no qual um artefato cultural é
representado (como uma coisa na
propaganda e nas fotografias), mas
também tratando como os processos que
tem produzido esse artefato tem sido
representado. Nós precisamos pensar
sobre como os vários processos de
produção são entendidos e recebem
significados ao serem rotulados e
categorizados de vários modos (inovador
japonês, trabalho em equipe etc..). (Du
Gay et all, 1997, p.8).
O presente artigo utilizou-se desse
artefato cultural para problematizar os discursos
que veiculam por ela sobre juventudes, currículo e
práticas pedagógicas. Após as análises já
apresentadas, pode-se inferir, ainda que
parcialmente, que o Jornal Mundo Jovem, o qual
possui artigos localizados numa racionalidade
contemporânea, prescrevem modos de ser aluno,
jovem, docente e de conduzir seus trabalhos por
finalidades, como a de promover a autonomia do
aluno, de desenvolver valores éticos cristãos
aliados as suas metodologias e de estar ligado a
temas que necessariamente passem pela
metodologia de projetos. Podemos considerar que
os discursos sugerem o consumo de determinadas
culturas, que adotem seus modos de ser, que se
constituam em determinadas práticas docentes.
Outra forma de pensar os pertencimentos que o
jornal oferece aos professores é observar que, nos
artigos que seguem, ele tenta exibir a
representação de juventude que está ou não
presente na sala de aula. Ao interpelarmos esses
discursos presentes no Jornal Mundo Jovem a fim
de delinear as identidades e os trabalhos docentes
que aparecem nele, podemos observar um
movimento que o Jornal realiza, o de buscar
conhecer a juventude e dar informações sobre ela
aos professores que, em sala de aula, procuram
governá-los.
O currículo não é mais centro de poder,
mas sim distribuição de práticas culturais,
norteamento das práticas pedagógicas. A mídia
teria seu espaço garantido na escola mediante a
construção de sujeitos culturais, pergunto-me.
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Mídia e Juventudes: produzindo relações curriculares 57
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 43-57, jul./dez.2012
Notas
1 O Seminário Maior de Viamão é um local de preparação cristã para a vida no sacerdócio. Foi criado em
1955 e é vinculado à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul através de alguns cursos de
graduação acadêmica e formações religiosas.
2 Equipe vocacional é constituída por pessoas que orientam e prestam serviços pedagógicos aos Seminários
na preparação de futuros padres.
3 Esta informação foi retirada do site www.pucrs.mundojovem.br
4 Igreja Católica situada na Avenida Cristóvão Colombo, nº 1629, Bairro Floresta. Porto Alegre, Rio Grande
do sul.
5 Em determinadas edições se observou a presença dessa nova seção.
6 Campanha de uma emissora de televisão do Rio Grande do Sul que visa debater o cenário da educação
gaúcha apresentando, para tanto, especialistas de diversas áreas comentando sobre a educação.
7 Ver mais sobre processos de resistências em Foucault (2010).
Sobre as autoras:
Lisandra Veiga dos Santos: Mestra em Educação e Estudos Culturais (PPGEDU/UFRGS) e Professora
Anos Iniciais da Rede Marista no Rio Grande do Sul.
Elisabete Maria Garbin: Doutora em Educação e Estudos Culturais (PPGEDU/UFRGS) e Professora na
Faculdade de Educação/UFRGS).
58
59
* Endereço eletrônico: [email protected]
A concepção de Ensino Médio e de currículo expressa na proposta de São Paulo
Dirce Djanira Pacheco e Zan*
Resumo
Recentemente a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo promoveu mudanças no currículo para o
Ensino Médio das escolas da rede pública. Esse processo teve início no ano de 2008 com a publicação dos
primeiros documentos voltados para os ensinos Fundamental (II Ciclo) e Médio. Neste texto apresento - a
partir de retomada histórica do debate acerca da identidade do Ensino Médio no país e dos documentos
curriculares do governo federal divulgados desde os anos de 1990 - uma análise inicial dos documentos
curriculares de São Paulo no que se refere à concepção deste nível de ensino e de currículo focando, em
especial, as disciplinas de Ciências Humanas.
Palavras-chave: currículo, Ensino Médio, Estado de São Paulo.
High School and curriculum conceptions in the official document of São Paulo State
Abstract Recently the Department of Education of São Paulo promoted changes in the curriculum for high school
public level. This process began in 2008 with publication of the first documents to basic education (period II)
and high school. This paper point out – from a historical perspective about the discussion about the school
identity in the country and the federal government curriculum documents published since 1990´s – an initial
analysis of the curriculum documents of São Paulo State, focusing this scholar level, particularly, the
disciplines of Humanities.
Key-words: curriculum, high school, São Paulo State.
Durante os anos de 1980 o país viveu
ampla mobilização social em território nacional na
luta pela democratização e a ampliação de direitos
sociais dos brasileiros. A década se encerrou com
a aprovação de uma nova Constituição Federal
(1988), que selou o ciclo de lutas sociais e
políticas de resistência ao regime ditatorial-militar
iniciado em 1964. No texto constitucional
aprovado, no capítulo referente à Educação,
dentre outras novidades, é explicitado o
reconhecimento do Ensino Médio como direito de
todo cidadão brasileiro.
Alguns anos depois, na LDB (Lei de
Diretrizes e Bases da Educação) de 1996, este
direito foi reafirmado. O Ensino Médio passou a
ser compreendido como etapa final da Educação
Básica, implicando uma expansão dos anos de
escolaridade desejáveis para todo cidadão. É
importante ressaltar que a ampliação da Educação
Básica é uma mudança significativa que, até certo
ponto, reflete também a luta histórica de setores
da sociedade brasileira pela sua entrada e
permanência na escola até níveis mais elevados de
ensino.
Mas a conquista do direito ao Ensino
Médio não se deu de forma consensual. O
governo brasileiro levou certo tempo para assumi-
lo, o que, de certo modo, aponta para possíveis
tensões existentes, interna ou externamente ao
governo, que retardou a incorporação deste como
direito dos brasileiros. Exemplo de possíveis
dificuldades pode ser percebido quando da
participação do Brasil em seminário promovido
pela UNICEF (Fundo das Nações Unidas para
Infância) na cidade de Buenos Aires em setembro
de 2008. Naquele evento o governo brasileiro foi
cobrado para adotar o Ensino Médio como etapa
final de escolarização obrigatória no país. Frente à
pressão de lideranças políticas, a secretária de
Educação Básica do MEC, profa. Maria do Pilar
Lacerda, manifestou-se da seguinte forma: “Não
existe mais possibilidade de inserção no mercado
de trabalho sem o ensino médio. Isso força essa
discussão e não podemos fugir dela. Mas será um
tema polêmico.” (Disponível em http//e-
educador.com, acessado em 20/02/2009).
Mas no que consiste o Ensino Médio no
Brasil? Segundo a legislação vigente esse nível de
ensino tem como finalidades o aprofundamento
dos conhecimentos adquiridos no Ensino
Fundamental, a possibilidade de articulação entre
os conhecimentos teóricos e práticos de cada uma
das disciplinas, o aprimoramento do educando
como pessoa humana e a preparação básica para o
trabalho. Pode-se, até certo ponto, afirmar que a
LDB de 1996 definiu o Ensino Médio como etapa
final da Educação Básica, cujo objetivo maior
seria a formação geral dos estudantes.
Durante os últimos anos, foram
elaborados e divulgados diferentes documentos
curriculares e em 2006, sob a orientação do
governo Lula, o MEC novamente se manifestou
lançando as Orientações Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio. Algo que era cobrado desde
60 Dirce Djanira Pacheco e Zan
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012
o início do primeiro mandato do então presidente.
Em artigo publicado no ano de 2004, Lopes
(2004) posiciona-se veemente neste sentido. A
autora reconhece as dificuldades enfrentadas pelo
governo em desmontar dispositivos de regulação
das práticas curriculares estabelecidas em oito
anos (p. 109) do governo anterior, mas cobra a
necessidade de nova orientação da política
educacional de forma mais ampla.
É possível notarmos que o olhar para o
Ensino Médio vem se modificando nas últimas
décadas e que essa mudança pode ser entendida
como ressonância no âmbito do Estado das lutas e
reivindicações de diferentes setores. Se por um
lado existe a demanda por ampliação da
escolarização enquanto direito social, por outro
surgem mudanças no processo produtivo que
apontam para a necessidade de um trabalhador
mais flexível e com habilidades e competências
até então pouco exigidas.
A expansão do Ensino Médio, associada à
sua reorganização curricular, passou a ser vista
desde a última década, como fundamental para a
integração e a “sustentabilidade” do país no
mercado global. Em parte esse argumento é
reforçado por documentos de organismos
internacionais voltados para a política educacional
na América Latina e que, até certo ponto,
inspiraram os documentos curriculares brasileiros.
A preocupação em oferecer um Ensino
Médio que também promova a adaptação do aluno
às novas formas de organização do trabalho está
presente nos documentos curriculares nacionais
desde os anos de 1990. O documento de 19981,
por exemplo, expressa a orientação política
fundamentada nos princípios do neoliberalismo e
a preocupação com a constituição de um modelo
de Ensino Médio que proporcione a adaptação dos
jovens às atuais condições de trabalho. Segundo o
referido texto
...nas condições contemporâneas de
produção de bens, serviços e
conhecimentos, a preparação de recursos
humanos para um desenvolvimento
sustentável supõe desenvolver capacidade
de assimilar mudanças tecnológicas e
adaptar-se a novas formas de
organização do trabalho... (p. 18).
Nesse mesmo período, criou-se no país o
nível da Educação Profissional, que ocorreria
concomitante ou posteriormente ao Ensino Médio
e que teria por objetivo maior a
profissionalização, podendo ser oferecido em
instituições de ensino regular ou por diferentes
modalidades de educação continuada tanto em
instituições especializadas como no próprio local
de trabalho (LDB 1996, art. 40).
Cerca de uma década depois, o debate
sobre a finalidade formativa do Ensino Médio está
posta novamente. Em julho de 2008, o governo
federal divulgou documento intitulado
Reestruturação e Expansão do Ensino Médio no
Brasil que objetiva viabilizar a concretização de
um Ensino Médio integrado. Busca-se no texto
explicitar a identidade deste nível de ensino, ou
seja, ...configurar uma identidade do ensino
médio, como etapa da educação básica,
construída com base em uma concepção
curricular unitária, com diversidade de formas,
cujo princípio é a unidade entre trabalho, cultura,
ciência e tecnologia (BRASIL, 2008, p. 8).
É evidente, nos últimos anos, a ampliação
do interesse por parte de governos, seja federal ou
estadual, para com o nível médio de ensino. Os
jovens passaram a ser uma preocupação recorrente
nas políticas públicas mais recentes. Podemos
afirmar que desde a LDB de 1996 iniciou-se uma
corrida com a finalidade de ampliação e até
mesmo universalização desse nível de ensino.
Junto a esse processo de expansão, novas
diretrizes e orientações curriculares são
divulgadas, reafirmando o que Arroyo (1999)
apontava em outro momento, ou seja, o sentido
estratégico de se rever currículos e centrar neles o
foco em tempos de mudanças educacionais.
Neste contexto de retomada do debate
acerca da identidade do Ensino Médio e da
necessária articulação entre formação para o
trabalho e formação geral, o estado de São Paulo
dá início a uma nova empreitada na formulação de
documentos curriculares que passaram a nortear o
trabalho nas escolas públicas paulistas.
O Movimento em São Paulo
O ano letivo de 2008 iniciou com a
chegada nas escolas estaduais do que se tornou
conhecido como o Jornalzinho do Estado. Sob o
título São Paulo faz Escola, foi distribuído nas
escolas estaduais um Jornal impresso que trazia
notícias, curiosidades e sugestões de atividades2 a
serem desenvolvidas pelos professores de cada
uma das disciplinas do II ciclo do Ensino
Fundamental (5ª a 8ª séries) e do Ensino Médio
durante os 42 primeiros dias de trabalho.
O Jornal, escrito em uma linguagem
direta e focada no aluno, apresenta o conteúdo das
diferentes disciplinas, distribuído pela quantidade
de aulas de cada uma e destinado às várias séries.
Com temas atuais e partindo de questões
contemporâneas, estabelece, nos textos curtos que
apresenta, uma relação com conceitos e temas que
A Concepção de Ensino Médio e de Currículo Expressa na Proposta de São Paulo 61
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012
deverão ser ampliados pelo professor em sala de
aula. Sugere ainda atividades a serem realizadas
pelos alunos individual ou coletivamente. A opção
pela centralidade do texto como foco do trabalho
em sala de aula é enfatizada durante o material.
Segundo a Revista do Professor, distribuída na
rede posteriormente, o Jornal foi construído
levando em consideração os resultados do
SARESP3 (Sistema de Avaliação de Rendimento
Escolar do Estado de São Paulo) de 2005.
Para o Ensino Médio foram produzidas
cinco revistas contemplando as disciplinas:
Língua Portuguesa; Matemática;
Física/Química/Biologia;
Geografia/História/Filosofia e Arte/Língua
Estrangeira Moderna/Educação Física. Os textos
nelas apresentados são dirigidos aos professores
de cada uma das disciplinas e em cada uma das
três séries do Ensino Médio, com o objetivo de
detalhar as possibilidades de “aplicação” e de
avaliação das atividades propostas para o aluno no
Jornal (São Paulo, 2008, p. 11). Além desse
material impresso, Jornal e Revista para o
professor, a equipe gestora e os professores
receberam orientações por meio de vídeos
tutoriais que apresentavam princípios da
organização do material.
Nessa estratégia do governo paulista é
possível vislumbrarmos uma concepção de
divisão do trabalho pedagógico, já analisada por
outros autores e presente em diferentes momentos
de nossa história, ou seja, cabe à burocracia estatal
pensar e planejar o trabalho que será “aplicado”
pelo professor em sala de aula4. De certo modo,
essa concepção curricular, expressa no material
divulgado pela Secretaria de Educação de São
Paulo, reafirma o que Hypólito (1991) sinaliza ao
analisar o contexto das reformas curriculares do
final do século XX: a opção por um modelo
técnico-burocrático, caracterizado pela redução da
autonomia do professor em relação ao ensino e à
organização da escola.
São anunciadas, nessas Revistas, as
habilidades e competências que necessitam ser
recuperadas ou consolidadas pelos alunos em cada
uma das disciplinas durante o período de 42 dias.
São habilidades voltadas principalmente para o
raciocínio lógico-matemático, além de leitura e
escrita. A Revista do Professor reconhece o grave
problema enfrentado nos ensinos Fundamental e
Médio do estado que conta com a presença de
alunos que ainda não dominam a base alfabética
da escrita – entendida no referido documento
como a capacidade de compreender como se
representa a escrita no sistema alfabético,
realizando uma ação de ordem cognitiva - e que,
portanto, não conseguirão de forma plena
acompanhar as ações propostas. (2008, p. 17) O
documento define ainda como meta para o final
do ano de 2008 a alfabetização de todos esses
alunos.
No caso específico das disciplinas de
Ciências Humanas, revelou-se naquele momento
uma preocupação em iniciar o trabalho em cada
uma delas a partir da reflexão acerca das suas
respectivas “utilidades” na formação do jovem
estudante. Por que estudar História? Mas, afinal,
por que e para que estudar História? E o que
você tem com isso? São essas, por exemplo,
algumas das indagações iniciais do texto referente
à disciplina de História. Na Revista do Professor,
há orientações para que o ensino dessa disciplina
suscite em classe discussões sobre as questões,
procurando aprofundar a reflexão e superar
respostas superficiais e repetitivas. O material
propõe que o aluno entre em contato com uma
História que representa a própria identidade das
formações sociais (Jornal do Aluno, p. 19). A
disciplina é considerada importante para a
formação de cidadãos críticos por promover a
percepção da identidade social e da necessidade
de preservação da memória individual e coletiva.
Na Revista das disciplinas de Ciências
Humanas, ficam mais claras as habilidades que se
espera que os alunos adquiram. Elas estão
divididas entre aquelas voltadas para a leitura e
produção de texto e as relacionadas
especificamente com os conhecimentos
disciplinares.
Para a disciplina de Geografia, destaca-se
a importância de garantir, ao longo da Educação
Básica, que o aluno saiba interpretar e fazer uso
de conhecimentos geográficos tais como o da
cartografia. Diz a Revista do Professor:
considerando a leitura de mapas e
gráficos, instrumento indispensável para
a compreensão do espaço em todas as
suas dimensões, as atividades deste
caderno foram elaboradas retomando,
inicialmente, os referenciais de
orientação e localização, para
posteriormente se trabalhar com as
formas de representação do espaço em
sua dimensão gráfica e cartográfica. Os
conteúdos aqui trabalhados estão a
serviço da habilidade e, portanto, também
devem ser recolocados de forma a fazer
com que os alunos retomem conceitos
significativos para a sua formação geral
(SÃO PAULO, 2008, p. 18).
Tecendo críticas a um ensino de
Geografia centrado na descrição de paisagens ou
62 Dirce Djanira Pacheco e Zan
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012
no manuseio de uma cartografia obsoleta que não
leva em consideração os novos recursos
tecnológicos, representativos de uma Geografia
descritiva e mnemônica (p. 29), propõem-se
ensinar aos alunos os procedimentos que lhes
possibilite tirar informações e sensações dessas
novas expressões de comunicação resultantes da
junção dos diversos saberes e da disponibilidade
de novas formas de expressão do conhecimento.
(p. 29) Tal orientação para o ensino de Geografia
visa não apenas a garantia da aprendizagem de
habilidades importantes para a disciplina como
também contribuir para desenvolver habilidades
de síntese e ordenamento de informações além de
ampliar a capacidade do estudante de argumentar
e aprimorar o seu senso crítico (p. 29).
Ao final das orientações, enfatiza-se a
preocupação dos autores em garantir a
oportunidade aos alunos do Ensino Médio de
reverem conteúdos conceituais, procedimentais e
atitudinais indispensáveis à sua formação.
É possível notar aqui uma retomada do
discurso presente nos primeiros documentos
curriculares lançados pelo governo federal nos
anos de 1990. Segundo documento introdutório
dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino
Fundamental (BRASIL, 1997), os conteúdos
conceituais referem-se à construção ativa das
capacidades intelectuais dos indivíduos para
operar com símbolos, idéias, imagens e
representações que permitem organizar a realidade
(p. 74), enquanto que os conteúdos
procedimentais referem-se, de certo modo, à
capacidade de continuar aprendendo, de buscar
informações e de investigar. Nesse sentido, está
implícito que, ao se ensinar procedimentos,
também se ensina um certo modo de pensar e
produzir conhecimento. Os conteúdos atitudinais
permeiam todo o conhecimento escolar (p. 76) e
se referem às atitudes aprendidas pelos alunos
durante sua vida escolar, isto é, atitudes em
relação ao conhecimento, ao professor, aos
colegas, às disciplinas e à sociedade.
Essa forma de conceber os conteúdos está
fortemente marcada pela teoria cognitivista, que,
como já analisado por diferentes autores,
fundamentou os documentos nacionais naquele
momento, principalmente sob a influência do
pensamento de César Coll. Para Moreira (1997),
por exemplo, a perspectiva psicológica defendida
por esse autor manifesta-se de forma contundente
nos documentos de 1990. Nessa perspectiva,
qualidade de ensino é compreendida de forma
restrita às necessidade e interesses
individualmente considerados (p. 96). Há,
segundo Moreira (1997), uma desconsideração do
caráter político inerente a essa discussão. Da
mesma forma, a análise dos documentos paulistas
nos remete a essa compreensão individualizada da
aprendizagem e da qualidade de ensino.
De uma forma ampliada foi publicada,
alguns meses depois, a Proposta Curricular do
Estado de São Paulo com orientações curriculares
explícitas para cada uma das disciplinas. É
importante ressaltar a opção do Estado em
publicar cadernos organizados por disciplinas e
não pelas três grandes áreas definidas desde os
primeiros documentos curriculares nacionais
voltados para o Ensino Médio e divulgados pelo
MEC, ou seja: Linguagem, Código e suas
tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática e
suas tecnológicas e Ciências Humanas e suas
tecnologias. Mas, diferentemente dos documentos
federais, parece haver uma estratégia de
valorização dos conteúdos, pois, apesar de
centrar-se no desenvolvimento de competências e
habilidades, enfatiza-se a necessária garantia de
conteúdos disciplinares que serão definidos nos
documentos específicos das disciplinas.
O documento de apresentação da
proposta5 afirma que esta é resultado de
conhecimentos e práticas acumuladas, de síntese,
revisão e recuperação de documentos já
publicados sobre currículo no Ensino Médio, bem
como de diagnósticos feitos acerca da condição
das escolas. Afirma que a Secretaria de Educação
do Estado atuará a partir de amplo levantamento
do acervo documental e técnico pedagógico
existente e consultará escolas e professores,
visando a identificar, sistematizar e divulgar “boas
práticas existentes nas escolas”. De acordo com o
texto, essa proposta visa a proporcionar a todos os
estudantes da rede pública estadual paulista uma
base comum de conhecimentos e competências
para que as escolas funcionem como rede, e elege
como prioridade desta reforma a garantia da
competência da leitura e escrita na formação
desses alunos.
A partir de então, é possível observarmos
algumas concepções que são elucidadas no
documento curricular introdutório. A escola é
definida como espaço de cultura e de articulação
de competências e conteúdos disciplinares. Nesse
sentido, o documento anuncia uma compreensão
no mínimo ambígua ao afirmar que é possível e
desejável um currículo padrão para toda a rede,
uma vez que “alunos e professores são únicos”.
Dessa forma, explicita uma noção a-crítica acerca
da cultura ao não considerar os conflitos e
interesses distintos que permeiam os processos
culturais e a diversidade cultural que se manifesta
nas diferentes regiões do estado de São Paulo.
O adolescente, aluno por excelência dessa
etapa da Educação Básica, é entendido como
A Concepção de Ensino Médio e de Currículo Expressa na Proposta de São Paulo 63
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012
aquele que deixou de ser criança e se prepara para
a vida adulta, ou seja, um sujeito em
transformação. Ao assumir a adolescência nessa
perspectiva, o documento desconsidera o
adolescente enquanto sujeito no processo
educacional e social. Segundo Calligaris (2000),
essa concepção do adolescente tem criado uma
situação problemática para os jovens na
contemporaneidade, pois, ao mesmo tempo em
que são reconhecidos como aqueles que
necessitam ainda da tutela dos adultos, eles são
instigados a se tornarem indivíduos
independentes. Isso torna ainda mais penoso o
hiato que a adolescência instaura entre aparente
maturação dos corpos e ingresso na vida adulta.
Apesar da maturação dos corpos, a autonomia
reverenciada, idealizada por todos como valor
supremo, é reprimida, deixada para mais tarde (p.
17).
Como parte ainda do diagnóstico relatado
no documento, discorre-se sobre uma precocidade
da adolescência articulada com uma inserção
tardia no mercado de trabalho. Neste momento
não há nenhuma discussão mais aprofundada
acerca da afirmação feita, ou seja, pesquisas na
área do trabalho têm apontado para a expressiva
presença dos jovens entre os desempregados no
país. Segundo dados do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), em 2005, época
próxima à produção e divulgação da referida
proposta, o desemprego da população entre 15 e
24 anos era 3,5 vezes maior do que o medido
entre os trabalhadores que haviam ultrapassado
essa faixa etária6. Nesse sentido, torna-se
superficial a afirmação acerca da tardia inserção
no mercado de trabalho, pois ela parece resultar
muito mais de questões estruturais vividas pelo
país naquele momento do que de uma opção dos
jovens estudantes. Além disso, pesquisadores
como Dayrell, têm apontado em seus estudos que,
para muitos jovens brasileiros, trabalhar é
condição imprescindível para viver sua condição
juvenil.
O Governo do Estado apresenta, a partir
desta proposta curricular, sua concepção acerca da
educação que julga necessária para o contexto
atual, ou seja, uma educação geral, articuladora,
que transite entre o local e o mundial (São Paulo,
2008). Construir identidade, agir com autonomia
e em relação com o outro, e incorporar a
diversidade são as bases para a construção de
valores de pertencimento e responsabilidade,
essenciais para a inserção cidadã nas dimensões
sociais e produtivas. Preparar indivíduos para
manter o equilíbrio da produção cultural, num
tempo em que a duração se caracteriza não pela
permanência, mas pela constante mudança –
quando o inusitado, o incerto e o urgente
constituem a regra e não a exceção -, é mais um
desafio contemporâneo para a educação escolar
(p. 6).
O documento defende princípios que
norteiem um currículo comprometido em garantir
uma formação que atenda às demandas e
modificações do mundo contemporâneo. Aponta
para a necessidade de se compreender a escola
como espaço de aprendizagem e no qual a
convivência passa a ser encarada de forma
intencional, ou seja, como situação de
aprendizagem. Fundamentando-se na LDB
9394/96, o texto afirma que foi a partir da referida
lei que se passou a conceber a aprendizagem
enquanto direito (p. 9).
O currículo é definido como espaço de
cultura. Currículo, diz o texto oficial, é a
expressão de tudo o que existe na cultura
científica, artística e humanista, transposto para
uma situação de ensino e aprendizagem (p. 8).
Essa afirmação desconsidera o caráter seletivo do
currículo, ignora a ampla produção acadêmica que
tem se intensificado desde os anos de 1990 no
país e que apresenta o currículo como espaço de
luta e embates sociais, culturais e políticos. Ao
defender que se parta das competências como
referência, isto é, ao aceitar o desafio de promover
os conhecimentos próprios de cada disciplina
articuladamente às competências e habilidades do
aluno... (p. 8), assume-as como aquelas que
caracterizam os modos de ser, raciocinar e
interagir que podem ser depreendidos das ações e
das tomadas de decisão em contextos de
problemas, tarefas ou atividades... (p. 9).
Essa opção do currículo por competência
está relacionada, segundo o próprio documento,
com o compromisso por uma escola democrática.
No momento em que se conclui o processo de
universalização do Ensino Fundamental e se
incorpora toda a heterogeneidade que caracteriza
o povo brasileiro – afirma o documento – a
escola, para ser democrática, tem de ser
igualmente acessível a todos, diversa no
tratamento de cada um e unitária nos resultados.
