é professor de física teórica no dart- …ver a atração entre as massas sem...

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7 ef mais! São Paulo, domingo, 9 de maio de 2010 + Marcelo Gleiser N a famigerada guerra entre ciência e religião, uma distin- ção comum é afirmar que a ciência explica “como” as coisas são e não o “porquê”. Mas vale a pena pen- sar: será que esse é realmente um mo- do eficiente de discriminar entre ciên- cia e religião? Ou será que confunde as coisas ainda mais? Para chegar a uma conclusão, talvez seja uma boa ideia começar ilustrando essa distinção com alguns importan- tes exemplos históricos. Quando Galileu afirmou que objetos em queda livre são acelerados em dire- ção ao chão independentemente de suas massas, não estava preocupado em questionar o “porquê” de os obje- tos caírem, mas sim o “como”. Através de experimentos detalha- dos, mostrou que a distância percorri- da por um objeto em queda é propor- cional ao quadrado do tempo que ele gasta no percurso, obtendo assim a primeira relação matemática descre- vendo um movimento que acontece por causa da gravidade terrestre. Cerca de 80 anos mais tarde, Isaac Newton elaborou sua importante lei da gravitação universal. Ele mostrou que dois objetos com massa se atraem com uma força que se reduz com o quadrado da distância entre eles. Logo após a publicação do livro, al- gumas pessoas fizeram críticas a New- ton. Elas afirmavam que essa miste- riosa “ação à distância” entre o Sol e a Terra ou entre a Terra e a Lua (ou en- tre você e seu computador ou jornal) tinha algo de sobrenatural, alguma coisa meio fantasmagórica. Newton, então, respondeu: “Ainda não pude descobrir a causa dessas pro- priedades da gravidade a partir de fe- nômenos, e não arrisco qualquer hipó- tese, pois o que não é deduzido de fe- nômenos deve ser chamado de hipóte- se, e hipóteses não pertencem à filoso- fia experimental.” Ou seja, hipóteses que não podem ser testadas não são científicas. Por- tanto, se não temos nada testável a di- zer sobre o porquê da atração gravita- cional entre duas massas, é suficiente usar a teoria da gravidade para descre- ver a atração entre as massas sem ex- plicar por que ela ocorre. Newton usou sua teoria para prever o retorno do cometa Halley, explicar as marés, entender o formato achata- do da Terra, calcular a precessão dos equinócios, e muito mais. Essa abordagem de Newton acabou por definir a ciência do “como”. Real- mente, é difícil contemplar a ciência operando de uma forma diferente. Atribuir causas ocultas a fenômenos naturais, eventos que não podem ser verificados experimentalmente, não acrescenta nada à descrição científica desses fenômenos. Podemos incluir também a teoria da relatividade geral de Albert Einstein. Ele mostrou que a atração entre cor- pos com massa pode ser interpretada como consequência da curvatura do espaço em torno deles. Mas, mesmo aqui, não sabemos por que os objetos encurvam o espaço à sua volta. Porém, resolvendo as equa- ções da teoria, podemos descrever o quanto ele é encurvado e como objetos se comportam nessa geometria. Será que a ciência poderia explicar o porquê das coisas? Focando na física, me aventuro a dizer que não poderia. Arrisco até dizer que questões do tipo “por que” sequer conseguem chegar a ser científicas. Se o porquê significa propósito, a fí- sica tem pouco a colaborar. Podemos validar experimentalmente as leis da natureza, como “energia é conserva- da”, mas não sabemos por que ela é, afinal, conservada. Se você afirmar que caso contrário não estaríamos aqui, não estará dizen- do muita coisa. A ciência já é bem complexa se ocupando só com o “co- mo” das coisas. Para o porquê, temos todo o resto. MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dart- mouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro “Criação Imperfeita” O porquê e o como Será que a ciência pode explicar o propósito das coisas? A reforma da natureza France Presse/Instituto J. Craig Venter ................................................................................................ REINALDO JOSÉ LOPES DA REPORTAGEMLOCAL Q uem ainda se arre- pia só de pensar em soja transgêni- ca talvez devesse repensar suas preocupações. Em vez de um ou outro gene estranho inseri- do em vegetais que, de resto, são prosaicos, que