From the SelectedWorks of Bruno Meyerhof Salama
Winter December 28, 2016
Spread bancário e enforcement contratualhipótese de causalidade reversa e evidênciaempíricaBruno Meyerhof Salama
Available at: https://works.bepress.com/bruno_meyerhof_salama/125/
SPREAD BANCÁRIO E ENFORCEMENT CONTRATUAL: HIPÓTESE DE CAUSALIDADE REVERSA E EVIDÊNCIA EMPÍRICA
Bruno Meyerhof Salama∗ Sumário: 1. Delineamento da hipótese; 2. Revisão da literatura; 3.
Levantamento empírico; 4. Implicações normativas; 5. Lições para o economista; 6. Conclusão.
Palavras-chave: spread bancário, viés judicial, Direito e Economia.
Códigos JEL: K12, D86.
O consenso da literatura é o de que o baixo nível de enforcement dos contratos e
garantias seja uma causa importante do alto spread bancário no Brasil. No entanto,
por conta de uma dinâmica de causalidade reversa, pode haver uma
endogeneidade na estimação deste efeito causal. O presente trabalho formula esta
hipótese, apresenta evidência empírica preliminar e retira implicações normativas.
Ao final, apresenta lições úteis para a análise econômica do direito e do Poder
Judiciário.
The consensus in the literature is that the low level of enforcement of contracts
and guarantees is an important cause of Brazil’s high banking spreads. There may
however be an endogeneity problem in the estimation of this causal effect due to
reverse causality. This paper formulates this hypothesis, presents preliminary
empirical evidence and draws normative implications. At the end, it presents
useful lessons for economic analysis of law and of the Judiciary Power.
1. DELINEAMENTO DA HIPÓTESE
Uma extensa literatura documenta a proposição de que uma parcela entre
aproximadamente 1/4 e 1/3 do alto spread bancário no Brasil corresponda ao custo de
∗ Fundação Getulio Vargas, Escola de Direito de São Paulo (FGV Direito SP). Rua
Rocha, 233. Bela Vista, São Paulo, SP, Brasil. CEP: 01330-000. Email:
inadimplência na oferta do crédito. O problema do alto custo da inadimplência tem sido
atribuído principalmente à baixa efetividade dos mecanismos judiciais para a
exigibilidade do crédito bancário, que eleva o prêmio de risco embutido na taxa de juros
cobrada do tomador. Essa dificuldade na exigibilidade do crédito é frequentemente
referida sob a rubrica do baixo nível de enforcement, termo usual na literatura
internacional em economia dos contratos. Praticamente todos os estudiosos do mercado
de crédito brasileiro concordam, então, que o baixo nível de enforcement dos contratos e
garantias é uma causa importante do alto spread bancário no Brasil.
O presente trabalho apresenta uma hipótese de causalidade reversa, a saber, a de
que o alto spread seja causador do baixo enforcement. A proposição é a de que haja duas
dinâmicas na relação entre enforcement e spread bancário que se retroalimentam. De um
lado, o baixo nível de enforcement causa aumento do spread. Mas de outro, em um
feedback loop, o alto spread também induz o baixo nível de enforcement.1 A primeira
relação causal vem sendo minudentemente debatida na literatura; a segunda, até onde
pude pesquisar, nunca foi formulada.2 Dela me ocupo neste trabalho.
A intuição básica da hipótese de causalidade reversa aqui formulada é a de que os
juízes se sentem cada vez menos confortáveis em dar o enforcement conforme a taxa de
juros do contrato se eleva. Por exemplo, o juiz está mais propenso a mandar pagar
rigorosamente o que está previsto em contrato quando a taxa de juros estipulada é de 12%
ao ano do que quando é de 12% ao mês. Em outras palavras, a hipótese de causalidade
reversa é a de que, quando se discute em juízo a validade de um contrato de
financiamento, os integrantes do Poder Judiciário têm maior propensão a julgar
favoravelmente aos devedores conforme aumenta a taxa de juros do contrato.
Implícita nesta construção está uma hipótese sobre as preferências dos juízes.
Trata-se especificamente de um gosto (taste) por juros contratuais mais baixos, em
oposição a juros mais altos. Não se trata, portanto, de uma preferência por um tipo de
parte do contrato (devedores ou credores; fortes ou fracos; gregos ou troianos), mas de
1 Uma variação dessa hipótese pode ser articulada assim: a elevação da taxa de juros reduz a propensão do Poder Judiciário a dar o enforcement do contrato. Um corolário dessa hipótese é o de que, ceteris paribus, uma elevação do spread reduziria o nível de enforcement contratual. Nesse caso, a causalidade reversa não decorreria da hipótese central, mas de seu corolário. Para os presentes fins, tanto a hipótese original quanto esta variação encaminham as mesmas implicações e conclusões. 2 Exceto de maneira indireta em Salama (2012).
uma preferência por uma característica do próprio contrato.
Ao formularmos a conjectura de que o Judiciário tenha sistematicamente uma
preferência por contratos com juros menores, somos levados, também, a refletir sobre os
motivos para tanto. Há duas formas de enxergarmos o problema.
A primeira é tratar a decisão dos juízes sobre a validade/invalidade da taxa de
juros contratual como um teste de hipóteses clássico.3 A hipótese nula é “a taxa de juros
do contrato deve ser seguida” e a hipótese alternativa é “a taxa de juros do contrato deve
ser reduzida”. O juiz pondera sobre a legalidade da taxa de juros do contrato à luz de
cânones jurídicos estabelecidos como a razoabilidade, a abusividade, a função social e a
equidade. O juiz “monta”, assim, uma estatística apropriada e estabelece um intervalo de
confiança para determinar a região de rejeição. Quanto mais elevadas as taxas de juros,
maior a probabilidade de caírem na zona de rejeição.
Uma variante desse teste de hipóteses é o juiz ponderar sobre a razoabilidade da
legislação aplicável, em vez de ponderar sobre a razoabilidade da taxa de juros do
contrato. Um teste de hipóteses sobre a razoabilidade da legislação faz sentido
especialmente quando se considera que a tolerância à taxa de juros não depende apenas
da previsão contratual e da deliberação do juiz, mas depende também da existência, ou
não, de uma regra legislada que imponha tetos à taxa de juros do contrato.
Considere, por exemplo, que na Constituição de 1988 havia uma proibição
expressa à estipulação de juros “reais” acima de 12% ao ano. O Supremo Tribunal
Federal (STF) julgou tal regra como não auto-aplicável – isto é, na prática, desconsiderou
a regra –, e podemos supor que tenha agido assim por uma consideração de prudência.
No teste de hipóteses, a hipótese nula teria sido “a regra dos 12% deve ser considerada
aplicável” e a hipótese alternativa teria sido “a regra dos 12% deve ser considerada como
não auto-aplicável”. Em um ambiente de juros altos e inflação alta, a chance de um teto
como esse (de 12% ao ano) ser minimamente exequível e razoável é muito pequena.
Assim, mesmo com um intervalo de confiança bastante grande, a hipótese nula teria
mesmo que ter sido rejeitada.
Repare em uma diferença importante entre esses dois testes de hipóteses. O teste
3 Seria ainda possível modelar a decisão como um teste de hipóteses bayesiano, em que os juízes aprendem com decisões anteriores. Para os presentes fins, o resultado seria praticamente o mesmo.
sobre a razoabilidade da taxa de juros do contrato serve apenas para decidir se a taxa é
excessivamente alta; há, portanto, apenas uma zona de rejeição. Já o teste de hipóteses
para deliberar sobre a legislação permite deliberar tanto sobre se a lei é excessivamente
estrita quanto sobre se a lei é excessivamente leniente. Há, portanto, duas zonas de
rejeição da hipótese nula.
O exemplo do teto de 12% acima mencionado ilustra a zona de rejeição em que se
pondera sobre se a lei é muito estrita (ou seja, se o teto é muito baixo). Mas se
considerarmos a regra atualmente prevista na Lei 4.595/64, que, de modo geral, acabou
por abolir os tetos aos juros em contratos de financiamento,4 podemos olhar o problema
da seguinte forma: quando um juiz brasileiro decide invalidar um contrato por julgar sua
taxa de juros excessivamente alta ele está, na verdade, rejeitando a hipótese nula “a
legislação deve ser aplicada” para casos com juros muito altos (e a hipótese alternativa,
naturalmente, é “a legislação não deve ser aplicada”). O teste de hipóteses sobre a
legislação é, portanto, mais geral que o teste sobre a taxa de juros do contrato.5
Alternativamente à concepção da decisão dos juízes como decorrendo de um teste
de hipóteses, pode-se simplesmente especular sobre os motivos que levam juízes a
validar ou invalidar a taxa de juros de um contrato sub judice. Neste segundo caso, pode-
se pensar em um contínuo em que os juízes cada vez mais discordam da taxa de juros do
contrato (ou da própria autorização legislativa para contratos com juros altos). A decisão
resulta de uma ponderação entre a regra contratual (ou a regra legislada) e o juízo que o
juiz faz a respeito dessa regra. O peso dado à regra contratual (ou legislada) depende do
grau de discordância do juiz ante tal regra.
