formação social histórica e política do brasil

183
FORMAÇÃO SOCIAL, HISTÓRICA E POLÍTICA DO BRASIL Prof. Arnaldo Haas Júnior 2013

Upload: others

Post on 16-Oct-2021

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

Formação Social, HiStórica e Política do BraSil

Prof. Arnaldo Haas Júnior

2013

Page 2: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

Copyright © UNIASSELVI 2013

Elaboração:

Prof. Arnaldo Haas Júnior

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

361.3H112f Haas Júnior, Arnaldo Formação social, histórica e política do Brasil / Arnaldo Haas Júnior. Indaial : Uniasselvi, 2013. 175 p. : il

ISBN 978-85-7830-773-8

I. Formação social – Brasil. 1. Centro Universitário Leonardo da Vinci. 2. Haas Júnior, Arnaldo.

Impresso por:

Page 3: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

III

aPreSentação

Caro(a) acadêmico(a)!

A partir desse momento iniciaremos os estudos relativos à Formação Social, Histórica e Política do Brasil. Por razões que lhe serão apresentadas no início da primeira unidade deste caderno, associaremos a Formação Social, Histórica e Política do Brasil aos delineamentos da República Brasileira. To-mando por referência eventos ligados ao advento da República e ao processo de afirmação desse regime político, nosso olhar será dirigido à compreensão de nuances das transformações políticas, econômicas e sociais ocorridas em nosso país nas últimas décadas do século XIX até o início do século XXI.

Uma vez que não nos é dada a possibilidade de recuperação ou res-gate de “toda a história”, faremos uma reflexão sobre temáticas consagra-das pela historiografia brasileira que podem contribuir com a sua formação como profissional da área de Serviço Social. Portanto, esta disciplina aborda a compreensão dos significados mais visíveis não apenas de questões emi-nentemente políticas, mas também das estreitas e indissociáveis ligações que tais questões nutrem em relação a outros aspectos da sociedade brasileira. Nosso objetivo não será empreender uma análise detalhada sobre cada um dos eventos citados, pois, dada a amplitude do recorte temporal, lançaremos sobre ele apenas um olhar panorâmico.

Para que seus estudos possam ser conduzidos de maneira agradável e para que a produção de significados seja efetivada, a divisão deste caderno pedagógico em três unidades, para fins didáticos, foi pautada não apenas em uma perspectiva cronológica, atitude comum às narrativas historiográficas, mas também na eleição de conceitos-chave, a partir dos quais você poderá ampliar seu entendimento sobre as temáticas analisadas.

Na primeira unidade, “O Advento da República no Brasil”, você to-mará conhecimento da transição da Monarquia à República, antecedida pela e em grande medida tributária da abolição legal do trabalho escravo ocorrida em 1888, e dos interesses políticos que deram sustentação ao novo regime. Nesta unidade você também será apresentado a aspectos dos movimentos sociais que eclodiram na Primeira República e do processo de articulação ide-ológica e prática da luta de classes, decorrente da paulatina emergência de novos grupos sociais no espaço urbano industrial.

Na segunda unidade, “Novos arranjos políticos: da Revolução de 1930 ao governo de ‘Jango’”, o vetor do texto será dado pela constatação da forte influência exercida por Getúlio Vargas no quadro político brasileiro. Da Revolução de 1930, passando pela instauração do Estado Novo, pelas políti-

Page 4: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

IV

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano,

há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos!

cas populistas e pelos agitados anos de 1950, você seguirá um itinerário que o conduzirá às vésperas da instauração do regime ditatorial militar, a “Repú-blica Fardada”.

A terceira e última unidade, “Do Regime Militar à Res Publica”, apre-senta, inicialmente, um conjunto de considerações sobre o período de go-verno militar que vigorou no país entre 1964 e 1985, e sobre os movimentos sociais que lhe fizeram oposição. A parte final desta unidade suscita um es-tudo sobre o processo de redemocratização experimentado pela sociedade brasileira ao longo da década de 1980, assim como sobre políticas de governo e de Estado relativas ao plano econômico e social realizadas durante os anos de 1990 e primeiros anos deste novo século.

Bons estudos!

UNI

Page 5: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

V

Page 6: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

VI

Page 7: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

VII

Sumário

UNIDADE 1 – O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL ........................................................ 1

TÓPICO 1 – A TRANSIÇÃO ORQUESTRADA: CONVENIÊNCIAS DO REGIME REPUBLICANO ...................................................................................................................................... 31 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 32 OS INTERESSES E AS PROPOSTAS EM EVIDÊNCIA .............................................................. 4LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 8RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 10AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 11

TÓPICO 2 – PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS” ...................... 131 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 132 QUE REPÚBLICA? QUE REGIME ADMINISTRATIVO? .......................................................... 133 REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS: A ARTICULAÇÃO E OS MOVIMENTOS DE CONTESTAÇÃO ..................................................................................................................................... 16LEITURA COMPLEMENTAR I ........................................................................................................... 22LEITURA COMPLEMENTAR II .......................................................................................................... 24RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 25AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 26

TÓPICO 3 – TRABALHADORES NA PRIMEIRA REPÚBLICA: CONDIÇÕES À “LUTA DE CLASSES” ............................................................................................................................ 271 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 272 ANTECEDENTES: RAÍZES DA INDÚSTRIA NACIONAL ....................................................... 283 A ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHADORES E A LUTA DE CLASSES ............................... 30LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 33RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 35AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 36

UNIDADE 2 – NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO” .................................................................................................................... 37

TÓPICO 1 – A REVOLUÇÃO DE 1930: GETÚLIO VARGAS NO PODER ................................. 391 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 392 A DÉCADA DE 1920: RAÍZES DE UM IMPASSE NÃO NEGOCIÁVEL ................................. 403 A ALIANÇA LIBERAL E A “REVOLUÇÃO” DE 1930 ................................................................. 424 PRIMEIROS ANOS: OPOSIÇÃO, CONFLITOS E O CAMINHO RUMO AO ESTADO NOVO ....................................................................................................................................................... 47LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 53RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 58AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 60

TÓPICO 2 – O ESTADO NOVO E SEUS DESDOBRAMENTOS ................................................ 611 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 612 O PLANO COHEN .............................................................................................................................. 613 O ESTADO NOVO .............................................................................................................................. 62

Page 8: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

VIII

LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 71RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 76AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 77

TÓPICO 3 – A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMOCRACIA .............. 791 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 792 A PERSONALIZAÇÃO DO PODER: O POPULISMO ................................................................ 803 O GOVERNO DUTRA E O RETORNO DE VARGAS ................................................................. 814 DE KUBITSCHEK A JOÃO GOULART ......................................................................................... 88LEITURA COMPLEMENTAR I ........................................................................................................... 96LEITURA COMPLEMENTAR II .......................................................................................................... 99RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 103AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 106

UNIDADE 3 – DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA .................................................... 107

TÓPICO 1 – INSTAURANDO A NOVA ORDEM: OS MILITARES NO PODER .................... 1091 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 1092 O GOLPE E OS GOVERNOS AUTORITÁRIOS .......................................................................... 1103 OS ATOS INSTITUCIONAIS E OUTRAS MEDIDAS AUTORITÁRIAS ............................... 114LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 116RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 120AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 121

TÓPICO 2 – O ESGOTAMENTO DO MODELO DE DESENVOLVIMENTO .......................... 1231 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 1232 A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA ..................................................................................... 1243 O PLANEJAMENTO ECONÔMICO ............................................................................................... 1254 DO MILAGRE ECONÔMICO À CRISE FINAL ........................................................................... 126LEITURA COMPLEMENTAR I ........................................................................................................... 130LEITURA COMPLEMENTAR II .......................................................................................................... 131RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 136AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 137

TÓPICO 3 – A MOBILIZAÇÃO POPULAR, A TRANSIÇÃO E A NOVA REPÚBLICA ......... 1391 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 1392 A MOBILIZAÇÃO POPULAR .......................................................................................................... 1393 A TRANSIÇÃO .................................................................................................................................... 1424 A NOVA REPÚBLICA ......................................................................................................................... 143LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 149RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 152AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 155

TÓPICO 4 – DEMOCRACIA, AFINAL, PARA QUEM? ................................................................. 1551 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 1552 O REGIME POLÍTICO PÓS-DITADURA ...................................................................................... 1553 OS “PACOTES” DE ESTABILIZAÇÃO ECONÔMICA .............................................................. 1574 O PLANO REAL E A ONDA NEOLIBERAL DE FHC .................................................................. 159LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 164RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 166AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 167REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................ 169

Page 9: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

1

UNIDADE 1

O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir desta unidade você será capaz de:

• compreender as circunstâncias nas quais o regime político republicano foi implantado no Brasil;

• analisar aspectos do conjunto de interesses dos grupos políticos envol-vidos na implantação da República, assim como daqueles que surgiram entre os anos de 1889 e 1930;

• refletir sobre alguns aspectos dos movimentos sociais na Primeira Repú-blica;

• identificar as condições nas quais a luta de classes encontrou projeção no espaço urbano industrial na Primeira República.

Essa unidade está organizada em três tópicos. Em cada um deles você encontrará dicas, textos complementares, observações e atividades que lhe darão uma maior compreensão dos temas a serem abordados.

TÓPICO 1 – A TRANSIÇÃO ORQUESTRADA: CONVENIÊNCIAS DO REGIME REPUBLICANO

TÓPICO 2 – PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS”

TÓPICO 3 – TRABALHADORES NA PRIMEIRA REPÚBLICA: CONDIÇÕES À “LUTA DE CLASSES”

Page 10: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

2

Page 11: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

3

TÓPICO 1UNIDADE 1

A TRANSIÇÃO ORQUESTRADA:

CONVENIÊNCIAS DO REGIME

REPUBLICANO

1 INTRODUÇÃO

Resultado de uma convenção criada na Europa do século XIX, momento em que a História se constituía como disciplina, ganhava projeção institucional e aspirava à cientificidade a “História Contemporânea”, que haveria tido seu marco inaugural em 1789, ano de importantes eventos políticos e sociais responsáveis pela instauração da Revolução Francesa. Segundo esta convenção, com o perdão da redundância, seríamos “contemporâneos de uma História Contemporânea”.

Não há como negar que a Revolução Francesa desencadeou eventos com projeções maiores do que aquelas restritas ao continente europeu, mas, em se tratando do nosso país, pensar a existência de uma “História Política do Brasil Contemporâneo” é uma atitude que nos remete a um recorte temporal diferenciado, principalmente porque, do ponto de vista político, a “História Contemporânea” brasileira ganha maior significado no espectro do regime republicano.

Instaurada em 15 de novembro de 1889, um século após o início da Revolução Francesa, a República não significou a materialização de um projeto político e administrativo para o país e para sua população, mas uma via conciliatória para interesses díspares de uma elite política que não mais se adequava ao regime monárquico. A confirmação dessa tese pode ser encontrada, por exemplo, na falta de respaldo popular ao ideário republicano, situação que só teve par na absoluta insipiência da maneira como a carcomida monarquia foi defendida nos dias seguintes à proclamação da República. Por outro lado, os rumos que o novo regime tomou até os anos trinta do século XX são testemunhos de peso considerável. Senão vejamos.

Page 12: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

4

2 OS INTERESSES E AS PROPOSTAS EM EVIDÊNCIA

Por maiores que sejam as discrepâncias entre os trabalhos de historiografia que discorrem sobre a transição da Monarquia à República, podemos indicar, sem maiores problemas, a existência de alguns pontos de convergências nas explicações que estes dão a ler. Em linhas gerais,

[...] Da mesma forma que para o fim da escravidão, em geral, para se explicar a Proclamação da República (15 de novembro de 1889) recorre-se às transformações econômico-sociais por que passaria o país no final do século. Assim, teríamos a decadência das oligarquias tradicionais (leia-se, em especial, a do Vale do Paraíba), a imigração e o definhamento da escravidão, fenômenos que levariam ao aprofundamento das relações capitalistas no campo, o processo de industrialização e a urbanização. No interior deste ambiente, encontraríamos o crescimento dos Partidos Republicanos, a campanha pelo federalismo frente à centralização monárquica, a penetração das ideias positivistas no exército e o aguçamento da chamada Questão Militar. Caberia aos militares o ato de 15 de novembro de 1889 e seriam eles os primeiros presidentes, ficando no poder até 1894. (LINHARES, 1990, p. 187, grifo nosso).

Individualmente, todas as questões em negrito na citação anterior mereceriam um olhar mais atento e uma análise específica. Contudo, interessa-nos aqui entender a contribuição que cada uma delas deu ao processo de instauração da República. Portanto, vamos por partes, começando pela última delas: a Questão Militar.

Segundo uma expressão bastante conhecida entre os historiadores e cientistas sociais, enunciada por Aristides Lobo, o povo teria assistido à queda da Monarquia “bestializado, atônito, sem saber o que significava”. O fato é que, embora a existência de partidos republicanos fosse constatada desde 1870, o ato inaugural da República não foi obra de uma articulação política entre civis, mas um “evento até certo ponto misterioso para os que dele não participaram diretamente, ou seja, para os que não pertenciam ao seleto grupo de militares conspiradores”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 141).

Ao longo da segunda metade do século XIX, principalmente após o término da Guerra do Paraguai (1864-1870), as relações entre o governo imperial e o exército não eram das melhores. Nos meios militares havia um profundo ressentimento em relação ao absoluto descaso com que o governo tratava o exército. A falta de investimentos, tanto em infraestrutura quanto em contingente e treinamento, era uma das razões para o fato de o exército brasileiro viver em estado precário. Essa situação, contudo, não impediu a vitória brasileira, em conjunto com a Argentina e o Uruguai, na Guerra do Paraguai. Finda a guerra, aqueles que lutaram pelo país passaram a reivindicar com maior veemência a devida atenção aos seus interesses.

Page 13: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | A TRANSIÇÃO ORQUESTRADA: CONVENIÊNCIAS DO REGIME REPUBLICANO

5

FIGURA 1 – HOMENAGEM DA REVISTA ILLUSTRADA À PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA

FONTE: REPÚBLICA no Brasil. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro: Republica_no_brasil.jpg>. Acesso em: 7 mar. 2010.

Associa-se ao descaso outro fato importante. Mesmo diante das condições adversas, a partir de 1850 o exército brasileiro enfrentava um paulatino processo de profissionalização. No entendimento de Del Priore e Venâncio (2003), tal processo, dentre outras consequências, acarretou uma modificação nos critérios de promoção, ou seja, a progressão na hierarquia militar, historicamente acessível apenas a membros da elite, tornou-se uma prerrogativa do mérito individual e possibilitou a projeção de jovens de origem humilde. Uma vez que no exército era possível também obter acesso à educação formal e ao conhecimento científico, criaram-se as condições para a propagação do ideário cientificista que ganhava forte projeção no século XIX, principalmente no mundo ocidental.

Em poucas palavras, é possível dizer que a crença na ciência como promotora do progresso, do desenvolvimento e da “civilização”, encontrou no exército um terreno fértil para germinar. O fruto desse plantio foi a difusão, entre seus membros, do Positivismo, doutrina filosófica concebida por Auguste Comte, cujo lema, “a Ordem por base, o Progresso por fim”, disseminou-se entre toda uma geração formada na escola militar. Não por outro motivo, o lema inscrito na bandeira nacional (a Bandeira Republicana), “Ordem e Progresso”, é tributário do ideário positivista.

Evidentemente, não foi a força das ideias que guiava o grupo comandado pelo Marechal Deodoro da Fonseca a única responsável pela República. Dado o empurrão inicial, o carro republicano só entrou em movimento devido a uma ampla conjunção de fatores. A abolição do trabalho escravo certamente consta entre eles.

A assinatura da Lei Áurea foi o ato final de um processo que se estendeu por mais de quarenta anos. Desde 1850, com a assinatura da Lei Eusébio de Queirós, o tráfico interatlântico de escravos fora proibido (decorrência das pressões sofridas

Page 14: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

6

de parte dos ingleses, agentes contentores do tráfico entre a África e a América desde 1845). Durante esta segunda metade do século ocorreu um prolongamento da escravidão até a impossibilidade de sua manutenção. Atos legais, como a criação da Lei do Ventre Livre, sancionada em 1871, e a Lei dos Sexagenários, em 1885, nada mais representaram do que a protelação do inevitável, principalmente se levarmos em conta que o Brasil foi um dos únicos países da América a manter a escravidão depois de proclamada a independência política em relação à sua metrópole.

A pressão contra a manutenção do regime de trabalho escravo desenvolveu-se em várias frentes. À revolta cada vez mais incisiva (e perigosa) dos escravos cativos é necessário somar a proliferação de clubes abolicionistas, dos quais faziam parte, por exemplo, tanto intelectuais e profissionais liberais, quanto membros da elite e ex-escravos. Nestes clubes constavam aqueles que defendiam a extinção lenta e gradual da escravidão (emancipacionistas) e aqueles que lutavam por sua extinção imediata (abolicionistas). Por outro lado, as próprias necessidades internas do capitalismo em desenvolvimento no país (é importante lembrar que a constituição de um mercado consumidor, com renda própria, é condição de existência para a manutenção do capitalismo) agiram no sentido de fomentar a abolição. Contra essas frentes ficavam os escravistas, defensores da existência do regime de trabalho escravo.

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Golden_ law_1888_Brazilian_senate.jpg>. Acesso em: 7 mar. 2010.

FIGURA 2 – LEI QUE ABOLIU A ESCRAVIDÃO

A figura mostra o Senado brasileiro aprovando a lei que aboliu a escravidão no país, em 1888. Uma multidão está reunida no andar de cima e ao fundo no térreo assistindo.

UNI

Page 15: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | A TRANSIÇÃO ORQUESTRADA: CONVENIÊNCIAS DO REGIME REPUBLICANO

7

Se a “ordem natural dos acontecimentos”, supondo que esta exista, apontava o final do século XIX como o momento do suspiro final da escravidão, o ato da Princesa Isabel pode ser interpretado como um atropelo dessa ordem. Rompendo com a proposta dos emancipacionistas, a abolição significou para os escravistas “[...] uma traição, um confisco de propriedade alheia. A reação deste grupo não tardou a acontecer. Um ano após o ‘13 de maio’, à oposição dos militares somou-se agora a de numerosos ex-senhores de escravos.” (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 258). Conforme nos fala Penna (1999), sem base econômica e política capaz de lhe dar sustentação, a Monarquia não resistiu a uma singela parada militar.

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Lei- %C3%81urea-original-da-Lei-3353.jpg>. Acesso em: 7 mar. 2010.

FIGURA 3 – PUBLICAÇÃO OFICIAL DA LEI ÁUREA

Do ponto de vista político-administrativo, o elemento que mais militava contra a Monarquia era o excesso de centralização do poder. Para que você tenha uma ideia do peso desta questão, é importante saber que durante o Segundo Reinado, ou seja, durante o período em que Dom Pedro II governou, havia uma interferência direta do governo na vida política das mais diversas regiões do país. Esta postura impossibilitava a livre ação de grupos oligarcas regionais e a sua perpetuação no poder. Por mais opaca que a ideia de República parecesse, havia em seus preceitos a sinalização para a implantação da descentralização e do federalismo, sendo estas, inclusive, as principais reivindicações do movimento republicano originado em 1870. Ou seja, como você pode notar, contrariando os princípios da Res Publica (palavras de origem latina que significam “coisa do povo”), a República brasileira, tanto por ocasião da sua implantação, quanto em

Page 16: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

8

NOTÍCIAS DE JORNAIS SOBRE A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA

A partir de hoje, 15 de novembro de 1889, o Brasil entra em nova fase, pois pode-se considerar finda a Monarquia, passando a regime francamente democrático com todas as consequências da Liberdade.

Foi o exército quem operou esta magna transformação; assim como a de 7 de abril de 31 ele firmou a Monarquia constitucional acabando com o despotismo do Primeiro Imperador, hoje proclamou, no meio da maior tranquilidade e com solenidade realmente imponente, que queria outra forma de governo.

Assim desaparece a única Monarquia que existia na América e, fazendo votos para que o novo regime encaminhe a nossa pátria a seus grandes destinos, esperamos que os vencedores saibam legitimar a posse do poder com o selo da moderação, benignidade e justiça, impedindo qualquer violência contra os vencidos e mostrando que a força bem se concilia com a moderação. Viva o Brasil! Viva a Democracia! Viva a Liberdade! Gazeta da Tarde, 15 de novembro de 1889.

Despertou ontem esta capital no meio de acontecimentos tão graves e tão imprevistos que as primeiras horas do dia foram de geral surpresa. Rompeu com o dia um movimento militar que, iniciado por alguns corpos do exército, generalizou-se rapidamente pela pronta adesão de toda a tropa de mar e terra existente na cidade.

A consequência imediata desses fatos foi a retirada do ministério de 7 de junho, presidido pelo Sr. Visconde do Ouro Preto, que teve de ceder à intimação

LEITURA COMPLEMENTAR

suas primeiras décadas, apresentou-se como uma interessante conveniência às elites nacionais.

De acordo com Penna (1999), a República nasceu de maneira suficientemente pluralista para atender de imediato às expectativas de vários setores do quadro político nacional, mas não suficientemente capaz de dar abrigo aos interesses da grande massa da população, que continuou à margem dos canais efetivos de condução dos destinos do país. Em “Formação do Brasil contemporâneo”, Prado Júnior (1999) sugere que desde os tempos do Brasil Colônia criaram-se em nosso país estruturas de poder cujo sentido de continuidade determinou o nosso “sentido histórico” (pelo menos até a década de 1930). A permanência das oligarquias rurais (a elite agrária) direta ou indiretamente associadas ao poder de mando sustenta este ponto de vista. Contudo, há que se considerar que os arranjos políticos necessários à implantação da República, dada a multiplicidade de interesses envolvidos, logo demonstrariam o lado frágil dessa “transição orquestrada”. Analisaremos esta questão no Tópico 2.

Page 17: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | A TRANSIÇÃO ORQUESTRADA: CONVENIÊNCIAS DO REGIME REPUBLICANO

9

feita pelo Sr. Marechal Deodoro da Fonseca que assumiu a direção do movimento militar. À exceção do lastimoso caso do Sr. Barão do Ladário, que não querendo obedecer a uma ordem de prisão que lhe fora intimada, resistiu armado e acabou ferido, nenhum ato de violência contra a propriedade ou a segurança individual se deu até o momento em que escrevemos estas linhas. [...] Jornal do Commércio, 16 de novembro de 1889.

FONTE: Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/LiteraturaInfantil/ Link%20 rep%FAblica.htm>. Acesso em: 8 mar. 2010.

Para aprofundamento destes temas, sugiro que você leia os seguintes livros:CARVALHO, José Murilo. A Formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras 1990. Conforme o subtítulo dá a entender, a obra do historiador José Murilo de Carvalho oferece ao leitor preciosas informações sobre o processo de construção do imaginário republicano no Brasil, ou seja, sobre a maneira como ideias e símbolos foram mobilizados no intuito de dar

sustentação (e promover a aceitação) do ideário republicano em nosso país. COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.NOVAIS. Fernando A. (org.). História da Vida Privada no Brasil. República: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Cia das Letras, 1998.As três obras discorrem sobre aspectos relativos ao processo de transição da Monarquia à República.Além de: HUBERMAN, Léo. História da Riqueza do Homem: do feudalismo ao século XXI. 22 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2010.

DICAS

Page 18: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

10

Neste tópico você viu que:

• Nosso estudo sobre a “Formação Social, Histórica e Política do Brasil” toma por base os eventos ligados à instauração e institucionalização da República Brasileira.

• A República não foi o resultado de um projeto político devidamente pensado para o país e sua população, mas uma saída conciliatória para os interesses de uma elite nacional.

• O exército, responsável pelo ato formal de Proclamação da República, nutria vários descontentamentos em relação ao governo imperial. Tais descontentamentos, aliados à difusão do pensamento positivista nos meios militares, foram responsáveis pelo surgimento da “Questão Militar”.

• A abolição do trabalho escravo resultou no ressentimento dos proprietários de escravos, membros de uma oligarquia rural. Esse ressentimento gerou o engrossamento das fileiras opositoras da Monarquia.

• O excesso de centralização do poder por parte do governo imperial ofuscava os interesses políticos das oligarquias regionais. As propostas de descentralização e do federalismo funcionaram como uma sinalização para os interesses que estas nutriam em relação à conquista e manutenção do poder político.

RESUMO DO TÓPICO 1

Page 19: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

11

1 Partindo de uma análise dos textos presentes na Leitura Complementar, teça alguns comentários sobre a maneira como os jornais anunciaram a Proclamação da República. Procure enfocar a reação da população frente aos acontecimentos do dia 15 de novembro de 1889.

2 Uma vez que a ideia de “ordem” e “disciplina” é um dos pilares das práticas militares, você acha plausível a afirmação de que o exército se considerava a instituição melhor indicada para conduzir os rumos políticos do Brasil após a Proclamação da República? Justifique sua resposta.

AUTOATIVIDADE

Page 20: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

12

Page 21: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

13

TÓPICO 2

PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS

OLIGARQUIAS”

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Conforme você pôde ler na parte final do tópico anterior, embora a implantação da República tenha sido um arranjo conveniente, uma possibilidade de aglutinação de interesses díspares, a quantidade de interesses em jogo era muito ampla para que o processo de transição entre o regime monárquico e o republicano fosse tranquilo. Com efeito, nos primeiros anos do novo regime, principalmente enquanto os militares permaneceram no poder, o cenário político nacional permaneceu bastante agitado.

A tomada do poder por parte dos civis via eleição que empossou Prudente de Morais, em 1894, abriu as portas para um período da história política nacional cuja nomeação é a mais variada. Você já deve ter ouvido falar em “Primeira República”, ou “República Velha”, ou “República Oligárquica”, ou, ainda, em “República do Café com Leite”. Ao longo deste tópico tentaremos explorar um pouco o significado desses conceitos.

2 QUE REPÚBLICA? QUE REGIME ADMINISTRATIVO?

Sobre os primeiros anos do regime republicano, a historiadora Emília V. da Costa registra que:

As contradições presentes no movimento de 1889 vieram à tona já nos primeiros meses da República, quando se tentava organizar o novo regime. As forças que momentaneamente se tinham unido em torno da ideia republicana entraram em choque. Os representantes do setor progressista da lavoura, fazendeiros de café das áreas mais dinâmicas e produtivas, elementos ligados à incipiente indústria, representantes das profissões liberais e militares nem sempre tinham as mesmas aspirações e interesses. As divergências que os dividiam repercutiam no Parlamento e eclodiam em movimentos sediciosos que polarizavam momentaneamente todos os descontentamentos, reunindo desde monarquistas até republicanos insatisfeitos. Rompia-se a frente revolucionária. Representantes da oligarquia rural disputavam o poder a elementos do exército e da burguesia, embora houvesse burgueses e militares dos dois lados, em função dos seus interesses e ideais. (COSTA, 1994, p. 276).

Page 22: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

14

Cabe aqui lembrar que o excesso de centralização do poder por parte do governo monárquico minava suas bases, pois gerava um progressivo descontentamento de parte das oligarquias regionais. Como na segunda metade do século XIX o carro-chefe da economia nacional era a exportação do café produzido em grandes latifúndios, seus proprietários não mais se contentavam com o distanciamento em relação ao poder de mando, de decisão em relação aos rumos do país. Neste sentido, a federalização – cujo modelo fora tomado dos Estados Unidos – e sua proposta de ampliação do poder das unidades da federação exerceu um apelo muito grande. Esta era a principal bandeira dos partidos republicanos.

O Partido Republicano (PR) surgiu no início da década de 1870. Em verdade, não há como falar na existência de um partido republicano, pois o PR jamais assumiu uma amplitude nacional. Como nos fala Penna (1999), suas bases eram constituídas pelas oligarquias regionais e expressavam seus interesses. Após a instauração da República o PR se pulverizou em diferentes legendas, cada qual portadora de uma estratégia que visava contemplar as realidades regionais. Contudo, a atomização do PR não foi suficientemente capaz de ofuscar a força de algumas siglas regionais. A principal delas, PRP, Partido Republicano Paulista, foi uma prova disto.

O PRP foi fundado em 1872 e em pouco tempo se tornou o partido republicano com maior solidez em sua organização. Formado basicamente por grandes proprietários de terra desiludidos com a Monarquia, de acordo com Penna (1999), o PRP preservava certa autonomia local, principalmente em relação ao núcleo do Rio de Janeiro. O ideário defendido pelos republicanos paulistas procurava identificar seus interesses de classe com os da nação. Assumia, portanto, uma identidade liberal-conservadora. Por ocasião da tomada do governo das mãos dos militares, na eleição de 1894, o PRP marcou presença efetiva. Vejamos como isso aconteceu.

A agitação política no país após a instauração da República se devia, em grande medida, à ausência de um plano de governo claro e capaz de agradar a todas as correntes e interesses associados em 1889. Por ter sido o condutor direto do “ato fundante”, a “parada militar”, o exército detinha a prerrogativa de indicar o primeiro caminho a ser tomado. Dentro do exército não havia unanimidade do ponto de vista ideológico, mas um grupo de positivistas vinculado a Benjamin Constant “introduziu no debate político brasileiro a ideia de ditadura republicana. Tal perspectiva política fez sucesso, sendo também partilhada por aqueles que não seguiam os ensinamentos comtianos”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 268).

Ainda segundo estes autores, um exemplo desta afirmação pode ser encontrado no fato de que em 1891, aproximadamente um ano depois da sua eleição como presidente constitucional, o Marechal Deodoro da Fonseca deu mostra da postura ditatorial, desrespeitando a Constituição (promulgada em 1891, a segunda Constituição brasileira e a primeira republicana) e fechando o Congresso.

A essas alturas você já deve ter notado que os interesses das oligarquias regionais, principalmente a paulista, não encontraram respaldo na postura dos

Page 23: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS”

15

militares. A centralização do poder em suas mãos fez com que Deodoro sofresse pressões as mais diversas, sendo que, devido a uma conspiração militar, acabou renunciando. Em seu lugar o Marechal Floriano Peixoto assume o governo. Este agiu de maneira a dar contornos ainda mais fortes à postura ditatorial e centralizadora do regime.

Para além dos ataques no plano político, o governo de Floriano enfrentou duas manifestações de desagrado que adentraram o plano da ação direta. A primeira, denominada Revolta da Armada (1893-1894), longe de ser uma conspiração antirrepublicana, representou o descontentamento de algumas alas das forças armadas em relação aos rumos que o governo da república havia tomado. Ao mesmo tempo em que confrontos bélicos ligados à Revolta da Armada se processavam no Rio do Janeiro, nos estados do Sul do país eclode a chamada Revolução Federalista, cujo embate opôs grupos dominantes locais em “facções leais e inimigas de Floriano Peixoto”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 268). Um dos palcos desse confronto foi a capital de Santa Catarina, à época chamada de Desterro. Após a vitória do grupo ligado a Floriano (e a consequente execução de muitos dos líderes oposicionistas), a capital foi renomeada: assim surgia Florianópolis (a cidade de Floriano).

A necessidade de apoio ao combate das sublevações oposicionistas levou Floriano Peixoto a se aproximar da oligarquia regional com maior poder econômico, no Brasil da década de 1890. O Partido Republicano Paulista, representante desta oligarquia, surge então como articulador da passagem do governo das mãos dos militares para os civis. Assim, “em 1894, através da eleição de Prudente de Morais, é dado o primeiro passo e, em 1898, com Campos Sales, a transição se consolida. Inaugura-se, então, o que se convencionou denominar política dos governadores”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 268). A partir deste momento os rumos da Primeira República ficavam definitivamente traçados. O paradoxo da “democracia excludente”, materializado no coronelismo, ganhara corpo e projeção. O pleno domínio das oligarquias deu margem à constituição de uma Res Publica de fachada.

