federalismo no brasil: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · federalismo no...

35
Introdução O que se deseja iluminar nesse ensaio é a importância do conceito de clivagens territoriais para o entendimento da política brasileira. No Brasil dos anos de 1990, elas constituem clara- mente uma fonte crucial de divisão política nacio- nal. Os interesses regionais, os atores políticos e as políticas públicas fundados regionalmente são contendores críticos na luta por alterações no sis- tema político. O federalismo e o regionalismo têm sido subestimados como conceitos analíticos. Entre outras razões, por causa da tendência dos cientis- tas sociais em focalizar a análise da política via o conceito de divisões de classe e cortes funcionais. Sem querer negar a importância dessa abordagem para a compreensão dos processos políticos, ou de pretender substituí-la por outra baseada em clivagens regionais, ela tem, não obstante, fre- qüentemente obscurecido o fato de que popula- ções estão situadas geograficamente e que a rea- lidade de interesses territoriais comuns é importante. As variações regionais de um país criam contextos a partir dos quais comportamentos sociais e políticos se efetuam. Regiões e estados formam sistemas de poder, sejam eles reconheci- dos ou não como tais dentro de um sistema de governo. Diferenças regionais de poder manifes- tam-se pelo modo como as regiões afetam o recrutamento das elites, a mobilização dos cida- FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930-1964) Maria do Carmo Campello de Souza RBCS Vol. 21 nº. 61 junho/2006 Artigo recebido em abril/2006 Aprovado em maio/2006

Upload: others

Post on 12-Jun-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

Introdução

O que se deseja iluminar nesse ensaio é a

importância do conceito de clivagens territoriais

para o entendimento da política brasileira. No

Brasil dos anos de 1990, elas constituem clara-

mente uma fonte crucial de divisão política nacio-

nal. Os interesses regionais, os atores políticos e

as políticas públicas fundados regionalmente são

contendores críticos na luta por alterações no sis-

tema político.

O federalismo e o regionalismo têm sidosubestimados como conceitos analíticos. Entreoutras razões, por causa da tendência dos cientis-tas sociais em focalizar a análise da política via oconceito de divisões de classe e cortes funcionais.Sem querer negar a importância dessa abordagempara a compreensão dos processos políticos, oude pretender substituí-la por outra baseada emclivagens regionais, ela tem, não obstante, fre-qüentemente obscurecido o fato de que popula-ções estão situadas geograficamente e que a rea-lidade de interesses territoriais comuns éimportante.

As variações regionais de um país criamcontextos a partir dos quais comportamentossociais e políticos se efetuam. Regiões e estadosformam sistemas de poder, sejam eles reconheci-dos ou não como tais dentro de um sistema degoverno. Diferenças regionais de poder manifes-tam-se pelo modo como as regiões afetam orecrutamento das elites, a mobilização dos cida-

FEDERALISMO NO BRASIL:aspectos político-institucionais(1930-1964)

Maria do Carmo Campello de Souza

RBCS Vol. 21 nº. 61 junho/2006

Artigo recebido em abril/2006Aprovado em maio/2006

Page 2: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

8 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

dãos e os alinhamentos políticos que permanecemno tempo. As diversidades de poder regional tam-bém se manifestam nas políticas públicas federais,mesmo naquelas ostensivamente designadas aestimular a integração nacional. As regiões detêmtambém o caráter de enclaves culturais, nas quaistradições e valores persistem ao longo do tempopor meio da socialização de seus habitantes.Embora se possa esperar que a mobilidade geográ-fica e os efeitos nacionalizadores da industrializaçãoe dos mass media homogeneízem as específicasculturas regionais, estas de fato têm demonstradoem todo o mundo uma tenacidade vigorosa, desa-fiando as tentativas que de modo fácil procuramnegar sua importância.

A natureza regionalmente dividida no Brasilfoi instituída desde o início da construção doEstado moderno pelo estabelecimento de um sis-tema federativo de governo. O federalismo ini-cialmente adotado como acomodação do Estadoaos interesses seccionais existentes, representadospelas províncias, continuou a se expressar e areforçar as divisões regionais ao longo da evolu-ção política do país.

Como sistema de governo, o federalismopode ser caracterizado pela polaridade entre cen-tralização e descentralização, dependendo dos po-deres e dos recursos alocados ao governo centralcomparados aos alocados às partes federadas cons-titutivas do país. Uma forma de descentralização éa “provincialização”, mediante a qual as autorida-des provinciais e suas instituições têm autonomia evoz direta tanto na representação das próprias pro-víncias como no âmbito federal de governo. Umaforma centralizada de federalismo pode sobrepujaras instituições provinciais por meio da criação deorganizações centralmente coordenadas, porémmarcadas pelo foco regional.

O Brasil passou por ciclos de diferentes“federalismos” ao longo do século XX, nos quaisdescentralização e autonomia não andavam juntosnecessariamente. Este estudo procura analisá-losdurante o período entre 1930 e 1964. A análisesobre o padrão de relacionamento entre a União eos estados nesse período tem como foco o enten-dimento de seu impacto sobre os processos deconstrução do Estado e da nação, assim comosobre as estruturas de participação e representaçãopolíticas. Mais especificamente, procuramos com-

preender questões relacionadas à autonomia dopoder estatal e à organização do sistema partidáriobrasileiro.

A primeira questão diz respeito à “força”, “fra-queza”, “eficácia” ou “ineficácia” do Estado brasi-leiro, atributos que de modo genérico lhe têm sidoimputados. A segunda questão é relativa à políticaregional, a qual, em momentos críticos da políticabrasileira, tem suplantado os partidos como focode aglutinação de forças políticas.

A análise do período entre 1930 e 1964 podeser dividida em duas fases. A primeira de 1930 a1945, quando ocorreu a definição centralizadoraem contraposição ao federalismo da Primeira Re-pública. É nesse período que se constitui o “para-digma Vargas” definido por políticas de reforço doEstado e restrições ao excessivo federalismo entãovigente. A tendência centralizadora culminou, co-mo é conhecido, com o estabelecimento de umregime fortemente autoritário, o Estado Novo, de1937 a 1945. A natureza dos laços entre o governocentral e os poderes estaduais durante os anos pós-Revolução de 30 deixou uma forte marca sobre aconformação do sistema político democrático quese iniciou em 1945.

A segunda fase tem início formal com aConstituição de 1946, que restabeleceu a dimen-são jurídico-institucional do federalismo. Esteentão coexistirá com um Estado largamente forta-lecido nos anos anteriores. Além disso, também deimportância fundamental, nesse momento ocorreua criação de partidos nacionais e a ampliação daparticipação eleitoral que se tornou extensa pelaprimeira vez na história do país. Esses dois fatosredefiniram as relações entre poderes regionais epoder central nas arenas decisórias e impuseramformatos específicos à estrutura de participação erepresentação política.

Os poderes regionais desempenharam papéis-chave na criação e no perfil organizacional dos par-tidos além de deterem posições centrais na admi-nistração do clientelismo estatal e no controle dovoto rural. No contexto pós-1945, embora não exis-tisse mais a “política dos governadores da PrimeiraRepública”, os governadores dos principais estadosserão figuras de primeira grandeza na política ecandidatos “naturais” à presidência da República.

Essa fase compreende ainda os últimos anosda democracia populista – do final da década de

Page 3: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9

1950 até a crise institucional do início dos anos de1960 –, marcados por uma crescente paralisiadecisória, a qual, acoplada a desequilíbrios e rea-linhamento partidários, acabou por conduzir aogolpe militar de 1964. Nessa conjuntura foi deci-siva a ação dos governadores, sobrepujando ospartidos na coordenação dos rumos tomados peloprocesso político.

Duas grandes questões servem de pontos dereferência à análise do federalismo nesse período.Como o Estado brasileiro teve em momentos ante-riores, como tem atualmente, tantas dificuldadespara se tornar a organização política que pudesseefetivamente gerar a mudança social e econômicade acordo com seus objetivos? Por que o Estadobrasileiro é, a um só tempo, forte, no sentido deque não pode ser ignorado, e falho, no sentido de quenão consegue deter a autoridade sobre a imple-mentação de suas políticas e sobre as regras queditam o comportamento diário dos cidadãos? Afinal,a despeito das inúmeras vantagens que a organiza-ção estatal tem tido no Brasil, outras organizaçõessociais e políticas continuam a se opor com sucessoao poder central, alcançando algumas vezes inespe-radas acomodações com as autoridades estatais emesmo capturando partes do Estado. No desenvol-vimento político brasileiro, os blocos regionais depoder firmaram-se como forças organizacionaisdecisivas de confronto à ação do Estado nacional.A segunda questão diz respeito aos obstáculosrecorrentes na política brasileira para a implemen-tação de partidos nacionais e para a superação deum sistema partidário formado majoritariamentepor partidos fundamentalmente clientelísticos.

O entendimento dessas questões pode avan-çar à luz de estudos realizados por Michael Mann(1986) e Migdal (1988) sobre poder e capacidadesdo Estado. Para Mann, há dois tipos de poder deEstado que são a base de sua autonomia: o des-pótico e o infra-estrutural. O primeiro diz respeitoao leque de ações que a elite estatal está possibi-litada de fazer sem negociação, institucionalizadaou rotineira, com os grupos da sociedade civil. Osegundo é relativo à capacidade de o Estadopenetrar a sociedade civil e implementar logistica-mente decisões políticas pelo território nacional.

O poder despótico significa a proeminênciada elite do Estado sobre a sociedade civil. Opoder infra-estrutural denota a força do Estado

em penetrar e, centralizadamente, coordenar asatividades da sociedade civil por intermédio desua própria infra-estrutura.

Para Migdal, o segundo poder é justamente ocontrole social. Sobre ele, baseiam-se as capaci-dades do Estado e a habilidade dos líderes emusar as agências estatais de modo a conseguir seusobjetivos.1 O processo de mobilização política rea-lizado pelo Estado depende também de seu poderde controle social. Tal mobilização demanda maisdo que exortações, carisma ou ideologia abstrata,exige que o Estado não apenas crie circunstânciasem que os símbolos e os códigos de comporta-mento sejam sentidos pelo povo como essenciaisao seu bem-estar – estratégias de sobrevivência –,mas também que tenha canais institucionais paraque a sociedade possa expressar seu apoio.

Desde o início do atual sistema mundial deEstados, entre os séculos XIV e XVII, a evoluçãopolítica tem se movido na direção de aceitação doaxioma de que o Estado deve prover o predomi-nante senão exclusivo conjunto de regras do jogode cada sociedade. Trata-se da preeminência daorganização estatal sobre o controle social, queenvolve a subordinação das inclinações das pes-soas ou de outras organizações sociais no que serefere ao comportamento social em favor do com-portamento prescrito pelas regras estatais. Estaluta sobre o controle social é central no processode construção do Estado moderno. Ela deve serposta em destaque antes mesmo de começarmosa nos perguntar por que certos Estados e nãooutros tiveram sucesso no seu esforço em buscado predomínio sobre outras organizações políti-cas (Migdal, 1988).

No plano mais elementar, a força do Estadoestá em conseguir alcançar a obediência da popu-lação e suas demandas. A princípio é conseguidapelo uso da mais básica das sanções, ou seja, aforça. O Estado, porém, quer mais do que con-formidade, quer ganhar força por meio da açãoda população para tarefas especializadas noscomponentes institucionais das organizações esta-tais. Participação significa o uso voluntário repeti-do e a ação em instituições autorizadas peloEstado ou dirigidas por ele. O terceiro nível decontrole social refere-se à legitimação política, ouseja, a aceitação, e mesmo a aprovação das regrasdo jogo estabelecidas pelo Estado. Dito de outro

Page 4: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

10 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

modo, o controle social dirigido pelo Estado é sen-tido como verdadeiro e certo. As capacidades doEstado assim repousam no controle social, que é amoeda sobre a qual as organizações da sociedade–incluídos os grupos regionais de poder – seopõem e enfrentam o poder central.

Freqüentemente a abordagem centrada noEstado assume como certas sua autonomia eforça, sem atentar para tal distribuição do con-trole social. Focalizar diretamente o impacto doEstado sobre a sociedade pode levar a uma visãoparcial sobre as relações entre a população e oEstado, passando por cima de importantes aspec-tos das razões de alguns estados serem mais capa-zes do que outros. A importância desse conflitona construção do Estado nacional tem sido rele-vada por vários autores. Eles percebem a incapa-cidade do Estado na implementação de políticaspúblicas e na mobilização política como umacaracterística tão dependente do tipo de estruturada sociedade e das relações entre centro e perife-ria quanto da qualidade dos planos estatais ou davontade das lideranças políticas (Migdal, 1988).

Ao desagregarmos o poder do Estado e aochamarmos a atenção para o antagonismo entreos vários centros de poder na sociedade pelocontrole social, podemos apreender os aspectos,fortes ou frágeis, do Estado brasileiro. Não menosimportante é o impacto de uma sociedade comalta fragmentação do controle social sobre a estru-turação de um sistema partidário,2 tanto no quediz respeito ao processo de construção de parti-dos nacionais fundados sobre clivagens de classessociais, como ao estabelecimento de “coerência”programática ou ideológica de cada partido.

Um segundo conjunto de estudos forneceabordagens frutíferas à análise das questões aquipropostas. Ele se enquadra na literatura rubricadade “novo institucionalismo”. Tais estudos enfati-zam a path dependence ao destacarem a impor-tância que escolhas institucionais realizadas emconjunturas históricas críticas tem sobre a evolu-ção da política institucional de um determinadopaís.3 Essa dependência pode produzir diferençasduráveis na performance de duas sociedades cominstituições formais, recursos, preços relativos eaté preferências individuais similares. Indo maisalém, essa literatura chama a atenção para o fatode que padrões institucionais são “auto-reforça-

dores”, mesmo quando são socialmente ineficien-tes. O processo pelo qual chegamos às institui-ções atuais, enfim, é relevante e limita escolhasfuturas, tanto aquelas relativas a performancesestatais menos e mais eficazes, como as relativasao perfil do sistema partidário, ambas intimamen-te ligadas.

Ao longo da história brasileira, conjunturascríticas fizeram emergir padrões particulares dedesenvolvimento econômico, de poder político ede expressões culturais que pavimentam um tipo decaminho institucional durável e resistente a rupturas.O final do século XIX no Brasil e os anos de 1930constituem duas conjunturas críticas para o rumo daevolução institucional brasileira.

Construção do Estado brasileiro:centralização e regionalismo

As análises realizadas por Alberto Torres(1933), Nestor Duarte (1939), Oliveira Viana (1952[1920]) e Raymundo Faoro (1958), para citar algunsautores, constituem ainda hoje textos obrigatóriosa todos aqueles que se interessam pelo processode construção do Estado moderno no Brasil.

Algumas delas se tornaram célebres por cha-marem a atenção já nas primeiras décadas doséculo XX sobre a ausência do Estado no Brasil,sobrepujado que era pelo poder dos clãs locais edas oligarquias regionais, ou então por retratarema predominância da ordem privada sobre a ordempública na sociedade brasileira.

Após os anos de 1930, Raymundo Faoroinsistiu contrariamente no peso e na força do esta-mento burocrático estatal sobre a sociedade brasi-leira – esta sim vista como uma planta raquítica,desoxigenada e, portanto, um obstáculo à instala-ção de qualquer projeto de sistema mais demo-crático no país. Esse ponto de vista trouxe a aná-lise do Estado no Brasil para o centro do debate,adquirindo uma grande preeminência nos últimosanos com resultados positivos para o entendimen-to da política e da sociedade nacionais.Freqüentemente a análise política centrada noprocesso de formação do Estado era relegada poranálises mais voltadas para o exame da sociedade,ou por outras, ainda, que viam o Estado como oepifenômeno da sociedade e da economia. Assim

Page 5: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 11

era desmerecido o estudo da montagem e da evo-lução do Estado nacional e os efeitos que tais pro-cessos poderiam exercer sobre a participação, arepresentação política e a própria capacidade esta-tal. Os aspectos benéficos dessa guinada de per-cepção, no entanto, foram levados ao extremo, aponto de esquecer completamente o outro lado daequação, ou seja, a sociedade e – o que nos inte-ressa mais especificamente – as relações entre cen-tro e periferia na montagem do Estado nacional.

Se aquelas afirmações opostas capturamcaracterísticas do Estado brasileiro, como podería-mos dar sentido a elas? É válido pensar que osautores estão aplicando tais adjetivos para diferentesdimensões do poder estatal e para diferentes capa-cidades do Estado. Assim, poder-se-ia dizer que oEstado Imperial brasileiro era forte em poder des-pótico e frágil em poder infra-estrutural. Tanto noImpério como na República Velha, o Estado tinhadificuldades em firmar seu poder infra-estrutural,vale dizer em penetrar a sociedade ou em coorde-ná-la sem a assistência de outros grupos de poder.

Sob essa perspectiva o federalismo brasilei-ro pode ser visto como um modo eficiente pormeio do qual o Estado central pode ampliar seupoder infra-estrutural de maneira a controlar aamplidão do território nacional. Reconhecendoque não podiam governar esse vasto território, oumesmo mantê-lo coeso, as elites do poder centralofereceram a políticos regionais uma oportunida-de de formar pequenos governos, estabelecendouma união federal. Os políticos que aceitavam abarganha entrariam na União com o conhecimen-to e a expectativa de que o governo central nãosó os protegeria de facções hostis, como tambémlhes concederia uma grande parcela de autono-mia interna em relação à política provincial.

O molde federalista acabou tanto por enrai-zar fontes de resistência à hegemonia do podercentral relativa às decisões sobre a sociedade,como por criar incentivos que fizeram com que asautoridades do Estado fossem incapazes ou mes-mo não quisessem sobrepujar tais resistências.

Do regime monárquico ao republicano

O fim do século XIX e o início do XX sãomomentos-chave para a configuração que assu-

miu o Estado brasileiro moderno em sua relaçãocom a sociedade. Trata-se de um período crucial,devido à necessidade de se estabelecer novasregras de controle social, destinadas a integraruma grande parcela da população ao processoeconômico em profunda transformação.