(p. 10). Para a construção da unidade, é portanto
necessário se enfatizar o que é indispensável: que
todos tenham aprendido no final do processo,
visando a ...garantir igualdade de oportunidades,
diversidade de tratamento e unidade de
resultados... (p. 10). A justificativa para um
currículo centrado nas competências aparece
posteriormente no documento ao afirmar-se que
as competências são mais gerais e constantes, e
os conteúdos, mais específicos e variáveis... (p.
13).
As competências adotadas pela proposta
64 Dirce Djanira Pacheco e Zan
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012
curricular são definidas a partir do referencial
teórico do Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM): dominar a norma culta da Língua
Portuguesa e fazer uso da Linguagem Matemática;
construir e aplicar conceitos das várias áreas do
conhecimento para a compreensão de fenômenos
naturais, de processos histórico-geográficos, da
produção tecnológica e das manifestações
artísticas; selecionar, organizar, relacionar,
interpretar dados e informações representadas de
diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar
situações-problema; relacionar informações,
representadas em diferentes formas, e
conhecimentos disponíveis em situações
concretas, para construir argumentação
consistente; e recorrer aos conhecimentos
desenvolvidos na escola para elaborar propostas e
intervenção solidária na realidade, respeitando os
valores humanos e considerando a diversidade
sociocultural - todas elas convergindo para a
competência maior da leitura e escrita, que deve
ser assumida como objetivo da formação no
Ensino Médio, pois é na adolescência que a
linguagem adquire essa qualidade de instrumento
para compreender e agir sobre o mundo real (p.
11) (grifos da autora), afirma o texto oficial.
A proposta compreende a leitura como a
capacidade do estudante de interpretar, atribuir
sentido ou significado; compreender, assimilar
experiências ou conteúdos disciplinares; antecipar
ação para intervir no fenômeno e resolver
problemas dele decorrentes; sintetizar a
capacidade de escutar, supor, informar-se,
relacionar, comparar, etc; e descrever,
compreender, argumentar a respeito de um
fenômeno. Da mesma forma a escrita tem seu
sentido ampliado e é assim definida pelo
documento: assumir autoria individual ou
coletiva; expressar sua construção ou reconstrução
com sentido, aluno por aluno; dominar os muitos
formatos que a solução do problema comporta;
dominar os códigos que expressam a defesa ou
reconstrução de argumentos, além de construir um
plano para essa intervenção.
Diferentes autores têm se posicionado
criticamente acerca do currículo por
competências, que ganha destaque desde os
primeiros documentos brasileiros dos anos de
1990. Segundo Zibas (2005), as primeiras críticas
a essa concepção “apontaram a origem do
conceito no modelo de competências
desenvolvido na área empresarial para a seleção e
treinamento de trabalhadores (p. 27).
Posteriormente, o aporte psicológico da pedagogia
das competências foi criticado por visar à
construção do novo profissionalismo” (p. 28), ou
seja, é um modelo que enfatiza os aspectos
subjetivos dos alunos e que, de certo modo, está
em sintonia com as mudanças do processo
produtivo atual, que visa a uma melhor adequação
do trabalhador às novas formas de organização do
mundo do trabalho.
A proposta curricular visa a atingir
também a gestão da escola. Chama à
responsabilidade os gestores - considerados no
documento de apresentação da proposta como os
responsáveis pela formação continuada dos
professores - para proporcionarem o
desenvolvimento das capacidades de leitura e
escrita também nos professores, ou seja, criar
oportunidades para que os docentes desenvolvam
essas competências.
A proposta retoma, de certo modo, a
orientação presente nos documentos de uma
década atrás, ou seja, a necessidade de se garantir
a relação entre o que se aprende na escola com a
vida cotidiana dos estudantes. Defendendo que se
a educação básica é para a vida, a quantidade e a
qualidade do conhecimento têm de ser
determinadas por sua relevância para a vida de
hoje e do futuro, além dos limites da escola. (p.
13) Porém, como naqueles primeiros documentos,
apresenta uma compreensão acrítica da vida
contemporânea, há uma nítida intenção de que a
escola instrumentalize seus alunos para se
adaptarem a realidade atual sem levantar qualquer
tipo de questionamento acerca desta realidade.
É no contexto do trabalho que se pretende
efetivar a contextualização desta reforma
curricular. Retomando os Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio e assumindo-os
como também balisadores para o Ciclo II do
Ensino Fundamental. O trabalho é assumido como
tema e como valor na proposta aqui apresentada.
Segundo o documento de apresentação da
proposta, as Diretrizes Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio abriram a possibilidade para
que os sistemas de ensino ou as escolas tenham
ênfases curriculares diferentes, ...com autonomia
para eleger as disciplinas específicas e suas
respectivas cargas horárias dentro das 3 grandes
áreas instituídas pelas DCN´s, desde que
garantida a presença das três áreas...(p. 19). No
entendimento da Secretaria de Educação de São
Paulo, isto permite que escolas de Ensino Médio
articulem seu projeto pedagógico a cursos de
educação profissional de nível técnico e/ou que
possam oferecer disciplinas que depois serão
aproveitadas no curso profissionalizante. Aponta-
se, portanto, que o currículo do Ensino Médio seja
definido com base em conteúdos disciplinares
constituintes de competências básicas que sejam
também pré-requisitos de formação profissional.
Talvez este seja o caso, por exemplo, da ênfase na
A Concepção de Ensino Médio e de Currículo Expressa na Proposta de São Paulo 65
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012
tecnologia.
A presença da tecnologia como norteador
desta proposta é então compreendida como
educação tecnológica básica e como fundamento
necessário à compreensão do desenvolvimento
científico e tecnológico da produção. Aponta-se
para a necessidade de se garantir durante a
Educação Básica a alfabetização tecnológica
básica, ou seja, entender as tecnologias da história
humana como elementos da cultura.
Posteriormente, num processo de educação
tecnológica básica, visa à preparação dos
estudantes para viverem neste mundo
tecnologizado.
Há a defesa da diversificação do Ensino
Médio, que, até certo ponto, materializa-se na
flexibilização do currículo e na ênfase cada vez
maior em proporcionar uma formação
profissionalizante dos jovens estudantes desse
nível de ensino. Várias têm sido as iniciativas do
Estado neste sentido7 que merecem ser estudadas
e acompanhadas por pesquisadores da área.
Essa concepção de certo modo mostra-se
inspirada em documentos de organismos
internacionais divulgados no início dos anos 2000.
Documento publicado pela UNESCO em 20028
apontava para a necessidade de que os países
latinos oferecessem a cada jovem entre 16 e 18
anos uma educação básica de 12 anos, além de
diversificar a oferta do que é ali chamado de
“Educação Secundária”. Tal diversificação
possibilitaria atender às necessidades de uma
população estudantil muito exigente, segundo o
referido documento, permitindo assim que cada
um pudesse explorar seus interesses e aptidões
visando a uma inserção positiva e criativa no
mundo dos adultos. ...O mais importante (hoje) –
afirmam Caillods e Hutchinson – é dispor de uma
força de trabalho formada competitiva e flexível
(p. 24).
Desse modo se justifica, até certo ponto, a
ênfase dos documentos curriculares dos últimos
anos, na garantia do desenvolvimento de
competências e habilidades. Segundo Caillods e
Hutchinson (2002), as novas tecnologias
transformaram profundamente a organização do
trabalho e, portanto, são necessárias agora
competências transversais, como capacidade de
ser criativo, solucionar problemas concretos,
tomar decisões de maneira autônoma, trabalhar
em equipe e saber aprender... (p. 26).
No caso específico das Ciências
Humanas, o documento de apresentação da
proposta curricular paulista reconhece como
disciplinas que compõem essa área as de História,
Geografia, Filosofia, Sociologia e Psicologia,
além de outras como Política, Antropologia e
Economia. Enfatiza-se o caráter interdisciplinar da
área e a importância da mesma no auxílio dos
jovens para a compreensão de questões que os
afetam, além de contribuir para as tomadas de
decisões diante dos problemas que se apresentam
no início do século XXI. Aparentemente
poderíamos entender que há uma preocupação e
se atribui papel relevante para esta área, mesmo
em um currículo comprometido com a formação
para o mercado de trabalho. Entretanto, ao
analisarmos, por exemplo, o caso da disciplina de
Sociologia, fica evidente a contradição no
discurso expresso no documento. Vejamos o caso
dessa disciplina no currículo paulista.
O retorno da Sociologia ao currículo do
Ensino Médio no estado se deu a partir do ano de
2009. Apesar de resolução do Conselho Nacional
de Educação (CNE) datada de 2006, que tornava
as disciplinas de Filosofia e Sociologia
obrigatórias no currículo do Ensino Médio, esta
última não foi incorporada à matriz curricular das
escolas paulistas naquele momento. Com a
aprovação da Lei 11.684/2008 pelo MEC, que
torna obrigatória a presença das duas disciplinas,
o Governo de São Paulo anunciou a inserção da
Sociologia a partir do ano letivo de 2009. No
entanto, a forma como ela retorna ao currículo
tem causado discussões e debates.
Segundo o jornal Folha de São Paulo9, a
entrada da disciplina de Sociologia representaria a
supressão de aulas de História no currículo do
Ensino Médio. Em matéria intitulada Aluno de
Escola Estadual terá 80 aulas de História a
menos, a reportagem diz que o governo estadual
afirma não ser possível ampliar a jornada diária de
estudantes e professores do Ensino Médio, sendo
assim, para acatar a lei federal que inclui a
disciplina de Sociologia e amplia a carga horária
da disciplina de Filosofia, a única saída foi reduzir
aulas das disciplinas de História, Educação Física
e Geografia no período diurno, além da disciplina
de língua estrangeira (em geral, inglês ou
espanhol) no período noturno. Tal opção do
governo para inclusão da disciplina possivelmente
provocou resistência de colegas no interior da
escola, que viram suas disciplinas terem a carga
horária reduzida ou assumiram, mesmo sem
formação específica, as aulas de Sociologia como
forma de não perderem aulas e terem seus salários
reduzidos.
Reações Iniciais
Em matéria intitulada “Reforma
Curricular em São Paulo: a contra-mão do
progresso”, disponível no site “professor
temporario.wordpress.com”, um grupo de
66 Dirce Djanira Pacheco e Zan
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012
professores se manifesta contrário à proposta
curricular do estado, principalmente no que se
refere ao que chamam de semi-profissionalização
do Ensino Médio. Além disso, criticam a proposta
por restringir o conteúdo a ser disponibilizado aos
alunos paulistas, limitando-os ao conhecimento
básico da leitura e dos fundamentos da
Matemática.
Em maio de 2008, o Fórum da Graduação
promovido pela ANPUH (Associação Nacional de
História) – Seção São Paulo teve como objetivo
discutir a proposta curricular da disciplina de
História do Estado de São Paulo, implantada na
rede pública paulista a partir do ano letivo de
2008. Nessa reunião, ocorrida na USP, estiveram
presentes representante da Secretaria Estadual da
Educação - professor Paulo Miceli, autor do
documento de História - professores das
Universidades paulistas, públicas e particulares,
membros do GT (Grupo de Trabalho) de Ensino
da referida Associação, do Conselho Consultivo e
da Diretoria da Seção São Paulo da Anpuh, além
de professores dos ensinos fundamental e médio.
Dessa reunião resultou uma moção
publicada no site da entidade com o objetivo de
registrar contradições e inconsistências relativas
a esta Proposta Curricular de História. São
destacadas principalmente a concepção de
currículo implícita na proposta e o seu processo de
implantação, que reduz o professor a mero
executor de propostas elaboradas a priori, de
maneira unidimensional, desconsiderando
projetos em desenvolvimento nas escolas, bem
como as discussões acumuladas nos últimos trinta
anos, envolvendo pesquisas sobre a história das
disciplinas escolares, saberes históricos
escolares, culturas escolares e saberes docentes,
dentre outras.
O documento aponta para a dubiedade do
texto curricular, pois, apesar de nas proposições
mais gerais e nos princípios da Proposta
Curricular ser mencionada concepção curricular e
educacional pautadas por uma perspectiva sócio-
histórica, esta não é de fato incorporada. Pelo
contrário, o conjunto de documentos
apresentados, apesar de referir-se à autonomia,
ao pensar crítico, como metas educacionais a
serem colocadas em práticas por docentes e
discentes, acaba, ambiguamente, negando-os. A
lógica que prevalece é a de um sistema
interessado numa produtividade mensurável,
politicamente controlada, por meio de
procedimentos avaliativos padronizados e
mecanicamente colocados em ação.
Outra reação organizada foi a da
APEOESP (Associação de Professores do Ensino
Oficial de São Paulo), que, após reunião com
pesquisadores, manifestou-se no Boletim
intitulado “Proposta Curricular do Estado de São
Paulo: uma análise crítica”. Dentre as principais
críticas estão a maneira como a proposta foi
inserida na rede, ou seja, sem a necessária
participação de todos os envolvidos direta ou
indiretamente no processo educacional escolar; a
desconsideração acerca da diversidade cultural do
estado presente na proposta e a posição de
“aplicador de currículo” que é atribuída aos
professores da rede. O documento afirma que o
currículo apresentado no documento é restrito e
retira a autoria do trabalho didático e a autonomia
docente. Nesse sentido, a entidade analisa que
essa proposta está alinhada com as diretrizes
sociais e econômicas do chamado capitalismo
globalizado. E aponta que esta concepção social e
econômica tem demonstrado não ser eficiente na
resposta às necessidades da sociedade em relação
ao trabalho, saúde, educação, lazer...
Na análise apresentada pela entidade há
uma confluência no que tenho apresentado neste
texto, ou seja, uma compreensão de que a
proposta curricular paulista se aproxima das
orientações curriculares difundidas pelos
organismos internacionais a partir dos anos de
1990. Da forma como estão organizados, os
Cadernos podem ser vinculados aos famosos
guias didáticos expressamente orientados pelas
políticas educacionais do Banco Mundial, afirma
o Boletim.
O documento termina por conclamar os
professores a se organizarem e posicionarem
criticamente frente a esta proposta no momento do
planejamento que se iniciava no ano de 2009. A
forma como os professores têm se manifestado
acerca destes documentos carece ainda de estudos.
Algumas Considerações
É possível observarmos uma aproximação
do discurso curricular da proposta paulista com o
presente nos documentos curriculares publicados
nos anos de 1990, tendo como ênfase o objetivo
de promover o desenvolvimento de competências
e habilidades, principalmente aquelas voltadas
para a leitura e escrita.
Apresenta-se uma concepção do professor
como “aplicador da proposta”. É também
retomada uma noção de padronização da
aprendizagem, desconsiderando tantas pesquisas
que apontam para esta como uma atividade de
apropriação do conhecimento que é cultural,
histórica, social e singular.
Na busca de garantir a implementação da
proposta curricular, há um envolvimento da
equipe gestora que passa a ser estratégica no
A Concepção de Ensino Médio e de Currículo Expressa na Proposta de São Paulo 67
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012
processo atual.
São necessários estudos que aprofundem a
análise sobre os documentos apresentados pelo
estudo, bem como aqueles que se voltem para o
cotidiano escolar com o objetivo de analisar esse
processo.
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nos anos de 1990: o parto da montanha e as novas
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68 Dirce Djanira Pacheco e Zan
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 59-68, jul./dez.2012
Notas
1 Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM).
2 Texto que compõe a apresentação escrita pela Coordenadora do Projeto, profa. Maria Inês Fini.
3 Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) tem por objetivo avaliar
o Ensino Básico nas escolas públicas do estado. Desde 1996 é aplicado anualmente.
4 Uma leitura importante sobre o tema é a do artigo Neotecnicismo e Formação de Professores de Luiz
Carlos de Freitas, publicado no livro Formação de Professores: pensar e fazer organizado por Nilda Alves
e editado pela Cortez em 1992.
5 SÃO PAULO. Proposta Curricular para Ensino Fundamental (Ciclo II) e Ensino Médio. Documento de
Apresentação. 2008. Disponível em www.fazendoescola.sp.gov.br
6 www.ipea.gov.br
7 Quanto à diversificação do Ensino Médio, em conferência proferida pela profa. Maria Inês Fini –
coordenadora da proposta curricular do estado de São Paulo - no Seminário Os Desafios do Ensino Médio,
ocorrido na Unicamp em 07 de novembro de 2008, se informou que o estado em parceria com o município
de Indaiatuba, por exemplo, ofereceu naquele ano 2.600 vagas para estudantes matriculados no ensino
médio estadual frequentarem gratuitamente um dos cursos técnicos oferecidos pela Fundação Indaiatubana
de Educação e Cultura (Fiec).
8 BRASLAVSKY, Cecília (org.) Educação Secundária: mudança ou imutabilidade? Brasília: UNESCO,
2002.
9 Matéria publicada em 06 de dezembro de 2008 no Caderno Cotidiano.
Sobre a autora:
Dirce Djanira Pacheco e Zan: Docente do Programa de Pós Graduação em Educação da Faculdade de
Educação- Unicamp.
69
*Endereço eletrônico: [email protected]
** Endereço eletrônico: [email protected]
Corpo, comida e cultura: Discussão e problematização os padrões contemporâneos de
beleza/saúde no ensino de ciências1
Tatiana Souza de Camargo*
Nádia Geisa Silveira de Souza**
Resumo
A educação escolarizada tem abordado o corpo humano como fenômeno puramente biológico, um conjunto
de sistemas e órgãos do qual se estudam características e funcionamentos, sem abordar aspectos
sócio/histórico/culturais que o inscrevem constantemente. Atualmente, os meios de comunicação divulgam
muitas informações a respeito do corpo. Elas propõem padrões de aparência que investem na magreza e
juventude como sinônimos de saúde, responsabilizando o indivíduo pela administração de seu corpo.
Entendendo a escola como um espaço privilegiado no aprendizado de conhecimentos sobre o corpo e seus
cuidados, discutimos a necessidade de nela pensarmos o corpo em contínua construção, trazendo neste artigo
o relato da experiência realizada em oficinas para estudantes de Pedagogia, cujo objetivo foi desenvolver
abordagens complexas à temática da alimentação. Sem a intenção de prescrever novos modelos para o ensino
de ciências, acreditamos que com esse tipo de estudo, talvez, possamos contribuir com outras formas de
compreensão do corpo, não como acontecimento inevitável e estabilizado na história, mas como efeito das
circunstâncias vividas e que pode, portanto, ser criticado e recriado de outras maneiras.
Palavras-chave: ensino de ciências – corpo – alimentação.
Body, food and culture: Discussion and problematization of the contemporary beauty/health standards
in science education
Abstract
School education has been teaching the human body as purely biological phenomenon, a set of systems and
organs, concerning about its characteristics and functioning, without addressing its socio/historical/cultural.
Currently, the media shows a lot of information about the body. Its propose standards of appearance that
invest in thinness and youth as synonymous of health, blaming the individual for the administration of
his/her body. Understanding the school as a privileged space of learning of knowledges about the body and
its care, we discussed the need to consider the continuous body construction, bringing in this article the story
of experience held in workshops for students of pedagogy, whose goal was to develop complex thematic
approaches to food. Without the intent to prescribe new models for the science education, we believe that this
type of study may be able to contribute with other forms of understanding the body, not as an event
inevitable and stabilized in history, but the effect of circumstances lived and which can, therefore, be
criticized and recreated in other ways.
Keywords: science education – body – alimentation.
70 Tatiana Souza de Camargo, Nádia Geisa Silveira de Souza
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012
Introdução
Exageros à parte, o humor desta história
em quadrinhos se constrói com base num conjunto
de valores e sentimentos partilhados por muitas
pessoas, na atualidade – especialmente as
mulheres. Nas sociedades como a brasileira
contemporânea, os conceitos de saúde e de
cuidados com o corpo tornaram-se centrais no
processo de construção das subjetividades
(CAMARGO, 2012). Nesse sentido, o corpo ideal
passou a ser o corpo civilizado, controlado
racionalmente; na mesma medida em que os seus
cuidados passaram a ter o objetivo de manter a
boa saúde e aumentar a longevidade, sem muitos
questionamentos sobre as condições e demandas
dessa manutenção. Dessa forma, os cuidados de si
despendidos a esse corpo passaram a estruturar-se
a partir da tríplice “exercício = boa forma =
saúde” (LUPTON, 1995: 71). E possuir esta saúde
– espécie de bem cuja posse necessita ser
constantemente reafirmada; que é tornada visível
através do corpo magro, firme e exercitado –
parece ser uma questão de bom gosto, de
autonomia, de desenvolvimento pessoal.
Tal modelo de cuidados corporais
contribuíram /para que, em 2006, o Brasil fosse
considerado o maior consumidor per capita de
medicamentos para emagrecer (9,1 doses diárias
por mil habitantes), sendo seguido pelos Estados
Unidos (7,7) e a Argentina (6,7), de acordo com
um relatório elaborado pela Organização Mundial
da Saúde, divulgado pelo Instituto Brasileiro de
Opinião Pública e Estatística (IBOPE, 2007).
Ainda nesse sentido, na pesquisa global realizada
pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica,
relativa aos dados do ano de 2009, o Brasil ficou
em segundo lugar no número de procedimentos
cosméticos cirúrgicos e não cirúrgicos, e foi o país
que realizou o maior número de lipoaspirações
(ISAPS, 2010). Nesta direção, um estudo
realizado em Porto Alegre, com mulheres de 12 a
29 anos, mostrou que somente um terço das que
desejavam emagrecer apresentavam IMC2
compatível com excesso de peso (NUNES et al,
2003). Por outro lado, pesquisas realizadas em
diferentes cidades brasileiras, incluindo capitais e
cidades do interior, com crianças e adolescentes
em idade escolar, apresentaram altos percentuais
de entrevistados insatisfeitos com seu corpo
(FERNANDES, 2007; TRICHES, GIUGLIANI,
2007; PINHEIRO, GIUGLIANI, 2006;
Corpo, comida e cultura: Discussão e problematização os padrões contemporâneos de beleza/saúde no ensino 71
de ciências
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012
PINHEIRO, GIUGLIANI, 2006b).
Com base nestes dados, entendemos que,
mais do que a supervalorização da magreza, o que
acontece na sociedade brasileira atual é a aversão
à gordura, ao gordo – uma lipofobia. Em meus
trabalhos venho utilizando o conceito de lipofobia
como a atitude de busca incessante pela magreza
e, ao mesmo tempo, de rejeição quase maníaca à
obesidade e ao obeso, num sentido próximo ao
proposto por Fischler (1995).
Diante disso, acreditamos que a
problematização de tais padrões de
beleza/saúde/magreza aliada a discussão dos
modelos de cuidados corporais da atualidade
apresentam-se como um assunto de relevância
política para a área da educação e da promoção da
saúde no Brasil, considerando que discursos
contemporâneos em torno de um corpo padrão de
beleza/saúde vêm gerando, de modo crescente,
sentimentos de insatisfação das pessoas em
relação ao próprio corpo.
A escola, como um espaço privilegiado no
aprendizado de conhecimentos sobre o corpo e
seus cuidados, pode contribuir bastante para que
se estabeleça tal espaço de problematização e
discussão, desde que sejam incorporadas outras
abordagens e temáticas ao currículo escolar
tradicional. No sentido de se pensar um ensino de
ciências que trabalhe com uma noção mais
complexa deste fenômeno biossocial que é o
corpo, trazemos, nesse artigo, um relato e algumas
discussões relevantes acerca de um conjunto de
atividades, organizadas em uma oficina, que
temos realizado com alunos do curso de
graduação em Pedagogia, da Faculdade de
Educação da UFRGS, voltada à problematização e
desnaturalização dos modelos e prescrições de
cuidados com a alimentação e com o corpo na
atualidade – o que passamos a narrar e discutir.
O corpo como uma construção biossocial:
discutindo algumas estratégias para o ensino
escolar
Esse foi o título atribuído a atividade, na
modalidade de oficina, que realizamos com os
alunos do curso de Pedagogia, sendo que alguns
deles já atuavam como professores.
Nessa oficina, a temática da alimentação,
compreendida como uma atividade cotidiana,
contínua e universal, que alia aspectos biológicos
da nutrição a componentes culturais e simbólicos,
ao atuar na constituição dos corpos (FISCHLER,
1990; MACIEL, 1996), foi escolhida como eixo
orientador de diferentes atividades. Tínhamos
como principais propósitos pensar sobre a
possibilidade de outras abordagens para a
temática da alimentação, que tratem dos hábitos
alimentares como construção, dos gostos como
aprendizagens e suas influências nos processos
fisiológicos da digestão, dos cuidados com a
alimentação e o corpo, presentes na mídia, como
práticas a serem debatidas e questionadas.
O ponto de partida foi uma discussão
breve de como os temas alimentação e corpo são
mostrados nos Parâmetros Curriculares Nacionais
do Ensino Fundamental (Ciências Naturais, Meio
Ambiente e Saúde Séries Iniciais e Finais), com o
propósito de analisar os discursos presentes nessas
proposições curriculares e apontar as possíveis e
necessárias articulações com as culturas, as
sociedades e o consumo.
Discutimos que, especialmente nos
Parâmetros Curriculares voltados ao ensino nas
Séries Iniciais, a abordagem feita ao tema da
alimentação restringe-se aos seus aspectos
nutricionais (componentes nutricionais, dieta
saudável, etc.), às suas ligações com a higiene e
prevenção de doenças, e ao seu significado
ecológico (teia alimentar). Nos Parâmetros
Curriculares voltados para as Séries Finais, apesar
de a abordagem concentrar-se nos mesmo temas
indicados para as Séries Iniciais, são traçadas
algumas relações com aspectos sócio-culturais da
alimentação, chamando a atenção principalmente
para as questões de consumo e a influência do
marketing no desenvolvimento de hábitos
alimentares considerados “inadequados”.
Dessa forma, os Parâmetros Curriculares
Nacionais do Ensino Fundamental, sejam os das
Séries Iniciais ou os das Finais, ao trabalharem as
relações entre alimentação e corpo, ainda
centram-se na idéia do organismo biológico e
deixam de problematizar as múltiplas e cotidianas
interpelações sofridas pelos corpos dos
estudantes, dos professores, dos pais, como os
enunciados de corpo magro/jovem/saudável
mostrados em revistas, rótulos de alimentos,
propagandas, e que propõem uma gama de
práticas das quais os indivíduos devem lançar mão
na busca por sua adequação corporal e identitária;
o que supostamente o levaria à integração ao
grupo socialmente mais valorizado e feliz; a
constituir-se como o sujeito que tem consigo
próprio o cuidado adequado; que gosta de si
mesmo, que se cuida e que está sempre alerta
(MISKOLCI, 2006).