A origem da discordância do juiz ante a regra contratual ou legislada é, no entanto,
uma questão de foro íntimo. Ela é exógena à formulação econômica. É uma questão para
os psicólogos, mas pode-se cogitar sobre muitas possibilidades. Ao invalidarem contratos
com juros muito elevados, talvez os juízes ainda estejam presos ao preconceito medieval
contra a cobrança de juros – até porque a Bíblia pode bem ter sido reinterpretada, mas
4 O art. 4º, IX, da Lei 4.595/64, dispôs ser da competência do Conselho Monetário Nacional limitar as taxas de juros nas operações financeiras “sempre que necessário”. O CMN, de modo geral, não impôs tais limitações. 5 Em Guimarães e Salama (2017), a hipótese de causalidade reversa aqui delineada é formulada como parte de um modelo geral sobre a propensão dos juízes a seguirem proibições legislativas, inclusive vedações à cobrança de juros elevados. Recorre-se, então, ao teste de hipóteses sobre a razoabilidade da legislação.
não foi rescrita, e lá ainda há 31 passagens sugerindo a vedação à cobrança de juros.6 Mas
a verdade é que a Bíblia não é, e provavelmente nunca foi, interpretada apenas
literalmente; o Decreto de Graciano do século XII já continha caminhos interpretativos
para a cobrança de juros, e a escolástica tardia abriu ainda mais outros; e, de mais a mais,
não me parece nem um pouco óbvio que os juízes brasileiros simplesmente odeiem a
cobrança de juros ou os bancos.
Logo, seria possível fazer muitas outras hipóteses para essa investigação
psicológica. Ao intervir em contratos, quem sabe os juízes queiram apenas corrigir falhas
(reais ou imaginadas) no processo político de feitura da legislação, de regulação do
sistema financeiro ou da própria contratação privada. Ou talvez os juízes entendam que,
de alguma forma, ao vedarem juros muito altos estejam no fundo protegendo o bom
funcionamento e eficiência dos mercados de crédito.
Na verdade, o espaço para especulação só encontra limite na capacidade de
imaginar. Pode ser que os juízes estejam motivados por intuições de justiça distributiva e
queiram no fundo proteger o consumidor, que enxergam como em geral mais vulnerável
(até mesmo porque juízes são eles próprios consumidores de muitos produtos, inclusive
bancários). Ou então, pode ser que os juízes sigam outras orientações políticas ou
ideológicas pouco simpáticas à cobrança de juros. Não é possível saber ao certo, e, por
isso, sobre a origem psicológica da aventada preferência por juros mais baixos não faço,
nem preciso fazer, nenhuma hipótese.
Prossigo da seguinte forma. A Seção 2 revisa a literatura. A Seção 3 apresenta o
levantamento empírico realizado, identificando uma correlação entre vitórias judiciais de
devedores e aumento da taxa de juros em financiamentos de automóveis no estado de São
Paulo. A Seção 4 retira implicações normativas para os estudos sobre spreads bancários,
para a microeconomia teórica, para o debate sobre a imposição de tetos aos juros
remuneratórios, para as políticas públicas voltadas à redução do spread e para o debate
público sobre o spread bancário. A Seção 5 traz lições que se pode depreender ou que
estão associadas à hipótese aqui formulada e que esclarecem o papel do Poder Judiciário
no esquema público de enforcement contratual. A Seção 6 conclui.
2. REVISÃO DA LITERATURA
6 Cf. https://www.openbible.info/topics/usury. Acesso em 15/11/2016.
2.1. O problema dos spreads bancários no Brasil
Os spreads bancários são altos em toda a América Latina (Gelos, 2006), mas o
problema parece ser particularmente agudo no Brasil (Banco Mundial, 2006). Os dados
mais recentes disponibilizados pelo Banco Mundial, definindo spreads como taxa de
empréstimo menos taxa de remuneração do depositante (lending rate minus deposit
rate, %), colocam o Brasil na nada honrosa posição de terceiro país com maiores taxas de
intermediação do mundo, atrás apenas de Madagascar e Maláui (Banco Mundial, 2015).
O problema não é novo, e os dados mostram que o Brasil é um outlier na comparação
internacional desde pelo menos a década de 90 (Aronovich, 1994; Afanasieff et al., 2002).
A gravidade do problema ensejou o surgimento de uma extensa literatura
buscando identificar suas causas. Paula et al. (2007), Ono et al. (2004), Oliveira e
Carvalho (2007) e Manhiça e Jorge (2012) encontram evidência de que a política
monetária rígida adotada no Brasil cause elevação dos spreads bancários. Os canais de
transmissão seriam o aumento da incerteza quanto à necessidade de refinanciamento
pelos bancos, o potencial aumento nos níveis de inadimplência, o aumento na volatilidade
das taxas de juros, o aumento de aversão ao risco pelos bancos e a existência de uma
relação de longo prazo entre o risco de taxa de juros e o risco de crédito.
A maior parte da pesquisa sobre os spreads bancários, no entanto, tem se dedicado
a identificar e mensurar suas causas microeconômicas e institucionais. Um dos aspectos
estudados é o das margens dos bancos, que têm sido relativamente elevadas, e o nível de
competição no mercado bancário brasileiro (Belaisch, 2003; FMI, 2012). Lucinda (2010)
encontrou evidência de colusão e Alencar (2011) encontrou evidência de que a
consolidação no setor bancário impactou o nível de spreads, mas Nakane e Rocha (2010)
concluíram haver razoável nível de competição no mercado bancário brasileiro. Barbosa
et al. (2015) e Cardoso et al. (2016), no entanto, alertaram para a existência de viés de
superestimação da intensidade de concorrência bancária. Alencar et al. (2016) concluíram
que a falta de competição no mercado bancário diminui o potencial de redução de spread
bancário que é propiciado por reformas que melhoram os níveis de enforcement
contratual.
Estudo do Banco Central do Brasil (BCB) de 1999 buscou identificar os
componentes dos spreads bancários no período entre maio e julho de 1999, e concluiu
que 35% do spread era resultado da inadimplência. O restante seria atribuível ao mark-up
entre custo de captação e custo de aplicação: despesas administrativas (22%), IR/CSLL
(11%), impostos indiretos (14%) e lucro líquido (18%). Nos anos seguintes, o BCB foi
refinando a análise da composição do spread, separando, inclusive, empréstimos a
pessoas físicas e jurídicas, e analisando diferentes tipos de produtos financeiros (BCB,
1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004).
Os dados foram mudando conforme a metodologia ia se sofisticando. O relatório
do BCB de 2004 já indicava o custo administrativo como o fator mais relevante (26.37%),
seguido da “cunha tributária” (20,81%), inadimplência (19,98%), custo do compulsório
(5,04%) e custo do FGC (0,24%). Havia também uma variável de “resíduo” (27,56%),
uma parcela não resolvida na composição do spread que decorreria da existência de
subsídios cruzados em operações de crédito direcionado. Em 2008, a metodologia de
cálculo passou a isolar a parcela referente aos subsídios cruzados decorrentes da
concessão de crédito direcionado, e introduziu outros aperfeiçoamentos na mensuração
dos efeitos dos recolhimentos compulsórios e dos impostos indiretos sobre o spread
(Koyama, 2008).
O mais recente relatório disponibilizado pelo BCB (2014) é ainda mais
pormenorizado na decomposição do spread, traçando também distinções entre crédito
direcionado e livre, clientes preferenciais e demais clientes e bancos privados e públicos.
A tabela que compara a evolução do spread decomposto no período entre 2007-2014
mostra a margem líquida dos bancos oscilando em torno de 35% do spread, e o custo de
inadimplência se estabilizando em torno de 25% do spread (p. 42). A divulgação desses
números pelo BCB e o eterno dilema dos juros altos no Brasil foram com o tempo
impulsionando o surgimento de um conjunto de estudos focados em analisar as causas da
alta inadimplência na composição das taxas de spread.
2.2. A “ineficiência judicial”: instituições formais e informais
É justamente na discussão das causas do custo de inadimplência na composição
das taxas de spread que o debate econômico encontra a discussão sobre as instituições
jurídicas e judiciais brasileiras. Iniciando com Pinheiro (1996), e logo adiante com Aith
(1998), Pinheiro e Cabral (1998), Laeven e Majoni (2003), a literatura passou a enxergar
na “ineficiência judicial” – morosidade, custos, parcialidade e imprevisibilidade – um
fator limitante à redução do spread para padrões internacionais, à expansão do crédito e
ao crescimento econômico. A hipótese é intuitiva: quanto menor a probabilidade de
enforcement do pacto contratual, maior o prêmio de risco para compensar o custo
esperado da inadimplência.
Essa hipótese foi testada e confirmada por diversos levantamentos empíricos
(BCB, 2004, 2005). Há hoje boa evidência de que a melhoria de alguns mecanismos de
execução de garantias tenha causado significativa redução nas taxas de juros de certas
modalidades de financiamentos e que tenha permitido a expansão do crédito. Exemplos já
clássicos incluem a criação do crédito consignado (em que pensões e outros pagamentos
pelo Estado para os tomadores são automaticamente debitados em favor do banco
financiador em caso de inadimplemento do tomador) e da alienação fiduciária de imóvel
(que agilizou a retomada e venda de habitações financiadas).
Há, ainda, alguma evidência preliminar de que a edição de uma nova legislação
falimentar em 2005 tenha causado ampliação no crédito de longo-prazo para as empresas
(Araújo et al., 2012; Ponticelli e Alencar, 2013), se bem que o estudo mais recente
(Barbosa et al., 2016) tenha concluído que a nova legislação falimentar não foi eficaz no
sentido de diminuir as taxas de inadimplência das pessoas jurídicas nem o spread
bancário. Apesar disso, o senso comum dessa literatura sobre instituições jurídicas e
crédito segue sendo o de que, quando o enforcement melhora, a tendência é para a queda
dos juros e para o aumento da oferta de crédito.