Page 24: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

16

3 REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS: A ARTICULAÇÃO E OS MOVIMENTOS DE CONTESTAÇÃO

Respondendo pelos anseios das oligarquias regionais, o texto da Constituição de 1891 previa a existência do federalismo. Embora significasse uma margem grande de autonomia para os estados, o federalismo dificultava o fortalecimento do governo republicano central. Deve-se a este fato, em grande medida, os problemas enfrentados pelos governos de Deodoro e Floriano. A manutenção da República passou a depender de um arranjo de forças capaz de lhe dar sustentação. A resposta a este imperativo foi dada pelo segundo presidente republicano civil, Campos Sales. A questão é que

Tentava-se garantir a reprodução do regime eximindo-o dos traumatismos e crises inerentes aos processos sucessórios em que “oposição” e “situação” se revezassem, desregradamente, no poder. A Política dos Governadores foi o seu nome e consistiu na aplicação dos seguintes princípios: o reforço da figura presidencial (a despeito da independência dos poderes) e a solidarização das maiorias com os Executivos (estaduais e federal). Partindo deste princípio, o mesmo sufrágio que elege as primeiras deve eleger o segundo, reconhecendo-se a “legitimidade” das maiorias estaduais, comprometendo-se o Governo Federal a não apoiar dissidências locais. (LINHARES, 1990, p. 230).

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/1a/Guarda _Nacional_na_Revolta_da_Armada.jpg>. Acesso em: 10 mar.2010.

FIGURA 4 – FORTIFICAÇÃO (REVOLTA DA ARMADA)

A ilustração mostra uma fortificação passageira, 1894. Vê-se um canhão de 280 mm (único no Brasil) e soldados do 4º Batalhão de Artilharia da Guarda Nacional.

Proveniente da série Revolta da Armada (Museu Nacional).

UNI

Page 25: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS”

17

FONTE: Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/ Ficheiro:Revista_Illustrada_1898.jpg>. Acesso em: 7 mar.2010.

FIGURA 5 – CARICATURA PUBLICADA EM REVISTA

A caricatura, publicada em 1898, retrata uma animada conversa entre Campos Sales (à direita) e Prudente de Morais. O texto diz: “Em família. Conversam animadamente sobre Europa, as viagens, as manifestações, o estado sanitário, etc. Só não tratam de política... Muito bem”. Campos Sales, paulista, sucedeu Prudente de Morais, também paulista, na Presidência da República.

A Política dos Governadores, articulada em torno dos interesses paulistas e mineiros (a preponderância da elite desses dois estados, São Paulo e Minas Gerais, deu margem ao surgimento da chamada Política do “Café com Leite”); passou a ser, portanto, a base do sistema político republicano entre 1898 e 1930.

A alusão feita ao “leite” deve-se ao fato de o Estado de Minas Gerais ser um grande produtor de leite durante a República Velha. Contudo, estudos mais recentes sugerem que a alcunha mais correta seria “República do Café com Café”, pois o principal produto de comercialização mineiro também era o café. A legitimidade desta hipótese pode ser encontrada no interesse que o Partido Republicano Mineiro, cujas ações respondiam pelas aspirações da elite econômica do estado, manifestava no sentido de instrumentalizar as políticas de valorização do café. Mais à frente analisaremos esta questão.

UNI

ATENCAO

Page 26: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

18

Para compreender melhor o funcionamento dessa política é importante que você entenda duas questões. Em primeiro lugar, ao contrário do que se poderia supor, a autonomia dos estados garantida pela federalização não significou o total desprendimento em relação ao governo central. Crises econômicas gestadas desde a segunda metade do século XIX enfraqueceram muitos estados, principalmente os do Nordeste. Essa situação implicava a necessidade de estabelecimento de laços mais fortes com o governo central. Esses laços, por sua vez, eram constituídos via utilização de um elemento-chave nas engrenagens do poder: o líder local, ou coronel.

Dadas as dimensões continentais do nosso país e devido às dificuldades ao estabelecimento de contato com a população do interior, o intermediário dessa ligação passava a ser o coronel (daí o surgimento do termo coronelismo). Detentor de uma forte influência sobre familiares, agregados e subalternos, o coronel recebia carta branca para agir em sua área de influência de acordo com interesses próprios. Em troca dessa liberdade, cooptava os votos da população para os candidatos que lhe fossem indicados, do executivo Estadual e do federal. O uso da força passou a ser uma constante, tanto em relação às pessoas simples quanto em relação a adversários políticos. Milícias armadas eram comuns, principalmente no Nordeste, onde os coronéis usavam os serviços de jagunços.

São Paulo e Minas Gerais souberam muito bem se aproveitar desse quadro político para se perpetuarem no poder, promovendo uma alternância na condução do Executivo nacional. Do ponto de vista econômico, um elemento marcante das políticas governamentais da Primeira República pode ser encontrado nas constantes interferências voltadas à valorização do café. Já no início do século XX essas medidas se fizeram valer, contudo, tornaram-se absolutamente claras a partir da assinatura do Convênio de Taubaté, em 1906. Resultado de um acordo entre dirigentes políticos de São Paulo, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, o Convênio tinha por objetivo a garantia de lucro para os grandes produtores via manutenção do preço. Neste sentido, as oscilações no mercado internacional eram corrigidas pela compra, estocagem e destruição de partes das safras. A diminuição da oferta resultava no aumento do preço.

O dinheiro público usado para cobrir as perdas dos cafeicultores do Sudeste era motivo de discórdia. Com efeito, a ação das lideranças políticas paulistas e mineiras gerava o descontentamento e a revolta de outras elites regionais. Em verdade, tanto do ponto de vista das cisões entre as elites, quanto das manifestações de segmentos da população sem poder econômico, durante toda a República Velha houve situações nas quais o governo republicano sofreu enorme pressão. Ao longo da década de 1920, principalmente em seus últimos anos, a política dos governadores não mais se sustentou. Criavam-se as condições para uma nova etapa da República brasileira. Mas vamos por partes.

No cenário das manifestações populares, o primeiro grande teste imposto ao governo republicano ficou por conta da “Guerra de Canudos”. Segundo Novais (1998), as autoridades republicanas foram avisadas da existência do povoado de Canudos, no sertão da Bahia, já em 1893 (até então ele nem constava nos mapas).

Page 27: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS”

19

Sob a liderança de Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como “Antônio Conselheiro”, pessoas simples e humildes do sertão nordestino montaram uma comunidade na qual vigorava o regime de posse e de trabalho solidário. Isolados em meio do nada, os moradores do “Arraial de Belo Monte” em hipótese alguma significariam perigo à República não fosse a maneira como passaram a ser representados. Evidentemente, alguns fatores contribuíram para isso.

Antônio Conselheiro era um líder espiritual. Sua influência sobre os sertanejos não deixava de ser uma pedra no sapato da Igreja. Além disso, a criação de um reduto populacional que oferecia abrigo aos despossuídos funcionava como um ímã para pessoas que até então viviam sob o mando de coronéis locais. Isto significava perda de mão de obra e a possibilidade de concorrência econômica. Aos elementos locais somou-se o fato de Antônio Conselheiro professar um vago saudosismo monárquico, o “que deu margem para ser acusado de conspirar contra a República e de ser, no sertão, o braço armado dos restauradores”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 278). A fragilidade do regime republicano recém-implantado não permitia a sobrevivência de um reduto populacional acusado, mesmo que através de sofismas, de ser um foco monarquista. Após algumas derrotas das tropas republicanas enviadas para destruir Belo Monte, isso ficou ainda mais evidente. Canudos precisava ser destruído. E de fato foi, em 1897, totalmente destruído: não sem antes caírem todos seus últimos defensores sob o fogo do exército brasileiro.

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/ fa/Canudos_rebels.jpg>. Acesso em: 12 mar. 2010.

FIGURA 6 – MULHERES E CRIANÇAS, SEGUIDORAS DE ANTÔNIO CONSELHEIRO, PRESAS DURANTE OS ÚLTIMOS DIAS DA GUERRA

Exemplos de manifestações populares que resultaram em confronto com o governo republicano podem ser encontrados durante toda a Primeira República. No Tópico 3 desta unidade estudaremos a participação do Movimento Operário. No momento, além da Guerra de Canudos (1896-1897), podemos indicar a Guerra do Contestado (1912-1915), a Revolta da Vacina (1904), a Revolta da Chibata (1910) e o movimento conhecido como “Tenentismo”, que deu origem a uma série de levantes militares durante a década de 1920. Dada a natureza do grupo que o compunha e a singularidade de sua proposta, o Tenentismo merece uma análise mais atenta.

Page 28: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

20

Ao longo da década de 1920 o Brasil passou por uma série de crises econômicas. Em meio a crises, a contestação do poder instituído sempre ganha forças. De acordo com Linhares,

As rebeliões tenentistas da década foram o mais cabal exemplo da explosão simultânea de questionamentos “de dentro” e “de fora” do pacto político, alastrando-se a rebeldia desse setor intermediário da oficialidade militar justamente quando, em 1922, as oligarquias do Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro uniram-se contra a candidatura do eixo Minas/São Paulo, formando a reação republicana. (1990, p. 253).

O movimento tenentista teve origem em 1922 e representou uma

inflexão na vida política brasileira. Seus idealizadores, membros da oficialidade militar intermediária, eram portadores de um discurso moralizador que previa a purificação das forças armadas e da sociedade como um todo. Sua proposta apresentava traços de nacionalismo, centralização do Estado e ataques frontais à oligarquia paulista. O acesso à educação formal permitia aos tenentes a construção de um ideário que lhes colocava na condição de porta-vozes das reivindicações populares. Contudo, o caráter elitista do tenentismo não comportava uma vinculação mais íntima com as classes populares. O “ato fundante” do Tenentismo ocorreu em 5 de julho de 1922, ocasião em que um levante militar mobilizou jovens oficiais no Rio de Janeiro. A ação ficou conhecida como “Os dezoito do forte”, uma alusão ao fato de terem sido dezoito os militares participantes do levante. Ao marcharem contra as tropas legalistas foram recebidos à bala. O fracasso militar não significou fracasso político, pois a ofensiva serviu, ao governo civil, como um indício de que mudanças se apresentavam no horizonte.

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e5/Os_18_ do_ Forte_(2).jpg>. Acesso em: 20 mar. 2010.

FIGURA 7 – REVOLTA DOS 18 DO FORTE DE COPACABANA: TENENTES VÃO DE ENCONTRO ÀS FORÇAS LEGALISTAS, NA AVENIDA ATLÂNTICA

Page 29: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS”

21

A insipiência das manifestações tenentistas no meio urbano fez com que o movimento ganhasse um novo rumo a partir de 1925, momento em que teve origem a “Coluna Prestes” (organizada por Luiz Carlos Prestes), uma marcha pelo interior do país que se estendeu por mais de 24 mil quilômetros: “foram 29 meses, 10 estados da federação e uma média de 45 quilômetros por dia”. (PENNA, 2003, p. 159). Embora a adesão popular não tenha sido a esperada e a Coluna tenha sofrido perseguições constantes por parte das tropas federais (o que resultou na dispersão do movimento, em 1927), a iniciativa – o movimento tenentista como um todo – resultou na abertura de um caminho para derrubada do pacto oligárquico São Paulo/Minas Gerais.

Em 1929, em meio a uma grave crise econômica mundial cujo epicentro ocorreu em Nova York, o poder econômico dos cafeicultores foi drasticamente reduzido. Neste mesmo ano, conforme o acordo firmado entre o Partido Republicano Paulista e o Partido Republicano Mineiro, o presidente Washington Luiz, paulista, deveria indicar como seu sucessor o mineiro Antônio Carlos, chefe do governo de Minas. Contrariando o pacto, Washington Luiz indica o paulista Júlio Prestes. Esta atitude resultou em uma aproximação entre Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba. Formava-se a Aliança Liberal, responsável pela Revolução de 1930. Analisaremos esta questão na segunda unidade desde caderno.

FONTE: Disponível em: <www.wikipedia.org>. Acesso em: 12 mar. 2010.

FIGURA 8 – A FÓRMULA DEMOCRÁTICA, DE STORNI

A charge “A fórmula democrática”, de Storni, foi publicada na Revista Careta, em 29 de agosto de 1929. No alto são representadas as oligarquias paulista e mineira.

UNI

Page 30: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

22

LEITURA COMPLEMENTAR I

O BRASIL DE EUCLIDES DA CUNHA

Neste ano completa-se o centenário de morte de Euclides da Cunha (1866-1909), um dos mais importantes autores nacionais. Euclides viveu e produziu em um momento em que as ideias deterministas ainda manifestavam seu vigor com base explicativa para a realidade brasileira. No livro que o consagrou como um dos maiores intérpretes do Brasil, Os Sertões (1902), pode ser encontrado, para além da análise da Guerra de Canudos, um estudo sobre a formação do povo brasileiro e a diversidade geográfico-climática do país. A obra, dividida em “A Terra”, “O Homem” e “A Luta”, foi organizada de acordo com a hierarquia das ciências aceita na época: partindo da noção de que os fundamentos de toda a realidade repousam sobre “matéria”, o relato inicial baseia-se nas ciências inorgânicas (Geografia, Geologia), passando depois para as orgânicas (Biologia) e, por fim, para as ciências sociais (História, Sociologia). Obedecendo a esta sequência, Euclides começa pelo estudo da infraestrutura geológica, das variações do clima e do sistema fluvial, para estender-se à flora e, por último, tratar do homem e das injunções históricas.

Por meio dos vetores “meio”, “raça” e “história”, Euclides irá interpretar os conflitos entre o que considerava a área “civilizada”, ou seja, o litoral, e o interior do país, resguardado por um isolamento geográfico e histórico que o teria mantido vinculado ao passado. Segundo Euclides, a civilização avançaria sobre os sertões, impedida pela implacável “força motriz da História”, as raças fortes esmagando as fracas. (CUNHA, 2003, p. 9). Percebe-se, em sua análise, a confluência de explicações históricas e raciais, sobrevivendo os mais aptos em todos os terrenos, em uma clara alusão ao darwinismo social.

Enviado ao cenário da guerra de Canudos (que durou de novembro de 1896 a outubro de 1897) como correspondente do jornal O Estado de São Paulo, Euclides da Cunha, por ser militar e, ademais, comungar com a visão oficial que tratava os sertanejos como revoltosos antirrepublicanos, silenciou sobre as atrocidades do massacre. Revê esta posição durante os cinco anos que leva escrevendo Os Sertões. Reconhece um elemento de messianismo na reação dos sertanejos e condena o exército pelos excessos cometidos.

Euclides esforçava-se para compreender como o sertanejo, um mestiço, teoricamente portador de desequilíbrios típicos do cruzamento de raças (um “degenerado”, segundo as teorias deterministas), resistiu a tantas investidas do exército republicano (quatro batalhas), só sendo derrotado diante do poderio das armas de fogo empregadas pela última expedição. Os combatentes de Canudos pareciam rebelar-se até mesmo como objetos de estudo, para contradizer, em relação ao pensamento de Euclides, as teses do determinismo social.

Ao longo do livro, Euclides alterna a visão do sertanejo como uma sub-raça “instável”, “efêmera”, “retardatária” e “próxima da extinção” para “a rocha viva da nação”. Se o sertanejo corria o risco de desaparecer diante da competição com os

Page 31: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | PRIMEIRA REPÚBLICA: A “REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS”

23

imigrantes estrangeiros, era, de maneira contraditória, “antes de tudo, forte”. Neto de bandeirante paulista (CUNHA, 2003, p. 104), trazendo em si a bravura do início e a autonomia do branco português, quase sem mescla de sangue africano (p. 105), vencendo o meio inóspito marcado pela seca e pela caatinga e, principalmente, sendo aquele que teve tempo de fortalecer-se fisicamente enquanto aguardava o desenvolvimento moral e civilizacional posterior da região (p. 117), Euclides representa o sertanejo como estando em “compasso de espera”, preparando-se para exercer um papel importante no futuro da nação.

Por outro lado, os soldados que lutaram em Canudos, em grande proporção mulatos vindos principalmente do Rio de Janeiro e da Bahia, que, ao final da guerra, degolaram barbaramente todos os prisioneiros, mesmo vivendo em contato com a “civilização”, na opinião de Euclides não seriam seus legítimos representantes. Ao contrário, assemelhavam-se a seres incapazes de fazer frente à complexidade da vida urbana em termos de suas exigências intelectuais e morais. Quem não se lembra da famosa frase do livro Os Sertões, em que Euclides se refere aos mulatos apontando “o raquitismo exaustivo dos raquíticos neurastênicos do litoral”? À fraqueza física somava uma “doença dos nervos”: a neurastenia.

No contraste entre sertanejos e mulatos, embora ambos fossem mestiços, Euclides elogia os primeiros e desqualifica os segundos. O fator racial considerado “inferior” do sertanejo, o índio, não era de todo desprestigiado por Euclides, que acreditava estar diante de uma raça autóctone – o homo americanus – surgida, portanto, na América, desvinculada do Velho Mundo, com um desenvolvimento autônomo. Dono de coragem e resistência física, o índio teria vencido o meio e criado um modo de vida vigoroso. Já o fator racial visto como “inferior” do mulato, o negro, era, para Euclides, irrecuperável: era o homo afer, “filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural [...] se fez pelo uso intensivo da ferocidade e da força”. (CUNHA, 2003, p. 73).

Euclides foi um homem insatisfeito em relação às suas atividades profissionais. Militar e engenheiro de formação, sempre aspirou ser um escritor reconhecido. Depois da publicação de Os Sertões, tornou-se membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e foi eleito, também, para a Academia Brasileira de Letras. Propôs uma “guerra dos cem anos” para combater a seca do Nordeste, com a construção de açudes, poços artesianos, estradas de ferro e o desvio do Rio São Francisco para irrigar as áreas mais atingidas pela estiagem. Tornou público seu interesse pela Amazônia ao publicar, em 1904, no jornal O Estado de São Paulo, artigos sobre os conflitos entre Peru, Bolívia e Brasil, que via como uma disputa pelo acesso ao oceano no Atlântico. A morte prematura, aos 43 anos, por assassinato, aproximou sua história pessoal da tragédia grega que tanto admirou em vida.

FONTE: TORRES, Lilian de Lucca. O Brasil de Euclides da Cunha. Leituras da História, São Paulo, ano 2, n. 21, p. 60-61, 2009.

Page 32: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

24

LEITURA COMPLEMENTAR II

CANUDOS NÃO SE RENDEU

Fechemos este livro.

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.

Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.

Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem.

Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos...

E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho, que se nos entregara, confiante – e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa História?

Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas.

Os Sertões, Euclides da Cunha. Fragmento do capítulo VI – O fim – da terceira parte, A Luta. FONTE: BIBLIOTECA virtual do estudante brasileiro. Disponível em: <http://www.bibvirt.futuro .usp.br>. Acesso em: 24 abr. 2010.

Para aprofundamento destes temas, sugiro que você leia o seguinte livro e assista ao filme:Livro: Os Sertões, de Euclides da CunhaFilme: Guerra de Canudos (Brasil – 1997, 169 min). Direção de Sérgio ResendeO filme Guerra de Canudos é uma adaptação cinematográfica da obra “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Presente no conflito como enviado especial do jornal O Estado de S. Paulo, o jovem escritor narra com riqueza de detalhes suas impressões sobre o que presenciou no fronte. Vale a pena cruzar as informações do livro com aquelas apresentadas na versão cinematográfica. Além de: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da civilização brasileira: O Brasil republicano, economia e cultura. São Paulo: Bertrand do Brasil, 2008.

DICAS

Page 33: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

25

RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico tivemos a oportunidade de conhecer alguns delineamentos da Primeira República, República Velha, ou República das Oligarquias. É importante você lembrar que:

• Após a implantação da República, os interesses dos grupos envolvidos em sua articulação entraram em choque. Em um primeiro momento, o governo militar foi alvo de críticas. O que estava em questão era a centralização versus o federalismo.

• Durante o governo do Marechal Floriano Peixoto ocorreram dois importantes conflitos: a Revolta da Armada e a Revolução Federalista.

• A estabilização do regime foi alcançada a partir do governo do paulista Campos Sales, momento no qual se implantou no Brasil a “Política dos Governadores”.

• A Política dos Governadores consistiu na criação de mecanismos capazes de garantir a perpetuação no poder das oligarquias regionais. Estabeleceu-se, então, uma troca de favores entre o governo federal, os governantes dos estados e chefes locais, os coronéis.

• Durante a Primeira República ocorreram movimentos sociais de contestação direta ou indireta aos rumos tomados pelo governo republicano. Dentre eles se destacam A Guerra de Canudos (1896-1897), a Guerra do Contestado (1912-1915), a Revolta da Vacina (1904), a Revolta da Chibata (1910) e o Tenentismo.

• Embora não tenha obtido êxito, o Tenentismo abriu as portas para os eventos que resultaram na quebra do pacto entre São Paulo e Minas Gerais e na Revolução de 1930.

Page 34: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

26

1 Descreva, em linhas gerais, os rumos tomados pelo governo republicano até 1930.

2 Teça alguns comentários sobre o funcionamento da “Política dos Governadores”.

AUTOATIVIDADE

Page 35: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

27

TÓPICO 3

TRABALHADORES NA

PRIMEIRA REPÚBLICA: CONDIÇÕES À “LUTA

DE CLASSES”

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

O século XIX, principalmente em sua segunda metade, foi o momento de afirmação da hegemonia do capitalismo. Embora a Revolução Industrial tenha ocorrido já no século XVIII, em seus primórdios o processo de industrialização não englobava muitos setores. A partir da década de 1870 o sistema de produção capitalista dá um salto quantitativo e qualitativo, com o advento da chamada Segunda Revolução Industrial, ou Revolução Científico-Tecnológica.

De fato, o desenvolvimento da ciência e a sua aplicação no campo tecnológico resultaram na proliferação de descobertas e invenções que mudaram a face do mundo conhecido, diminuindo as distâncias, aumentando as velocidades, interligando as mais diversas regiões do globo terrestre. Para se ter uma ideia, neste período surgem os

[...] veículos automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, o telefone, a iluminação elétrica e a ampla gama de utensílios domésticos, a fotografia, o cinema, a radiodifusão, a televisão, os arranha-céus e seus elevadores, as escadas rolantes e os sistemas metroviários, os parques de diversões elétricas, as rodas-gigantes... (NOVAIS, 1998, p. 9).

O fato é que o mundo até então conhecido estava deixando de existir ou, na melhor das hipóteses, estava sendo transformado de tal maneira que as pessoas tinham dificuldades para traçar uma linha de continuidade entre o passado e o presente. Evidentemente, estas transformações adentravam também o campo das relações sociais. A vida, principalmente a vida urbana, tornava-se cada vez mais complexa. E, por maiores que fossem as diferenças entre a realidade brasileira e aquela relativa à Europa e aos Estados Unidos, paulatinamente o Brasil também acabou se inserindo neste novo cenário.

Em seus desdobramentos, a Revolução Industrial promoveu uma nítida demarcação de classes sociais. De um lado, segundo Karl Marx, estariam os donos dos meios de produção (indústrias, terras), a Burguesia; do outro, os detentores da força de trabalho, o Proletariado. Este venderia sua força de trabalho para aquela. No relevo social, as relações estabelecidas entre estes dois grupos ou “classes sociais” ditariam os rumos a serem seguidos pelo capitalismo nos séculos seguintes.

Page 36: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

28

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

Ainda segundo Marx, uma sociedade dividida em classes, com interesses distintos, deve ser pensada do ponto de vista do conflito, da luta, pois interesses díspares se fariam valer resultando, inevitavelmente, em um confronto. Com efeito, ao longo do século XIX vários foram os embates, principalmente no meio urbano, entre burguesia e proletariado na Europa industrializada. Neste mesmo século, no Brasil, a permanência do regime de trabalho escravo e o incipiente desenvolvimento industrial mantiveram o país em uma situação bastante peculiar em relação aos acontecimentos no Velho Continente. Seria preciso a atividade industrial ganhar força e o trabalho livre se institucionalizar para que a luta de classes, nos moldes capitalistas, tomasse corpo em terras brasileiras. Neste tópico nosso objetivo será analisar este processo.

2 ANTECEDENTES: RAÍZES DA INDÚSTRIA NACIONAL

Embora a criação das primeiras indústrias no Brasil tenha ocorrido já no período monárquico, do ponto de vista econômico sua importância se define a partir da implantação da República. De acordo com Del Priore e Venâncio (2003), o processo de industrialização brasileiro difere daquele ocorrido na Europa, principalmente devido ao fato de que aqui não houve um desenvolvimento lento a partir do artesanato e da pequena manufatura, mas um início caracterizado pela implantação de fábricas modernas. A importação do maquinário europeu, que já contava com um século de aperfeiçoamento, impulsionou nosso desenvolvimento industrial, dependente, desde o seu início, da influência internacional, principalmente europeia. Levando em conta a situação do sistema educacional brasileiro no século XIX e início do século XX – extremamente atrasado –, é possível entender por que a criação de tecnologias nacionais era algo raro.

Dada a dependência da economia brasileira em relação à agricultura de exportação, durante as duas últimas décadas do século XIX e até a década de 1930, o desenvolvimento industrial nacional se associou à iniciativa dos grandes produtores rurais. Em um primeiro momento, Rio de Janeiro e Minas Gerais ocuparam posição de destaque, mas no início do século XX foram superados por São Paulo, que, na década de 1920, apresentava um estágio de desenvolvimento bem superior ao dos seus vizinhos. Nunca é demais lembrar que esta situação só foi possível devido aos investimentos advindos dos lucros dos cafeicultores paulistas no mercado internacional. Para se ter uma ideia, no início do século XX o Estado de São Paulo produzia sozinho mais da metade do café comercializado no mundo.

À existência de excedentes passíveis de serem aplicados nas indústrias é necessário acrescentar o fato de que algumas regiões de São Paulo receberam um afluxo impressionante de imigrantes, principalmente depois da abolição do trabalho escravo. Ou seja, São Paulo passou a reunir elementos indispensáveis para o desenvolvimento industrial: capitais para investimento, mão de obra em abundância e a possibilidade de criação de um mercado consumidor para nutrir a demanda. Esta situação era mais do que evidente na capital paulista, uma cidade

Page 37: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | TRABALHADORES NA PRIMEIRA REPÚBLICA: CONDIÇÕES À “LUTA DE CLASSES”

29

que, em aproximadamente quarenta anos (1872-1914), teve a sua população ampliada de “23 mil para 400 mil habitantes”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 296). Evidentemente, a íntima ligação com o Poder Executivo nacional, respaldada pela “Política dos Governadores”, forneceu ao Estado de São Paulo a capacidade de administrar de maneira privilegiada crises econômicas tais como aquelas que atingiam seu principal produto de comercialização, o café. A manutenção dos lucros gerados pelo café permitia a manutenção dos investimentos nas indústrias.

FONTE: Disponível em: <www.wikipedia.org>. Acesso em: 10 mar. 2010.

FIGURA 9 – PANFLETO QUE AGENTES DE PROPAGANDA UTILIZAVAM PARA PROMOVER A IMIGRAÇÃO ITALIANA AO BRASIL

A criação e desenvolvimento de um setor industrial, um dos grandes responsáveis pelo acelerado processo de ampliação dos centros urbanos, projetou um novo cenário no campo das relações sociais em nosso país. Nos centros urbanos, principalmente aqueles da região Sudeste, trabalhadores submetidos a condições precárias de vida passaram a se organizar e a reivindicar seus direitos. Por outro lado, os interesses de classe se faziam valer também por parte da burguesia, composta basicamente por empresários e fazendeiros de café. Surgiam as condições para disseminação do ideário da “luta de classes” em terras brasileiras.

Page 38: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

30

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

3 A ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHADORES E A LUTA DE CLASSES

Não é possível afirmar que o desenvolvimento industrial durante a Primeira República tenha sido um privilégio da região Sudeste. Ocorre que, do ponto de vista da organização dos trabalhadores em torno do ideário da luta de classes, os eventos relacionados à região Sudeste servem como um vetor para se pensar a situação do país como um todo. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, os embates de classe nos fornecem preciosas indicações.

Respondendo pelo signo da continuidade, aos trabalhadores urbanos da República Velha foi negada a condição de cidadãos. Com efeito, durante as primeiras décadas de governo republicano a postura das elites dirigentes dava margem à reprodução de práticas de exclusão e de exploração que remontavam à época do Brasil Colonial. A abolição do trabalho escravo não significou o término da exploração dos trabalhadores, apenas a projetou em um novo relevo. Diante desta situação, os trabalhadores tiveram que se organizar na luta por direitos. De acordo com Penna,

A discriminação contra os operários, desenvolvida pelas classes dirigentes, produziu uma situação de verdadeira segregação geográfica e sociocultural. Assim, nasceram vilas e bairros operários, concentrando a vida dos trabalhadores, isolando-os das proximidades dos centros urbanos onde se instalavam as atividades comerciais e os bairros burgueses.Esse isolamento propiciou maior integração dos trabalhadores assalariados. Não demorou muito e essa aglutinação se revelou profícua na luta travada entre os interesses do capital e do trabalho. (PENNA, 1999, p. 125).

O fato é que a criação desses espaços de sociabilidades, mesmo que em decorrência de uma política de exclusão social, trouxe consigo um elemento positivo, pois permitiu aos trabalhadores se reconhecerem enquanto membros de uma totalidade submetida à opressão. Este reconhecimento logo suscitou ações práticas materializadas em greves e outras iniciativas de contestação no próprio ambiente de trabalho. Ampliando o foco é necessário lembrar que as manifestações dos trabalhadores tinham como alvo a luta não apenas contra a exploração do trabalho, mas contra toda uma situação mais ampla que impunha aos trabalhadores péssimas condições de vida e gerava um quadro de verdadeira miserabilidade.

Na verdade, manifestações populares contra a opressão foram uma constante ao longo da História do Brasil. O elemento novo apresentado na Primeira República foi a forma como essas manifestações se desenvolveram e as concepções ideológicas que as guiaram. Del Priore e Venâncio descrevem da seguinte maneira esta questão:

Na transição do Império para a República, uma nova forma de fazer política teve início no Brasil. Por essa época começam a surgir os primeiros defensores de projetos socialistas, organizando partidos, sindicatos e jornais. Tratava-se de fato, de uma mudança radical. Basta

Page 39: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | TRABALHADORES NA PRIMEIRA REPÚBLICA: CONDIÇÕES À “LUTA DE CLASSES”

31

lembrarmos que, ao exaltar o “trabalhador” como principal elemento da sociedade, o movimento operário brasileiro rompeu com tradições seculares, herdadas da época escravista, que consideravam as atividades manuais aviltantes e indignas para os cidadãos – inaugurava-se, assim, um novo princípio de exercício legítimo do poder, que terá influência até nossos dias. (2003, p. 281).

Apresentado como uma novidade no Brasil, o projeto socialista já era uma

realidade na Europa durante a maior parte do século XIX. E foi exatamente devido à vinda de imigrantes europeus para o Brasil, iniciados no ideário socialista e nas lutas pela reforma ou transformação radical da sociedade, que se constituíram lideranças capazes de dar sustentação à luta de classes. Portugueses, espanhóis e italianos compunham o grosso do fluxo de imigrantes para o Brasil nas primeiras décadas da República e a base da mão de obra empregada nas indústrias.

Penna (1999) nos fala que a tradição de luta dos trabalhadores europeus era conhecida desde a época das internacionais (a AIT, Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em Londres, em 1864, e a Internacional Socialista, criada em Paris, em 1889, são um exemplo desta afirmação). Aqui no Brasil a atuação dos imigrantes resultou na criação de partidos políticos operários e na disseminação de uma imprensa voltada à divulgação de ideias que representavam os interesses do operariado. No plano das reivindicações mais imediatas, podemos citar a implantação de uma jornada de trabalho de oito horas, o direito ao descanso semanal, a proibição do trabalho infantil e a criação de tribunais de arbitragem para solução dos conflitos entre patrões e empregados.

É importante saber que o movimento operário não se constituiu como um todo coeso. Além do socialismo, destacou-se no movimento o Anarquismo, principalmente a vertente anarco-sindicalista, que durante muito tempo foi a corrente hegemônica no movimento operário organizado. Optando não pela via política, como era o caso da corrente socialista, mas pela chamada “ação direta”, cujo principal elemento era a greve, o anarco-sindicalismo marcou a luta dos trabalhadores no Brasil durante duas décadas. De acordo com Penna (1999), esta tendência teve uma origem que data da AIT, sendo tributária das ideias de um de seus membros, o russo Bakunin. A proliferação do anarco-sindicalismo resultou em uma disputa no seio do movimento operário brasileiro. Esta disputa constituiu uma das fraquezas do movimento. Mais à frente abordaremos esta questão.