tal organis- mos transformados da cabeça aos pés, otimizados para fazer todo tipo de serviço industrial ou médico? A ideia não tem na- da de impossível. Aliás, tais or- ganismos já estão por aí. Temores um tanto luddistas à parte, é nesse tipo de iniciati- va, conhecido pelo nome de biologia sintética, que algumas das grandes esperanças de avanço econômico e melhora das condições ambientais do planeta estão sendo deposita- das. E, embora ainda haja mui- to a ser feito, é indiscutível que a abordagem já esteja dando re- sultados viáveis economica- mente, afirma Gonçalo Ama- rante Guimarães Pereira, pes- quisador da Unicamp (Univer- sidade Estadual de Campinas) que trabalha no ramo. “Eu estive numa empresa nos Estados Unidos recente- mente, e o plástico de que é fei- ta a caneta que eu trouxe de lá foi produzido via biologia sinté- tica”, diz Pereira. “Então, a res- posta é sim, já é uma realidade”, enfatiza ele. Um artigo recente na revista científica “Nature Reviews Ge- netics” confirma a tendência. Para os autores, Ahmad Khalil e James Collins, da Universida- de de Boston (EUA), o campo “chegou à maioridade”. Para a dupla, uma das principais utili- dades dos organismos sintéti- cos —por enquanto, micróbios como bactérias e leveduras— é realizar operações lógicas, co- mo se fossem computadores biológicos. Pereira, no entanto, prefere outra forma de explicar a área: trata-se de fazer com que os organismos de interesse se comportem de maneira que jamais seria “programada” ne- les pela evolução. Só para elas “Um exemplo são as levedu- ras com que trabalho. Elas pro- duzem etanol, claro, que nós usamos como combustível, mas elas fazem isso para com- bater bactérias, não pelas ra- zões que nos interessam.” É nesse ponto que as diferen- ças entre biologia sintética e simples criação de transgêni- cos ficam mais claras. “Você usa as mesmas técnicas de bio- logia molecular, mas o propósi- to é diferente”, diz o pesquisa- dor da Unicamp. Em vez de inserir um ou dois genes na espécie que se quer modificar (o DNA que determi- na a bioluminescência de uma água-viva para fazer um ca- mundongo brilhar no escuro, por exemplo), a ideia é embutir na criatura-alvo os genes de uma ou mais vias metabólicas inteiras. Tais vias correspon- dem a um conjunto de genes (ou melhor, das proteínas codi- ficadas por eles) atuando em cascata, como um sistema, mo- dificando de forma significativa o metabolismo do organismo. Glicerol à vontade Pereira dá outro exemplo de seu próprio trabalho: as mes- mas leveduras que produzem etanol também fazem glicerol, mas em quantidades diminutas —apenas 2 gramas por litro. Uma mexida geral nas vias me- tabólicas do fungo microscópi- co, “desligando” alguns genes e aumentando a ativação de ou- tros, permite aumentar a pro- dução de glicerol para 46 gra- mas por litro, algo que prova- velmente nem a seleção natural mais feroz seria capaz de pro- duzir em milhões de anos. Um dos sonhos de quem tra- balha com biologia sintética é dar um passo além e permitir que os organismos de escolha produzam substâncias total- mente alheias a seu metabolis- mo natural —coisa que o plásti- co da caneta americana já mos- trou ser possível, entre outros exemplos. A longo prazo, seria possível criar uma “petroquí- mica biológica”, na qual deriva- dos de petróleo seriam total- mente substituídas por produ- tos de leveduras ou bactérias engenheiradas, diz Pereira. Outro grande objetivo é oti- mizar a produção de biocom- bustíveis —em seu artigo, Kha- lil e Collins apontam, por exemplo, que seria possível buscar uma escala industrial para formas mais energéticas de álcool que o etanol, como o butanol, modificando os orga- nismos fermentadores mais utilizados hoje. E, claro, já há progressos na área médica, co- mo protótipos de vírus modifi- cados para atacar de forma es- pecífica células cancerosas ou bactérias no organismo. Apesar do fascínio desses avanços, não seria exagero falar em “vida sintética”? Afinal, poucos pesquisadores falam em montar criaturas totalmen- te artificiais, compostas, por exemplo, de aminoácidos que hoje não são encontrados na natureza. “Não acho que isso seja necessário. Ninguém deixa de escrever um livro novo por falta de letras no alfabeto, mas sim por falta de ideias. É a mes- ma coisa: os elementos básicos que