O reconhecimento pela literatura de que a ineficiência judicial estaria a
impulsionar o aumento dos níveis de spread conduziu a pesquisa, então, à discussão das
suas causas. Aqui, a literatura parece enveredar por dois caminhos distintos. O primeiro
associa a ineficiência judicial aos mecanismos burocráticos e procedimentais que tornam
o processo lento, a execução de garantias difícil, inclusive durante a falência, e a
circulação de informação entre agentes truncada. Com North (1991), podemos chamar
esses de mecanismos formais, porque sua mudança depende da edição de leis e da
implantação de reformas burocráticas.
A busca pelo aprimoramento desses mecanismos formais – a implantação do que
às vezes se chama de infraestrutura jurídica7 – tem sido uma preocupação constante do
7 Para uma proveitosa crítica a essa ideia, ver Milhaupt e Pistor (2008).
governo brasileiro. Relatório do BCB (2004) detalhou as medidas tomadas, que incluíram
a criação de diversos mecanismos legais voltados a acelerar a circulação de informações
sobre prestadores e tomadores e, especialmente, de mecanismos voltados a apressar e
assegurar a execução de garantias. Daí a criação da Cédula de Crédito Bancário, da
alienação fiduciária de bens imóveis, do crédito consignado, a reforma da Lei de
Falências e a reforma do Código de Processo Civil, dentre diversas outras iniciativas.
Há ainda uma segunda causa a que parcela da literatura econômica atribui o
problema da ineficiência judicial. Trata-se, ainda com North (1991), de instituições
informais, isto é, das restrições ligadas a modelos mentais como tabus, costumes,
tradições e códigos de conduta. Em particular, trata-se aqui do sistema de crenças dos
membros do Poder Judiciário. O diagnóstico se prende, então, não aos incentivos que
exsurgem das regras previstas em alguma lei específica, mas das mentalidades das
pessoas, particularmente dos integrantes do Poder Judiciário.
2.3. A hipótese do viés anti-credor
A manifestação mais influente na literatura econômica dessa descrição da crença
dos julgadores que impulsionaria o aumento dos spreads pode ser localizada na hipótese
da existência de um “viés anti-credor”. Tal hipótese sugere que o Poder Judiciário
brasileiro tenha preferência por proteger devedores e que, ao fazê-lo, acabe gerando o
aumento de spread como um efeito de segunda ordem.
O primeiro a defender esta hipótese no contexto da discussão dos spreads
bancários parece ter sido Pinheiro (1996, 1998). A ideia é bem resumida em trabalho de
2003 (p. 29-30), nos seguintes termos:
“A não-neutralidade do magistrado significa que ele se alinha claramente
com os segmentos sociais menos privilegiados da população: entre o
inquilino e o senhorio, ele se inclina a favor do primeiro; entre o banco e o
devedor, ele tende a ficar com o último, e assim por diante. Isso faz com
que, nos casos em que essa não-neutralidade é clara e sistemática, os
segmentos menos privilegiados sejam particularmente penalizados com
prêmios de risco (isto é, preços) mais altos. [...] O banco cobrará um
spread mais alto pelo maior risco de inadimplência, o investidor exigirá
um retorno mais alto para compensar o risco de expropriação, o
empregador exigirá pagar um salário mais baixo para cobrir o risco de ser
acionado na Justiça do Trabalho. E, por essa lógica, como os agentes se
adaptam, quanto menos privilegiado for o grupo social, e maior o “risco”
de receber proteção, maior tenderá a ser a discriminação. [...] Isso significa
que são exatamente as partes que o magistrado buscava proteger que se
tornam as mais prejudicadas por essa não-neutralidade. (grifei)
Diversos trabalhos baseados em questionários parecem ter sido importantes para
motivar a hipótese de viés anti-credor acima formulada. Em um questionário organizado
por Sadek (1995), aproximadamente 1/3 dos entrevistados indicava preferir o
compromisso com a “justiça social” à estrita aplicação da lei. Em dois estudos do Idesp
(mencionados em Pinheiro, 1998) a respeito da performance do Judiciário em diferentes
estados, os respondentes indicaram ser a “parcialidade” um dos graves problemas do
sistema judicial brasileiro.
Também bastante citada é uma pesquisa de Vianna et al. (1996), em que 83% dos
3.927 magistrados entrevistados concordaram com a assertiva de que “o Poder Judiciário
não é neutro, e que em suas decisões o magistrado deve interpretar a lei no sentido de
aproximá-las dos processos sociais substantivos e, assim, influir na mudança social”. No
mesmo estudo, 26% dos entrevistados se identificavam fortemente com a proposição de
que “a magistratura que, por definição, não está comprometida com a representação de
interesses deve exercer um papel ativo no sentido de reduzir as desigualdades entre
regiões, indivíduos e grupos sociais”.
Há ainda um estudo conduzido por Lamounier e Souza (2002) concluindo que os
membros do Poder Judiciário dão menos valor ao cumprimento dos contratos do que
outros grupos integrantes da “elite” brasileira. Em outro estudo referido em Pinheiro
(2003, p. 25), foi perguntado se os juízes, levados a optar entre duas posições extremas,
escolheriam entre (i) respeitar sempre os contratos, independentemente de suas
repercussões sociais, ou (ii) tomar decisões que violem contratos na busca da justiça
social, sendo que 73,1% optaram pela alternativa (i).
Para a motivação da hipótese do viés anti-credor são comuns também referências
a entrevistas com advogados e a observação de que o mercado de crédito seria
particularmente sensível à qualidade do Poder Judiciário (e.g. Pinheiro e Cabral, 2001).
Todo esse conjunto de levantamentos contribuiriam para a proposição da “não-
neutralidade do magistrado, que dá origem a decisões viesadas ou com pouca
previsibilidade […] [um problema econômico] tão importante quanto a morosidade [do
Judiciário]” (Pinheiro, 2003, p. 46).
A hipótese do viés anti-credor foi com o tempo ganhando força na literatura
econômica. O próprio BCB (2004, p. 43), no seu balanço sobre o conjunto de atividades
voltadas à redução do spread no começo da década de 2000, falava da importância das
iniciativas de “conscientização de juízes”, tudo para “realizar um esforço [...] para
mostrar que as decisões que beneficiam um tomador de empréstimo específico têm
repercussões amplas, que podem prejudicar os tomadores de empréstimos como um todo”.
2.4. A hipótese da incerteza jurisdicional
Uma das mais influentes formulações utilizando a hipótese do viés anti-credor
coube a Arida et al. (2005). Para esses autores, a “incerteza jurisdicional” seria, ao lado
da inconversibilidade da moeda brasileira, a principal razão para o não florescimento do
mercado de crédito de longo prazo no Brasil. A lógica do argumento foi a de que, para
explicar a persistência do alto custo do capital no Brasil, teria que haver alguma distorção
de natureza permanente, porque as hipóteses até então existentes na literatura 8 –
equilíbrio macroeconômico sub-ótimo, insuficiência de ajuste fiscal ou sequência de
choques negativos – não explicavam adequadamente a persistência do alto custo do
dinheiro no país.
Em particular, a rigidez da política monetária brasileira seria compreensível sob o
regime de câmbio fixo que prevalecera até 1999, mas sua permanência após a flutuação
do câmbio continuaria ainda sem explicação. A conjectura dos autores foi, assim, a de
que distorção seria e enorme dificuldade para o enforcement de contratos. Confira-se:
“It is an uncertainty of a diffuse character that permeates the decisions of
the executive, legislative, and judiciary and manifests itself predominantly
as an anti-saver and anti-creditor bias. The bias is not against the act of
saving but against the financial deployment of savings, the attempt to an
intertemporal transfer of resources through financial instruments that are,
8 Com o tempo, diversas outras formulações foram apresentadas para explicar a persistência da política monetária rígida no Brasil. Uma boa revisão dessa literatura pode ser encontrada em Barboza (2015).
in the last analysis, credit instruments” (Arida et al., 2005, p. 270) (grifei).
Como justificativa para essa conjectura, Arida, Bacha e Lara Rezende indicaram a
existência de um mercado de títulos de longo prazo para devedores brasileiros apenas no
exterior, mas não dentro do Brasil. Tal risco seria materializado pela edição de leis que
dificultavam a exigibilidade de créditos e, ademais, pela frequente ocorrência de “atos do
príncipe” – ações de governo que reduzem unilateralmente o valor de contratos, como
revisões e calotes – e, ainda, pela dificuldade de dar cumprimento perante o Poder
Judiciário desses mesmos contratos. Dito de forma simples, isso quer dizer que o Poder
Judiciário atuaria sistematicamente de maneira contrária aos credores não apenas por
conta dos seus mecanismos formais, mas também por conta do viés de seus integrantes.
Nessa linha, a mudança do viés poderia ser traçada, ainda, ao próprio padrão
interpretativo do direito que se gestava no Poder Judiciário a partir da edição da
Constituição de 1988 – um argumento, aliás, já levantado anteriormente em Pinheiro e
Cabral (2001, p. 17). Confira-se:
“Jurisdictional uncertainty worsened after the 1988 Constitution
introduced the possibility of changes in the interpretative emphasis
between conflicting constitutional principles, particularly the
subordination of private property to its social function. The Constitution of
1988 is a striking example of how the paternalistic attempt to substitute
the government for the market in the allocation of long-term resources
aggravates jurisdictional uncertainty” (Arida et al., 2005, p. 272).