Após essas discussões passamos à
realização de atividades em grupos. As oficinas
foram filmadas, e os materiais produzidos pelos
participantes foram fotocopiados ou fotografados.
Gostar dos alimentos
72 Tatiana Souza de Camargo, Nádia Geisa Silveira de Souza
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012
Esse foi o nome dado à primeira
atividade. Nela o grupo deveria discutir por que
comemos. Após a discussão, cada componente do
grupo, individualmente, fecharia os olhos e
procuraria lembrar-se de um alimento de que
gosta, anotando o alimento, as lembranças e as
sensações que teve.
A seguir, ao olhar para os alimentos
oferecidos – chocolate, barra de cereais, copo de
água e fruta – cada componente do grupo prestaria
atenção em alterações ocorridas em seu corpo,
anotando as percepções. Em seguida, cada um/a
morderia e mastigaria os alimentos e tomaria
água, prestando atenção ao que ocorre e deveria
contar aos demais componentes do grupo o que
percebeu daquilo que ocorreu na boca e no trajeto
dos alimentos ao serem deglutidos, anotando o
que estava sendo dito.
O grupo deveria, ainda, discutir sobre o
trajeto que os alimentos fazem no corpo para
serem utilizados na nutrição e depois eliminados.
Por fim, deveriam produzir um cartaz mostrando
o trajeto do alimento para ser utilizado e
eliminado pelo corpo, para posterior explicação
no grande grupo.
Nas discussões sobre por que comemos,
os integrantes do grupo enfatizaram o aspecto da
comensalidade, da convivialidade. Reportaram
memórias de família, as lembrança do gosto
inesquecível da comida da avó. Além disso,
ressaltaram a refeição como uma oportunidade de
reunião com a família. Alguns integrantes
comentaram que podemos comer também por
ansiedade e para suprir “carências emocionais” –
neste caso, dando preferência para comidas
específicas que parecem oferecer uma sensação de
conforto, como o chocolate. O prazer também foi
apontado como um dos motivos pelos quais
comemos, mas estando sempre ligado com uma
idéia de culpa – caso do leite condensado, narrado
como um alimento bastante calórico, que na
infância era uma comida muito prazerosa e que,
para os integrantes do grupo, tem agora um
sentido de “pecado”.
Cabe destacar que, embora todos os
participantes tivessem escolarização em nível
superior e atuassem como professores, a maioria
teve dificuldades em dizer o que acontece com o
alimento até o nível do estômago, poucos falaram
sobre os processos acontecidos nos intestinos e
menos ainda foram os que conseguiram relacionar
a absorção de nutrientes com circulação e
respiração celular. Isso mostra, em certa medida,
que as abordagens escolarizadas do corpo pouco
contribuem para que as pessoas conheçam tanto
os processos que ocorrem nos seus corpos, quanto
as relações existentes entre eles e também com o
meio.
Corpo, comida e cultura: Discussão e problematização os padrões contemporâneos de beleza/saúde no ensino 73
de ciências
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012
Essa atividade visava gerar discussões a
respeito da construção do hábito alimentar, dos
gostos (por exemplo, não gostar de verduras
associado a seu uso na alimentação de animais),
os comportamentos, os horários, os modelos, os
motivos – nos âmbitos da cultura, da família, da
mídia, da tradição regional, enfim, num processo
histórico-social. A alimentação geralmente
abordada na sala de aula a partir do discurso
biomédico da nutrição e da saúde considera
apenas aspectos da dieta equilibrada e da
anatomo-fisiologia do sistema digestivo,
megligenciando esses outros saberes construídos
em outras vivências sociais.
Outro aspecto tratado nesta atividade
refere-se às percepções de que as manifestações
fisiológicas do corpo - por exemplo, as
modificações no sistema digestivo - encontram-se
em interrelação com o meio e outros órgãos – os
olhos (o visual), o nariz (o olfato), o cérebro (a
memória, as lembranças, a identificação de
sensações). Ou seja, as modificações no sistema
digestivo iniciam antes de comermos os
alimentos, integrando não só o funcionamento do
corpo, mas também elementos aprendidos nas
práticas culturais. Essa atividade visava, ainda, a
discutir as noções dos participantes sobre os
motivos pelos quais comemos: saciar a fome,
prazer, ansiedade, suprir necessidades energéticas
e funcionais, crescimento, entre outros citados.
Escolhas alimentares
Este foi o nome dado à segunda atividade,
que se dividia em três etapas. Em uma primeira
etapa, os integrantes do grupo deveriam imaginar
que estavam na hora do almoço. Deveriam então,
montar um prato (desenho, figuras, palavras) com
aqueles alimentos que geralmente compõem o
almoço de cada um deles durante a semana. Após
a montagem do prato, eles deveriam explicar as
escolhas dos alimentos a serem ingeridos.
Na segunda etapa, os integrantes do grupo
deveriam imaginar que estavam encarregados da
organização de uma festa, em que cada um/a
ficaria responsável por levar um prato. Deveriam,
então, imaginar qual prato cada um dos
integrantes do grupo levaria. Em seguida,
montariam um cardápio para a festa a ser
apresentado no grande grupo, explicando os
motivos da escolha desses pratos.
Na terceira etapa, o grupo deveria
examinar rótulos de alimentos, buscando observar
como essas produções midiáticas abordam os
temas da alimentação e do corpo.
Na discussão sobre a montagem dos
pratos cotidianos, o critério saúde foi ressaltado
pelos integrantes do grupo como o principal
definidor de suas escolhas alimentares. Cabe
salientar que, no entanto, nenhum dos pratos por
eles montados seguia as normas de prescrição
nutricional – tinham, por exemplo, carboidratos
em excesso e poucos incluíam legumes e/ou
verduras.
Na definição do cardápio da festa, a
lógica da escolha dos alimentos pareceu
modificar-se. Se na alimentação diária a saúde é
narrada como principal preocupação, na festa o
prazer é o critério privilegiado.
Ao analisarem as embalagens, os
integrantes do grupo apontaram o discurso
apelativo presente em embalagens de salgadinhos,
biscoitos recheados (as ditas “porcarias”), que
incitaria, principalmente as crianças e
adolescentes, ao seu consumo. No entanto, não
reconheceram que nos rótulos de alimentos ditos
“saudáveis” – como cereal matinal light, pão
integral – está presente outro tipo de discurso que,
apelando para a exigência da saúde/beleza do
corpo, busca construir o alimento como uma
espécie de “remédio”.
Nessa atividade nosso propósito era
discutir os aspectos sociais implicados nas nossas
escolhas alimentares, tais como as rotinas de
trabalho – que em alguns casos (estudantes que
moravam e trabalhavam em uma cidade pequena)
ofereciam a possibilidade de realizar um almoço
do tipo refeição, até mesmo em casa, e em outros
casos só possibilitavam a realização de um
almoço do tipo fast-food (estudantes que
moravam e trabalhavam em cidades grandes); a
necessidade da praticidade; a disponibilidade da
região, da estação do ano e de poder aquisitivo; os
gostos aprendidos no âmbito da família.
Figuras 1-4: Atividade “Gostar dos alimentos"
Figuras 1 e 2 (acima): Consumindo os alimentos oferecidos.
Figuras 3 e 4: Cartazes produzidos na atividade.
74 Tatiana Souza de Camargo, Nádia Geisa Silveira de Souza
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012
Olhando o corpo
Esse foi o nome dado à terceira atividade,
composta também por três etapas. Na primeira
etapa, os integrantes do grupo deveriam observar
as imagens de corpo veiculadas em revistas
feminina – Boa Forma, Corpo e Beleza, Celulite,
Saúde da Mulher, Capricho – e em seguida
discutir como tais imagens levam cada um/a a
pensar sobre seu corpo e a se sentir . Deveriam
anotar pensamentos e sentimentos que lhes
ocorreram ao olhar as imagens de corpo e as
“receitas” de saúde e beleza presentes nestas
revistas.
Em seguida, na segunda etapa, deveriam
dizer se, caso pudessem, gostariam de modificar
algo no seu corpo ou no modo de cuidar de si.
Cada um deveria anotar o que mudaria no seu
corpo.
Na terceira etapa, deveriam discutir sobre
qual seria a idéia de corpo “ideal” para o grupo.
Em seguida, deveriam produzir um cartaz
construindo o modelo de corpo ideal com recortes
de revistas que mostrem partes do corpo que
atendam a tal modelo.
Neste grupo, todas as integrantes eram
mulheres. Todas elas disseram não se identificar
de nenhuma forma com as figuras femininas
mostradas nas revistas. Disseram sentir-se
enganadas ao olhar as promessas de dietas e
Figuras 5 – 10: Atividade “Escolhas alimentares”
Figuras 5, 6, 7 e 8 (acima): Montagem do prato de almoço.
Figuras 9 e 10: Observação e discussão dos rótulos de alimentos.
Corpo, comida e cultura: Discussão e problematização os padrões contemporâneos de beleza/saúde no ensino 75
de ciências
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012
relatos presentes nas revistas. Além disso,
relataram não ter vontade e condições financeiras
para buscar o “corpo perfeito”, e que para elas
isso não representava um objeto de preocupação.
Apesar disso, quando questionadas a
respeito das modificações que fariam em seus
corpos e nos cuidados consigo, elas buscam
aproximar-se do padrão de saudável/belo. Relatam
que gostariam de ter hábitos alimentares mais
saudáveis, que gostariam de poder comer de tudo
sem engordar e de que gostariam de ter mais
disciplina para praticar atividades físicas.
Nosso principal objetivo com essa
atividade era o de tornar visíveis os padrões
veiculados pela mídia, especialmente em revistas
femininas, que cotidianamente nos interpelam
produzindo sentimentos, atitudes, valores, modos
de pensar acerca do nosso corpo, direcionando em
certa medida o modo como pensamos e agimos
em relação ao nosso corpo.
Além disso, ao mostrar as implicações
dos padrões de beleza e saúde relacionados ao
cuidado do corpo, pretendíamos chamar a atenção
para e problematizar os efeitos de tais discursos,
os quais muitas vezes geram excessos de
exercícios físicos, de cirurgias plásticas, de
Figuras 11 – 13: Atividade “Olhando o corpo”
Figura 12: Observação, leitura e discussão das revistas.
Figuras 11 (acima à esquerda) e 13 (abaixo): Cartazes
“Corpo Ideal” produzidos na atividade.
76 Tatiana Souza de Camargo, Nádia Geisa Silveira de Souza
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012
consumo de medicamentos emagrecedores, de
restrições alimentares, e de sentimentos de
insatisfação consigo, que também acarretam
efeitos de âmbito biológico. Nesse sentido, cabe
citar que existem autores da área da Medicina e
Bioquímica cujas pesquisas apontam que boa
parte dos efeitos comumente associados ao
excesso de peso, como a hipertensão e o diabetes,
podem ter relações causais com o estresse gerado
pela insatisfação corporal – que ativa no
organismo uma cadeia de reações prejudiciais
(MUENNIG et al, 2008).
Essa atividade nos permitiu, ainda,
discutir sobre como a beleza, velhice, juventude,
saúde, feminino/masculino, estilo de vida, estética
(Cosmetologia, Medicina Estética) aparecem
nesses materiais pedagógicos. Dessa forma, tal
atividade visou a mostrar as profundas relações
entre as práticas sociais e a constituição e
funcionamento do corpo, assim como trazer a
necessidade de serem realizadas leituras críticas
de imagens e anúncios publicitários e reportagens
nas práticas escolares, uma vez que tais materiais
interpelam e ensinam modos de pensar, agir e
sentir com relação ao corpo e a si mesmo.
Considerações Finais
Nesse artigo buscamos problematizar a
maneira tradicional como o corpo é ensinado na
educação escolarizada – como um organismo
biológico. Nele relatamos nossa experiência na
realização de oficinas para estudantes de
pedagogia, nas quais buscamos mostrar a
importância de trabalhar o corpo como uma
construção biossocial em constante
transformação. As atividades desenvolvidas nestas
oficinas tinham como temáticas a alimentação e
suas relações com a constituição dos corpos,
discutidas sob vários aspectos, como a construção
dos gostos, o aprendizado de hábitos alimentares,
as dietas emagrecedoras, entre outros.
Salientamos que, apesar de desapercebida,
a insatisfação corporal é experimentada desde a
infância; e, na escola, parece ter efeitos
amplificados (CAMARGO, 2012). Neste sentido,
Wann (2009) cita que, segundo um relatório da
Associação Educacional Nacional norte-
americana, a vida escolar para os estudantes com
excesso de peso é uma experiência de preconceito
contínuo, de discriminação desapercebida, e de
assédio quase constante. Desde o jardim de
infância até o colégio, os estudantes com excesso
de peso experienciam o ostracismo, o
desencorajamento e às vezes a violência.
“Frequentemente ridicularizados por seus pares e
desencorajados até mesmo por bem intencionados
profissionais da educação, os estudantes com
excesso de peso desenvolvem baixa autoestima e
têm horizontes limitados.” (WANN, 2009: XIX).
Ainda neste sentido, Weinstock e Krehbiel (2009:
124), afirmam que, “apesar de muitos sistemas de
discriminação terem sido elucidados e desafiados
nas últimas décadas, a aceitação social da
discriminação com relação ao excesso de peso
continua forte”.
Sendo assim, entendemos que a educação
escolarizada é um espaço privilegiado no
aprendizado de conhecimentos sobre o corpo e os
cuidados de si. No entanto, as práticas escolares,
especialmente aquelas relacionadas ao ensino de
ciências e de biologia, ao centrarem suas
abordagens na visão biológica de corpo – presente
nos livros didáticos e nos Programas escolares,
regida pelas disciplinas acadêmicas –, deixam de
incluir em suas discussões os saberes e
“conteúdos” produzidos por pedagogias que
ensinam “fora” do ambiente escolar. Essa tradição
escolar vem impedindo a produção de um outro
saber crítico e relevante para a vida das pessoas,
capaz de fazer frente às múltiplas “verdades” que
inscrevem e regulam os seus corpos.
Em virtude disso, percebemos a
necessidade de problematizar as noções
biologicistas de corpo e de contribuir para que se
pensem outras práticas escolares, capazes de dar
voz aos estudantes e de olhar criticamente os
efeitos das práticas sociais no modo de pensar das
pessoas. Para tanto, entendemos que se torna
necessário introduzir na sala de aula a concepção
de um corpo marcado pelas práticas, visto que é
nelas se adquirimos os sentidos atribuídos aos
gestos, aos sentimentos, aos objetos, às pessoas e
a si mesmos.
Todavia, isso exige o movimento de
interrogarmos sobre a possibilidade de produzir
outras formas de nos relacionarmos com os
alunos, os saberes, as matérias escolares. O que
talvez crie condições para construirmos outras
estratégias de ensino relacionadas às vidas das
pessoas, ou seja, o que se apresenta como uma
questão política para nós, professores.
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Horizontes, v. 30, n. 2, p. 69-79, jul./dez.2012
Notas
1 Agradecemos aos professores e alunos que, gentilmente, participaram das oficinas e cederam suas imagens
para a construção deste artigo.
2 Índice de Massa Corporal (IMC), eleito em 1994, pela Força-Tarefa Internacional sobre Obesidade, como
o índice mais adequado para o diagnóstico de sobrepeso e obesidade entre adultos, tendo seus valores
posteriormente adaptados para o uso em indivíduos a partir dos dois anos de idade. O IMC é calculado
dividindo o peso do indivíduo (em quilogramas) por sua altura ao quadrado (em metros). A partir do
resultado numérico obtido com esse cálculo, são definidas as seguintes categorias: IMC < 18.5 = baixo-
peso; 18, 5,< IMC < 24,9 = peso normal; 25 < IMC < 29,9 = sobrepeso; 30 < IMC< 34,9 = obesidade grau
I; 35 < IMC < 39,9 = obesidade grau II; 40 < IMC = obesidade grau III, a chamada obesidade mórbida.
Tais categorias foram definidas a partir dos resultados numéricos obtidos do estudo de uma população
referência internacional (DUNCAN et al, 2004).
Sobre as autoras:
Tatiana Souza de Camargo: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
Nádia Geisa Silveira de Souza: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
80
81
*Endereço eletrônico: [email protected].
**Endereço eletrônico: [email protected].
Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio1
Leny Cristina Soares Souza Azevedo*
Ligia Karam Corrêa de Magalhães**
Resumo
Este artigo investiga a configuração do currículo no curso de formação de professores em nível médio, em
uma escola pública estadual. Os dados foram coletados em 2010, 2011 e 2012, por meio de questionários e
entrevistas, com 52 jovens. A partir dos depoimentos, foi possível identificar as expectativas em relação à
ampliação dos estudos, a introdução no mundo do trabalho, a cultura escolar vivenciada e as lacunas e
impasses desse processo de formação. O texto dialoga com o contexto do ensino médio modalidade normal,
com as políticas de formação docente, situando a realidade específica da instituição. Evidencia o divórcio
entre a formação oferecida ao futuro professor da Educação Básica e as necessidades de profissionalização
da carreira docente, em que seja conferido aos egressos o propalado protagonismo no exercício da profissão,
onde os trabalhos sejam pensados em contextos sócio/político/econômico/cultural em que acontecem.
Palavras-chave: currículo; ensino médio; formação de professores, trabalho docente.
Public Education: curriculum and female students education in the high school
Abstract
This article discusses research conducted with female students in the city of Rio de Janeiro about the way the
mid-level curriculum has been setting a public school in a training course for teachers. The data were
collected in 2010, 2011 and 2012, through questionnaires and interviews with 52 young people. From the
interviews, it was possible to identify and engage with the expectations for expansion studies, introducing at
work, school culture experienced and gaps and bottlenecks in this process. The text speaks to the high school
level normal mode, with training policies, locating the specific reality of the institution, highlighting the
divorce between the needs of the school and the professionalization of youth and an educational system that
does not offer the possibilities that enable the young, of fully, to cope with life's concrete work in public
schools.
Keywords: curriculum, high school, teacher training, teaching work.
Introdução
Este texto tem como objeto de estudo a
formação de professores no Ensino Médio Normal
no Rio de Janeiro. Acreditamos que a discussão
acerca do trabalho seja uma das grandes
preocupações no campo das políticas públicas
para a juventude, mostrando a necessidade de que
haja projetos e ações concretas, no presente, tendo
em vista a diminuição da exclusão desse grupo
social e da limitada oferta de oportunidades no
mundo do trabalho.
Assim, a proposta de formar professores
no Ensino Médio (EM), Modalidade Normal,
configura-se questão polêmica. A Resolução do
CNE/CEB n.1, de 20/08/2003, que, de acordo
com Brzezinski (2008), dispõe sobre os direitos
dos profissionais da educação com formação de
nível médio, é instrumento que reafirma e
complementa o prescrito no art. 62 da LDB, que
admite “como formação mínima para o exercício
do magistério na educação infantil e nas quatro
séries iniciais do ensino fundamental, a oferecida
em nível médio, na Modalidade Normal”.
A autora discute que, sob a ótica do
direito pessoal e intransferível, a resolução
representa avanço, considerando que resguarda,
por toda a vida, o direito do professor de ser
formado em curso profissionalizante do EM. Sob
a perspectiva do movimento que defende a
formação em nível superior do professor nas
séries iniciais do ensino, isso representa um
retrocesso. Esse nível de formação serve como
obstáculo à busca, pelos jovens, do curso de
Pedagogia. Diante dessas análises, interessa-nos
aprofundar as aspirações da juventude que escolhe
esse curso profissionalizante para apreendermos o
sentido dessa profissionalização. Para isso, faz-se
necessário recorrer aos elementos que determinam
as políticas de formação, entre estas as condições
históricas de sua produção, as correlações de força
em presença e as perspectivas teóricas partilhadas.
Moraes e Alavarse (2011) analisam a
importância do EM como uma “etapa da educação
básica que, de acordo com a Emenda
Constitucional (2009), tem sido objeto de um
amplo conjunto de trabalhos que revelam, [...]
toda a complexidade social, política e
pedagógica” (p.808).
Para empreender a discussão dessa
82 Leny Cristina Soares Souza Azevedo, Ligia Karam Corrêa de Magalhães
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012
modalidade de ensino, analisamos os depoimentos
recolhidos em 2010, 2011 e 2012, em uma
pesquisa realizada numa instituição pública
estadual, envolvendo cinquenta e duas
entrevistadas. A discussão norteou as escolhas
feitas por um curso profissionalizante, as políticas
para o Ensino Médio, a cultura escolar vivenciada
através da organização curricular e as expectativas
e perspectivas das jovens alunas para se
desenvolverem no mundo do trabalho e dos
estudos. Destacam-se estudos realizados sobre
“ser jovem”, a legislação, a cultura escolar e a
formação das alunas na escola.
Ressaltamos, assim, que a opção de
realizar esse estudo com alunas concluintes do
Ensino Médio Modalidade Normal, nesta
instituição de ensino do Rio de Janeiro, situada na
região central, justifica-se por alguns motivos. O
primeiro pelo fato de esse momento se configurar
historicamente como profícuo para as discussões
acerca da retomada, no Estado do Rio de Janeiro,
do ensino médio para a formação de professores,
trazendo suas “velhas” limitações e perspectivas.
Outro motivo diz respeito às razões que levam
jovens alunas a optarem por realizar um curso de
profissionalização docente, pois é pertinente
conhecer algumas das expectativas e projetos que
direcionam essas jovens para o curso de formação
docente, e não o de EM regular.
Quanto à opção por jovens alunas do
terceiro ano do curso, explica-se como tentativa
de verificar as aspirações mais latejantes no que
tange à inserção no mundo do trabalho. Também
nos parece relevante trazer as observações, as
entrevistas e discussões feitas pelas alunas do EM,
no qual se registrou o contexto educacional da
instituição e a busca de compreensão do complexo
universo da cultura escolar, que abrange a
formação dos futuros profissionais da educação
articulada às analises sobre a necessidade de
construir alternativas pedagógicas para os
primeiros anos da Educação Básica, tendo em
vista a continuidade e as mudanças na carreira
docente.
Diante dessas ponderações,
desenvolvemos a análise dessa temática,
apontando para elementos constitutivos do cenário
sociopolítico e econômico no qual se desenvolve a
educação para jovens das camadas mais pobres da
população. Com esse entendimento, organizamos
o texto em partes que se integram e dão
organicidade à reflexão, enfocando alguns
movimentos: (1) a retomada das discussões, a
respeito de “ser jovem” reportando-se, aos estudos
no atual processo de debates sobre a necessidade
de procurar conhecer as realidades, práticas,
questões políticas sobre jovens que frequentam a
escola de EM; (2) o questionamento das políticas
para a formação dos professores, focando a
cultura escolar e a organização curricular para o
ensino médio na modalidade normal; e, (3) as
considerações finais: aproximações e
distanciamentos entre as contribuições oferecidas
pela instituição investigada e as expectativas das
jovens. Impõe-se, assim, a necessidade de
políticas educacionais consoantes com os
princípios democráticos constituintes das práticas
sociais emancipatórias e que ofereçam formação
docente de forma a potencializar a influência da
escola nas trajetórias sociais de pessoas jovens.
Jovens Alunas: escola, continuidade dos
estudos e trabalho
Que significa ser jovem no Brasil, hoje?
Quem são os jovens brasileiros? Quais são seus
modos de vida, gostos, projetos, sonhos? Que
esperam do futuro?
Falar e escrever sobre os jovens na
atualidade é tarefa desafiante. Em primeiro lugar,
porque estamos diante de uma população
composta por aproximadamente 54 milhões de
brasileiros2. Em segunda instância, caminhando
para além do contingente populacional, deparamo-
nos com uma enorme diversidade existente em
torno da juventude brasileira, diversidade que se
concretiza nas condições sociais e econômicas,
nas diferenças geográficas, de gênero, culturais,
religiosas, dentre inúmeras outras.
Para dar conta dessas discussões, esse
texto procura analisar as representações sociais de
jovens alunas que estudam numa escola pública
estadual, discutindo as trajetórias sociais e
escolares associadas à escolha de um curso
profissionalizante e as perspectivas de introdução
no mundo do trabalho, explorando os sentidos
atribuídos a educação, ao trabalho e a formação
As múltiplas transformações existentes
nos cenários econômico, político e social a partir
da década de 1970, intensificando-se nos anos de
1980 e 1990 até os dias atuais, vêm eclodir de
forma incisiva. Tais processos provocam inúmeras
mudanças no mundo do trabalho e repercutem
diretamente no âmbito educacional,
especificamente no Ensino Médio, visto que é
nessa etapa que diversos segmentos juvenis
concluem a chamada Educação Básica. A
educação, assim, volta-se às demandas do mundo
do trabalho, com a árdua tarefa de propiciar a
aproximação dos seus sistemas de ensino às
necessidades do mundo produtivo.
No que concerne as jovens do sexo
feminino, observamos a preocupação das mães
com a escolarização de suas filhas, o que se traduz
Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio 83
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012
na mobilização para efetivar a matrícula numa
escola que tenha boa visibilidade, qualidade do
ensino ministrado e a segurança de seu público.
De acordo com as jovens entrevistadas essas são
as razões principais dos familiares que justificam
a opção pela “escola boa” como uma estratégia de
investimento futuro, na busca da
“empregabilidade”.
Para Moscovici (2009), pessoas e grupos
criam representações no decurso da comunicação
e da cooperação. Representações não são criadas
por um indivíduo isoladamente. Uma vez criadas,
elas “adquirem vida própria, circulam, se
encontram, se atraem e se repelem e dão
oportunidade ao nascimento de novas
representações, enquanto velhas representações
morrem” (p. 41). É nesse movimento que é
possível estudar as representações, suas
propriedades, suas origens e seu impacto.
A proposta epistemológica que aqui se
constrói entende a realidade como constructo
social, e a temática do trabalho docente se
constitui como objeto de diálogo entre
pesquisadoras e jovens que escolheram a escola
normal para completarem sua formação no Ensino
Médio.