Ocorreu nesse momento a grande expansãoda economia mundial e sua penetração em todosos níveis das sociedades periféricas. Durante o últi-mo quartel do século XIX, a produção capitalistadeu um grande salto, aumentando a escalada dademanda por matéria-prima e alimentos e criandoum vasto mercado de escopo mundial. Novosempresários e comerciantes revigorados transfor-maram permanentemente as tênues, intermitentesou seletivas conexões que os produtores nacio-nais tinham com a economia européia.

Essa expansão mundial constituiu-se numagrande força no sentido de criar repentinas e dis-ruptivas mudanças políticas e sociais que transfor-maram substancialmente o caráter do controle socialnas sociedades periféricas. Foram processos tão polí-ticos quanto econômicos, pois envolveram políticasgovernamentais deliberadas, externas e domésticas,que, por sua vez, erodiram as estratégias existentesde sobrevivência e de controle social.

Enquanto importantes áreas da produção, daalocação e de recursos da riqueza e das oportuni-dades permaneceram no setor privado, fora dasmãos dos setores oficiais, o Estado brasileiro pormeio de políticas públicas desempenhou um papelativo e crítico de modo a assegurar que os setoresde produção de matéria-prima e de alimentos pro-duzissem para as necessidades do mercado inter-nacional. É amplamente conhecida a pletora demedidas que afetaram as regras de propriedadedas terras e a implementação de novas formas detaxação em toda a América Latina nesse período.Da mesma forma, muitas das sanções, dos prê-mios e dos símbolos que estavam na base do con-trole social surgiram da questão de acesso e usoda terra. Nas sociedades – como o Brasil que,nesse período, possuía mais de 90% da populaçãona agricultura–, tais alterações não poderiam dei-xar de desequilibrar as estratégias de sobrevivên-cia da maioria da população rural e nacional.

A irrelevância de antigas bases de controlesocial empurrou a população, por assim dizer,para uma busca desesperada por novas estraté-

Page 6: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

12 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

gias de sobrevivência. Como todas as mudançasnas situações de vida – ocupação, lugar de resi-dência, produção, relações com a terra, laços comoutras classes –, as necessidades também muda-ram drasticamente. As estratégias existentes desobrevivência tornaram-se anacrônicas.

Por certo, a deterioração das velhas formasde controle social não significou o fim de uma erapré-capitalista romântica ou harmoniosa. As velhasconfigurações de controle social eram explorado-ras e debilitadoras. Sua deterioração não impediutampouco sua reabilitação já integrada a novasestratégias de sobrevivência. Um mercado maisazeitado não pulverizou simplesmente o “velho”da estrutura social tradicional brasileira, nem per-mitiu oportunidades iguais ou quase iguais para aaquisição de recursos de poder para uma massa deatores econômicos indiferenciados. Pelo contrário,fatores como classe social, raça, sexo, religião, dis-tribuições de capital, além da sorte, influenciarama operação do mercado e determinaram quem fariaas regras, quem criaria o efetivo controle social eorganizaria as novas estratégias de sobrevivência.

O Estado engajou-se na busca de expandirsua predominância. Para ser efetivo, ele dependiaprimeiro da regulação de recursos e serviços,depois do uso de símbolos que dessem sentido àsrelações sociais. Contudo, as novas legislações,em vez de lhe assegurarem um controle maisseguro do território, incentivaram o crescimentodo poder de um pequeno número de senhores deterra, de poderes locais quase sempre hostis àcentralização do controle social pelo Estado. Aselites centralizadoras tomaram consciência de queseus mandatos dependiam da estabilidade social,e portanto dos “corretores” (brokers) locais eregionais que tinham direto acesso à maioria dapopulação e podiam mobilizar o povo para pro-pósitos específicos.

A construção de organizações e centros depoder locais e regionais como intermediários entrea União e a população é crucial nesse período. Porseus laços com o mercado externo, tais “homensfortes”, oligarcas – o nome não importa –, procu-raram de certo modo congelar a estrutura socialque os mantinha no ápice do poder político. Osnovos recursos políticos e materiais disponíveisforam usados para solidificar suas posições comoelos institucionais de ligação entre a população e

o Estado. Ao mesmo tempo, esses centros locais eregionais estabeleciam restrições às ambições depoder autônomo do Estado central.

No início da emergência do Estado modernobrasileiro, este teve que enfrentar largos exércitosregionais ou milícias locais, fenômeno que seestendeu para os anos de 1930, e mais modera-damente até a década de 1960. Apoiados neles, asorganizações regionais e locais protegiam seusenclaves de controle social e resistiam a interven-ção do poder central.

Durante a Primeira República, as oligarquiaslatifundiárias estaduais controlavam a populaçãorural e mantinham laços independentes com ocomércio exterior, tornando muito difícil a cons-trução do Estado como a organização predomi-nante de controle social. Acrescente-se ainda ofato de que o novo regime passou a fundar sualegitimidade no voto de toda a população alfabe-tizada, dando fim ao voto censitário que funcio-nava previamente. O coronelismo da RepúblicaVelha pode ser entendido como uma etapa doalargamento do poder infra-estrutural do Estado.Ele é precisamente um processo de acomodaçãoentre o poder central e os poderes dessas organi-zações regionais e locais sobre o controle social eo voto, como quer Victor Nunes Leal. Estabeleceu-se, assim, “uma nova configuração do sistemapolítico, cujo ponto de equilíbrio se estabeleceriaentre um poder privado em decadência e o poderpúblico fortalecido” (Leal, 1949). Trata-se de umaadaptação em virtude da qual os resíduos do anti-go e exorbitante poder privado passa a coexistircom um regime de base representativa mais exten-sa, dentro do processo de ampliação do poderinfra-estrutural do Estado brasileiro.

Os padrões de controle social no interior enas cidades, reestruturados com os resíduos dosrecursos monetários, das propriedades e dos direi-tos de propriedades existentes no século XIX, nãose dissolveram com a proclamação resoluta doslíderes que procuravam estabelecer uma novaordem do Estado nacional. Nem em 1889, nem nosanos de 1930.

O país distanciou-se muito do quadro dese-nhado por Duarte, Torres ou Viana. O poder cen-tral armou-se para a batalha nos anos posteriores.As burocracias cresceram rapidamente, os impos-tos, mesmo que vagarosamente, se expandiram,

Page 7: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 13

tanto em termos absolutos como em percentagemdo PIB. As forças militares e policiais estenderam-se por todo o território sob o comando do podercentral, assim como os recursos para a coordena-ção do controle social foram ampliados num grauou em outro.

Tampouco a sociedade brasileira segue oscontornos do perfil traçado por Faoro. A expansãodo eleitorado, da sindicalização e das organiza-ções políticas evidencia a existência de uma socie-dade civil mais resistente. É claro, também, quevários requisitos de um sistema político represen-tativo de abrangência nacional foram atendidos.No entanto, o controle social em termos de obe-diência, participação e legitimidade ainda não é,pode-se dizer, predominantemente exercido pelopoder central.

A construção do Estado moderno avançouconsideravelmente. Entretanto, as marcas deixadaspor aquelas conjunturas críticas da evolução brasi-leira foram duradouras. É possível falar ainda con-temporaneamente em persistência das elites regio-nais no comando do controle central com efeitostanto sobre a conformação das capacidades doEstado como sobre a representação política (Ha-gopian, 1986). O comando do controle social porforças estaduais ou regionais não deve ser tradu-zido como manifestações do atraso socioeconômi-co do país ou como sobrevivências culturais doBrasil rural, embora tais manifestações sejam, semdúvida, alguns de seus componentes. Deve serentendido como um sistema que inclui todas aspartes e regiões do território, mais e menos mo-dernizadas, mais e menos industrializadas. Sob aótica das relações entre centro e periferia, esse sis-tema funda-se na ocupação de espaços políticospor organizações de poder regionais no processodecisório e partidário-eleitoral. Essa ocupação evi-dentemente se transforma ao longo da evoluçãopolítica, mas a cada passo dessa evolução ospadrões internos de funcionamento das organiza-ções políticas regionais e de seu relacionamentocom a União se rearticulam às inovações institu-cionais, isto é, são incorporadas a elas e fornecemalguns dos parâmetros para as transformaçõesposteriores.

O federalismo e o Estado nacional após 1930

O ano de 1930 é considerado um turningpoint em termos de reequilíbrio entre o poderestatal central e as unidades federativas. Nessadécada, de fato, deu-se uma expansão do podercentral em detrimento da autonomia das oligar-quias regionais e das limitações que elas impri-miam às decisões do Estado central. Contudo, opoder político das unidades federativas permane-ce, mesmo que fragilizado, em relação aos doisaspectos que nos interessa: na capacidade dopoder central em implementar políticas públicas ena estrutura de representação política.

O estudo da centralização durante os anos de1930, dos mecanismos concretos acionados nessadireção, tem para nós o sentido de visualizar a pro-gressiva ocupação do espaço organizacional edecisório por agências burocráticas. Seu carátercentralizante, porém, não é suficiente para a com-preensão do arcabouço político-institucional maisgeral, ou de seu funcionamento. A montagem cen-tralizadora ocorreu de maneira gradual mediante amontagem de mecanismos jurídico-institucionais epolíticos destinados a viabilizar o controle do podercentral sobre as esferas estratégicas da economia.Esses mecanismos tomaram forma como umaengrenagem de controle político à distância sobreas estruturas políticas regionais preexistentes,subordinando-as ao mesmo tempo em que as dei-xavam a solta na esfera do controle social.

O desmantelamento da velha ordem nadécada de 1930, como sabemos, não ultrapassouos limites de uma modernização conservadora.Sem qualquer reformulação radical da estruturasocioeconômica existente, grupos e interessesnovos, devidamente cooptados e burocratizados,encaixavam-se no sistema político. A implantaçãode um Estado centralizado nesse período signifi-cou, de fato, uma redefinição dos canais de aces-so e influência dos interesses do Estado com opoder central. Redes burocráticas, o DASP e asinterventorias estaduais tornaram-se os meios detransmissão entre a política federal e dos estados.Por meio de tal engrenagem, confirmou-se a manu-tenção de organizações sociopolíticas estaduais so-bre o controle social, organizações essas que eramsustentadas pelos recursos financeiros do poder cen-tral então ampliados.

Page 8: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

14 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

O processo de centralização do Estado nessadécada, por intermédio da constituição de apara-tos técnico-burocráticos de controle sobre a eco-nomia, do fortalecimento do poder militar central,da diminuição do excessivo federalismo vigenteaté então, não significou o ansiado corte abruptodo regime federativo anterior. A despeito de asinstituições formais serem altamente centraliza-das, a realidade do governo autoritário incorpora-va o atendimento e a abertura às pressões das eli-tes estaduais. A década de 1930, assim, não levoude roldão os “mecanismos federativos e carcomi-dos” da República Velha, como é freqüentementerelatado por vários analistas. Na prática, o rigor davasta centralização administrativa foi de algummodo moderado pelas acomodações políticas re-gionais e estaduais características do prévio fede-ralismo brasileiro. O apoio à coalizão governa-mental dos anos pós-1930 foi comprado porajustamentos na política nacional de modo a com-patibilizá-la com as condições locais e regionais.Eleições, partidos e liberdades políticas acabarampor ser abolidos com a proclamação do EstadoNovo, mas a centralização permitiu que grandeparte da classe política dominante nos estados,rearticulada às inovações institucionais, permane-cesse no poder.

Como já tratei em outra ocasião, as mudançaspolítico-institucionais, iniciadas com a Revolução de30, redundaram na criação de uma extensa máqui-na burocrática não controlável por um Legislativoou por qualquer organismo representativo da socie-dade civil (Souza, 1976). Essa expansão se deu con-tinuamente sob o signo da cooptação ou da absor-ção dos interesses socioeconômicos. Assistimos,então, a uma recomposição dos centros regionaisde poder de controle social sob a cláusula de suavinculação ao sistema burocrático da União. Redesverticais de laços entre patrões e clientes tornaram-se um meio de alocar serviços públicos e de mode-rar a centralização administrativa-burocrática. Onegociado sistema de controle político e socialsobreviveu de fato ao interlúdio fascista do EstadoNovo e, já transformado, sobreviveu ao recenteperíodo militar.

No estágio importante de construção doEstado moderno no Brasil em 1930, deu-se, assim,uma nova inflexão de fortalecimento e ampliaçãode poderes do Estado central. Recriou-se simulta-

neamente o padrão cooptativo e foram mantidosos centros de poder, fora do Estado central, nagestão do controle social por meio da federaliza-ção política da autoridade baseada na máquinacoronelista e oligárquica. Ao mesmo tempo, insti-tucionalizou-se a atuação direta dos interesseseconômicos organizados em conjunto com a buro-cracia central.

Interventorias e Departamento Administrativodo Serviço Público

Nenhum partido político duradouro emergiudentro do âmbito do regime de 1930 a 1945.Imediatamente após a Revolução de 30, os tenen-tes tentaram organizar movimentos paramilitaresinspirados na Itália Fascista – a Legião Revolucio-nária de Miguel Costa em São Paulo, a LegiãoMineira de Campos e Capanema em Minas e aLegião de Outubro no Rio de Janeiro. Essas legiõesforam ecléticas e efêmeras. Jamais ganharam umabase de massa, seja nos setores da burguesia, sejanos setores pobres urbanos, a despeito de terem oapoio oficial de importantes ministros como Os-waldo Aranha.

Não foram somente as legiões que procura-ram criar organizações políticas do tenentismo.Góes Monteiro e João Alberto, em 1931, anuncia-ram a formação do Partido Agrário – que nuncade fato decolou. Em 1932-1933, o Clube 3 deOutubro tentou organizar-se como um movimen-to nacional, com células nas cidades mais impor-tantes do país. Tentativa que tampouco tevesucesso. A Assembléia Constituinte de 1933 mos-tra uma coleção bizarra de grupos regionais, semprojeção nacional e sem passado – um espelhodo magma institucional da nação que se estabele-ceu entre a República Velha e o Estado Novo. Em1943, o Clube 3 de Outubro patrocinou a funda-ção do primeiro partido Socialista do Brasil, comuma organização paralela – a Ação Trabalhista –,designada a penetrar a classe operária urbana.Ambos desapareceram no espaço de um ano. Ocrescimento da Ação Integralista Brasileira em1935 e do Movimento Comunista foram embriõesde organização política de massa a emergir noBrasil. Contudo, o Integralismo foi um produto deuma corrente política, representada por Plínio

Page 9: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 15

Salgado, que tinha se oposto à Revolução e quese tinha negado a colaborar com a formação daslegiões. Após o golpe do Estado Novo foi banido.O Partido Comunista já havia se fragmentado, tor-nando-se ilegal durante os eventos em torno daIntentona Comunista em 1935.

Embora inspirado no fascismo europeu, alta-mente mobilizador e fundado em um grande par-tido de massa, o Estado Novo brasileiro não pa-trocinou um aparato político partidário formal,sequer próximo do modelo da União Nacionalque Salazar havia criado em Portugal. Em 1937todos os partidos foram banidos.

O Integralismo tinha ambições de se tornar omovimento político do novo regime, mas era evi-dente também que Vargas nunca teve a intenção decolaborar com tal projeto. Pelo contrário, a despei-to da similaridade ideológica do Estado Novo como Integralismo, e dos numerosos laços pessoaisentre os dois, Vargas sempre procurou desmobilizare neutralizar o movimento integralista. Sua aversãoao movimento não era simplesmente o medo doIntegralismo como rival pelo poder. Vargas descon-fiava da idéia de partido político como tal. Após asupressão do Integralismo, seu Ministro da Justiça eautor da nova Constituição – Francisco Campos –repetidamente o aconselhava a criar um partidopolítico oficial. Vargas sempre recusou. Ele chegoua dizer a seu secretário, Luis Vergara, que não acre-ditava em partidos políticos. O vácuo partidário tor-nou-se, com efeito, um princípio ideológico com ofamoso slogan: “Não existem mais intermediáriosentre o governo e o povo”.

A época de Vargas, herdeira da Revoluçãode 30, não produziu assim nenhum partido polí-tico viável. O centro do novo regime, sob o ângu-lo centro-estados, estabeleceu-se por meio darede de interventores – um instrumento excep-cional que Vargas herdara da República Velha eque sistematizou num padrão de poder provincialno Brasil.

A esfera estratégica do mecanismo político-institucional criado após a Revolução de 30 e puri-ficado pelo Estado Novo era, sem dúvida, o sistemade interventorias e departamentos administrativosque interligava as oligarquias estaduais, os minis-térios e a presidência da República (Souza, 1976).Esse mecanismo consistia exatamente no seguinte:o Executivo federal nomeava para a chefia dos

governos estaduais indivíduos que, embora nati-vos dos estados e mesmo identificados em suasperspectivas ideológicas aos grupos dominantes,eram ao mesmo tempo destituídos de maiores raí-zes partidárias; indivíduos com escassa biografiapolítica ou que, se possuíam alguma, a fizeramaté certo ponto fora das máquinas partidárias tra-dicionais nos estados. Ademar de Barros em SãoPaulo, Benedito Valadares em Minas Gerais,Amaral Peixoto no Rio de Janeiro, AgamenonMagalhães em Pernambuco, Pedro Ludovico emGoiás, os Muller em Mato Grosso, Nereu Ramosem Santa Catarina, Góes Monteiro em Alagoas,são alguns exemplos.

O sistema de interventorias pouco ou nadainterferia nos pilares econômicos do poder políti-co nos estados, nem era esse seu intuito. Não obs-tante, ele enfraquecia as antigas situações políti-cas, na medida em que o interventor, emboraligado à elite estadual, não devia a ela a sua per-manência no controle do estado, mas sim aobeneplácito do Executivo federal. Removia-se, as-sim, boa parte dos empecilhos à centralizaçãoadministrativa e estabelecia-se, por intermédiodos interventores, uma convivência entre as di-versas correntes da política regional, sem que ogoverno central entrasse em conflito aberto comelas ou sequer acenasse com uma ameaça séria aseus interesses econômicos.