O grande indício da existência de um problema de incerteza jurisdicional
particularmente grande no Brasil estaria, então, na existência de mercado de títulos de
longo prazo para devedores brasileiros apenas fora, mas não dentro, do Brasil. De resto, a
fundamentação de Arida et al. pouco diferiu do que já se vinha mencionando em
trabalhos anteriores. Assim, o texto formulador da hipótese de incerteza jurisdicional
referiu novamente o questionário de Lamounier e Souza (2002) e mencionou um estudo
de Amadeo e Camargo (1996) que retratara a parcialidade da Justiça do Trabalho – cuja
versão inicial, aliás, já houvera sido mencionada no trabalho seminal de Pinheiro e Cabral
(1998). Também não faltaram evidências anedóticas, como segue:
“The bias is transparent in the negative social connotation of figures
associated to the moneylender – “financial capital” by opposition to
“productive capital”, “banker” as opposed to “entrepreneur”. The debtor is
viewed on a socially positive form, as an entity that generates jobs and
wealth or appeals to the bank to cope with adverse life conditions. This
bias may be observed more or less everywhere, but it is particularly acute
in Brazil, probably because of the deep social differences and the high
levels of income concentration in the country. Cultural and historical
factors could also have facilitated the dissemination of this anti-creditor
bias” (Arida et al., 2005, p. 271).
2.5. Viés e empiria
Yeung e Azevedo (2015) procuraram testar de forma rigorosa a hipótese de
favorecimento sistemático do Judiciário aos devedores nas relações contratuais. O
trabalho partiu de uma base de 1.687 decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entre
os anos de 1998 e 2008. Foram extraídas variáveis sobre o tipo de recorrido ou recorrente,
ou seja, se a parte era pessoa jurídica, pessoa física ou instituição financeira e tipo de
dívida. Os resultados mostraram que não há viés explícito pró-devedor (que poderia ser
identificado apenas nas estatísticas descritivas).
Em novo teste, Yeung et al. (2012) concluíram pela inexistência de viés pro-
devedor no STJ. Esses resultados são consistentes com trabalhos anteriores de Ferrão e
Ribeiro (2007) e Ribeiro (2007), em que se testava a manutenção em juízo de cláusulas
contratuais tidas por pro-devedor, e se concluía pela existência de viés pro-devedor (e não
pro-credor). A tônica desses estudos, no entanto, foi testar a existência de viés pro-credor
a partir das decisões judiciais da seguinte maneira: mais decisões pro-credor do que
devedor sugeririam viés pro-credor, e vice-versa. Pode haver, entretanto, um viés de
seleção nessa metodologia.
É que nas disputas contratuais existem dois grupos, o das disputas que são
decididas judicialmente e o das disputas em que se chega a um acordo. Klein e Priest
(1984) mostraram, no entanto, que há uma diferença sistemática entre o grupo das
disputas judicializadas e o grupo das disputas não judicializadas. O motivo é que, antes
de entrarem em juízo, as partes consideram as chances de vencer a disputa. Por isso,
haveria uma tendência para que as decisões judiciais convergissem para um padrão de
50-50 na solução de temas controversos.
Voltando ao caso brasileiro, isso quer dizer o seguinte. Como empresas,
indivíduos e bancos têm custos diferentes para acessar o STJ, as decisões analisadas por
Yeung et al. (2012) e Yeung e Azevedo (2015) podem não ser amostras representativas
de cada um desses grupos. Por exemplo, se os credores antecipam perder, deixam de
entrar em juízo, o que faz com que o grupo de devedores passe, em média, a vencer
menos ações. Em equilíbrio, a tendência é que os juízes decidam 50-50. As variações em
torno desse patamar decorreriam, então, de assimetria de informação ou diferenças no
custo de acesso. Assim, pode haver viés pro-devedor ou pro-credor mesmo se as decisões
judiciais forem precisamente 50-50. Essa observação é consistente com alguns
levantamentos empíricos realizados no Judiciário brasileiro (e.g. Nunes e Trecenti, 2015).
Diante dessa dificuldade, Yeung e Azevedo (2015) discutem em seu trabalho
correlações condicionais. Vale citar:
“As estimações das probabilidades condicionais indicam que o tipo de
recorrente ou recorrido tem impactos sobre o resultado da decisão e
também sobre a probabilidade da decisão estadual ser revertida pelo STJ.
Em alguns casos, diferentemente do que argumentam ABL (2005) [Arida
et al. 2005, supra], a decisão dos Ministros tende a favorecer o credor,
principalmente nos casos de dívidas comerciais, quando instituições
financeiras são as recorrentes, e quando firmas (pessoas jurídicas) são a
parte recorrida. Este resultado merece especial atenção, uma vez que ABL
(2005) imputam ao alegado viés pró-devedor a atrofia do mercado de
crédito de longo prazo no Brasil. O que se nota, contudo, é que justamente
nas dívidas comerciais – aquelas relacionadas a investimentos – a
tendência do STJ é favorecer o credor, na comparação com os demais
tipos de dívida. Não há, portanto, elementos nos dados para sustentar a
proposição de que há um viés de decisão no judiciário cujo efeito seja
prejudicar o mercado de crédito para investimentos” (p. 17).
De qualquer forma, a ideia de um viés anti-credor por parte do Poder Judiciário
segue sendo influente nos círculos de policy (e.g. Banco Mundial, 2006). Por outro lado,
o viés segue sendo tratado basicamente como uma restrição exógena. Tal qual a origem
dos sistemas jurídicos (Common Law vs. Civil Law, na literatura de law and finance
popularizada por La Porta et al., 1998), supõe-se que o viés exista por fazer parte do
sistema de crenças dos integrantes do Poder Judiciário, que é uma consideração não
explicável economicamente. A hipótese de causalidade reversa aqui formulada pode,
assim, ser enxergada como uma explicação alternativa à própria discussão de viés.
3. LEVANTAMENTO EMPÍRICO
Com o auxílio de text mining, foram examinadas decisões judiciais em que os
devedores questionavam a validade das taxas de juros pactuadas em financiamentos de
automóveis com alienação fiduciária. Os resultados indicam a existência de correlação
entre aumento da taxa de juros e vitórias judiciais dos devedores, o que é consistente com
a hipótese de causalidade reversa motivadora deste trabalho. Essa correlação sugere que o
Poder Judiciário delibere sobre a substância da contratação e que, conforme a taxa de
juros do contrato de financiamento cresça, torne-se mais propenso a julgar em favor dos
devedores.
3.1. Metodologia
O text mining é um processo computacional de obtenção de informação de alta
qualidade a partir de textos. Um software foi programado para ler milhares de decisões
disponíveis online usando um algoritmo de classificação das sentenças a partir de uma
variação da técnica Term Based Method. A linguagem de programação foi Python, sendo
que a principal biblioteca utilizada para processamento dos dados foi a Natural Language
Toolkit (NLTK).
Os textos foram classificados a partir da existência, ou não, de termos específicos
das seções relevantes do universo de sentenças pesquisado. Procuramos, por exemplo, as
sentenças em que aparecia a palavra “banco” na seção em que são descritos os réus.
Ainda, para localizar as sentenças em que a taxa de juros era apresentada expressamente,
foram selecionados somente as sentenças que continham os termos “juros” e o símbolo
“%”. A palavra “sentença” foi encontrada em alguns milhares de textos em determinado
local do cabeçalho, identificado após o uso da técnica chamada de parsing of the texts.
Ao fim do levantamento, realizamos diversos testes de conferência manual para checar a
consistência do levantamento realizado pelo software.
Para organizar os dados referentes à taxa de juros do contrato, foram realizadas
duas manipulações. Primeiro, todas as taxas de juros foram normalizadas para indicar
sempre uma taxa mensal. Segundo, foi necessário consolidar em uma única taxa as
situações em que as sentenças judiciais tratavam separadamente dois “tipos” de juros no
contrato. É que a legislação e a jurisprudência reconhecem uma distinção entre os juros
“remuneratórios” (cobrados a partir do momento da concessão do financiamento) e os
juros “moratórios” (cobrados após a mora, isto é, o inadimplemento do devedor). Cada
um desses “tipos” de juros costuma ser discutido judicialmente em separado. Não há aqui
como resumir todo o debate sobre o tema, nem isso é necessário.
O importante é apontar que em contratos com consumidores, como aqueles objeto
desta pesquisa, geralmente acontece o seguinte. Antes da mora, são cobrados juros
remuneratórios. Após a mora, esses juros remuneratórios continuam a ser cobrados, mas
a eles são acrescidos juros moratórios (geralmente limitados a 1% ao mês, com
capitalização mensal ou diária). Assim, para consolidar tudo em uma única taxa, optamos
por (i) no caso de disputa antes da mora, simplesmente indicar os juros remuneratórios;
ou, (ii) no caso de disputa judicial após a mora, somar os juros remuneratórios e os juros
moratórios (por exemplo, se o contrato previa uma taxa de juros de 3% ao mês e cobrava-
se uma taxa de juros moratórios de 2% ao mês, a taxa de juros do contrato foi indicada
como sendo de 5% ao mês).
A pesquisa foi limitada às sentenças de primeiro grau proferidas no estado de São
Paulo, que é o estado com maior quantidade de ações judiciais do país. A escolha de São
Paulo também se justifica porque, ao contrário da maioria dos outros estados, desde 2014
todas as sentenças paulistas estão disponíveis online, o que facilitou o acesso aos dados.
A classificação dos processos resultou em um pool de textos que foram, posteriormente,
lidos para que as informações finais fossem extraídas manualmente.
A pesquisa original nos levou a 11.000 decisões.9 Deste universo original, apenas
mantivemos as decisões que preenchiam os seguintes critérios: (i) o devedor era o autor
da ação; (ii) o banco era o réu; (iii) a taxa de juros do contrato era expressamente
informada na sentença judicial; e (iv) o devedor estava especificamente questionando
judicialmente a legalidade da taxa de juros do contrato (ou dos juros moratórios, ou dos
juros remuneratórios, ou de ambos, como é mais comum).