A partir dessas considerações, surgem
alguns questionamentos:
Como se delineou a trajetória e as
vivências de jovens alunas no espaço
escolar?
Qual têm sido a influência e a
contribuição da instituição escolar para as
jovens alunas em relação à entrada no
mundo do trabalho?
Acredita-se que a discussão acerca do
trabalho seja uma das grandes preocupações no
campo das políticas públicas para a juventude,
mostrando a necessidade de que haja projetos e
ações concretas no presente, tendo em vista a
diminuição da exclusão desse grupo social e da
limitada oferta de oportunidades no mundo do
trabalho.
Os estudos realizados sobre a formação do
professor, de acordo com Gatti e Barreto (2009),
sugerem que,
[...] de um lado, a representação do
magistério como vocação, quando
evocada como substituta dos saberes
especializados que informam a
profissionalidade docente, tende a
minimizar a importância do avanço dos
conhecimentos e da pesquisa sobre os
saberes dos professores e sobre os
próprios conhecimentos das áreas de
referência do currículo da educação
básica. De outro, a persistência da
representação do trabalho docente como
vocação pode ser um indicativo de
recontextualização dos atributos que
acompanham o conceito, como a
afetividade, a intuição e a criatividade do
ato educativo (p.291).
Compreende-se, assim, a importância de
discutirmos as representações que ainda
permanecem subjacentes aos modelos de
formação com forte herança histórica: por
exemplo, as representações como “professora
primária” e como “professora polivalente”.
Certamente, formar significa articular identidade
pessoal e profissional, e é pertinente procurar
compreender os significados dos projetos de vida
dos jovens alunos em relação às representações
que vão sendo construídas a respeito de ser jovem,
ser estudante e o lugar do trabalho na sua vida
pessoal e profissional.
As pesquisas realizadas nos anos de 2010
a 2012 registram a criação e recriação das
representações que seguem desempenhando um
papel de reprodução social e cultural, o que pode
ser observado em dias de comemorações escolares
em que os alunos se vestem de saia azul marinho
com pregas, meias brancas, camisa branca e
sapato preto. Ao observar essas jovens vestidas
com uniforme, rememoramos as normalistas, que
marcaram com suas vestimentas o inicio do século
XX. Muitas dessas jovens eram provenientes das
classes médias e buscavam a formação de
“professoras primárias”, que foi objeto de sonhos
e de orgulho nas capitais importantes do país.
Assim, no imaginário da época foi-se construindo
a protagonização da escola como lugar digno da
instauração de uma nova ordem para efetuar o
Progresso – educar as crianças brasileiras.
Visualizamos a complexidade que
envolve as relações políticas, materiais e
educacionais no passado e que deixou vestígios
nas propostas, discursos, interesses, sonhos e
sociabilidades na concretização da formação
docente. Com toda a carga histórica, que motivos
desencadearam a escolha pela escola de
magistério na atualidade?
As jovens entrevistadas têm de 17 a 24
anos de idade e desenvolvem sua formação, como
já mencionado anteriormente, em escola pública
estadual que oferece o EM modalidade normal.
Nesta parte do texto, consideraremos três
dimensões para análise: a influência da família e
vizinhança na escolha da escola; os sentidos
atribuídos ao trabalho e a formação pedagógica na
escola.
Em entrevistas recolhidas no período
84 Leny Cristina Soares Souza Azevedo, Ligia Karam Corrêa de Magalhães
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012
investigado constatamos que a escolha pela escola
teve como fator determinante as ponderações
feitas pelas mães que defenderam a continuidade
dos estudos, a terminalidade do EM e a
possibilidade de serem introduzidas num ambiente
de trabalho com maiores vantagens que nas
atividades que as jovens desenvolvem atualmente.
Nas entrevistas, constatamos que 21% das jovens
acreditam que será possível conciliar a vida
doméstica, a criação de filhos no futuro e a
carreira docente. Os exemplos mais comuns dessa
perspectiva de vida são da vizinhança ou dos
depoimentos das professoras durante as aulas.
Para essas jovens a vizinhança teve um
papel importante na escolha da escola por já terem
tido suas filhas estudado nessa instituição. A
escola está localizada no centro da cidade, onde
ônibus, trem, metrô facilitam o deslocamento. A
segurança é outro ponto importante mencionado.
Não existe registro de violência na instituição, e
as professoras trabalham há bastante tempo na
escola. Quanto aos gestores, apontam que eles se
comunicam com os alunos e famílias de forma
eficiente, pois são recebidos e ouvidos. Também
foi registrado que há poucas faltas de professores
e se prioriza o estudo e disciplina na escola.
Todos esses fatores motivam as famílias e
evidenciam o envolvimento da comunidade
escolar na instituição. As famílias participam das
festividades, formaturas e existe representação de
mães nos conselhos escolares. Com base nesses
dados, percebemos a atuação e influência das
mães e vizinhança no acompanhamento da
escolaridade das alunas. Segundo Ribeiro e
Koslinki (2010), adolescentes que residem em
vizinhanças em que a maior parte das pessoas
termina o EM e alcança o ensino superior se
sentirão compelidos a fazer o mesmo (p.126).
Outro dado importante diz respeito ao
sentido atribuído ao trabalho e a formação pelas
jovens, pelas famílias e escola. Os relatos abaixo
mostram esse reconhecimento:
(...) gosto de comprar roupas, sapatos,
maquiagem e só consigo isso
trabalhando. Estar estudando é porque
quero melhorar de vida, ter casa própria,
pode viajar? (Aluna 3ª série A/2011).
Todos na minha casa trabalham. Minha
mãe trabalha na zona sul do Rio há muito
tempo numa casa de família. Eu trabalhei
por lá um tempo ajudando a tomar conta
das crianças, mas hoje eu estou numa loja
vendendo roupas femininas. É puxado
porque tenho que trabalhar aos sábados,
então o estudo e o trabalho no futuro
como professora poderá garantir eu ter
folgas no sábado e domingo (Aluna 3ª
serie C/ 2010).
Minha mãe e meu pai estudaram pouco e
por isso repetem muito a importância de
eu estar estudando. A escola me cansa um
pouco, mas eu posso ter mais liberdade,
viajar, comprar o que quero com o
trabalho (Aluna 3ª serie B/ 2011).
Eu não sei se quero ser professora, mas
quem sabe consigo depois ir para uma
faculdade e vou melhorando e ter um
trabalho mais remunerado? (Aluna 3ª
série A/ 2010).
Não desejo seguir a carreira de
magistério. Vim para essa escola por
insistência dos meus pais, mas quero
fazer enfermagem. Na minha classe
poucas colegas pensam em ser
professoras. Vão fazer vestibular para
direito, administração de empresas,
psicologia (Aluna 3ª serie B/ 2011).
Para concluir o ensino médio é mais fácil
aqui porque as disciplinas matemática,
química, física e outras não fazem parte
do currículo do magistério. Essas
disciplinas eu e minhas colegas temos
mais dificuldades e nossas famílias acham
importante fazermos o ensino médio. Eu
quero arrumar um lugar melhor para
trabalhar e fazer faculdade de turismo
(Aluna 3ª serie B/ 2011).
Cheguei no colégio com duas amigas e já
formamos um grupo que se mantem até
hoje. O trabalho em grupo facilita para
quem trabalha e estuda (Aluna da 3ª serie
C/ 2012).
De acordo com Spósito (2003), haveria
nos dias atuais uma maior atração dos símbolos
juvenis – marcas, roupas, músicas etc, o que
corresponde ao primeiro “depoimento da aluna da
3ª serie A”. Também está presente a representação
de crescimento pessoal, de melhoria de vida e de
acesso aos bens de consumo por meio do trabalho,
nos demais registros. Ao mesmo tempo haveria
uma certa decepção em relação ao universo
escolar. Nos estudos de Madeira (1986) são
citados a importância do trabalho entre as
camadas populares como um valor cultural e das
famílias como transmissoras de uma ideologia do
trabalho, sendo este um provedor de status na
Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio 85
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012
hierarquia familiar. O trabalho estaria no centro
dos projetos de vida e das estratégias de
socialização e reprodução das camadas mais
pobres.
Reconhecemos que o trabalho é
importante, e não apenas sob a perspectiva da
sobrevivência mas também por possibilitar outras
vivências da condição juvenil, tais como acesso ao
lazer, ao consumo e a realização pessoal em
muitas outras áreas. Assim, é necessário haver
pleno reconhecimento de que o trabalho é um
direito dos (as) jovens e um componente essencial
à sua formação como indivíduo e cidadão. Mas as
contradições e dilemas dessa oportunidade
educacional no EM precisam ser investigadas,
visando a ampliar a reflexão sobre as relações
entre juventude, trabalho e educação e, sobretudo,
sobre os princípios e fundamentos da formação
(FREITAS, 2007, p.150-152).
Na última década, constatamos a
importância da escola média em propiciar opções
para os estudantes, abrindo-se para a diversidade,
construindo uma escola que incorpore a cultura
própria da juventude que a compõe, quer pelas
possibilidades de “formação ética e profissional,
quer por ser idealizada como lócus especializado
de transmissão de conhecimentos, vale ouvir e
conhecer os jovens e saber o que pensam dela”
(ABRAMOVAY; CASTRO, 2003).
A escola pesquisada atende a 730 jovens
do ensino médio, sendo no turno da manhã 6
turmas de 1ª série e 6 turmas de 2ª serie e, no
turno da tarde, 6 turmas de 3ª serie e 6 turmas de
4ª serie. Cada classe de 3ª série têm em media 30
alunos, e em entrevistas feitas com os professores
e os coordenadores da instituição foi declarado
que boa parte das alunas são encaminhadas para a
escola pelas mães, por acreditarem que a
frequência ao ensino médio relacionada a uma
formação profissional representa uma
possibilidade concreta de inserir-se no mercado de
trabalho. O quadro de funcionários trabalhando
entre 2010 e 2012 constava de 99 professores, 3
funcionários de apoio, 13 funcionários
terceirizados para a limpeza, 1 diretora geral, 2
diretoras adjuntas e 2 coordenadores pedagógicos.
Quanto ao desenvolvimento de uma
profissionalização, entrevistamos 52 alunas.
destas, 26% revelam insegurança e
desconhecimento sobre os cursos oferecidos no
ensino superior e dizem “não gostar e não querer
ser professor”. Enquanto que, para 32% dos
jovens na 3ª serie, estudar no colégio pode ser
uma garantia para o ensino superior; 16% revelam
que pensam em investir no trabalho docente; 12%
querem investir num emprego melhor; 14% estão
no mercado de trabalho e esperam melhorias com
a conclusão do EM. Nos depoimentos aparece de
forma constante a crença de que poderão entrar
numa universidade e conseguir desenvolver uma
profissão. Outros revelam baixa autoestima e não
acreditam que o diploma do EM poderá contribuir
para o ingresso numa universidade ou profissão.
Os depoimentos abaixo ilustram esse contexto.
Eu vejo que toda minha formação na
escola pública não foi boa. Faltavam
professores e eu gostava mesmo era de
ficar conversando com meus amigos. Aqui
também tem professores que procuram
estimular, mas ainda sinto que não estou
pronta para um concurso, um vestibular.
Não me sinto capaz (Aluna 3ª série
A/2012).
Trabalho numa loja no meu bairro e
minha mãe quer que eu consiga um
trabalho melhor e ate consiga ir para
uma faculdade. Sempre estudei na escola
publica e o ensino é muito fraco, os
professores faltam muito e essa escola
tem uma preocupação com as notas, o
estudo. Eu não me interesso por ser
professora porque é um trabalho muito
desvalorizado e cansativo, mas posso
depois tentar fazer turismo,
administração, sei lá... menos ser
professora (Aluna da 3ª serie A/2010).
Eu estudo um pouco e quero ser
professora da educação infantil. Gosto de
crianças e no estagio me saio bem nas
atividades e brincadeiras com as crianças
(Aluna da 3ª serie C/2011).
Os depoimentos sintetizam que, no geral,
existe uma perspectiva dessas jovens em finalizar
o EM, conseguir ingressar no universo do trabalho
e dar continuidade aos estudos na universidade.
Também revela reconhecimento da precariedade
da escolaridade na sua trajetória escolar. Essas
expectativas vão ao encontro das pesquisas e
estudos realizados por Leão et al. (2011), ao
analisar os depoimentos de jovens pesquisados no
Estado do Pará que parecem indicar
[...] que a constituição da condição
juvenil vem ocorrendo de forma mais
complexa, com o jovem vivendo
experiências variadas e, às vezes,
contraditórias, expostos que estão a
universos sociais diferenciados, a laços
fragmentados, a espaços de socialização
múltiplos, heterogêneos e concorrentes.
86 Leny Cristina Soares Souza Azevedo, Ligia Karam Corrêa de Magalhães
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012
Constitui-se como um ator plural, produto
de experiências de socialização em
contextos sociais múltiplos, expressando
os mais diferentes modos de ser jovem
(p.1079).
Seja como for, cabe a pergunta: Como a
escola responde a formação e expectativas desses
jovens? Em que medida a organização curricular
está comprometida com o ensino crítico?
O que foi possível perceber na pesquisa
realizada nessa Instituição é que parece ter-se
constituído um consenso entre os gestores e
professores quanto à ênfase excessiva as notas dos
alunos e o lugar alcançado pela escola nas provas
nacionais. Os murais em locais diversos da
instituição mostram os resultados alcançados e os
incentivos à melhoria nas avaliações internas e
externas. As propostas da gestão são sempre de
recomendações quanto ao estudo, elaboração dos
exercícios. e isso acaba acirrando a competição
entre as classes.
Os alunos são incentivados pelos
professores e coordenadores a elaborar murais
dentro e fora da sala de aula para exposição dos
trabalhos nas disciplinas e as medias alcançadas
nos exames. Essa confecção de murais ocorre
durante o período de aulas, o que causa dispersão,
pois os alunos conversam enquanto os professores
estão ministrando as aulas ou dedicam um número
grande de horas ao trabalho extra classe na
montagem dos murais, não participando das
atividades desenvolvidas tanto nas salas de aula,
quanto do estudo e atividades extraclasse.
De outro lado, o incentivo ao estudo e à
manutenção das médias foram consideradas como
um reforço na reprodução dos conteúdos e na
manutenção do status da escola, por ser
reconhecida, principalmente pelos pais, como uma
“escola forte quanto ao ensino e a tradição”,
preservando o controle e a disciplina entre os
alunos.
Nos murais da escola estão grandes
painéis e são exibidas faixas na entrada,
mostrando o resultado de vestibulares anteriores e
o número de alunos que ingressaram em
universidades públicas da cidade do Rio de
Janeiro. Nos relatórios dos pesquisadores foram
registrados o excessivo valor aos prêmios
recebidos pela Secretaria Estadual, exibindo e
reafirmado uma qualidade que é estimulada pela
gestão publica. A qualidade vai se legitimando
pelo horizonte restrito da competitividade, cuja
medida é a colocação no ranking das avaliações
externas.
A avaliação da qualidade por indicadores
de desempenho constitui-se em uma das
estratégias gerenciais de controle dos
resultados e obriga estados e municípios
a estabelecerem contratos de gestão,
pelos quais será analisada a sua
performance em relação aos objetivos
pretendidos no campo educacional
(Castro, 2009,p.32).
Com base em Castro (2009), é possível
constatar a lógica gerencialista adotada pela
Instituição, cuja perspectiva empresarial aponta
resultados para a educação, onde há o
deslocamento do foco da qualidade educacional
para o foco da eficácia do processo, ou seja, obter
o máximo de resultado com o mínimo de custo. A
exposição dos resultados, assim como as
atividades comemorativas para realçar as metas
alcançadas tem a ver com estratégias de gestão, na
qual os gestores divulgam os serviços do colégio.
Também de acordo com Castro (2009) essa
responsabilização dos gestores mostram os
resultados da logica gerencial de prestar contas
sobre os serviços prestados.
Esse modelo de gerenciamento está em
consonância com o modelo Estado- empresário,
que tem como meta promover condições
adequadas para a eficiência pública, sendo
possível perceber que há um modelo de
competências,
Foi possível perceber que há um modelo
de competências, que insere dentro do processo de
aprendizagem “alguns conhecimentos e
habilidades que propiciem a formação de alunas
adaptadas às “imprevisões e pretensos desafios do
processo produtivo” que, de acordo com Gabriel
(2008), reforçam dimensões cognitivo –
comportamentais, capazes de adequar as
subjetividades às características, tais como a
implicação, iniciativa, a concorrência.
Para fazer circular esse conhecimento que
está previsto no currículo, a escola organiza-se em
dois turnos, e cada um deles têm um coordenador
responsável pelas orientações pedagógicas e
administrativas aos alunos, professores e
funcionários. Nas pesquisas, foram registradas a
falta de comunicação entre os coordenadores dos
diferentes turnos, o que dificulta a coesão das
ações. Nesse cenário, a busca da “qualidade
educacional” pode ser identificada com a
permanência do aluno na escola e, as medidas
tomadas quanto ao processo de ensino
aprendizagem apontam para a preocupação com a
melhoria da eficiência e eficácia do sistema de
ensino (COSTA, 2009, p.47).
Há um grande investimento da escola nas
atividades esportivas, e os professores incentivam
Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio 87
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012
a participação das alunas, apesar de os materiais
nem sempre estarem disponíveis no momento das
aulas, o que acarreta atrasos para o seu início.
Uma quadra poliesportiva aberta é utilizada para
as aulas, e outra quadra fechada, chamada de
“Multimeios”, é onde se realizam as festas,
apresentações dos discentes planejadas pelos
professores de artes como teatros, recitais ou de
outros projetos desenvolvidos durante o ano de
forma interdisciplinar ou não. Algumas peças
teatrais são ensaiadas pelos alunos sem a
mediação dos professores, e esses alunos
elaboram as coreografias e divulgam as
apresentações nos murais.
Observa-se, assim, que em geral as
práticas pedagógicas desenvolvidas na escola de
ensino médio se apresentam eivadas por um certo
pragmatismo, o que implica repensar a lógica de
organização e participação na escola, pois
evidencia-se a ampliação de “eventos”
esporádicos em detrimento de projetos com
práticas educacionais mais críticas.
Cultura escolar e organização curricular:
pendências políticas e pedagógicas
Reformas educacionais e especialmente as
relativas à formação de professores vêm sofrendo
profundas transformações desde a década de
1990, impulsionadas pelas recomendações dos
organismos internacionais aos países periféricos,
estabelecendo uma reestruturação em consonância
com o processo de um “novo capitalismo”, que,
por sua vez, institui a necessidade de um novo
perfil de trabalhador, a partir do qual se generaliza
o movimento de implantação de um novo modelo
de formação.
A concepção de educação é a de um
“novo homem”, cujo mote de sua formação será a
de ser capaz de: flexibilidade, empregabilidade,
multifuncionalidade e polivalência, bases para a
capacidade de adaptação do indivíduo à nova
morfologia do trabalho” (ANTUNES, 2005, p.13),
da abertura das economias, da mundialização do
capital. Nesse sentido, a educação profissional
promove a individualização da formação do
trabalhador, pelo qual se indica que cada um é
responsável na busca de competências a serem
alcançadas com o desenvolvimento de habilidades
básicas e específicas, na procura de inserção no
mercado de trabalho.
Nesse sentido, as mudanças educacionais
têm sido as palavras de ordem para o mundo
vivido, e um dos exemplos disso pode ser
constatado com o previsto na Lei n. 11.274/2006,
que é motivo de preocupação e perplexidade, em
face do despreparo do professor para atender às
exigências da reestruturação do ensino
fundamental para nove anos e das mudanças na
educação infantil instituídas formalmente em
2006 (BRZEZINSKI, 2008p. 180). Cabe alargar a
abordagem, considerando os problemas concretos
vivenciados pelas jovens que frequentam o ensino
médio e as reais possibilidades de inserção
profissional que estes podem vislumbrar.
Ainda que a Lei 11.274/2006 retrate a
intenção do MEC/SEB/DPE/COEF de construir
políticas indutoras de transformações
significativas na estrutura da escola, na
reorganização dos tempos e dos espaços escolares,
nas formas de ensinar, de aprender, de avaliar,
implicando a disseminação das novas concepções
de currículo, conhecimento, desenvolvimento
humano e aprendizado (BRASIL, 2006), é preciso
termos presente que a democratização do ensino
não se dá somente pela garantia do acesso, pois a
desigualdade e a exclusão ainda permanecem,
principalmente a exclusão gerada pelo não
aprendizado ou pelo aprendizado insuficiente.
Portanto a busca pela qualidade da
educação requer medidas para além do campo do
ingresso e da permanência, e ações capazes de
reverter a situação de baixa qualidade da
aprendizagem na educação básica.
Quando a Lei 11.274/2006 é promulgada,
instituindo o Ensino Fundamental com nove anos
de duração para atender crianças a partir dos seis
anos de idade, fica estabelecida uma política
pública afirmativa de equidade social
implementada pelo Governo Federal, com
intenção de: “oferecer maiores oportunidades de
aprendizagem no período da escolarização
obrigatória e assegurar que, ingressando mais
cedo no sistema de ensino, as crianças prossigam
nos estudos, alcançando maior nível de
escolaridade”. Essa política, que altera o Ensino
Fundamental de oito para nove anos, acirrou os
debates sobre o desenvolvimento dos currículos e
a defesa de se privilegiar as vivências das crianças
e sua cultura, criando condições para a
potencialização de valores democráticos.
Brzezinski (2008) aponta que há uma
crise na função da escola, uma vez que, ao longo
do século XX, estiveram presentes duas funções:
promover a apropriação do conhecimento
considerado socialmente relevante e formar para a
cidadania. Para a autora, as duas estão em crise,
seja pela dificuldade em realizá-las, seja pelo
anacronismo em relação aos tempos presentes.
Dessa forma, coloca-se em questão o
direito à educação e o posicionamento do Estado
frente à função da escola e a materialização de
políticas educacionais que garantam às jovens
alunas das camadas populares a ampliação, com
88 Leny Cristina Soares Souza Azevedo, Ligia Karam Corrêa de Magalhães
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012
qualidade, da escolarização básica. Muitas
indagações emergem no que tange às jovens que
frequentam o Ensino Médio, modalidade Normal,
tais como: Quais seriam os interesses do Estado
em manter as jovens na escola? A quem
interessam as discussões sobre a escolarização
juvenil no Brasil? Não seria, até hoje, uma das
funções da escola ocupar o tempo livre dessas
jovens, para que não gerem problemas sociais,
como está presente no imaginário de muitos?
Para Mogarro (2005), a cultura escolar
apresenta uma natureza profunda e naturalmente
histórica. É constituída por um conjunto de
teorias, ideais e princípios, normas, regras, rituais,
rotinas, hábitos e práticas que nos remetem às
formas de fazer e pensar os comportamentos
sedimentados ao longo do tempo e que se
apresentam como tradições, regularidades e regras
partilhadas pelos atores educativos no seio das
instituições. (p. 105)
A produção dessa cultura e sua
compreensão exigem não só um trabalho de
elaboração e procura de fontes como também
segundo Felgueiras (2005) o recolhimento junto
às pessoas das simbolizações construídas, que
assumem processos dinâmicos de conflito e
mudança.
Refletir e propor uma cultura escolar mais
qualitativa exigirá adequação: na proposta
pedagógica, no material didático, na formação do
professor, bem como nas concepções de espaço-
tempo escolar, currículo, avaliação, infância,
aluno, professor, metodologias. Santos (2007),
contribui para o esclarecimento quanto ao papel
da cultura e do cotidiano frente aos compromissos
que a escola deve assumir. Assim, reflete a autora
“falar de currículo escolar coloca-nos diante de
um grande desafio. Como abordar essa temática
sem parecer um burocrata do sistema, disposto a
criar mais normas e regras, sem prestar atenção
em como elas funcionam ou não [...]” (p. 296).
Para a autora a participação dos estudos
culturais na alteração das políticas e das práticas
curriculares têm crescido no Brasil, pois
questiona-se a natureza dos currículos tradicionais
e cognitivistas, alertando para uma postura
acrítica que ocasiona o empobrecimento
curricular.
Para Dias e Lopes (2003), “a
recontextualização do currículo da formação de
professores baseada nas competências modifica o
foco da aprendizagem escolar, na qual os
conteúdos e as disciplinas passam a ter valor
apenas como meios para a constituição de
competências”.
Essa formação baseada em competências
traz consequências no/para o exercício do trabalho
docente, na medida em que são favorecidas e
reguladas as ações dos professores, através de
modelos de ensino e de avaliação a serem
seguidos. O centro do ensino deixa de ser o saber
do professor, que constitui a base para o
desenvolvimento de seu trabalho no processo de
ensino-aprendizagem, restringindo-se ao domínio
de competências. A esse respeito, Ramos (2001)
assinala que
A ideia que se difunde quanto à
pertinência do uso da noção de
competência pela escola é que tal noção
seria capaz de promover o encontro entre
trabalho e formação. No plano do
trabalho, verifica-se o deslocamento do
conceito de qualificação em direção à
noção de competência. No plano
pedagógico, testemunha-se a organização
e a legitimação da passagem de um
ensino centrado em saberes disciplinares
a um ensino definido pela produção de
competências verificáveis em situações
concretas e específicas. Essas
competências são definidas em relação
aos processos de trabalho que os sujeitos
deverão ser capazes de compreender e
dominar.
A organização pedagógica, as instituições
de ensino e formação têm-se organizado com base
em uma estrutura nuclear – classe, entendida
como um grupo de alunos que recebe em conjunto
e de forma simultânea o mesmo ensino. Trata-se
de um modo de organização que se consubstancia
no princípio de ensinar a muitos como se fosso a
um só (BARROSO, 2003). Essa solução
organizacional foi sendo naturalizada, e essas
contradições e dilemas marcam os antigos e novos
arranjos sociais e educacionais, que necessitam
ser observados e analisados para a contribuição
não somente do debate político, mas também para
dirigir algumas interrogações e reflexões, para
pensar os jovens e sua inserção no mundo do
trabalho docente. Sob a perspectiva do movimento
que defende a formação em nível superior do
professor nas séries iniciais do ensino, trata-se de
um retrocesso.