O estado de São Paulo foge relativamentedesse padrão, menos devido à existência de umaoposição do governo federal aos interesses daprodução cafeeira e mais no sentido de que ogoverno federal, e não as agências cafeeiras pau-listas, é que passou a deter a primazia sobre asdecisões concernentes a política do café.

As interventorias situavam-se a meio cami-nho entre a identidade e a independência em facedos grupos dominantes estaduais. Por meio delascompatibilizou-se o mínimo necessário e o máxi-mo possível de mudança: configurava-se a dita-dura modernizante no combate à centralizaçãooligárquica da República Velha, forjando um novomodo de articulação entre as forças políticas. Elasgarantiam, ou visavam a garantir, uma ampliaçãodo degrau de autonomia do poder federal para aefetivação de medidas econômicas urgentes e degrande envergadura para o período. O elementonovo, contudo, que confere um caráter de inova-

Page 10: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

16 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

ção institucional, é o fato de elas terem sido im-plantadas como um sistema em todo o país; comoum instrumento de controle e uma cunha dopoder central em cada estado. A essência dessesistema era a federalização da autoridade e dapatronagem ao mesmo em tempo em que, escru-pulosamente, se respeitava o status quo socioeco-nômico existente.

Naturalmente, o sistema de interventorias sig-nificava a sedimentação de novas estruturas oligár-quicas e a absorção dos interventores pelo meiorural. Num certo grau Vargas se precaveu contra osperigos políticos dessa evolução mediante um sis-tema de rodízio dos interventores. Entretanto, alongo prazo, tal sistema levou à implantação denovos núcleos de privilégio num meio oligárquicotradicional.

Além de assegurar o controle federal dosestados, as interventorias serviram a um outroobjetivo: foram mecanismos úteis para a assimila-ção dos tenentes. Isso é particularmente verda-deiro em relação ao Norte e Nordeste, onde inú-meros jovens oficiais – Landry Salles, Roberto deMendonça, Felipe Moreira Lima, Punaro Bley,Hercolino Cascardo e Magalhães Barata – recebe-ram interventorias de Juarez Távora após 1930.Alguns deles desapareceram da vida política apósum curto espaço de tempo. Os tenentes maisimportantes, entretanto, estabeleceram dinastiasfamiliares em seus estados nativos. Se eles contro-lavam posições federais importantes, delegavampoder local ou e de intervenção a seus familiares.Três exemplos são eloqüentes. Após 1930, o irmãode Juarez Távora, Manuel Fernandes Távora, tor-nou-se interventor no Ceará; no período pós-Guerra, seu sobrinho Virgílio Távora tornou-sesenador e governador pelo mesmo estado. EmAlagoas, Manuel Góes Monteiro, primo de AurélioGóes Monteiro, tornou-se deputado na AssembléiaConstituinte em 1945-1946. Ismar Góes Monteiro,seu irmão, foi feito interventor; Silvestre Périclesde Góes Monteiro, seu outro irmão, tornou-sedeputado e governador por Alagoas após 1946 eo próprio Ismar tornou-se senador no mesmoestado. Em Mato Grosso, Felinto Muller instalouseu irmão Fenelão Muller na interventoria em1931, depois seu outro irmão Julio Muller em1935, o qual se tornou governador posteriormen-te. Após 1946, Felinto foi repetidamente candida-

to a governador do estado e foi eleito senadorduas vezes pelo estado.

Em alguns outros estados, o mesmo fenô-meno ocorreu com elementos civis da AliançaLiberal, os quais fundaram dinastias que domina-ram as políticas estaduais até recentemente, porexemplo, Pedro Ludovico em Goiás e NereuRamos em Santa Catarina.

Nos estados mais importantes do Sudeste e doSul, tal padrão não se estabeleceu evidentementede maneira tão simples. De todo modo, os mesmosmétodos de escolha de interventores foram aplica-dos, e o estabelecimento de dinastias políticasseguiu o mesmo curso. São os casos de BeneditoValadares em Minas Gerais, Ademar de Barros eFernando Costa em São Paulo e da dinastia lidera-da por Amaral Peixoto no Rio de Janeiro.

O Exército, mesmo ainda dividido, era ogarantidor último dessa estrutura de poder doEstado Novo – o complemento necessário do sis-tema de interventoria – burocratas da administra-ção civil oficial.

Seria errôneo supor que o processo de cen-tralização estabelecido após a Revolução de 30tivesse surgido da noite para o dia. Ao contrário,se alguma data identificável puder ser encontradapara demarcá-lo, ela provavelmente se encontrana segunda parte da década de 1920, quando aconcorrência entre regiões produtoras leva algu-mas delas a situações de crise, fazendo avolumarde maneira quase simultânea os pedidos de inter-ferência do governo central. Destacam-se nessesentido as moções dos estados cafeeiros menores –Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro –,solicitando transferência do comando da políticacafeeira para o governo federal, comando atéentão exercido pelo Instituto do Café de SãoPaulo. Já bem antes, a pecuária gaúcha fazia reivin-dicações no mesmo sentido, por sentir-se prejudica-da com a competição de Minas Gerais, observando-se idênticas reclamações do açúcar nordestino contraSão Paulo.

As crises estaduais do início dos anos de 1920levaram o presidente Bernardes a promover em1926 uma reforma constitucional que visava a refor-çar o poder da União. Instituía, por exemplo, opoder de vetos parciais do presidente da República,e proibia a “cauda” orçamentária, da qual se valiamas bancadas estaduais para introduzir matérias mui-

Page 11: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 17

tas vezes extravagantes, e para fazer acréscimosclientelistas à proposta do orçamento federal. Amedida de maior alcance da reforma constitucionalfoi a alteração do artigo 6 da Constituição de 1891,considerado o eixo do federalismo da RepúblicaVelha. Esse artigo passou a especificar os princípiosconstitucionais da União que aos estados cumpririarespeitar, e criou mais um caso de intervenção fede-ral para reorganizar as finanças daquele estado cujaincapacidade para a vida autônoma se demonstras-se pela cessão de pagamentos de sua dívida funda-da por mais de dois anos.

É, porém, após 1930, que as tensões exis-tentes na relação centro/estados vêm à tona commaior violência, já agora colocando tenentes emáquinas estaduais em campos opostos. Ao dizertenentes, não queremos nos referir somente aosmilitares, mas também aos civis identificados comesses grupos e que obedeciam ao comando doClube Três de Outubro, ou da União CívicaNacional. Esta última foi uma tentativa de agruparsob uma mesma direção todos os interventores;uma organização subordinada a Oswaldo Aranha,então Ministro da Justiça, e a um subcomandopara o Norte e o Nordeste sob a chefia de JuarezTávora, por isso chamado de vice-rei do Norte.

A relação centro-estados, crucial no quadrodas mudanças político-institucionais, encontrava,assim, no interventor seu instrumento-chave. Seupapel era claramente difícil, instrumento das ten-tativas de controle por parte do governo central edos desejos do Estado em manter suas prerrogati-vas. No panorama das interventorias, é necessáriodistinguir entre os estados mais fortes e os maisfracos. Naturalmente, sua ação era mais eficaz nosmais fracos, menos estratégicos para os desígniosdo poder central. Nos estados mais fortes, econô-mica e culturalmente mais representativos e deten-tores, além disso, de milícias apreciáveis, jamais asituação se aproximou de um modelo hierárquico.Nos primeiros, a tentativa de mantê-las subordina-das deu lugar a diversas crises, de 1930 a 1937,como no caso de Minas Gerais, São Paulo e RioGrande do Sul. Ansiosos pela solidificação de suasrespectivas máquinas, as primeiras interventoriasdos principais estados mostraram-se favoráveis àimediata reconstitucionalização do país. Daí a ten-tativa de aliança desses três estados na Revoluçãode 1932.

Lançada a pregação pela nova Constituinte,os porta-vozes da centralização contra-atacaramimediatamente com uma série de medidas, entreelas a substituição da maioria dos interventoresem exercício por elementos diretamente ligadosao governo central, muitos dos quais militares,todos de orientação marcadamente centralista.Minas Gerais e Rio Grande do Sul não foram toca-dos, em parte pela existência de identificaçãocom os desejos do governo central, mas, sobretu-do, porque este estava ainda muito fraco parauma intervenção mais decidida caso fosse esseseu intuito.

Diante da perspectiva das eleições para umaAssembléia Nacional Constituinte, deu-se aindauma outra iniciativa importante por parte dos adep-tos da centralização. Os interventores do Norte eNordeste reuniram-se para aprovar uma moçãofavorável a uma representação igual dos estados nareferida assembléia. A intenção era “criar o blocodo Norte a fim de jogá-lo contra o Sul na Consti-tuinte”, no dizer de um de seus defensores, o per-nambucano Carlos Lima Cavalcanti.

Embora o código eleitoral decretado em1932 não tenha acatado a proposta “igualitária”daqueles interventores, incorporou uma outramedida cara aos tenentes com o mesmo objetivo:a representação classista. Tal representação signi-ficaria trazer para a Assembléia Constituinte umabancada de quarenta representantes, maior que arepresentação do estado de Minas Gerais. Tratava-se claramente de um meio termo em relação àmoção dos interventores do Norte/Nordeste, masde qualquer modo uma vitória dos centralistascom o fito de contrabalançar o peso dos maioresestados, notadamente de São Paulo e Rio Grandedo Sul, que naquela conjuntura representavam aoposição principal ao governo.

Essa iniciativa não era inusitada na históriarepublicana. Tinha talvez buscado sua fonte de ins-piração em uma medida similar encaminhada porDeodoro da Fonseca à Assembléia Constituinte de1891 (Souza, 1966). O princípio de contrabalançaro “desequilíbrio” econômico entre as regiões pormeio da representação dos estados no CongressoFederal enraizou-se na cultura política do país.Embora a representação estadual completamenteigualitária não fosse aceita nos termos extremadospropostos por aquelas iniciativas, o princípio sob o

Page 12: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

18 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

qual elas se fundamentavam tomou forma e foiincorporado nos textos constitucionais posteriores.A partir de 1946 até os dias de hoje, as várias cons-tituições brasileiras garantiram sempre a sobre-representação dos estados do Nordeste e Nortesobre os do Sul e Sudeste, especialmente em detri-mento da representação paulista. Os argumentosque invariavelmente fundamentaram a adoção, após1946, de tal desequilíbrio representativo poucasvariações apresentam em relação àquelas apresenta-das pelos defensores de um igualitarismo represen-tativo radical entre as unidades da federação duran-te a década de 1930. Instrumento do controlefederal, o interventor precisava, por sua vez, sercontrolado pelo governo federal. “Quem guardariaos guardas?”

De duas maneiras procurou o governo cen-tral manter esse controle em segunda instância –pelo rodízio em algumas interventorias a fim dedificultar o encastelamento político dos interven-tores e pela criação de órgãos paralelos de cen-tralização administrativa.

Criado em 1938, o DASP foi concebido co-mo um departamento administrativo geral, com oobjetivo de realizar um estudo global do sistemaadministrativo do país a fim de que fossem insti-tuídas mudanças destinadas a alcançar sua maioreficiência. A preparação anual do orçamento e ocontrole de sua execução passaram à responsabili-dade do DASP. Tendo surgido no contexto de umaditadura comprometida com a modernização, semum partido de massas, o departamento criou meiosconvenientes ao controle central do sistema admi-nistrativo. Como agência do Executivo federal, oDASP exercia responsabilidades que iam além daspreocupações técnicas; tornou-se uma espécie desuper-ministério. Os “daspinhos” estaduais funcio-navam ao mesmo tempo como uma espécie delegislativo estadual, um corpo supervisor para ointerventor e o Ministério da Justiça: os prefeitosmunicipais tinham que se submeter não somenteao interventor, mas também ao presidente dodepartamento estadual do serviço público.

Como uma engrenagem, a interventoria, odepartamento administrativo e o Ministério daJustiça cooperavam na administração dos estados,sob o controle geral do presidente da República.Enquanto o interventor agia como coordenadorpolítico, sob instruções diretas de Vargas, o DASP,

dirigido por burocratas e integrado por engenhei-ros, agrônomos e estatísticos, funcionava comoum corpo legislativo. O presidente do “daspinho”paulista orgulhava-se de, com seis colegas, fazero trabalho da antiga Câmara e do Senado do esta-do de São Paulo e de mais 21 câmaras municipais(Lowenstein, 1944; Graham, 1968).

A posição algo anômala dos interventoresfoi “legalizada” em 1939 por um decreto intitula-do “Da administração dos estados e municípios” àsemelhança do que dispunha o ato de reconstru-ção de 1935 na Alemanha nazista. Esse decretoestabelecia que o interventor e o DepartamentoAdministrativo eram os órgãos de governo dosestados; a lei orgânica passou então a reger asrelações entre governo nacional e estados. Ointerventor seria assessorado pelos chefes dosdepartamentos administrativos para um númerolimitado de áreas (Interior, Justiça, Educação eTrabalho); embora indicados pelos interventores,os assessores não renunciariam invariavelmentequando o interventor no estado deixasse o cargo.

Em 1937, sob o prisma jurídico-institucionalpelo menos, os estados achavam-se já relegados apouco mais que divisões administrativas subordi-nadas aos interventores federais e a uma hierarquiade agências burocráticas. As grandes decisões arespeito da vida econômica nacional haviam pas-sado totalmente ao controle do governo federal,via decretos-leis.

O curto período de 1934 a 1937 indicara, pelomenos na superfície, um retorno à política regio-nalista no estilo da República Velha. Rompido,entretanto, o arranjo constitucional em 1937, a po-lítica de centralização foi restabelecida com maiorvigor. Praticamente nenhum campo de legislaçãoeconômica permaneceu com os estados, nenhumno qual pudessem agir sem aprovação direta dopresidente da República. Durante todo o EstadoNovo, a organização do poder em todo o espaçogeográfico repousava no binômio inteventorias-departamentos administrativos estaduais: umarranjo em que tanto a competição como a coo-peração entre os dois pólos podiam ser manipu-ladas com relativa facilidade pelo governo daUnião dentro da estratégia global de implantaçãode um poder centralizado.

Page 13: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 19

Centralização decisória de política econômicae Forças Armadas

De nada valeriam os mecanismos de centrali-zação atuantes na relação centro-estados, se para-lelamente o próprio centro não fortalecesse seunúcleo, vale dizer, a própria máquina de governoe as agências decisórias no nível federal. A multi-plicidade de órgãos criados na década de 1930para a coordenação setorial das políticas de deter-minados produtos de exportação, e para os pro-dutos para o mercado interno, juntamente com oConselho de Comércio Exterior, funcionando noápice, adquirem significação ampla e duradoura.Eles permanecem como o modus e o locus facien-di das respectivas atividades.

Os institutos, as autarquias e os grupos téc-nicos nominalmente sob a direção do presidenteda República, mas praticamente sob os ministériosque lhes correspondiam, serviam como agênciascoordenadoras e centralizadoras do governo fede-ral para os específicos campos de ação. É possívelagrupar em quatro categorias os órgãos criados ourevitalizados na década de 1930 com o objetivo decontrolar as atividades econômicas: a) órgãos des-tinados a equilibrar consumo e produção em seto-res agrícolas e extrativos, ou reger sua importaçãoe exportação (entre eles o Instituto do Pinho; doSal; do Açúcar o do Álcool e o Conselho Nacionaldo Café); b) órgãos destinados a aplicar medidasde incentivo à indústria privada (a Comissão deSimilares e o Conselho Nacional de Política Indus-trial e Comercial são alguns exemplos); c) órgãosdestinados à ampliação, implantação ou remode-lação de serviços básicos de infra-estrutura para aindustrialização (Comissão do Vale do Rio Doce;Conselho de Águas e Energias; Comissão Executi-va do Plano Siderúrgico Nacional; Comissão doPlano Rodoviário Nacional; Comissão de Combus-tíveis e Lubrificantes, Conselho Nacional de Ferro-vias, Comissão Nacional de Gazogênio e váriosoutros); d) órgãos destinados a ingressar direta-mente em atividades produtivas – aí se destacama empresa mista no setor siderúrgico e posterior-mente a empresa estatal, particularmente aPetrobrás.

As decisões sobre a siderurgia, que culmina-ram na criação de Volta Redonda, encerraram umimpasse que vinha desde a década de 1920 e cria-

ram os modelos institucionais e organizacionais nadeterminação das alternativas e na formulação dosprojetos para o setor: a participação estatal naampliação da infra-estrutura, a conexão entre fina-lidades econômicas e razões militares e a decisivaparticipação dos quadros técnicos do própriogoverno e do Exército.

Dos órgãos criados após a Revolução de 30,destacaram-se – como invento institucional e comovia de acesso de novos personagens, grupos ouconselhos técnicos – o Conselho Técnico deEconomia e Finanças (CTEF) e o Conselho Federaldo Comércio Exterior (CFCE). O primeiro tinha porfinalidade transferir para o plano federal, em caráterde exclusividade, as relações externas; o segundo,criado mais tarde, tinha por objetivo inicial a cen-tralização da política do comércio exterior, mas seuâmbito de atuação foi ampliado, tornando-se umórgão de assessoramento ao governo em muitasoutras questões. Foi remodelado em 1937, consti-tuindo-se, segundo alguns autores, num órgão cen-tral de coordenação econômica e no embrião deum Ministério de Planejamento, com participaçãode industriais, militares e técnicos do governo. Esteconselho persistiu até 1949, quando foi substituídopelo Conselho Nacional de Economia (Draibe,1985; Diniz, 1978; Daland, 1967).