temos na mão são mais do que suficientes para fazermos coisas fantásticas”, diz Pereira. Para ele, a cadeia produtiva do etanol no Brasil deve dar ao país vantagens competitivas para avançar na área. Área da biologia sintética, que prevê alterar radicalmente organismos, começa a trazer dividendos industriais Colônias alteradas da bactéria Mycoplasma mycoides, que passaram por um ‘transplante de genoma’ nos Estados Unidos + Marcelo Leite P or uma dessas coincidências sintomáticas que a época pro- duz, duas frases que abrem a re- portagem de capa da presente edição do caderno Mais! —“No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é” e “Só é índio quem se garante”— estão no centro de um bate-boca entre seu autor, o antropólogo Eduardo Vivei- ros de Castro, e a revista “Veja”. A abertura foi escrita antes do qui- proquó, mas pouco importa. Se ela e todo o texto sobre educação indígena forem recebidos como tomada de po- sição, tanto melhor. De qualquer maneira, é instrutivo ler a reportagem da revista que deu origem a tudo, assim como as réplicas e tréplicas que se seguiram (veja links no blog Ciência em Dia). Permite vis- lumbrar a profundidade dos precon- ceitos anti-indígenas e da estridência jornalística que turvam essa vertente de discussão no país. Preconceitos, estridência, falácias, invenções e estatísticas, aliás, trans- formam todo o debate público numa bacia amazônica de turbidez. Não é privilégio da questão indígena. Tome a usina hidrelétrica de Belo Monte. Ou o tema explosivo da disponibilida- de de terras para o agronegócio, epi- centro da indigitada reportagem da revista “Veja”. “Áreas de preservação ecológica, re- servas indígenas e supostos antigos quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do Brasil”, afirmam seus au- tores, sem citar a fonte. “Se a conta in- cluir também os assentamentos de re- forma agrária, as cidades, os portos, as estradas e outras obras de infraestru- tura, o total alcança 90,6% do territó- rio nacional.” É provável que a origem omitida se- ja o estudo “Alcance Territorial da Le- gislação Ambiental e Indigenista”, en- comendado à Embrapa Monitora- mento por Satélite pela Presidência da República e encampado pela Con- federação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA, leia-se sena- dora Kátia Abreu, DEM-TO). Seu coordenador foi o então chefe da unidade da Embrapa, Evaristo Eduardo de Miranda. A estimativa terminou bombardeada por vários es- pecialistas, inclusive do Instituto Na- cional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Nesta semana veio à luz, graças às repórteres Afra Balazina e Andrea Vialli, mais um levantamento que contradiz a projeção alarmante. O no- vo estudo foi realizado por Gerd Spa- rovek, da Escola Superior de Agricul- tura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), em colaboração com a Universidade de Chalmers (Suécia). Para Miranda, se toda a legislação ambiental, fundiária e indigenista fos- se cumprida à risca, faltariam 334 mil km 2 —4% do território do Brasil— pa- ra satisfazer todas as suas exigências. O valor dá quase um Mato Grosso do Sul de deficit. Para Sparovek, mesmo que houves- se completa obediência ao Código Florestal ora sob bombardeio de rura- listas, sobraria ainda 1 milhão de km 2 , além de 600 mil km 2 de pastagens poucos produtivas usadas para pecuá- ria extensiva (um boi por hectare). Dá 4,5 Mato Grosso do Sul de superavit. A disparidade abissal entre as cifras deveria bastar para ensopar as barbas de quem acredita em neutralidade científica, ou a reivindica. Premissas, interpretações da lei e fontes de dados diversas decerto explicam o hiato. Mas quem as examina a fundo, en- trando no mérito e extraindo conclu- sões úteis para o esclarecimento do público e a tomada de decisão? Faltam pessoas e instituições, no Brasil, com autoridade para decantar espuma e detritos, clarificando as águas para que se possa enxergar o fundo. De blogueiros e bucaneiros já estamos cheios. MARCELO LEITE é autor de “Darwin” (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e “Ciência — Use com Cuidado” (Editora da Unicamp, 2008). Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br) E-mail: [email protected] Águas turvas Disparidade entre cifras sobre áreas de conservação no país requer reflexão +(c)iência