Observa-se que a organização curricular,
para o ensino médio modalidade normal,
compreende uma base comum e outra
diversificada, na qual a primeira busca a formação
geral, construindo competências e habilidades
básicas para a continuidade dos estudos e
preparação para o trabalho. A parte diversificada
está orientada para o atendimento as metodologias
do ensino, estágios e práticas didáticas bem como
Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio 89
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012
procura atender as características regionais e
locais, permeando a cultura, a economia e a
política onde esta se insere, conforme
recomendações dos PCNs para o ensino médio.
Quanto ao Projeto Político Pedagógico, é de
responsabilidade da escola a construção.
De acordo com a pesquisa feita com os
gestores da instituição, o trabalho educativo tem
como objetivos desenvolver estratégias político
pedagógicas para a organização do ensino,
garantir a qualidade educativa e promover praticas
de gestão que visem estruturar a capacidade de
decisão quanto aos serviços essenciais da
educação. Esses propósitos estão registrados no
Projeto Politico Pedagógico construído em 2005
por parte dos professores e coordenadores e tem
sido avaliado e ampliado no inicio de cada ano
segundo depoimento da diretora. Esse PPP em
construção não permitiu uma consulta.
Com base nessas análises, interessa-nos
aprofundar as aspirações da juventude que escolhe
esse curso profissionalizante para apreendermos o
sentido dessa profissionalização e as políticas que
assinalam uma lógica que ambiciona promover
mudanças sociais através da educação, vinculando
expansão do ensino a discursos de valorização na
formação inicial docente. Para isso, faz-se
necessário recorrer aos elementos que determinam
as políticas de formação, entre estas as condições
históricas de sua produção, as correlações de força
em presença e as perspectivas teóricas partilhadas.
Consultando a Resolução SEEDUC n.
4.376 (18/12/2009), verifica-se que no corpo do
texto é mencionada a apreciação e aprovação da
adequação da Matriz Curricular do Curso para as
escolas de ensino médio da Rede Pública Estadual
de Ensino. Informa, ainda, que a Matriz Curricular
apresentada é o resultado do trabalho do Centro de
Estudos instituído em 2008 nas unidades
escolares, e que, durante a realização de encontros
na Secretaria de Educação, foram debatidos temas
voltados para a formação profissional do
professor, as tendências neste campo, a
organização do currículo, a base nacional comum,
a parte diversificada, a prática como espaço
formativo.
Acreditamos ser pertinente trazer o
trabalho educativo dessa instituição de Ensino
Médio modalidade Normal, no momento em
que se debate a formação e se questionam os
saberes dessa prática pedagógica. A
implementação da escola está amparada em um
conjunto de providências legais para a
ampliação da proposta para o Ensino Médio
Normal, de acordo com o Parecer n. 122, de 10 de
novembro de 2009, a Resolução SEEDUC
(Secretaria de Educação do Estado do Rio de
Janeiro) nº 4.376, de 18 de dezembro de 2009, e a
Portaria SEEDUC n. 91, de 29 de março de 2010.
Extinto o curso normal, em atendimento à
LDBEN n. 9.394 de 1996, tentativas pela
reafirmação de seu reconhecimento e permanência
foram assumidas, colocando em discussão as
contribuições da escola de ensino médio na
formação de parcela significativa de jovens. O Rio
de Janeiro é único estado da região sudeste que
oferece o curso de formação em Magistério –
Escola Normal, em Escolas de Ensino Médio.
Assim, ao focalizarmos a expansão, no
Rio de Janeiro, de cursos em nível médio normal,
para a formação de professores para a educação
infantil e para as primeiras séries do ensino
fundamental, pretendemos discutir a consolidação
da formação nesse nível de ensino como política
pública, não transitória. Nesse contexto, buscamos
explicitar os sentidos do acesso e permanência nos
cursos e a incorporação desses jovens alunos na
luta permanente pelas novas oportunidades à
educação.
Visamos, também, analisar a ação do
Estado nas políticas de formação que vêm se
caracterizando, de acordo com Freitas (2007), pela
fragmentação, consequentemente assegurando
diferenciadas dimensões de profissionalização.
Isso pode ser evidenciado quanto ao oferecimento
do ensino médio normal, já que a pressão da
juventude pela profissionalização após o ensino
fundamental coloca imenso contingente de jovens
no exercício do magistério e na expectativa de se
profissionalizarem. Essas iniciativas ocultam a
oferta diferenciada de cursos e programas,
apontando para a desigualdade da formação
oferecida nas instituições de ensino e nas
instituições de pesquisa, na formação de jovens
alunos que estudam e pesquisam e daqueles que
trabalham, produzindo condições diferentes de
exercício profissional e desigualdade educacional
(p.146).
São necessários mais de 230 mil
professores no ensino médio e cerca de 500 mil no
ensino fundamental, para atender ao número de
estudantes hoje existentes na rede pública.
Brzezinski (2008) ressalta que ações pontuais de
formação de professores pouco resolverão a falta
de docentes qualificados para a educação básica,
principalmente para o desenvolvimento
educacional nas séries iniciais do ensino.
Simultaneamente, a história comprovará o alcance
de indicadores de qualidade, já que os resultados
qualitativos divulgados nos dados oficiais sobre a
escola pública, infelizmente, apontam para a
desqualificação no ensino fundamental e, mais
ainda, a falência do ensino médio.
(BRZEZINSKI, 2008, p.169).
90 Leny Cristina Soares Souza Azevedo, Ligia Karam Corrêa de Magalhães
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012
Considerações Finais
Diante desse breve panorama acerca da
situação de pessoas jovens frente ao mundo do
trabalho, é inegável que este se configura como de
suma importância para os segmentos juvenis.
Coloca-se em debate o fato de que a manutenção
do nível médio normal reafirma-se como política,
desconsiderando o Plano Nacional de Educação,
que estabelece metas para a formação superior dos
professores da educação básica.
Para Freitas (2007), com o oferecimento
desse curso evidencia-se o divórcio entre as
necessidades atuais da educação infantil e ensino
fundamental com a proposta de formação da
juventude no ensino médio para a docência. Daí a
relevância de discutir o trabalho que vem sendo
realizado para fazer frente ao trabalho concreto
para as séries iniciais do ensino.
Considerando os registros feitos pelas
jovens alunas, podemos questionar os elementos
que apontam substantivamente para o significado
do trabalho e da formação. As representações
acerca do trabalho para essas jovens direcionam-
se para a necessidade, fonte de independência,
crescimento e auto realização. Quanto à formação,
existe o forte ideal de continuar os estudos numa
universidade. Consultando as professoras e os
registros da escola dos egressos, as alunas
ingressam ao sair da escola de ensino médio
normal em instituições públicas e privadas de
ensino superior e a maioria acaba fazendo a opção
pelo ensino privado e conseguem bolsas de estudo
para esse fim. Seja como for, ao examinarmos os
depoimentos das jovens alunas, destacados ao
longo do texto, identificamos:
a) A escola precisa, de acordo com Moreira
(2010), “ampliar-se, abrir-se, aumentar as
oportunidades de acesso às ciências, às
artes, a novos e diferentes saberes, a
novas linguagens, a novas interações, a
outras lógicas, à capacidade de buscar
conhecimentos, ao aprofundamento, à
sistematização e ao rigor” (p.110);
b) A vida escolar representa para as famílias
como um lugar de crescimento pessoal e
profissional, podendo ter maiores chances
de ocupação no mercado de trabalho,
diferente da condição paterna que, de
acordo com os depoimentos, tiveram a
escolaridade inconclusa;
c) O entendimento de que o trabalho
relaciona-se a uma “fonte de
independência”, pois este significado é
praticamente universal e transparece em
todo o tipo de jovem, de acordo com as
análises de Branco (2008), que reflete
acerca da atração que o trabalho exerce
sobre o jovem.
d) O trabalho expressa-se pela metáfora
“crescimento” e “auto-realização”, que
envolvem as “transformações no aparato
produtivo e seus elos com a dinâmica do
mercado de trabalho” (GUIMARAES,
2008, p.169). São fatores que explicam
oportunidades preenchidas e percursos
desenvolvidos nos diversos ambientes de
trabalho.
e) O curso de formação docente no EM é
concebido com base nas “facilidades
curriculares”, seja pelas disciplinas
consideradas como de exigências
menores para a conclusão da escolaridade
de nível médio, seja pelas metodologias
de trabalho pedagógico que privilegiam
atividades em grupo.
f) “As práticas partem do pressuposto de que
as alunas necessitam de um currículo que
as leve a algo mais que a simples
memorização (...) assim, as contribuições
dos estudos culturais e das aplicações do
conceito de cultura no desenvolvimento
curricular vem sendo positiva e indicam
uma reivindicação antiga de segmentos e
setores da sociedade” (Santos, 2007, p.
301);
g) Pelas falas, podemos depreender que essas
experiências em grupo não têm sido
sólidas e reforçam a fragmentação, na
medida em que há o entendimento de
cada um possa cumprir tão somente a
“tarefa” solicitada pelo professor a cada
componente do grupo, ou seja, a
distribuição de diferentes funções entre
os componentes de cada grupo, permite
que uma das alunas digite o trabalho, a
outra faça a apresentação, uma terceira
realize a pesquisa e assim por diante.
Essas atitudes revelam pouco
investimento na autonomia intelectual e
aprendizado coletivo.
Retomando a questão da execução de
“tarefas”, cabe lembrar a discussão empreendida
por Kuenzer (1999), ao discutir que no processo
de formação docente tem sido privilegiado o
treinamento do professor, como se fosse esperado
o simples cumprimento de atividades já “dadas”
em modelos. Assim, ao professor “compete
realizar um conjunto de procedimentos
preestabelecidos” (p. 182), retirando de seu
trabalho a dimensão de cientista e pesquisador de
educação, e transformando-o em um profissional
Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio 91
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012
que a autora denomina como “professor
tarefeiro”. Em outras palavras, é necessário que a
escola vislumbre constituir-se em possibilidade de
autonomia, de expansão dos horizontes, de novas
perspectivas, de novas condutas e conhecimentos
(MOREIRA; CANDAU, 2008).
Para De Rossi (2005), pensar sobre o
cotidiano das escolas, pela via da organização da
cultura escolar, significa reconhecer como o
Estado utiliza a escola como recurso de
convencimento e de emotividade bastante
mobilizadores para banir individualidades e para
fazer a conversão pela subjetividade, sem alterar
as condições materiais dos sujeitos envolvidos.
Dessa forma, a pesquisa realizada na instituição
revela a priorização do produto em detrimento do
processo.
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agosto de 2003. Dispõe sobre os direitos dos
profissionais da educação com formação de nível
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Educação pública: currículo e formação de jovens alunas no Ensino Médio 93
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 81-93, jul./dez.2012
Notas
1 Esse artigo toma por base a monografia premiada com o segundo lugar no Concurso “Prêmio Ministro
Gama Filho”, da Escola de Gestão e Contas do TCE/RJ, cujo tema do Edital 02/2012 versou sobre
“Políticas Públicas em Educação”.
2 De acordo com os dados da Pnad, 2006, que considerou jovens os sujeitos na faixa etária compreendida
entre 14 e 29 anos.
Sobre as autoras:
Leny Cristina Soares Souza Azevedo: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Ligia Karam Corrêa de Magalhães: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
94
95
* Endereço eletrônico: [email protected]
Práticas sociais híbridas: contribuições para os estudos curriculares em Educação
Matemática
Marcio Antonio da Silva*
Resumo
Neste artigo, discute-se, na perspectiva teórica curricular pós-crítica, a impossibilidade de pensar em práticas
sociais universais que possam gerar prescrições curriculares centralizadoras que orientem ações a serem
efetivadas nas escolas, não considerando a incerteza e a diversidade das práticas educativas, sociais e
culturais. Utiliza-se o conceito de hibridação para argumentar que as próprias prescrições curriculares
apresentam discursos híbridos que necessitariam de uma maior investigação, pois representam misturas e
construções que defendem correntes teóricas distintas, algumas até antagônicas. Por fim, são encaminhadas
considerações no sentido de buscar formas de atenuar esse imenso hiato entre as teorias contemporâneas e a
“prática” curricular.
Palavras-chave: Educação Matemática; Currículo de Matemática; Hibridação.
Hybrid social practices: contributions to curriculum studies in Mathematics Education
Abstract
In this paper, we discuss in theoretical perspective post-critical curricular theory, inability to think in
universal social practices that generate prescriptions centralized curriculum to guide actions to be effected in
schools, not considering the uncertainty and diversity of educational practices, socials and culturals. We use
the concept of hybridization to argue that curricular prescriptions have hybrid discourses that would require
further investigation because they represent mixtures and buildings that advocate different theoretical
currents, some even antagonistic. Finally, considerations are directed towards finding ways to mitigate this
huge gap between contemporary theories and "practical" curriculum.
Keywords: Mathematics Education; Mathematics Curriculum; Hybridization.
Introdução
O objetivo deste artigo é discutir, na
perspectiva teórica curricular pós-crítica, a
impossibilidade de pensar em práticas sociais
universais que possam ser descritas e,
consequentemente, possam gerar prescrições
curriculares centralizadoras que orientem ações a
serem efetivadas nas escolas.
Queremos contribuir para a reflexão
acerca da contradição existente entre as teorias
curriculares contemporâneas que apontam para a
direção da diversidade, do hibridismo e da
valorização da incerteza e as políticas curriculares
nacionais que determinam orientações e
avaliações universais e padronizadas.
No entanto, mostraremos que, tanto as
teorias pós-críticas, quanto os currículos prescritos
apresentam, ao menos, uma característica comum:
a presença de um discurso híbrido.
Para finalizar o artigo, encaminharemos
nossas considerações no sentido de buscar formas
de atenuar esse imenso hiato entre as teorias
contemporâneas e a “prática” curricular.
A centralização curricular no Brasil
No dia quinze de setembro deste ano, a
Folha de São Paulo, em seu painel Tendências e
Debates, propôs o debate em torno da seguinte
questão: o Brasil deve adotar um currículo
nacional único para a educação básica?
Respondendo afirmativamente à pergunta
proposta, Priscila Cruz, diretora-executiva do
movimento Todos Pela Educação, apresentou o
discurso meritocrático cristalizado das atuais
políticas neoliberais: é preciso padronizar os
processos educacionais para facilitar a avaliação
de alunos, professores e gestores.
Em oposição à perspectiva defendida por
Priscila, a professora Dalila Andrade Oliveira,
atual presidente da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd),
afirmou que a defesa de um currículo uniforme
representa a volta de um discurso da elite
republicana do início do século XX e que o
currículo deve levar em conta as diferenças
sociais, econômicas e culturais entre os
estudantes.
Portanto, no cenário delineado por Dalila,
o currículo deveria necessariamente ser
(re)formulado no âmbito de cada escola e até de
cada sala de aula, considerando as especificidades,
as necessidades, os valores, as culturas e as
práticas sociais da comunidade na qual a escola
está inserida.
Essa breve exposição das oposições de
96 Marcio Antonio da Silva
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 95-102, jul./dez.2012
opiniões sobre a centralização curricular revela o
antagonismo existente nas diferentes visões sobre
a valorização do reconhecimento das diferentes
práticas sociais presentes em um território com
dimensões continentais, como é o caso brasileiro.
Hibridação
A partir daqui, faremos referência ao
conceito de hibridação, difundido pelo
antropólogo argentino Néstor García Canclini, e
que ganha diferentes interpretações, entre elas, a
defesa do reconhecimento da diversidade de
práticas sociais e a construção de discursos
híbridos para atender aos vários públicos para os
quais as prescrições curriculares são escritas, ou
seja, com a finalidade de agradar a muitos.
A obra Culturas Híbridas: estratégias
para entrar e sair da modernidade, de García
Canclini, foi publicada em 1989. Nela o
pesquisador argentino realçou os processos de
hibridação cultural ocorridos nos países latino-
americanos, sobretudo no período pós-colonial.
O autor se refere à mestiçagem, ao
sincretismo e à crioulização como hibridações que
se restringiam, respectivamente, ao processo de
combinação de raças, religiões (crenças) e línguas.
O que García Canclini argumenta é que
esses três tipos de “misturas culturais” são muito
restritos para levar em conta as inúmeras fusões
culturais que ocorrem entre estilos musicais, nas
fronteiras entre países, nos meios de difusão de
informação e, especialmente ligado ao nosso
interesse principal, nas teorias curriculares e nos
significados atribuídos ao currículo.
Por isso, García Canclini (2008) traz uma
primeira aproximação do conceito de hibridação
no prefácio da edição de 2001: “entendo por
hibridação processos socioculturais nos quais
estruturas ou práticas discretas, que existiam de
forma separada, se combinam para gerar novas
estruturas, objetos e práticas” (p. XIX).
É importante ressaltar que o conceito de
hibridação não é novo, não só pelos usos
antropológicos e linguísticos, para citar apenas
dois, mas também por seu uso original relativo à
Biologia, mais especificamente na genética,
botânica e zoologia.
Como exemplo, podemos citar a
hibridação entre espécies. No entanto, essas
“misturas” são frequentemente vinculadas à
esterilidade e ao exótico, provocando no
imaginário popular a sensação de algo que está
fora dos padrões.
O asno ou burro ou jumento é um
resultado de cruzamento de espécies (cavalo com
jumenta ou égua com jumento). O uso popular
desses três nomes para designar um indivíduo
desprovido de inteligência não é uma
coincidência, mas sim uma direta vinculação com
a esterilidade desse animal, condição resultante
dessa hibridação.
Do Modernismo ao Pós-Modernismo
Para compreender parte dessa intolerância
ao que é híbrido, é importante contextualizar os
embates teóricos entre as visões modernas e pós-
modernas.
O período histórico ou os movimentos
teóricos ligados ao modernismo valorizam a
estrutura hierárquica bem delimitada, as
definições rígidas e os binarismos classificatórios
antagônicos: bem versus mal, certo versus errado,
alta cultura versus baixa cultura, currículo
prescrito versus currículo em ação, branco versus
negro, entre outros. Essa configuração teórica
enaltece o purismo e considera a hibridação como
uma aberração.
Já o pós-modernismo surge, entre várias
outras críticas ao movimento antecedente,
questionando e rompendo os binarismos, por
intermédio da exposição de uma matiz de
possibilidades existentes entre polos opostos,
considerados como únicos pelo modernismo.
Como exemplos culturais de hibridismos,
podemos citar a banda californiana Linkin Park
que, não coincidentemente, deu o nome de Teoria
Híbrida (Hybrid Theory) ao seu primeiro álbum e
à própria banda, no final da década de 1990,
revelando a concepção dos integrantes da banda
possuem a respeito do cruzamento de gêneros que
envolvem a composição do seu repertório: hip-
hop, música eletrônica e rock pesado alternativo
(DUSSEL, 2010).
Outro retrato dessa hibridação musical
pode ser visto na produção do grupo de rap Brô
MC’s, formado por índios sul-mato-grossenses da
etnia Guarani-Kaiowá. Índios cantando rap em
Tupi e usando vestimentas como bonés, camisa de
seleções e times de futebol e cobrindo os rostos
com lenços que lembram os antigos caubóis de
filmes de faroeste, parece algo inusitado, mas é a
realidade desses jovens que já ganharam
notoriedade ao participarem de programas de
televisão transmitidos nacionalmente.
A partir desses exemplos, é quase
impossível imaginar algo que não seja híbrido. A
pureza é que ganha caráter exótico e gera
profunda desconfiança. Até o conceito de
fronteira, que na perspectiva modernista está
muito mais ligado à ideia de fronteira geográfica
e, portanto, matematicamente definida por uma
lógica aristotélica (pertence ou não pertence),
Práticas sociais híbridas: contribuições para os estudos curriculares em Educação Matemática 97
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 95-102, jul./dez.2012
ganha nova configuração nas visões pós-modernas
ou pós-coloniais.
Para Bhabha (1998), Hall (2003) e García
Canclini (1998), a análise das fronteiras se dá na
dimensão cultural e, nesta perspectiva, não faz
sentido pensar em pertencimento ou não
pertencimento a uma ou a outra nação, mas sim
aos significados construídos, desconstruídos e
reconstruídos (não necessariamente seguindo esta
ordem) em espaços-tempos de fronteiras:
Penso nos currículos escolares como
espaço-tempo de fronteira e, portanto,
como híbridos culturais, ou seja, como
práticas ambivalentes que incluem o
mesmo e o outro num jogo em que nem a
vitória nem a derrota jamais serão
completas. Entendo-os como um espaço-
tempo em que estão mesclados os
discursos da ciência, da nação, do
mercado, os “saberes comuns”, as
religiosidades e tantos outros, todos
também híbridos em suas próprias
constituições. É um espaço-tempo em que
os bens simbólicos são
“descolecionados”,
“desterritorializados”, “impurificados”,
num processo que explicita a fluidez das
fronteiras entre as culturas do eu e do
outro e torna menos óbvias e estáticas as
relações de poder (García Canclini,
1998). Defendo que, nesse híbrido que é o
currículo, tramas oblíquas de poder tanto
fortalecem certos grupos como
potencializam resistências. Em um e outro
movimento, que são parte do mesmo,
permitem que a diferença apareça na
negociação “com as estruturas de
violência e violação que (as) produziram”
(Spivak, 1994, p. 199). (MACEDO, 2006,
p. 289-290).
Os comentários levantados por Macedo
no excerto supracitado, com os quais
concordamos, nos remetem a novas compreensões
para as questões de relações de poder, identidades
e diferenças.
No panorama vislumbrado a partir da
perspectiva pós-crítica, nunca será possível obter
um estado ideal de igualdade social, econômica e
política. Por isso, o discurso que objetiva qualquer
tipo de igualdade é ingênuo e idealista.
O conceito de classe social é
desconstruído em detrimento das relações entre os
subalternos marginalizados e a hegemonia cultural
dominante. O movimento e as tensões
direcionam-se das lutas pela igualdade social e
econômica, notadamente reivindicando igualdade,
para a valorização das diferenças e para o
reconhecimento de identidades culturais híbridas.
Nas atuais pesquisas que levam em conta
os estudos culturais não faz sentido investigar
oposições binárias, como Matemática do cotidiano
versus Matemática escolar, ou Matemática do
índio versus Matemática do branco, mas sim o
conjunto de identidades, subjetivações e
significados atribuídos por diferentes participantes
da pesquisa a um objeto prévia ou posteriormente
definido pelo pesquisador.
As definições e categorizações
rigorosamente descritas perdem sentido nesse
cenário “pós”. A lógica clássica e a consequente
adoção do “terceiro excluído” dá lugar a lógicas
heterodoxas que vão além dos binarismos,
permitindo múltiplas classificações.
A palavra “laranja” pode tanto significar
uma cor resultante de mistura das cores amarela e
vermelha, quanto um fruto híbrido obtido a partir
do cruzamento do pomelo com a tangerina. Para
uma criança pode representar o entardecer. Para
um político corrupto, um indivíduo cujo nome foi
usado por ele para fraudes financeiras e
comerciais.
Usamos esse exemplo simplesmente para
ilustrar o quanto uma palavra pode expressar
múltiplos significados, híbridos ou não. Outro
ponto a se destacar é que o híbrido não é sinônimo
de mistura, mas sim de algo que cria sua própria
identidade. Portanto, além de mistura, é ele
próprio. O fato de quase ninguém saber que o
fruto da laranjeira é um híbrido do pomelo e da
tangerina, revela o quanto esta identidade está
constituída e reconhecida.
Analogamente, a Matemática escolar pode
ser compreendida tanto como uma Matemática
própria e totalmente desvinculada da ciência de
referência, como André Chervel defendia, quanto
uma Matemática transposta do saber científico
que o originou, como na concepção de Yves
Chevallard. Pode ser uma coisa e outra, tanto
identidade construída, quanto mistura ou
adaptação.
A nosso ver, a relevância das pesquisas
curriculares sobre a Matemática escolar não está
na origem da mesma, se é construída no contexto
escolar ou transposta de um saber sábio, mas sim
as identidades que são valorizadas e omitidas por
esta Matemática, bem como quais são as
Matemáticas hegemônicas e as subalternas.
Hegemonia e Subalternidade
Não usamos as palavras “hegemonia” e
“subalternidade” no sentido de Gramsci, o qual
98 Marcio Antonio da Silva
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 95-102, jul./dez.2012
ligava esses conceitos à ideia de oposição de
classes sociais e a consequente disputa pelo poder:
[...] a ênfase de Gramsci foi na
hegemonia. Também nisso residia seu
maior interesse. Seus conceitos de
“guerra de posições” e “guerra de
movimento” compõem o cerne de uma
conceituação da estratégia que implica o
deslocamento das classes, segundo uma
analogia com a guerra de trincheiras,
para melhores pontos de observação e
“posições”: daí a “guerra de posições”
ser a batalha pela conquista da
hegemonia política, pela obtenção do
consentimento, a luta pelos “corações e
mentes” do povo, e não meramente sua
obediência transitória ou seu apoio
eleitoral. A “guerra de movimento” (em
oposição direta à tradição leninista de
pensamento político) só pode ocorrer
numa situação em que a hegemonia já
tenha sido assegurada (BARRETT, 1996,
p. 239).
Várias oposições a essa teoria marxista de
hegemonia ganharam força após o
reconhecimento que a mesma ignorava questões
sociais ligadas às diferenças de gêneros, etnias,
raças, entre outras. Entre essas críticas, está a de
Ernesto Laclau (1978) que rejeita essa ligação
exclusiva entre as ideologias políticas e as de
classe, nomeando essa simplificação, feita por
Gramsci, de “reducionismo” (BARRET, 1996).
Nos referimos à hegemonia e à
subalternidade como relações essencialmente
culturais que estão em constante movimento,
catalisadas pelos avanços tecnológicos e,
sobretudo, pela difusão midiática global. Para
García Canclini:
Uma visão mais ampla permite ver outras
transformações econômicas e políticas,
apoiadas em transformações culturais de
longa duração, que estão dando uma
estrutura diferente aos conflitos. Os
cruzamentos entre o culto e o popular
tornam obsoleta a representação polar
entre ambas as modalidades de
desenvolvimento simbólico e relativizam,
portanto, a oposição política entre
hegemônicos e subalternos, concebida
como se se tratasse de conjuntos
totalmente diferentes e sempre
confrontados. O que sabemos hoje sobre
as operações interculturais dos meios
massivos e as novas tecnologias, sobre a
reapropriação que diversos receptores
fazem deles, afasta-nos das teses sobre a
manipulação onipotente dos grandes
conglomerados metropolitanos. Os
paradigmas clássicos segundo os quais
foi explicada a dominação são incapazes
de dar conta da disseminação dos
centros, da multipolaridade das
iniciativas sociais, da pluralidade de
referências – tomadas de diversos
territórios – com que os artistas, os
artesãos e os meios massivos montam
suas obras (GARCÍA CANCLINI, 2008, p.