Sem que tenham se tornado propriamenteum instrumento do poder getulista, as ForçasArmadas da União, expandidas e fortalecidas,constituíram mais um mecanismo decisivo decentralização. Consumada a Revolução de 30, “oexército dividiu-se nos altos comandos estaduais”,situação que se perpetuada, no dizer de MarioWagner Vieira da Cunha, “redundaria na manu-tenção da política dos governadores, já que desdeo início fora uma revolução de governadores”(1963). O tenentismo foi o movimento que inter-feriu nessa estrutura impedindo que a Revoluçãose exaurisse numa mera troca de oligarquias.

O crescimento do Exército, mesmo manten-do certa margem de independência em relação aogoverno, implicou na quebra da autonomia dasmilícias estaduais e em sua expansão quantitativae qualitativa que terminaria numa configuraçãode força militar oposta à existente na PrimeiraRepública. Em 1933, seis estados – Minas Gerais,São Paulo, Distrito Federal, Rio Grande do Sul,Bahia e Pernambuco – ainda dispunham em con-

Page 14: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

20 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

junto nada menos do que 47 mil homens em suasmilícias (Cunha, 1963).

O Exército desempenhou dois papéis decolaborador direto com o governo de GetúlioVargas. De um lado foi avalista final de toda aestrutura baseada no binômio interventorias-buro-cracia. Surgiu como árbitro político do regime,levando muitos autores a verem nele o equiva-lente funcional do “poder moderador” do Impérioou o dos grandes estados no contexto da “políti-ca dos governadores”. De outro lado, por meio deseus quadros técnicos, foi uma espécie de policy-maker, notadamente na formulação e na imple-mentação das decisões e dos planos relativos aodesenvolvimento industrial, como no caso dasiderurgia e do petróleo.

Como desdobramento da Revolução de 30,projetando-se por um período de quase duas déca-das, deu-se uma efetiva nacionalização das ForçasArmadas, não obstante alguns estados ainda pos-suírem milícias relevantes no fim do período. Pro-gressivamente elas se subordinaram à União eforam sendo desarmadas, o que significou os pri-meiros passos no sentido de uma abrangência geo-gráfica mais eficaz. Esse processo de fato somenteveio a se completar após 1964.

A necessidade de incremento do poder cen-tral na evolução política de um país é geralmenteconsensual. O horror a partidos políticos – umsintoma do pensamento político das elites nacio-nais que demandavam o fortalecimento do podercentral nas décadas de 1920 e 1930 – tampoucoconstitui um traço cultural exclusivo da elite polí-tica brasileira. Ao discutir o processo de constru-ção do Estado norte-americano, o relato feito porStephen Skowronek sobre a evolução dos parti-dos nos Estados Unidos no fim do século XIXlembra alguns dos argumentos feitos aqui na dé-cada de 1930. Segundo o autor, o regime políticonorte-americano de “cortes partidos” provou-seincapaz de gerir uma ordem industrial. Os parti-dos, na qualidade de canalizadores de favores ebens, serviram como instrumentos sociais coorde-nadores durante a maior parte do século XIX, masa industrialização trouxe pressões e novas neces-sidades que pediam o desenvolvimento de umaparato burocrático central – tarefa que induziriaa construir um diferente tipo de Estado. O siste-ma partidário era visto como um obstáculo. O

domínio que as máquinas partidárias haviamganho e detinham sobre as instituições norte-americanas deveria assim ser quebrado antes quenovos centros de autoridade institucional nacionalpudessem ser construídos (Skowronek, 1982).

Uma comparação entre os dois países requerque se detenha tanto na engenharia institucionalutilizada para se alcançar a centralização estatal,como nas etapas de desenvolvimento político decada um. Diferentemente da evolução norte-ame-ricana, a centralização do Estado no Brasil foiestabelecida sem barganha com partidos, fossemeles de patronagem ou não. A centralização doEstado brasileiro foi construída por arranjos cominterventorias “apartidárias”, vale dizer, por elosde ligação entre unidades regionais e o aparelhode Estado. O sistema bi-partidário norte-america-no além do mais já havia se constituído antes doprocesso centralizador e, embora se apresentassecomo um frouxo arranjo federativo, detinha umaabrangência nacional. No Brasil deu-se a ocupa-ção dos nichos burocráticos-administrativos porgrupos políticos estaduais, não por partidos comonos Estados Unidos.

Nessa ótica comparativa deve-se ainda apontarpara a presença de dois fatores cruciais no contex-to norte-americano. O primeiro reside no sistemaeconômico mais desenvolvido e menos dependentede decisões estatais. O segundo, no fato de quedurante o processo de centralização, diversamentedo Brasil, estava em funcionamento um Congressoatuante, e constitucionalmente dotado de maiorautonomia em relação ao Executivo, portanto maispropício à atuação partidária governativa.

O Estado Novo, assim como a PrimeiraRepública, foi um acordo entre elites centraliza-doras e poderes oligárquicos, mas o modus ope-randi nos anos pós-1930 é inteiramente diverso:enquanto previamente esse acordo se baseara noprincípio da autonomia estadual e no mecanismoda política dos governadores, agora o que se pro-cura é a unificação via intervenção nos estados,inclusive naqueles mais importantes. Tal unifica-ção exigiu a implantação de uma extensa rede deórgãos burocráticos e, ao mesmo tempo, a sus-pensão do funcionamento de todas as organiza-ções partidárias. As mudanças político-institucio-nais então estabelecidas redundaram, de modogeral, em maior autonomia decisória do Estado

Page 15: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 21

brasileiro. Entretanto, esse embrião de autonomiadecisória, não seguia o tipo ideal racional-formalsegundo o paradigma weberiano das organizaçõesburocráticas. Ao contrário, ela teve seus funda-mentos no fato de que a expansão e a centraliza-ção burocráticas se deram continuamente sob osigno da absorção ou cooptação dos agrupamen-tos de interesses, funcionais e regionais. E a recom-posição do poder oligárquico regional efetivou-sesob a cláusula de sua vinculação ao sistema buro-crático governamental, processo esse que teriadecisiva significação na formação dos partidos doapós-Guerra.

Democracia populista (1945-1964)

Dois objetivos formam o corpo desta secção.O primeiro é o de procurar entender, em linhasbastante gerais, a dinâmica da vida partidária soba ótica regional durante o período de 1945 a 1964num contexto de expansão de política de massas.O segundo objetivo é avaliar a questão do poderdo Estado central na implementação das políticaspúblicas, sua acomodação aos poderes regionaisbem como as estratégias levadas a efeito pelopróprio poder central para sua “sobrevivência”.

Essa fase da vida política brasileira caracteri-za-se pela existência de um sistema decisório for-temente centralizado na burocracia federal emdetrimento de partidos e do Congresso. Ao mes-mo tempo, eles procuravam se adaptar às trans-formações trazidas pela industrialização e urbani-zação do país e pela participação políticaampliada que progressivamente seguia clivagensde classe.

No que se refere à dinâmica partidária maisespecificamente, esse período está marcado pordois processos. De um lado, por um sistema parti-dário profundamente estadualizado, cujas origensvão até a República Velha. De outro, pela naciona-lização da política partidária de massas com aampliação da telecomunicação, de organizaçõesprofissionalizadas de candidatos e de organizaçõespartidárias fundadas no uso mais intenso de recur-sos financeiros privados que imprimiram caracte-rísticas distintas à competição partidária-eleitoral.

A democratização brasileira de 1946 ea gênese dos partidos

Conjunturas históricas críticas – e a décadade 1930 aí se inclui – podem ter conseqüênciasduradouras sobre o caráter do desenvolvimentopolítico-institucional. Os efeitos que o processode centralização do poder ocorrido nos anos de1930 exerceu sobre o quadro institucional subse-qüente, em especial sobre o sistema partidário,foram imensos. A existência de uma estruturaestatal centralizada antes do surgimento dos par-tidos, como foi o caso brasileiro, constitui por simesma, uma dificuldade à institucionalização par-tidária (Souza, 1966). O que deve ser devidamen-te assinalado, além do mais, é que o modusfaciendi do processo centralizador em relação aospoderes regionais – , isto é, a apropriação de ati-vidades e recursos a eles correspondentes – refor-çou as características deletérias que a centraliza-ção do Estado exerceu sobre a institucionalizaçãopartidária e last but not least sobre as capacidadesmesmas do Estado.

Parece claro, em termos gerais, que a expan-são burocrática posterior à Revolução de 30, eespecialmente a que se seguiu sob o Estado Novo,institucionalizou e legitimou a atuação direta dosinteresses de classe e regionais junto à burocracia.Esse procedimento tornou-se a regra, e a atuaçãoem associações representativas de caráter autôno-mo e público – como a que em princípio sesupõe ocorra através de partidos políticos, –, aexceção. Em vez de várias centenas de interme-diários políticos, controlados pela opinião ou pelaimprensa, estabeleceram-se pequenos grupos deintermediários regionais entre a população e ogoverno central, que agiam sem a fiscalização dasociedade.

O padrão de organização federativa e a cen-tralização dos anos de 1930 prefiguram o mapaorganizacional do sistema partidário nos anossubseqüentes? Em alguns pontos essenciais sim.Parte das razões de tal prefiguração se encontrano modo como foram criados os partidos de mas-sa e nas circunstâncias que marcaram a redemo-cratização brasileira.

A dinâmica das organizações partidárias esua relação com a sociedade estão vivamentecondicionadas pelo “momento fundador”, como

Page 16: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

22 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

lembra a sociologia clássica, em especial a webe-riana em relação à evolução de todas as organi-zações. As escolhas políticas cruciais feitas porseus “fundadores”, nos primeiros confrontos parao controle da organização partidária e para a ocu-pação dos espaços políticos vis-à-vis outras orga-nizações, deixam uma marca indelével sobre operfil evolutivo dos partidos (Panebianco, 1988).

A estrutura organizatória do sistema partidá-rio brasileiro, tal como a conhecemos hoje, foifundada em 1945. Deve sua forma à existênciaanterior do quadro institucional-decisório centra-do na burocracia de Estado, de um lado, e aospoderes regionais que impedem ou dificultamcontinuadamente as tentativas de criação de par-tidos nacionais, de outro. A junção de ambos osprocessos fez da maioria dos partidos brasileirosorganizações que se nutrem do clientelismo esta-tal para sua sobrevivência. Do mesmo modo,esses processos tornaram sua estruturação internauma rede frouxa de facções espalhadas pelosestados, cuja coordenação é extremamente difícile complexa.

É difícil o aparecimento de um sistema par-tidário bem estruturado e que tenha condições decontrolar seus membros se sua efetiva institucio-nalização como organização partidária depende desua capacidade de oferecer a seus seguidores recur-sos provenientes do Estado. A centralização doEstado brasileiro acabou por levar os partidos bra-sileiros a se tornarem grandes organizações clien-telistas, controlados por bolsões oligárquicos regio-nais (Souza, 1966).4

De modo geral, as marcas que o períodoVargas deixou sobre os recursos organizatórios dosistema partidário não foram destruídas no pro-cesso de democratização. Tais estigmas, nem sem-pre visíveis, são decisivos para explicar grandeparte dos dilemas que os partidos enfrentam hoje.

Os estudos sobre o desenvolvimento políti-co brasileiro têm dado muito mais atenção às des-continuidades do que a continuidade entre oEstado Novo e o regime que se lhe seguiu. Situadoentre dois períodos reconhecidamente autoritá-rios, o regime de 1946 a 1964 é tratado por apo-logistas e detratores como radicalmente distinto doanterior em estrutura e em funcionamento.Entretanto, desejamos realçar aqui alguns aspec-tos institucionais em que houve continuidade e

cujos efeitos foram de monta sobre a evoluçãosubseqüente das organizações partidárias.

Em 1945 não existiam movimentos contesta-tórios de amplas bases sociais, ou inspirados emmetas ideológicas capazes de levar a uma con-frontação mais drástica. Nada tem de surpreen-dente a existência da continuidade em importan-tes aspectos institucionais. Pelo contrário, é de sesupor que, sob tais condições, a estrutura anteriorseria o fator determinante da estrutura que viessea ser formada.

O advento do pluralismo partidário, das elei-ções diretas, e o retorno à separação formal dospoderes do Estado determinado pela Carta Cons-titucional de 1946 foram superpostos ou acopla-dos à estrutura anterior, marcada pelo sistema deinterventorias e pela existência de um arcabouçosindical corporativista além de uma burocraciaestatal detentora de importante capacidade deci-sória e de recursos monetários ampliados.

A queda do Estado Novo foi amortecida esua estrutura geral aproveitada para a nova arma-ção institucional. Quatro recursos ou instrumen-tos foram acionados de maneira sistemática pelosgrupos dirigentes ligados ao Estado Novo cominegáveis efeitos sobre a estrutura partidária quese estabelecia: a) absorção, via PSD, das interven-torias e das bases municipais (a UDN incorporouas elites políticas oposicionistas nos estados) e aincorporação das clientelas urbanas sindicalizadasou cobertas pelas instituições previdenciárias atra-vés do PTB; b) emergência do getulismo comoformação ou movimento político organizado aoredor do carisma pessoal, condensando e dandoforma ativa através do PTB a suportes de massalatentes e apoiando-se nas forças regionais doPSD; c) garantia antecipada do controle dos rema-nescentes da estrutura estadonovista sobre a pri-meira legislatura, mediante a manipulação do ins-trumento de legislação eleitoral (alistamentoeleitoral, voto ex-officio, mecanismo das sobras eleis que dificultavam o registro de candidatos e departidos “ideológicos”; d) inscrição no texto cons-titucional de vários dispositivos asseguradores dacontinuidade referente à representação dos estados(artigo 58) em torno dos quais há intenso debateainda hoje.

O eixo básico do sistema partidário em fun-cionamento era constituído por três partidos: o

Page 17: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 23

PSD e a UDN, ambos conservadores e detentoresde amplas bases rurais, e o PTB, partido de caráterreformista urbano. O PSD e o PTB formaram-se emgrande parte por decisão governamental, ou comseu declarado beneplácito. Eram partidos “interna-mente mobilizados” nos termos de Duverger, quese estruturavam sobre os benefícios que retiravamdo fácil acesso aos aparatos burocráticos-adminis-trativos estaduais e federais. A UDN nasceu daconspiração contra Vargas e a ditadura do EstadoNovo. Estruturou-se a partir das oposições às inter-ventorias estaduais e da articulação com setoresmilitares que se opunham ao “varguismo” desde osanos de 1930.

Assim, o eixo polarizador em torno do qualse estruturavam os três grandes partidos políticosda época encontrava-se no sistema de intervento-rias e no acesso privilegiado à burocracia federal.A importância do que foi exposto parece eviden-te. A estrutura partidária em seu corpo principalnão se formou em função de cortes socioeconô-micos nítidos. A orientação anti ou pró varguismo,ou a ligação e o acesso das forças políticas esta-duais à burocracia federal, já estabelecidos noperíodo anterior, foram os fatores decisivos dessaestruturação. Constatamos como fundamental parao entendimento da atuação das agremiações parti-dárias o conhecimento da estrutura decisória esta-tal na sua interligação com as clivagens regionais.

Em face da precariedade dos recursos dispo-níveis e da provável lentidão do alistamento eleito-ral, foi permitido o registro de blocos de eleitorescom base em listas preparadas por empregadores eagências governamentais: o chamado alistamentoex-officio. Este expediente foi um recurso tipica-mente clientelista urbano, geralmente restrito aofuncionalismo público e aos sindicatos, pelo qual ogetulismo expandiu o eleitorado e o comprometeu.O alistamento ex-officio correspondeu a 23% davotação nacional em 1945, 54% no Distrito Federal,33% em São Paulo, 31% no Rio de Janeiro, 21% noRio Grande do Sul e em Pernambuco e 15% emMinas Gerais (Franco, 1946).

A legislação partidária, elaborada nos últimosmeses do Estrado Novo, e que já indicava os cri-térios de legitimidade a serem aplicados ao espec-tro político-partidário, negou o registro a quinzepartidos cujos vínculos com o regime anterioreram tênues e fundados sobre bases funcionais e

não territoriais. Embora o Partido Comunista tenhasido legalizado após a derrubada de Vargas etenha apresentado candidato à presidência daRepública, foi cassado em 1947. (Esse partidoalcançou 8,7% dos votos nacionais; foi bem votadoalgumas capitais e cidades industriais; elegeu 14deputados federais e um senador na AssembléiaConstituinte em 1945, tornando-se a quarta forçaeleitoral do país.)

O artigo 58 da Constituição de 1946, um doseixos centrais da relação entre União e estados naesfera partidária e no Congresso, revelou-se impor-tante durante todo o período de 1946 a 1964.Segundo este artigo, para nos atermos ao essencial,haveria um número mínimo absoluto de sete depu-tados por estado e um máximo assaz imperfeita-mente proporcional: um estado com três milhõesde habitantes teria vinte deputados, mas um esta-do com o dobro não teria quarenta e sim trinta edois deputados, visto que, a partir do vigésimorepresentante, a divisão se faria por 250 mil habi-tantes, e não 150 mil. Essa diferença no valor dosvotos não foi compensada, mas ao contrário au-mentada, pela representação no Senado, que con-sagrou a igualdade entre os estados.5

Em 1962, Gláucio Soares mostrou que a sub-representação no Congresso Federal dos estadosmais populosos era da seguinte ordem: São Paulotinha 27 deputados a menos do que seria sua repre-sentação num sistema exatamente proporcional;Minas Gerais, 17; Bahia, menos 8; Rio Grande doSul, menos 7; Paraná e Pernambuco, menos 3; Riode Janeiro e Guanabara, menos 1. Os demais esta-dos, menos povoados e territórios tinham umarepresentação superior em 18 deputados a queteriam num sistema hipotético de rigorosa propor-cionalidade (Soares, 1974, 1971). Como já assinala-do, a Constituição brasileira de 1946 não introduziuessas imperfeições no sistema eleitoral brasileiro,elas já estavam presentes na legislação anterior.6

Os estados beneficiados pelo artigo 58 eramem conjunto os mais atrasados no tocante à estru-tura agrária, a menos que se pretenda atribuiruma grande soma de poder econômico e políticoa vastas extensões de terras não cultivadas, dis-tantes e sem vias de acesso aos mercados urba-nos. A resposta mais simples e até certo pontoverdadeira, é que a estrutura de domínio políticoprecisava se organizar em bases nacionais. Para

Page 18: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

24 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

tanto, os grupos dirigentes dos grandes estados,de tendência conservadora, doaram poder legisla-tivo aos parceiros menos afortunados dos estadosmenores. Esta hipótese teria a seu favor três outrasobservações. A primeira é que, dentro dos estadosmais importantes economicamente, os maioresinteressados em representação exatamente pro-porcional seriam fatalmente aqueles que não pos-suíam representação adequada, ou seja, os gruposprogressistas e anti-oligárquicos. Nesse sentido, adoação de poder legislativo aos estados menoresnada mais seria do que uma convocação porparte das oligarquias dos estados maiores aosseus aliados nos estados menores, a fim de com-baterem o inimigo comum: os setores emergentesdos grandes centros urbanos e industrializados.