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7efmais! São Paulo, domingo, 9 de maio de 2010

+ Marcelo Gleiser

N a famigerada guerra entreciência e religião, uma distin-ção comum é afirmar que a

ciência explica “como” as coisas são enão o “porquê”. Mas vale a pena pen-sar: será que esse é realmente um mo-do eficiente de discriminar entre ciên-cia e religião? Ou será que confunde ascoisas ainda mais?

Para chegar a uma conclusão, talvezseja uma boa ideia começar ilustrandoessa distinção com alguns importan-tes exemplos históricos.

Quando Galileu afirmou que objetosem queda livre são acelerados em dire-ção ao chão independentemente desuas massas, não estava preocupadoem questionar o “porquê” de os obje-tos caírem, mas sim o “como”.

Através de experimentos detalha-dos, mostrou que a distância percorri-da por um objeto em queda é propor-cional ao quadrado do tempo que elegasta no percurso, obtendo assim aprimeira relação matemática descre-vendo um movimento que acontece

por causa da gravidade terrestre.Cerca de 80 anos mais tarde, Isaac

Newton elaborou sua importante leida gravitação universal. Ele mostrouque dois objetos com massa se atraemcom uma força que se reduz com oquadrado da distância entre eles.

Logo após a publicação do livro, al-gumas pessoas fizeram críticas a New-ton. Elas afirmavam que essa miste-riosa “ação à distância” entre o Sol e aTerra ou entre a Terra e a Lua (ou en-tre você e seu computador ou jornal)tinha algo de sobrenatural, algumacoisa meio fantasmagórica.

Newton, então, respondeu: “Aindanão pude descobrir a causa dessas pro-priedades da gravidade a partir de fe-nômenos, e não arrisco qualquer hipó-tese, pois o que não é deduzido de fe-

nômenos deve ser chamado de hipóte-se, e hipóteses não pertencem à filoso-fia experimental.”

Ou seja, hipóteses que não podemser testadas não são científicas. Por-tanto, se não temos nada testável a di-zer sobre o porquê da atração gravita-cional entre duas massas, é suficienteusar a teoria da gravidade para descre-ver a atração entre as massas sem ex-plicar por que ela ocorre.

Newton usou sua teoria para prever

o retorno do cometa Halley, explicaras marés, entender o formato achata-do da Terra, calcular a precessão dosequinócios, e muito mais.

Essa abordagem de Newton acaboupor definir a ciência do “como”. Real-mente, é difícil contemplar a ciênciaoperando de uma forma diferente.Atribuir causas ocultas a fenômenosnaturais, eventos que não podem serverificados experimentalmente, nãoacrescenta nada à descrição científicadesses fenômenos.

Podemos incluir também a teoria darelatividade geral de Albert Einstein.Ele mostrou que a atração entre cor-pos com massa pode ser interpretadacomo consequência da curvatura doespaço em torno deles.

Mas, mesmo aqui, não sabemos por

que os objetos encurvam o espaço àsua volta. Porém, resolvendo as equa-ções da teoria, podemos descrever oquanto ele é encurvado e como objetosse comportam nessa geometria.

Será que a ciência poderia explicar oporquê das coisas? Focando na física,me aventuro a dizer que não poderia.Arrisco até dizer que questões do tipo“por que” sequer conseguem chegar aser científicas.

Se o porquê significa propósito, a fí-sica tem pouco a colaborar. Podemosvalidar experimentalmente as leis danatureza, como “energia é conserva-da”, mas não sabemos por que ela é,afinal, conservada.

Se você afirmar que caso contrárionão estaríamos aqui, não estará dizen-do muita coisa. A ciência já é bemcomplexa se ocupando só com o “co-mo” das coisas. Para o porquê, temostodo o resto.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dart-mouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro “CriaçãoImperfeita”

O porquê e o comoSerá que a ciência

pode explicaro propósitodas coisas?

A reforma da naturezaFrance Presse/Instituto J. Craig Venter

................................................................................................REINALDO JOSÉ LOPESDA REPORTAGEM LOCAL

Q uem ainda se arre-pia só de pensarem soja transgêni-ca talvez devesser e p e n s a r s u a s

preocupações. Em vez de umou outro gene estranho inseri-do em vegetais que, de resto,são prosaicos, que tal organis-mos transformados da cabeçaaos pés, otimizados para fazertodo tipo de serviço industrialou médico? A ideia não tem na-da de impossível. Aliás, tais or-ganismos já estão por aí.