9 Coincidentemente, um número redondo.
3.2. Resultados
Foram encontradas 888 ações judicias que atendiam aos critérios da pesquisa. As
ações foram então separadas em dois grupos: “rejeitadas” (em que o juiz mantinha a
legalidade das taxas de juros pactuadas) e “aceitas” (em que o juiz reduzia a taxa de juros
contratada). 862 ações foram rejeitadas e 26 foram aceitas. A taxa de juros média das
ações rejeitadas foi de 1.936454% ao mês (com 0.5155% de desvio padrão). A taxa de
juros média das ações aceitas foi de 11.66739% ao mês (5.949813% de desvio padrão).
Esses resultados estão ilustrados nas Figuras 1, 2 e 3 abaixo.
Figura 1: Taxa de juros do contrato e decisões judiciais
Taxa de juros
mensal
Aceitas
(pró-devedor)
Rejeitadas
(pró-credor)
% de ações Aceitas
(pró-devedor)
Menos de 3% 0 837 0%
3-4% 6 23 21%
4-7% 3 2 60%
Mais de 7% 17 0 100%
Figura 2: dispersão das taxas de juros das ações aceitas (número de ações x taxa de juros)
Figura 3: dispersão das taxas de juros das ações rejeitadas (número de ações x taxa de
juros)
0
5
10
15
20
25
0 10 20 30
3.3. Discussão dos resultados
Durante o período selecionado, a inflação foi de aproximadamente 0,5% ao mês e
a taxa Selic esteve em aproximadamente 1% ao mês. Os resultados obtidos são, portanto,
consistentes com a observação largamente documentada de que os spreads bancários são
elevados no Brasil.
Não deixa de ser curioso termos conseguido obter tantas decisões mesmo após a
aplicação de tantos filtros. A explicação mais plausível é a de que as cortes brasileiras
sejam de fato bastante receptivas aos reclames de devedores em financiamentos de modo
geral (se isso ocorre por simpatia a devedores, como se costuma acreditar, ou por
antipatia à taxa de juros do contrato, como aqui sugerimos, é justamente o tema suscitado
neste trabalho).
Os dados mais recentes divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
apontam que as instituições financeiras eram, em 2011, as maiores litigantes privadas do
Brasil, estando envolvidas em 12,95% de todos os novos processos judiciais na Justiça
Estadual, e em 14,7% de todos aqueles levados perante os Juizados Especiais Estaduais10
entre 1º de janeiro de 2011 e 31 de outubro de 2011.11 Nos tribunais federais, a situação
era apenas ligeiramente melhor, estando os bancos públicos envolvidos em 9,6% de todas
as ações judiciais iniciadas no período destacado. Embora os temas litigados sejam muito
10 Os juizados especiais no Brasil só podem julgar casos cujo valor envolvido seja igual ou inferior a quarenta salários mínimos. 11 A pesquisa não inclui casos criminais, eleitorais e militares, bem como casos instaurados pelo Ministério Público. Ver Conselho Nacional De Justiça, 100 Maiores Litigantes 2011, p. 4-6 (2012), http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/100_maiores_litigantes.pdf (acessado em: 15/11/2016)
0
1
2
3
4
5
6
0 500 1000
variados, englobando inclusive numerosas ações sobre tarifas e perdas inflacionárias,12 a
questão mais comumente debatida tem sido a taxa de juros cobrada pelos bancos nas
operações de crédito. Como se vê, há hoje no Brasil uma super-litigância envolvendo o
crédito bancário (Salama, 2016).
Outro ponto a se notar é o de que há três “zonas” distintas nas decisões judicias:
aquela em que as taxas de juros são sempre aceitas; aquela em que são sempre rejeitadas;
e uma zona intermediária em que há decisões para os dois lados. Isso se explica,
aparentemente, pela conjugação de dois fatores. De um lado, a jurisprudência entende de
modo unívoco que juros “abusivos” podem ser revisados pelas cortes. De outro,
prevalece no Poder Judiciário a orientação de que a abusividade somente pode ser aferida
no caso concreto, e não com base em um critério geral.
Essa falta de clareza de critérios para além do parâmetro geral da “abusividade”
fica clara quando se analisa as decisões do STJ, que é o tribunal responsável por unificar
os entendimentos acerca da legislação infraconstitucional do país. Para ilustrar, no REsp
1.061.530/RS de 2010 – um celebrado leading case do STJ sobre revisão judicial da taxa
de juros em contratos bancários – a Ministra relatora Nancy Andrighi indica que “a
perquirição acerca da abusividade [da taxa de juros do contrato] não é estanque, o que
impossibilita a adoção de critérios genéricos e universais”.
É bem verdade que a Min. Nancy Andrighi procura encontrar elementos para a
atuação do Judiciário. Em particular, “a taxa média de mercado, divulgada pelo Banco
Central, constitui um valioso referencial [para a aferição da abusividade]”. Assim, em seu
voto são indicados precedentes em que o STJ considera abusivas taxas superiores a uma
vez e meia (voto proferido pelo Min. Ari Pargendler no REsp 271.214/RS, Rel. p.
Acórdão Min. Menezes Direito, DJ de 04.08.2003), ao dobro (Resp 1.036.818, Terceira
Turma, Nancy Andrighi, DJe de 20.06.2008) ou ao triplo (REsp 971.853/RS, Quarta
Turma, Min. Pádua Ribeiro, DJ de 24.09.2007) da “média de mercado”. Ao mesmo
tempo, insiste a Min. Andrighi, “cabe somente ao juiz, no exame das peculiaridades do
caso concreto, avaliar se os juros contratados foram ou não abusivos”. Não fica claro, no
12 Em 2014, os contratos bancários em relações de consumo relativos a empréstimos consignados, expurgos inflacionários, planos econômicos e tarifas figuravam como o 20º assunto mais demandado dentre todos os processos iniciados perante a Justiça Estadual naquele ano, e como 17º dentre as demandas levadas aos Juizados Especiais Estaduais no mesmo período. Cf. Conselho Nacional de Justiça, Justiça em Números 2015, p. 98-100 (2015).
entanto, em que caso cada parâmetro (uma vez e meia, o dobro ou o triplo) deve ser
usado.
É preciso notar, de qualquer forma, que a pesquisa realizada tratou de precedentes
de juízes de primeira instância em São Paulo, mas nada garante que tais precedentes
sigam fielmente os ditames do STJ, nem que em outros estados haja o mesmo padrão.
Essa observação encontra fundamento, por exemplo, no trabalho de Yeung e Azevedo
(2015) que, analisando contratos comerciais de diversos tipos, chegaram ao
surpreendente resultado de que 54,3% das decisões do STJ analisadas reformavam
decisões dos tribunais estaduais. Este é, aliás, indício de que o problema de insegurança
jurídica seja particularmente grave no Brasil, um tema que toca ao presente trabalho
apenas de maneira indireta e que retomo na Seção 5.2 abaixo.
Um ponto adicional é o de que para se chegar aos resultados desta pesquisa não
foi necessário recorrer à análise pormenorizada da fundamentação jurídica empregada
pelos magistrados (isto é, não precisamos catalogar as “razões de decidir” das sentenças).
A ideia foi ater-se às preferências reveladas (nas decisões), e não às preferências
declaradas (na fundamentação). O ponto é retomado em detalhe na seção 5.3, adiante.
Um comentário importante acerca da fundamentação das decisões pesquisadas, no
entanto, é o de que não encontramos decisão em que o juiz tenha dito que não compete ao
Poder Judiciário perquirir sobre a abusividade de taxas de juros. Mesmo os votos
contrários ao tabelamento pelo Poder Judiciário da taxa de juros, ainda assim costumam
conter a ressalva de que a abusividade deve ser analisada no caso concreto. Trata-se, a
meu ver, de implicação da vedação ao abuso de direito, uma categoria dita “dogmática”
(porque criada pela “doutrina”) que permeia o pensar jurídico de modo, em parte,
independente do texto das leis.13 Isso nos conduz de volta ao problema das mentalidades.
Por fim, cabe notar que aqui foi testada apenas a existência de correlação, e a
inferência de causalidade requereria a realização de testes econométricos mais complexos.
Por isso, não se pode descartar a possibilidade de que variáveis omitidas estejam
determinando esses resultados (por exemplo, as ações rejeitadas podem se referir a
devedores mais pobres ou com pior histórico de crédito, etc.). Tampouco se pode
13 Se bem que a vedação ao abuso de direito atualmente no Brasil decorre de lei. Cf. art. 187 do Código Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
descartar a possibilidade de viés de seleção, porque aqui selecionamos apenas decisões
em que o devedor era o autor da ação, e com isso deixamos de fora o universo de ações
de cobrança ajuizadas pelos bancos contra os devedores. Ainda assim, tudo leva a crer
que a razão principal para a aceitação de pedidos de redução/revisão contratual seja
realmente a de que os juízes considerem as taxas de juros dos contratos analisados como
“abusivas”.
Em síntese, temos o seguinte. No Brasil, é comum os devedores contestarem a
taxa de juros dos contratos. Este estudo enfocou os litígios envolvendo o financiamento
de automóveis sob alienação fiduciária no estado de São Paulo. Os dados mostraram que
a maioria dos pleitos judiciais visando à redução das taxas de juros é rejeitada, porém
uma parcela não desprezível é aceita. Além disso, a proporção de casos aceitos aumenta
conforme aumentam as taxas de juros do contrato em disputa. Esses resultados são
consistentes com a hipótese orientadora deste trabalho, isto é, a de que conforme os juros
aumentam há uma tendência à maior incidência de vitórias dos devedores.