Os anarco-sindicalistas eram orientados pela teoria que preconizava que “o Estado, independentemente da classe social que estivesse no poder, era uma instituição repressiva, daí a defesa intransigente de sua substituição por associações espontâneas, tais como federações de comunas ou cooperativas de trabalhadores”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 283-284). Lutavam pelo fim da burguesia, do Estado capitalista e pela instauração de uma sociedade com indivíduos livres. Até aproximadamente a década de 1920 o número de greves por eles organizadas aumentou significativamente nos centros industriais (resultando, inclusive, em uma paralisação geral em São Paulo, no ano de 1917, considerada a primeira greve geral do país), mas poucas das reivindicações dos trabalhadores obtiveram êxito. Além disso, o aumento da pressão sobre a burguesia industrial não passou impune.

Page 40: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

32

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

FONTE: Disponível em: <www.wikipedia.org>. Acesso em: 13 mar. 2010.

Já em 1913, com a multiplicação das greves, foi aprovada a Lei Adolfo Gordo, que propunha a expulsão do país de operários estrangeiros envolvidos em atividades do movimento operário. Ciente de que as lideranças do movimento eram compostas, em sua maioria, por imigrantes europeus, o governo tinha por objetivo suprimir suas forças ao adotar esta medida. Uma onda de prisões e deportações teve início e agiu em paralelo ao uso da força contra manifestantes e seus órgãos de divulgações de ideias, tais como os jornais.

Não bastasse a repressão estatal – respondendo pelos interesses burgueses –, o declínio do movimento anarquista foi favorecido pela cisão no movimento operário. Neste sentido, o ano de 1917 tem um significado singular, pois a eclosão da Revolução Russa resultou na paulatina propagação da ideia de elaboração de um projeto político mais consistente. Como os anarquistas se negavam a participar do jogo político, ou a apoiar os partidos políticos existentes, havia uma dificuldade para transformação das reivindicações dos trabalhadores em leis. Em 1920, durante a realização do II Congresso Operário Brasileiro, “[...] a força expressiva do exemplo soviético minou as resistências ideológicas dessa tendência e não foram poucos os que se voltaram para uma outra tendência hegemônica do proletariado mundial.” (PENNA, 1999, p. 131). A cisão do movimento anarco-sindicalista acabou resultando na criação, em março de 1922, do Partido Comunista do Brasil.

FIGURA 10 – OPERÁRIOS E ANARQUISTAS MARCHAM PORTANDO BANDEIRAS NEGRAS PELA CIDADE DE SÃO PAULO NA GRANDE GREVE DE 1917

Page 41: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | TRABALHADORES NA PRIMEIRA REPÚBLICA: CONDIÇÕES À “LUTA DE CLASSES”

33

FONTE: Centro de Referência da História Republicana Brasileira. Disponível em: <www.republicaonline.org.br>. Acesso em: 14 mar. 2010.

FIGURA 11 – VAMOS REPARTIR ESSE CHOCOLATE!

Durante a década de 1920 o anarco-sindicalismo entrou em acelerado declínio. Por outro lado, a atuação dos membros do Partido Comunista do Brasil foi dificultada devido à decretação oficial da ilegalidade do partido. Como você pode notar, a burguesia firmou posição e criou empecilhos à instrumentalização das reivindicações do movimento operário. Esta foi uma das faces da resposta que a elite econômica do país deu à luta de classes. Mas, malogrados os esforços, o fato é que o movimento operário na Primeira República foi responsável pela emergência de uma “Questão Social” que não mais poderia ser desconsiderada por estas mesmas elites. Os desdobramentos desse fenômeno ganhariam relevo em um novo cenário político, criado após a Revolução de 1930. Mas este é um estudo que desenvolveremos na próxima unidade.

A figura mostra crianças que reivindicam o direito de comer Chocolates Lacta, em alusão satírica à vitoriosa revolução bolchevique, de 1917, no jornal O Estado de São Paulo.

LEITURA COMPLEMENTAR

AS CONDIÇÕES GERAIS DO TRABALHADOR

[...] Antes de 1919, os trabalhadores das fábricas têxteis mais importantes costumavam trabalhar de nove horas e meia a doze horas diárias durante seis ou sete dias na semana. E, se necessário, a jornada diária era aumentada segundo critérios

UNI

Page 42: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

34

UNIDADE 1 | O ADVENTO DA REPÚBLICA NO BRASIL

da direção. Na fábrica Mariângela, parte do império industrial dos Matarazzo, os operadores homens trabalhavam de 11 a 14 horas por dia. As crianças, de 8 a 12 anos de idade, 12 horas diárias, e algumas em turnos noturnos que iam de 5 da tarde às 6 da manhã do dia seguinte.

Um relatório feito para o Congresso Operário de 1913 espelhou a situação nas maiores fábricas do Rio de Janeiro. “Imaginem-se em um lugar onde trabalhem centenas de operários sem sequer uma janela para abrir. Pois isto é o que há em quase todas as fábricas. As que têm janelas não as abrem por não quererem que seus escravos percam tempo olhando a rua”. Homens, mulheres e crianças eram forçados a respirar diariamente o ar estagnado e poluído. Tais condições não se restringiam apenas à indústria têxtil. O Diretor de Saúde Pública de São Paulo encontrou, nas fábricas de vidro, empregados que trabalhavam excessivamente em locais que não atendiam às mínimas exigências de saúde industrial.

Forçadas a trabalhar por extrema necessidade, as crianças eram as que mais sofriam. Um repórter ficou horrorizado ao investigar as condições das crianças nas fábricas do Rio de Janeiro. Um amigo radical o havia convencido a fazer um levantamento da situação. Em uma fábrica, viu crianças trabalhando ao lado de adultos de 6 da manhã a 6 da tarde, com uma hora de intervalo para o café da manhã e uma hora para o almoço. As crianças pareciam “esqueletos”, eram “magras, de bochechas fundas, olhos melancólicos envoltos em sombras escuras... As crianças que trabalhavam em fábricas e oficinas da capital federal estão destinadas à tuberculose”. Tais palavras poderiam parecer um exagero. Entretanto, outro estudo feito nas oficinas do governo, onde as condições eram consideravelmente melhores que na indústria privada, indicou que a maioria das crianças estava tuberculosa.

FONTE: Maram, (1979, p. 122-123)

Para aprofundamento destes temas, sugiro que você leia o livro e assista ao documentário indicado:

Livro: MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o Movimento Operário Brasileiro, 1890-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.Filme: Os LibertáriosProdução: Lauro Escorel FilhoDireção: Lauro Escorel FilhoBrasil/l976 – 26 min – P&Bí DocumentárioO filme trata do papel do Anarquismo no início do movimento operário em São Paulo. Apresenta fotos, filmes e músicas da época para descrever as primeiras lutas e formas de organização dos trabalhadores.Temas abordados: o início da industrialização em São Paulo; as condições de trabalho; o movimento operário; a imprensa operária; o papel do Anarquismo na organização operária e a imigração italiana. Além de: LAPA, José Roberto do. Os excluídos: contribuição histórica da pobreza no Brasil. Campinas: Unicamp, 2008.

DICAS

Page 43: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

35

RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico abordamos as seguintes questões:

• Ao longo dos últimos anos do século XIX e das primeiras décadas do século XX desenvolveu-se no Brasil um processo de industrialização, em grande medida vinculado aos investimentos dos grandes cafeicultores.

• A industrialização foi responsável pelo desenvolvimento urbano e pela delimitação de classes sociais específicas, a burguesia industrial e o proletariado.

• Disseminado no Brasil por imigrantes europeus, o ideário da luta de classes, em sua vertente socialista e anarquista, obteve receptividade por parte dos trabalhadores urbanos, resultando na eclosão de vários movimentos que reivindicavam melhores condições de vida para os trabalhadores e/ou uma mudança radical da sociedade, via derrubada do capitalismo.

• O ideário da luta de classes também ganhou significado na reação que a burguesia nacional, à frente do Estado, operou contra as manifestações dos trabalhadores. Prisões, deportações e perseguições das mais diversas naturezas foram as principais armas de combate utilizadas pelos burgueses na luta contra o proletariado.

• Embora distante da totalidade das propostas originais, algumas das reivindicações dos trabalhadores foram atendidas pelo patronato.

• Além da repressão sistemática, outro elemento que militou contra o movimento operário organizado foi a cisão criada pela defesa de propostas distintas de ação. O socialismo de inspiração soviética e o anarco-sindicalismo compuseram a linha de frente das propostas dissonantes.

• Duramente combatido durante a década de 1920, o movimento operário teve que esperar até a eclosão da Revolução de 1930 para voltar a por seus interesses na ordem do dia.

Page 44: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

36

1 Durante os anos de militância do movimento operário surgiram vários jornais com o objetivo de disseminar o ideário anarquista e socialista entre os trabalhadores. Analisando a charge da Figura 11 (Vamos repartir esse chocolate!), explique por que não é possível enquadrar a imagem no conjunto desse material.

2 Comente, em linhas gerais, os motivos que levaram ao declínio do movimento anarquista.

AUTOATIVIDADE

Page 45: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

37

UNIDADE 2

NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO

GOVERNO DE “JANGO”

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

Nessa unidade vamos:

• refletir sobre eventos da década de 1920 que resultaram na Revolução de 1930;

• compreender o arranjo de forças que deu sustentação à Revolução de 1930;

• identificar a maneira como o Estado Novo foi pensado e as condições po-líticas, econômicas e sociais que permitiram sua implantação;

• entender as características gerais do período histórico e os direcionamen-tos tomados pelo governo durante o Estado Novo;

• compreender algumas faces dos embates políticos e sociais que ganharam relevo no Brasil entre os anos de 1945 e 1964;

• identificar a importância política de Getúlio Vargas nos anos pós-1930.

Esta unidade está dividida em três tópicos e em cada um deles você encontra-rá atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados.

TÓPICO 1 – A REVOLUÇÃO DE 1930: GETÚLIO VARGAS NO PODER

TÓPICO 2 – O ESTADO NOVO E SEUS DESDOBRAMENTOS

TÓPICO 3 – A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMO CRACIA

Page 46: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

38

Page 47: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

39

TÓPICO 1

A REVOLUÇÃO DE 1930: GETÚLIO

VARGAS NO PODER

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

A recuperação integral da experiência vivida, do “fato”, é algo inacessível para os historiadores. A consciência desta falta resulta em uma atividade que busca, no limite, o máximo de aproximação em relação àquilo que teria ocorrido. Tal aproximação está sempre vinculada ao ponto de vista adotado pelo historiógrafo. É importante que esta questão fique bem clara, pois ela é a chave para a compreensão da existência de discursos que, embora tomem o mesmo “fato” como referência, conferem a ele significações diferenciadas.

Nesta segunda unidade, a começar por este tópico, nosso olhar será lançado em direção à análise de um período da História do Brasil bastante instigante, imerso em conflitos ideológicos, aspirações políticas e sociais das mais diversas inclinações. Por maiores que sejam as discordâncias entre os historiadores que escreveram sobre o período compreendido entre os anos de 1930 e 1964, não há quem discorde da importância de Getúlio Dorneles Vargas, possivelmente o maior articulador político da história republicana. Vargas chegou ao poder em 1930 e manteve-se nele até 1945. Saiu de cena entre o final de 1945 até 1950, tempo em que articulou a sua volta à Presidência em 1951, ficando nela até 1954, ano do seu suicídio. Mesmo após a morte, sua presença se fez valer durante no mínimo os dez anos seguintes.

Dando sequência à proposta de elaboração de um texto com um caráter

eminentemente didático, nesta unidade seguiremos um itinerário que toma por vetor central as ações do governo de Getúlio Vargas em seus distintos períodos de desenvolvimento. Em linhas gerais é possível falar na existência de três períodos. O primeiro se estende de 1930 a 1937, momento marcado por forte instabilidade e grandes oscilações no campo de forças políticas; o segundo vai de 1937 a 1945, período de vigência do chamado Estado Novo, cuja tônica foi a centralização do poder (com traços preponderantemente autoritários) e o investimento no desenvolvimento industrial do país; o terceiro surge logo após um breve período de governo militar (1946-1950) e se processa num momento em que no Brasil insinuavam-se os apelos de um regime democrático. Tais apelos se fizeram valer neste “segundo” governo de Vargas (1951-1954) e ressoaram durante os mandatos presidenciais seguintes. Em 1964 um golpe militar decretou o fim deste cenário. Para chegar até este ponto, momento final desta unidade, teremos que retroceder no tempo e observar com atenção alguns importantes eventos da década de 1920.

Page 48: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

40

2 A DÉCADA DE 1920: RAÍZES DE UM IMPASSE NÃO NEGOCIÁVEL

O pacto firmado entre as duas maiores forças econômicas do país, São Paulo e Minas Gerais, responsável pela instauração da “República do Café com Leite”, sofreu um golpe fatal no final da década de 1920. Tanto no viés econômico quanto no social, os anos vinte marcaram um ponto de inflexão nos rumos do regime republicano. Não se pode falar em uma ruptura radical, mas os ventos que sopravam no período traziam consigo ares da mudança. Penna afirma que

A década de 1920 foi marcada economicamente pelo esgotamento do modelo agroexportador, calcado quase que exclusivamente no café. No plano social, pela emergência definitiva da questão social que trouxe em seu bojo novos segmentos e camadas sociais. A inabilidade das elites brasileiras, profundamente conservadoras, concorreu para a superação das práticas políticas excludentes e, em consequência, para o próprio fim do sistema em vigor. Essa crise atingirá, politicamente, seu ponto de maior inflexão com a pressão exercida pelos militares, vinculados às revoltas do tenentismo, e pela desagregação da política de equilíbrio exercitada ao longo da Política dos Governadores. (PENNA, 1999, p. 151-152).

O cenário acima descrito ganha mais nitidez se o interpretarmos levando em conta o ano de 1922. Conforme vimos na unidade anterior, as reverberações da Revolução Russa causaram impacto no movimento operário e um impulso nas manifestações de rua, ocasionando um receio por parte dos grupos mais conservadores. Em meio a estes acontecimentos, no cenário político-eleitoral, ocorre a aproximação das oligarquias do Rio Grande do Sul, da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro, constituindo uma frente de oposição ao candidato do eixo São Paulo/Minas Gerais, Artur Bernardes. Este ano marca também a origem do Tenentismo, a revolta da oficialidade intermediária contra os rumos assumidos pelo governo na Política dos Governadores. Contemporâneos de 1922 presenciam a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), partido que viria a ter alcance nacional e cujo ideário chocava-se frontalmente com as práticas políticas vigentes no país. No plano cultural, o ano de 1922 é marcado pela disseminação de novas manifestações estético-políticas, materializadas de maneira clara na “Semana de Arte Moderna”. Formalização de um conjunto de propostas intelectuais, a Semana de Arte Moderna lançou ao proscênio três maneiras distintas de pensar o Brasil: a corrente “verde-amarela”, que pregava a reflexão da brasilidade, propondo o abandono de influências estrangeiras e sustentando a singularidade do país; a corrente “antropofágica”, cuja proposta era a incorporação dessas influências através de um “canibalismo cultural”; e, por fim, a corrente que previa a incorporação, por parte do país, de valores culturais considerados universais. Nesta última destacou-se Mário de Andrade (PENNA, 1999). Este intelectual viria a ter uma importante participação no governo – na área de políticas culturais – anos mais tarde, por ocasião do Estado Novo.

Page 49: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | A REVOLUÇÃO DE 1930: GETÚLIO VARGAS NO PODER

41

Proscênio é a parte anterior dos palcos dos teatros, junto à ribalta; teatro, cena, palco; lugar onde acontecem fatos à vista de todos; arena, cenário. (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1.563).

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Arte- moderna-1922.jpg>. Acesso em: 10 abr. 2010.

FIGURA 12 – PERSONALIDADES DA SEMANA DE ARTE MODERNA

A Figura 12 mostra importantes personalidades que participaram da Semana de Arte Moderna de 1922. Mário de Andrade (sentado), Anita Malfatti (sentada, ao centro) e Zina Aita (à esquerda de Anita), em São Paulo, Brasil, 1922.

A Semana de Arte Moderna pode ser interpretada como uma manifestação, no plano cultural, de que o Brasil sofria mudanças importantes. A preocupação com uma reflexão sobre o país, sobre o que vinha a ser o Brasil, trazia consigo aspectos de crítica social que reverberavam no terreno político. O presente carregava consigo um sintoma e um índice: o primeiro aludia à doença crônica decorrente dos conchavos que ditavam os rumos políticos do país; o segundo indicava a necessidade de ruptura com o passado. É significativo o fato de o evento ter ocorrido em São Paulo, cidade que apresentava o processo de urbanização

NOTA

UNI

Page 50: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

42

e crescimento mais acelerado do país, pois a capital paulista pode ser tomada como exemplo da emergência de novos grupos sociais – transmudados em atores políticos – não comportados nos quadros da República Velha.

A incapacidade da cúpula do PRP em aceitar o novo cenário social e político levou ao surgimento de lutas internas que enfraqueceram o partido. Em 1926, por exemplo, é criado em São Paulo o Partido Democrático (PD). Seu surgimento se deveu, em grande medida, ao descontentamento de alguns segmentos do PRP que viam nas ações governamentais e na postura da cúpula um perigo à ordem institucional. Segundo Penna (1999), o objetivo do PD era “mudar para conservar”, ou seja, era necessário absorver certas demandas da sociedade e administrá-las politicamente para que se eliminasse o perigo da ruptura radical do sistema.

Como você pode notar, a década de 1920 foi se constituindo em um barril de pólvora. Enquanto o poder econômico das elites paulistas e mineiras era garantido pela rentabilidade do café, o estopim esteve longe de ser aceso. Ocorre que, em 1929, a eclosão de uma grave crise de alcance mundial balançou os alicerces da estrutura econômica vigente. Em 1930, ano eleitoral, de acordo com o pacto político estabelecido entre São Paulo e Minas Gerais, Washington Luís deveria indicar Antônio Carlos, governador (em verdade, na época o cargo era o de “presidente do estado”) de Minas, como seu sucessor. Possivelmente preocupada com a condução das políticas de valorização do café, a cúpula do PRP apoiou Washington Luís na indicação do paulista Júlio Prestes. O fato resultou na fagulha necessária: o barril explodiu.

3 A ALIANÇA LIBERAL E A “REVOLUÇÃO” DE 1930

Durante toda a República Velha o Estado do Rio Grande do Sul ocupou uma posição intermediária na hierarquia do poder. Contudo, tal posição não impediu sua participação em muitos dos principais eventos políticos do período. A Revolução Federalista, em 1893, foi o momento em que a ação direta mais se fez valer, mas isto não significa que as lideranças políticas do Estado não estivessem presentes em outros momentos decisivos. Em 1930, ano que inaugurou um novo período da República brasileira, uma dessas lideranças projetou-se no cenário nacional: Getúlio Vargas.

Vargas nasceu em 1882, na cidade de São Borja, na divisa do Brasil com a Argentina. Filho de uma tradicional família gaúcha, ingressou na carreira militar, mas deixou a função. Formou-se em Direito e chegou a exercer o cargo de promotor público. Em 1909 foi eleito deputado estadual pelo Partido Republicano Riograndense e, anos mais tarde, deputado federal. Sua atuação na Câmara dos Deputados, como líder da bancada gaúcha, rendeu-lhe uma indicação ao cargo de ministro da Fazenda no governo de Washington Luís. Com este último, Vargas manteve um bom relacionamento durante muitos anos. Sua saída do ministério se deveu ao fato de ter se candidatado, em 1927, ao governo do Estado do Rio Grande do Sul. Eleito, não chegou a concluir o mandato. Uma guinada em sua carreira política colocou-o em um novo rumo.

Page 51: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | A REVOLUÇÃO DE 1930: GETÚLIO VARGAS NO PODER

43

O descontentamento do PRM em relação à indicação de Júlio Prestes induziu uma aproximação entre os mineiros e importantes grupos políticos do Rio Grande do Sul e da Paraíba. Esta aproximação resultou na formação da Aliança Liberal, cujo candidato escolhido para a disputa da eleição, marcada para o dia 01 de março de 1930, foi Getúlio Vargas (como vice foi indicado João Pessoa, da Paraíba). O surgimento da Aliança Liberal e, principalmente, o fato de esta agremiação ter alcançado expressão nacional, constituindo-se como um grupo de pressão, foi uma novidade no cenário republicano. Pela primeira vez uma força política civil não representava apenas os interesses dos cafeicultores.

Por ocasião das eleições, as velhas práticas de fraude eleitoral se fizeram valer mais uma vez. De acordo com Penna (1999), ambos os candidatos foram agraciados por uma enxurrada de votos de natureza duvidosa. Para se ter uma ideia, no Rio Grande do Sul teriam comparecido 99% dos eleitores, dando a Getúlio 699.627 votos e a Júlio Prestes apenas 982. São Paulo não deixou por menos: apenas inverteu a proporção. Apurada a totalidade dos votos, as “urnas” apontaram Júlio Prestes como vencedor. Levando-se em conta o fato de que a fraude eleitoral não era uma novidade, possivelmente Júlio Prestes teria sido empossado sem maiores problemas. Mas o acaso entrou em cena.

Rivalidades políticas no Estado da Paraíba resultaram no assassinato de João Pessoa (morto por João Dantas, um jornalista e adversário político). Embora tenha sido o fruto de rixas internas, este evento agiu como um catalisador que exaltou os ânimos no país. Depois de cogitada, a ideia de uma revolução ganhou corpo e se materializou.

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9a/ Ao300706_2.jpg>. Acesso em: 21 mar. 2010.

FIGURA 13 – TELEGRAMA DA RÁDIO CRUZEIRO, NOTICIANDO O ASSASSINATO DE JOÃO PESSOA

Page 52: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

44

De acordo com Penna (1999), civis como Osvaldo Aranha e Lindolfo Collor reuniram-se com generais que detinham postos de comando visando à articulação do movimento. No dia 24 de outubro ocorre o golpe de Estado, com a deposição do presidente Washington Luís e a instauração de uma junta militar que condicionou a entrega do governo a Getúlio Vargas mediante o cumprimento de alguns compromissos, tais como a manutenção dos ministros militares. Esta foi a primeira de muitas concessões que Vargas teve que fazer em prol da governabilidade. Com efeito, a busca por apoio e simpatia levou o novo presidente a negociar em várias frentes. A Igreja compôs uma delas. Segue abaixo a transcrição (mantendo a escrita original) de uma carta endereçada ao Cardeal D. Sebastião Leme explicando e justificando a Revolução de 1930.

Rio, 14 de Novembro de 1930.A Sua Eminencia o SenhorCardeal D. Sebastião Leme.

Tenho o prazer de accusar o recebimento das cartas que, nos dias 9, 10, e 11 do corrente Sua Eminencia me dirigiu.

O preclaro Chefe do Episcopado Brasileiro conhece necessariamente a marcha dos acontecimentos que, encadeados uns aos outros, culminaram no movimento revolucionário, irrompido em 3 de Outubro.

De parte dos homens que hoje occupam o poder houve, sempre, manifestado de varios modos e em multiplas occasiões, sincero desejo de concordia e, tão forte era esse desejo, que, por vezes, a opinião publica tomou a nossa attitude, como índice de fraqueza e sem razão.

Procuramos, durante longos mezes, evitar, com abnegação, a lucta que se presentia, proclamando, continuamente, que as reivindicações almejadas não deviam ultrapassar o puro dominio das ideias, bastando para uma acomodação fossem aceitos e praticados, pelos detentores do poder, os principios que nos congregavam.

Todo esse esforço para manter uma ordem de cousas que não desejavamos anniquilar, mas, apenas modificar para o bem da nação, foi inutil. O Governo de então recebia os nossos appellos tentando asphixiar, por meios illegaes, a vontade popular, praticando os maiores attentados contra direitos inviolaveis, destruindo principios basilares da nossa organização, qual o da autonomia dos Estados, e, chegando ao cumulo, com a sua intervenção indebita na Parahyba, de concorrer para o desfecho tragico em que foi sacrificado o cidadão eminente que a presidia.

Iniciada a revolução, com o baptismo do sangue brasileiro e a perda de vidas preciosas, é natural que novo rumo tomasse os acontecimentos e a conquista de principios, que constituia o ideial dos que se oppunham aos desmandos do Governo, foi accrescida, pela revolução victoriosa, do dever indeclinavel de se apurarem as responsabilidades dos que dispunham dos cargos da administração publica e delles abusaram.

Page 53: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | A REVOLUÇÃO DE 1930: GETÚLIO VARGAS NO PODER

45

Mesmo assim Sua Eminencia terá observado que todas as autoridades do governo actual têm agido com a maior magnanimidade, em relação aos vencidos, tratando-os com respeito e bondade, convindo notar-se, somente os poderosos hão sido atingidos pela justiça revolucionária, emquanto os humildes, victimas preferidas do governo que passou, nada têm soffrido.

Os acctuaes dirigentes da nação não podem fugir ao imperativo consubstanciado no postulado de que a piedade jamais deve sobrepor-se á justiça. Justiça, exclusivamente, guiará a acção das actuaes autoridades. Os altos funccionarios do Governo deposto responderão apenas por crime de direito commum, devendo ser julgados por tribunal especial, composto por homens de altas virtudes e competencias juridica indiscutivel.

Louvando a nobre intervenção de Sua Eminencia, digna de admiração e respeito, affirmamos, com segurança, poder reppousar, tranquilla e sem sobresaltos, a consciencia christã e catholica do Brasil, pois, jamais patrocinaremos violencias, apenas procurando realizar meritoria obra de saneamento moral e politico, impossivel de ser evitada, conhecidos os compromissos que assumimos com a opinião pública nacional.

Aproveito o ensejo para reiterar a Sua Eminencia os protestos de minha alta estima e mais distincta consideração.

FONTE: CENTRO de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC – Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/>. Acesso em: 21 mar. 2010.

O CPDOC disponibiliza para consultas on-line um arquivo digitalizado que contém milhares de manuscritos e outros documentos históricos, tais como fotografias, arquivos pessoais, entrevistas etc. de grandes personagens da história nacional. Importantes elementos da História Política do Brasil Contemporâneo aparecem nessas fontes. Por exemplo: os telegramas e as cartas escritos ou recebidos por Getúlio Vargas entre 1929 e 1930 dão uma clara noção de como a Aliança Liberal e a Revolução de 1930 foram articuladas. Vale muito a pena verificar.

Conforme consta na correspondência, o movimento revolucionário teve início no dia 3 de outubro. Organizado sob o comando do coronel Góes Monteiro (conhecido de Getúlio desde os tempos em que este ingressou no exército), envolveu todos os estados, com exceção de São Paulo. Ou seja, durante todo o mês de outubro de 1930 ocorrem as mobilizações e os acordos políticos que deram sustentação ao golpe ou, dito de outra forma, à Revolução. No bojo desses acordos abrigaram-se os interesses de oligarquias regionais, mas também, dentre outras, as reivindicações de militares que haviam participado do movimento tenentista.

DICAS

Page 54: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

46

Estes indivíduos, após terem sofrido perseguição durante os governos de Artur Bernardes e Washington Luís, retornavam ao cenário político. Del Priore e Venâncio (2003) afirmam que o cenário criado nos anos 30 deu a tônica à história política brasileira até 1954, ou seja, resultou na emergência de uma série de alianças, rupturas, aproximações e perseguições entre o novo presidente e diversos segmentos da sociedade. Negociação foi a palavra de ordem durante o período em que Vargas esteve à frente do poder.

Embora os interesses de oligarquias regionais se fizessem valer uma vez mais, isto não significa afirmar que o ano de 1930 não tenha sido importante, pois, mesmo

Não tendo caráter acentuadamente social e muito menos qualquer ambição de promover radicais transformações nas relações de produção, 1930 teve significativa importância se considerarmos certos aspectos ligados ao processo de modernidade brasileira. Elevou, por exemplo, o nível de aspirações políticas de parcelas expressivas da população até então excluídas do processo político do país. Incrementou a industrialização, através de uma consciência que julga como inadiável a questão industrial, sobretudo para uma nação que se pretende soberana. Definiu-se pela organização da estrutura sindical, incorporando os trabalhadores na vida política do país. Fortaleceu o Estado reduzindo o poder de grupos econômicos ligados às velhas práticas oligárquicas. Nesse sentido, 1930 promoveu uma revolução nas relações entre Estado e sociedade cujas consequências não são desprezíveis (PENNA, 1999, p. 168).

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f6/Revolu %C3%A7%C3%A3o_de_1930.jpg>. Acesso em: 31 mar. 2010.

FIGURA 14 – COMITIVA DE GETÚLIO VARGAS

Page 55: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | A REVOLUÇÃO DE 1930: GETÚLIO VARGAS NO PODER

47

A Figura 14 mostra a comitiva de Getúlio Vargas (ao centro) fotografada por Claro Jansson durante sua passagem por Itararé (São Paulo) a caminho do Rio de Janeiro, após a vitoriosa Revolução de 1930.

Refletindo sobre outra ordem de fatores, Linhares (1990) nos lembra que a Revolução de 30 inaugurou uma etapa decisiva no processo de constituição de um Estado brasileiro capitalista e burguês. Quebrando a autonomia dos estados, Vargas promoveu uma forte centralização do poder, exercendo controle sobre as políticas econômicas e sociais e construindo um forte aparelho coercitivo e repressivo. O suporte ideológico dado a estas iniciativas repousava na crença de que o Estado agia como um representante do interesse geral da nação. Conforme veremos no Tópico 2, isto ficou mais do que evidente em 1937, por ocasião da instauração do Estado Novo.

Tendo em vista a governabilidade e o fortalecimento do aparato administrativo, Vargas desenvolveu ações em três direções: definiu um novo padrão de relações políticas entre o governo federal e os estados; promoveu a criação de instituições com abrangência nacional (principalmente aquelas ligadas à economia); ampliou a importância e o papel desempenhado pelo exército (alguns militares, inclusive, participaram diretamente da administração, como foi o caso de Juarez Távora). Por outro lado, a implementação dessas medidas dependia da eficácia do controle do governo sobre os estados da federação. Para tanto, Vargas criou o cargo de Interventores Estaduais, que ocuparam o lugar dos antigos presidentes (ou governadores) dos estados, obedecendo às ordens do presidente. A nomeação de um desses interventores, para São Paulo, resultou em uma guerra civil entre este Estado e a União.

4 PRIMEIROS ANOS: OPOSIÇÃO, CONFLITOS E O CAMINHO RUMO AO ESTADO NOVO

A criação do Partido Democrático em São Paulo, conforme vimos, respondeu pela expectativa de adequação das ações governamentais às novas demandas políticas e sociais gestadas ao longo da década de 1920. Por este motivo, o PD paulista teve participação direta na Aliança Liberal. Ocorre que, ao dissolver o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas dos estados, mas, principalmente, ao nomear interventores para os estados, Vargas conquistou para si a antipatia de seus aliados de ocasião.

Do ponto de vista dos democratas paulistas, o objetivo do governo provisório era garantir a reforma política via convocação de uma Assembleia Constituinte. A nomeação do interventor João Alberto Lins de Barros, tenente promovido a coronel

UNI

Page 56: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

48

por ocasião da Revolução de 30, foi prova de que as intenções de Vargas diferiam significativamente daquela dos democratas. Se, para o presidente, um controle maior sobre São Paulo era vital para manutenção do poder, para os dirigentes do PD o apoio dado a Vargas nas eleições de 30 era motivo mais do que suficiente para que ao partido fosse concedida a prerrogativa de indicar um interventor advindo de suas fileiras. O descontentamento do PD resultou em uma aproximação em relação ao PRP e na formação da Frente Única Paulista (FUP).