Temores um tanto luddistasà parte, é nesse tipo de iniciati-va, conhecido pelo nome debiologia sintética, que algumasdas grandes esperanças deavanço econômico e melhoradas condições ambientais doplaneta estão sendo deposita-das. E, embora ainda haja mui-to a ser feito, é indiscutível quea abordagem já esteja dando re-sultados viáveis economica-mente, afirma Gonçalo Ama-rante Guimarães Pereira, pes-quisador da Unicamp (Univer-sidade Estadual de Campinas)que trabalha no ramo.

“Eu estive numa empresanos Estados Unidos recente-mente, e o plástico de que é fei-ta a caneta que eu trouxe de láfoi produzido via biologia sinté-tica”, diz Pereira. “Então, a res-posta é sim, já é uma realidade”,enfatiza ele.

Um artigo recente na revistacientífica “Nature Reviews Ge-netics” confirma a tendência.Para os autores, Ahmad Khalile James Collins, da Universida-de de Boston (EUA), o campo“chegou à maioridade”. Para adupla, uma das principais utili-dades dos organismos sintéti-cos —por enquanto, micróbioscomo bactérias e leveduras— é

realizar operações lógicas, co-mo se fossem computadoresbiológicos. Pereira, no entanto,prefere outra forma de explicara área: trata-se de fazer comque os organismos de interessese comportem de maneira quejamais seria “programada” ne-les pela evolução.

Só para elas“Um exemplo são as levedu-

ras com que trabalho. Elas pro-duzem etanol, claro, que nósusamos como combustível,mas elas fazem isso para com-bater bactérias, não pelas ra-zões que nos interessam.”

É nesse ponto que as diferen-

ças entre biologia sintética esimples criação de transgêni-cos ficam mais claras. “Vocêusa as mesmas técnicas de bio-logia molecular, mas o propósi-to é diferente”, diz o pesquisa-dor da Unicamp.

Em vez de inserir um ou doisgenes na espécie que se quermodificar (o DNA que determi-na a bioluminescência de umaágua-viva para fazer um ca-mundongo brilhar no escuro,por exemplo), a ideia é embutirna criatura-alvo os genes deuma ou mais vias metabólicasinteiras. Tais vias correspon-dem a um conjunto de genes(ou melhor, das proteínas codi-

ficadas por eles) atuando emcascata, como um sistema, mo-dificando de forma significativao metabolismo do organismo.

Glicerol à vontadePereira dá outro exemplo de

seu próprio trabalho: as mes-mas leveduras que produzemetanol também fazem glicerol,mas em quantidades diminutas—apenas 2 gramas por litro.Uma mexida geral nas vias me-tabólicas do fungo microscópi-co, “desligando” alguns genes eaumentando a ativação de ou-tros, permite aumentar a pro-dução de glicerol para 46 gra-mas por litro, algo que prova-

velmente nem a seleção naturalmais feroz seria capaz de pro-duzir em milhões de anos.

Um dos sonhos de quem tra-balha com biologia sintética édar um passo além e permitirque os organismos de escolhaproduzam substâncias total-mente alheias a seu metabolis-mo natural —coisa que o plásti-co da caneta americana já mos-trou ser possível, entre outrosexemplos. A longo prazo, seriapossível criar uma “petroquí-mica biológica”, na qual deriva-dos de petróleo seriam total-mente substituídas por produ-tos de leveduras ou bactériasengenheiradas, diz Pereira.

Outro grande objetivo é oti-mizar a produção de biocom-bustíveis —em seu artigo, Kha-lil e Collins apontam, porexemplo, que seria possívelbuscar uma escala industrialpara formas mais energéticasde álcool que o etanol, como obutanol, modificando os orga-nismos fermentadores maisutilizados hoje. E, claro, já háprogressos na área médica, co-mo protótipos de vírus modifi-cados para atacar de forma es-pecífica células cancerosas oubactérias no organismo.

Apesar do fascínio dessesavanços, não seria exagero falarem “vida sintética”? Afinal,poucos pesquisadores falamem montar criaturas totalmen-te artificiais, compostas, porexemplo, de aminoácidos quehoje não são encontrados nanatureza. “Não acho que issoseja necessário. Ninguém deixade escrever um livro novo porfalta de letras no alfabeto, massim por falta de ideias. É a mes-ma coisa: os elementos básicosque temos na mão são mais doque suficientes para fazermoscoisas fantásticas”, diz Pereira.Para ele, a cadeia produtiva doetanol no Brasil deve dar aopaís vantagens competitivaspara avançar na área.