4. IMPLICAÇÕES NORMATIVAS
4.1. Para os estudos sobre spreads bancários
Há duas formas de relacionar a hipótese de causalidade reversa aqui delineada
com a literatura existente. Primeiro, a hipótese de viés anti-credor pode ser substituída
pela hipótese de preferência por contratos com juros menores. Nessa linha, a
probabilidade de decisões pró-devedor tenderia a crescer com o mark-up dos bancos na
intermediação bancária. As hipóteses testáveis são as seguintes: quando aumentam as
despesas administrativas dos bancos, a cunha fiscal, o lucro líquido dos bancos ou os
recolhimentos compulsórios, os julgamentos em favor dos devedores se tornam mais
frequentes.
Segundo, a hipótese de preferência por contratos com juros menores pode ser
também um canal de transmissão das causas macroeconômicas do spread bancário.
Assumindo, como é altamente plausível, que haja transmissão da rigidez monetária para o
nível de spread, a hipótese testável é a de que a maior rigidez da política monetária cause
aumento de decisões pró-devedor. Essa me parece uma hipótese particularmente
interessante. A normalização financeira do Brasil após o Plano Real foi apenas parcial,
porque embora os índices de inflação tenham caído, as taxas de juros permaneceram
muito elevadas. Convém investigar a suspeita nada implausível de que esse desarranjo no
nível macro tenha um reflexo, também, nos tribunais.
Um ponto adicional a ser enfatizado é que o levantamento empírico aqui realizado
com financiamento de automóveis sob alienação fiduciária é replicável para outros tipos
de financiamento. Contudo, nem sempre a pesquisa com outros tipos de financiamento
bancário revelará a correlação aqui indicada, ainda que os juízes tenham de fato
resistência a juros mais altos.
O motivo é o seguinte: o parâmetro mais comum para a identificação de
abusividade é a discrepância ante a média das taxas de mercado. 14 Uma questão
enfrentada pelos bancos é que a média de mercado não captura variações que reflitam
maior ou menor risco de crédito de diferentes devedores. Os bancos têm criado diferentes
produtos para atender a clientes com perfis de risco distintos. Pode acontecer, então, que
produtos financeiros com pequena variação na taxa de juros cobrada de diferentes
tomadores não indiquem variações com significância estatística tal qual obtivemos no
caso do financiamento de automóveis sob alienação fiduciária no estado de São Paulo.
4.2. Para o debate sobre as políticas concorrenciais no setor bancário
A hipótese de causalidade reversa objeto deste trabalho sugere que haja dois
canais de transmissão entre a competição bancária e o nível de spread. O primeiro é bem
conhecido: maior competição, menor mark-up pelos bancos. O segundo é sutil: menor
mark-up, maior o nível de enforcement dos contratos pelo Judiciário e, então, novamente,
menor spread bancário. O estudo desse segundo canal de transmissão é importante para o
debate existente no Brasil acerca do nível de competição desejado no sistema financeiro.
Aqui há temas como inovação financeira (novos produtos, securitizações, etc.), barreiras
de entrada (especialmente para as fintechs) e políticas pro-competitivas de modo geral
(controle estrutural e de condutas, etc.).
4.3. Para as iniciativas voltadas à expansão do crédito
Da hipótese de causalidade reversa também decorre uma possível explicação para
o racionamento de crédito no Brasil, porque o nível de enforcement estará
progressivamente caindo sempre que a expansão do crédito se fizer (como é natural) em
taxas de juros superiores àquelas anteriormente praticadas.
14 Cf. seção 3.3 supra.
4.4. Para a microeconomia teórica
A literatura de microeconomia bancária reconhece que nem todo contrato será
exigível perante o Poder Judiciário, porém a probabilidade de que o contrato não seja
exigível tende a ser tratada como uma restrição exógena. A sugestão subjacente à
hipótese aqui formulada é a de que a probabilidade de enforcement de um contrato possa
ser endogeneizada como função do preço do contrato. Esse é, aliás, o caminho seguido
em Guimarães e Salama (2017).
4.5. Para o debate sobre a imposição de tetos aos juros remuneratórios
Se há uma preferência por juros mais baixos entre os membros do Poder
Judiciário, como se sugere aqui, cabe pensar sobre os efeitos de uma lei estabelecendo
um teto para a taxa de juros. Parece razoável supor que, se o teto for muito baixo, a
tendência do Poder Judiciário será encontrar caminhos interpretativos que lhe permitam
desconsiderar o teto (como ocorreu no Brasil quando em 1988 a Constituição Federal
estabeleceu um teto de 12% de juros “reais” para operações financeiras). Por outro lado,
se o teto for muitíssimo alto, ou se não houver teto (como de modo geral ocorre no caso
brasileiro), corre-se também o risco de que a autorização legal seja ignorada e que o
Judiciário passe a impor o seu próprio teto (e o que é pior, com grande variância,
reduzindo a previsibilidade e aumentando a insegurança jurídica). Esse parece ser o caso
brasileiro.
Guimarães e Salama (2017) formulam a hipótese de que dentro de um certo
intervalo os juízes seguem as leis, mas fora do intervalo os juízes adotam uma solução
idiossincrática (ainda que pautada em algum critério de decisão, como, por exemplo, a
“discrepância” ante a média de mercado). Fazendo suposições simples sobre as
preferências dos juízes, pode-se chegar à conclusão de que um teto suficientemente alto
pode reduzir a insegurança jurídica e permitir a expansão do mercado de crédito se puder
angariar grande adesão dos membros do Poder Judiciário. A mensagem é: se houvesse
um teto elevado, que fosse quase sempre seguido por todo o Poder Judiciário, então
provavelmente o crédito poderia se expandir mais do que na situação atual em que, não
havendo teto legislado, o Poder Judiciário intervém de forma desorganizada na
precificação do crédito.
4.6. Para as políticas públicas voltadas à redução do spread
São duas. Primeiro, com ou sem a edição de uma nova lei da usura, o problema do
spread alto não será resolvido se não se puder atacar também suas demais causas,
especialmente (i) a elevada tributação do crédito, (ii) os problemas de competição (se
existirem, o que não está cabalmente demonstrado) e, principalmente, (iii) o desarranjo
macroeconômico do país que se transmite de maneira tão consequente para a elevação do
piso das taxas de juros, para elevação da insegurança sobre a solvência do estado, para a
redução da confiança pública de modo geral e para a elevação dos próprios spreads
bancários. A criação dos mecanismos de dinamização da exigibilidade do crédito
mencionados neste trabalho são evidentemente boas iniciativas, que convém ampliar.
Mas as mudanças dos mecanismos judiciais são a parte mais fácil, e quem sabe até a
parte menos importante do processo de normalização financeira do país.
Segundo, em linha com o modelo delineado em Guimarães e Salama (2017), pode
ser possível expandir a oferta de crédito introduzindo-se uma lei de usura. Para tanto, a
lei teria que ter duas características importantes. Primeiro, teria que permitir taxas de
juros suficientemente altas, para possibilitar a oferta de crédito a uma boa parcela dos
devedores. Segundo, a lei teria que ser crível, no sentido de reduzir fortemente a
imprevisibilidade/insegurança jurídica que advém da resistência de parcela dos juízes
ainda contrários à precificação do juro em padrões elevados.15
4.7. Para o debate público sobre o spread bancário
A hipótese de causalidade reversa aqui delineada supõe que a preferência judicial
seja pelo juro baixo; não pelo devedor. As implicações em cada caso são diferentes.
Quando a preferência judicial é pelo devedor, há um grande espaço para o que em inglês
se costuma chamar de advocacy, isso é, a defesa pública e sistemática de um certo
conjunto de interesses (no caso, dos credores). O objetivo é reverter o viés.
Mas se a preferência for pelo juro baixo, a eficácia da advocacy pelos credores
tende a ser menor. De nada adianta despontar no Judiciário certa simpatia pelos credores
– reverter o que a literatura do viés anti-credor cogita serem preconceitos atávicos contra
os Shylocks do mundo moderno – se o custo de crédito ainda é tido como muito alto. A
predição da presente hipótese, portanto, é a da relativa ineficácia das tentativas dos
15 Além disso, dada a diferença de taxas de juros em diferentes produtos – compara-se o cheque especial com o crédito consignado –, essa lei de usura possivelmente teria que ser estabelecida “por produto”, e não horizontalmente para todo tipo de financiamento.
credores de reverter o “viés anti-credor” pelo simples motivo de que tal viés
provavelmente não existe.
É claro que as preferências dos juízes não são estáticas. O advocacy pode bem
estender, digamos, o nível a partir do qual os juízes passam a achar os juros aceitáveis (se
as opiniões de juízes não mudassem, talvez teríamos até hoje a resistência à cobrança de
juros que tão claramente caracterizou todo o período da Idade Médida na Europa). Mas a
melhor compreensão dos gostos (tastes) que motivam as preferências judiciais pode
contribuir, no mínimo, para que o debate possa estar focado nos pontos verdadeiramente
relevantes.
5. LIÇÕES PARA O ECONOMISTA
A hipótese aqui formulada tem uma singular característica: para o jurista,
acostumado com as discussões em torno do problema do “abuso de direito”, ela é
intuitiva; mas para o economista, pouco acostumado a endogeneizar a probabilidade de
enforcement ao preço do contrato, ela é contra-intuitiva. A sugestão é a de que há algo de
importante sobre o sistema jurídico que escapa à interpretação dos economistas. Sem a
pretensão de esgotar um assunto de todo espinhoso, esta seção se ocupa deste problema
indicando quatro “lições” que podem ser tiradas em benefício do aprimoramento da
análise econômica do direito e do Judiciário.