Elites políticas de estados como Minas Gerais e Rio Grande do Sul também nutriam certo desconforto em relação às ações do governo. A reivindicação desses grupos dizia respeito principalmente à realização de eleições, posto que o governo de Vargas era apenas provisório. Observando que o descontentamento ganhava corpo, Vargas publicou um novo Código Eleitoral e fixou data para eleições da Assembleia Constituinte. Mudanças importantes, como a introdução do voto feminino, do voto secreto e a extensão aos sindicatos do direito de indicação de representantes ao Congresso Nacional, assim como a criação da Justiça Eleitoral, resultaram em uma racionalização do processo eleitoral, erradicando muitas das práticas fraudulentas que vigoraram durante a Primeira República.

Ocorre que a dubiedade e o conteúdo das entrelinhas do texto de convocação da Assembleia Constituinte davam margem à interpretação de que Vargas não intentava deixar o poder. Em razão disso, e também como uma resposta à imposição do interventor em São Paulo, os paulistas pegaram em armas contra o governo. No entendimento de Del Priore e Venâncio (2003), caso não houvesse ocorrido um recuo dos grupos políticos mineiros e gaúchos, Vargas seria deposto.

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/77/Cartaz_ Revolucion%C3%A1rio.jpg>. Acesso em: 10 mar. 2010.

FIGURA 15 – CARTAZ CONVOCANDO JOVENS PAULISTAS PARA A REVOLUÇÃO DE 1932

Page 57: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | A REVOLUÇÃO DE 1930: GETÚLIO VARGAS NO PODER

49

A eclosão do movimento deu-se em 09 de julho de 1932. Os confrontos com tropas do governo federal contaram com a participação de muitos segmentos da população paulista, com exceção dos trabalhadores, cujos interesses, em parte, eram contemplados por algumas ações governamentais. Os combates se estenderam durante três meses. Em outubro, os paulistas se renderam. Embora derrotados, o movimento

[...] alcançou parte importante de seus objetivos. No ano seguinte ao seu término, além da confirmação da convocação da Assembleia Constituinte, os paulistas conseguiram influenciar na escolha do interventor local, Armando Salles de Oliveira. O mérito de Getúlio foi ter conseguido permanecer no poder. Sua situação, porém, era frágil. Na ausência de um partido político de alcance nacional que o apoiasse, foi-lhe necessário fazer várias concessões às oligarquias, tal como aconteceu por ocasião da escolha do interventor paulista. O presidente teve ainda que aceitar uma Constituição de cunho liberal, que em muito restringia seu poder. De certa maneira, Getúlio pagava o preço por ter feito uma revolução política, mas não econômica ou social. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 313).

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/83/Foto136. jpg>. Acesso em: 10 mar. 2010.

FIGURA 16 – SOLDADOS PAULISTAS EM TRINCHEIRAS EM COMBATE POR OCASIÃO DA REVOLUÇÃO CONSTITUCIONALISTA

À vitória sobre a oligarquia paulista soma-se a promulgação da Constituição de 1934. O momento era o de transição e havia a necessidade de uma eleição para legitimar o governo republicano. Como seria de se imaginar, Vargas, como presidente provisório, era um candidato natural. Embora a aceitação de sua candidatura não fosse unanimidade, Vargas foi lançado oficialmente em abril de 1934 e, após ter sua campanha marcada por atos que visavam criar um clima favorável à sua eleição, como, por exemplo, a suspensão da censura à imprensa, foi eleito indiretamente pelo Congresso. Assim, entre 1934 e 1937, surge o período constitucional.

Page 58: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

50

Como você já deve ter notado, a inexistência de partidos de alcance e representatividade nacional era uma das consequências da forma como a estrutura política fora concebida durante a República Velha, período em que os interesses regionais ditavam as regras. Tentando contornar esta situação, Getúlio promove uma maior aproximação tanto em relação aos trabalhadores (operários) quanto em relação ao exército. No que se refere a este último, vislumbrava neste ato uma maneira de garantir o apoio de uma instituição que, além do poder de fogo, tinha abrangência nacional. O problema é que o próprio exército, em verdade as forças armadas como um todo, não constituía um todo coeso e sujeito aos mesmos interesses.

Dentre outros desdobramentos, a crise econômica de 1929 – cujos efeitos se fizeram valer, com menor ou maior intensidade, em todos os países capitalistas –, gerou um surto de descontentamento em relação às políticas liberais favoráveis ao não intervencionismo estatal no campo econômico. Uma interpretação possível para a crise mundial de 1929, que eclodiu num momento em que as sequelas da Primeira Guerra Mundial ainda estavam presentes, sugere que foi justamente a ausência de intervenção do Estado na economia que teria propiciado a crise ou, pelo menos, a magnitude do seu impacto. Ocorre que a União Soviética, uma economia socialista e planificada, contrária aos princípios liberais, foi o país menos atingido pela crise. Enquanto os Estados Unidos e países da Europa enfrentavam surtos de falências, desemprego e estagnação econômica, a URSS, na década de 1930, apresentava índices notáveis de crescimento. Se o ideário socialista havia encontrado boa acolhida por parte do movimento operário já na década de 1920 (logo após a Revolução Russa), nos anos 30 seu apelo foi ainda maior. Neste quadro podemos inserir uma das razões da fratura existente no exército.

Embora uma parcela dos participantes do movimento tenentista tenha se integrado à máquina administrativa do governo provisório, outra parte firmou presença na oposição, radicalizando cada vez mais suas posições políticas. Luiz Carlos Prestes foi um exemplo. Del Priore e Venâncio (2003) afirmam que desde 1927, ano da extinção do tenentismo, Prestes estava sendo contatado pelo PCB. Durante os dois anos seguintes o PCB, agora sob forte influência das diretrizes da política internacional soviética, passa a contar com o apoio de tenentes dissidentes, criando, em 1929, o Comitê Militar Revolucionário. Em 1931 Prestes filia-se ao partido e viaja para Moscou, onde permanece até 1934.

No ano de 1935, após a volta de Prestes, agora um militante ativo do PCB, ocorre a criação da Aliança Nacional Libertadora (ANL). Sua fundação foi uma resposta à tendência de internacionalização do socialismo cujas diretrizes emanavam de Moscou e defendiam a articulação de uma Frente Popular. No bojo da ANL associavam-se grupos socialistas e nacionalistas, anti-imperialistas e contrários ao nazifacismo (extrema direita que ganhava corpo na Alemanha e na Itália), mas também tentativas de proteção das classes populares contra os impactos funestos da crise econômica de 1929. Penna (1999) afirma que o programa da ANL preconizava a implantação de um governo popular, a reforma agrária, a suspensão da dívida externa e a nacionalização das empresas estrangeiras que atuavam no

Page 59: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | A REVOLUÇÃO DE 1930: GETÚLIO VARGAS NO PODER

51

Brasil. O problema é que a comunhão de propostas esbarrava na maneira como os diferentes grupos integrantes da ANL concebiam a maneira de pô-las em prática.

[...] a política frentista da ANL apresentava desde seu início um forte desequilíbrio a favor dos comunistas. Assim, a ANL, embora composta por forças políticas moderadas, teve como presidente de honra Luís Carlos Prestes. O PCB, por sua vez, assumiu posturas cada vez mais radicais contra Getúlio Vargas, abrindo caminho para que fosse decretado, em julho de 1935, o fechamento de nossa primeira experiência de front populaire. Extinta a ANL, os comunistas, por sua vez, avaliam mal a correlação de forças e partem para o confronto com o governo federal. Em novembro de 1935, no melhor estilo das revoltas tenentistas, os quartéis se levantam contra Getúlio Vargas. Em Natal, no Recife e no Rio de Janeiro, os conflitos acabam resultando em mortes de oficiais e soldados. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 315).

O episódio descrito acima, também conhecido como Intentona Comunista, foi muito bem aproveitado por Vargas, pois serviu como um excelente pretexto à perseguição e repressão sistemática não só de comunistas, mas dos mais variados grupos que se opunham ao governo. Por outro lado, o movimento favoreceu ainda mais a aproximação entre Vargas e os militares, cujo efetivo aumentou significativamente no ano de 1936. Neste contexto pavimenta-se a via que conduziria à instauração do Estado Novo.

FONTE: Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos30-37/RadicalizacaoPolitica/ANL>. Acesso em: 7 maio 2010.

FIGURA 17 – LEVANTE COMUNISTA (AVENIDA PASTEUR, 1935, RIO DE JANEIRO)

O texto constitucional de 1934, que previa a eleição para este mesmo ano, pregava também a realização de novas eleições em 1938, ocasião do término do mandato de Vargas. As articulações políticas estavam em pleno curso já no ano de 1936, sendo que, dentre as correntes políticas que vislumbravam a Presidência, constava a Ação Integralista Brasileira (AIB). Nascida em 1932, sob influência de Plínio Salgado, a AIB sustentava um programa de cunho doutrinário que supunha “serem os povos dirigidos por Deus e que os homens e as classes têm tudo para viverem harmoniosamente”. (PENNA, 1999, p. 183). A negação da luta de classes

Page 60: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

52

evidenciava nesta proposta a influência do pensamento católico tradicionalista e seu caráter anticomunista ou antimarxista (o lema do Integralismo era “Deus, Pátria e Família”). Alastrando-se pelo país, a AIB conseguiu amealhar seguidores, ganhando dimensão nacional e, consequentemente, vislumbrando o poder.

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/e/e5/Congresso _Integralista_1935.jpg>. Acesso em: 28 mar. 2010.

FIGURA 18 – SESSÃO DE ENCERRAMENTO DO CONGRESSO INTEGRALISTA. PLÍNIO SALGADO ENCONTRA-SE AO CENTRO (SENTADO). BLUMENAU –SC, 1935

Durante seus anos de existência a AIB desenvolveu uma postura que em muito se assemelhava à de grupos paramilitares, inclusive adotando um uniforme padrão. Os “camisas verdes”, como passaram a ser conhecidos, possuíam um órgão de divulgação de ideias, a revista Anauê, cujos escritos organizavam-se em três frentes: uma político-social, uma sociocultural e uma moral-espiritual. Estruturada em células, a AIB se fez presente inclusive em municípios com um número muito reduzido de habitantes, tais como os pequenos municípios do interior dos estados do Sul do país. Em 1937 chegou a haver uma aproximação entre a AIB e Getúlio Vargas, mas em novembro deste mesmo ano um decreto governamental extingue o movimento e ordena o fechamento de seus núcleos organizacionais. Meses depois, no início de 1938, uma tentativa de subversão levada a cabo pela AIB, objetivando a deposição de Vargas, foi desbaratada pelas forças governamentais.

A absoluta discrepância entre o ideário da ANL e o da AIB não impede a existência de um denominador comum entre os dois movimentos: em ambas as pautas irrompiam questões relativas à luta de classes. Embora os vetores operacionais da ANL tenham se desviado da linha programática que preconizava ações de massas dentro dos quadros da legalidade constitucional, indo, desta forma, ao encontro de ações clandestinas com viés golpista, a expectativa de fomentar o caráter explosivo da mobilização do proletariado sempre esteve presente. A AIB, por sua vez, tendia a aplainar o relevo dado à questão social, negando categoricamente a luta de classes. Neste assunto sua ação foi tão incisiva que acabou resultando em uma das maiores farsas do período republicano: o Plano Cohen, impulso derradeiro à implantação do Estado Novo. Analisaremos este assunto no próximo tópico.

Page 61: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | A REVOLUÇÃO DE 1930: GETÚLIO VARGAS NO PODER

53

LEITURA COMPLEMENTAR

OUTROS OLHARES: SANGUE BRASILEIRO

Por José Alfredo Vidigal Pontes

Ao contrário do que se diz, a Revolução Constitucionalista de 1932 não foi um movimento meramente regional de inspiração revanchista, maquiado por “separatistas” de São Paulo.

“Tive anteontem um longo e cordial colóquio com João Alberto, que me fez declarações de estilo absolutamente fascista. Ele disse que o Brasil deverá permanecer um período de alguns anos de luta intestina se persistir no estilo liberal antiquado, a não ser que os brasileiros se convençam de que a salvação da nação na presente época histórica está nos regimes que exercitam uma autoridade indiscutível e ilimitada através da imposição de uma rígida disciplina.”

Este era o texto de um telegrama enviado em 18 de setembro de 1932 pela embaixada italiana no Rio para a chancelaria em Roma. Vittorio Cerruti, o embaixador italiano no Brasil, informava ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Itália, então sob o regime do fascista Benito Mussolini, acerca da guerra civil brasileira em curso. A referência ao pensamento político de João Alberto Lins de Barros, um dos mais destacados “tenentes” do círculo mais próximo a Getúlio Vargas, revelava a sedução representada pelo autoritarismo entre a cúpula decisória do Governo Provisório, nome pelo qual era chamada a ditadura imposta após a Revolução de 1930.

Iniciada na noite de 9 de julho de 1932, em São Paulo, a Revolução Constitucionalista não era “revanchista” ou “separatista”, como alardeou a propaganda do Governo Provisório para todo o país, a partir do isolamento a que foi relegado o Estado de São Paulo logo no início da insurgência, resultado de uma eficiente contraofensiva política e militar de Vargas. Como poderia ser separatista uma insurreição comandada por militares oriundos de outros estados? A Revolução Constitucionalista foi efetivamente uma confrontação ideológica nacional entre os “tenentes”, defensores de um regime autoritário, e políticos que, na verdade, tinham apoiado a candidatura de Vargas à Presidência da República, na campanha da Aliança Liberal de 1929/30, assim como a própria revolução vitoriosa de outubro de 1930 – seus aliados de véspera, portanto.

O grupo dos “tenentes” era formado por antigos participantes dos movimentos militares de contestação ocorridos nos anos 20. Durante e após a Revolução de 1930, movimento civil e militar vitorioso que derrubou o governo de Washington Luís (1926-1930), e junto com ele o viciado regime eleitoral vigente, alguns deles ganharam

Page 62: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

54

grande projeção e prestígio junto ao Governo Provisório chefiado por Getúlio Vargas. Dentre eles destacam-se João Alberto, Juarez Távora e Miguel Costa. “Os tenentes” defendiam abertamente um governo executivo forte e centralizado, desprezando a ideia de eleições, pois temiam que as dificuldades econômicas abrissem a possibilidade de haver um retorno das oligarquias afastadas. Do outro lado, os constitucionalistas acreditavam que, se ocorresse uma eleição limpa e transparente, incorporando novidades como voto secreto e voto feminino, as forças mais progressistas do país seriam amplamente representadas na futura Assembleia Constituinte.

Em novembro de 1931 ocorreu o primeiro movimento de pressão mais consistente pela convocação da Assembleia Constituinte, vindo das principais lideranças políticas do Rio Grande do Sul. Reunidos no interior do Rio Grande, os dois partidos gaúchos, Republicano e Libertador – coligados na Frente Única Gaúcha desde 1929 durante a campanha presidencial de Getúlio Vargas –, exigiam a convocação das eleições. Em São Paulo, nesta altura, o cenário político era bastante tenso. O ano de 1931 chegava ao final sob o governo do coronel Manuel Rabelo, o terceiro interventor estadual desde a vitória da Revolução de 1930. A primeira interventoria no Estado fora assumida por João Alberto, um dos principais comandantes da famosa Coluna Prestes (1924-26) e ligado aos “tenentes”. Isto frustrou os políticos paulistas do Partido Democrático, agremiação de oposição ao regime derrubado, também aliada dos revolucionários desde o início da Campanha da Aliança Liberal, em 1929.

A gestão de João Alberto durou pouco mais de oito meses, tendo sido substituído por um juiz de direito, Laudo de Camargo, logo afastado por pressão de Miguel Costa, o comandante da Força Pública, a polícia militar estadual. Foi então que assumiu interinamente outro militar, o coronel Manuel Rabelo, alinhado com os “tenentes”. O desgaste do Governo Provisório em São Paulo era crescente, resultando na formação da Frente Única Paulista, em fevereiro em 1932. Tratava-se de uma aliança das principais lideranças políticas de São Paulo, reunindo adversários antigos, como o Partido Democrático, e alguns setores do PRP, o Partido Republicano Paulista, proscrito desde 1930. Porém, no dia 24 de fevereiro, surpreendendo a todos, Getúlio Vargas publicou um novo código eleitoral, bastante progressista para a época, mas sem definir a data das eleições.

A reação contrária foi violenta: na noite seguinte à divulgação do novo código, alguns adeptos dos “tenentes” empastelaram o Diário Carioca, jornal constitucionalista do Rio de Janeiro. Getúlio Vargas procurou atender uma das reivindicações dos opositores e, no dia 1° de março, nomeou um interventor “civil e paulista”, o embaixador Pedro de Toledo, embora exigisse que metade do secretariado fosse indicada pelos “tenentes”. A repercussão foi péssima: mais uma vez o Partido Democrático sentiu-se desprezado, iniciando entendimentos

Page 63: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | A REVOLUÇÃO DE 1930: GETÚLIO VARGAS NO PODER

55

com oficiais do Exército e da Força Pública visando a um movimento armado para derrubar a ditadura. A tensão nas ruas, em São Paulo, era crescente. Estudantes de Direito, adeptos da Constituinte, enfrentavam-se com as Legiões Revolucionárias, uma organização paramilitar fardada, controlada por Miguel Costa. Inspiradas nos Camisas Negras de Mussolini, as Legiões foram transformadas logo após em partido político de apoio à continuidade da ditadura: o PPP, Partido Popular Paulista.

Retomando a iniciativa, no dia 7 de maio, Vargas marcou as eleições para o dia 3 de maio de 1933, quase um ano após, portanto, conseguindo descontentar gregos e troianos. Para os constitucionalistas era muito tarde e, para os “tenentes”, cedo demais. Preocupado com a evolução do clima de confronto, Vargas enviou Osvaldo Aranha, o ministro da Fazenda, como emissário a São Paulo para a definição do secretariado, questão que se arrastava há mais de dois meses. Mas sua chegada a São Paulo, no dia 22 de maio, provocou uma série de protestos e manifestações de rua, forçando Aranha a refugiar-se no Quartel-General do 2° Exército, onde passou a noite. No dia seguinte, após consultar Vargas, aceitou que a Frente Única Paulista indicasse totalmente o secretariado e retornou ao Rio. O primeiro ato do novo secretário da Justiça, o jurista Waldemar Ferreira, foi o afastamento de Miguel Costa do comando da Força Pública. No dia seguinte, ocorria uma grande manifestação de estudantes em Porto Alegre em comemoração à vitória política da Frente Única Paulista. Diante da evolução dos fatos, no decorrer do mês de junho Vargas tentou se aproximar dos constitucionalistas, os quais exigiam indicar a totalidade do Governo Provisório, bem como a convocação imediata de eleições. Mas, pressionado pelos “tenentes”, acabou desistindo da reforma ampla cogitada, causando novamente o rompimento dos políticos gaúchos e paulistas com o Governo Provisório, bem como a retomada da conspiração armada.

Os constitucionalistas gaúchos não estavam mais seguros quanto ao posicionamento de Flores da Cunha, o interventor no Rio Grande do Sul. Em razão disso, pediam que se adiasse o início da rebelião. Ignorando o fato, o general Bertoldo Klinger, comandante militar de Mato Grosso, precipitou-se ao forçar o início da insurgência na noite de 9 de julho, em São Paulo. Colhidos de surpresa, os constitucionalistas gaúchos não puderam se articular convenientemente, sob a vigilância de uma interventoria já comprometida com o Governo Provisório. E em Minas Gerais, onde a articulação prévia era mais frágil ainda, a adesão armada foi nula.

Foi uma revolução que já nasceu derrotada, pois a disparidade de forças era enorme. O general Klinger, que prometia uma tropa de 6 mil soldados, chegou a São Paulo acompanhado por dez pessoas. O apoio gaúcho ficou restrito a uma coluna com cerca de trezentos homens, com ações restritas ao interior do Rio Grande, onde resistiram bravamente. E no Rio, diversos oficiais de alta patente esperavam em vão

Page 64: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

56

o avanço das tropas que vinham de São Paulo para concretizar a tomada da capital da República. Mas as forças constitucionalistas estacionaram no Vale do Paraíba paulista, aguardando uma hipotética e ilusória adesão dos mineiros.

Apesar do isolamento imposto aos insurgentes paulistas, manifestações de apoio ocorreram em outros estados. Na região sul do Mato Grosso, alguns destacamentos do Exército também se rebelaram, conseguindo ocupar dois portos fluviais no rio Paraguai. Estudantes promoveram manifestações de rua em Salvador e no Rio. Mas foi em Belém que os fatos evoluíram de forma mais dramática: estudantes secundaristas e universitários armados conseguiram ocupar o centro da cidade por dois dias. As forças rebeldes contaram com cerca de 40 mil combatentes, muitos deles civis voluntários, contra 300 mil do Governo Provisório que se revezavam.

Uma rápida adaptação da indústria paulista para o esforço da guerra chegou mesmo a assustar a ditadura no mês de agosto, surpreendida com a eficiência alcançada na reposição de armas e munições. Roberto Simonsen, presidente da Federação das Indústrias, comandou pessoalmente esse trabalho de interação do parque industrial com as necessidades de combate, articulando empresários, militares, engenheiros e técnicos. Mas, 85 dias depois de iniciada, a Revolução Constitucionalista chegaria ao fim no dia 2 de outubro, com o triste saldo de cerca de seiscentos mortos entre os insurgentes e duzentos nas tropas do Governo Provisório. As lideranças civis e militares dos rebeldes foram expatriadas e não puderam participar da eleição para a Assembleia Constituinte, realizada em maio de 1933. Mesmo assim, os constitucionalistas conseguiram eleger 71% dos representantes paulistas. Esta inquestionável demonstração de popularidade acabou forçando Vargas a conceder uma anistia geral e a promulgar uma nova Constituição, em 1934.

José Alfredo Vidigal Pontes é historiador graduado pela USP e autor, entre outros livros, de 1932: O Brasil se revolta. São Paulo: Ed. O Estado de S. Paulo; Ed. Terceiro Nome, 2004.

FONTE: PONTES, José A. V. Sangue brasileiro. Nossa História em Revista, São Paulo, ano 2, n. 21, jul. 2005.

Page 65: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | A REVOLUÇÃO DE 1930: GETÚLIO VARGAS NO PODER

57

Para aprofundamento destes temas, sugiro que você veja os filmes e leia os seguintes livros:FILMES: 1 – Revolução de 30. Brasil: Direção de Sylvio Back, documentário, 118 min. 1980.Trata-se de um documentário-colagem de vários documentários e filmes de ficção dos anos 20, culminando com imagens inéditas da Revolução de 1930.2 – O assalto ao poder. Brasil: Direção de Eduardo Escorel, documentário, 100 min. 2002. O ano de 1935 estava chegando ao fim quando três levantes militares, em três diferentes capitais brasileiras, tentaram derrubar o governo de Getúlio Vargas, que foi implacável com os insurretos. Vários deles foram brutalmente torturados. Em poucos dias, o movimento foi inteiramente dominado, num dos primeiros passos para a escalada autoritária de Getúlio Vargas, que se manteria no poder até 1945. O filme documenta todos os lances dessa insurreição comunista, que teve como protagonistas, além de Getúlio Vargas, Luiz Carlos Prestes, Octávio Brandão, Olga Benário, Gregório Bezerra, Giocondo Dias entre outros anti-heróis da utopia comunista na América Latina. LIVROS: FAUSTO, Bóris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1972. FIGUEIREDO, Eurico de Lima (org.). Os Militares e a Revolução de 30. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

DICAS

Page 66: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

58

RESUMO DO TÓPICO 1Neste tópico abordamos as seguintes questões:

• Durante a década de 1920, em meio a oscilações no cenário econômico, nacional e internacional, ocorreram no Brasil manifestações de cunho político, social e cultural que balançaram as bases da República Velha. Dentre estas manifestações destaca-se o Tenentismo, movimento dirigido por militares, o impacto da Revolução Russa em meio ao operariado brasileiro (levando à formação do Partido Comunista do Brasil), e a Semana de Arte Moderna.

• Do ponto de vista político-eleitoral, no início da década de 20 a comunhão

de interesses e descontentamentos em relação aos rumos da República Velha ocasionou uma aproximação entre oligarquias regionais dos estados do Rio Grande do Sul, Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco. O objetivo em pauta era dar sustentação a um candidato de oposição ao pacto Minas/São Paulo.

• A ruptura do pacto político firmado entre Minas e São Paulo, em 1929, ano de início de uma grande crise econômica mundial, resultou na formação da Aliança Liberal, constituída por representantes dos estados de Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba.

• A Aliança Liberal indica Getúlio Vargas como candidato à disputa das eleições. Em meio à fraude deliberada, de ambos os lados, o candidato paulista à Presidência, Júlio Prestes, é eleito, mas não chega a assumir.

• Apoiada por setores do exército, a Aliança Liberal leva a cabo um levante militar que resulta na Revolução de 1930. Getúlio assume o poder e implanta um governo provisório.

• Em 1932, forças políticas de São Paulo insurgem-se contra o governo no episódio conhecido como Revolução Constitucionalista. Embora derrotado, o movimento obtém êxito em muitas de suas reivindicações, como, por exemplo, a implantação de uma Assembleia Constituinte em 1934.

• Em 1934 ocorrem eleições e, para o governo federal, elege-se Getúlio Vargas. Inicia-se o governo constitucional, vigente até 1937.

• Durante o governo constitucional, Getúlio Vargas joga com as forças políticas existentes no cenário nacional. Neste período ganham força e projeção duas correntes políticas: a Aliança Nacional Libertadora (ANL), cuja linha de frente foi composta pelo ideário comunista, e a Ação Integralista Brasileira (AIB), defensora de um governo forte e centralizado, e contrária à luta de classes.

Page 67: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

59

• A ANL tenta um malsucedido golpe de Estado em 1935, denominado Intentona Comunista. A AIB, por sua vez, embora tenha se aproximado de Vargas, é extinta por decreto governamental em 1937.

• Em meio a tentativas frustradas de deposição do governo, Vargas promove uma aproximação em relação ao Exército. Ações como aquelas orquestradas pela ANL e a AIB criaram as condições e justificativas para a implantação do Estado Novo.

Page 68: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

60

AUTOATIVIDADE

1 Estabeleça uma relação entre eventos que eclodiram ao longo da década de 1920 e a Revolução de 1930.

2 Entre 1930, ano em que Getúlio Vargas chega ao poder, e 1937, ano da instauração do Estado Novo, o governo Vargas enfrentou duas sublevações de grande impacto e relevância: a Revolução Constitucionalista e a Intentona Comunista. Descreva, em linhas gerais, as circunstâncias nas quais estes movimentos encontraram condições de emergência.

Page 69: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

61

TÓPICO 2

O ESTADO NOVO E SEUS DESDOBRAMENTOS

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Embora a eleição indireta de Getúlio Vargas, em 17 de julho de 1934, pela Assembleia Constituinte significasse sua legitimação à frente do Executivo, o governo que se seguiu nem de longe foi tranquilo. Respaldados pelo clima favorável no cenário internacional, os movimentos sociais tornavam-se cada vez mais incisivos e de difícil controle. Greves operárias e manifestações de alguns segmentos da classe média resultavam em uma maior pressão sobre o governo e a classe patronal. A questão social, que até então, na maioria das vezes, era tratada como um simples caso de polícia, entrou em ressonância com a perspectiva teórica da luta de classes. A radicalização política teve um terreno fértil para germinar.

Tendo as Forças Armadas ao seu lado e contando com o receio da elite econômica do país em relação aos desdobramentos de uma possível tomada do poder por parte das classes operárias, Getúlio, em nome da “legalidade institucional”, decreta o Estado Novo.

2 O PLANO COHEN

Escrevendo a respeito do cenário político do Brasil da década de 1930, Penna (1999) sustenta que não é possível dissociar o Estado Novo dos acontecimentos que irão produzir a Revolução de 1930. O pronunciamento de 10 de novembro de 1937 teria sido um desdobramento daquele fato ou, em outras palavras, uma roupagem institucional para o “Estado de fato” criado com a decretação da Lei de Segurança Nacional em 1935. Evidentemente, em um contexto de forças e interesses políticos tão intensos, o Estado Novo precisava se apresentar como um gesto de defesa da legalidade, ou seja, precisava de respaldo político e social. Respondendo por este imperativo, Vargas torna público um documento forjado pelo capitão Olímpio Mourão Filho, militar integralista, cujo conteúdo mencionava um suposto plano comunista que consistia em promover desordens e atentados com vistas à tomada do poder. Coube à imprensa fazer a divulgação, cujo impacto foi imediato. Para se ter um exemplo do grau de dramaticidade do documento, uma de suas partes fazia menção ao desrespeito sistemático “à honra e aos sentimentos mais íntimos da mulher brasileira”, ou seja, ao estupro como estratégia de ação. O fato é que

Conivente com os verdadeiros planos de eliminação dos direitos constitucionais perpetrado pelo governo, o capitão Mourão Filho se

Page 70: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

62

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

deixa envolver nesta trama, e a 30 de novembro o general Eurico Gaspar Dutra a denunciava. Antes, os integralistas, tendo à frente o capitão, “reconhecem” o teor do documento como de autoria comunista. Em 1º de outubro a Câmara aprova o estado de guerra, suspendendo as garantias constitucionais por um prazo de noventa dias. Contra esta decisão se insurgem as bancadas de São Paulo e do Rio Grande do Sul. (PENNA, 1999, p. 186).

A Lei de Segurança Nacional, promulgada em 4 de abril de 1935, definia crimes contra a ordem política e social. Sua principal finalidade era transferir para uma legislação especial os crimes contra a segurança do Estado, submetendo-os a um regime mais rigoroso, com abandono das garantias processuais. Esta lei foi aprovada após acirrados debates, num contexto de crescente radicalização política, pouco depois de os setores da esquerda terem fundado a Aliança Nacional Libertadora. Nos anos seguintes à sua promulgação, foi aperfeiçoada pelo governo Vargas, tornando-se cada vez mais rigorosa e detalhada. Em setembro de 1936, sua aplicação foi reforçada com a criação do Tribunal de Segurança Nacional.FONTE: Disponível em: <www.cpdoc.fgv.br>. Acesso em: 2 abr. 2010.

Os exageros contidos no documento, algo que um olhar mais atento detectaria como indícios de uma farsa, foram ofuscados com a sugestão de ser o plano parte de um complô internacional (a proposta de internacionalização do comunismo), razão pela qual foi denominado “Plano Cohen”. Seu caráter prescritivo, uma ameaça à soberania nacional e aos interesses do capital, levou até mesmo os setores mais liberais da sociedade brasileira a admitir uma ação mais contundente por parte do governo: o 10 de novembro marca, então, a leitura do texto de uma nova Constituição para o corpo de ministros do Estado. Iniciava-se um novo momento da vida política e institucional brasileira.

Na linha de frente das ações pós-decreto ocorreram intervenções nos estados onde a oposição e resistência à nova ordem eram maiores. Bandeiras estaduais foram queimadas, símbolo evidente do fim da autonomia dos estados. A repressão generalizou-se e, supostamente agindo em nome do povo, fez do povo seu alvo preferencial.

3 O ESTADO NOVO

As continuidades e as permanências que marcaram o regime republicano até a chegada de Vargas ao poder ganharam uma nova roupagem a partir de 1937. As estruturas de dominação permaneceram articuladas, mas algo de novo se insinuou no horizonte. Del Priore e Venâncio afirmam que

NOTA

Page 71: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESTADO NOVO E SEUS DESDOBRAMENTOS

63

A permanência de Getúlio Vargas no poder dificilmente teria sido possível sem o extraordinário sucesso econômico alcançado durante seu primeiro governo. Para se ter uma noção do significado profundo dessa afirmação, basta mencionarmos que, por volta de 1945, nossa industrialização finalizava seu primeiro grande ciclo. Em outras palavras: pela primeira vez, a produção fabril brasileira ultrapassava a agrícola como principal atividade econômica. Nesse mesmo período, também assistimos ao surgimento da indústria de base, ou seja, aquela dedicada à produção de máquinas e ferramentas pesadas, à siderurgia, à metalurgia e à indústria química (2003, p. 320, grifo no original).

No quadro descrito por Del Priore e Venâncio, podemos inserir a constatação

de que o desenvolvimento econômico ocorrido durante o Governo Vargas associou-se à afirmação hegemônica de uma burguesia industrial, à proliferação da força de trabalho no meio urbano e a um intenso processo de urbanização. Analisaremos cada um desses elementos de maneira mais detalhada. Antes, porém, tentaremos compreender por quais razões o ordenamento político instaurado com o Estado Novo teve condições de vingar.