A segunda observação é que os estados maisindustrializados possuíam outros eficientes meca-nismos compensatórios de pressão, como, porexemplo, o controle das comissões parlamenta-res, que tem grande influência no processo legis-lativo, para não mencionar a maior envergadurapolítica de suas lideranças.

A terceira observação refere-se aos incenti-vos político-institucionais que tornavam mais efi-caz a representação dos interesses urbanos eindustrializantes diretamente nos vários nichosburocráticos-administrativos, ao largo de partidose do Congresso.

De acordo com vários representantes paulis-tas, o artigo 58 representava a sepultura dos par-tidos nacionais. Por outro lado, para os defenso-res desse critério de representação estadual(Capanema, Agamenon, Nestor Duarte e SoaresFilho, deputados do PSD e da UDN) o objetivo detal artigo era a manutenção da unidade nacionale o direito dos estados menores de poder defen-der razoavelmente seus interesses. Entretanto, oapoio oligárquico a esse artigo não seria suficien-te para garantir a vitória. Esta foi possível desdeque se apresentou apoiado por uma força maisarticulada, senão mais poderosa: o getulismo e osremanescentes do Estado Novo, não exclusiva-mente oligárquicos ou tradicionais. Foi um apoiode inspiração getulista associado aos blocos depoder regional voltados para o específico centra-lismo autoritário anterior, dentro do qual essespoderes regionais detinham um vasto controlesocial. Duas forças, pois, o presidencialismo e o

papel do Estado central, recusaram a montagemde partidos fortes nacionalmente, e as oligarquiasregionais reforçaram esse processo.

Se, como querem alguns, a crise institucionalde 1964 tinha raízes num conflito entre o Executivoe o Legislativo, o progressismo populista do pri-meiro contrapondo-se à sobre-representação dossetores mais retrógrados no segundo, parecendoclaro que as raízes mais distantes dessa fraturaencontram-se na própria coalizão política que, natransição ao regime de 1946, deu novo alento aoEstado Novo – nos seus mecanismos de governo,na sua concepção da ordem política e na centrali-zação estatal que garantia hegemonia dos poderesregionais sobre o controle social. O artigo 58, for-jado na conjuntura de 1946 para impedir umadevolução do poder aos dois maiores estados epara manter uma concepção estadonovista decentralização e de unidade nacional, teve efeitosmais amplos. Ele acabou por frustrar o próprioobjetivo centralizante e autônomo do poder cen-tral. À medida que retirou dos partidos boa partede sua vinculação a conflitos sociais que os leva-ria a se tornar organizações efetivamente nacio-nais, recriou as condições que fariam deles, e daprópria burocracia federal, presa fácil das forçasregionais.

Dinâmica partidária e regionalismo

Sem esmiuçar as intrincadas relações inter-governamentais fundadas no conjunto de recur-sos administrativos, financeiros e políticos, nossointeresse aqui é tão-somente o de apresentar, pelaótica regional, os eixos mais fundamentais da di-nâmica partidária. A pergunta central que servede parâmetro refere-se ao relacionamento entreos dois pólos, centro e periferia, no processo deconferir ao sistema político legitimidade por meioda participação e da representação.

Com a democratização do país, a participa-ção e a representação até então exercidas porintermédio de interventorias, agências burocráti-cas e administrativas foram empurradas em gran-de parte para a política partidária-eleitoral. Esta sefundava, por um lado, no populismo, que corta-va e ultrapassava os partidos, e, por outro, numarede de clientelismo que ia além da relação indi-

Page 19: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 25

vidual patrão-cliente, um processo básico do qua-dro coronelista anterior. Claro está que a evoluçãopolítico-institucional permitiu a manutenção do“velho coronelismo” como modo de canalizar osinteresses locais de áreas rurais e menos urbani-zadas. Contudo, os processos de urbanização emodernização rearticularam tal processo corone-lista clássico de maneira que abrangesse todos osestados em termos organizacionais e que poderiaser chamado de “clientelismo de Estado”.

A chave para se compreender a Repúblicapopulista da ótica da centralização versus regio-nalismo está na permanente tensão entre o Estadocentralizador e interventor e a busca da legitima-ção do sistema por meio do processo eleitoral e,conseqüentemente, da política de patronagem eclientelismo nos níveis regionais e locais. Entre asinúmeras fórmulas encontradas durante o períodopara resolver essa tensão, uma das mais vigorosasfoi certamente o populismo varguista.

Mesmo nos dias atuais, o tema das clivagensregionais continua a ser uma das chaves cruciaispara a compreensão dos processos político-parti-dário e decisório. Uma parte da literatura supõe aexistência de uma estrutura de classe em termosnacionais e, baseada nela, procura entender aspolíticas públicas, assim como as agremiações par-tidárias. Um conhecimento mais aprofundado doperíodo aponta para a heterogeneidade regionalda política, e sua estrutura diferenciada de incenti-vos, as quais desafiam a validade da maior parte detais interpretações que pretendem ser válidas parao conjunto da nação.

Na tentativa de entender a mudança políticae social, muitos desses processos são pouco enfa-tizados na teoria da modernização. Por outro ladonão são explicados pelo conceito de classes sociaisou são, enfim, pouco destacados pelas teorias dadependência. A ênfase nos conflitos entre o Estadoe as organizações políticas regionais permite novosinsights sobre os processos de mudança política esocial. Ao afirmarmos isso não queremos subesti-mar o intenso processo de transformações socioe-conômicas vividas pelo Brasil naquele período, outampouco o avanço da nacionalização políticabaseada em critérios funcionais. Tais transforma-ções influenciaram a mudança dos padrões decompetição partidária nas diversas unidades daFederação, nas estratégias dos partidos nacionais e

no caráter da organização do Estado. Entretanto, aexpansão de conflitos fundados em critérios declasse, mesmo durante sua exacerbação no final doperíodo, era permeada e intermediada por confli-tos entre e no interior das políticas regionais.

Estadualização da política

Segundo Lima Jr., um exame detido do siste-ma partidário leva a crer que o país possuía maisde um sistema, sobretudo ao se adotar os estadosbrasileiros como uma unidade analítica. Por siste-ma partidário, o autor refere-se a dois tipos derelações: entre os próprios partidos e entre os par-tidos e o eleitorado. Elas podem ser apreendidasusando-se o número de partidos em competição,o tamanho do eleitorado e a força eleitoral decada partido. De fato, o autor identifica vários sub-sistemas existentes no período: bipartidário, multi-partidário fragmentado ou altamente fragmentadoe competitivo (Lima Jr., 1981, 1983).

Embora ocorresse a nacionalização da vidapolítica, existia simultaneamente uma série de cli-vagens entre e no interior dos estados brasileiros,suficientemente profunda para permitir o surgi-mento de diferentes sistemas partidários, sendo aprincipal função dos partidos estaduais ou regio-nais exprimir o que se chamou de condiçõeslocais de disputa.

A análise que faz Lima Jr. do período de 1950a 1962 permite a identificação de sistemas biparti-dários com baixa competitividade em sete estados(Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte,Pernambuco, Espírito Santo e Mato Grosso); outrostambém bipartidários, com média competitividade(Paraíba, Goiás e Santa Catarina). Sistemas multipar-tidários (de três a cinco partidos) com um graumédio de competitividade (Pará, Alagoas, Sergipe,Minas Gerais, Guanabara, Rio de Janeiro, São Paulo,Rio Grande do Sul); e sistemas de alta fragmentaçãonos estados de Amazonas, Paraná e Bahia. Assimteríamos, com efeito, sete estados bipartidários eonze estados multipartidários. No interior dos esta-dos, o número de partidos efetivos era maior quan-do se tratava de eleições estaduais proporcionais.Para eleições estaduais, o número de estados bipar-tidários se reduzia a dois (Maranhão e Goiás, em1962). A ocorrência de um número grande de parti-

Page 20: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

26 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

dos é característica das eleições para as assembléiasestaduais.

Se nominalmente o país possuía um númeroelevado de partidos (treze, no final do período),na prática a competição eleitoral girava em tornode um número bem menor. Apenas o estado deSão Paulo aproximava-se de um sistema altamen-te fragmentado, e mesmo assim no que se refereà competição estadual. Em dezessete estados, detrês a cinco partidos dominavam a disputa eleito-ral para as eleições estaduais; para as disputaseleitorais federais, esse número vigorava somenteem oito estados (Idem).

No final do período, os dados reunidos porLavareda demonstram que o formato das competi-ções de escopo estadual caracterizava-se pela maioraderência à realidade socioeconômica, ao passo queas disputas nacionais (incluindo as escolhas locaisdas bancadas para a Câmara Federal) assumiram umpouco mais de autonomia em face das estruturas decada estado no sentido de definição de correntes deopinião e de implantação de organizações partidá-rias (Lavareda, 1991).

Em linhas gerais, o importante é que a car-tografia partidária do país e sua dinâmica mos-tram que a competição nas eleições partidáriasmajoritárias e proporcionais, nos diferentes esta-dos e em nível federal, obedeciam a lógicas elimitações diferentes.

Por meio de que instrumento operava-se aarticulação do sistema partidário-eleitoral em seuconjunto? O principal nexo entre os dois sistemas(majoritário e proporcional) nas esferas nacional eestadual dava-se nas eleições dos governadores,em que se reproduziam as únicas correlaçõesexpressivas do sistema partidário. Era esse pleitoque estruturava em cada estado o desenho dasdemais competições, inclusive as proporcionais(Idem). O monopólio dos chefes locais, que antesde 1945 era pouco desafiado, cede espaço para osexecutivos estaduais. Em todas as arenas, emquase todos os estados, o poder dos líderes regio-nais ascende, e o poder dos líderes nacionais elocais declina. A autoridade dos executivos esta-duais na formação do ministério federal ou sobreas bancadas no Legislativo tornou-se inquestioná-vel. Mais ainda, os poderes estaduais sempre semostraram relutantes em seguir o partido nacionalquando a linha deste colidia com as necessidades

regionais induzindo a uma frouxa disciplina parti-dária nacional. Se era verdade que no início doperíodo os laços partidários tradicionais e os pro-gramas partidários nacionais determinavam aseleições estaduais, nos anos seguintes os candida-tos ao Executivo estadual tiveram maior relevân-cia; a identificação partidária decresceu e as plata-formas nacionais diminuíram em importância.

Entre os inúmeros impactos que a “estadua-lização” da política exerceu no período, um delesreside no fato de que muitas das organizaçõesnacionais, além dos partidos políticos, das federa-ções sindicais e das organizações industriais eagrícolas, se reorganizavam ao longo de linhasestaduais ou de clivagens territoriais. De umamaneira geral, o período de 1945 a 1964 revelauma evolução política de um simples confrontosobre jurisdições entre o centro e a periferia, paraum outro contexto onde a maior parte das ques-tões tratadas evoca uma luta político-partidária demuitos ângulos, incluindo governos locais, esta-duais, líderes partidários em vários níveis e agên-cias privadas.

Marginalização de São Paulo nocontexto partidário

A separação entre centro e periferia políticapode ser desdobrada em duas direções. A primei-ra concerne à separação entre os setores maisburocráticos e a “classe política” que assume opapel de intermediário entre o governo e os inte-resses locais e regionais. A segunda diz respeitoao setor da sociedade ou estado que é mais, oumenos, dependente economicamente do governocentral, o que coincide com a divisão regionalentre a área de São Paulo e o restante do país.

A importância do papel econômico de SãoPaulo no período vem acompanhada por sua mar-ginalidade no quadro político-partidário. O papelsecundário do estado econômica e demografica-mente mais forte do país é uma peculiaridade quetem surpreendido muitos analistas. A debilidadeda liderança paulista na direção dos três grandespartidos nacionais foi contínua durante todo operíodo. Com efeito, as elites de Minas Gerais, Riode Janeiro e Rio Grande do Sul detiveram o con-trole desses partidos naqueles anos.

Page 21: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 27

Para Simon Schwartzman (1970, 1971, 1975),tal marginalização encontra sua raiz no fato de queo sistema de cooptação parece ser o dominante nopaís, contra um sistema de representação que sedesenvolveria em São Paulo. Isso explicaria a mar-ginalização do estado dentro da federação, o queconstitui um dos traços mais dignos de nota do sis-tema político brasileiro. Tomando uma eleição par-lamentar como a de 1958, o autor compara a por-centagem de votos dados a partidos regionais. Osdados apontam para uma variação significativa dopadrão nacional. Enquanto, por exemplo, SãoPaulo dava 42% dos votos aos partidos nacionais(PTB, PSD e UDN), dava 58% aos partidos regio-nais (PSP, PR, PDC); em Minas Gerais e Rio Grandedo Sul a situação se invertia – 87,2% e 81,9% paraos partidos nacionais e 12,8% e 18,1% para os par-tidos regionais, respectivamente (Idem).

A marginalização de São Paulo pode serexplicada, como já foi assinalado, por razões deordem conjuntural no período de implantação dospartidos: por estilos de liderança regional ou pelahistória política de cada um dos estados em rela-ção ao “varguismo”. Entretanto, não parece haverdúvidas de que a representação dos interesseseconômicos de São Paulo se exercia, medianteoutros canais representativos, pela articulaçãodireta com os organismos burocrático-estatais. Estaé pelo menos uma das respostas para o pequenoinvestimento da elite paulista na ativação dos con-dutos partidários para o desempenho de funçõesde representação junto ao poder federal.

De todo modo, a “não representação” daselites econômicas mais importantes do país nostrês partidos centrais constitui um aspecto centralda precária institucionalização do sistema partidá-rio em nível nacional. Tal defasagem entre o póloeconômico e político de desenvolvimento do paístem que ser posta no centro de qualquer análisee não somente vista como uma singularidadepolítica do estado de São Paulo ou um fenômenoidiossincrático que não altera o quadro políticocomo um todo.

Estratégias partidárias e clivagens territoriais

Os partidos brasileiros no período aqui anali-sado funcionavam num cenário caracterizado pela

inexistência de conflitos sociais de grande monta,fossem eles lingüísticos, culturais ou separatistas,com força suficiente para repercutir na organiza-ção dos partidos. A dualidade socioeconômicabrasileira e as diferenças no interior das políticasestaduais faziam com que as divisões de classe nonível nacional não suplantassem aquelas clivagensregionais como determinantes primeiros do ali-nhamento político partidário. As linhas divisóriasentre as classes sociais não constituíram umavariável de maior peso sobre a qual se estrutura-ria o conflito político entre os partidos conserva-dores e os modernizadores de base popular.

A modernização da sociedade brasileirainduzia evidentemente à nacionalização da com-petição partidária e à expansão geográfica porparte de todos os partidos. Aqueles que já haviamnascido com o propósito de atingir maior abran-gência nacional (PSD, PTB e UDN) expandiram-se geograficamente; os essencialmente regionais(PSP, PTN, PST) cresceram até o ponto que logra-ram disputar, com maiores chances de sucesso, aseleições federais. Porém, a velocidade da nacio-nalização era constantemente freada pela moldu-ra institucional do padrão de organização federa-tiva: pelos perfis de representação dos estadosinternamente e na esfera federal reforçados pelafrouxidão das leis partidárias e eleitorais queincentivavam coalizões eleitorais estaduais entreforças divergentes no plano nacional.

Após as grandes transformações socioeconô-micas no início dos anos de 1960, eram claros oslimites regionais impostos ao sucesso de uma can-didatura à presidência. Um candidato verdadeira-mente competitivo tinha que ter obrigatoriamentedois componentes em sua votação: de um lado,um apelo generalizado, ultrapassando fronteirasgeográfico-sociais, a começar pela quase unifica-ção de seu próprio estado; de outro, a conquistamaciça de alguns estados menores, via acordoscom dirigentes regionais.

A eleição de Jânio-Jango em 1960 mostra cla-ramente a impossibilidade de se atribuir a qualquerdos candidatos uma votação caracteristicamenteurbana ou rural, conservadora ou progressista emtermos nacionais. O que os dados revelam é aacentuada dependência dos vitoriosos nessa elei-ção das máquinas estaduais e dos votos fornecidospelos bolsões tradicionais do interior (Souza,

Page 22: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

28 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

1976). Por certo não queremos dizer que os arran-jos regionais durante o período se assemelhassemem simplicidade aos arranjos para a sucessão pre-sidencial durante a República Velha. Uma dasrazões encontra-se na presença de uma dinâmicapartidária de cunho nacional; outra razão refere-se ao aumento da competição eleitoral dentro dosestados. As estruturas de poder locais ou regio-nais não eram, e nunca foram, monolíticas. Es-tavam marcadas por um extenso conflito interno,denotando uma luta ativa entre as várias forçaspolíticas pelo comando do controle social.