5.1. Aplicar a lei não é um processo mecânico
Em princípio, cabe ao juiz aplicar a lei aos fatos. Na teoria jurídica, esse processo
recebe o nome de “subsunção”. A lei contém o comando. As partes apresentam os fatos.
O juiz apenas faz o encontro entre os fatos (que lhe são trazidos) e a lei (que é por ele
conhecida). Juízes são como máquinas de ler leis e contratos. O processo de decisão é
automático.
Acontece que esse modelo de subsunção não descreve adequadamente o ato de
julgar. Decidir litígios não é um ato mecânico. Ao contrário, julgar envolve o exercício
da razão prática, do juízo, da deliberação sobre os fatos, o contrato e as leis. Repare:
contratos com juros contratuais elevados podem ser tidos como ilegais pelo Poder
Judiciário ainda que a cobrança de preço de mercado esteja em princípio permitida pela
legislação, como, aliás, ocorre no Brasil. A legislação específica permite; o juiz proíbe.
Que o juiz o faça com base em leis gerais, em doutrinas de antanho ou em princípios
constitucionais em nada muda o problema econômico. É isso que torna plausível a
hipótese aqui delineada.
Vamos reiterar o ponto. Se a subsunção mecânica explicasse o processo de
decisão dos juízes, então as decisões do Poder Judiciário sobre os contratos de
financiamento dependeriam apenas dos comandos contidos na legislação. E o que
estabelece a legislação brasileira sobre a taxa de juros? De modo geral, ela permite que o
contrato de financiamento seja precificado com base nas condições de mercado porque,
como vimos, os tetos à cobrança de juros previstos na legislação brasileira –
particularmente no Decreto 22.626/33 (a chamada “Lei da Usura”) e no Código Civil de
2002 – foram, em 1964, excepcionados para as instituições financeiras. Estabeleceu-se,
assim, um sistema dual, em que apenas as instituições financeiras podem cobrar juros de
mercado, enquanto que os demais agentes econômicos devem seguir os tetos
estabelecidos na legislação.
Ora, se a legislação dispõe dessa forma, então o modelo simplificado de
subsunção acima delineado levaria à conclusão de que a taxa de juros não deveria
influenciar o enforcement do contrato. Preenchidos os requisitos de validade básicos
(capacidade para assinar o contrato, especificação do valor emprestado e da taxa de juros,
ausência de erro ou fraude, etc.) caberia ao Poder Judiciário apenas mandar cumprir – dar
o enforcement – os contratos e as garantias do financiamento. Mas a hipótese deste
trabalho é que o Poder Judiciário esteja mais propenso a invalidar contratos – julgar a
favor de devedores – à medida que a taxa de juros do financiamento aumente.
É por isso que dissemos que o modelo de subsunção – poderíamos chamá-lo
também de modelo “formalista” – não descreve bem como o direito funciona. Muitos
teóricos do direito, e talvez mesmo economistas, poderiam inclusive entender que o
sistema jurídico deveria funcionar desse modo. Esse é um bom debate normativo (os
juristas o chamariam de “deontológico”). Sem enfrentar a complexidade toda do
problema, pode-se aqui pontuar que a ideia de uma subsunção mecânica traz muitas
dificuldades práticas. A legislação pode padecer de uma série de problemas: pode ter se
tornado antiquada; pode ser contraproducente; pode ser obscura; pode ser contraditória;
pode ser discriminatória; e assim por diante. Tudo isso sugere cautela com visões radicais
da ideia de subsunção.
É claro que o debate não acaba aqui. Da mesma forma que o Judiciário pode
corrigir uma má legislação ele pode, também, arruinar uma boa legislação. Imaginemos
novamente que o juiz realize um teste de hipótese com uma regra legislada.16 Se a
hipótese nula for “a regra deve ser seguida” e a hipótese alternativa for “a regra deve ser
ignorada”, pode haver dois erros: o erro tipo 1, em que a regra é ignorada quando deveria
ser seguida; ou o erro tipo 2, em que o juiz segue a regra legislada quando deveria ignorá-
la. O problema da vinculação do juiz à legislação, como se vê, se presta a muitas sutilezas.
5.2. A relativa imprevisibilidade é inerente ao sistema jurídico
Até aqui falamos da decisão judicial sobre a substância das regras em vigor, mas
há evidentemente um outro problema ligado à atuação, digamos, criativa, do Poder
Judiciário, que diz respeito à previsibilidade das regras. Se por um lado o legislador erra,
por outro o Judiciário pode errar também; mas talvez seja melhor conviver com uma má
regra que seja conhecida e estável – até para que barganhas coaseanas sejam possíveis –
do que com um regramento instável ou desconhecido. Tudo isso mostra que o debate
normativo sobre o formalismo jurídico (inclusive seus desdobramentos econômicos) é
muito rico, complexo e, como quase tudo em matéria de teoria jurídica, vem de longa
data e nunca foi resolvido.
A hipótese de causalidade reversa não lança novas luzes sobre essa discussão
milenar, mas aponta para dois fatos que geralmente não costumam ser bem
compreendidos nos estudos de análise econômica do direito. Primeiro, a situação normal
de um sistema jurídico é aquela em que o Poder Judiciário geralmente segue a legislação,
mas excepcionalmente atua de maneira criativa. O juiz atua, então, como um “legislador
ocasional”, para tomarmos emprestada a expressão de Richard Posner (2008, p. 78).
Segundo, a situação normal do sistema jurídico é haver certa insegurança jurídica,
isto é, certa imprevisibilidade. A insegurança jurídica pode ser pensada como uma
variância em torno de um ponto médio das decisões. Ela não decorre apenas da atuação
criativa do Judiciário, mas esta é um fator impulsionador. Na política, há sempre um
elemento de surpresa – o que fará o legislador? – mas é normal haver também esse tipo
de incerteza no que toca à atuação do Judiciário. Isso não quer dizer, evidentemente, que
a existência dessa incerteza seja boa; quer dizer apenas que ela seja um dado da realidade.
16 Cf. Seção 1, supra.
Há aqui uma decorrência muito importante: a circunstância de estar um sistema
judicial funcionando bem, ou mal, é uma questão de grau. Um sistema judicial
disfuncional erra muito e é pouco previsível (tem elevada variância entre as decisões);
um bom sistema jurídico erra pouco e é muito previsível (tem baixa variância); e entre
essas duas situações polares há diversos casos de meio-termo. Onde o Brasil está, nesse
contínuo, é também uma boa questão, sobre a qual existe literatura, e da qual não me
ocupei aqui.
De qualquer forma, a formulação nesses termos indica ser possível pensar-se em
uma otimização da atuação criativa do Poder Judiciário como um trade off entre
eliminação de erros do legislador e preservação da segurança jurídica. E aqui não vai
nenhuma sugestão de que o Poder Judiciário necessariamente “acerte” mais do que o
legislador, embora haja uma longa tradição na economia de pensar-se desse modo (Hayek,
1960, 1973; Posner, 1977).
5.3. Ninguém sabe ao certo o que os juízes maximizam
As tentativas até hoje existentes de modelar uma curva de utilidade judicial são
interessantes, mas têm se mostrado inconclusivas (Kornhauser, 2008, revisando a
literatura). É curioso notar como a análise econômica acaba, então, por prescindir de
micro-fundamentação das decisões dos juízes com base em uma curva de utilidade.
Políticos maximizam votos, consumidores maximizam bem-estar, burocratas maximizam
poder, assim vai a teoria da escolha pública. E os juízes, o que maximizam? Não há boa
resposta (Posner, 2003, 2008, p. 36).
A fim de contornar o problema, é intuitivo pensar-se em mecanismos de revelação
de preferências. A literatura econômica brasileira o faz profusamente, especialmente
através da aplicação de questionários como aqueles mencionados na Seção 2 acima. Esses
questionários são, no fundo, de mecanismos de identificação de preferências declaradas,
estando sujeitos, portanto, aos conhecidos problemas ligados a essa técnica
(ambiguidades na formulação de perguntas e respostas, desonestidade na resposta,
inconsciência dos indivíduos sobre suas reais motivações).
Um outro caminho possível seria a inferência de preferências a partir dos
fundamentos jurídicos das decisões judiciais. Afinal, ao decidir, determina a Constituição
Federal (art. 93, IX), o juiz deve fundamentar, isto é, indicar as razões jurídicas de decidir.
No sistema de direito continental que vigora no Brasil, isso geralmente se traduz na
indicação de algum artigo de lei que alegadamente embasa, ou “controla”, a decisão, ao
lado de uma argumentação sobre a pertinência entre tal artigo de lei e os fatos em questão
(no sistema da Common Law a indicação de um precedente judicial pode bastar). Nesse
embasamento legal reside o que estou chamando de fundamento jurídico.
Teoricamente, a indicação do fundamento jurídico poderia revelar a preferência
do juiz. Daí teríamos, então, uma boa pista para compreender seus gostos, sua motivação,
e quem sabe até para esboçar sua curva de utilidade. Acontece que nada garante que os
juízes usarão fundamentos jurídicos verdadeiros para exprimir a motivação de suas
decisões. Pode bem acontecer que um juiz opte por indicar um fundamento jurídico de
decidir apenas por ser este o fundamento menos controverso, ou o mais popular, ou o
mais politicamente correto, ou o mais dificilmente reversível. Isso quer dizer que a
fundamentação jurídica padece dos mesmos problemas que se costuma atribuir aos
questionários de declaração de preferências.