Conforme comentamos anteriormente, o receio das elites dominantes – nos anos trinta intimamente associados aos interesses da burguesia industrial – em relação à mobilização da classe operária foi decisivo para a emergência de um regime de caráter autoritário. Contudo, há que se considerar que os regimes autoritários não se sustentam sem a utilização da força ou, de maneira mais ampla, sem o respaldo das armas. Neste sentido, o aval dado pelos militares, tanto do ponto de vista do poder bélico, quanto do da constituição de uma identidade para o regime político pós-37, foi decisivo. Ou seja, de meros atores coadjuvantes na conjuntura política dos anos 20 os militares transformaram-se em peças-chave nos anos 1930, reafirmando seu papel incisivo após o término da Segunda Guerra Mundial, situação na qual é fundada a Escola Superior de Guerra. Mais do que mantenedores da ordem e da soberania nacional, os militares ingressaram diretamente nos quadros do Poder Executivo e, como veremos mais tarde, no plano eleitoral.

Durante o Estado Novo surgiu nas Forças Armadas um grupo com fortes inclinações nacionalistas e partidário da modernização industrial visando impedir as tentativas de recomposição do monopólio do poder por parte das oligarquias rurais. O cenário econômico nacional e internacional favoreceu este objetivo, pois, a partir de 1930, a atividade industrial apresentava taxas de crescimento anual aproximadamente três vezes maiores que a taxa de crescimento agrícola. A crise econômica de 1929 atingiu em cheio o café, carro-chefe do setor agrícola, e, nos anos 30, as exportações do produto caíram pela metade se considerarmos os primeiros anos da década de 1920.

Importante enquanto base de sustentação, a maior projeção do exército, contudo, não significou que as Forças Armadas passaram a ditar regras e orientar os rumos do governo. Este segmento do espectro político constituía-se apenas como mais um dos grupos com os quais Vargas tinha que habilmente lidar. Entre os civis destacavam-se a burguesia industrial, o proletariado urbano e os grandes

Page 72: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

64

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

latifundiários. Visando conter estes últimos, Vargas valorizou a aliança com grupos urbanos. Penna (1999) afirma que o novo regime tinha se instaurado em uma sociedade ainda fortemente marcada por traços preliminares do capitalismo. O desenvolvimento econômico capitaneado pela burguesia não fora acompanhado de uma representação burguesa capaz de conceber um projeto para o exercício do poder e de uma classe operária que interpretasse os interesses do mundo do trabalho. O vácuo criado pela ausência de tais projetos, tanto burgueses quanto proletários, foi ocupado por uma hipertrofia do Estado. Por outro lado, a forte presença da ação estatal não pode ser interpretada apenas levando-se em conta o atraso do desenvolvimento das forças produtivas associadas à industrialização. O processo ocorrido no Brasil encontrava par em países afetados pela crise econômica que se arrastou ao longo da década de 1930. Neste sentido, o exemplo mais evidente pode ser encontrado na Alemanha, cujo poder concentrava-se nas mãos de Adolf Hitler.

O paralelo entre o Brasil e a Alemanha pode ser interessante na medida em que o concebemos do ponto de vista da expectativa de anulação do ideário da luta de classes em ambos os países. No caso brasileiro, o Estado, consciente do seu papel como indutor do desenvolvimento, tratou de dispensar aliados incômodos, as classes em ascensão, trabalhando ideologicamente visando à sua desqualificação como portadoras de interesses comuns, produzindo um

Processo de despolitização da sociedade, cujo efeito mais perverso atingiu em cheio os trabalhadores. Procurou atraí-los por meio de recursos que iam de medidas compensatórias – a maioria transformada em legislação trabalhista – ou por meio de mensagens de sentido dúbio, típicas de regimes autoritários, tais como aquelas em que se procura demonstrar que numa sociedade “sadia” não há lugar para os interesses de classe. (PENNA, 1999, p. 188).

O fato é que, para cada segmento com o qual tinha que lidar, Vargas lançou uma estratégia específica. Para os trabalhadores urbanos, por exemplo, estabeleceu-se um conjunto de mudanças na legislação visando à melhoria das suas condições de vida. Paralelamente à legalização de reivindicações dos trabalhadores – agentes ativos que desde o início do governo republicano lutaram por seus direitos, portanto não se pode falar na existência de uma doação de Vargas – incrementou-se a lógica do sindicalismo corporativo, ou seja, após anos de aperfeiçoamento de um sistema que tendia a diminuir o poder de barganha e representatividade dos sindicatos, em 1939 Vargas determina a existência de um único sindicato por categoria. Del Priore e Venâncio (2003) nos lembram também que este foi o momento da criação do imposto sindical – desconto anual de um dia de salário da folha dos empregados – com a finalidade de financiar a estrutura sindical. Neste sentido, “de instrumento de luta, os sindicatos dos anos de 1940 passam à condição de agentes promotores da harmonia social e instituições prestadoras de serviços assistenciais”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 321).

Evidentemente, uma parte dos líderes sindicais com formação nas fileiras do movimento anarquista via estas mudanças de maneira crítica, denunciando a cooptação e a manipulação dos trabalhadores. Ocorre que, para a grande massa

Page 73: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESTADO NOVO E SEUS DESDOBRAMENTOS

65

dos trabalhadores, Vargas atendia expectativas mais imediatas, principalmente após a criação da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) em 1943 e da criação de uma Justiça do Trabalho (que visava à mediação dos conflitos entre empregados e patrões). Seja como for, a postura adotada por Vargas foi responsável pela penetração das massas populares urbanas no cenário político. Embora condicionadas, estas massas

Constituem a única fonte social possível de poder pessoal autônomo para o governante e, em certo sentido, se constituirão na única fonte de legitimidade possível para o Estado. O chefe do Estado passará a atuar como árbitro dentro de uma situação de compromisso que, inicialmente formada pelos interesses dominantes, deverá contar com um novo parceiro – as massas populares urbanas – e a representação das massas nesse jogo estará controlada pelo próprio chefe de Estado. Nas funções de árbitro, ele passará a decidir em nome dos interesses de todo o povo e isso significa dizer que ele tende, embora esta tendência não possa efetivar-se sempre, a optar por aquelas alternativas que despertam menor resistência ou maior apoio popular. (WEFFORT, 1989, p. 69-70).

O quadro de compromisso, ao qual se refere Weffort, resultou de uma

associação entre o regime (Estado Novo), a instituição Estado e a nação (sociedade), associação esta “[...] realizada com o esmero de quem tece uma fina fibra responsável pela feitura de um tecido”. (PENNA, 1999, p. 188). A figura política de Getúlio Vargas se destaca nesse processo porque soube encarnar esses distintos elementos, ligando-os num único objetivo: fazer de todos os cidadãos partes integrantes de uma vocação comum, a de realização do destino de todos. Evidentemente, uma tarefa com tal envergadura não poderia ser realizada individualmente.

Em uma de suas linhas de ação, Vargas promoveu uma maior aproximação em relação a certos meios intelectuais, criando, inclusive, uma revista chamada Cultura Política. Esta passou a contar com a contribuição de articulistas de diferentes concepções políticas e filosóficas, com o objetivo de revelar-se aberta ao conhecimento científico. Há que se considerar, porém, que o pano de fundo sobre o qual se inseriam os escritos publicados era composto pela máxima da “ordem e coesão social”. Segundo Penna (1999), nomes como Gilberto Freyre e Nelson Werneck Sodré publicaram textos na Cultura Política. Mobilizar possíveis e futuros fazedores de opinião passou a ser um dos objetivos das políticas culturais levadas a cabo pelo Estado Novo.

O sucesso da proposta estava intrinsecamente ligado à eficiência do controle sobre o campo educacional. Com efeito, a intervenção estatal na educação foi um dos feitos mais contundentes do Estado Novo, vindo a ocasionar drásticas mudanças neste setor. Del Priore e Venâncio (2003) afirmam, por exemplo, que durante a gestão de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde entre os anos de 1934, que reuniu em torno de si intelectuais do quilate de Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Heitor Villa-Lobos, foram planejadas e executadas importantes alterações, como a ampliação de vagas e a unificação de conteúdos das disciplinas no ensino secundário e universitário (durante o Estado Novo foi notável a expansão do sistema universitário, tendo como resultado a formação de toda uma geração de sociólogos, economistas e administradores). Na

Page 74: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

66

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

mesma época ocorre a nacionalização de escolas que até então eram controladas por imigrantes europeus ou seus descendentes, tais como aquelas implantadas no Sul do país (com a consequente imposição da língua portuguesa como única língua passível de uso nos meios escolares), assim como a criação do ensino profissional, materializado em instituições tais como o SENAI, SESI, SENAC e SESC.

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Gustavo_ Capanema_1932.jpg>. Acesso em: 10 abr. 2010.

FIGURA 19 – GUSTAVO CAPANEMA: MINISTRO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE ENTRE OS ANOS DE 1934 E 1945

Outra importante linha de ação governamental implementada por Vargas teve como veículo de disseminação o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Visando à propaganda política através dos novos meios de comunicação como o rádio e o cinema, o DIP organizava rituais totalitários de culto à personalidade do ditador. Neste período ocorre a criação de programas de rádio como o Repórter Esso e A Hora do Brasil, sendo que, especialmente este último, tinha por escopo a divulgação de propagandas e ideias do regime. As prerrogativas legais que davam sustentabilidade às ações dessa natureza estavam contidas no texto da Constituição de 1937, a Constituição do Estado Novo ou, ainda, Polaca – numa alusão ao fato de ter sido inspirada no modelo de Constituição polonesa do marechal Josef Pilsudski. Legitimando um regime centralizado e autoritário, dando ao Executivo a capacidade de se sobrepor aos demais poderes de Estado, a Carta Constitucional de 1937 favoreceu a criação de mecanismos de controle da opinião pública através da censura e/ou manipulação.

Uma característica marcante do texto constitucional foi a atribuição da prerrogativa de governar por decretos-leis. Um desses decretos, assinado em 3 de dezembro de 1937, proibiu o uso de símbolos, gestos, manifestações de qualquer espécie, formação de partidos políticos, determinando a dissolução dos existentes. De imediato, o decreto tinha por escopo os integralistas, mas em médio e longo prazos seu objetivo era promover a despolitização da sociedade, abrindo caminho para o exercício da tutela do Estado sobre os grupos sociais organizados. A relação

Page 75: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESTADO NOVO E SEUS DESDOBRAMENTOS

67

de Vargas com os trabalhadores urbanos, conforme comentada anteriormente, insere-se neste plano.

Numa outra ordem de fatores a política getulista procurou incentivar o desenvolvimento econômico. Segundo Del Priore e Venâncio (2003), já no início dos anos trinta Vargas retomou a política de valorização do café com o objetivo de impedir a estagnação da economia. São Paulo, favorecido por esta política, liderou o processo de formação de um mercado nacional voltado para a substituição de importações. Paralelamente a isso, o governo garantiu, através da política fiscal e cambial, a transferência de renda para o setor industrial local. A importância dos empresários paulistas cresceu a olhos vistos: nos anos 40 eles passaram a ser responsáveis pela metade da produção fabril brasileira. O revés mais imediato desta política econômica foi, portanto, a ampliação do desequilíbrio regional, implicando o declínio de estados que não acompanhavam o ritmo competitivo de crescimento.

Para além das ações da iniciativa privada, uma das grandes marcas do Estado Novo foi a constituição das chamadas empresas públicas, uma alternativa para sustentar o processo de expansão industrial acelerada. Linhares (1990) sustenta que

Neste contexto específico incrementou-se a opção pela empresa pública como alternativa de financiamento do novo padrão de acumulação, numa conjuntura internacional de tecnologia altamente monopolizada. Setores como os de ferro e de aço, da energia elétrica, da química pesada e da produção de motores tiveram sua solução inicial com base no investimento estatal ou na forma de empresas de economia mista. A Companhia Siderúrgica Nacional (1941), a Companhia Vale do Rio Doce (1942), a Companhia Nacional de Álcalis (1943) e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (1945) são alguns exemplos. (p. 247, grifo no original).

A implantação das indústrias de base a partir de iniciativas estatais contrariava os princípios do liberalismo, mas, levando-se em conta que os anos de 1930 não foram os melhores para a política do não intervencionismo, ocorria no Brasil algo semelhante ao que se processava em vários outros países do mundo ocidental. No mais, os investimentos estatais nesse setor criaram as condições necessárias para o desenvolvimento do setor de bens de consumo, pois favoreceu a redução de custos ao capital privado.

No que se refere às relações internacionais, o governo de Vargas durante o Estado Novo ficou marcado pela estratégia da barganha. O presidente soube se aproveitar de maneira exímia do conturbado cenário internacional, principalmente após 1939, ano de eclosão da Segunda Guerra Mundial. Enquanto pôde, Vargas manteve-se distante do conflito, embora viesse a demonstrar certa simpatia pelos países do Eixo, mais especificamente a Alemanha e a Itália, países cujos governos autoritários se assemelhavam ao seu. A partir de 1942, com o avanço dos Aliados, Vargas opta pelo rompimento com o Eixo, não sem antes obter um empréstimo de 20 milhões de dólares dos Estados Unidos, capital usado na construção da Companhia Siderúrgica Nacional.

Page 76: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

68

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/9/9a/Vargas_ e_Roosevelt.jpg>. Acesso em: 10 abr. 2010.

FIGURA 20 – GETÚLIO VARGAS E FRANKLIN DELANO ROOSEVELT

A Figura 20 mostra Getúlio Vargas e Franklin Delano Roosevelt, em encontro ocorrido já em 1936, antes da instauração do Estado Novo. As negociações entre os presidentes dos dois países americanos se intensificaram ao longo da Segunda Guerra Mundial.

Desde o início de 1942 os contatos entre Vargas e o presidente norte-americano F. D. Roosevelt haviam se intensificado. Roosevelt inclusive chegou a visitar o Brasil, vindo a conhecer algumas regiões brasileiras. Em pouco tempo as negociações resultaram na formação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) que, em 1944, foi enviada à Itália para lutar ao lado das forças norte-americanas. Diante do progressivo avanço dos Aliados, a própria sobrevivência do Estado Novo passava a ser ameaçada, pois uma vitória dos países em que vigoravam regimes democráticos colocava em xeque o regime ditatorial capitaneado por Vargas.

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/3/36/Feb_ Apeninos.jpg>. Acesso em: 10 abr. 2010.

FIGURA 21 – FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA NOS APENINOS – ITÁLIA, 1945

UNI

Page 77: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESTADO NOVO E SEUS DESDOBRAMENTOS

69

Aliada das pressões do cenário internacional, uma das determinações da legislação vigente militava contra o Estado Novo. De acordo com a Constituição outorgada em 1937, em 1943 deveria ocorrer um plebiscito que poria o regime à prova. O prazo foi prorrogado para o período imediatamente posterior à Segunda Guerra justamente devido à decretação do estado de guerra no país. De 1943 a 1945, portanto, as articulações políticas começaram a ser feitas com maior intensidade. Em 1944, o próprio Getúlio reconheceu como esgotado o ciclo autoritário, visando promover a transição ao regime democrático dentro da ordem institucional, ou seja, seu interesse era fazer com que o próprio Executivo comandasse o processo de transição política.

Del Priore e Venâncio (2003) vão mais longe, afirmando que desde 1941 já estavam sendo feitas as articulações para garantir a transição. O próprio Vargas tentava organizar um partido de alcance nacional. Em 1943, o descontentamento das elites regionais marginalizadas durante o Estado Novo foi expresso no Manifesto dos Mineiros, texto cujo conteúdo tecia críticas ao caráter autoritário do governo, assinado por políticos de renome nacional. Em 1944 a estrutura partidária que comandaria a transição já estava praticamente constituída. As elites dissidentes que, desde a Revolução de 1930, haviam sido marginalizadas, agruparam-se em torno da União Democrática Nacional (UDN). Getúlio, por sua vez, reúne os interventores estaduais no Partido Social Democrático (PSD). A estrutura sindical e previdenciária criada por Vargas serviu de base à constituição do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

As estruturas partidárias anteriormente descritas foram legalizadas em 1945. Del Priore e Venâncio afirmam que

A UDN lança candidato próprio às eleições previstas para 1946, o mesmo ocorrendo com o PSD. A posição do PTB é outra. Não lança candidato, mas defende a convocação de uma assembleia constituinte ainda no governo de Getúlio, que seria por isso mesmo prolongado um pouco mais. Tal movimento ganhou as ruas – sendo popularmente denominado na época de “queremismo”, ou seja, “queremos Getúlio” – e contou com o apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB), apoio este, aparentemente, surpreendente. [...] Vargas foi responsável por uma feroz repressão aos comunistas. No entanto, é necessário lembrar que foi no seu governo que o Brasil entrou em guerra contra o nazifascismo, em uma aliança da qual participou a União Soviética. No final de sua gestão também houve a anistia e a legalização do PCB. Mais ainda: para os comunistas, os inimigos políticos de Vargas reunidos na UDN representavam o que havia de mais atrasado na sociedade brasileira. (2003, p. 330).

Page 78: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

70

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

FONTE: CENTRO de Referência da História Republicana Brasileira. Disponível em: <http://www.republicaonline.org.br/ reponlinenav/>. Acesso em: 5 maio 2010.

FIGURA 22 – MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICOS

A Figura 22 mostra populares manifestando-se em apoio à permanência de Vargas na Presidência, Rio de Janeiro – 1945.

O receio em relação à manipulação das eleições levou tanto a UDN quanto o PSD a escolherem militares como candidatos à Presidência. A UDN escolheu o brigadeiro Eduardo Gomes, enquanto que o PSD optou pelo general Eurico Gaspar Dutra.

No último ano da Segunda Guerra Mundial, sob alegação da existência do conflito internacional, o exército brasileiro aumentou sobremaneira seu contingente militar. Assim, Getúlio experimentaria “[...] agora o sabor amargo de uma prática intervencionista feita por uma instituição que ele mesmo havia ajudado a crescer”. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 331). Em outubro de 1945, sob pressão do exército, Getúlio era obrigado a deixar o poder. Sem candidato próprio, o PTB apoia Eurico Gaspar Dutra, que vence a eleição presidencial. Vargas, eleito para o Senado, pouco participou da Assembleia Constituinte responsável pela elaboração da Constituição, promulgada em 1946. Retornando para sua terra natal, em São Borja, no interior do Rio Grande do Sul, fica em relativo exílio até retornar ao cenário político para um novo mandato presidencial. Neste período, seus desafios seriam outros.

UNI

Page 79: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESTADO NOVO E SEUS DESDOBRAMENTOS

71

LEITURA COMPLEMENTAR

CULTURA, BRASIL E ESTADO NOVOPor Carlos Alberto Dória

A POLÍTICA CULTURAL DE GETÚLIO VARGAS, QUE SE MATOU EM 1954, AINDA INCOMODA OS INTELECTUAIS

“A arte de viver é criar afetos”. Gustavo Capanema

O elitismo brasileiro estabelece uma relação constante entre a modernização getulista e o autoritarismo. A expansão do serviço público e a normatização de novas atividades que Getúlio promoveu ainda hoje encontram críticos que veem nelas a sombra da ditadura sobre a sociedade civil, turbando os passos de uma caminhada “natural” em direção a uma vida mais democrática. Por exemplo, até a definição de “cidade”, obviamente anacrônica por força da urbanização pós-guerra, encontra quem a classifique como “entulho varguista”. Trata-se de uma leitura liberal da história, que dificulta a avaliação isenta.

Contrário senso, quando se trata da administração cultural, o período Vargas é visto como o ponto alto da trajetória do Estado brasileiro. Muitos intelectuais manifestam sua perplexidade ao constatar que naquele período autoritário tanto se fez em prol da democratização da cultura. Neste domínio o liberalismo não avançou muito.

Ao contrário do enquadramento antropológico que a Constituição de 1988 tentou fixar, nas Constituições de 1934 e 1937 o Estado (União, Estados e Municípios) é guindado à posição de institucionalizador da vida cultural: defensor de monumentos naturais, artísticos e históricos; deve também “animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral” e “prestar assistência ao trabalhador intelectual”; e, por fim, favorecer ou fundar “instituições artísticas, científicas e de ensino”. Assim, é indubitável que no período Vargas fundou-se o Estado tal e qual hoje ele se situa frente à cultura.

Esta obra é atribuída a Gustavo Capanema. Ele foi, ao longo de toda a sua vida, homem do poder de Estado: oficial de Gabinete de Olegário Maciel, Presidente de Minas, em 1930; Secretário do Interior no período de consolidação da Revolução; Interventor em Minas, em 1933; ministro da Educação e Saúde, entre 1934 e 1945; deputado federal e senador pela Arena, entre 1966 e 1971. Como ministro, reuniu em torno de si uma enorme plêiade de intelectuais, colocando-os a serviço do Estado.

No aconchego de Capanema, Carlos Drummond de Andrade, Villa-Lobos, Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Cândido Portinari, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e tantos outros deram a sua contribuição para a projeção do Estado como organizador da cultura. Terminados os governos de Vargas, a cultura tinha outro

Page 80: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

72

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

estatuto. Arquitetura, patrimônio histórico, música, cinema, todos foram afetados no seu perfil a partir de uma nova relação com a sociedade.

O período desta convivência estreita abarcou todo o Estado Novo. Assim, enquanto se construía a modernidade cultural, intelectuais e oposicionistas eram presos, mortos, torturados, exilados. “Memórias do cárcere”, de Graciliano Ramos, é o documento pungente desse lado sórdido da modernização getulista.

As relações ambivalentes dos intelectuais com o Estado foram homólogas às de Luis Carlos Prestes e o PCB frente ao getulismo. Quando entendeu necessário para o processo de democratização, Prestes apoiou publicamente aquele que fora algoz de sua mulher, Olga Benário. Os intelectuais que colaboraram com o getulismo nunca deixaram de reconhecer que aquele convívio foi necessário para a criação das novas condições institucionais da gestão cultural entre nós.

Hoje, o elogio do getulismo é uma tônica frequente na história da administração da cultura, mas surge também certa tendência de condenação dos intelectuais que transacionaram com o poder de Estado. Mas, passados quase 70 anos do Estado Novo, é legítimo nos perguntarmos: o que restou de tudo isso? Uma geração intelectual sacrificou-se ao se entregar ao Leviatã ou deixou como legado uma perspectiva democrática para a cultura no Brasil?

A resposta a essas questões exige que se deixe de lado o “cronocentrismo”, que consiste em julgar a ação política passada com os olhos de agora. Por exemplo, é preciso considerar que a principal tendência política à qual se filiavam os intelectuais mais proeminentes de então – o comunismo – defendia táticas frentistas que implicavam a convivência entre diferentes forças políticas na busca de objetivos comuns. A política era vista como o resultado contraditório de ações que se desenvolviam no interior da cidadela adversária e ela impunha que se participasse da história sob todas as formas, recusando o caminho da crítica distanciada.

A Revolução de 1930 havia provocado fissuras profundas no poder oligárquico, e criar novos espaços institucionais era uma condição essencial para se aprofundar as distâncias entre o velho e o novo. Mas a mediação ideológica que o Estado promovia não contava com muitos mecanismos de convencimento, obrigando-o a trazer para o seu interior o conflito que se dava na sociedade, contrapondo democratas e integralistas, como forma eficaz de administrá-lo. Ao mesmo tempo em que os intelectuais modernistas se aninhavam nas repartições culturais, os integralistas buscavam manter o seu quinhão.

Essa tensão foi registrada por Lauro Cavalcanti, ao analisar o momento político-intelectual de criação do Sphan (futuro Iphan), em 1937. Para ele, o Brasil viveu naquele momento o paradoxo de ser “o único país no qual membros de uma só corrente (modernista) são, ao mesmo tempo, os revolucionários de novas formas artísticas e os árbitros e zeladores do passado cultural”. Ora, o triunfo modernista deu-se claramente contra o nacionalismo verde-amarelo, aboletado desde 1922 no Museu Histórico Nacional, com Gustavo Barroso.

Page 81: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESTADO NOVO E SEUS DESDOBRAMENTOS

73

O ideal museológico de Gustavo Barroso era claro: “O Brasil precisa de um museu onde se guardem objetos valiosos, espadas, canhões, lanças”. Ao cooptar os modernistas, o Estado rompeu o monopólio conservador de Gustavo Barroso sobre a política patrimonial-histórica. Encastelados no Sphan, os modernistas, na medida em que projetam o futuro como tão importante quanto o passado, colocam o Estado numa perspectiva evolucionista.

O Sphan teve, assim, uma missão ideológica e política muito clara, e a forma autárquica, autocrática e “independente” que assumiu correspondia à mobilização dos recursos necessários para poder ser impositivo na definição do que, daí em diante, viria a ser o “patrimônio nacional”. A ultracentralização do órgão assemelhava-se ao perfil de toda a administração estadonovista, independente de sua finalidade. Esse aspecto autoritário, que então foi condição do seu sucesso, é hoje criticado como inibidor da mobilização da sociedade civil em prol da defesa do patrimônio histórico brasileiro.

Mas, quando olhamos aquele momento com os olhos de hoje, ainda remanesce uma questão não desprezível: o “tombamento” e a patrimonialização do passado colonial escravista, católico e europeizado, com signo material da nacionalidade. Este sentido do alçamento do barroco à condição de “estilo nacional” é inequívoco. A ele se paga um tributo muito grande, e só recentemente outras facetas do passado nacional ganharam estatuto patrimonial.

O Sphan foi concebido por Mário de Andrade e Paulo Duarte. À época, poucos intelectuais se aproximaram da cultura popular com abordagem moderna como Mário de Andrade e “conquistá-lo” foi ato de clarividência getulista.

Depois de 1922, se deu um outro movimento de aproximação com o país real, principiado em 1924 com a Caravana Modernista, que mostrou o país ao poeta Blaise Cendrars; prosseguindo com as viagens de Mário, em 1927, ao Nordeste e Amazônia e, de novo, em 1941, à região Norte. Dessas aproximações sucessivas, além de uma série de ensaios sobre arquitetura e patrimônio, nasceram especialmente o “Ensaio sobre a música brasileira” (1928), o “Compêndio de história da música” (1929), “Modinhas imperiais” (1930) e “Música, doce música” (1933).

Há na patrimonialização do barroco e na compilação musical uma invenção extraordinária da brasilidade, contraposta à força centrífuga dos regionalismos tributários do mundo oligárquico que a Revolução de 1930 pretendeu encerrar. Mas o mais interessante foi o hibridismo de valores que esse movimento promoveu.

“No Brasil do ouro/ a história morta/ sem sentido”, enunciada em “Pau Brasil”, se revalorizará como cenário para o moderno hotel que Niemeyer construiu em Ouro Preto (“obra de arte”, segundo Lúcio Costa) e para o prédio do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, numa afirmação de contrastes que se completará apenas com a construção de Brasília.

Page 82: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

74

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

Na música, a desfolclorização da tradição popular caberá a Villa-Lobos, tomando os temas para composições coerentes com as tendências mais modernas da música erudita. Ele, que vinha conhecendo o “Brasil interior” desde 1915, encontrará sob o getulismo as condições políticas para o trabalho de educação das massas, segundo paradigmas do canto coral e do ensino musical, culminando na formação do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico.

Nessa trajetória também merece destaque uma iniciativa pouco citada na literatura histórica: entre 1935 e 1936, a cantora lírica Bidu Sayão participou de duas enormes turnês, de Manaus a Santana do Livramento, cantando em teatros, cinemas e mesmo ao ar livre em cima de um tablado, levando a música erudita a cidades pequenas aonde jamais chegaria de outra maneira; até que em 1937 sofreu violenta vaia no Municipal do Rio de Janeiro, orquestrada pela milionária Gabriela Besanzoni Lage. Neste mesmo ano, Bidu Sayão foi contratada pelo Metropolitan, de Nova Iorque, e não mais cantou no Brasil.

Estes dois casos – a arquitetura e a música – ilustram o paradoxo do Estado forte e empenhado na construção da cultura moderna brasileira e a questão remanescente é se haveria outro caminho a ser trilhado. Ao contrário da educação ou da saúde, não existe uma “demanda popular” por cultura. Portanto a hegemonia de novas formas de cultura depende fortemente do empenho do Estado e não há por que ver na participação intensa dos intelectuais nas atividades públicas uma fonte automática de contaminação autoritária por contágio. Essa colaboração só pode ser julgada pelos seus resultados.

Evidentemente a cooptação intelectual sob o getulismo se opunha à profissionalização que o concurso público instituiu posteriormente, como forma exclusiva de acesso ao aparelho de Estado. A cooptação getulista possuiu um caráter provisório, o que não a impediu de degenerar.

Consta que, sob Juscelino, o redator dos seus discursos, o poeta Augusto Frederico Shmidt, gabava-se de ser presidente da Companhia Nacional de Álcalis sem jamais ter visto “um álcalis”. O cargo público se transformara numa “posição”, isto é, numa situação hierárquica na estrutura de poder e num desvio de função.

A trajetória mais recente – especialmente após a ditadura militar – mostra o Estado distanciado do que foram os anos de formação da moderna cultura brasileira de feição pública, ou seja, do projeto que ele mesmo impulsionou nos anos 30 e 40 do século passado. A degeneração burocrática do Iphan e a supressão da educação musical na escola pública são exemplos suficientes da trajetória miserável. Premida entre o mercado e um Estado incapacitado, a cultura logo se converteu num sem-lugar da vida social.

De novo, então, o intelectual se vê diante do Estado como um estranho, pois ele já não tem qualquer projeto civilizatório que se alimente do seu trabalho criativo. A manutenção do “patrimônio” parece ser o seu único encargo, ainda que mal desempenhado; a título de fomento, distribui fundos públicos escassos entre produtores privados, que sempre pressionam por mais e mais verbas. Por

Page 83: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESTADO NOVO E SEUS DESDOBRAMENTOS

75

outro lado, o servidor público, no qual eventualmente o intelectual se converteu, participa do destino geral dos trabalhadores do Estado, distanciando-se das práticas experimentais ou contestatórias que são medidas de valor da ação criativa. Fora do Estado, apenas a seletividade destruidora do mercado.

Assim, o legado de Getúlio foi, sobretudo, a construção de uma institucionalidade inédita para a cultura, ao mesmo tempo em que tratou da elaboração ideológica do patrimônio voltado para a identidade brasileira. Os brasileiros deixaram de ser soltos na história para estarem aderidos a uma matriz étnica na qual se procurou igualar o passado indígena, negro e ibérico. Um pluralismo desconexo foi substituído pelo ideal de miscigenação, do qual eram portadores os modernistas de repartição.

A questão de hoje é saber se esse legado, que ficou anacrônico, pôde ser superado pelas forças vivas da democracia pós-Estado Novo através da afirmação de um projeto alternativo de caráter democrático e popular. Tudo indica que a resposta é negativa. Assim, o getulismo ainda não é coisa do passado em matéria de administração cultural, e continua impossível para os trabalhadores da cultura julgá-lo com isenção.

Carlos Alberto Dória – é sociólogo, doutorando em sociologia no IFCH-Unicamp e autor de “Ensaios Enveredados”, “Bordado da Fama” e “Os Federais da Cultura”, entre outros livros.

FONTE: A POLÍTICA cultural de Getúlio Vargas. Disponível em: http://pphp.uol.com.br/tropico / html/textos/2930.1.shl>. Acesso em: 20 abr. 2010.

Para aprofundamento destes temas, sugiro que você veja o filme e leia os livros a seguir:FILME: Getúlio Vargas. Brasil: Direção de Ana Carolina Teixeira Soares, 1974.O filme-documentário foi construído a partir de materiais filmados nas décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950. Como é possível notar no recorte temporal, o filme não fica restrito ao Estado Novo, pois abraça desde a Revolução de 1930 até o suicídio de Vargas. Contudo, a divisão em blocos temáticos evidencia o período do regime ditatorial. LIVROS: GARCIA, Nelson Jahr. Estado Novo – Ideologia e propaganda política. São Paulo: Loyola, 1982.VARGAS, Getúlio Dornelles. As diretrizes da Nova Política do Brasil. São Paulo: José Olímpio Editora, 1942. Além de: MARQUES, Ademar; BERUTTI, Flávio; FARIA, Ricardo. História Contemporânea: através do texto. 11 ed. São Paulo: Contexto, 2008.