346).
Além das características das relações
hegemônico-subalternas, explicitadas no excerto
supracitado, é fundamental acrescentar a isso o
fato de que esses vínculos são estabelecidos de
maneira múltipla e complexa, formando redes de
significações.
Algo ou alguém pode, em determinado
instante, agir tanto como hegemônico, quanto
como subalterno. Não há, portanto, classificação
única, pois os múltiplos olhares dependem das
“lentes” que utilizamos para examinar tal relação:
O incremento de processos de hibridação
torna evidente que captamos muito pouco
do poder se só registramos os confrontos
e as ações verticais. O poder não
funcionaria se fosse exercido unicamente
por burgueses sobre proletários, por
brancos sobre indígenas, por pais sobre
filhos, pela mídia sobre os receptores.
Porque todas essas relações se
entrelaçam umas com as outras, cada
uma consegue uma eficácia que sozinha
nunca alcançaria. Mas não se trata
simplesmente de que, ao se superpor
umas formas de dominação sobre as
outras, elas se potenciem. O que lhes dá
sua eficácia é a obliquidade que se
estabelece na trama. Como discernir onde
acaba o poder étnico e onde começa o
familiar ou as fronteiras entre o poder
político e o econômico? Às vezes é
possível, mas o que mais conta é a astúcia
com que os fios se mesclam, com que se
passam ordens secretas e são respondidas
afirmativamente (GARCÍA CANCLINI,
2008, p. 346).
Portanto, não faz sentido compreender os
currículos de Matemática na perspectiva das
classes sociais hegemônicas e subalternas, nem
como essas últimas podem ser consideradas e
Práticas sociais híbridas: contribuições para os estudos curriculares em Educação Matemática 99
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 95-102, jul./dez.2012
conduzidas a uma posição de igualdade em
relação às primeiras, mas sim compreender os
significados, as relações estabelecidas, as
modificações ocorridas e os interesses que
emergem nessa teia complexa costurada
culturalmente, por intermédio da (re)construção
de identidades que são, simultaneamente,
expressivas e efêmeras.
Identidades Culturais
Temos como hipótese que a identidade da
Matemática hegemônica é masculina, europeia,
heterossexual e branca. Nossa hipótese é
reforçada a cada livro de História da Matemática
que lemos e a cada filme que assistimos, os quais
possuem personagens que têm a Matemática como
profissão ou como preferência de estudo.
Mesquita (2004) traz uma convergência
nos padrões identitários de professores de
Matemática, a partir da análise de quatro filmes
hollywoodianos. Como resultado, afirma que:
[...] Hollywod conduz os espectadores de
seus filmes para uma abreviação
identitária do professor de matemática –
homens, tímidos, obsessivos, arrogantes,
competitivos, indiferentes frente às
relações interpessoais, racionais,
patéticos, desajeitados, isolados,
problemáticos, exibicionistas perante o
conhecimento matemático, disciplinados e
reservados. (p. 6).
Provavelmente as conclusões não seriam
muito diferentes se analisássemos os matemáticos
mais citados em livros de História da Matemática
de autores tradicionais, como Eric Bell, Dirk
Struik, Carl Boyer, Howard Eves, Florian Cajori e
Victor Katz.
Quando o matemático escocês Eric
Temple Bell publicou os seus dois volumes de
Men of Mathematics, em 1937, ele não imaginava
(ou talvez imaginasse) o quanto sua infindável
lista de homens que contribuíram para o
desenvolvimento da Matemática, ao longo de
séculos, contribuiu para desenhar uma identidade
masculina a essa ciência.
Paulatinamente, esse cenário vem se
alterando, em parte devido à publicação de obras
que revelam o trabalho determinante de algumas
mulheres para a evolução da Matemática.
Dentre essas mulheres, podemos citar a
russa Sofia Kovalevskaya, que viveu no século
XIX, foi aluna de Weierstrass e trouxe várias
contribuições para a Matemática, notadamente
para as funções abelianas e equações diferenciais
parciais, incluindo a demonstração do Teorema
Cauchy–Kovalevskaya (AUDIN, 2011).
Interessante e curioso notar que Kovalevskaya é a
única mulher na lista dos “homens da
Matemática” de Bell.
Emmy Noether é outra grande matemática
do início do século passado, considerada a mãe da
Álgebra Moderna (TENT, 2008). Essas duas
mulheres e muitas outras também são citadas na
clássica obra de Olsen (1974) que provoca Bell
com o título Women in Mathematics.
Deslocando-se da tradição matemática
europeia, autores como Selati & Bangura (2011),
Plofker (2009) e Martzloff (1997) enaltecem,
respectivamente, a matemática africana, indiana e
chinesa.
A partir dessas hipóteses, defendemos a
tese de que a diversidade de práticas sociais,
incluindo as hegemônicas, deve ser valorizada no
contexto escolar, rompendo paradigmas da
excessiva valorização de alguns poucos
estereótipos culturais em detrimento de outros.
O que está em jogo é o reconhecimento,
no contexto escolar, de identidades sociais e
culturais que são tradicionalmente subjugadas.
Aliás, talvez não seja mais o caso de se pesquisar
as identidades, mas de “deslocar o objeto de
estudo da identidade para a heterogeneidade e a
hibridação interculturais (Goldberg)” (GARCÍA
CANCLINI, 2008, p. XXIII).
Esses processos de hibridações
interculturais são estimulados pelo crescente uso
de recursos tecnológicos para difusão de
informações, ideias e culturas:
A hibridação, de certo modo, tornou-se
mais fácil e multiplicou-se quando não
depende dos tempos longos, da paciência
artesanal ou erudita e, sim, da habilidade
para gerar hipertextos e rápidas edições
audiovisuais ou eletrônicas. Conhecer as
inovações de diferentes países e a
possibilidade de misturá-las requeria, há
dez anos [o autor escreveu este excerto
em 2001], viagens freqüentes, assinaturas
de revistas estrangeiras e pagar avultadas
contas telefônicas; agora se trata de
renovar periodicamente o equipamento de
computador e ter um bom servidor de
internet. (GARCÍA CANCLINI, 2008, p.
XXXVI).
No campo curricular, como veremos a
seguir, a facilidade de se propagar informações
por intermédio de novas mídias, também
possibilitou recontextualizações de discursos
diversos.
100 Marcio Antonio da Silva
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 95-102, jul./dez.2012
Híbridos Curriculares
Atualmente, há uma relativa concordância
sobre a impossibilidade de se definir currículo,
dada a multiplicidade de elementos que envolvem
esse conceito, bem como uma gama complexa de
contextos abrangidos por ele.
Uma possibilidade, a nosso ver mais
coerente, é se referir ao próprio currículo como
um híbrido:
A própria noção de currículo pode ser
considerada como um híbrido, se a
pensamos como o resultado de uma
alquimia que seleciona a cultura e a
traduz a um ambiente e uma audiência
particulares (Bernstein, 1990; Popkewitz,
1998). Os discursos curriculares também
têm sido estudados como híbridos que
combinam distintas tradições e
movimentos disciplinares, construindo
coalizões que dão lugar a consensos
particulares (DUSSEL, 2010, p. 70).
As políticas curriculares, por sua vez,
também não estão imunes a essas influências
culturais caracterizadas pelas hibridações.
Nos textos que definem as diretrizes
curriculares pelo mundo afora, notamos aparentes
contradições em vários discursos possíveis:
Discursos como os de valorização das
competências, do currículo integrado, da
gestão escolar descentralizada, da
avaliação como garantia de qualidade
podem ser encontrados em diferentes
políticas no mundo e sua presença é
justificada pela ação do contexto de
influência (LOPES, 2004, p. 112).
Essas teorias supostamente divergentes
acabam por produzir um discurso híbrido que,
assim como todos os outros discursos curriculares,
não é neutro.
Em Silva (2009) identificamos, na análise
da Proposta Curricular de Matemática do Estado
de São Paulo de 2008, dois discursos curriculares
aparentemente antagônicos: o currículo por
competências e o currículo crítico.
Salientamos, na época, “o hibridismo
existente no próprio conceito de competências,
pois ora se utiliza o aspecto cognitivo-
construtivista da tradição francesa, ora se faz uso
da configuração comportamental, advinda da
tradição americana” (p. ??).
Lopes (2002) encontrou um discurso
curricular híbrido nos Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio. Por intermédio da
análise do conceito de contextualização que
aparece em tal documento oficial, a autora
defende:
[...] que o discurso dos PCNEM
apresenta ambigüidades de forma a se
legitimar junto a diferentes grupos
sociais, sejam aqueles que trabalharam
em sua produção ou aqueles que
trabalham na sua implementação e
análise. Para produção de uma proposta
curricular como a dos PCNEM, são
apropriados e hibridizados discursos
acadêmicos, ressignificando-os de forma
a atender às finalidades educacionais
previstas no momento atual. Defendo,
igualmente, que as finalidades
educacionais dos PCNEM visam
especialmente formar para a inserção
social no mundo produtivo globalizado.
Em decorrência dessas finalidades é que
defendo uma postura crítica em relação a
esses parâmetros (LOPES, 2002, p. 389).
Essas ressignificações ou
recontextualizações, na expressão usada por
Bernstein (1996), hibridizam discursos
curriculares internacionais na tentativa de obter,
entre outras coisas, ampla legitimação discursiva.
Essa grande amplitude pode ser
justificada, em parte, pela empatia induzida ao se
ler algo que se defende, mesmo estando presente
em meio a várias outras teorias antagônicas a esta.
Assim, orientações curriculares
geralmente são genéricas e misturam discursos
defendidos por escolas teóricas distintas: o
desenvolvimento de competências, a eficiência, a
valorização dos objetivos, a educação para a
igualdade e para a justiça social, a celebração da
diversidade, entre outras.
Cabe aos pesquisadores de currículos não
mais apenas identificar ou “desmascarar” esses
discursos híbridos, mas também compreender suas
intenções ocultas. Para Lopes (2005):
Na investigação das políticas de
currículo, cabe entender os processos
materiais e discursivos que favorecem tais
consensos e finalidades, bem como as
zonas de escape que são favorecidas. Do
ponto de vista material, há investimentos
em certas linhas e não em outras,
discursivamente há a legitimação de
certos discursos e não outros, muitas
vezes favorecida pela associação desses
textos com matrizes de pensamento que
Práticas sociais híbridas: contribuições para os estudos curriculares em Educação Matemática 101
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 95-102, jul./dez.2012
circulam em diferentes grupos sociais e
mesmo nos meios educacionais. Assim
como é necessário considerar como as
dimensões discursiva e material também
se associam (LOPES, 2005, p. 60).
Todas essas possibilidades de pesquisa
revelam uma crescente valorização de
procedimentos metodológicos relacionados à
análise de discurso e à bricolagem em detrimento
daqueles que utilizam categorizações definidas a
priori e análise de conteúdo.
Considerações finais
Como anunciado no início deste artigo,
nossa intenção foi elaborar uma construção
argumentativa contra a ideia de práticas sociais
universais. Ao contrário, podemos pensar em
práticas sociais híbridas, vivenciadas e
produzidas em contextos culturais plurais, nos
quais os conceitos de hegemonia, de nação com
fronteiras bem delimitadas e de ideologia são
relativizados e atenuados por tendências culturais
contemporâneas.
Nesse quadro que se delineia atualmente,
não é apropriado pensar em orientações
curriculares centralizadoras, as quais são
constituídas, em sua maioria, por listas infindáveis
de conteúdos rigidamente sequenciados e com
suas respectivas expectativas de aprendizagem
esperadas dos estudantes bem definidas, tudo
meticulosamente engendrado em função de
avaliações em larga escala.
Por outro lado, pela experiência que
obtivemos com o trabalho na formação inicial e
continuada de professores de Matemática,
sabemos que os docentes, muitas vezes, anseiam
por essas listas e por instruções diretivas. Então, o
que fazer?
É fundamental que haja uma aproximação
entre pesquisadores e professores, estreitando
relações e diminuindo as distâncias que separam
as “academias” das escolas. Essa distância não é
só física, mas também teórica. O hiato que há
entre a teoria curricular valorizada no campo
cientifico e as práticas educativas é enorme.
Há que se buscar meios para que cheguem
até os professores discussões como as feitas neste
artigo, valorizando a pluralidade social e cultural,
não como mera celebração das diferenças, mas
sim com uma visão crítica sobre a necessidade de
desenredar os fios que constituem essa complexa
e rica teia de significações que o currículo possui.
A nosso ver, o conceito de hibridação dos
estudos culturais, trazido para os estudos
curriculares, é uma possibilidade de compreender
criticamente os discursos subjacentes,
descortinando intenções ocultas, relações de poder
e planejamentos que valorizam excessivamente a
performance em detrimento do enaltecimento da
construção de valores humanos, os quais são
incomensuráveis.
O professor deve conhecer, debater,
questionar, e, porque não dizer, hibridizar essas e
outras perspectivas que podem enriquecer suas
práticas.
As teorias curriculares se desenvolveram
com rapidez exponencial no último século, porém
a escola continua reproduzindo padrões fabris da
época da Revolução Industrial.
É recomendável que aceleremos o ritmo
de formação de formadores de professores, pois só
assim poderemos democratizar o conhecimento
científico curricular, que hoje parece estar
reduzido a um grupo pequeno de pesquisadores
que avançam rapidamente sem olhar para trás,
ignorando a possibilidade de, um dia, ficarem
sozinhos e serem compreendidos apenas por seus
pares. Será que esse dia já chegou? Talvez.
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Sobre o autor:
Marcio Antonio da Silva é licenciado em Matemática (Universidade de São Paulo, 1998), mestre em
Educação Matemática (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004) e doutor em Educação
Matemática (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009). Atualmente é Professor Adjunto, lotado
no Centro de Ciências Exatas e Tecnologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Campo Grande,
MS), professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática e do Programa de Pós-
Graduação em Educação, na mesma instituição. Também é líder do GP100 (GPCEM – Grupo de Pesquisa
Currículo e Educação Matemática), criado em agosto de 2012.
103
* Endereço eletrônico: [email protected]
** Endereço eletrônico: [email protected]
IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior1
Lia Scholze*
Iolanda Bezerra dos Santos Brandão**
Resumo
O presente artigo discute a importância do acolhimento, do desenvolvimento da linguagem oral e escrita e da
reflexão na trajetória de alunos ingressantes no Ensino Superior, marcado, muitas vezes, por dificuldades de
leitura e escrita, principalmente os oriundos de classe popular. Como uma das iniciativas de acolhimento aos
calouros, a Universidade Católica de Brasília instituiu a disciplina Introdução a Educação Superior (IES),
cujo paradigma metodológico se traduz em uma mediação pedagógica que apóia os estudantes na construção
da competência acadêmica necessária para uma eficiente formação, introduzindo-os na reflexão teórica e na
compreensão da universidade como espaço de ensino, pesquisa e extensão. A pesquisa2 desenvolvida ouviu
dos estudantes em que medida e como a disciplina foi percebida como importante na sua inclusão e
permanência no Ensino Superior e preparação de sua formação acadêmica. Aponta para o desafio das
instituições de Ensino Superior em oferecer condições de permanência e sucesso aos estudantes.
Palavras chave: Linguagem; Reflexão; Inclusão; Ensino Superior.
IUSE - An inclusive experience in the higher education
Abstract
The article discusses the importance of welcoming, of developing oral and written skills and of reflecting for
undergraduate students as they are admitted to College, often related to reading and writing skills, mostly for
those who belong to unprivileged social classes. A welcoming initiative devised by the Catholic University
of Brasilia consists of a subject named Introduction to Undergraduate Students Education (IUSE), consisting
of a pedagogical mediation to assist undergraduate students in their process of constructing the appropriate
academic competence they need to accomplish their goals. The subject offers the opportunity to develop
theoretical reflections that promote the understanding of the University as a learning, research and extension
institution. The research carried out with these students intended to listen to their evaluation in terms of their
perception of the importance of the IUSE for their inclusion and for not dropping out, as well as for an
efficient preparation to academic education. The article also points out to the challenge faced by College
Institutions in terms of offering the necessary conditions for these students to remain in the institutions and
have a successful outcome.
Keywords: language; reflection; inclusion; higher education; IUSE
Na educação superior do Brasil está
ocorrendo um novo fenômeno, que vem
democratizando o acesso de estudantes oriundos
da classe popular, geralmente provenientes de
escolas públicas. Na última década, a educação
superior cresceu mais que em 200 anos, atingindo
hoje seis milhões de alunos. Essa ampliação deve
ser comemorada, ainda que represente menos de
15% dos jovens entre 18 e 24 anos nesse nível de
ensino. Entretanto, a admissão não assegura a
inclusão efetiva desses estudantes no nível
superior e tampouco sua permanência. Este é um
objetivo ainda em construção.
Com a preocupação de atender aos novos
desafios impostos pela expansão do acesso à
Universidade e aos pressupostos institucionais, a
Universidade Católica de Brasília (UCB) criou no
primeiro semestre do ano de 2010 a disciplina
Introdução à Educação Superior (IES). Seu
principal objetivo é contribuir para o
desenvolvimento das condições necessárias ao
percurso acadêmico do estudante, especialmente
dos que, historicamente, tiveram sua trajetória
escolar caracterizada pela precariedade da
escolaridade das classes populares, e prepará-los
para enfrentar de forma ética e humana os
desafios profissionais.
Espera-se que os alunos desenvolvam de
forma integral tanto sua condição de sujeito, ou
seja, sua capacidade de reflexão, quanto a sua
inserção no universo científico e produzam
conhecimentos contendo visão crítica da realidade
e da comunidade científica, bem como postura
ética frente à sua aplicação em suas atividades
profissionais e cívicas.
A disciplina IES oferece aos estudantes
estratégias de ensino-aprendizagem, com especial
cuidado na acolhida, com base em propostas
metodológicas inovadoras de tratamento da
linguagem, prática de escrita e registro discente, a
partir da reflexão de conceitos relacionados à
comunidade científica e questões da
104 Lia Scholze, Iolanda Bezerra dos Santos Brandão
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012
contemporaneidade.
Apresenta-se como pressuposto que a
formação dos estudantes da classe popular não
lhes permitiu desenvolver suas capacidades
cognitivas em nível suficiente para enfrentar e
vencer os diferentes tipos de desafios do ensino
superior. Um dos empecilhos reais no acesso ao
conhecimento científico está relacionado à falta de
domínio da linguagem oral e escrita. A par disso,
preconceitos e processos de exclusão perpetuam-
se no ensino superior quando não se acredita na
capacidade do estudante, e quando a sua situação
econômica é compreendida como definidora de
desempenho.
As recentes políticas públicas de inclusão
possibilitaram o ingresso de estudantes que há
bem pouco tempo não se permitiam se imaginar
na Universidade, principalmente em decorrência
de sua condição socioeconômica. Este ‘novo’
(Brito, 2008) aluno exige maior cuidado,
principalmente os beneficiários do Programa
Universidade para Todos - PROUNI e dos
Programas Sociais oferecidos pelos Institutos de
Educação Superior, uma vez que sua trajetória
cultural está em descompasso do ideal de aluno
esperado pela Universidade que, historicamente,
no Brasil, teve em seus bancos os filhos da elite.
Muitos deles também sofrem um processo
de ansiedade constituída da dualidade entre o luto
das perdas oriundas do seu passado e a
expectativa do novo que os aguarda. Percebe-se
que os primeiros contatos desses jovens com a
Universidade muitas vezes estão carregados de
um forte componente emocional, variando entre
entristecimento e euforia pelas perdas e ganhos de
sua nova condição.
Um estudante relata que “tudo aqui causa
medo e entusiasmo [...]”. Sua fala é ressonância
do sentimento de muitos, sustentada na quebra de
paradigmas entre o passado escolar por eles
conhecido e que os reconhecia e a nova realidade
vivenciada. A ansiedade instala-se.
Eles também sofrem com a dúvida em
relação a sua capacidade, como atesta a fala de um
jovem após a exibição do filme Escritores da
Liberdade (2006):
Este filme, diz respeito a minha própria
trajetória em uma escola pública [...]
quando eu disse que havia passado no
vestibular da Universidade Católica a
diretora da minha escola não acreditou
[...] na verdade apenas dois estudantes
neste ano passaram para o curso superior
eu na Católica e uma amiga na UNB.
O medo do não pertencimento eleva
significativamente a ansiedade provocada pelo
novo ambiente e os novos grupos sociais que
serão ou estão sendo estabelecidos, aumentando o
desejo de retornar ao ponto de conforto
vivenciado no passado recente, apesar das
condições da escola pública, cuja estrutura, na
maioria dos casos, apresenta diferentes níveis de
precariedade. Conforme relata Gardner (2000),
quando os indivíduos não conseguem alterar o que
está lhes trazendo ansiedade, tendem a evitar o
contato com os grupos que lhes provocam tais
emoções, ficando isolados e perdendo a
possibilidade de desenvolver sua linguagem, que
depende dessa interação, conforme o conceito de
mit-sein - ser com o outro, de Heidegger (1967).
Enfrentando desafios
O cuidado com a acolhida se faz
necessário, tendo-se em vista que parte
considerável dos estudantes manifesta experiência
de encanto e, ao mesmo tempo, intimidação nos
primeiros dias na Universidade. Tudo é novo,
diferente e, para muitos, grandioso demais. No
mínimo assustador. A obrigação de compreender
este momento e, principalmente, de propiciar
dentre as ações pedagógicas um trabalho de
acolhida é imprescindível, como forma de ajudar a
minimizar os impactos nocivos desses primeiros
contatos, considerando as expectativas dos
estudantes que acessam o espaço acadêmico
oriundos das mais diversas vertentes sociais,
econômicas e culturais.
A disciplina IES pretende propiciar um
olhar específico e, ao mesmo tempo, abrangente
do papel social do indivíduo-estudante, na
perspectiva de ele vir a se tornar transformador de
sua própria história e da sociedade.
A importância do processo de acolhida
por parte da Universidade reside em devolver-lhes
a palavra, desafiando sua autoria e autonomia
(FREIRE, 1978, 1996), ampliando sua habilidade
no uso da linguagem, provocando a linguagem
reflexiva. Pensar na transição do texto escolar
para a elaboração de um texto
argumentativo/reflexivo, com perspectiva de
iniciação na produção do texto científico, é um
desafio que precisa ser encarado. Na
Universidade, o esforço a ser feito é o de preparar
o estudante, independente de sua origem escolar,
para o uso da linguagem elaborada (FOUREZ,
1995). Porém, esse caminho exige estratégias a
serem seguidas, e a escrita de si, histórias de vida
ou autonarrativas (diferentes denominações para o
mesmo processo) se mostra como um bom
começo. De acordo com Arendt (1995), pela
escrita, o homem representa a vida, cria
IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior 105
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012
narrativas, interroga as ações dos outros homens;
dá sentido à sua própria vida através das histórias
que conta.
O sujeito estabelece a reflexão consigo
mesmo, sobre sua relação com os outros sujeitos e
também com o mundo, criando novas
possibilidades para sua existência, numa
permanente recriação da mesma. Como diz
Larrosa (1995), é transformado pela experiência.
O sujeito não só passa pela experiência, mas,
também a experiência passa por ele, provocando
uma mudança na sua sensibilidade, no seu nível
de conhecimento e na sua visão de mundo,
alargando sua experiência de sujeito (SCHOLZE,
2005).
Com base nas concepções heideggerianas
sobre a condição humana, passa-se a entender que
ela é atravessada pela compreensão da linguagem
como elemento fundamental e necessário, pois,
segundo o autor, somos “ser de linguagem”. A
reflexão e a escrita caminham juntas e fazem parte
da condição humana, ligando o ser humano à vida
como experiência vivida que irá se concretizar no
registro dos pensamentos e das reflexões
(ARENDT, 1995). Para Arfuch (2002), ao se
colocar ordem nas idéias, coloca-se também,
ordem no caos da existência.
A escrita como exercício constante,
abordando diferentes temas de interesse atual,
provocando reflexões sobre conceitos da
contemporaneidade, considerados fundamentais
para quem ingressa no ensino superior, traz
consigo desafios, como a cada vez maior
competência do estudante na produção de textos;
garantia de exposição clara, progressão de idéias,
proximidade com a norma culta, proximidade com
o texto acadêmico e/ou científico, uso das normas
da escrita científica.
Porém, esse esforço pode produzir efeito
contrário, pode parecer assustador. Refletir sobre
questões abstratas, ler, interpretar autores
reconhecidos academicamente, ser capaz de
utilizar os conceitos na sua própria escrita, é um
desafio que nem sempre é encarado com
tranquilidade.
Foucault (1994) afirma que o ato de
escrever serve para mudar a nós mesmos, e a não
pensar mais o mesmo que se pensava antes de ter
passado pela experiência da escrita. É necessário
compreender que os sentidos do discurso (texto)
são construídos tanto na relação subjetiva do
sujeito consigo mesmo, como intersubjetiva do
sujeito com outros sujeitos - mit-sein
(HEIDEGGER, 1967) ou dialogismo (BAKTHIN,
1995). Para tanto, é preciso que as relações no
grupo sejam amistosas e cooperativas; que haja
respeito pela trajetória do estudante,
compreendendo que ao longo da sua vida
estudantil ele foi instado a fazer silêncio.
É preciso criar estratégias significativas,
que façam sentido para eles e que não promovam
a auto-exclusão, resultante do sentimento de
incapacidade ou da certeza antecipada de fracasso
que tem o poder de imobilizar a ação. Ao
professor cabe a responsabilidade de ajudar o
estudante a vivenciar este novo universo. O
desafio proposto é de construir uma nova
narrativa de si através da certeza na capacidade de
alcançar um novo patamar de relação com o
conhecimento.
Ao serem introduzidos na Universidade e
terem acesso a atividades que requeiram
autonomia, visão crítica e autoria, rompem-se os
paradigmas construídos por mais ou menos dez
anos de vida escolar. É compreensível que haja
resistência. Porém, se não for explorada a prática
da reflexão oral e escrita, sonega-se ao estudante o
caminho seguro de sua autonomia intelectual.