Há muitos textos eruditos destrinchando o problema do intervalo que separa
motivação formal (declarada) e a motivação subjetiva (psicológica) das decisões judiciais,
mas um depoimento aparentemente cândido do Ministro do STF, Luiz Fux, talvez o
ilustre de forma emblemática. Confira-se: “Como magistrado, primeiro procuro ver qual
é a solução justa. E depois, procuro uma roupagem jurídica para essa solução. Não há
mais possibilidade de ser operador de Direito aplicando a lei pura. Nós aprendemos assim
por força de um engessamento levado pela política de repressão, e que hoje não existe
mais”. 17 Sendo assim, a fundamentação talvez ainda sirva para circunscrever os
contornos do debate em juízo, algo que interessa apenas aos advogados. Mas para o
economista, o resultado é a pouca importância da fundamentação como mecanismo de
revelação de preferência.
5.4. Nem toda lei contém uma regra
Um problema adicional é que os fundamentos jurídicos para invalidação de
contratos que preenchem requisitos mínimos de validade (como partes capazes, objeto
lícito, forma prescrita em lei, etc.) não estão apenas em intuições de justiça, doutrinas e
17 Luiz Fux, depoimento disponível no website da Faculdade de Direito da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Em: http://www.direitouerj.org.br/2005/fdir70/depLF.htm (acessado em: 15/11/2016).
outros preceitos, mas estão também nas próprias leis escritas. Dito de forma simples: a
própria legislação contém comandos que realçam a legitimidade do juiz para agir com
discricionariedade, inclusive invalidando acordos voluntários. A literatura econômica
(Ehrlich e Posner, 1974; Kaplow, 1992) trata do problema a partir da distinção entre
regras (comandos mais especificados) e standards (menos). Para ilustrar: a autorização à
cobrança de juros remuneratórios em condições de mercado é uma regra. A vedação à
cobrança em padrões “abusivos” é um standard.
O ponto é que, para além de regras regulatórias mínimas (o contrato não pode ser
assinado por um menor, o contrato deve ser datado, etc.), a legislação contém um enorme
conjunto de normas abertas que outorgam ao juiz uma liberdade decisória e um espaço de
discricionariedade maior. Os melhores exemplos são as chamadas cláusulas gerais (como
a boa-fé e a função social) e os chamados conceitos jurídicos indeterminados (como
estado de necessidade, preço justo e o próprio abuso de direito) (Salama e Silva Filho,
2013). Há ainda princípios constitucionais, que contemplam aspirações de justiça e em
alguns casos são utilizados como fundamento para decisão. O resultado é o seguinte: um
juiz que discorde da legalidade de um contrato com uma taxa de juros muito elevada tem
a seu dispor um verdadeiro arsenal conceitual de que pode se valer a fim de invalidar o
contrato.
É bom também esclarecer que a fundamentação jurídica em normas abertas para
invalidar contratos não é um fenômeno apenas brasileiro. Apenas para ficarmos no
campo da discussão dos juros em contratos de financiamento, pode-se citar o caso da
Suprema Corte alemã, que entendeu que juros em contratos de financiamento que
excedam o dobro da média do mercado são contrários à moral pública, estando, portanto,
em desacordo com o disposto no art. 138 do Código Civil alemão (Markesinis et al.,
2006; Reifner, 2012).18
A Suprema Corte japonesa, da mesma forma, recentemente mudou interpretação
sobre a legislação aplicável aos financiamentos aos consumidores, e o efeito prático foi o
de permitir uma avalanche de ações por parte de consumidores presos a contratos tidos
por muito onerosos (Ramseyer, 2013). Isso quer dizer que os dilemas ligados à
18 Essa decisão da Suprema Corte alemã tem pelo menos duas manifestações parecidas no STJ. Cf. REsp 977.789/RS, Terceira Turma, DJe de 20.06.2008; e Resp 1.036.818, Terceira Turma, DJe de 20.06.2008).
intervenção do Poder Judiciário na contratação privada se fazem sentir também fora do
Brasil. Se em maior ou menor grau, este é um problema que requer um estudo que está
além dos presentes fins.
De qualquer forma, ao falar da intervenção judicial nos contratos não quero dizer
que cada juiz seja um pequeno déspota, alguém que não se prenda a nada e simplesmente
resolva como quer. A aplicação do direito não deveria ser um vale tudo, assim dizem os
teóricos do direito. E a prática judiciária do direito no Brasil não é um vale-tudo, assim
digo eu. E por que esta prática não é um vale-tudo? Primeiro porque os juízes passam
pela faculdade de direito, um local em que são doutrinados na proposição de que sua
legitimidade política se prende mais ao ato de cumprir as regras do que ao ato de criá-las.
Segundo, e mais importante, porque essas crenças são reforçadas pela estrutura de
incentivos criada pelo funcionamento do Poder Judiciário. Como já apontado pela
literatura (Landes e Posner, 1975), toda a estruturação do Poder Judiciário busca insular
os juízes do resultado de suas decisões. Juízes não podem julgar causas em que tenham
interesse direto e não recebem remuneração adicional pelo tipo de decisão; não tendo
nada a ganhar criando regras, supõe-se, optarão por aplicar aquelas já existentes.
Mas da rejeição à ideia de que a aplicação do direito seja um vale-tudo não segue
a afirmação do seu oposto, isto é, não segue que a aplicação do direito seja mecânica e
que os juízes sejam autômatos. Embora na faculdade os juízes sejam, como dissemos,
doutrinados na proposição de que sua legitimidade esteja ligada principalmente à
aplicação de regras já legisladas, também nas faculdades recebem instrução no sentido de
que devam aplicar o direito com prudência, atentar para os valores morais subjacentes às
leis, exercer a razão prática e, em alguns casos, até mesmo julgar contra legem – contra o
texto de lei. Além disso, a insulação dos juízes frente aos resultados dos litígios é apenas
parcial, porque seus vieses e ideologias impactam suas decisões (Epstein et al., 2013). É
nesse ponto, aliás, que a discussão sobre a existência de viés anti-credor no Brasil
encontra a literatura internacional.
Ademais, embora os juízes não possam julgar casos com os quais estejam
diretamente envolvidos – por exemplo, um juiz não pode julgar uma ação se o seu filho
for um dos advogados da causa – os juízes ainda julgarão casos com os quais estarão
indiretamente envolvidos. E no caso dos financiamentos bancários, a consequência
prática é facilmente compreendida. Basta pensar que todo juiz pode ser, pode ter sido, ou
pode aspirar a ser titular de um financiamento bancário. Esse fato pode influenciar sua
decisão.
Tudo isso quer dizer, então, que há fundamentos jurídicos que permitem aos
integrantes do Poder Judiciário deliberarem sobre a conveniência de dar enforcement a
um contrato. O preço do contrato, ou seja, a taxa de juros em um financiamento, é um dos
componentes sobre os quais os juízes podem deliberar. Isso é importante porque o
recurso a esses tipos de fundamentos mais abertos pode servir para afastar a exigibilidade
de um contrato de financiamento consensualmente pactuado.
5.5. O Direito pode excepcionar o critério de Pareto
Causará estranheza ao economista a ideia de que contratos prévia e
voluntariamente acordados possam ser revisados pelo Poder Judiciário. A teoria
econômica dos contratos, nos lembra a conhecida sistematização de Cooter e Ulen (2004,
p. 8), dirá que a eficiência econômica exige que se faça cumprir uma promessa se tanto o
promitente quanto o promissário quiserem sua exigibilidade quando ela foi feita. Quando
um acordo pode ser descumprido ex post, limita-se coordenação privada ex ante, reduz-se
a fronteira de possiblidades de produção, cria-se um peso morto, e assim por diante. Tudo
isso, aliás, deveria ser perfeitamente intuitivo, e pode ser demonstrado com a teoria dos
jogos mais elementar.
Chegamos então à maior dificuldade do pensar em Direito e Economia: os
critérios normativos da Economia e do Direito podem não coincidir. O critério normativo
da economia é o custo e seu horizonte, portanto, é o da eficiência; o direito, por outro
lado, ocupa-se de distinguir o legal do ilegal, mas o faz com base em critérios normativos
bastante diversos (Katz, 2006; Salama, 2009). É bem verdade que há superposições entre
as lentes de análise: há algo de injusto no desperdício, e o desperdício não é senão a
ausência de eficiência. Por isso, muito do que é ineficiente é, também, tratado
juridicamente como ilegal. Só que nem sempre é desse modo, porque em alguns casos o
direito pode permitir o desperdício – a ineficiência – em nome da defesa de algum outro
valor.
A implicação aqui é clara: é no mínimo ingênuo acreditar que um Judiciário
independente, em qualquer lugar do mundo, possa estar comprometido com a força
obrigatória dos contratos (e o princípio de Pareto) em absolutamente todos os casos.
Contratos de escravidão, de prestação de serviços sexuais, as loterias de órgãos, dentre
muitos outros, serão ilegais ainda que realizados voluntariamente, por partes capazes,
perfeitamente informadas e sem gerar consequências negativas para terceiros. No fundo,
o que está por trás da hipótese de causalidade reversa aqui formulada é que contratos com
juros muito elevados talvez caiam também nessa circunstância de ilegalidade mesmo
quando a precificação for justificável do ponto de vista da relação risco-retorno do
negócio.
6. CONCLUSÃO
O sistema jurídico faz parte do conjunto de mecanismos institucionais que
implementam as políticas de crédito. Este sistema jurídico está baseado em critérios que
englobam, mas não se limitam, ao princípio de eficiência Paretiana. Isso quer dizer que
nem sempre o que é combinado voluntariamente será exigível judicialmente. À luz da
literatura existente e do levantamento empírico realizado, é plausível supor que o Poder
Judiciário esteja tanto mais propenso a rejeitar a taxa de juros pactuada nos contratos
quanto mais elevado for o nível dessa taxa de juros.
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