Durante a fase formativa de partidos demassa no país, como vimos, foi dificultada a cons-trução de uma unidade entre as bases partidáriasde modo a permitir a emergência de partidos comabrangência nacional. Formados a partir de divi-sões estaduais, os partidos conservadores (UDN ePSD) adquiriram um perfil fragmentado, controla-do que eram por elites regionais, as quais fre-qüentemente confrontavam a direção nacional.7 Asclivagens regionais foram também um fator demonta na evolução de partidos de esquerda oupopulistas. Os partidos de esquerda nunca passa-ram de pequenos grupos regionais. O Partido Co-munista, único então detentor de potencial para sefirmar como partido nacional, foi cassado em 1948e freqüentemente tornou-se um braço mobilizadordo “getulismo”.

O getulismo talvez tenha sido o único movi-mento de caráter nacional, durante o período, queencontrou fórmulas para construir pontes entre asdiferenças regionais e para estabelecer aliançaseleitorais mais estáveis. O sucesso alcançado pelogetulismo significou, entretanto, trazer sob um sóguarda-chuva organizacional duas forças opostas:as redes partidárias urbanas nas regiões metropo-litanas com as redes patrimoniais tradicionais nointerior e nos estados mais ruralizados. A aliançaPSD-PTB representou um feito importante deengenharia política, contudo criou uma fonte con-tínua de tensão interna até a crise de 1964. Asdivergências entre ambos adquiriram particularvirulência nas eleições legislativas de 1958 e noprocesso sucessório de 1960.

Uma das críticas mais constantes e contun-dentes sobre a vida partidária brasileira refere-se àausência de “coesão ideológica” de nossos parti-dos. É difícil indagar-se sobre a “coesão ideológi-

ca e programática” de um partido em relação asuas bases sociais sem ao mesmo tempo investigara rede de nódulos organizacionais de que ele secompõe. O problema da coesão ideológica é inse-parável da coesão organizacional e conseqüentemen-te dos mecanismos de controle – sanções e incentivos– existentes em qualquer partido. Espalhados em umextenso território marcado por grandes desigualdadesregionais, os partidos brasileiros tendiam a reunir noseu bojo a mais variada gama de interesses, que seencontravam nas diversas seções estaduais, nemsempre sintonizados com os respectivos programasdos partidos (Picaluga, 1980; Hippolito, 1985;Benevides, 1981).

Sob a ótica que vimos empregando, pode-mos analisar as questões relativas à “coerência” eà inautenticidade” dos partidos brasileiros de duasmaneiras. De um lado, elas seriam a resultantecomplexa de atuação de cada partido em cadanível regional e estadual e do contexto nacionalpartidário. Enfim, da adequação com que os obje-tivos particulares e localizados estadualmente seajustam como meios a estratégia global dos parti-dos. De outro lado, a chamada “inautenticidade”dos partidos anteriores a 1964, assim como con-temporaneamente pode ser buscada tão legitima-mente como na representação das bases sociais,na estruturação mesma do poder central, no inte-rior da qual o padrão de relacionamento entreUnião e unidades federadas é uma variável cru-cial. Dessa maneira, deixamos de ver o “cliente-lismo” como uma característica específica da polí-tica brasileira, ou mesmo de um “estágio” dedesenvolvimento, para enfocá-lo como uma moda-lidade de controle sobre recursos políticos e suautilização pelas organizações políticas, as quais,dessa forma, procuram gerar poder para si pró-prias e se consolidar como instituições.

As instituições político-partidárias nacionais,que foram inicialmente forjadas como uma solu-ção para a questão das clivagens regionais, cen-tralizaram a competição política nas instituiçõesburocráticas do poder central e marginalizaram asinstituições da sociedade política. Combinadas, acentralização decisória e as divisões regionais eri-giram, já durante as primeiras décadas de compe-tição eleitoral de massa, uma estrutura de incenti-vos que desencorajava os líderes, conservadores eprogressistas, a buscar as árduas e incertas tarefas

Page 23: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 29

de construção de partidos nacionais. As diferen-ças estaduais e regionais continuam hoje a impe-dir que núcleos partidários em todo o espectroideológico desenvolvam-se nacionalmente e adap-tem-se às lutas de extensão nacional.

Numa construção menos ambiciosa de culturapolítica, podemos afirmar que existem tradições deconduzir a política eleitoral. A política centrada emnotáveis, por exemplo, adquirindo mais e menosênfase conforme a região ou o estado, sobreviveu àtransição da sociedade latifundiária para a socieda-de mais modernizada contemporânea.

É possível falar também de tradições geo-graficamente enraizadas de conduzi-la. Políticosem cada região buscam diferentes carreiras, abra-çam diferentes ideais, competem com rivais diver-sos e colaboram com diferentes padrões de polí-tica. Tal enraizamento, de conexões temporais,perdurou ao longo do desenvolvimento brasilei-ro. Práticas e “estilos” políticos específicos locaise regionais tenderam a persistir teimosamente,apontando para linhagens de estilos “tradicionais”.Uma vez iniciados, eles se mostraram capazes desobreviver à modernização do país e ao surgimen-to da política de classes. “Tradições” locais e esta-duais na condução da competição eleitoral revela-ram uma continuidade a longo prazo, tão dignasde nota quanto a continuidade de lealdades a gru-pos políticos provinciais. É comum a observaçãosobre diferenças entre as elites políticas das váriasregiões do Brasil: sobre o estilo “mineiro” ou “gaú-cho” de fazer política, ou sobre a retórica “barro-ca” nordestina. Fala-se muito na “tradição” políti-ca do estado de Minas; na habilidade conciliatóriae na mentalidade centrista dos políticos estaduaise locais; no papel destacado que o estado desem-penha nas sucessões presidenciais e outroscomentários semelhantes. Para muitos analistas, aconstatação dessas diferenças acoplada ao domí-nio de certas elites regionais no governo centralpode mesmo explicar cursos mais e menos mode-rados, mais e menos elitistas do processo político(Machado, 1987; Dulci, 1982 e 1984).

De todo modo, deixando de lado tais carac-terísticas mais próprias a uma análise de cunhosociopsicológico cultural, o padrão organizacionalde partidos tem muito a dizer sobre as elites decada região. Nas regiões menos industrializadas eurbanizadas, onde a política é marcada por rela-

ções verticais de autoridade e dependência, comoaquelas que tomam corpo nas redes de patrões-clientes, a política partidária adquire um sentidomais “elitista”. Nelas, as relações de autoridade naesfera política como que espelham as relações deautoridade no contexto social mais amplo. Assim,não é surpreendente descobrir que as liderançaspolíticas aí recrutadas provem de uma fatia maisestreita da hierarquia social. Em regiões onde asrelações horizontais são mais freqüentes, as lide-ranças provem, por outro lado, de backgroundsmais modestos (Fleischer, 1981; MacDonough,1981; Nunes, 1978).

Sob um ponto de vista mais amplo, engloban-do todos os partidos, pode-se dizer que ao longo daevolução política brasileira, o que perdurou foi umpadrão de organizações mais que um conjuntoespecífico de organizações partidárias. Esse padrãorepousa substantivamente em incentivos materiais emuito pouco em incentivos ou causas ideológicos,tampouco no recrutamento de pessoas de perfilmais “ideológico” para fazer o trabalho organizacio-nal (Panebianco, 1988; Mayhew, 1986; Weber,1958).8 Em regimes marcados por organizações par-tidárias com esse perfil, o impulso para gerar pro-gramas governamentais é bastante frágil. Por duasrazões: o tipo de pessoas atraídas para os partidos,dados os incentivos das estruturas partidárias, tempouca inclinação para as tarefas de cunho progra-mático, e o particularismo requerido para a manu-tenção organizacional tende a expelir outros tiposde atividades e objetivos. A seleção de membros dasorganizações partidárias e o tipo de carreira exigidodeles para conseguir postos executivos revestem osistema político de uma dinâmica própria.

União e Estado no quadro decisório

Após 1946, os novos parâmetros constitucio-nais restabeleceram o sistema de governo federa-tivo. Embora a nova divisão de autoridade entreo centro e as regiões estivesse longe de podergarantir um modelo de acentuada autonomia dasunidades federadas, os poderes regionais e esta-duais faziam-se exercer de várias maneiras sobreo poder decisório estatal.

Em comparação com outros grupos de po-der, como argumenta Leff, os governos estaduais

Page 24: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

30 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

e as bancadas regionais estiveram sempre entreaqueles poucos participantes com posição inde-pendente de barganha na política decisória brasi-leira (Leff, 1968; Wirth, 1970; Martins, 1976). Oregionalismo foi e continuará a ser um fator navida política porque a dinâmica interna do Estadose desenvolve, mesmo nos períodos posteriores,em torno de rivalidades e alianças das cinco regiõesda Nação, particularmente as do Nordeste, Sudestee Sul. A relação entre os poderes políticos estaduaise a burocracia central, a qual se entrecruza com omovimento assumido pela luta partidária nacional,pode ser resgatada pelo menos de duas maneiras.

Um ângulo freqüentemente utilizado paraabordar essa questão é o de examiná-la, de umlado, a partir do jogo mais amplo entre centro eperiferia e, de outro, pelo jogo que se efetua entreestados mais e menos desenvolvidos economica-mente. O segundo instrumento operacional é ode examinar o relacionamento entre tais atorespolíticos com base na concepção de arenas deci-sórias, abordagem fecunda para a análise dasmodalidades de atuação e de ajustamento do sis-tema partidário e do regionalismo à situação decentralização burocrática.

Assim como em outros países, o jogo centro-periferia passou a ser jogado simultaneamente emdois planos distintos, embora relacionados. Noprimeiro, a região individual procurava escapar oumitigar os controles centrais a respeito de decisõesespecíficas. No outro, os governos estaduais comogrupo lutavam para mudar as regras do centro demodo a aumentar suas fontes de barganha. As lutasdo primeiro plano sempre foram favoráveis ao cen-tro, ao passo que as do segundo plano quase sem-pre alcançaram vitórias para as regiões. Ante a recal-citrância central fortificada pelo seu maior controlesobre leis, regras e recursos, as regiões passaram ase utilizar de estratégias menos formais. Passaram ase apoiar na solidariedade inter-regional, no apoiode organizações grass-roots, de grupos de interesselocal e estadual, da imprensa e da opinião pública.Embora todos os estados se utilizassem freqüente-mente de fronts regionalistas para expressar suasdemandas, os estados do Nordeste dependiammais de estratégias “verticais” que ligavam hierar-quicamente os vários níveis da administraçãopublica ou por meio de petições privadas a seuspatronos nacionais. Os estados mais desenvolvi-

dos, do Sul e do Sudeste, além dessas estratégiasrecorriam a outras de perfil “horizontal”, em que ainterligação com organizações da sociedade civilera mais intensa.

O fosso socioeconômico entre Nordeste-Norte e Sul-Sudeste é ainda hoje uma questãocentral na política brasileira. Esse fosso, além domais expandiu-se continuamente, a despeito dacentralização varguista, do boom econômico do a-pós-Guerra, das mudanças constitucionais e deregime (centralizadores, democráticos, autoritários)e das grandes mudanças na política econômicajuntamente com o maciço programa de investi-mentos públicos no Nordeste-Norte. A nova ordeminstitucional durante a democracia populista de1946a 1964 equilibrava o convívio entre os doisbrasis por meio de um processo que se poderiachamar de “barganha estatista”. Ela refletia umbalanço cuidadosamente estruturado entre adependência do país das regiões mais industriali-zadas e costeiras e as demandas do interior e dossetores mais ruralizados por influência política.Por intermédio da “barganha estatista” deixava-seo modelo de desenvolvimento intacto, e o Estadotornava-se a arena central em que as elites regio-nais negociavam a distribuição dos frutos dodesenvolvimento entre elas (Sallum Jr. e Kugel-mas, 1993).

O sistema político-institucional estabelecidoapós 1946 foi designado ou acabou por manterpoderes oligárquicos regionais no interior de umprocesso desigual de crescimento econômico e demudança social. Do mesmo modo foram estabe-lecidos mecanismos para alocar benefícios desi-guais desse crescimento e minimizar o conflitointer-regional. A competição política e ideológicaassim se tornou subordinada aos interesses com-partilhados pelas políticas regionais sustentadorasda “barganha estatista”.

Grande parte das decisões políticas nacio-nais, da designação dos sucessores presidenciais àalocação de créditos, era feita via acordos informaisentre membros do ramo executivo e governadoresdos estados importantes de várias regiões. Taisacordos subseqüentemente eram ratificados pelasinstituições partidárias. A sociedade política existiapara organizar a competição entre correntes rivaisou fiscalizar o poder do Executivo. Servia porém,sobretudo, para ratificar as decisões econômicas

Page 25: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 31

alcançadas na estrutura hierarquicamente organi-zada do poder decisório de Estado. Essas decisõeseram fundamentalmente inspiradas pelas necessi-dades de sustentar os motores do crescimentoeconômico baseados nos pólos estaduais indus-trializados.

A concepção de arenas decisórias constituiuma outra ótica de análise que permitiria dar umconteúdo mais substantivo ao que acabamos dedizer. Os trabalhos realizados por Lowi sobre aatuação dos grupos de interesse em relação a diver-sos tipos de issues permitem tratar mais sistemati-camente estas questões. Sua principal contribuiçãoconsiste em distinguir tipos de arenas decisórias,conforme o grau de divisibilidade possível nos res-pectivos objetos de decisão. Cada uma dessas are-nas tenderia a se estruturar de uma maneira dis-tinta, no que se refere à forma de controle sobreprocessos decisórios e à atuação de interessados,indivíduos, organizações e grupos (Lowi, 1964,1969).

Como é óbvio, há um longo caminho entrea descrição de uma decisão isolada, a qual já porsi só apresenta certa dificuldade no que se refereà determinação exata da atuação de partidos, re-giões e outros atores políticos, e a noção de quedeterminada arena possa ter como característicaestrutural um maior ou menor controle por partedeste ou daquele ator. Podemos, entretanto, apon-tar para alguns traços gerais da dinâmica partidáriae regional no quadro decisório, a serem desenvol-vidos por pesquisas.

As formas de atuação, as alianças e os con-frontos entre os atores políticos estaduais estãointimamente interdependentes do tipo de issue aser decidido e do grau de poder que constitucio-nalmente detém o Legislativo e o Executivo sobretais objetos de decisão.

Parece claro que no Brasil as medidas decaráter econômico-financeiro, relativas a uma are-na que se podia chamar de arena de acumulaçãode capital, foram removidas da esfera político-partidária e do Congresso. Não necessariamente,porém, da influência de grupos regionais, emespecial a dos estados mais avançados economi-camente, para os quais a burocracia tinha umcaráter altamente poroso.

Uma outra arena – redistributiva – refere-sea uma categoria de decisões cujo impacto é imen-

samente agregado, abrangendo vastas categoriassociais, não raro através de linhas de classe nosentido socioeconômico mais preciso. Os objetosdessa arena são fundamentalmente a distribuiçãode renda e da propriedade. A reforma agrária, porexemplo, é um exemplo significativo no períodoconsiderado, assim como a política salarial ou alegislação tributária. O poder de decisão sobre osissues que compõem essa arena é altamente cen-tralizado nas mãos do poder Executivo. O Con-gresso e os partidos eram aí atores secundários. Aconfiguração dessa arena é mais complexa e ten-deria a apresentar coalizões relativamente estáveisbaseadas nas diferenças socioeconômicas entre osestados, entrecruzadas por partidos nacionaismais à direita ou à esquerda. Cada uma dessasalianças formava concepções ideológicas relativa-mente sistemáticas sobre a estrutura da sociedadenacional (ver Camargo, 1981).

Numa outra arena – denominada distributiva –transacionam-se interesses altamente divisíveis. Otermo “clientelismo” pode ser tomado como pra-ticamente sinônimo de política distributiva, como,por exemplo, a política de empregos. Tais ativi-dades constituem recursos utilizados por todas aspolíticas estaduais, e em torno delas os ganhado-res e perdedores, beneficiados e lesados não sãoconfrontados diretamente.

Uma política de tarifas, por exemplo, seriaum outro tipo de issue, e caberia numa arena cha-mada de regulatória. É uma questão diversa daanterior, mas mesmo assim caracterizando-se poruma multiplicidade de influências. De modo ge-ral, elas se baseiam na maior ou menor conexãoentre determinado estado e o setor externo daeconomia com o predomínio da influência dos es-tados mais industrializados, senão na tomada dedecisão, certamente no momento de sua imple-mentação. Esse tipo de questão leva a aliançasestaduais e regionais relativamente tangenciais emutáveis, mas de qualquer modo conduz a umcerto confronto entre elas.

Podemos pensar ainda em uma outra arena,relativa à expansão mesma das agências do Estado,a qual, se presume, seja um espaço onde o podercentral detém grande poder decisório ao abrigodos grupos de interesses, regionais ou funcionais.A história da implantação da siderurgia pode reve-lar alguns aspectos da relação entre estados e

Page 26: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

32 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

união nessa arena decisória. Imensos complexossiderúrgicos mobilizam um poderoso lobby regio-nal em torno da siderurgia longe do controle dogoverno central. No Brasil, o governo federal nãopode nomear os presidentes das empresas siderúrgi-cas sem consultar as elites regionais, e os presiden-tes designados atuam com freqüência na políticaregional (Schneider, 1994). A história da Açominas éum exemplo que ilumina com clareza a força dapolítica estadual, no caso a de Minas Gerais.Inconformados com a decisão de Vargas em 1942 deinstalar a CSN no Rio de Janeiro, a elite políticamineira pressionou até conseguir sua própria usinaem 1957 com a criação da Usiminas. Em 1963, ogovernador de Minas Gerais autorizou oficialmen-te a criação da Açominas.