DICAS

Page 84: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

76

RESUMO DO TÓPICO 2Neste tópico abordamos as seguintes questões:

• Em meio a um clima de mobilizações populares e efervescência política, de projeção contundente da “Questão Social”, tendo as Forças Armadas ao seu lado e contando com o receio da elite econômica do país em relação aos desdobramentos de uma possível tomada do poder por parte das classes operárias, Getúlio, em nome da “legalidade institucional”, decreta o Estado Novo.

• A instauração do Estado Novo foi facilitada devido à alegação de um complô

internacional apresentado em documento forjado – o Plano Cohen –, cujo caráter prescritivo, uma ameaça à soberania nacional e aos interesses do capital, levou até mesmo os setores mais liberais da sociedade brasileira a admitir uma ação mais contundente por parte do governo.

• Durante o Estado Novo surgiu nas Forças Armadas um grupo com fortes inclinações nacionalistas e partidário da modernização industrial visando impedir as tentativas de recomposição do monopólio do poder por parte das oligarquias rurais.

• Dentre os mais variados grupos com os quais Vargas teve que lidar durante o Estado Novo destacam-se a burguesia industrial, o proletariado urbano e os grandes latifundiários. Devido ao fato de nenhum desses grupos ter sido capaz de alcançar a hegemonia no poder, o período de 1937 a 1945 foi marcado pela hipertrofia do Estado e pela projeção inequívoca da figura de Getúlio Vargas.

• Vargas teceu uma estratégia de ação específica para cada grupo com o qual tinha que negociar. Em relação aos trabalhadores, instrumentalizou o “sindicalismo corporativo”, ou seja, atrelou os sindicatos aos interesses do governo. Por outro lado, há que se considerar que durante o Estado Novo ocorreram avanços importantes no campo de luta pelos direitos trabalhistas.

• O Estado Novo também ficou marcado pela aproximação entre o governo e alguns grupos de intelectuais. Agindo desta forma, Vargas visava angariar a simpatia de “formadores de opinião” em prol da causa governamental. Investimentos no setor educacional visavam preparar a sociedade para inserção em uma nova realidade caracterizada pela vida urbana e pelo desenvolvimento industrial.

• O direcionamento da opinião pública foi condicionado por um forte investimento estatal em mecanismos de censura e pela constituição de veículos de propaganda do governo e da figura do ditador.

• No plano internacional a política estadonovista primou pela lógica da barganha, ou seja, pela negociação com forças oponentes representadas, por exemplo, por

Page 85: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

77

países como a Alemanha e os Estados Unidos. Em 1942, em meio à Segunda Guerra Mundial, Vargas associa-se aos aliados, vindo, inclusive, a mandar tropas brasileiras ao combate em solo europeu.

• Após o término do conflito bélico internacional, o governo ditatorial de Vargas não pôde mais se sustentar. Articulações políticas iniciadas já em 1941 resultaram na criação de três grandes partidos que viriam a disputar as primeiras eleições diretas pós-Estado Novo: a UDN, o PSD e o PTB. Vargas é deposto e retorna para sua terra natal, São Borja, de onde voltará à Presidência “nos braços do povo”.

Page 86: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

78

AUTOATIVIDADE

1 Elabore alguns comentários sobre as relações que podem ser estabelecidas entre a “Questão Social” e a implantação do Estado Novo.

2 Duas características/práticas marcantes do Estado Novo: o “Sindicalismo Corporativo” e a “Política da Barganha”. Explique o significado desses conceitos.

Page 87: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

79

TÓPICO 3

A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES

DA DEMOCRACIA

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Conforme vimos no tópico anterior, o regime ditatorial implantado durante o Estado Novo foi carregado de ambiguidades. A estratégia da barganha adotada em relação à política internacional deixou sua marca também no cenário das articulações internas. Jogando de maneira hábil com o conjunto de interesses postos em relevo, Vargas soube, na medida do possível, atender as mais variadas reivindicações. Um exemplo marcante dessa postura pode ser encontrado na relação que o ditador estabeleceu com os trabalhadores urbanos. Embora o signo da cooptação tenha sido marca indelével, não há como negar que o Estado Novo ficou caracterizado pela institucionalização de uma legislação trabalhista há muito requisitada por este segmento social.

Por maiores que sejam as divergências na perspectiva de análise dos historiadores que tomam o período pós-1945 como objeto de estudo, dificilmente encontraremos quem não aceite o fato de que o processo de redemocratização a ele associado foi problemático. De imediato há que se considerar a dificuldade de se convencer a população das vantagens da democracia constitucional. A vinculação entre os avanços no campo da legislação trabalhista e o governo estadonovista era por demais estreita para ser desconsiderada em prol de uma ideia – a democracia – que no Brasil, historicamente, nunca havia encontrado terreno fértil para germinar. Mas, sendo outros os tempos, as mudanças estavam em curso.

De acordo com Penna (1999), a transição da ditadura do Estado Novo para a democracia representativa teve seu momento inaugural antes mesmo da deposição de Getúlio Vargas em 1945, mas é a partir deste ato, até a promulgação de uma nova Constituição, em 1946, que se convenciona designar redemocratização. Participaram desse processo grupos conservadores, grupos econômicos estrangeiros (principalmente norte-americanos), setores egressos do antigo regime e uma opinião pública sedenta por dias melhores.

As oscilações no jogo do poder, que até então haviam marcado o regime republicano, ganharam novos contornos entre os anos de 1945 e 1964, pois o término do Estado Novo foi acompanhado por um aumento significativo no número de eleitores. Devido às reformas educacionais e à incorporação do voto feminino (o voto feminino sem restrições passou a ser obrigatório em 1946), os índices de participação da população nas eleições aumentaram de maneira

Page 88: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

80

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

significativa, sendo que, em sua maioria, os eleitores e eleitoras eram moradores do meio urbano (a maior limitação à participação popular no processo eleitoral ficou por conta do veto ao voto dos analfabetos). Este aumento ocorreu paralelamente à mudança no perfil tanto de eleitores quanto de candidatos: neste novo período o voto passou a ser mais uma resposta a interesses individuais e/ou de classe do que uma imposição (como fora o caso do voto de cabresto na Primeira República). Cabia agora aos candidatos usar de sua representatividade e aceitação junto às massas populares para chegar ao poder.

2 A PERSONALIZAÇÃO DO PODER: O POPULISMO

Os anos que se estenderam de 1930 a 1964 ficaram marcados pela emergência de uma prática política singular no período republicano: o populismo. Francisco Weffort afirma que

O populismo, como estilo de governo, sempre sensível às pressões populares, ou como política de massas, que buscava conduzir, manipulando suas aspirações, só pode ser compreendido no contexto do processo de crise política e de desenvolvimento econômico que se abre em 1930. Foi a expressão do período de crise da oligarquia e do liberalismo, sempre muito afins na história brasileira, e do processo de democratização do Estado que, por sua vez, teve que se apoiar sempre em algum tipo de autoritarismo, seja o autoritarismo institucional da ditadura Vargas (1937-45), seja o autoritarismo paternalista ou carismático dos líderes de massa da democracia do após-guerra (1945-64). Foi também uma das manifestações das debilidades políticas dos grupos dominantes urbanos quando tentaram substituir-se à oligarquia nas funções de domínio político de um país tradicionalmente agrário, numa etapa em que pareciam existir as possibilidades de um desenvolvimento capitalista nacional. E foi sobretudo a expressão mais completa da emergência das classes populares no bojo do desenvolvimento urbano e industrial verificado nestes decênios e da necessidade, sentida por alguns dos grupos dominantes, de incorporação das massas ao jogo político. (WEFFORT, 1989, p. 61).

Weffort confere ao populismo uma envergadura temporal que abraça períodos e realidades distintas. Sua emergência nos anos 1930 representou, dentre outras coisas, a força dos movimentos sociais e, de acordo com Penna (1999), foi produto de uma situação política geradora da proletarização de amplas camadas sociais, que, em meio à transição para uma sociedade desenvolvida industrialmente, perdem a sua identidade. Esta perda passa a ser suprida por um processo de identificação, por parte das massas, com uma liderança política julgada capaz de um exercício do poder que põe na ordem do dia a preocupação com o desemprego e a miséria. Desta forma, “o populismo estabelece uma relação direta entre o líder e as massas, exalta o poder público e transforma o líder na própria encarnação do Estado protetor dos trabalhadores pobres e humildes”. (PENNA, 1999, p. 197). Via de mão dupla, esta relação resulta em ganhos tanto para as massas – cuja parte das reivindicações é atendida –, quanto para o líder. A este último é dado o poder de

Page 89: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMOCRACIA

81

negociação com as elites, sejam elas militares ou civis, pois, como chefe de Estado, passará a atuar como árbitro dentro de uma situação de compromisso onde os mais variados interesses estão envolvidos.

O representante por excelência da política populista foi Getúlio Vargas. Seu prestígio popular foi construído ao longo de sua primeira estada à frente do poder, principalmente nos anos de 1937 a 1945, e, enquanto pôde, Vargas soube se utilizar muito bem dele durante seu segundo governo (1951-1954). Mas Vargas não foi o único. Na verdade, a única exceção clara na política populista, entre os anos de 1945 e 1964, foi o governo Dutra (1945-1950), que embora eleito à base do prestígio de Vargas, estabeleceu, uma vez no poder, uma forte aliança conservadora.

3 O GOVERNO DUTRA E O RETORNO DE VARGAS

O governo Dutra teve início em 31 de janeiro de 1946 e apresentou fortes traços do liberalismo econômico, vindo a desenvolver uma postura contrária àquela adotada durante o Estado Novo. Decorre dessa postura o abandono da política de desenvolvimento amparado pelo Estado, assim como uma abertura à iniciativa privada e ao capital internacional. A retração do Estado, acompanhada pela ausência de controle sobre as remessas de lucros de empresas estrangeiras para o exterior, causou uma verdadeira sangria das divisas brasileiras. A passagem intempestiva de um forte intervencionismo estatal a um liberalismo agudo causou grandes estragos ao país e favoreceu politicamente Getúlio Vargas, que, de São Borja, acompanhava os desdobramentos do governo Dutra e articulava a sua volta à Presidência.

Em qualquer que seja o período histórico alvo de análise, é pouco prudente desconectar os encaminhamentos do governo de um país do contexto internacional. No caso do governo Dutra, esta questão ganha contornos mais nítidos, pois ele se deu nos anos subsequentes ao término da Segunda Guerra Mundial e em meio ao surgimento da “Guerra Fria”, que pôs em confronto as duas grandes potências mundiais do pós-45: os Estados Unidos e a União Soviética. Dentre outros desdobramentos, a Guerra Fria resultou naquilo que se pode chamar de “política do alinhamento”, ou seja, a necessidade de identificação com os ideais defendidos seja pela potência capitalista (EUA), seja pela potência socialista (URSS). A opção do governo Dutra foi pelo desenvolvimento de uma política de orientação privatista e pró-norte-americana, com presença maciça dos americanos na economia brasileira, inclusive com a participação em programas do governo.

Page 90: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

82

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Boavi n2.jpg>. Acesso em: 7 maio 2010.

FIGURA 23 – NORTE-AMERICANOS DÃO BOAS-VINDAS AO PRESIDENTE EURICO GASPAR DUTRA EM VIAGEM AOS ESTADOS UNIDOS

Numa outra linha de ação, a retração do Estado e a defesa da ação da iniciativa privada tiveram efeitos sobre o conjunto dos trabalhadores. Primeiro porque não houve durante este governo uma preocupação com a política salarial. Para se ter uma ideia, enquanto Dutra esteve à frente do Executivo o salário mínimo não sofreu nenhum reajuste. O poder aquisitivo dos trabalhadores entrou em queda livre diante do aumento do índice de inflação. Por outro lado, em se tratando de um período de redemocratização, este descaso para com os trabalhadores acabou gerando as condições para o aflorar de manifestações por parte das massas conduzidas, em grande medida, por lideranças comunistas associadas ao PCB. Como seria de se imaginar, o governo conservador não demorou a acionar a repressão com veemência.

Além de promover ações repressivas nas ruas contra os trabalhadores, em pleno processo de “redemocratização” o PCB é lançado na ilegalidade (maio de 1947). Neste mesmo ano o governo brasileiro rompe relações diplomáticas com a URSS e promove a cassação de deputados comunistas. Desta forma, aplicava-se no Brasil o procedimento idealizado pelos Estados Unidos para ratificar sua influência sobre os países latino-americanos. Todo este quadro nos dá uma ideia de como o governo Dutra acabou se tornando impopular. Do seu “retiro” em São Borja, Vargas observava a ordem dos acontecimentos: neste momento, o apelo populista torna-se mais forte do que nunca.

No final de 1946 Vargas retirou o apoio dado a Dutra. Sua preocupação passou a ser, então, o fortalecimento do PTB e o estabelecimento de alianças políticas. A mais importante destas foi firmada com o Partido Social Progressista (PSP), cujo representante de maior peso era o governador de São Paulo, Ademar de Barros. O acordo previa o apoio de Vargas a Barros quando da sucessão presidencial. Esta aliança colocou sob o teto do mesmo projeto político os dois maiores líderes populistas daquela época: Vargas, o “pai dos pobres” – imagem

Page 91: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMOCRACIA

83

construída durante o Estado Novo –, contava agora com o apoio de Barros, político conhecido como sendo “o tocador de obras”.

A pedra no sapato de Vargas era o exército. Conforme vimos, sua deposição em 1945 foi resultado das pressões desta instituição. Havia, portanto, a necessidade de ampliar o leque de negociações para que o exército também fosse incluído. Segundo Del Priore e Venâncio (2003), devido ao forte apelo popular de Vargas, muitos militares o viam como um antídoto frente à expansão do comunismo. Talvez por este motivo Vargas tenha conseguido, de imediato, a garantia de que, uma vez eleito, a ordem constitucional seria preservada e sua posse estaria garantida. De fato, ela foi.

Representando os maiores partidos da época, participaram das eleições de 1950: Getúlio Vargas, pela coligação PTB/PSP, Eduardo Gomes, pela UDN, e Cristiano Machado, pelo PSD. Vargas foi eleito com 48,7% dos votos válidos. Exatamente por isso teve sua posse contestada pela UDN mediante alegação de que era necessária uma votação superior a 50% dos votos válidos. O ato da UDN era mais um indício de que, em nome da governabilidade, Vargas teria que conseguir apoio político. Sua vitória nas eleições deveria ser respaldada por um corpo administrativo que contemplasse vários partidos. Atendendo a este imperativo, Vargas distribuiu os ministérios entre o PSD, o PTB, o PSP e a UDN.

Compostos os ministérios, era necessário implementar o plano de governo. Segundo Penna, em seu primeiro ano,

Vargas lançou-se a uma política norteada por duas preocupações: 1) no plano externo, não operar mudanças bruscas no rumo das negociações com as agências de financiamento, cujos resultantes geraram empréstimos concedidos pelo Eximbank e o BIRD (Bank for International Reconstruction and Development); 2) no plano interno, criar mecanismos que pudessem incrementar as indústrias de base. Neste último caso, foi elaborado o Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico, também conhecido como plano Lafer. Tratava-se de um plano quinquenal visando a investimentos sobretudo em energia, transporte e modernização da agricultura. Os recursos para estes investimentos seriam administrados pelo BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), criado em 1952, através de autorização do Congresso Nacional, onde o governo contava com a maioria. (PENNA, 1999, p. 215).

Para além da apresentação das preocupações mais imediatas do governo Vargas, as entrelinhas do fragmento acima nos fornecem indícios para uma reflexão sobre o dilema no qual o Brasil estava mergulhado no início da década de 1950. Naquela ocasião reinava uma nítida divisão no seio das elites brasileiras, incluindo as forças armadas, que dizia respeito ao modelo de desenvolvimento econômico a ser adotado pelo país. Uma vez que o impasse relativo à “vocação agrícola” versus o primado do desenvolvimento industrial já deixara de ser um problema durante os últimos anos do Estado Novo (momento em que a maior parte da economia brasileira passou a girar em torno da indústria), a questão agora era saber como orquestrar o desenvolvimento do setor industrial. Del Priore e Venâncio (2003)

Page 92: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

84

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

afirmam que, de maneira esquemática, é possível identificar duas posturas definidas: a primeira, representada pelos defensores do nacionalismo econômico e da participação do Estado no desenvolvimento industrial; a segunda, adepta da tese de que o segundo ciclo de nossa industrialização deveria ser comandado exclusivamente pela iniciativa privada brasileira, associada a capitais estrangeiros. Vale lembrar que os defensores da injeção de capitais internacionais tinham em mente principalmente capitais advindos dos Estados Unidos.

Durante um tempo Vargas conseguiu transitar entre estas duas correntes, mas logo foi obrigado a tomar partido único. Na década de 1950 uma questão de suma importância para o país era a definição de políticas voltadas ao setor energético e, por este motivo, o petróleo foi lançado ao proscênio. Em dezembro de 1951 ao Congresso Nacional é apresentada a proposta de criação do programa nacional do petróleo e a criação da PETROBRAS. Ao governo seria destinado 51% das ações com direito a voto, o que resultava no monopólio estatal sobre a extração do petróleo. Em meio a agitações no plano social, a campanha “O petróleo é nosso” foi encampada por organizações tais como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e sindicatos. Penna (1999) nos lembra que em 3 de outubro de 1953 a Lei nº 2.004 é sancionada criando a PETROBRAS. Num primeiro momento este acontecimento significou uma derrota das correntes políticas que durante o governo Dutra haviam defendido a não intervenção estatal nos assuntos econômicos. Por outro lado, ao aceitar a inevitabilidade do confronto direto com seus opositores, Vargas teve que promover uma mudança ministerial.

Da forma como passou a agir, Vargas aprofundou a política nacionalista, inclusive vindo a limitar a remessa de lucros de empresas estrangeiras para seus países de origem. No que tange às mudanças ministeriais, o evento mais significativo foi a nomeação de João Goulart, jovem político com apoio de organizações sindicais, para a pasta do Ministério do Trabalho. Dada a importância desse Ministério no contexto dos governos populistas, esta medida causou forte impacto. Para se ter uma ideia disto, é importante saber que, dentre suas primeiras medidas como ministro, João Goulart promoveu o reajuste do salário mínimo em 100%. A crise ganha corpo.

O exército, mais uma vez, é porta-voz do descontentamento das elites. Em fevereiro de 1954 vem a público o Manifesto dos Coronéis. O texto é um exemplo do radicalismo comum ao período da Guerra Fria. Queixando-se de que o aumento não era extensivo às forças armadas, os militares aproveitaram a ocasião para denunciar a ameaça da República Sindicalista, assim como a “infiltração de perniciosas ideologias antidemocráticas”, ou, para alertar a respeito do “comunismo solerte sempre à espreita...”, pronto para dominar o Brasil. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 336-337, grifo nosso).

A gravidade da situação levou Vargas a afastar João Goulart do Ministério

do Trabalho, mas o aumento do salário mínimo foi mantido. O grupo que fazia oposição a Getúlio Vargas congregava militares

americanófilos, críticos ferrenhos do projeto político do governo, ligados

Page 93: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMOCRACIA

85

internamente à UDN e externamente ao governo norte-americano. Como veículo de difusão de críticas, este grupo utilizava a imprensa, a exemplo dos jornais “O Estado de São Paulo, da família Mesquita, os Diários Associados, de Assis Chateubriand, e O Globo, dirigido pela família Marinho.” (PENNA, 1999, p. 217). Contudo, as críticas mais ácidas dirigidas ao governo Vargas eram veiculadas no Tribuna da Imprensa, fundado pelo jornalista Carlos Lacerda. Diante da ação contínua desses veículos de comunicação, Vargas resolveu criar um jornal para defender seus propósitos. Surgia assim o Última Hora, sob comando de Samuel Wainer jornal acusado pela oposição de ter sido criado a partir de um empréstimo irregular contraído junto ao Banco do Brasil. Seja como for, a criação do Última Hora municiou a oposição, que acusava o governo de corrupção, nepotismo e uso indevido do dinheiro público. Carlos Lacerda vociferava na linha de frente da oposição.

O clima ideológico dos anos de 1950 favoreceu a composição de uma segunda frente oposicionista representada por setores de esquerda. Em 1954, portanto, Vargas encontrava-se entre dois setores oposicionistas extremados: à direita, grupos políticos, empresariais e militares que admitiam a saída golpista para retirá-lo do poder; à esquerda, “uma tendência não menos golpista desencadeada pela direção do PCB”. (PENNA, 1999, p. 218). Em junho deste mesmo ano o Congresso brasileiro vota o impeachment de Vargas. Embora não tenha sido aceito, a pressão sobre o governo permaneceu muito grande.

Ao que tudo indica, Vargas interpretava a situação de pressão como sendo o ônus a ser pago na implantação de seu projeto político. Contudo, elementos ligados diretamente ao presidente não interpretavam os acontecimentos da mesma forma. Agindo à revelia das ordens de Vargas, elaboraram um plano para eliminar o maior delator do presidente. Em agosto um atentado contra Carlos Lacerda resulta na morte do seu acompanhante, Rubens Tolentino Vaz, um major da Aeronáutica.

Lacerda canalizou o acontecimento em favor de seus próprios argumentos. A atmosfera em torno de Vargas ficou absolutamente nebulosa. Um inquérito aberto pela Aeronáutica para investigar o atentado – que resultou na acusação de pessoas próximas a Vargas – levou “o velho” a admitir estar mergulhado em um “mar de lama”. A pressão pela renúncia foi enfrentada com a proposta de licença provisória, sugerida por Vargas, ao que se seguiu a imediata recusa por parte dos opositores. No dia 24 de agosto de 1954, no Palácio do Catete, Rio de Janeiro, às oito horas e trinta minutos da manhã, o presidente senta na cama de seu quarto, põe um revólver à altura do peito e puxa o gatilho. Ao entrarem no quarto, os familiares, acompanhados pelo médico pessoal de Vargas, o encontram agonizante. Na mesa de cabeceira, uma carta:

Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros

Page 94: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

86

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo.

A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás [sic] e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.

Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco.

Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.

Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.

(Rio de Janeiro, 24/08/1954 – Getúlio Vargas)

FONTE: CARTA-TESTAMENTO de Vargas. Disponível em: <http://www.espacoacademico. com. br/047/47cvianna.htm>. Acesso em: 24 abr. 2010.

Page 95: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMOCRACIA

87

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Ficheiro:GetulioVargasPijamaRevolver.jpg>. Acesso em: 7 maio 2010.

Por maiores que sejam as possibilidades de interpretação deste ato derradeiro de Vargas, é difícil negar que tenha se tratado de um golpe de mestre. Seu suicídio – emoldurado por um conjunto de palavras escolhidas de maneira absolutamente sagaz – foi responsável por uma intensa mobilização das massas populares, causando inúmeros distúrbios e manifestações em vários locais do país. A uma só vez Vargas recuperou o apelo popular e invalidou qualquer possibilidade de êxito do espectro golpista que se armava no interior das forças armadas.

FONTE: Disponível em: CENTRO de Referência da História Republicana. <http:// www.republicaonline.org.br/reponlinenav/>. Acesso em: 5 maio 2010.

FIGURA 24 – PIJAMA E REVÓLVER USADOS POR GETÚLIO VARGAS NA MANHÃ EM QUE SE SUICIDOU (MUSEU DA REPÚBLICA)

FIGURA 25 – PALÁCIO DO CATETE

Page 96: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

88

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

A Figura 25 mostra a concentração de populares à porta do Palácio do Catete, após a notícia do suicídio do Presidente Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954.

4 DE KUBITSCHEK A JOÃO GOULART

Após a morte de Vargas, a Presidência da República é assumida por João Fernandes Campos Café Filho. Durante este governo são preparadas novas eleições. O momento era o de escolher candidatos e promover as alianças. A UDN optou por um candidato militar, Juarez Távora. O discurso do partido, contrário ao salário mínimo, ao direito de greve e ao ensino gratuito, como seria de se esperar, resultou na derrota do partido. Contra a UDN coligaram-se o PTD e o PSD, cujo candidato era o mineiro Juscelino Kubitschek. Ao PTD coube a indicação do vice, João Goulart. Vitoriosa na eleição, a coligação não encontrou um clima favorável, pois militares alegavam a necessidade de maioria absoluta nas eleições presidenciais (Juscelino obtivera 36% dos votos, contra 30% de Juarez Távora). Sem obter respaldo junto aos legalistas, a corrente militar antinacionalista é obrigada a aceitar a posse do novo presidente, não sem antes pôr em prática mais uma tentativa golpista.

Ao assumir o governo, Juscelino procura resolver alguns problemas que fatalmente lhe seriam um entrave. Em meio ao embate entre grupos nacionalistas e antinacionalistas, procura conciliar propostas. Não abre mão do intervencionismo estatal, mas abre a economia para investimentos estrangeiros. Em linhas gerais é possível afirmar que

O novo governo, aliado do PTB, conserva traços populistas. No entanto, a política econômica representa uma alteração profunda em relação ao modelo precedente. Durante os dois governos de Vargas, a prioridade do desenvolvimento nacional constituiu no crescimento da indústria de base, produtora de aço ou de fontes de energia, como petróleo ou eletricidade. Naquele modelo, a iniciativa estatal predominava e os recursos para o crescimento econômico advinham da economia de exportação. Pois bem, Juscelino Kubitschek altera a forma de nosso crescimento industrial, instituindo o que os historiadores economistas chamam de tripé: a associação de empresas privadas brasileiras com multinacionais e estatais, essas últimas responsáveis pela produção de energia e insumos industriais. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 338-339).

UNI

Page 97: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMOCRACIA

89

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Ficheiro:Juscelino_Kubitschek.jpg>. Acesso em: 7 maio 2010.

Outra diferença marcante desse modelo de desenvolvimento econômico em relação ao conduzido por Vargas foi o investimento maciço na produção de bens duráveis, tais como os automóveis produzidos por empresas multinacionais. Os automóveis, inclusive, podem ser tomados como um dos símbolos do período de euforia e otimismo pelo qual passou a história brasileira, de maneira específica, e o capitalismo, num plano geral. Segundo o historiador Eric Hobsbawm (1995), os anos de 1950 foram representantes por excelência dos “anos dourados” ou “A Era de Ouro”. Embora países desenvolvidos do Hemisfério Norte tenham sido os maiores beneficiários desta era de bonança, nosso país, de fato, viveu um momento singular.

Transformações: nos mais variados cenários urbanos, surgimento de novas cidades, a exemplo da nova capital, Brasília (maior ícone do projeto de modernização do Brasil); cinema, televisão, esta última, em processo de expansão acelerado, adentrando lares, moldando gostos, disseminando valores e visões de mundo; euforia nos esportes: o Brasil é campeão mundial pela primeira vez. Estes exemplos nos dão uma noção de que a realidade brasileira era muito diferente do que fora em momentos anteriores. Durante o governo de Juscelino o populismo chegou ao seu auge. O Plano de Metas, cujo lema era “cinquenta anos em cinco”, expressão máxima do nacional-desenvolvimentismo, resultou na criação de novas rodovias, na ampliação da fronteira agrícola em direção a estados como Goiás e Mato Grosso. Evidentemente, tudo isso só foi possível mediante a disponibilidade de capital.

FIGURA 26 – JUSCELINO KUBITSCHEK E CORRELIGIONÁRIOS NO DIA DA SUA POSSE

Page 98: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

90

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:0741_ NOV_B_05_Esplanada_ dos_Ministerios_Brasilia_DF_03_09_1959. jpg>. Acesso em: 7 maio 2010.

Uma das fontes de capital, como vimos, foi o investimento estrangeiro. Este não se originou de um ato de altruísmo de potências estrangeiras, objetivando, pelo contrário, aproveitar o máximo possível as condições de reprodução do capital que o nosso país oferecia. Por outro lado, Juscelino utilizou de maneira ampla a expansão da base monetária para financiar os déficits de orçamento, bancar aumentos salariais (em 1959, para se ter uma ideia, o salário mínimo alcançou um poder aquisitivo não alcançado até o presente momento) e atividades produtivas. O resultado mais imediato desse tipo de política econômica foi a elevação do índice de inflação e a contração de uma pesada dívida externa. Esta herança seria um presente de grego para os governos subsequentes.

FIGURA 27 – ESPLANADA DOS MINISTÉRIOS – 1959

A Figura 27 mostra uma foto tirada por ocasião da construção de Brasília, Esplanada dos Ministérios – 1959, Arquivo Público do Distrito Federal.

UNI

Page 99: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMOCRACIA

91

FONTE: Disponível em: CPDOC/FGV. <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/ JK/artigos/ Economia/PlanodeMetas>. Acesso em: 7 maio 2010.

FIGURA 28 – JUSCELINO EM PALESTRA NO CLUBE MILITAR, DIVULGAÇÃO DO PLANO DE METAS, RIO DE JANEIRO – 1959

De maneira geral é possível sustentar a afirmação de que o balanço político do governo de Juscelino Kubitschek foi favorável. Além de conseguir cumprir os pontos essenciais do seu programa de governo, tais como aqueles relativos ao campo econômico, Kubitschek soube administrar bem os interesses conflitantes com os quais convivia. Por outro lado, Penna (1999) afirma que possivelmente devido à impotência demonstrada ou pelo estímulo às práticas fisiológicas, os observadores mais atentos desse governo concordam em considerá-lo forte politicamente, mas frágil institucionalmente. O governo tinha boas bases políticas, mas as instituições não estavam consolidadas. A explicação para esta situação pode ser encontrada justamente no fenômeno do populismo, pois, ao mesmo tempo em que este ensejava a participação das massas na política, não estimulava sua organização. Seja como for, não foi no governo de Kubitschek que o populismo encontrou seu momento derradeiro.

Desde o governo Dutra a formação de novos partidos políticos não era algo difícil de ocorrer. Neste período de redemocratização a emergência de novas propostas e novos candidatos não chegava a ameaçar os três grandes partidos. A novidade neste cenário ficou por conta da projeção alcançada por Jânio Quadros, representante do Partido Democrata Cristão (PDC). Orador inflamado, com um discurso anticomunista e uma retórica moralista, Jânio atraiu a atenção de membros da UDN e acabou sendo a aposta do partido para a disputa das eleições de 1960. Concorrendo contra a coligação PSD/PTB, que lançara como candidato o general Teixeira Lott, da ala nacionalista do exército, Jânio obtém uma vitória esmagadora, em grande medida resultado da capacidade deste político de, mesmo sendo de direita, conquistar o apoio das massas.

Page 100: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

92

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

O mais intrigante nas eleições de 1960 foi a inversão de papéis orquestrada pelos grandes partidos nacionais. Enquanto a UDN – absolutamente avessa à incorporação das massas ao jogo político – apoia um candidato com inclinações populistas, o PSD resolve lançar um militar cujo passado militava a favor (Lott fora um dos militares legalistas que garantiram a posse de Juscelino Kubitschek), mas que não tinha apelo junto às massas populares. O fato é que, embora a UDN tenha feito a aposta certa, chegando assim ao poder, as ações governamentais de Jânio logo se mostraram frustrantes para os udenistas, pois o novo presidente pouco consultava a coligação de partidos que o elegeu. Da mesma forma, tentava governar à revelia do Poder Legislativo.

FONTE: Disponível em: CPDOC/FGV – Arquivo Castilho Cabral. <http:// cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/ Campanha1960/A_campanha_presidencial_de_1960>. Acesso em: 7 maio 2010.

FIGURA 29 – JÂNIO QUADROS (AO CENTRO) EM EVENTO DO MOVIMENTO POPULAR JÂNIO QUADROS, 1959-1960

Do ponto de vista das políticas econômicas, Jânio Quadros promove ações bastante coerentes objetivando combater os altos índices de inflação que vigoravam no país. Desagradando a UDN, põe em prática o não alinhamento com os Estados Unidos e passa a valorizar acordos comerciais com países do bloco comunista. Resguardado o desagrado, parecia que o risco de instabilidade política havia diminuído, a não ser por interessante detalhe sustentado pelas regras eleitorais vigentes: era possível votar no candidato a presidente de uma chapa e no vice de outra. O resultado dessa “pérola eleitoral” pôs no Poder Executivo um candidato da UDN e, como vice, um candidato do PSD. Este último, João Goulart.