Estamos diante de um desafio: as turmas
estão cada vez menos homogêneas. Nossos planos
de ensino precisam ser revistos, o que não
significa rebaixamento de qualidade, como
pensam alguns, e sim o delineamento de uma
nova abordagem.
O desejo é que o trabalho desenvolvido
contribua para a formação integral do estudante;
aumente suas chances de sucesso na vida
acadêmica; diminua os índices de evasão
resultantes da auto-exclusão diante da descrença
na possibilidade de vencer os desafios naturais
desta etapa de formação; que o estudante sinta-se
acolhido e apoiado no enfrentamento de eventuais
dificuldades e confiante na sua possibilidade de
superação; que esteja mais bem preparado para
seguir em frente, aceitando sempre novos
desafios.
Motivação da pesquisa
O desenvolvimento da disciplina IES
tornou-se objeto de interesse de um grupo de
pesquisadores da UCB interessados no
desenvolvimento pedagógico e, principalmente,
em como os estudantes percebem a proposta da
disciplina.
Após definição do marco teórico e da
metodologia, foram analisadas as avaliações
institucionais referentes ao primeiro ano da
disciplina, em 2010, constituídas de cartas
(relatos de estudantes, em linguagem coloquial, de
suas vivências na disciplina IES, a um amigo,
familiar ou estudante candidato a ingressar na
UCB) e memoriais (por meio dos quais, os
estudantes relatavam suas experiências de
106 Lia Scholze, Iolanda Bezerra dos Santos Brandão
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012
aprendizagens acadêmicas focando,
especialmente, os conteúdos trabalhados no
semestre).
A disciplina é organizada através de dois
encontros semanais de quatro horas cada
perfazendo 120h/aula. A pesquisa foi intitulada:
Contribuições da disciplina Introdução à
Educação Superior no processo de inclusão
efetiva dos estudantes.
A principal questão que orienta o projeto
de pesquisareside na análise dos recursos
e métodos necessários ao esforço de
superação do que Bourdieu e Passeron
(2008) chamaram de “exclusão adiada”.
As classes populares têm menos
oportunidades materiais e educacionais a
oferecer aos seus membros e lidam com
dificuldades incessantes; por força desses
fatores, os estudantes, em sua maioria,
oriundos de escolas públicas, demonstram
propensão maior à eliminação; o sistema
assim se reproduz, legitimado pela escola.
Mesmo os ‘casos de sucesso’ de
estudantes provindos de classes populares
não testemunham o contrário dessa
constatação, uma vez que servem ao
intuito ideológico de retirar ao sistema
toda culpabilidade – sua retórica insiste
em que basta as pessoas se esforçarem, e
é certo que todos podem ser bem-
sucedidos” (Justificativa do Projeto de
Pesquisa, UCB, 2010).
O resultado da investigação desses
pensadores franceses auxilia-nos no melhor
entendimento da especificidade do caso brasileiro,
mormente no que tange a um risco em que pode
incorrer a nossa educação superior: o de haver no
crescimento do acesso ao ensino superior uma
possível dissimulação da exclusão mediante uma
inclusão aparente. Juntamente com o desafio e
necessidade do aumento de vagas no ensino
superior, faz-se necessária a busca por uma
inclusão efetiva desses estudantes, garantida por
políticas pedagógicas de permanência.
Assim, o projeto de pesquisa
desenvolvido procurou identificar em que medida
o conteúdo da disciplina IES contribui com o
engajamento dos estudantes ingressantes na
Universidade aos propósitos institucionais, através
da análise dos registros acadêmicos.
A pesquisa consiste na análise,
investigação e compreensão das falas dos
estudantes quanto à percepção das estratégias
pedagógicas envolvendo a acolhida, o cuidado
com a linguagem e a reflexão desenvolvidas no
interior da disciplina e o esforço da Direção do
Curso de Filosofia, Coordenação da disciplina e
do grupo de professores envolvidos em garantir a
efetiva inclusão e permanência dos estudantes na
Instituição e desenvolver neles o sentimento de
pertença ao mundo acadêmico, indo ao encontro
dos propósitos Institucionais apresentados na
missão pedagógica da UCB.
Assim, procedeu-se ao exame da
produção escrita, a forma como foram percebidas
as ações de recepção aos estudantes, escuta
sensível (BARBIER, 2002) das histórias de vida,
impacto da relação docente-estudante e estudante-
estudante, entendimento da Universidade como
espaço que privilegia a crítica, sedimentada a
partir do diálogo; atividades de aprimoramento da
reflexão dos estudantes com uma rotina
preocupada com registros e acompanhamento,
reescritura/reflexão crítica; a perspectiva dialógica
dada à linguagem na disciplina, aprimoramento da
competência linguística, capacidade de reflexão e
desenvolvimento de autoria.
Constituem-se como universo da
pesquisa, 115 estudantes, do total dos quase 3.000
ingressantes na Universidade em 2010, maiores de
18 anos, selecionados de forma aleatória nas
diversas turmas. Foram coletados os Termos de
Consentimento e Livre Esclarecido, com
assinatura de forma voluntária, conforme
exigência do Comitê de Ética em Pesquisa,
devidamente protocolados.
A pesquisa tem em sua natureza a
dimensão da compreensão do contexto sócio-
histórico, onde todos os sujeitos envolvidos no
processo são participantes ativos, ou seja, são
sujeitos do processo. Cabe, pois, a abordagem
metodológica a partir da hermenêutica.
A racionalidade hermenêutica trabalha
com a pertença do sujeito à história e a
constituição de sentido como obra de
subjetividade não isolada e separada da história.
Baseada na premissa de que somente é possível
compreender no horizonte do ser, justifica-se o
esforço em retomar a história do sujeito como
elemento chave do processo de acolhida e de
inclusão no lugar denominado mundo acadêmico,
ou ensino superior.
A hermenêutica argumenta que há outras
formas de conhecer a realidade, a partir, inclusive,
de outras experiências tais como as
proporcionadas pela arte e pela consciência
histórica (HERMANN, 2002). Ela é a arte de
compreender, derivada de nosso modo de estar no
mundo. Segundo Gadamer,
Compreender significa que eu posso
pensar e ponderar o que o outro pensa.
IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior 107
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012
[...]. Compreender é, portanto, uma
dominação do que nos está a frente, do
outro e, em geral, do mundo objetivo
(2000, p. 23).
Na perspectiva da investigação
hermenêutica (GADAMER, 2000) nas ciências
humanas e na filosofia, tudo se converte em texto.
O método de análise dos dados parte da
hermenêutica, que está diretamente ligada à
linguagem. É uma relação reflexiva entre o objeto,
os dados e o pesquisador. A atitude de abertura do
pesquisador é fundamental, visto que a própria
consciência hermenêutica aponta para a
experiência constante de construção. Não há,
portanto, certezas, mas a construção a partir da
interpretação da linguagem, dos símbolos, do dito
e do não-dito.
Gadamer (2000) sugere sete princípios
para a condução da pesquisa: compreensão através
de uma reflexão dialógica (os pesquisadores
dialogaram com os textos em análise, procurando
extrair deles as pistas que o conduziram à
compreensão dos elementos presentes);
contextualização – fundo social e histórico
(compreensão de que o texto foi produzido em um
determinado momento e em determinadas
circunstâncias); interação entre pesquisador e
participantes (os pesquisadores se colocaram
como elemento integrante, no caso, são todos
membros atuantes da disciplina); abstração e
generalização – as conclusões gerais são
abstraídas de seus detalhes ideográficos
(individuais) e aplicadas (os textos dos estudantes
formam o corpus, porém procurou-se resguardar
as especificidades de cada um dos discursos
analisados); raciocínio dialógico – diante das
contradições entre os preconceitos teóricos e as
conclusões emergentes dos dados (na primeira
leitura foi feito um esforço de percepção do que
os dados tinham a dizer, evitando uma visão pré-
formada a partir de eventuais expectativas que
tenham sido criadas); múltiplas interpretações –
múltiplas vozes oferecem diferentes e novas
interpretações (procurou-se perceber as
recorrências mas também as singularidades, o dito
e o não-dito, os silenciamentos, e o novo, o
diferente); suspeita e sensibilidade – em relação
aos preconceitos do próprio pesquisador (o
esforço foi feito no sentido de não dar ênfase à
nossa própria expectativa, e manter a postura de
abertura em relação ao que o texto nos mostra,
procurou-se prestar atenção aos nosso próprios
preconceitos, evitando deixar que eles orientassem
a leitura).
Em uma análise textual, procura-se
sistematizar respostas para as questões
formuladas, confirmar ou não as elaboradas para a
pesquisa. A outra função diz respeito à descoberta
do que está além da superfície do texto.
Pelos escritos dos estudantes, objetiva-se
compreender se os propósitos da disciplina estão
sendo alcançados, numa perspectiva de
compreensão dessas falas no contexto do ensino
superior, hoje.
Análise preliminar de dados
A expectativa inicial dos pesquisadores é
que as escritas dos estudantes possam ajudar na
reflexão a respeito das condutas pedagógicas dos
professores da IES e os demais cursos da
Instituição.
O enfrentamento das condições
acadêmicas dos estudantes pesquisados pode ser
observado nos escritos. Das 115 cartas analisadas,
50 relatam o importante processo de acolhimento
da IES, citando seu passado escolar, muitas vezes
carregado de dificuldades na leitura e na escrita e,
ao mesmo tempo, relatando o quanto a disciplina
favoreceu em sua inserção no ensino superior.
A apreciação das cartas foi realizada à luz
dos objetivos da disciplina: Cuidado com a
Acolhida; Cuidado com a Reflexão e Cuidado
com a Linguagem, tendo como basea
metodologia, os conteúdos e a rotina em sala de
aula desenvolvida pela IES.
108 Lia Scholze, Iolanda Bezerra dos Santos Brandão
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012
Fonte das tabelas e gráficos: Relatório de Pesquisa 2011: Contribuições da disciplina Introdução à Educação Superior
no processo de inclusão efetiva dos estudantes.
Algumas falas chamam a atenção:
“Aprendi a me comportar como universitário e
como utilizar as ferramentas certas nessa nova
realidade que é a Universidade”, o que contribui
para a construção de um espaço pedagógico que
favoreça a pertença ao grupo. Outra fala chama a
atenção para os “[...] vários debates e várias
reflexões para desenvolver o senso crítico [...] e o
professor está sempre disposto a ajudar, aberto a
opiniões e ideias”3.
A recorrência deste aspecto deve-se à
própria natureza de acolhida da disciplina que
compreende o estudante como sujeito do processo
de construção do conhecimento na ressignificação
de tempos e espaços escolares e das relações e
tensões constitutivas da sala de aula.
Fonte das tabelas e gráficos: Relatório de Pesquisa 2011: Contribuições da disciplina Introdução à Educação Superior
no processo de inclusão efetiva dos estudantes.
Destacam-se citações positivas de 68
estudantes sobre a relação construída entre eles e
seus professores. Este item apresentou maior
número de ocorrências. Percebe-se que essa
relação é considerada como um elemento
importante do aprendizado. “A professora se
esforça em suas aulas, sempre montando aulas
dinâmicas com temas interessantes. Nas chamadas
ela tem seu ritual, conversa com cada um, uma
forma de testar o humor e ver como os alunos
estão presentes”.
Pode-se dizer que é algo que os
surpreende, tanto pela proximidade, pela abertura
ao diálogo, quanto pela atenção recebida.
Percebem, também, que as exigências têm como
finalidade garantir o aprendizado.
[...] quero te agradecer desde o momento
da chamada em que você sempre nos
perguntava como estávamos nos sentindo
naquele dia [...]. Com os registros
estimulei uma capacidade maior de
escrever, sua relação comigo e com os
outros estudantes foi muito agradável,
IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior 109
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012
quanto aos outros colegas, agora amigos.
A respeito das relações entre os
estudantes, considerando-se a diversidade de
alunos provenientes de vários cursos nas turmas
de IES, 60 alunos atribuem muitaimportância aos
laços de amizade e companheirismo entre os
colegas de turma. A troca nos debates e os
trabalhos em grupo são apontados como de grande
validade no crescimento das relações interpessoais
que são fortalecidas dentro da IES. “Meus colegas
de sala são participativos, gostam de debate, falam
o que acham sobre determinado assunto [...] posso
falar que aproveitei muito essa matéria aprendi
com as pessoas que caminharam comigo [...]”.
Também “Aqui como todos os lugares existem
aquelas “Panelinhas” mas qualquer pessoa pode
interagir com esses grupos, pois aqui existem
pessoas acolhedoras [...] elas, não vão te deixar
sozinho”.
Fonte das tabelas e gráficos: Relatório de Pesquisa 2011: Contribuições da disciplina Introdução à Educação Superior
no processo de inclusão efetiva dos estudantes.
Os estudantes reconhecem suas limitações
e admitem que a disciplina os auxilia no aumento
da qualificação de sua produção oral e escrita bem
como no aprofundamento dos níveis de leitura.
Apresentam ponderações a respeito da
reorganização do modo de pensar sobre os
conteúdos, metodologia de apresentação,
discussão, debate e reflexão. “[...] Eu aprendi
fazer resenha, lembra que o professor [...] passou
dois anos para tentar me ensinar, pois é, em
menos de seis meses eu aprendi a fazer resenha,
resumo, fichamento, registros e entre outros”.
Refletem sobre as exigências na leitura e
na escrita como forma de garantir o aprendizado.
Leitura e escrita é um fator muito
importante porque abre novos horizontes.
A leitura para nós é de grande valor quem
não lê, não fala, não escreve e não pensa.
[...] Escrever é transpor seus
pensamentos, suas opiniões para um
papel e aperfeiçoar a cada instante, a
cada dia [...].
Nessa disciplina deu para perceber que
tudo que estudamos faz parte do nosso
cotidiano, que forma nossa maneira de
viver e de pensar. [...] Então podemos
concluir que através de nossa linguagem
e nosso pensamento podemos construir o
mundo que somos e o mundo que
sonhamos.
As dificuldades advindas do baixo
rendimento escolar na rede pública de ensino
também são registradas pelos estudantes: “[...]
quando decidi fazer minha faculdade pensava eu
que seria muito difícil encarar essa nova
experiência, devido o ensino que tive em algumas
escolas públicas que estudei [...]”. Outro estudante
relata “O Senhor sabe que como sempre estudei
em escola pública, deixei de aprender muitas
coisas, só que aqui eu estou recuperando o tempo
perdido e aprendendo pra valer [...]”.
110 Lia Scholze, Iolanda Bezerra dos Santos Brandão
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012
Fonte das tabelas e gráficos: Relatório de Pesquisa 2011: Contribuições da disciplina Introdução à Educação Superior
no processo de inclusão efetiva dos estudantes.
Análise dos memoriais
A leitura dos memoriais foi realizada de
forma livre, seguindo a perspectiva hermenêutica
de ouvir a voz do sujeito partindo da escuta livre
dos discursos produzidos pelos sujeitos
envolvidos na pesquisa.
Os memoriais mencionam a importância
de elementos como: metodologia (proposta da
disciplina permite relacionar diferentes temas e
conceitos); conteúdos (materiais
diversificados/atividades/temas – assuntos
variados/habilidades desenvolvidas) e o trabalho
com a leitura e escrita.
O aspecto mais importante a destacar é o
fato de que quase 100% dos estudantes expressam
uma percepção positiva – dos 115 memoriais
analisados, apenas três fazem algum tipo de
restrição à disciplina. Um deles apresenta um
texto contraditório pois afirma no final a
importância da IES para seu curso.
Com relação a sua vivência no espaço
universitário, os estudantes, na mesma perspectiva
já apresentada nas cartas, demonstram percepção
positiva e, ao mesmo tempo, grande expectativa
com relação ao seu ingresso na Universidade. Para
eles, a disciplina IES facilita o processo de
integração ao mundo acadêmico.
As abordagens desenvolvidas na
disciplina sobre Ética/Conhecimento e Ciência
foram destacadas pelos estudantes, quanto a sua
relevância na compreensão do sujeito crítico
frente à realidade de sua vida pessoal e
profissional. Permite pensar o futuro, ressignificar
seus sonhos e projetos.
Sei que a universidade será de grande
valia na minha formação, na
concretização de meus sonhos [...] quero
ser um profissional de sucesso, e sei que a
universidade vai me abrir caminhos, e vai
me capacitar para alcançar meus
objetivos e realizar meus sonhos.
A superação pessoal e familiar é um tema
abordado pelos estudantes, principalmente os
oriundos de escolas públicas. “outro fator
importante é que meus pais não tiveram a
oportunidade de cursar o ensino superior e isto me
dá razão para eu estar na universidade hoje [...]”.
Destaca-se a possibilidade encontrada na
disciplina de ampliação das relações de amizade
construídas além de seu próprio curso, uma vez
que as turmas da IES são constituídas de
estudantes de diversos cursos. “Aprendi a aceitar
[...] as outras pessoas como seres humanos [...]
com histórias e sonhos diferentes”. E, “[...]
podemos compartilhar experiências, ter contato
com pessoas de outros cursos”.
A relação estudante/docente, também, é
um dos elementos apontados como fator
preponderante no processo de aprendizagem dos
estudantes. “Concluo que o professor me
introduziu em mundo novo, nos proporcionou
novas experiências podendo assim, ter melhor
visão da realidade”.
A respeito dos conteúdos da IES, alguns
aparecem com mais evidência: o trabalho com
filmes; as Normas da Associação Brasileira de
Normas Técnicas – ABNT; a produção de
resumos, sínteses. Os temas abordados são
considerados atuais, variados e diversificados. Os
diferentes ambientes de aprendizagem, as
palestras, a visita à biblioteca, a apresentação de
filmes e documentários, as atividades ao ar livre,
compõe um conjunto de ações, visto como
favorável à motivação e ao envolvimento dos
estudantes.
Pode-se constatar a partir das falas: “[...]
os textos lidos, os vídeos assistidos e todas as
IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior 111
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012
dinâmicas feitas em sala de aula, podendo ter
comunicação com todos os colegas, tudo isto me
fez ter um reconhecimento diferente da disciplina
e tenho vivido isto a cada aula”. E “Na IES
aprendi outras questões além do meu curso,
aprender sobre políticas públicas. Aprender sobre
a universidade foi fundamental para me sentir
parte do espaço da universidade e deu segurança”.
Ou ainda,“[...] a minha evolução foi superior em
relação ao que eu esperava [...], hoje a minha
visão é outra, o interesse pela leitura de mundo
aumentou e tenho tido experiências a partir do que
eu tenho visto e vivido em sala a disciplina me
trouxe um despertamento [...]”.
A dificuldade de compreender e,
inicialmente, fazer uma correlação positiva da IES
com sua trajetória acadêmica é claramente
demonstrada pelos estudantes. A superação dessa
primeira percepção vai ser construída à medida
que compreendem o processo pedagógico da
disciplina e sua importância na sua formação
profissional. Como podemos constatar nos
excertos abaixo:
A IES no primeiro momento parece uma
pressão, porem é possível perceber que é
uma qualificação para o preparo para a
pesquisa e dedicação ao estudo. Aprender
a se desprender do senso comum foi um
ganho na IES e também aprender a
colocar o que a prendo no curso dentro
do contexto pesquisa e extensão.
Ou ainda, “[...] essa disciplina foi se
mostrando bem diferente com aulas mais
dinâmicas onde podemos expressar nosso ponto
de vista sobre os fatos e temas apresentados pelo
professor em sala de aula”.
A IES ensinou a enfrentar os desafios e a
melhorar as deficiências de
conhecimentos. A IES é o inicio de um
grande caminho de aprendizagem e de
conquistas. São muitos os desafios. Tem
cansaço, correria, desafios, desânimo,
mas a universidade é a oportunidade de
mudar de vida. O mercado de trabalho
precisa de pessoas boas, que busquem
soluções para os problemas sociais que
assolam o país. Os assuntos estudados em
IES tem tudo a ver com a realidade
vivenciada. A universidade nos possibilita
ver o mundo de forma diferente.
Como também, “[...] a IES foi bastante
importante na minha caminhada até aqui,
contribuindo sim para consolidar minha escolha,
posso dizer que tenho certeza do curso em que
quero me formar”. E,“IES, é desafio de que a
construção do conhecimento é gradativa e
constante [...]”. Ainda, “A IES ajudou na
construção do texto e na interpretação assim como
na exposição em público. IES colabora na
abertura das ideias e da visão de mundo”. Bem
como,“IES é uma matéria aparentemente sem
importância, mas que vai conquistando e
mostrando seu valor ao longo do semestre. Hoje
vejo que melhorei muito graças a essa matéria, e
sei que todos que passarem por ela também
crescerão muito com ela”. Também,“Esta
caminhada pela disciplina IES também vai ajudar
na minha carreira profissional [...] esse senso
crítico adquirido na graduação será de grande
valia [...]”.
Três aspectos também compõem os
escritos dos memoriais dos estudantes: o processo
de acolhida que recebem, desde os primeiros
encontros da IES, por parte dos docentes; o
processo de transição entre Ensino Médio e o
Ensino Superior e a utilização de materiais
diversificados como componente didático
pedagógico.
“[...] pude perceber a importância da
sensibilidade, a atenção as relações humanas fatos
todos apresentados pelo professor [...] e que é
essencial para o convívio na sociedade, o
respeito”. E,
[...] ansiosos por conhecer o novo mundo
universitário, somados a vontade de
ensinar da professora que ministrou a
disciplina, me fizeram olhar para trás e
perceber o que havia de certo e errado na
minha trajetória, bem como auxilio a
planejar o caminho que ainda virá que,
com conhecimento já adquirido pode ser
de sucesso.
Ainda, “Sempre estudei em escola
pública, na cidade onde vivo não existe recursos
que possam ajudar com êxito na formação de
grandes profissionais, com muito esforço consegui
chegar aonde estou”. Bem como,“IES apresenta o
papel da universidade para o estudante. O papel
da ciência e do conhecimento para o
desenvolvimento da sociedade. Conhecer sobre as
comunidades científicas e modelos de estudos”.
Ou ainda, “Universidade é SONHO”.
Sinto-me privilegiada por ter tido a
oportunidade de cursar a disciplina de
IES porque muito me acrescentou para
seguir minha carreira com disposição de
ajudar aos próximos. Sem contar que
112 Lia Scholze, Iolanda Bezerra dos Santos Brandão
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012
superei o meu medo e receio de falar em
publico por me sentir tranquila nas aulas
devido a maneira como as mátrias foram
dadas (meio de diálogo, deixando aberto
espaço para reflexão de outras
possibilidades de pensamento).
“IES ajuda na argumentação e manter
ideias para a construção de pensamentos
diferenciados. IES ajuda no contraponto da média
que relata uma parte da realidade. Vários textos
utilizados foram importantes para a mudança e
construção de argumentos”. E, “[...] as aulas de
IES não contribuíram apenas na minha formação
de um ser humano melhor, mas flexível, mas
solidário, mas compreensível, mas humano. A
importância dessa matéria vai muito além da
formação de um profissional competente, mas
petiço e batalhador.”
Não há dúvida de que o processo de
construção e ressignificação da leitura, escrita e
oralidade por intermédio dos registros são
observados como positivos no desenvolvimento
acadêmico dos estudantes - firmar conteúdos
ressaltados na importância da escrita; textos lidos
e debates; importância da palavra; universo
simbólico; leitura, escrita e oralidade.
Exemplificamos com algumas falas dos
estudantes: “Não tinha tanta habilidade em
seminários, com a disciplina eu melhorei. Não só
neste aspecto mas também na escrita, na oralidade
do dia-a-dia e na defesa dos meus ideais [...]”.
Ou,“[...] a escrita nos diários nos proporciona uma
melhor escrita e a fixação do que temos estudado
desde o começo”. Também, “[...] quero ressaltar o
fato de que a leitura é sempre mencionada e muito
trabalhada em sala [...] o que proporciona maiores
chances de expor e debater com mais argumento e
consciência”.
Por fim, a importância de se discutir
ciência e as diversas compreensões dialógicas
entre globalização; comunidade científica;
construção do conhecimento científico; filosofia
da ciência; ciência moderna; paradigmas;
universidade e sociedade; realidade; globalização;
história de vida. Os estudantes fizeram
ponderações como: “[...] tenho tido a
oportunidade de ler de forma mais detalhada e
aprofundada várias questões relacionadas à
política, ao social, ao cultural que me fazem
refletir e criar minhas próprias críticas e
reflexões”. E, “[...] é muito bacana o fato de
termos estudado o consumo, a política, a
comunidade científica entre outros assuntos que
não fazem parte diretamente ao curso que
escolhi”. Ou ainda, “[...] formei um novo
paradigma com a minha nova realidade: sempre se
é preciso quebrar uma velha verdade absoluta e
estar aberto a uma nova; para se mudar a vida ao
mudar a nossa percepção de mundo”.
Considerações finais
As análises preliminares das cartas e dos
memoriais dos estudantes demonstram o quanto é
oportuna a proposta desenvolvida pela UCB. Os
estudantes reconhecem, de modo geral, os
diferentes níveis de crescimento que a disciplina
proporciona. Em relação aos docentes, houve um
trabalho fecundo de interação e aprimoramento a
partir da escuta dos seus alunos, oportunizando
que o processo, como um todo, sofresse um
contínuo aprimoramento, tanto em nível
metodológico, de seleção de materiais; de
aprofundamento das abordagens e de
enriquecimento das atividades; como atividades
de recepção inicial ou dos encontros temáticos.
De outro modo, nos ajuda a perceber o
quanto ainda se faz necessário trabalhar para
termos a compreensão de todo o processo que
envolve a construção e desenvolvimento desta
jovem disciplina em seus aspectos teórico, prático
e metodológico.
Pela sua própria natureza, muitas outras
questões ainda estão emergindo. Diversos
materiais produzidos pelos professores e
estudantes poderão ser objeto de análise nessa ou
em uma futura pesquisa. Hoje, após cinco
semestres de oferta da disciplina cabe uma nova
investigação para avaliar em que medida este
crescimento se deu.