Resumidamente, “a barganha estatista” sobrea qual se fundava a organização federativa tinhacomo pilares institucionais a sobre-representaçãodos estados menos desenvolvidos nos partidosnacionais e sobretudo no Congresso; um sistemade coalizões partidárias, provinciais e flutuantes,que não seguiam necessariamente as linhas nacio-nais dos partidos; uma partilha de poder entre aburocracia federal e os interlocutores dos estadosmais industrializados nas arenas decisórias relativasàs grandes políticas econômicas e à representaçãodireta de núcleos econômicos dos estados menosdesenvolvidos em variados nichos ministeriais.

Essa discussão nos remete a uma outra maisampla: a questão do “insulamento burocrático”contra a “classe política”. Essa questão tem cons-tituído um foco de análises sobre as relações deautoridade, sobre a eficácia da capacidade deci-sória estatal ou ainda sobre a performance admi-nistrativa do Estado. A classe política brasileira,majoritariamente inclinada à distribuição cliente-lista ou puramente predatória, tem sido erronea-mente identificada com as representações dosestados mais atrasados. Como já foi assinalado, oclientelismo é um recurso utilizado igualmentepor todas as forças regionais. Dependendo do en-castelamento de lideranças regionais em cadaministério, pode haver, é claro, maior propensãodos estados em se utilizarem mais desse meiosobre um determinado Ministério do que sobreoutro. O essencial é apontar para o alto grau emque todas as facções estaduais no período, pro-gressistas ou conservadoras, se alimentam do cli-

entelismo. Fazem deste uma estratégia de aquisi-ção e de consolidação de poder, dando forma ao“Estado cartorial” brasileiro. Como revelam váriosestudos, criaram-se “panelinhas”, anéis burocráti-cos e nichos de parentela no interior da burocra-cia brasileira. Eles são freqüentemente centradosem núcleos regionais, dificultando qualquer proje-to de maior abrangência nacional.

Durante o período, observam-se variadostipos e graus cambiantes de autonomia burocrática.9

Em certos momentos, diferentes partes do Estadoestão hermeticamente fechadas para certos grupose totalmente abertas para outros. O insulamentoanticlientelista alcançado pelas agências estataisfederais variou amplamente ao longo do período.

Na década de 1940-1950, Vargas usou asnomeações para insular algumas parcelas da buro-cracia emergente, como foi o caso do BNDE.Juscelino manteve um insulamento parcial aoencapsular planejadores essenciais. Goulart dis-pensou aparentemente todo o insulamento e trans-formou o Executivo em um baralho disponívelpara uso no jogo da influência política regional.Segundo Ben Schneider, o governo Goulart rom-peu, no início dos anos de 1960, com a práticacomum de insulamento parcial das agências buro-cráticas (Schneider, 1994).

As forças centrífugas regionais, se de um ladocontribuem para a perda de eficácia do planeja-mento do governo central, ajudam, como queremvários analistas, a suavizar a extrema centralizaçãodo poder no governo federal e a superconcentra-ção das indústrias em São Paulo. Tendler (1968)observou, por exemplo, que a rivalidade entre aselites estaduais e regionais, que apoiaram diferen-tes companhias em competição pelos recursos fe-derais, exerceu um impacto benéfico sobre o de-senvolvimento hidrelétrico. Um dos interessesespecíficos mais importantes que podia ser servidopor projetos executados localmente era exatamen-te o do governador do Estado.

Um outro aspecto da influência regionalsobre o governo central funda-se na política denomeações. Além das nomeações para o núcleodo governo, isto é, para os cargos de assessoriacujos gabinetes ficam no palácio central, os presi-dentes devem dar também ao corpo ministerialuma representatividade geográfica aproximada.Essas exigências demonstram a permanência do

Page 27: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 33

poder do regionalismo mesmo sob o governo mili-tar autoritário. Os nomeados com base no critérioregional podem defender os interesses de suasregiões desde que não provoquem rupturas na“barganha estatista”. Essas nomeações destinam-semenos a favorecer regiões do que a esvaziar a opo-sição delas ao regime. É um tipo de “representaçãonão responsável” nas palavras de Linz.

Um outro aspecto relacionado à questão daeficácia governamental reside no vasto overlap-ping entre agências estatais centrais e estaduais. Aadministração pública brasileira experimentou poranos um ciclo de centralização/descentralização/maior centralização. Esse ciclo significou a criaçãode um vasto aparato de controle com overlappingadministrativo. Os estados também se engajaramno processo de modernização administrativa como resultado final de que suas agências acabarampor ser bastante similares às federais na sua estru-tura organizacional. Os argumentos para essa con-vergência repousam no fato de que é mais fácilreceber ajuda técnica e recursos se os estados têma mesma estrutura organizacional que seus corres-pondentes federais.10

A coordenação do governo central de umplanejamento nacional é dificultada por tal over-lapping. Os Ministérios das Finanças, Educação,Saúde, Agricultura e Transportes têm máquinas es-taduais bem estabelecidas. Muitos programas naárea da agricultura, habitação e saúde passam a serde fato compartilhados entre níveis regionais enacionais. Políticos e administradores dos três ní-veis consultam-se de modo informal e negociam,mesmo quando um dos níveis tem autoridade legalno processo decisório. Assim existe uma grandecombinação de relações, embora na maioria delasacabem por convergir para o centro.

Uma comparação entre o Brasil e o Méxicopode ser esclarecedora em relação à questão dosrespectivos processos de centralização, do regio-nalismo, do papel no Congresso e do “insulamen-to burocrático” nos dois países. Ambos possuemvastos aparelhos burocrático-administrativos. Domesmo modo, o clientelismo de Estado assumeproporções gigantescas nos dois sistemas políticos.É similar em ambos os contextos políticos o esfor-ço do poder central em controlar organizaçõessociais e regionais ameaçadoras à sua autonomia,o que o levou a incorporar tais centros de poder

nas agências do Estado. Porém, uma das cruciaisdiferenças que explicam, pelo menos de modomais visível, a maior eficácia decisória do aparelhoestatal mexicano reside no fato de que a coorde-nação entre a burocracia e as forças regionais (efuncionais) é feita por um partido dominante, oPRI, na política eleitoral e parlamentar. No seuinterior, os conflitos são coordenados e articulados,e o Congresso mexicano, majoritariamente con-trolado por aquele partido, detém o papel de rati-ficador das decisões da burocracia central.11

No Brasil, a capacidade decisória estatal, dadoque os poderes regionais e funcionais não são con-trolados ou integrados por um só partido e sim poruma multiplicidade deles em acirrada competição,revela um quadro complexo de características frag-mentadoras. Por outro lado, no período aqui anali-sado, o poder Executivo brasileiro freqüentementenão detinha o controle da maioria parlamentar. Asalianças eleitorais destinadas a eleger o presidenteda República freqüentemente não se traduziam emmaiorias no Congresso. Com o crescimento de con-flitos de classe, especialmente no final do período,o confronto entre o poder Executivo e o poderLegislativo fragmentado partidariamente teve, comoé sabido, conseqüências nefastas para uma açãogovernamental mais eficaz.

O sistema político brasileiro, no período,caracterizado pela presença de um Executivodotado de vastos poderes, de um Congresso dota-do também de poderes não desprezíveis, mas queobedeciam a diferentes lógicas dos interesses re-gionais aí representados, torna compreensível oestabelecimento de processos como os que surgi-ram no início dos anos de 1960 com o acirra-mento de conflitos de classe: a paralisia decisóriae o surgimento de frentes parlamentares.

Naqueles anos, o processo de policy-makingfoi crescentemente caracterizado pelo imobilismo,por uma tendência a fazer remendos e a proverdecisões simbólicas em vez de ações positivas.12

Ao mesmo tempo emergiram várias “frentes par-lamentares”. Aglutinando facções estaduais dediversos partidos, essas frentes se destinavam asobrepujar no Congresso a crescente fragmenta-ção partidária parlamentar. Procurava-se por meiodelas erigir blocos de sustentação, ou de oposi-ção, à política executiva federal. A habilidade dogoverno para perseguir programas inovadores,

Page 28: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

34 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

para aprovar as chamadas “reformas de base” ou paracoordenar as agências estatais que poderiam exerceruma autonomia significativa em face de outros cen-tros de poder, aí incluídos os poderes regionais, per-maneceu limitada.

O dilema do governo brasileiro intensifi-cou-se no começo da década de 1960. Sem capa-cidade de mobilização, que fosse sustentada porpartidos nacionalmente representativos, foi leva-do de forma contínua a intensificar os apelospopulistas e carismáticos e, em momentos críti-cos, como em 1964, a coordenar as forças desustentação do governo através de comandospolíticos regionais e das forças militares ali alo-cadas. Os governos estaduais também se consti-tuíram em focos de aglutinação dos grupos deoposição ao governo federal.

Freqüentemente se subestima o significado alongo prazo da competição entre e no interior dosgrupos regionais da elite brasileira, com base, cer-tamente verdadeira, de que eles pouco ou nadadiferiam no que diz respeito a suas respectivasbases materiais e ideológicas. O fato é que tal frag-mentação teve impactos negativos sobre a capaci-dade decisória estatal; talvez ainda mais importan-te é o fato de que essa competição e fragmentaçãoregionais tiveram também efeitos descentralizan-tes, e menos autoritários, inibindo a formação deum partido que exclusivamente agisse como cor-reia de transmissão da burocracia federal.

A competição regional e a fragmentação docontrole social forçaram até mesmo os governosmilitares engajados num processo centralizador aadotarem uma legislação que acomodava as dife-rentes facções estaduais dentro do partido situa-cionista, por meio das sublegendas (Lamounier eMeneguello, 1986). A seleção dos governadorespelo regime militar teve por propósito garantir oentrosamento programático dos níveis federal eestadual. Pela escolha dos candidatos mais afina-dos com o programa de ação do governo federalficaria o presidente da República assegurado deque a concentração de esforços – nos dois níveisde governo – se faria de acordo com as priorida-des que fixava. Desejava-se, assim, extinguir aque-la área de conflito entre o governo central e osgovernos estaduais, criada pela diversidade deênfases administrativas. Entretanto, o compromis-so dos executivos estaduais praticamente esgota-

va-se na lealdade política ao regime. Fora daí osgovernadores continuaram a estabelecer seus pro-gramas de trabalho e a repetir as pressões e osapelos ao Executivo federal para obtenção derecursos. São conhecidas as análises no períodoque revelam as dificuldades encontradas pelosregimes militares para imprimir ao partido gover-namental (Arena) uma coordenação, à semelhan-ça do PRI mexicano, com as linhas tecnocráticasdas políticas públicas centrais. Tal característica éum aspecto digno de nota a respeito do regimemilitar-autoritário brasileiro.

O recente restabelecimento de eleições dire-tas acopladas às mesmas regras de funcionamentode eleições e de partidos, a permanência do “esta-do cartorial” e dos poderes regionais fazem ree-mergir os mesmos problemas nas relações entre oExecutivo e o Congresso. Durante a Nova Repúbli-ca têm sido constantes os momentos de paralisiadecisória e as tentativas de formar frentes legislati-vas que procuram sobrepujá-la, de modo a dotaro governo federal de alguma capacidade paraimplementar suas decisões. Não é inevitável que oEstado nacional consiga estabelecer ao longo dodesenvolvimento político sua predominância so-bre outras organizações políticas, e o que aqui nosinteressa, sobre os focos de poder regional.Quando é assim, nem o Estado desaparece nemincorre continuadamente nos altos custos necessá-rios para combater aqueles que efetivamente fa-zem as regras nessa ou naquela esfera. Liderançascapazes, expertise nos ministérios, máquinas com-plexas e vastos recursos são bases necessárias,mas nem sempre suficientes para que o Estadoimplemente suas políticas. Tampouco para queseus resultados cheguem à população segundo osobjetivos iniciais, ou ainda para que as políticassejam acatadas pela população.

A fragmentação do comando sobre o con-trole social no Brasil não pode ser vista comosinônimo de uma sociedade civil organizada eatuante, condição necessária tanto para um regi-me mais pluralista e democrático como para umEstado forte nos aspectos decisórios ou comoguia para a mudança social. Estamos aqui em facede uma fragmentação que é comandada sobretu-do por poderes estaduais, que dificultam a orga-nização de canais mais institucionalizados para arepresentação daquelas forças organizadas da so-

Page 29: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 35

ciedade. Parece-me evidente também que a frag-mentação do controle social nos moldes brasilei-ros trabalha em favor do Estado nacional comoorganização de dominação de caráter conserva-dor. Afinal aquele sistema se constitui em obstá-culo ao desenvolvimento de quadros de referên-cias sociais, de laços pessoais e de formação deidentidades coletivas como bases de fortes classessociais que poderiam contestar seu rumo.

Não obstante, as autoridades federais têmnecessariamente que resistir às forças centrífugasde modo a garantir a sobrevivência do Estado esua própria sobrevivência como grupo político.Ante a contínua fragmentação do controle social,a conseqüente carência de capacidades mobiliza-doras e a ausência de um partido inteiramentearticulado, a burocracia federal e as autoridadescentrais são levadas a seguir padrões de inércia ede acomodação. São padrões que recobrem aação executiva de “estilos” ou características queacabam por fragilizar a capacidade do Estado. Sãoconhecidas na literatura tais “políticas de sobrevi-vência” do Estado: nomeações, patronagem, cor-rupção e cooptação. Os governantes são levadosa empregar estratagemas, a fazer e refazer coali-zões e a equilibrar centros de poder usandorecursos do Estado para reforçar a distribuição depoder e riqueza existentes.13 Tais mecanismos po-dem até encorajar o crescimento econômico, masnão servem para criar um Estado mais capaz eautônomo.

Os poderes de nomeação e remoção sãoimportantes instrumentos de prevenção contraconglomerados de poder centrípetos, formadospor agências estatais, partidos políticos, ou blocosregionais. Apesar da discussão perpétua sobre adicotomia entre administração e política, poucotem sido feito a respeito de uma área importanteonde as duas se encontram, e onde as forças re-gionais exercem grande poder: a política denomeação de altos diretores no aparelho admi-nistrativo no Brasil. “Os acontecimentos significa-tivos numa política elitista como a do Brasil,numa simplificação grosseira, poderiam ser redu-zidos a três: golpes, eleições e nomeações”, afir-ma Schneider em seu estudo sobre a burocraciaestatal brasileira (1994).

O poder de nomeação faz com que no apa-relho do Estado haja um jogo de cadeiras, uma cir-

culação forçada das elites estatais, para enfrentar operigo de coalizão entre elas.14 A patronagem é uti-lizada do mesmo modo não somente para organi-zar apoios, mas também para desativar organiza-ções com poder emergentes, ou centros de poderdentro do Estado. Em tal contexto, similar ao dossistemas políticos patrimoniais, os laços pessoais,as origens regionais comuns, as conexões escola-res são variáveis fundamentais na escolha dos ocu-pantes do aparelho do Estado. De fato, nos paísesonde a estrutura da sociedade limita a habilidadedos líderes para gerar forças centrípetas, a lealda-de pessoal se torna um meio poderoso para miti-gar forças centrífugas. A cooptação daqueles quepodem se opor e desenvolver centros de poderameaçadores à organização estatal constitui umoutro componente da acomodação entre o podercentral e as forças centrífugas.15 A corrupção (viaprerrogativas, tarifas, subsídios, gastos governa-mentais) pode ser tolerada, quando não incentiva-da pelo governo da União, em parte porque esta éuma fonte poderosa de controle social.

Em resumo, as autoridades estatais erodemseus próprios instrumentos de transformaçãosocial e mobilização política. As prerrogativas doEstado ficam atadas aos mesmos moldes sob osquais os Estados patrimonialistas são limitados.Diferentemente, contudo, do clássico Estado pa-trimonialista, no Brasil essas limitações desenvol-veram-se num contexto de um crescimento dignode nota em tamanho e complexidade das organi-zações estatais que permeiam todas as partes dasociedade. Esse formato e características do Esta-do brasileiro receberam de Simon Schwartzman otítulo de “autoritário patrimonialista ou neo-pa-trimonialista”.

Julgamos que seja possível dizer que a cons-trução do Estado no Brasil é um processo aindaem andamento. São evidentes ainda hoje as limi-tações do Estado brasileiro para extrair recursosou para regular o comportamento dos cidadãos.Elas vêm, paradoxalmente, lado a lado com ademonstração de uma grande capacidade em ter-mos de penetração social, mudando a natureza davida institucional mesmo no longínquo Interior.Não há dúvida de que, em todos os tamanhos eformas, as instituições estatais estabeleceram umapresença permanente na população, resultandoem transferências de rendas, na mudança de pa-

Page 30: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

36 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

drões de comportamento e muito mais. Um olhar,porém, mais atento revela que freqüentementeessas agências operam sob princípios radicalmen-te diferentes daqueles concebidos pelos seus fun-dadores e planejadores nas capitais federais. Aimpossibilidade, ou desinteresse, do governo cen-tral para se impor sobre as elites regionais e aspráticas exercidas pelos governantes para a sobre-vivência da organização estatal acabam por erodira própria eficácia do Estado.

O Estado brasileiro seguiu uma curva ascen-dente em relação à sua capacidade autônoma pa-ra tomar decisões, sobretudo as referentes à polí-tica econômica. Nesse processo, entretanto, asforças regionais sempre limitaram seu poder infra-estrutural. Tanto para implementar decisões comopara estabelecer mecanismos solidamente institu-cionalizados de representação. O conjunto de im-passes que a Constituição de 1988 não chegou aresolver continua definindo a agenda institucionaldo momento presente em relação às capacidadesdo poder central e ao padrão de relacionamentoentre União e estados.

BIBLIOGRAFIA

BAILEY, John. (1992), Governing México: the sta-tecraft of crisis management. Londres,McMillan.

BENEVIDES, Maria Vitória de Mesquitra. (1981), AUDN e o udenismo: ambigüidades do libe-ralismo brasileiro, 1945-1965. Rio deJaneiro, Paz e Terra.

CAMARGO, Aspásia. (1981), “A questão agrária:crise de poder e reformas de base (1930-1964)”, in Boris Fausto (org.), III O Brasilrepublicano nº 3, Sociedade e Política1930-1964, São Paulo, Difel.