Embora o governo de Juscelino Kubitschek tenha procurado ampliar as fronteiras agrícolas do país, a preferência dada ao modelo de desenvolvimento industrial gerou um problema com o qual Jânio Quadros teve que conviver. No início dos anos de 1960 havia uma disparidade significativa entre o aumento da população urbana e a capacidade de produção agrícola do país. Como resultado, crises de abastecimento levaram a revoltas e inquietações populares generalizadas. Novas formas de organização social, tanto na cidade quanto no campo, davam o ritmo das reivindicações que, dentre outras coisas, estavam atentas ao processo

Page 101: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMOCRACIA

93

acelerado de concentração de renda presenciado no país desde o governo Kubitschek.

Conforme vimos em momento anterior, situações nas quais a pressão sobre o chefe do Executivo tende a inviabilizar a governabilidade geram medidas excepcionais. Estas podem ser conciliatórias, desesperadas, autoritárias ou absolutamente inusitadas. Jânio Quadros optou por esta última: renuncia tendo em mente que, diante do impasse criado, no melhor dos quadros possíveis o próprio povo sairia às ruas para clamar por sua permanência no poder. Isto não aconteceu.

Conforme ele [Jânio] próprio reconhece, em livro organizado alguns anos mais tarde sobre a História do Povo Brasileiro, seu objetivo era forçar uma intervenção militar: primeiro, operar-se-ia a renúncia; segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório – visto que a João Goulart, [...], não permitiriam as forças militares a posse, e, destarte, ficaria o país acéfalo; terceiro, ou bem se passaria a uma fórmula, em consequência da qual ele mesmo emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro de um novo regime institucional, ou bem, sem ele, as forças armadas se encarregariam de montar esse novo regime... O aprendiz de ditador fracassa por causa da “vacilação dos chefes militares”. Instala-se, porém, grave crise política, cujo desfecho final tem uma data marcada: 31 de março de 1964. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 344, grifos no original).

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/J%C3%A2nio_ Quadros>. Acesso em: 7 maio 2010.

FIGURA 30 – CARTA RENÚNCIA DE JÂNIO QUADROS

A carta renúncia de Jânio Quadros: “Ao Congresso Nacional. Nesta data, e por este instrumento, deixando com o Ministro da Justiça, as razões de meu ato, renuncio ao mandato de Presidente da República. Brasília, 25.8.61.”

UNI

Page 102: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

94

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

Após a renúncia de Jânio o cenário político brasileiro ficou muito conturbado. Do ponto de vista constitucional esta renúncia implicava a posse do vice-presidente, João Goulart. Conforme previra Jânio – não integralmente –, a posse do novo presidente foi dificultada. De imediato é necessário lembrar que João Goulart, ou “Jango”, em sua atuação como político, já havia desagradado em muito a uma parcela conservadora da sociedade brasileira. Além do aumento de 100% no salário mínimo, ainda durante o governo Vargas, Jango era defensor das chamadas “Reformas de Base”, que, por motivos que veremos mais à frente, contrariavam muitos interesses.

Alguns grupos militares demonstraram-se imediatamente contrários à posse de Jango. Contudo, por ter sido eleito através do voto direto, sua posição ganhava legitimidade e respaldo junto a muitos setores legalistas do exército. Contando com o auxílio de Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, que, no início dos anos de 1960, despontava como uma nova liderança nacional do PTB, Jango obteve o apoio do III Exército para a posse. Brizola inclusive lançou uma campanha nacional, através dos meios de comunicação de massa, pela posse do presidente. Como ambos os lados do certame tinham à sua disposição armas e um número elevado de simpatizantes, era necessário negociar ou o país entraria em uma guerra civil. Mais uma vez o caminho golpista foi barrado.

A saída encontrada para resolução do impasse foi a adoção do sistema parlamentarista. De acordo com ele, Jango assumiria a Presidência sem maiores percalços, mas a chefia do Executivo ficaria a cargo de um Primeiro-Ministro, indicado pelo presidente e aprovado pelo Congresso Nacional. Posto em exercício o sistema parlamentarista, mostrou-se um verdadeiro fracasso, pois as políticas econômicas implementadas no período não conseguiram dar cabo da grave crise econômica que oprimia o país. Jango aproveita a situação para antecipar um plebiscito que seria realizado (nove meses antes do término do mandato presidencial) para optar ou não pela manutenção do parlamentarismo. O resultado da consulta confere ao Brasil um retorno ao presidencialismo. Em janeiro de 1963 Jango assume o Poder Executivo.

Os atropelos associados à sucessão e ao período do parlamentarismo indicavam que o governo de Jango seria cambaleante. As pressões populares que, até então, tinham como centro irradiador o meio urbano, alcançaram também o meio rural. Em verdade, por ocasião da campanha pelo presidencialismo, Jango comprometeu-se com as massas alegando que seria o presidente das reformas sociais. Para tanto, seu objetivo era conseguir pôr em prática as já mencionadas reformas de base, que incluíam reformas na estrutura agrária, tributária, administrativa, bancária, educacional e eleitoral. Todas essas medidas faziam parte de um conjunto mais amplo de ação representado pelo Plano Trienal, cujo escopo primário era a redução das desigualdades regionais, a dinamização da economia e um crescimento econômico que impedisse a marcha da inflação.

Page 103: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMOCRACIA

95

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Ficheiro:Jo%C3% A3o_Goulart_NYWTS.jpg>. Acesso em: 7 maio 2010.

FIGURA 31 – JOÃO GOULART EM VISITA AOS ESTADOS UNIDOS – 1962

Dentre todas as medidas anteriormente apontadas, uma das mais importantes era a reforma agrária. A estrutura fundiária do Brasil, historicamente voltada ao latifúndio agroexportador, demonstrava-se pouco condizente com a nova realidade urbano-industrial do país. Este modelo não dava conta de abastecer de maneira eficiente os grandes centros urbanos, elevando os custos de vida e impedindo que aos trabalhadores sobrassem recursos para aquisição de produtos industriais. Del Priore e Venâncio (2003) resumem a situação: sem reforma agrária a economia brasileira estaria fadada à estagnação ou, na melhor das hipóteses, por demais dependente em relação aos investimentos estrangeiros.

Ciente da gravidade da situação, Jango enviou ao Congresso Nacional um anteprojeto de reforma constitucional que permitisse o início das discussões sobre as necessárias reformas de base. Sem o menor interesse em negociar, tanto a UDN quando o PSD posicionaram-se frontalmente contra a possibilidade de mudanças na Constituição, principalmente mudanças relacionadas à questão agrária, visto que parte do corpo partidário das duas siglas congregava membros e representantes dos proprietários rurais. A situação do presidente era muito complicada: por um lado era acusado de ser defensor de uma guinada à esquerda (subentenda-se socialista) dos rumos políticos e sociais do Brasil; por outro, a própria esquerda acusava a fraqueza do governo por não conseguir efetivar importantes questões sociais que prescindiam da aprovação do Congresso.

O isolamento de Jango em relação às elites o conduziu a uma maior aproximação em relação à ala radical do trabalhismo, liderado por Leonel Brizola (defensor da mobilização popular a favor para pressionar as reformas de base). Neste momento,

Page 104: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

96

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

[...] em parte devido à inflação, e também a essa política populista, as greves se multiplicam. Assim, é possível afirmar, por exemplo, que de 1961 a 1963 ocorreram mais movimentos grevistas do que no período compreendido entre 1950 e 1960. No que diz respeito às greves gerais, ou seja, aquelas envolvendo várias categorias socioprofissionais, o aumento registrado no mesmo período é de 350%! Não é difícil imaginar os transtornos criados nos serviços básicos de saúde e transportes coletivos por esse tipo de prática, tornando o presidente bastante impopular junto às classes médias e fatias importantes dos trabalhadores. Mais ainda: observa-se, durante seu governo, o declínio acentuado da repressão aos grevistas, dando munição aos que disseminavam, entre as elites, o medo em relação à implantação de uma república sindicalista no Brasil. (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2003, p. 350).

O fato é que, até aquele momento, nunca as pressões populares foram

tão intensas em toda história do país. O jogo político que até então havia sido um privilégio parlamentar adentrava agora os mais diversos locais em que houvesse concentração de populares. No campo ocorria a formação de sindicatos que reclamavam pela viabilização da reforma agrária e o cumprimento das leis trabalhistas que, em 1963, foram estendidas aos trabalhadores rurais. Desde 1955 a revolta frente à situação de opressão no campo fora cristalizada nas Ligas Camponesas (organizadas por Francisco Julião), cujo lema era levar a justiça para o campo através da reforma agrária. Nas cidades, os estudantes, organizados em agrupamentos de esquerda, defendiam uma aliança entre os operários, os camponeses e os estudantes.

Em meio a este clima de gritante instabilidade, no início de 1964, Jango envia ao Congresso Nacional um projeto de reforma agrária que é derrotado. A saída frente a esta derrota foi apelar para a mobilização das massas visando pressionar o Poder Legislativo. No dia 13 de março de 1964 organiza um comício com a participação de aproximadamente 150 mil pessoas, onde discursa defendendo a nacionalização de refinarias particulares de petróleo e a desapropriação de terras com mais de 100 hectares localizadas à margem de rodovias e ferrovias federais. A direita reage a manifestações dessa natureza organizando, com o apoio da Igreja Católica, de associações empresariais e de segmentos da classe média, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, evento que reuniu aproximadamente 250 mil pessoas em São Paulo.

Page 105: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMOCRACIA

97

FONTE: Disponível em: CPDOC/FGV. <http://cpdoc.fgv.br/ producao/dossies /Jango/album>. Acesso em: 7 maio 2010.

FIGURA 32 – PRESIDENTE JOÃO GOULART, AO LADO DA ESPOSA

Devido à interferência de Jango em uma questão militar, anistiando marinheiros que participaram de um levante em 25 de março, setores oposicionistas das Forças Armadas conseguiram o apoio das facções legalistas. A quebra da hierarquia militar foi uma ingerência não tolerável por parte daqueles que, de alguma medida, poderiam manter a ordem institucional. No dia 31 de março o general Mourão Filho desloca tropas de Minas Gerais em direção ao Estado da Guanabara, à época governado por Carlos Lacerda. Movimentações semelhantes seguem-se em outras partes do país. Sem resistência militar ou popular, Jango é deposto. A UDN participa ativamente do movimento e, após várias tentativas, chega ao poder através de um golpe. Uma ditadura militar era implantada no Brasil.

A figura mostra o Presidente João Goulart, ao lado da esposa Maria Tereza, discursando no comício organizado na Central do Brasil, em 13 de março de 1964.

UNI

Page 106: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

98

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

FONTE: Disponível em: CPDOC/FGV. <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/album>. Acesso em: 7 maio 2010.

FIGURA 33 – MILITARES NO PALÁCIO DA GUANABARA, RIO DE JANEIRO, EM 31 DE MARÇO DE 1964

LEITURA COMPLEMENTAR I

A ÚLTIMA CARTADA

Vivo ou morto, Getúlio é o grande mito político da nossa história recente. Seu suicídio foi o golpe de mestre. Imobilizando os inimigos, ele possibilitou a manutenção da ordem democrática e a eleição de Juscelino, em 1955.

O suicídio de Getúlio Vargas, ocorrido há cinquenta anos, foi um acontecimento trágico e único da História do Brasil, razão pela qual vem sendo recordado e reforçado por múltiplos mecanismos de memória. Não fosse isso o suficiente, o ano de 2004 também assinala os quarenta anos do golpe civil-militar de 1964, outro evento traumático da política nacional, que guarda com o suicídio um laço fundamental. Não só os analistas políticos profissionais, como também grande parte da população que tem acesso a informações, sabem e repetem que o suicídio adiou por dez anos o golpe. Ou seja, se Vargas não tivesse dado um tiro no coração, a conspiração que então se armava contra ele dificilmente seria evitada.

O segundo governo Vargas (1950-54) não transcorreu em clima de tranquilidade, tendo o presidente sofrido, sistematicamente, a oposição da maioria da imprensa e de grande parte dos setores políticos e militares. Mas, em agosto de 1954, uma grave crise se instalara com o atentado ao jornalista Carlos Lacerda, desencadeando um impasse de graves proporções, onde se opunham um presidente eleito, gozando ainda de grande popularidade, e uma ferrenha e aguerrida oposição civil e militar, que acusava o governo, especificamente o próprio Vargas, de estar envolvido em um “mar de lama”. Tudo isso, é bom lembrar, tendo como cenário a Guerra Fria, que alimentava o medo aos comunistas e também aos sindicalistas.

Page 107: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMOCRACIA

99

A tensão chegou a tal ponto que a renúncia do presidente foi pedida, ficando claro que, se ele não se afastasse, seria deposto mais uma vez. Foi nessas circunstâncias que Vargas se matou, num derradeiro golpe político que visava reverter uma situação que vinha beneficiando os antigetulistas. Lançando sobre eles seu cadáver, Vargas, como escreveu na carta-testamento, oferecia seu corpo em defesa do povo da pátria, saindo da vida para entrar na História. Nunca se saberá o que teria acontecido no Brasil caso Vargas não tivesse se matado. Mas é certo que sua morte transformou o equilíbrio das forças políticas vigentes, bloqueando o golpe que se armava e possibilitando a manutenção da legalidade constitucional, com a realização das eleições para presidente, em que saiu vitorioso Juscelino Kubitschek. Importa assim ressaltar o “sucesso” imediato do suicídio para a manutenção da democracia no Brasil. Trata-se de uma excelente janela para se adentrar à chamada Era Vargas (1930-45), e aí, particularmente, para se pensar nas razões que tornaram possível a construção da figura desse presidente como um mito da política nacional. É bom assinalar que a memória de 2004 reconstrói os acontecimentos de 1954 na perspectiva dos quarenta anos do regime militar e de todas as frustrações que o país viveu a partir daí. Frustrações que, de certa forma, ainda vivem, até porque sob o governo de um outro presidente que possui enorme popularidade, Luiz Inácio Lula da Silva, e que, como Vargas, também conseguiu mobilizar as crenças e esperanças do povo brasileiro.

FONTE: GOMES, Ângela de Castro. A última cartada. Nossa História, Rio de Janeiro, ano I, n.10, p. 14-15, ago. 2004.

LEITURA COMPLEMENTAR II

GETÚLIO E OS ANOS DE 1930 A 1964

1930 – Eclode a Revolução de 30. Um grupo de militares exige a renúncia do presidente Washington Luís. Getúlio assume o governo.

1931 – É promulgada, em março, a Lei de Sindicalização, subordinando os sindicatos ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio recém-criado.

1932 – Promulgação do Código Eleitoral, que cria a Justiça Eleitoral e institui o voto secreto e o voto feminino. Em 9 de julho, eclode a Revolução Constitucionalista em São Paulo, que é derrotada pelo Governo Provisório em outubro. Fundada a Ação Integralista Brasileira (AIB) de inspiração fascista.

1933 – Em março, realizam-se eleições e, no dia 15 de novembro, instala-se a Assembleia Nacional Constituinte.

1934 – Em julho, a Assembleia Nacional Constituinte promulga uma nova Constituição e elege Getúlio Presidente da República.

1935 – Grupos ligados à Aliança Nacional Libertadora (ANL) promovem

Page 108: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

100

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

revoltas em quartéis de Natal, Recife e Rio Janeiro, num episódio que ficaria conhecido como Intentona Comunista.

1937 – Instauração da ditadura do Estado Novo. Uma nova Constituição é outorgada ao país. O Congresso é fechado e os partidos políticos são extintos.

1938 – Integralistas atacam o Palácio Guanabara, onde o presidente e sua família se encontravam.

1939 – Criado o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), com o objetivo de difundir a ideologia do Estado Novo junto às camadas populares. Tem início a Segunda Guerra Mundial.

1940 – Abril: a polícia desmantela o que restava do Partido Comunista, prendendo todo seu Comitê Central; no Dia do Trabalho, 1° de maio, a lei do salário mínimo, de 1938, entra em vigor; julho: decreto federal estabelece o Imposto Sindical; setembro: o governo norte-americano aprova empréstimo para a construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda.

1941 – Criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Instalação, em todo o país, da Justiça do Trabalho.

1942 – O Brasil declara guerra ao Eixo completando seu alinhamento com os EUA.

1943 – Dia do Trabalho, 1° de maio, é anunciada a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

1945 – Abril: é organizada a UDN; funda-se em Belo Horizonte o PSD; maio: criação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Agosto: líderes sindicais promovem no Rio de Janeiro a primeira manifestação do “Queremismo”, pela permanência de Vargas; outubro: Vargas é deposto pelo Alto Comando do Exército. Eurico Gaspar Dutra é eleito presidente e Vargas deputado por sete estados e senador pelo Rio Grande do Sul e São Paulo.

1946 – Janeiro: Dutra toma posse; março: solicitada a cassação do PCB; junho: promulgada a nova Constituição; em setembro, a Assembleia Nacional Constituinte promulga a nova Constituição.

1950 – Candidato do PTB, Vargas é eleito em outubro presidente da República.

1951 – Getúlio toma posse e privilegia medidas que considera necessárias para a industrialização do país.

1952 – Vargas inaugura o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e estatiza a geração de energia elétrica, decidido a lutar pelos interesses nacionais.

Page 109: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 3 | A DÉCADA DE 1950: AS (IM)POSSIBILIDADES DA DEMOCRACIA

101

1953 – João Goulart (PTB), ministro do Trabalho, propõe aumento de 100% no salário mínimo. É criada a PETROBRAS e instituído o monopólio estatal na produção de petróleo. Essas medidas provocam a reação dos conservadores liderados pela UDN.

1954 – Atentado contra Carlos Lacerda (UDN) provoca a crise do “mar de lama”. Na madrugada de 24 de agosto, durante reunião ministerial, no Palácio do Catete, Getúlio é pressionado a renunciar ou ser deposto, horas depois o presidente suicida-se. Com a morte de Vargas, Jango assume a responsabilidade de continuar sua obra, sob a bandeira trabalhista.

1960 – Jânio Quadros (UDN) é eleito presidente e João Goulart (PTB-PSD), vice-presidente.

1961- Jânio renuncia à Presidência no dia 25 de agosto. Importantes setores das forças armadas se opõem à posse de João Goulart, mas ele assume o cargo, em setembro, com a condição de aceitar um regime parlamentar.

1963 – Num plebiscito, 80% dos eleitores optam pelo retorno do presidencialismo. Jango estreita as alianças com o movimento sindical e setores nacional-reformistas.

1964 – Golpe civil-militar depõe Jango em 1° de abril. O presidente e Leonel Brizola exilam-se no Uruguai.

1979 – De volta do exílio, Brizola funda o Partido Democrático Trabalhista (PDT), que passou a ser identificado como herdeiro da tradição trabalhista e da obra de Getúlio Vargas.

FONTES: NOSSA HISTÓRIA. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, ano 1, n.10, p. 20 agosto 2004.LINHARES, Maria Yedda (Org.). História geral do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990.

Page 110: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

102

UNIDADE 2 | NOVOS ARRANJOS POLÍTICOS: DA REVOLUÇÃO DE 1930 AO GOVERNO DE “JANGO”

Para aprofundamento destes temas, sugiro que você leia os seguintes livros e assista aos filmes indicados:LIVROS:COHEN, Marleine. JK - O Presidente Bossa Nova. Rio de Janeiro: Globo, 2001.O livro reconstitui a vida de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976). A obra traça também o panorama político, social e cultural de uma época em que o Brasil vivia uma onda de entusiasmo com seu futuro.

JARDIM, Serafim. Juscelino Kubitschek - Onde está a verdade?. Petrópolis: Vozes, 1999.O autor, que em 1996 pediu a reabertura do inquérito sobre as circunstâncias da morte de JK, não apenas esmiúça o acidente de 22 de agosto de 1976, que acredita ter sido um atentado, como narra passagens da vida do ex-presidente, de quem foi um próximo colaborador.

FILMES:Jango. Brasil: Direção de Silvio Tendler, 1984. Realizado na época da campanha pelas eleições diretas para presidente, em 1984, “Jango” faz uma retrospectiva do governo João Goulart e dos acontecimentos que precederam sua deposição pelo golpe de 31 de março de 1964. Apesar do título, o filme escapa de um registro meramente personalista em torno da figura de João Goulart, aproveitando o momento político de sua realização para fazer um discurso sobre a volta da democracia. Tendler não se limita, na montagem dos documentos, ao golpe em si. Utiliza-se da personalidade de Jango como um pretexto para inserir uma colagem de imagens históricas do regime militar implantado em 1964.

Cabra Marcado Para Morrer. Brasil: Direção de Eduardo Coutinho, 120 min. 1984.Em fevereiro de 1964 inicia-se a produção de Cabra Marcado Para Morrer, que contaria a história política do líder da liga camponesa de Sapé (Paraíba), João Pedro Teixeira, assassinado em 1962. No entanto, com o golpe de 31 de março, as forças militares cercam a locação no engenho da Galileia e interrompem as filmagens. Dezessete anos depois, o diretor Eduardo Coutinho volta à região e reencontra a viúva de João Pedro, Elisabeth Teixeira – que até então vivia na clandestinidade –, e muitos dos outros camponeses que haviam atuado no filme antes brutalmente interrompido.

Além de: MARQUES, Ademar; BERUTTI, Flávio; FARIA, Ricardo. História Moderna: através de textos. 11º ed. São Paulo: Contexto, 2010.

FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

DICAS

Page 111: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

103

RESUMO DO TÓPICO 3

Revisando o conteúdo, é importante você ter em mente que:

• Após o término do Estado Novo inicia-se no Brasil um processo de redemocratização que se estende até 1964. O primeiro presidente eleito democraticamente no período foi o militar Eurico Gaspar Dutra.

• Entre 1945 e 1964 o número de eleitores e o seu perfil mudaram de maneira substancial. A incorporação de novos grupos sociais ao cenário democrático demandou a constituição de mecanismos de captura da simpatia do eleitorado. A chegada ao poder pela via democrática passou a exigir uma maior aproximação em relação às massas.

• O Populismo, embora surgido já no primeiro governo de Getúlio Vargas, ganha maior projeção neste momento. Este consistia em um processo de identificação, por parte das massas, com uma liderança política capaz de um exercício do poder preocupado com o desemprego e a miséria. Estabelecia uma relação direta entre o líder e as massas, relação esta que resultava em ganhos tanto para as massas quanto para o líder.

• O governo Dutra apresentou fortes traços do liberalismo econômico, vindo a desenvolver uma postura contrária àquela adotada durante o Estado Novo. Adepto da aproximação em relação aos Estados Unidos, abandonou a política de desenvolvimento amparado pelo Estado e promoveu a abertura à iniciativa privada e ao capital internacional. A passagem agressiva de um forte intervencionismo estatal a um liberalismo agudo causou grandes estragos ao país e favoreceu politicamente Getúlio Vargas, que articulava a sua volta à Presidência, desta vez pela via democrática.

• Vargas, representando a coligação PTB/PSP, é eleito com 48,7% dos votos válidos. Teve sua posse contestada pela UDN mediante alegação de que era necessária uma votação superior a 50% dos votos válidos. Diante desse quadro, Vargas teve que efetuar uma série de concessões em nome da governabilidade. O presidente distribuiu os ministérios entre o PSD, o PTB, o PSP e a UDN.

• Do ponto de vista da economia, no segundo governo de Vargas o Brasil enfrentou um dilema relativo ao tipo de postura a ser adotada. Uma delas defendia o nacionalismo e a participação do Estado no desenvolvimento industrial. A outra defendia a ação da iniciativa privada brasileira, associada a capitais estrangeiros.

• Vargas opta pela política nacionalista com participação do Estado. Esta postura se evidencia quando da criação da PETROBRAS. Neste momento entra em confronto direto com seus opositores.

Page 112: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

104

• A nomeação de João Goulart para a pasta do Ministério do Trabalho e a elevação do salário mínimo em 100% instauram uma crise no país.

• Recebendo críticas severas por meio da imprensa de grande circulação, tais como as dirigidas por Carlos Lacerda, representante da direita brasileira, assim como acusações de setores da esquerda, o governo Vargas fica numa situação dramática.

• Após um atentado malsucedido contra Carlos Lacerda, a situação fica insustentável. Tendo sido recusado seu pedido de licença, Vargas comete suicídio. Sua ação impossibilita a aplicação de um golpe militar que estava se armando no país.

• Na eleição seguinte Juscelino Kubitschek chega à Presidência. Em seu governo o embate entre grupos nacionalistas e antinacionalistas é relativamente contornado pela via da conciliação. Kubitschek não abre mão do intervencionismo estatal, mas abre a economia para investimentos estrangeiros.

• O governo de Kubitschek teve um balanço político favorável. Desenvolveu-se em meio a uma época de bonança no mundo capitalista. Além de conseguir cumprir os pontos essenciais do seu programa de governo, Kubitschek soube administrar bem os interesses conflitantes com os quais convivia. Com o Plano de Metas promoveu o desenvolvimento econômico do país, mas deixou uma pesada herança para seus sucessores.

• O governo seguinte foi assumido por Jânio Quadros, político populista e de personalidade contraditória. Eleito com apoio da UDN, governa sem consultar suas bases.

• Com uma atitude surpreendente, Jânio renuncia. Acreditava que os clamores populares o colocariam novamente no poder. Seu plano dá errado e o vice, João Goulart, assume.

• Para chegar à Presidência, João Goulart teve que aceitar a imposição do regime parlamentarista. Somente após o insucesso desse regime de governo, Jango assume a chefia do Executivo.

• A tentativa de implementação das chamadas “Reformas de Base” leva seu governo a entrar em confronto com a elite econômica do país. Sua proposta de reforma agrária foi barrada pelo Congresso.

• A situação de João Goulart ficou muito complicada: por um lado era acusado de ser defensor de uma guinada à esquerda; por outro, a própria esquerda acusava a fraqueza do governo por não conseguir efetivar importantes questões sociais que prescindiam da aprovação do Congresso.

• Em meio às manifestações no campo e na cidade, Jango se aproxima da ala radical do trabalhismo, liderado por Leonel Brizola.

Page 113: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

105

• Apelando para a mobilização das massas, Jango organiza um comício com a participação de aproximadamente 150 mil pessoas. A direita reage e, com o apoio da Igreja Católica, de associações empresariais e de segmentos da classe média, promove a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, evento que reuniu aproximadamente 250 mil pessoas em São Paulo.

• Devido a uma bem articulada iniciativa militar, em 31 de março de 1964 Jango é deposto. A UDN participa ativamente do movimento e, após várias tentativas, chega ao poder através de um golpe. Uma ditadura militar é implantada no Brasil.

Page 114: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

106

1 Indique as características gerais do populismo e a maneira como Getúlio Vargas se utilizou desse mecanismo em seu governo no período democrático.

2 Descreva, em linhas gerais, as circunstâncias nas quais o golpe militar de 1964 foi articulado. Procure enfatizar as ações realizadas por João Goulart e as repercussões das mesmas nos meios conservadores do país.

AUTOATIVIDADE

Page 115: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

107

UNIDADE 3

DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir desta unidade você será capaz de:

• descrever os motivos que levaram ao golpe militar de 1964 e as razões em torno do projeto nacional que foi colocado em prática a partir daí;

• entender a oposição entre o aparelho de Estado e setores da sociedade civil durante a ditadura militar;

• entender as causas da crise da ditadura que levaram ao processo de “aber-tura política”, no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980;

• analisar o significado do “retorno”, ou melhor, da transição para o regime democrático;

• refletir sobre a Nova República no Brasil, em seus diferentes momentos, até a virada do século XX para o século XXI.

Esta unidade está dividida em quatro tópicos e em cada um deles você encon-trará atividades que o(a) ajudarão a aplicar os conhecimentos apresentados.

TÓPICO 1 – INSTAURANDO A NOVA ORDEM: OS MILITARES NO PODER

TÓPICO 2 – O ESGOTAMENTO DO MODELO DE DESENVOLVIMENTO

TÓPICO 3 – A MOBILIZAÇÃO POPULAR, A TRANSIÇÃO E A NOVA RE PÚBLICA

TÓPICO 4 – DEMOCRACIA, AFINAL, PARA QUEM?

Page 116: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

108

Page 117: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

109

TÓPICO 1

INSTAURANDO A NOVA ORDEM: OS

MILITARES NO PODER

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Em 31 de março de 1964, tropas do Exército, comandadas pelo General Olympio Mourão Filho (autor do “Plano Cohen”, aquele que serviu de pretexto para a instalação do Estado Novo em 1937), iniciaram uma movimentação com o objetivo de atacar o Rio de Janeiro e depor o presidente João Goulart. O “Golpe de 1964”, assim, iniciava um período de aproximadamente 20 anos em que o país esteve sob um regime ditatorial, exercido pelos militares. Ao contrário do que possa parecer, o golpe não foi um acontecimento violento, com grandes combates. Pode-se afirmar, inclusive, que tenha sido pitoresco, com o envolvimento de oficiais-generais, oficiais superiores, governadores, parlamentares, empresários, embaixadores, entre outros, formando uma base conspiratória que não era popular, mas de elite.

Oficialmente, a alegação para o golpe foi justificada no chamado “perigo vermelho”, ou seja, uma ameaça que se dizia concreta e real, de tomada do poder pelos comunistas brasileiros, o que sujeitaria o Brasil ao movimento comunista internacional liderado por Moscou e levaria ao fim da democracia e das liberdades individuais, com a provável implantação de um totalitarismo de esquerda. Este argumento, devidamente publicitado, criou o pretexto para que as elites dirigentes do país, política e economicamente, assegurassem um espaço para impor seus projetos à nação, assegurando a hegemonia das classes dominantes. Há que se considerar que, se por um lado, durante os anos de 1950 houve de fato um crescimento da organização popular, dos movimentos de trabalhadores urbanos e rurais e do sindicalismo, por outro, eles jamais se constituíram numa possibilidade radical de transformação do sistema, como se poderia esperar de uma revolução socialista proletária ou camponesa. O governo João Goulart, no máximo, posicionava-se entre um projeto desenvolvimentista que visava maior distribuição da riqueza – o Plano Trienal – e as Reformas de Base, que em pequeno grau refletiam parte do ideário progressista existente em vários setores políticos brasileiros da época, em cujas fileiras se encontrava o Partido Comunista do Brasil (PCB), então na ilegalidade.

Entretanto, na retórica dos defensores do golpe, por eles chamado de “revolução”, a ameaça comunista, ou ainda, da “República Sindical”, existia de fato, o que permitiu caracterizar a ação conspiratória como uma medida preventiva, cujo objetivo era zelar pela sanidade do corpo político nacional. Em outras palavras, os militares golpistas diziam querer “cuidar do país” e fazer aquilo que

Page 118: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

110

era o “melhor para o Brasil”. Nesses termos, fica fácil perceber que o nacionalismo verde-amarelo dos militares contra a ameaça vermelha dos comunistas nada mais era que uma fachada para o movimento de fundo que visava atender a insatisfação dos militares, com quase duas décadas de poder civil, e garantir para parte da elite brasileira a coesão em torno de um poder forte e centralizado. Cabe lembrar que alguns setores sociais da elite nacional não aderiram ao golpe: os setores golpistas eram os mais conservadores, o que transformou posteriormente o regime em uma ditadura, antidemocrática, antipopular e reacionária.