Área da biologiasintética, queprevê alterar

radicalmenteorganismos,

começa a trazerdividendosindustriais

Colônias alteradas da bactéria Mycoplasma mycoides, que passaram por um ‘transplante de genoma’ nos Estados Unidos

+ Marcelo Leite

P or uma dessas coincidênciassintomáticas que a época pro-duz, duas frases que abrem a re-

portagem de capa da presente ediçãodo caderno Mais! —“No Brasil todomundo é índio, exceto quem não é” e“Só é índio quem se garante”— estãono centro de um bate-boca entre seuautor, o antropólogo Eduardo Vivei-ros de Castro, e a revista “Veja”.

A abertura foi escrita antes do qui-proquó, mas pouco importa. Se ela etodo o texto sobre educação indígenaforem recebidos como tomada de po-sição, tanto melhor.

De qualquer maneira, é instrutivoler a reportagem da revista que deuorigem a tudo, assim como as réplicase tréplicas que se seguiram (veja linksno blog Ciência em Dia). Permite vis-lumbrar a profundidade dos precon-ceitos anti-indígenas e da estridênciajornalística que turvam essa vertentede discussão no país.

Preconceitos, estridência, falácias,invenções e estatísticas, aliás, trans-

formam todo o debate público numabacia amazônica de turbidez. Não éprivilégio da questão indígena. Tomea usina hidrelétrica de Belo Monte.Ou o tema explosivo da disponibilida-de de terras para o agronegócio, epi-centro da indigitada reportagem darevista “Veja”.

“Áreas de preservação ecológica, re-servas indígenas e supostos antigosquilombos abarcam, hoje, 77,6% daextensão do Brasil”, afirmam seus au-tores, sem citar a fonte. “Se a conta in-cluir também os assentamentos de re-forma agrária, as cidades, os portos, asestradas e outras obras de infraestru-tura, o total alcança 90,6% do territó-rio nacional.”

É provável que a origem omitida se-ja o estudo “Alcance Territorial da Le-

gislação Ambiental e Indigenista”, en-comendado à Embrapa Monitora-mento por Satélite pela Presidênciada República e encampado pela Con-federação Nacional da Agricultura ePecuária do Brasil (CNA, leia-se sena-dora Kátia Abreu, DEM-TO).

Seu coordenador foi o então chefeda unidade da Embrapa, EvaristoEduardo de Miranda. A estimativaterminou bombardeada por vários es-pecialistas, inclusive do Instituto Na-

cional de Pesquisas Espaciais (Inpe).Nesta semana veio à luz, graças às

repórteres Afra Balazina e AndreaVialli, mais um levantamento quecontradiz a projeção alarmante. O no-vo estudo foi realizado por Gerd Spa-rovek, da Escola Superior de Agricul-tura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), emcolaboração com a Universidade deChalmers (Suécia).

Para Miranda, se toda a legislaçãoambiental, fundiária e indigenista fos-se cumprida à risca, faltariam 334 milkm2 —4% do território do Brasil— pa-ra satisfazer todas as suas exigências.O valor dá quase um Mato Grosso doSul de deficit.

Para Sparovek, mesmo que houves-se completa obediência ao CódigoFlorestal ora sob bombardeio de rura-

listas, sobraria ainda 1 milhão de km2,além de 600 mil km2 de pastagenspoucos produtivas usadas para pecuá-ria extensiva (um boi por hectare). Dá4,5 Mato Grosso do Sul de superavit.

A disparidade abissal entre as cifrasdeveria bastar para ensopar as barbasde quem acredita em neutralidadecientífica, ou a reivindica. Premissas,interpretações da lei e fontes de dadosdiversas decerto explicam o hiato.Mas quem as examina a fundo, en-trando no mérito e extraindo conclu-sões úteis para o esclarecimento dopúblico e a tomada de decisão?

Faltam pessoas e instituições, noBrasil, com autoridade para decantarespuma e detritos, clarificando aságuas para que se possa enxergar ofundo. De blogueiros e bucaneiros jáestamos cheios.

MARCELO LEITE é autor de “Darwin” (série Folha Explica,Publifolha, 2009) e “Ciência — Use com Cuidado” (Editorada Unicamp, 2008).Blog: Ciênciaem Dia(cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br)E-mail: [email protected]

Águas turvasDisparidade entre

cifras sobre áreas deconservação no país

requer reflexão

+(c)iência