CUNHA, Mario Wagner Vieira da. (1963), O siste-ma administrativo brasileiro: 1930-1950.Rio de Janeiro, Ministério da Educação eCultura.

DALAND, Robert T. (1967), Brazilian planning. ChapelHill, University of North Carolina Press.

_________. (1981), Exploring Brazilian bureau-cracy: performance and pathology.

Washington D. C., University Press ofAmerica.

DINIZ, Eli. (1978), Empresário, estado e capitalis-mo no Brasil: 1930-1945. Rio de Janeiro,Paz e Terra.

DRAIBE, Sonia. (1985), Rumos e metamorfoses:Estado e industrialização no Brasil, 1930-1964. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

DUARTE, Nestor. (1939), A ordem privada e aorganização política nacional. São Paulo,Cia. Editora Nacional.

DULCI, Otavio Soares. (1982), “Minas Gerais: con-tinuidade e mudança”. Revista de Culturae Política, 7.

_________. (1984), “As elites mineiras e a conci-liação: a mineiridade como ideologia”.Ciências Sociais Hoje, 1984: 7-32, SãoPaulo, Cortês/Anpocs.

FAORO, Raymundo. (1958), Os donos do poder.Porto Alegre, Globo.

FLEISCHER, David (org.). (1981), Os partidos noBrasil, Brasília, Editora da UnB (col.Cadernos da UnB).

FRANCO, Virgílio de Mello. (1946), A campanhada UDN. Rio de Janeiro, Zélio Valverde.

GAMBINI, Roberto. (1968), Continuidade doEstado Novo (mimeo.).

GRAHAM, Lawrence S. (1968), Civil servicereform in Brazil. Austin, University ofTexas Press.

HAGGARD, Stephen. (1990), Pathways from theperifery: the politics of growth in the newlyindustrialized countries. Ithaca, CornellUniversity Press.

HAGGARD, Stephen & KAUFMAN, Robert (eds.).(1922), The politics of economic adjustment.Princeton, Princeton University Press.

HAGOPIAN, Fances. (1986), The politics of oligar-chy: the persistence of traditional elites incontemporary Brazil. PhD., diss., M.I.T.

HIPPOLITO, Lucia. (1985), De raposas a reformis-tas: o PSD e a experiência democrática

Page 31: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 37

brasileira, 1945-1964. Rio de Janeiro, Paze Terra.

HIRSCHMAN, Albert. (1967), Developments projectsobserved. Washington D.C., BrookingsInstitution.

LAMOUNIER, Bolivar & MENEGUELLO, Rachel.(1986), Partidos políticos e consolidaçãodemocrática: o caso brasileiro. São Paulo,Brasiliense.

LAVAREDA, Antônio. (1991), A democracia nasurnas: o processo partidário eleitoral bra-sileiro. Rio de Janeiro, Rio Fundo/Editorado Iuperj.

LEAL, Victor Nunes. (1949), Coronelismo, enxadae voto. Rio de Janeiro, Forense.

LEFF, Nathaniel. (1968), Economic policy-makingand development in Brazil, 1947-1964.Nova York, John Wiley.

LIMA JR., Olavo Brasil de. (1981), O sistema par-tidário brasileiro, 1945-1962, in DavidFleischer (org.), Os partidos no Brasil,Brasília, Editora da UnB (col. Cadernos daUnB).

_________. (1983), Partidos políticos brasileiros: aexperiência federal e regional, 1945-1964. Rio de Janeiro, Graal.

LOWENSTEIN, Karl. (1944), Brazil under Vargas.Nova York, Mac Millan.

LOWI, Theodore J. (1964), “American business,public policy, case studies and politicaltheory”. World Politics, XVI, jul.

_________. (1969), The end of liberalism. NovaYork, W.W.Norton & Co.

MACHADO, Bernardo Mata. (1987), “O poderpolítico em Minas Gerais: estrutura e for-mação”. Análise e Conjuntura, 2 (1), jan.-abr., Fundação Joaquim Nabuco.

MANN, Michael. (1986), “The autonomous powerof State: its origins, mechanisms andresults”, in John Hall (ed.), States in histo-ry, Londres, Basil Blackwell.

MARTINS, Luciano. (1976), Pouvoir et développementéconomique au Brésil. Paris, Anthropos.

MAYHEW, David R. (1986), Placing parties inAmerican politics. Princeton, PrincetonUniversity Press.

McDONOUGH, Peter. (1981), Power and ideologyin Brazil. Princeton, Princeton UniversityPress.

MEDEIROS, Antonio Carlos. (1986), Politics andintergovernamental relations in Brazil(1964-1982). Nova York/Londres, GarlandPublishing.

MIGDAL, Joel. (1988), Strong societies and weakStates: State society relations and Statecapabilities in the Third World. Princeton,Princeton University Press.

NORTH, Douglass. (1990), Institutions, institutio-nal change and economic performance.Nova York, Cambridge University Press.

NUNES, Edson O. (1978), “Legislativo, política erecrutamento de elites no Brasil”. Dados, 17.

PANEBIANCO, Angelo. (1988), Political parties:organization and power. Cambridge,Cambridge University Press.

PICALUGA, Isabel Fontenelle. (1980), Partidospolíticos e classes sociais: a UDN naGuanabara. Petrópolis, Vozes.

SALLUM JR., Brasílio & KUGELMAS, Eduardo.(1993), “O Leviatã acorrentado: a crisebrasileira dos anos 80”, in Lourdes Sola(org.), Estado, mercado e democracia, Riode Janeiro, Paz e Terra.

SANTOS, Wanderley G. dos. (1974), The calculusof conflit: impasse in Brazilian politics.PhD diss., Stanford University.

SCHNEIDER, Ben. (1994), Burocracia pública epolítica industrial no Brasil. São Paulo,Sumaré.

SCHWARTZMAN, Simon. (1970), “Representaçãoe cooptação política no Brasil”. Dados, 7.

_________. (1971), “Veinte años de democraciarepresentativa em Brasil, 1945-1964”.Revista Latinoamericana de CiênciaPolítica, II (1), abr.

Page 32: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

38 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

_________. (1975), São Paulo e o Estado nacional.São Paulo, Difel.

SKOWRONEK, Stephen. (1982), Building a newAmerican State. Nova York, CambridgeUniversity Press.

SOARES, Glaucio A. D. (1971), “El sistema electo-ral y la representación de los grupossociales em Brasil, 1945-1962”. RevistaLatinoamericana de Ciência Política, II(1), abr.

_________. (1974), Sociedade e política no Brasil.São Paulo, Difel.

SOUZA, Maria do Carmo C. Campello de. (1966),“O processo político-partidário daPrimeira República”, in Carlos GuilhermeMota (org.), Brasil em perspectiva, SãoPaulo, Difel.

_________. (1976), Estado e partidos políticos noBrasil. São Paulo, Alfa-Omega.

STORY, Dale. (1986), Industry, the State andpublic policy in Mexico. Austin, Universityof Texas Press.

TENDLER, Judin. (1968), Eletric power in Brazil:entrepreneurship in the public sector.Cambridge, Harvard University Press.

TORRES, Alberto. (1933), A organização nacio-nal. São Paulo, Cia. Editora Nacional.

VIANNA, FRANCISCO JOSÉ DE OLIVEIRA. (1952[1920]), Populações Meridionais do Brasil.Rio de Janeiro, José Olympio Editora, vol.1.

WEBER, Max. (1958), Politics as a vocation, in H.H. Gerth e C. Wright Mills (eds.), FromMax Weber: essays in sociology, NovaYork, Oxford University Press.

WIRTH, John. (1970), The politics of Braziliandevelopment, 1930-1954. California,Stanford University Press.

Notas

1 As capacidades do Estado incluem os poderes parapenetrar a sociedade, regular as relações sociais,

extrair recursos e apropriar-se ou usar os recursosde modos específicos. Todos os estados têm, emalguns momentos, suas capacidades limitadas, sejaem relação a determinados grupos, seja em relaçãoa determinadas decisões.

2 Em vários trabalhos que tratam da questão do poderde Estado, a conceituação de um tipo de estruturada sociedade denominado weblike (teia de aranha)em oposição a um tipo piramidal e central é impor-tante para entendermos as capacidades do Estado.Este tipo de sociedade, e a brasileira seria umexemplo, é definido sobretudo pela fragmentaçãodo controle social. Em sociedades assim estrutura-das, o Estado teve e tem que enfrentar barreirasformidáveis para conseguir uma eficácia em suasdecisões ou para ver suas políticas implementadas.A existência de numerosas organizações sociaisque exercem efetivamente o controle social temum efeito negativo sobre as possibilidades de opoder central expandir grandemente suas capaci-dades. As questões mais importantes em muitassociedades são, para Joel Migdal, de saber se oEstado será capaz de desalojar outras organizaçõesna sociedade que fazem regras contra os desejos eos objetivos do poder público central.

3 Historiadores institucionais têm procurado traçarcontinuidades na política e no processo de gover-nar e enfatizado etapas e seqüências no desenvol-vimento institucional. Quaisquer que sejam os fato-res que afetam as formas das instituições, afirmam,elas têm robustez e inércia. Assim, as instituiçõesencorpam trajetórias históricas e turning points. Ahistória importa porque é path dependent, isto é, oque vem antes, mesmo se em certo sentido foi aci-dental, condiciona o que vem depois. Indivíduos“escolhem” suas instituições, e suas escolhas influen-ciam as regras sob as quais seus sucessores exercemsuas opções. Douglas North (1990) ilustrou esseponto ao traçar as experiências pós-coloniais daAmérica do Norte e do Sul com base em seus res-pectivos legados coloniais.

4 Mayhew (1986) investiga a questão relativa àsorganizações baseadas em patronagem desde 1880nos Estados Unidos e sua importância na condutados processos políticos. Ele faz uma análise sobrea política partidária de cada estado norte-america-no, traçando os antecedentes históricos das estru-turas locais dos partidos e procura estabelecer co-nexões entre as organizações baseadas empatronagem e o tamanho do setor público.

Page 33: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 39

5 O artigo prescreve: “O número de deputados seráfixado por lei, em proporção que não exceda umpara cada cento e cinqüenta mil habitantes atévinte deputados, e além desse limite, um para cadaduzentos e cinqüenta mil habitantes. Parágrafo 1º:Cada território terá um deputado, e será de setedeputados o número mínimo por Estado e peloDistrito Federal. Parágrafo 2º: Não poderá ser redu-zida a representação já fixada”.

6 O parágrafo 1º do artigo 23 da Constituição de1934 é praticamente idêntico ao artigo 58 daConstituição de 1946. Igualmente, a representaçãona Assembléia Constituinte de 1945 seguia os pre-ceitos do decreto-lei nº 7.586 de 28 de maio de1945 com resultados semelhantes aos do artigo 58da Constituição de 1946.

7 É conhecida a desobediência de vários estados àdireção nacional do PSD de apoiar a candidaturade Cristiano Machado nas eleições presidenciais de1950. Também é amplamente documentada a re-beldia de facções estaduais da UDN contra a candi-datura de Jânio Quadros, lançada pelo partido paraa presidência em 1960.

8 Weber (1958), ao contrastar a experiência entre orga-nizações partidárias alemãs e norte-americanas doséculo XIX e começo do século XX, notou que oPartido Social Democrático Alemão antes da PrimeiraGuerra era formado por um “grupo de notáveis” quecareciam de acesso ao poder governamental e outrosprerrequisitos e que fundamentavam sua coesão numaideologia compartilhada. O partido, sobretudo, opera-va num contexto onde experts treinados regiam as ins-tituições administrativas governamentais. Esse partidotinha pouco em comum com os partidos norte-ameri-canos, exceto a massa que os seguia. O boss partidá-rio dos Estados Unidos era “um empresário capita-lista profissional o qual por seu próprio risco e lavraarregimentava votos”. No Brasil, no período de 1945a 1964, os partidos também são liderados por “gru-pos de notáveis”. Porém, suas organizações não sebaseavam no tipo de coesão provinda de uma ideo-logia compartilhada. Tampouco as lideranças parti-dárias, embora “empresários políticos” na arregimen-tação de votos, eram similares aos norte-americanos.Os riscos financeiros privados que assumiam ossimilares brasileiros eram mínimos, visto que osincentivos materiais utilizados provinham majorita-riamente dos recursos estatais.

9 Vários autores têm chamado tais agências estataisde islands of rationality e pockets of eficiency nointerior de um mar de clientelismo. Ver a esse res-

peito, Albert Hirschman (1967), Stephen Haggard eRobert Kaufman (1922), S. Haggard (1990) e RobertDaland (1981).

10 Um dos primeiros estados a se engajar numa refor-ma administrativa no período foi São Paulo com areforma realizada por Lucas Garcez no período de1952 a 1954, embora possa se dizer que o movi-mento para a criação de agências descentralizadase para a expansão do governo estadual date já daRepública Velha. Sobre relações intergovernamen-tais no Brasil, ver Medeiros (1986).

11 O presidencialismo mexicano baseado na cidadedo México com um partido hegemônico pôs fim àsconspirações militares e legislativas, às regras divisó-rias dos chefes regionais e outros caudillos.Entretanto, a suplantação das forças centrífugas mos-trou-se crucial para garantir a estabilidade, mas nãopara garantir a democracia mexicana (Dale Story,1986). Para uma análise da centralização mexicana,ver Bailey (1992).

12 Para uma análise rigorosa da crise institucional queconduziu ao golpe de 1964, ver Santos (1974).

13 As manobras das lideranças do Estado não devemser confundidas com a habilidade em dominar oprocesso de estabelecimento de normas para asociedade ou mesmo ser identificada com a pre-sença de uma autonomia estatal efetiva. No Brasil,o controle da “incerteza” é uma das principais moti-vações que tornam as políticas de nomeação, patro-nagem e cooptação tão intensas e pessoais. Os for-tes laços pessoais que permeiam a administraçãobrasileira são menos vestígios do Brasil tradicionaldo que respostas perfeitamente racionais àquelaincerteza. A burocracia brasileira sofre de muitasdas patologias que atacam outras administrações,como a mexicana: controles formais fracos, carrei-ras sujeitas a altos riscos, alta rotatividade, curtapermanência no cargo, que fazem com que a con-fiança se torne um elemento crucial na carreirapública. O uso da lealdade como meio de oposi-ção às forças centrífugas de poder tem tido, comoé conhecido, resultados extremamente prejudiciaissobre as capacidades das agências estatais. Taispoderes de nomeação não são reservados somen-te para os inimigos ou amigos políticos; eles aca-bam por se constituir também num mecanismo deenfraquecimento deliberado dos braços do Estadode modo a assegurar o mandato da liderança notopo do governo central. Este se protege e sobre-vive usando sua capacidade de nomear e destituir.Sobre o México, ver Camargo (1981).

Page 34: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

40 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

14 Tal circulação das elites não segue o paradigma dePareto, ou seja, o tipo de mobilidade, oportunida-de e incorporação de elementos da classe baixaque levaria à estabilidade institucional. No Brasil,antes o que se dá é uma rotação de indivíduos deuma mesma classe – a classe média.

15 Com freqüência, um método é o de incorporarorganizações do capital, do trabalho e dos poderesregionais na organização do próprio Estado ou eminstituições aliadas a ele. A atração pelo capitalis-mo de Estado baseia-se bastante no fato de quemuitos líderes governamentais sentem que pormeio da nacionalização podem erodir o tremendocontrole social engendrado pelo capital e suasregras do jogo.

Page 35: FEDERALISMO NO BRASIL: aspectos político-institucionais (1930 … · 2007-04-27 · FEDERALISMO NO BRASIL: ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS 9 1950 até a crise institucional do

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 219

FEDERALISMO NO BRASIL:ASPECTOS POLÍTICO-INSTITUCIONAIS(1930-1964)

Maria do Carmo Campellode Souza

O objetivo do artigo é mostrara relevância do conceito de cliva-gens eleitorais para o entendimentoda política brasileira. Seu ponto departida é a consideração de quefederalismo e regionalismo têm sidosubestimados como conceitos analí-ticos, em parte pela tendência doscientistas sociais de fazer a análisepolítica com base nas divisões declasses ou nas relações formais entreas instituições. Sem negar a impor-tância dessas abordagens, e sem pre-tender substituí-las, o texto insisteem que as populações e as forçaseconômicas e políticas estão situadasgeograficamente e que a realidadedos interesses territoriais comuns éincontornável.

FEDERALISM IN BRAZIL; POLITI-CAL-INSTITUTIONAL ASPECTS(1930 TO 1964)

Maria do Carmo Campellode Souza

The article aims at showing the rel-evance of the concept of electoralcleavages in order to understandBrazilian politics. The starting pointis the consideration that federalismand regionalism have been underes-timated as analytical concepts partial-ly due to the tendency of social sci-entists perform political analysisbased on either class divisions or for-mal relations among institutions.Neither denying the importance ofsuch approaches nor thinking ofreplacing them, the text insists thatpopulations, as well as economicaland political forces, are geographical-ly situated and the reality of commonterritorial interests is unavoidable.

FÉDÉRALISME AU BRÉSIL:ASPECTS POLITIQUES ETINSTITUTIONNELS(1930-1964)

Maria do Carmo Campellode Souza

L’objectif de cet article et dedémontrer l’importance du conceptde clivages électoraux pour la com-préhension de la politique brésilien-ne. Nous considérons, comme pointde départ, que le fédéralisme et lerégionalisme ont été sous-estimésen tant que concepts analytiques,en partie par la tendance des scien-tistes sociaux de procéder à l’analy-se politique en se fondant sur desdivisions de classes ou sur les rela-tions formelles entre les institutions.Sans nier l’importance de ces abor-dages et sans prétendre les substi-tuer, le texte insiste sur le fait queles populations et les forces écono-miques et politiques sont situéesgéografiquement et que la réalitédes intérêt territoriaux communs estincontournable.