Entretanto, uma constatação é claramente
observada nessas primeiras análises: a grande
responsabilidade social das instituições de ensino
superior que, alicerçadas nos diversos programas
do Governo Federal, acolhem este novo público.
O grande desafio destas instituições é
oferecer um ensino de qualidade com vista à
formação teórica, humana e social garantindo a
permanência e o sucesso dos estudantes que
acessam o espaço acadêmico, de modo que
possam, como profissionais, contribuir com a
construção de uma sociedade mais justa e
igualitária, utopia possível a partir da formação de
novos quadros nas diferentes áreas oriundos de
estratos sociais que trarão novas experiências para
suas futuras áreas de trabalho, lançando quem
sabe soluções mais éticas e mais socialmente
preocupadas com a maioria da população,
mudando, quiçá, o perfil dos profissionais em
diferentes áreas.
No cotejamento entre as Cartas e os
Memoriais observam-se manifestações positivas
em relação ao espaço universitário; as diversas
IES – Uma experiência inclusiva no ensino superior 113
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012
vivências experimentadas e o desempenho
acadêmico dos estudantes, além das relações
interpessoais desenvolvidas em ambos os
materiais.
Em que pese os documentos terem sido
escritos pelos estudantes em situação de avaliação
em final de semestre, a recorrência em quase sua
totalidade de manifestações positivas em relação a
diferentes aspectos da disciplina nos permite
concluir que houve aceitação e compreensão da
proposta pedagógica da disciplina IES junto aos
estudantes.
A apresentação dos dados coletados em
reunião interna com o grupo de professores (entre
30 a 40 docentes por semestre, dependendo do
número de matrículas) junto com a Coordenação
da disciplina e direção do Curso de Filosofia,
permitiu a reflexão sobre a trajetória da disciplina
até o presente momento, que completa cinco
semestres desde a sua implantação, no primeiro
semestre de 2010. O detalhamento de cada um dos
aspectos analisados oportuniza que o trabalho seja
constantemente ressignificado e aprimorado,
buscando cada vez garantir melhores condições de
aprendizado aos estudantes, em coerência com a
missão institucional da Universidade Católica de
Brasília.
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114 Lia Scholze, Iolanda Bezerra dos Santos Brandão
Horizontes, v. 30, n. 2, p. 103-114, jul./dez.2012
Notas
1 O trabalho foi apresentado no XVI ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Práticas Pedagógicas.
Campinas, São Paulo, 2012.
2 A presente pesquisa é financiada pela Universidade Católica de Brasília.
3 As autoras optaram por manter os escritos dos alunos de acordo com o original.
Sobre as autoras:
Lia Scholze: Doutora em Educação (UFRGS), professora da Universidade Católica de Brasília (UCB),
coordenadora da pesquisa Contribuições da disciplina Introdução à Educação Superior no processo de
inclusão efetiva dos estudantes.
Iolanda Bezerra dos Santos Brandão: Doutora em Psicologia Social (PUC/SP), professora da
Universidade Católica de Brasília (UCB), membro do grupo de pesquisa Contribuições da disciplina
Introdução à Educação Superior no processo de inclusão efetiva dos estudantes.
115
Para além da relação poder-saber: governo-verdade
Clarice Nunes Ferreira Costa*
FOUCAULT, Michel. Do governo dos Vivos – Curso no Cóllege de France, 1979-1980 (excertos).
Tradução, transcrição, notas e apresentação de Nildo Avelino, Rio de Janeiro Achiamé, 2010.
O livro ora resenhado é constituído por
um curso ministrado por Michel Foucault entre
1979 e 1980, sem edição ou verificação
acadêmica, mas que traz ao leitor a circulação de
ideias propostas pelo filósofo. Os editores do livro
afirmam que a edição oficial do curso virá a
público o mais breve possível e que por enquanto
podemos nos aventurar em excertos de Do
governo dos vivos.
Michel Foucault (1926 – 1984) é um dos
filósofos mais aclamados de seu tempo. Ao longo
de sua carreira desenvolveu o que para alguns
autores são chamadas de fases, para Veiga-Neto
são domínios foucaultianos. Levando em
consideração que a questão central da obra de
Foucault é o sujeito, o primeiro domínio é
chamado de Arqueologia, que se dedica a
descoberta do sujeito e do saber. O segundo
domínio, o filósofo desenvolve sobre o sujeito e o
poder, chamado, então, de Genealogia. No
terceiro domínio, Foucault dedica seu trabalho a
estudar o sujeito consigo mesmo. Esta é a fase da
ética, da estética e da história da sexualidade.
Do governo dos vivos é um curso dado
entre um domínio e outro; segundo Pasquale
Pasquino, colaborador de Foucault no Collège de
France, foi o inconveniente da guerra que levou o
filósofo perceber a dicotomia entre soberania,
entendida como forma jurídica, e um poder
disciplinador e normalizador, emergindo daí a
questão do governo. Por se tratar de um curso, a
leitura desta obra destoa da leitura dos livros do
autor, pois ele não se preocupa com a coerência
das palavras como ele o faz em seus livros.
A partir de 1980, Michel Foucault
introduz uma nova problematização nos
seus estudos sobre a relação de poder
através da qual ele renovou
consideravelmente seu “método” de
análise: trata-se da anarqueologia dos
saberes que consiste no deslocamento
analítico do eixo Poder-Saber para o eixo
“governo dos homens pela Verdade sob a
forma de Subjetividade” (AVELINO,
2010, p. 11-12).
O movimento que leva o autor ao cerne de
seu curso, ora resenhado, parte do abandono do
discurso da guerra como operador analítico de
poder e passa para um novo conceito de governo,
da analítica do poder à ética do sujeito.
Precisamos assim, partir do conceito de
govenamentalidade, pois
Foucault tom(a) por objeto de estudo os
modos de conceitualização das práticas
de governo com a finalidade de apreender
a maneira para qual essa
conceitualizaçao estabeleceu os objetos,
as regras gerais e os objetivos de
conjunto que são próprios ao seu
domínio. Trata-se em suma, de um estudo
da racionalização da prática
governamental no exercício da soberania
política (AVELINO, 2010, p. 17).
Sendo assim, Foucault aborda a
constituição histórica das nossas formas atuais de
obediência. Com sua genialidade, o autor conduz
suas aulas passando pela Antiguidade, a Idade
Média e a Era Moderna. Ainda, a verdade é a
desencadeadora da racionalidade neste percurso.
Na aula 1, Foucault conta a história do
Sétimo Severo, em que seu exercício de poder se
dá pela manifestação de uma verdade, revelando
que o Imperador Romano pronuncia uma sentença
de ordem num mundo estabelecido, isto é, ele
impõe uma sentença pela verdade já posta. O
poder não se manifesta sem a verdade. “(...)
Sétimo Severo rendia sua justiça e pronunciava
suas sentenças de maneira a inscrevê-las numa
ordem do mundo absolutamente visível fundada
em direito, fundada em necessidade, fundada em
verdade” (FOUCAULT, 2010, P. 31).
Foucault explica que a natureza entre o
ritual da manifestação da verdade e o exercício de
poder encontra-se
[n]um conjunto de procedimentos verbais
ou não, através dos quais é atualizada a
consciência individual do soberano e o
saber de seus conselheiros; um conjunto
de procedimentos verbais ou não através
dos quais atualiza-se qualquer coisa que
é afirmada, ou melhor, colocada como
verdadeiro, seja por oposição a um falso
que foi eliminado, discutido, refutado etc.,
116
mas que é também colocado como
verdadeiro por revelação ou ocultação,
por dissipação disso que é esquecido, por
conjuração do imprevisível (FOUCAULT,
2010, p.35).
Sétimo Severo acreditava nos astros para
o exercício de seu poder e o exercia sob o céu
astral desenhado em sua cúpula que o conduzia;
esse céu presidia “sua justiça, seu destino, sua
fortuna; se ele quis que os homens lessem como
verdade aquilo que ele fazia como política, aquilo
que ele fazia em termos de poder, tudo isso não
passava do jogo de um imperador (...)”
(FOUCAULT, 2010, p. 32).
Para, além disso, no céu estrelado “(...)
vê-se uma espécie de manifestação pura do
verdadeiro, manifestação pura da ordem do
mundo em sua verdade, manifestação pura do
destino do imperador e da necessidade que lhe
preside, manifestação pura da verdade sobre a
qual, em última instância, se fundam as sentenças
do Príncipe” (FOUCAULT, 2010, p. 34).
A respeito do Príncipe da Renascença,
Foucault explicita que há em torno dele certo
número de atividades, saberes, conhecimentos,
práticas e, ainda, afirma que
(...) o fenômeno das cortes representa
também outra coisa e que havia nas
cortes, e nessa extraordinária
concentração de atividades culturais, uma
forma de dispêndio puro de verdade, uma
forma de manifestação da pura verdade:
lá existe poder, lá onde é preciso que
exista poder, lá onde se quer mostrar que
efetivamente reside o poder, e bem, é
preciso que exista o verdadeiro; (...) A
força do poder não é independente de
qualquer coisa como a manifestação do
verdadeiro entendido para além disso que
é simplesmente útil e necessário para bem
governar (FOUCAULT, 2010, p. 39).
Nos séculos XVI e XVII o poder
principesco se fortalece, constituindo-se de uma
série de conhecimentos que possibilitam a arte de
governar. As manifestações de saber se dão
através de bruxas, astrólogos, adivinhos etc. Mas
o caminho para a constituição da razão do Estado
faz com que essas figuras façam um movimento
que foi evidentemente a sua contrapartida
negativa, neste momento “(...) é preciso caçar o
adivinho do rei, é preciso substituir o astrólogo
por essa espécie de conselheiro que foi ao mesmo
tempo o detentor e o invocador da verdade e
substituí-lo por um verdadeiro ministro que seja
capaz de fornecer ao Príncipe um conhecimento
útil.” (FOUCAULT, 2010, p. 40). Esse
movimento foi marcado principalmente pela caça
às bruxas que, como resultado da Reforma e da
Contra-Reforma, mostrou que a cristianização
havia sido muito fraca durante o século
precedente.
A partir do termo aleturgia, que é a
expressão para o verdadeiro, Foucault nos leva a
entender que a exclusão do adivinho e a caça às
bruxas nas camadas populares é um fenômeno que
tem duas vertentes: na direção do Príncipe e na
direção popular. “Era preciso eliminar aquele tipo
de saber, aquele tipo de manifestação do
verdadeiro, aquele tipo de produção da verdade,
aquele tipo de aleturgia, tanto nas camadas
populares quanto, e com mais razão, do entorno
do Príncipe e da corte”. (FOUCAULT, 2010, p.
41). Portanto, a razão de Estado deveria tomar o
lugar daquilo que fazia presidir no governo, a
bruxaria, a astrologia e a adivinhação. A Idade
Média é regulada pela Bíblia, portanto deve-se
obediência ao Papa. Na Era Moderna o Papa é
substituído pelo Príncipe e o povo deve
obediência ao Rei.
Foucault dedica-se na aula IV a falar
sobre os Regimes de Verdade, pois é a partir daí
que ele propõe estudar o cristianismo. Nas
palavras do filósofo:
Por regimes de verdade eu gostaria de
entender aquilo que constrange os
indivíduos a um certo número de atos de
verdade (...) é, portanto, aquilo
constrange os indivíduos a esses atos de
verdade, aquilo que define, que determina
a forma desses atos; é aquilo que
estabelece para esses atos condições,
efetuações e efeitos específicos. (...) um
regime de verdade é aquilo que determina
as obrigações dos indivíduos quanto ao
procedimento de manifestação do
verdadeiro. Obrigação dos indivíduos
quanto ao procedimento de manifestação
do verdadeiro, quer dizer a junção dessa
noção de obrigação com relação à noção
de manifestação da verdade em que a
verdade obriga pelo fato dela ser
manifestada (FOUCAULT, 2010, p. 67).
A verdade só se dá em relação ao outro e,
portanto, só é verdade se o sujeito se declina a ela.
Para Foucault (2010, p. 71) a frase “É verdade,
portanto, eu estou vinculado”, carrega o sentido
de - você deve se inclinar - que é imanente à
manifestação da verdade e que “é um problema
histórico-cultural” (2010, p. 72).
117
Para levantar as questões “Como tornar-se
o outro? Como, sendo o que é, tornar-se
inteiramente o outro? Como, estando, nesse
mundo, passar a um outro? Como, estando no
erro, passar à verdade etc?” Foucault faz uma
reflexão sobre o batismo, a ressurreição, a
mortificação e nos revela que o problema da
ruptura da identidade “gerou-se para nós o
problema da relação entre a subjetividade e a
verdade.” Ele, ainda, afirma que no cristianismo a
relação entre subjetividade e verdade “foi pensada
a partir da morte” (FOUCAULT, 2010, p. 82).
Se um ato de verdade são os rituais e os
procedimentos para entrar no regime de verdade,
então o batismo é um ato de verdade. Segundo
Foucault, é a mortificação o essencial sentido do
batismo. “É preciso morrer para poder viver, e
imediatamente as provas da verdade vão tomar
sentido nisso que trata de autenticar a
mortificação na qual deve constituir o caminho
para a verdade (...) ir à verdade que é a vida e vida
eterna por um caminho que é a mortificação” (p.
80).
A culpa também é um aspecto do batismo,
pois no cristianismo essa culpa manifesta desde
Adão até os dias de hoje. A culpa é o triunfo de
Satã. Foucault ressalta que no cristianismo há uma
luta incessante contra o outro que está em nós, no
fundo da alma e o caminho para a verdade é o
combate por essa expulsão do outro. Então, nos
submetemos aos rituais, aos atos de verdade para
a salvação. Passamos por provações e somos
tentados o tempo todo. “(...) a verdade não pode
produzir seus efeitos na subjetividade a não ser
com a condição de que exista a mortificação, na
condição de que ocorra luta e combate com o
outro, na condição de que se manifeste sem cessar
a si e aos outros a verdade disso que se é” (p.83).
Na aula VI, Foucault apresenta o bem e o
mal como um sistema de lei, pois pelo princípio
da separação “(...) incide sobre a ação e sobre os
elementos característicos da ação (...) por
definição a culpa como ação ruim é
indefinidamente repetível; é uma forma de ação
possível e a repetitividade da culpa está inscrita
ela mesma no funcionamento da lei” (p. 85).
Em função disso, o autor assegura que “o
esquema da salvação, o esquema da perfeição é
completamente diferente” (p.86). A qualidade do
sujeito determina a qualidade da ação; se o sujeito
é o do conhecimento, então implica
irreversibilidade, se o sujeito é o da vontade, ele
pode querer cessar tanto o bem quanto o mal,
novamente. Essa vontade, assim como a
submissão se faz num jogo na direção dos
indivíduos. Foucault assegura que “existe alguém
que guia a minha vontade, (...) mas querendo a
cada instante aquilo que o outro quer que eu
queira” (p. 88).
Na direção dos indivíduos não existe
estrutura, mas sim técnicas criando a relação de
uma vontade com outra, assim, conforme
Foucault “A fórmula da direção no fundo é: ‘Eu
obedeço livremente isso que tu queres para mim,
(...) que tu queres que eu queira, de maneira que
eu possa estabelecer uma certa relação de mim
comigo mesmo’.”
Nesse sentido de direção dos indivíduos
de Foucault, encontramos na aula VIII de seu
curso, o que a direção deve produzir: a
obediência. Foucault declara que “a obediência
produz obediência” e segue complementando que
“(...) obedece-se para poder tornar-se obediente,
para produzir um estado de obediência” (p. 99).
O autor, ainda, utiliza-se da obediência monástica
para exemplificar a estrutura da obediência
citando três características: “(...) a submissão que
diz ‘eu quero isso que quer o outro’; (...) a
paciência que diz ‘eu quero não querer outra coisa
do que quer o outro’; e humildade que consiste em
dizer ‘eu não quero querer’” (p. 102).
Observamos que o processo de obediência
é no fundo um processo de disciplinar a verdade.
Dessa maneira, podemos dizer que a noção poder-
saber desloca-se para a noção governo-verdade.
Outro pensamento a que este texto me
conduz é que na democracia que vivemos na
contemporaneidade devemos obediência a nós
mesmos, uma vez que o governo regulado pelo
povo deve obedecer a si mesmo, obedecendo às
suas regras e cumprindo suas obrigações de
cidadão.
Termino esta resenha destacando a
pergunta, lançada por Foucault, que me intrigou
durante a leitura de Do governo dos vivos e que a
cada vez que eu a leio abre-se um novo leque de
inquietações.
Por quê e como o exercício do poder
como governo dos homens, exige não
somente atos de obediência e de
submissão, mas atos de verdade nos quais
os indivíduos são sujeitos numa relação
de poder e o são igualmente sujeitos como
ator, espectador-testemunha, ou como
objeto no procedimento de manifestação
da verdade? (...) (FOUCAULT, 2010, p.
66)
118
Sobre a autora:
Clarice Nunes Ferreira Costa: Professora da Faculdade Anhanguera e mestre em Educação pelo Programa
de Pós Graduação em Educação da Universidade São Francisco, Itatiba, São Paulo.
119
Relação das dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Educação da Universidade São Francisco no período de julho a dezembro de 2012
GALLEGO, Eduardo Manuel Bartalini. Investigando as práticas de ensinar e aprender matemática nos anos
iniciais do ensino Fundamental em um grupo do PIBID. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação),
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP.
Orientadora: Regina Célia Grando.
A presente pesquisa foi desenvolvida em um grupo constituído por estudantes do curso de Pedagogia de uma
universidade em uma cidade do interior do estado de São Paulo e professoras que atuam nos anos iniciais do
ensino fundamental em uma escola municipal dessa mesma cidade e que fazem parte do Programa de Bolsas
de Iniciação à Docência - PIBID. A pesquisa foi desenvolvida em uma abordagem qualitativa, a partir da
constituição de um grupo que, em alguns momentos, assumiu dimensões colaborativas. Buscamos responder
à seguinte questão: “Quais são as contribuições de uma parceria entre universidade e escola para as práticas
de ensino de matemática nos anos iniciais?”. Nosso objetivo é (1) “conhecer o movimento de resistências e
transformações nas culturas escolares de uma escola, decorrentes do trabalho compartilhado no grupo”; e (2)
“identificar as reflexões produzidas pelas professoras sobre os processos de aprender a ensinar matemática
quando compartilham suas práticas no grupo”. Para tanto, houve o acompanhamento do grupo em encontros
quinzenais nas oficinas de educação matemática, que foram audiogravadas e transcritas. Também foram
realizadas entrevistas individuais com as professoras que atuam nos anos iniciais e com os estudantes de
Pedagogia, futuros professores. Essas entrevistas foram textualizadas para que fossem apresentadas as
“vozes” dos atores envolvidos na pesquisa. Além das transcrições das audiogravações e das entrevistas,
foram utilizados como fonte de dados os relatórios anuais do projeto PIBID dos participantes do grupo As
análises e as sistematizações dos resultados foram discutidas em dois capítulos, um dedicado à discussão da
cultura escolar e cultura de aula de matemática, destacando as tensões e desafios enfrentados pelo grupo, e
outro com as reflexões das professoras, estudantes e as produzidas na interação do grupo. Como resultados
identificamos os processos reflexivos propiciados pelo grupo de discussão, bem como a carência dos
professores de um bom conhecimento epistemológico dos conceitos matemáticos. Também se evidenciou
que o PIBID proporcionou uma modificação nas metodologias utilizadas nas salas de aula em que o grupo
atuou, embora não se evidencie mudança de concepção enquanto à matemática e seu ensino nos anos iniciais
do ensino fundamental. Em relação às políticas públicas em formação de professores, o PIBID se destaca
como um espaço que contribui, em potencial, para a inserção do futuro professor nas práticas de ensinar e
aprender, nesse caso, a matemática, bem como possibilita reflexões às professoras da escola sobre suas
práticas pedagógicas. Com base nesse e em outros resultados, foram produzidas nossas considerações finais,
destacando a possibilidade do grupo como um espaço reflexivo e as apropriações dos conceitos matemáticos
pelas professoras.
Palavras-chave: Formação de professores, Estratégias formativas, PIBID, Educação Matemática.
120
121
Normas para publicação
I. Tipos de colaborações aceitas pela revista Horizontes
Trabalhos originais relacionados à Educação em suas vertentes históricas, culturais e práticas
educativas que se enquadrem nas seguintes categorias:
1. Relatos de pesquisa, entre 20-25 laudas padrão, especificadas no item IV;
2. Estudos teóricos, entre 15-20 laudas padrão;
3. Entrevistas e/ou depoimentos de pesquisadores e estudiosos de reconhecida relevância no meio
acadêmico nacional e internacional, entre 10-15 laudas padrão;
4. Revisão crítica da literatura: análise de um corpo abrangente de investigação, relativa a assuntos
de interesse para o desenvolvimento da Educação nas vertentes assinaladas anteriormente,
limitada a 15-20 laudas padrão;
5. Resenha: revisão crítica de obra recém-publicada, orientando o leitor quanto a suas
características e usos potenciais, até 5 laudas padrão.
1. Seleção de artigos: originais que se enquadrem nas categorias 1 a 5 acima descritas serão avaliados
quanto à originalidade, relevância do tema, qualidade da produção, além da adequação às normas editoriais
adotadas pela revista. Serão aceitos para análise pressupondo-se que todas as pessoas listadas como autores
aprovaram o seu encaminhamento com vistas à publicação.
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a) Ineditismo do material: o conteúdo do material enviado para publicação não deverá ter sido
publicado anteriormente. Os conteúdos e declarações contidos nos trabalhos são de total
responsabilidade dos autores.
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poderá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério. Os pareceres dos consultores comportam três
possibilidades: a) aceitação integral; b) aceitação com reformulação; c) recusa integral. Os autores
serão notificados da aceitação ou recusa de seus artigos, sempre que possível. Os originais, mesmo
quando recusados, não serão devolvidos. Revisão de linguagem poderá ser feita pelo Conselho
Editorial da revista. Quando este julgar necessárias modificações substanciais que possam alterar a
idéia do autor, este será notificado e encarregado de fazê-las, devolvendo o trabalho reformulado no
prazo máximo de um mês.
3. Direitos autorais: os direitos autorais dos artigos publicados pertencem à revista Horizontes. A
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Manuscritos submetidos que contiverem partes de texto extraídas de outras publicações deverão
obedecer aos limites especificados para garantir originalidade do trabalho submetido. Recomenda-se evitar a
reprodução de figuras, tabelas e desenhos extraídos de outras publicações e, se não for possível, o manuscrito
só será encaminhado para análise se vier acompanhado de permissão escrita do detentor do direito autoral do
trabalho original para a reprodução. Em nenhuma circunstância os autores citados nos trabalhos publicados
nesta revista repassarão direitos assim obtidos.
4. Língua: Os trabalhos serão aceitos em língua portuguesa, espanhola, francesa e inglesa.
5. Exemplares: Será oferecido 1 (um) exemplar da revista para cada autor ou co-autor da revista.
6. Notas sobre o(s) autor(es): incluir uma breve descrição (30-40 palavras) sobre as atividades atuais do(s)
autor(es) e sobre a sua formação.
II. Como enviar artigo aos editores
122
O trabalho para publicação deverá ser enviado aos editores da Horizontes nos seguintes endereços
eletrônicos:
História, Historiografia e Idéias Educacionais
Profa. Dra. Paula Leonardi: [email protected]
Linguagem, Discurso e Práticas Educativas
Profa. Dra. Jackeline Rodrigues Mendes: [email protected]
Matemática, Cultura e Práticas Pedagógicas
Profa. Dra. Profª. Dra. Alexandrina Monteiro: [email protected]
III. Forma de apresentação dos manuscritos
Os manuscritos serão aceitos em língua portuguesa, espanhola, francesa e inglesa.
Normas de publicação: a revista adota normas de publicação da ABNT.
Formatação: os artigos devem ser digitados em espaço duplo em fonte tipo Times New Roman ou Arial,
tamanho 12.
3.1 Título completo na língua em que o manuscrito foi preparado.
3.2.Título completo em inglês, compatível com o título na língua em que o manuscrito foi preparado.
3.3. Nome de cada um dos autores.
3.4. Afiliação institucional de cada um dos autores (incluir apenas o nome da universidade e a cidade).
3.5. Nota de rodapé com agradecimentos dos autores e informação sobre apoio institucional ao projeto, se
necessário.
3.6. Nota de rodapé com endereço eletrônico.
3.7. Resumo na língua em que o manuscrito foi preparado e que deve ter no máximo 150 palavras.
3.8. Após o resumo, fornecer de 3 a 5 palavras-chave na língua do manuscrito, em letras iniciais minúsculas
e separadas com ponto-e-vírgula.
3.9. Resumo em inglês (abstract).
3.10. Keywords compatíveis com as palavras-chave.
Observação: A Horizontes tem, como procedimento padrão, fazer revisão final do abstract, reservando-se o
direito de corrigi-lo, se necessário. No entanto, recomenda-se que os autores solicitem a um colega bilíngüe
que revise o abstract, antes de submeter o manuscrito. Este é um item muito importante do trabalho, pois em
caso de publicação será disponibilizado em todos os indexadores da revista.
IV. Estrutura do texto
4.1. Notas. Devem ser evitadas sempre que possível. No entanto, se não houver outra possibilidade, devem
ser indicadas por algarismos arábicos no texto e listadas, após as referências, em página separada e intitulada
de Notas.
4.2 Citações dos autores. As citações de autores deverão ser feitas de acordo com as normas da ABNT
123
Summary of the Instructions
Subscription of papers
Original papers related to Education in the following perspectives: historical, cultural and educative
practices.
Papers can be written in Portuguese, English, French or Spanish.
1. Format:
· Title;
· Name of the author(s) and affiliation;
· Abstract in the first language – around 150 words;
· Key-word;
· Abstract in another language – around 150 words;
· key-words in another language;
· The text should include: Introduction, Development, Conclusion, Endnotes, and References (according
to ABNT);
· Include at the end the author’s bio-data.
2. The length of the paper should be around 20 pages.
3. Double-spaced typewritten copy (12-point font, Times new Roman, Courier New or Arial).
Papers should be sent to:
Profa. Dra. Paula Leonardi: [email protected]
Profa. Dra. Jackeline Rodrigues Mendes: [email protected]
Profa. Dra. Alexandrina Monteiro: [email protected]
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