2 O GOLPE E OS GOVERNOS AUTORITÁRIOS

O governo de Jango caiu sem muita resistência – fora algumas tentativas dentro do campo legalista –, efetivamente evitando-se o confronto armado, pois a intenção era afastar uma “guerra civil”. O presidente deixou o país e seguiu para o exílio no Uruguai. Antes disso, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, na madrugada de 2 de abril, formalizou a declaração de vacância do cargo de Presidente da República, com as seguintes palavras:

O Senhor Presidente da República deixou a sede do governo [tumulto no plenário], deixou a nação acéfala [tumulto] numa hora gravíssima da vida brasileira em que é mister que o chefe de Estado permaneça à frente do seu governo. Abandonou o governo e esta comunicação faço ao Congresso Nacional! Esta acefalia configura a necessidade de o Congresso Nacional, como poder civil, imediatamente tomar a atitude que lhe cabe nos termos da Constituição Brasileira para o fim de restaurar, nesta pátria conturbada, a autoridade do governo e a existência do governo. Não podemos permitir que o Brasil fique sem governo, abandonado [tumulto]. Há sob a nossa responsabilidade a população do Brasil, o povo, a ordem, [tumulto]. Assim sendo, declaro vaga a Presidência da República! E nos termos do artigo 79 da Constituição, declaro Presidente da República o Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli [tumulto]! A sessão se encerra! (FICO, 2004, p. 19).

Ocorre que Mazzilli não conseguiu tomar posse. O general Arthur da Costa e Silva, comandante do Exército Nacional, assumiu o controle do poder junto com o vice-almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald e com o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, formando o Comando Supremo da Revolução, órgão de poder transitório até a escolha do novo presidente. Nessa ocasião a cúpula do movimento, formada por militares e civis, havia decidido que Castelo Branco seria o novo presidente da República e, no mandato seguinte, seria sucedido por Costa e Silva. Foi também de iniciativa do Comando Supremo a expedição do Ato Institucional de 9 de abril, que ficou conhecido como o AI-1, o primeiro de uma série. Mais adiante comentaremos sobre os atos institucionais da ditadura militar.

Castelo Branco fazia um discurso de governante democrático. Representava os “militares da Sorbonne” (como era conhecida a Escola Superior de Guerra – ESG), a ala moderada da ditadura. A outra ala era composta pelos militares “linha-dura”, dentre os quais estava o sucessor de Castelo, o general Costa e Silva. Castelo

Page 119: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | INSTAURANDO A NOVA ORDEM: OS MILITARES NO PODER

111

assegurava o cumprimento da Constituição de 1946, a liberdade de imprensa e sindical e o funcionamento normal e equilibrado dos Três Poderes. Afirmava que o movimento de 1964 tinha aberto a estrada da democracia para o povo brasileiro, prometendo salários justos e melhores condições de vida para os trabalhadores. Inclusive a reforma agrária seria feita com base no Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964). Pura ilusão, retórica inócua. Entre 1965 e 1966 Castelo Branco baixou três Atos Institucionais, 36 Atos Complementares, 312 Decretos-Leis, 19.259 Decretos, enviou onze propostas de emendas constitucionais ao Congresso Nacional e um projeto de reforma global da Constituição. Com Castelo Branco ocorreram 3.747 atos punitivos, com uma média de mais de três por dia. (VIEIRA, 1991, p. 16). Na verdade, ele suspendeu garantias constitucionais, cassou mandatos dos parlamentares, interditou sindicatos, perseguiu trabalhadores e estudantes, sendo responsável pelo AI-2 e o AI-3. Entre 1964 e 1967 foram demitidos pouco mais de 1.500 funcionários públicos e algo em torno de 1.200 militares. Os partidos políticos foram abolidos, instaurando-se o bipartidarismo e uma nova Carta Magna foi redigida, resultando na polêmica Constituição de 1967.

Logo após o golpe de 1964 muitas pessoas, inclusive políticos, acreditavam que o país não enveredaria por um longo período ditatorial, como ocorreu. A bandeira ideológica do movimento era o alinhamento com as nações “democráticas e livres”, o que significava, no contexto da Guerra Fria, os EUA e a Europa Ocidental, principalmente. Aliás, sabe-se que o governo norte-americano deu total apoio à ação dos militares, até com logística de guerra, na notória operação que ficou conhecida como “Operação Brother Sam”:

A Operação Brother Sam foi desencadeada pelo governo dos Estados Unidos, sob a ordem de apoiar o golpe de 1964 caso houvesse algum imprevisto ou reação por parte dos militares que apoiavam Jango, consistindo de toda a força militar da Frota do Caribe, liderada por um porta-aviões da classe Forrestal da Marinha dos Estados Unidos e outro de menor porte, além de todas as belonaves de apoio requeridas a uma invasão rápida do Brasil pelas forças armadas americanas. (WIKIPÉDIA, 2010).

Se na propaganda o regime representava a democracia contra a tirania, a liberdade contra a escravidão (referência aos países do bloco socialista), no âmbito interno essa ideologia se expressou na “doutrina da segurança nacional”, gestada na Escola Superior de Guerra e que, ao longo dos anos de 1950, consistia basicamente no combate ao comunismo, visto como manipulador e incentivador dos conflitos sociais no Brasil. Em nome dessa “segurança nacional” ocorreu uma progressiva militarização de todos os níveis da sociedade, destacando-se a ideologia e o comportamento empresariais. Os tecnoburocratas civis e militares de alta patente passaram a estudar a inflação, a reforma agrária, a reforma bancária, os sistemas partidários, o transporte, a educação e demais matérias do gênero. O predomínio desses setores nos governos da ditadura ficou conhecido como o modelo da tecnoburocracia (veja a leitura complementar).

A posse do presidente Arthur da Costa e Silva já estava acertada desde 1964

e ocorreu em 15 de março de 1967, após as eleições indiretas (através do colégio

Page 120: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

112

eleitoral antecipadamente montado), que o indicaram para a Presidência. Sob a orientação do novo texto constitucional, o novo presidente pretendeu valorizar o Poder Legislativo, já que este se encontrava sob controle, com apenas dois partidos legais: a Aliança Renovadora Nacional – ARENA –, partido da situação, de base do governo, e o Movimento Democrático Brasileiro – MDB –, partido da oposição consentida. Mesmo com todos os seus defeitos, as duas únicas instituições democráticas do período eram a Constituição e os partidos, mas também estes não duraram muito tempo. Durante o governo Costa e Silva, que começou a enfrentar os movimentos de oposição da sociedade, foi baixado o mais famoso e repressivo dos Atos Institucionais, o AI-5, em 13 de dezembro de 1968. Considerado a máxima expressão do autoritarismo do Poder Executivo, este ato aniquilou com o que restava de democracia no país e manteve-se em exercício durante os dez anos seguintes.

Após uma grave moléstia que levou Costa e Silva ao óbito, o Congresso Nacional acata a indicação das Forças Armadas e confirma o General Emílio Garrastazu Médici na Presidência da República em 30 de outubro de 1969, elegendo-o com 293 votos a favor e 76 abstenções. Médici também foi um legítimo representante da ideologia da ditadura, que insistia em uma via democrática, de melhoria das condições de vida, verificada somente em discursos, mas muito distante da realidade. Tanto é que em certo momento, o próprio presidente reconheceu que “A plena democracia é ideal que, se em algum lugar já se realizou, não foi certamente no Brasil”. (MÉDICI, 1970). A violenta repressão desencadeada pelo novo governo levou à reação de grupos oposicionistas por meio da luta armada, promovendo a hedionda fase de tortura alastrada no país, estabelecida através de vários setores ligados às Forças Armadas e outros organismos próximos do governo. Os inúmeros casos e relatos de testemunhas desse momento revelam atrocidades que, ainda hoje, resistem como temas tabus da sociedade brasileira. Os grandes ganhadores do governo Médici não foram os membros do povo, mas a burguesia, os banqueiros, os tecnocratas, os militares e as classes médias, naquele processo que ficou conhecido como o “milagre econômico”. Para sustentar seu ufanismo, o governo criou uma série de slogans, como “Quem não vive para servir o Brasil, não serve para viver no Brasil”, “Ninguém segura este país” ou “Brasil: ame-o ou deixe-o”.

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Publicidade_do_ regime_militar_ de_1964>. Acesso em: 10 mar. 2010.

FIGURA 34 – UFANISMO DO GOVERNO MILITAR

Page 121: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | INSTAURANDO A NOVA ORDEM: OS MILITARES NO PODER

113

Cumprindo fielmente o prazo de seu mandato, em 15 de março de 1974 Médici transferiu a Presidência para o general Ernesto Geisel. O novo governo começava a sentir os efeitos do desgaste político e econômico da ditadura. O excesso de repressão tornava o regime cada vez mais antipático a diversos setores sociais organizados, de trabalhadores, intelectuais, profissionais liberais, parcelas da Igreja e demais campos de opositores (a chamada oposição institucional abrangia a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, a Ordem dos Advogados do Brasil – a OAB, a Associação Brasileira de Imprensa – ABI). Com a crise mundial do petróleo em 1974, o milagre econômico não podia mais ser celebrado, iniciando um período de progressiva queda do poder aquisitivo de boa parte daquela população que antes se via numa situação privilegiada.

Para articular o poder, Geisel se colocou à frente de uma política reformista e se apresentou como o governante que iria trazer de volta as liberdades públicas, seguindo a política de “distensão”, que também marcava o cenário político internacional, entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética. Assim, diante da deterioração econômica e do descontentamento social, propôs como solução a chamada “abertura” política: lenta, segura e gradual. Mantinha-se o mesmo grupo no poder, mas alterava-se a postura repressiva do governo. Esta medida, por um lado, era necessária para manter uma base de apoio às diretrizes do governo, oferecendo um espaço de participação aos setores mais oposicionistas (moderados, é claro) no interior da vida política e, por outro lado, mudar a estratégia de ação do partido governista, a ARENA, para que fosse ampliada sua base eleitoral. Apesar dos esforços em várias regiões do Brasil, a representação da ARENA decaía, enquanto se elevava a do MDB, cuja principal bandeira era a do retorno ao Estado de Direito e das garantias constitucionais.

Sucessor de Geisel em março de 1979, o governo do general João Baptista Figueiredo foi caracterizado pelo processo de ampliação da abertura e de transição para o regime democrático de governo civil, associado ao aprofundamento da crise econômica. Buscando dar continuidade ao processo iniciado por Geisel, a democracia e as liberdades públicas, que eram necessárias, foram impostas também pela força. Ironicamente, ficaram famosas as palavras do presidente Figueiredo que, certa vez, afirmara “Eu prendo e arrebento”, remetendo àquele indivíduo que fosse contra a abertura política. Tomando as rédeas do processo,

Em agosto de 1979, Figueiredo tirou das mãos da oposição uma de suas principais bandeiras: a luta pela anistia. A lei de anistia aprovada pelo Congresso continha, entretanto, restrições e fazia uma importante concessão à linha-dura. Ao anistiar “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”, a lei abrangia também os responsáveis pela prática da tortura. De qualquer forma, possibilitou a volta dos exilados políticos e foi um passo importante na ampliação das liberdades públicas. (FAUSTO, 1996, p. 504).

Além da Anistia, a abertura política permitiu o surgimento de novos partidos políticos, por intermédio da chamada “Reforma Partidária” (Lei nº 6.767, de 1979). Os partidos oriundos dessa reforma foram o Partido Democrático Social

Page 122: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

114

– PDS, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB, o Partido Popular – PP, o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, o Partido Democrático Trabalhista – PDT e o Partido dos Trabalhadores – PT.

3 OS ATOS INSTITUCIONAIS E OUTRAS MEDIDAS AUTORITÁRIAS

Optamos por analisar este aspecto da ditadura militar à parte porque foram os Atos Institucionais peças extremamente importantes da dinâmica política do regime. Eles podiam ser baixados a qualquer hora e sem exposição de motivos, ainda que fossem justificados conforme a necessidade de cada governante general. Atropelando qualquer prerrogativa constitucional, os AIs, como eram chamados, expressavam o desequilíbrio entre os Três Poderes característico da ausência de normalidade jurídica, que concentrava excessivamente no Poder Executivo os processos decisórios. Dessa forma, esses atos eram impregnados de autoritarismo, subjugando de fato a vida política nacional ao regime ditatorial. Foram vários os Atos Institucionais, mas comentaremos aqui apenas aqueles que foram anteriormente citados, do primeiro ao quinto. Os quatro primeiros no governo Castelo Branco e o quinto no governo Costa e Silva. No entanto, é importante saber que existiram mais de uma dezena de atos institucionais, como, por exemplo, o AI-13 que, expedido pouco antes do governo Médici, determinava que os presos políticos trocados por diplomatas sequestrados receberiam a condição de banidos do Brasil.

• O Ato Institucional nº 1 (AI-1): o Supremo Comando revolucionário passava a ter atributos de Poder Constituinte; conservava a Constituição de 1946 e as constituições estaduais, mas instituía a eleição indireta, ou seja, o novo presidente e o seu vice seriam escolhidos por maioria absoluta do Congresso Nacional. Permitia que se retirassem os direitos políticos de qualquer pessoa por dez anos e que se cassassem mandatos parlamentares, sem direito à apelação judicial.

• O Ato Institucional nº 2 (AI-2): avançava no controle do Congresso Nacional, concedia mais poder para o Executivo, alterava o funcionamento do Poder Judiciário, extinguia todos os partidos políticos do país, instituindo o bipartidarismo: a Arena e o MDB. Manteve cassações de mandatos e suspensões de direitos políticos.

• O Ato Institucional nº 3 (AI-3): determinava que a eleição de governadores e seus vices seria indireta, via colégio eleitoral estadual. Prefeitos das capitais seriam indicados, por nomeação, pelos governadores.

• O Ato Institucional nº 4 (AI-4): invocava a necessidade de institucionalizar os princípios do movimento de 1964. Deu origem à Constituição de 1967.

Page 123: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | INSTAURANDO A NOVA ORDEM: OS MILITARES NO PODER

115

• O Ato Institucional nº 5 (AI-5): não tinha prazo de vigência, atribuindo mais poderes ao Executivo. A partir dele o Presidente da República podia: fechar o Congresso Nacional, assembleias estaduais e câmaras municipais; cassar mandatos de parlamentares; suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer pessoa; demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade funcionários federais, estaduais e municipais; demitir ou remover juízes; suspender as garantias do Poder Judiciário; decretar estado de sítio sem qualquer impedimento; confiscar bens como punição por corrupção; suspender o habeas corpus em crimes contra a segurança nacional; instaurar o julgamento de crimes políticos por tribunais militares; legislar por decreto ou expedir outros atos institucionais e complementares; proibir o exame, pelo Poder Judiciário, de recursos impetrados por pessoas acusadas por força do AI-5.

Além dos numerosos Atos Institucionais, existiram várias outras medidas abusivas, dentre as quais podemos destacar:

• Lei de Greve (Lei nº 4.330, de junho de 1964): proibia as greves de natureza política, social ou religiosa, bem como as greves em serviços essenciais e as de solidariedade.

• Lei de Imprensa (Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967): estabelecia a censura prévia a propaganda política considerada subversiva, espetáculos e diversões públicas e, na vigência do estado de sítio, o governo poderia exercer a censura sobre os jornais ou periódicos e empresas de radiodifusão e agências noticiosas, nas matérias atinentes aos motivos que determinaram a censura, como também em relação aos executores daquela medida, prevendo a prisão de jornalistas.

• Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969): retirava os direitos de reunião, de associação e de expressão.

• Lei Falcão (Decreto-Lei nº 6.639, de 1º de julho de 1976): os partidos políticos só exporiam, no rádio e na televisão, sua denominação, o número e o currículo dos candidatos, com uma fotografia (na TV), evitando qualquer tipo de debate.

• O “Pacote de Abril” (de 1977): com base no AI-5, Geisel fechou o Congresso e alterou o Poder Judiciário, disciplinando os juízes e excluindo os tribunais civis do julgamento de policiais militares; tornou permanentes as eleições indiretas para governadores e reorganizou a representação na Câmara dos Deputados para favorecer a ARENA; criou os “senadores biônicos”, eleitos indiretamente; alterou a aprovação de emendas constitucionais, aumentando o campo de manobra do governo; generalizou a Lei Falcão para todas as eleições.

Page 124: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

116

Todas as leis referenciadas estão integralmente disponíveis na internet, no site www.planalto.gov.br/ccivil/leis.

LEITURA COMPLEMENTAR

O NOVO MODELO BRASILEIRO DE DESENVOLVIMENTO

O modelo político de desenvolvimento que hoje se esboça no Brasil poderia ser chamado de tecnoburocrático-capitalista. Está baseado em uma aliança entre a tecnoburocracia militar e civil de um lado, e o capitalismo internacional e nacional do outro. Esta aliança apoia-se, por sua vez, em um modelo econômico de desenvolvimento que se caracteriza pela modernização da economia, pela concentração da renda nas classes altas e médias e pela marginalização da classe baixa.

Na verdade, o modelo econômico e político de desenvolvimento tecnoburocrático-capitalista constitui um todo único que, no plano de abstração em que estamos trabalhando, exige uma análise integrada. Poderíamos também chamar a esse modelo de desenvolvimento de “capitalismo de Estado”, mas entendemos que essa denominação retiraria ao modelo grande parte de sua especificidade. Temos, de fato, no Brasil, um modelo de desenvolvimento baseado no controle tecnoburocrático do governo por parte dos militares, dos técnicos e dos burocratas civis, e no controle capitalista da produção, por esse mesmo governo, pelos grupos capitalistas nacionais e principalmente internacionais.

Os militares, que assumiram o poder em 1964, constituem um grupo tecnoburocrático por excelência. Originam-se de uma organização burocrática moderna como são as Forças Armadas. Possuem preparo técnico, administram recursos humanos e materiais consideráveis. Adotam sempre os critérios de eficiência própria da tecnoburocracia. Como se não bastasse, chamaram imediatamente para participar do governo os tecnoburocratas civis. Estes dois grupos, de origem da nova classe média, a partir especialmente do Governo Costa e Silva, assumiram plenamente as rédeas do governo e colocaram como seus objetivos básicos o desenvolvimento econômico e a segurança.

Por outro lado, já a partir de 1964, o capitalismo nacional e internacional fora chamado para participar do sistema. As tendências economicamente liberais da Revolução de 1964 explicam inicialmente este fato. A ideia inicial era a de realmente entregar o poder ao grupo capitalista, dentro dos moldes clássicos do capitalismo liberal. Entretanto, em pouco tempo o grupo tecnoburocrático verificou que possuía força e suficiente capacidade técnica e organizacional para se

NOTA

Page 125: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | INSTAURANDO A NOVA ORDEM: OS MILITARES NO PODER

117

manter no poder em seu próprio nome. Verificou que poderia liderar uma política desenvolvimentista, em estreita aliança com o capitalismo nacional e internacional.

Estavam assim estabelecidas as bases do modelo de desenvolvimento tecnoburocrático-capitalista para o Brasil. Este modelo baseia-se no grande governo tecnoburocrático e na grande empresa capitalista. O grande governo tecnoburocrático controla diretamente uma imensa parcela da economia nacional, planeja o desenvolvimento, estabelece a política fiscal, monetária, financeira, salarial, habitacional e intervém diretamente na economia capitalista através das grandes empresas públicas. A grande empresa capitalista e a grande empresa pública incumbem-se da produção. Adotam uma tecnologia moderna, recebem estímulos fiscais e creditícios do governo, captam a grande parte da poupança nacional através da obtenção de grandes lucros e, secundariamente, do recurso do mercado de capitais.

Grande governo tecnoburocrático e grande empresa capitalista complementam-se. O grande governo, além de controlar a economia em geral, produz energia elétrica, transportes, aço, petróleo, comunicações. A grande empresa capitalista, principalmente a internacional, controla, por sua vez, a indústria de transformação, particularmente a indústria automobilística, a indústria de bens de capital, a indústria de bens duráveis de consumo, a indústria eletrônica, a petroquímica. Em relação a esta última, e também em relação à mineração e ao setor financeiro internacional, a aliança entre o governo e o capitalismo internacional torna-se explícita, através de acordos firmados pela Petrobras, pela Vale do Rio Doce e pelo Banco do Brasil.

Esta aliança estabelece as bases de uma nova dependência – de uma dependência tecnológica e política. Não se trata mais da dependência colonialista, anti-industrializante que caracterizava a aliança da oligarquia agrário-comercial com o capitalismo internacional no século XIX e primeira metade do século XX. Depois que o capitalismo internacional estabeleceu no Brasil suas próprias indústrias, principalmente nos anos cinquenta, sua oposição à industrialização brasileira naturalmente desapareceu. Continuava a existir uma série de limitações ao nosso desenvolvimento industrial, especialmente quando houvesse conflito entre os interesses da matriz com os da filial ou subsidiária no Brasil. Continuavam também a existir grupos, como é o caso do café solúvel, que, por não terem tido oportunidade de se estabelecer no Brasil, opunham-se à nossa industrialização. De um modo geral, porém, o capitalismo internacional passou a interessar-se diretamente na industrialização brasileira, na medida em que isto significava excelentes possibilidades de lucros e de acumulação de capital.

Uma segunda característica diferenciadora da nova aliança era a de que esta não coloca o parceiro brasileiro em posição nitidamente subordinada, como era o caso da aliança da oligarquia agrário-comercial com o capitalismo internacional. Na atual aliança o capitalismo internacional é ainda elemento subordinado, tanto ao capitalismo internacional quanto ao governo tecnoburocrático. Este, porém, é parceiro igual. Participa de uma aliança que lhe interessa e na qual ele faz concessões, mas à qual ele não se subordina necessariamente. O governo brasileiro

Page 126: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

118

é hoje suficientemente forte e representa com eficiente coerência e coesão os interesses da nova classe média tecnoburocrática para poder desempenhar um papel, no jogo político do poder, em seu próprio nome [...]

Apesar dessa aliança se realizar entre parceiros relativamente iguais, porém, o modelo não perde suas características de modelo de desenvolvimento dependente. Trata-se de uma nova dependência, que, ao invés de ser colonizante e anti-industrializante, é desenvolvimentista. O desenvolvimento, porém, é feito através da integração do Brasil no sistema capitalista internacional, do qual ele se transforma em um apêndice sem autonomia tecnológica e sem autonomia em matéria de acumulação de capital. A dependência tecnológica em relação ao exterior acentua-se, na medida em que as empresas estrangeiras, muito naturalmente, não se preocupam em desenvolver uma tecnologia nacional. Por outro lado, através da aferição das altas taxas de lucro pelas empresas estrangeiras, uma parcela crescente da poupança nacional vai saindo do nosso controle ao mesmo tempo em que se processa um permanente processo de desnacionalização da economia [...]

Este modelo de desenvolvimento tecnoburocrático-capitalista, baseado na concentração de renda e na marginalização permanente de grande parte da população, é, portanto, economicamente viável. E, sem dúvida, conforme já vimos, ele não é nem econômica, muito menos politicamente necessário. O máximo que podemos afirmar é que a aliança do governo tecnoburocrático com a grande empresa capitalista, e o processo de concentração de renda, facilitam hoje o processo de desenvolvimento. Criam, todavia, distorções sociais profundas e uma dependência econômica e política que, mais cedo ou mais tarde, terão que ser reavaliadas. Por isso, não é impossível imaginar que essa reavaliação do modelo de desenvolvimento venha a ocorrer no momento em que, de um lado, as pressões sociais dos grupos marginalizados eventualmente aumentarem, e, de outro, na ocasião em que a tecnoburocracia governamental começar a pôr em dúvida as vantagens de uma aliança com o capitalismo nacional, e, principalmente, internacional. Nada assegura que isto venha a ocorrer. As tendências atuais são mesmo em sentido contrário. Mas também não há nenhum fator estrutural que impeça necessariamente essa mudança de tendência.

FONTE: PEREIRA, L. C. Bresser. Desenvolvimento e Crise no Brasil (apud FENELON, 1983, p. 223- 230).

Page 127: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 1 | INSTAURANDO A NOVA ORDEM: OS MILITARES NO PODER

119

Para aprofundamento destes temas, sugiro que você leia os seguintes livros e assista ao filme indicado:LIVROS:FERREIRA, Jorge L.; DELGADO, Lucília de A. N. (Org.) O Brasil Republicano 4. O Tempo da Ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Último volume da série, analisa toda a época da ditadura militar, através de textos de variados autores.

SKIDMORE, Thomas E. Brasil – De Castelo a Tancredo 1964-1985. São Paulo: Paz e Terra, 1988. Abordagem minuciosa sobre diversos aspectos do regime autoritário, busca o significado da democracia neste período.

FILME:Os Fuzis. Brasil: direção de Ruy Guerra, P&B, 89 min. 1964. Obra dramática realizada no ano do golpe militar, o filme é um clássico sobre o sertão nordestino, na ótica do Cinema Novo, recebendo o Urso de Prata no Festival de Berlim. Contrasta a miserabilidade humana e a religiosidade, com a opressão oficial, na “defesa da ordem” vigente, mesmo que seja a da mais pura injustiça social.

Além de: BLAYNEI, Geoffrey. Uma breve história do século XX. 2ª ed. São Paulo: Fundamento, 2010.

DICAS

Page 128: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

120

Neste tópico pudemos observar uma discussão acerca do significado da implantação do regime militar, sob a forma de uma ditadura, no qual foram abordados os seguintes itens:

• O contexto que levou ao golpe militar de 1964 e as contraditórias forças políticas que se encontravam no cenário nacional da época, levando a uma fantasiosa ameaça comunista.

• A debilidade institucional da sociedade brasileira, o desrespeito das Forças Armadas com a ordem democrática que foi constituída nos anos anteriores e sua completa ausência depois do golpe, ainda que mascarada no bipartidarismo e numa Carta Constitucional.

• A escalada do poder militar, manifesto em tendências do Exército e nas personalidades individuais dos generais-presidentes, dotados de um Poder Executivo fortemente centralizado, recheado de demagogias e falsas promessas.

• Os principais instrumentos do autoritarismo (Atos Institucionais, leis), revelando o aspecto sistêmico-jurídico da ditadura e suas repercussões na sociedade civil, com o total cerceamento da liberdade desta.

• A forma de organização do Estado em torno de uma parcela minoritária e dominante, capaz de impor seus objetivos e interesses para toda a sociedade, como se fosse um projeto nacional.

RESUMO DO TÓPICO 1

Page 129: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

121

1 Observando a discussão terminológica sobre os eventos de 1964 – golpe militar ou revolução –, justifique a ação que desencadeou a ditadura, segundo essas duas visões.

2 Faça um comentário sobre a relação entre os atos institucionais, dentre outros expedientes legais, e a sociedade civil, durante a ditadura militar.

AUTOATIVIDADE

Page 130: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

122

Page 131: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

123

TÓPICO 2

O ESGOTAMENTO DO MODELO DE

DESENVOLVIMENTO

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

A partir da segunda metade do século XX o país ingressou num período de profundas e rápidas transformações econômicas, quando suas estruturas foram se alterando, definitivamente, no sentido de uma transição, para o modelo urbano-industrial, a crescente concentração de renda e a integração dependente em relação ao capitalismo internacional. Este projeto, denominado de desenvolvimentista, veio da necessidade de modernizar o Brasil, cuja economia funcionava na base do modelo primário-exportador, ou seja, exportava produtos agrícolas e matérias-primas e importava produtos manufaturados. Entretanto, na medida em que as exportações sofreram com impactos externos (por exemplo, durante a 1ª Guerra Mundial ou na Crise de 1929), ocasiões em que diminuiu a capacidade de importar (estrangulamentos), foi necessário produzir internamente os bens industrializados, num processo que ficou conhecido por “substituição de importações”. Primeiramente voltado para os bens de consumo não duráveis, posteriormente, alcançou os bens de consumo duráveis e, enfim, os bens de capital. Contudo, o capital privado das exportações não se mostrava suficiente para a implantação de um parque industrial permanente e autônomo, assim como eram deficitárias as infraestruturas nacionais de apoio à industrialização, como redes de transporte para escoamento da produção, abastecimento energético, armazenamento etc.

Então, para incrementar o processo de desenvolvimento econômico, passou a vigorar, no âmbito do capitalismo brasileiro, uma política permanente de intervencionismo estatal. No início, após 1945, a intervenção estatal pôde ser percebida através de várias medidas do governo para regular a economia, ou, até mesmo, criando empresas estatais, como a Companhia Siderúrgica Nacional – CSN, através da construção da Usina de Volta Redonda (ainda em 1940), ou a Petrobras, fundada durante a campanha de nacionalização do petróleo, em outubro de 1953 (ambas as iniciativas tomadas nos governos de Getúlio Vargas), entre outras. Porém, uma das marcas da intervenção do Estado para regular e tentar racionalizar o capitalismo, por intermédio do estímulo ao desenvolvimento econômico, controlando setores estratégicos e aprimorando a infraestrutura – seja com capital privado ou público, nacional ou estrangeiro –, foi dada pela política governamental de planejamento: o Plano de Obras e Equipamentos, o Plano Salte, o Plano de Metas, o Plano Trienal são exemplos desse tipo de experiência no período pré-1964.

Page 132: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

124

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

2 A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA

Durante a década de 1960, o Brasil já havia abandonado a velha política da vocação agrária e há muito abraçara a causa da industrialização – o que não significa que a agricultura tenha deixado de ter importância na economia. Nesse sentido, a política econômica dos governos militares foi toda ela voltada para a consolidação e expansão da produção industrial brasileira, modernizando o sistema econômico capitalista. Essa modernização, no entanto, se caracterizou como uma “modernização conservadora”, pois, além do autoritarismo, foi realizada sobre os sacrifícios da massa trabalhadora no campo e na cidade, que sofreu com arrocho salarial e aumentos constantes dos itens básicos de consumo, inclusive alimentos (no período ocorreu um estímulo à exportação cada vez maior dos produtos agrícolas e matérias-primas nacionais). Por outro lado, a modernização alicerçou-se em uma utilização excessiva da poupança de outros países, através de empréstimos internacionais – uma abertura financeira sem precedentes na história –, o que fez explodir a dívida externa do Brasil. Essas medidas foram colocadas em prática através de reformas no aparelho de Estado e de uma série de planos econômicos, cujos grandes beneficiários eram as elites empresariais, nacionais e estrangeiras.

Apesar de muitos autores considerarem a política econômica dos militares “desenvolvimentista”, é preciso diferenciá-la do período anterior, pois

[...] qualquer plano de estabilização dependia de sacrifícios por parte da sociedade. Em um regime democrático, o êxito de um plano depende de um acordo com concessões recíprocas por parte dos diferentes setores sociais. Nas condições da sociedade brasileira da época e com a falta de visão de seus principais atores políticos, isso era coisa difícil de se alcançar. Foi o regime autoritário que permitiu a Campos e Bulhões tomar medidas que resultaram em sacrifícios forçados, especialmente para a classe trabalhadora, sem que esta tivesse condições de resistir. (FAUSTO, 1996, p. 473).

Portanto, muda o caráter do desenvolvimentismo, com predomínio da tecnoburocracia – os tecnocratas e políticos do Estado –, da entrada do capital estrangeiro via empresas multinacionais e acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), intensificando o aspecto “dependente” do capitalismo nacional. Acima de tudo, seria justo indagar se um projeto econômico, que industrializa e moderniza ao mesmo tempo em que concentra a renda em proporções cada vez maiores, excluindo a grande maioria da população à revelia do crescimento, pode ser considerado uma política de “desenvolvimento econômico”, cujo princípio é a distribuição da riqueza, a melhoria da qualidade de vida e a elevação do poder aquisitivo per capita.

Page 133: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESGOTAMENTO DO MODELO DE DESENVOLVIMENTO

125

3 O PLANEJAMENTO ECONÔMICO

De qualquer forma, encontramos os seguintes planos econômicos colocados em prática durante a ditadura:

A. Programa de Ação Econômica do Governo Castelo Branco – PAEG (1964-1966): orientava-se no sentido de alcançar a estabilidade e o desenvolvimento econômicos, com uma “reforma democrática” do aparelho de Estado. Na verdade, consistiu em reduzir o déficit do setor público, contrair o crédito privado, comprimir os salários e extinguir a estabilidade no emprego após dez anos de serviço (que era garantida pela CLT), sendo criado o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Iniciou a abertura financeira ao capital estrangeiro, a desnacionalização da indústria e dotou o Estado de uma mais eficiente máquina de arrecadação de impostos. Com o PAEG reduziu-se o déficit público, o PIB voltou a crescer e a inflação ficou mais controlada.

B. Programa Estratégico de Desenvolvimento – PED: produzido pelo Governo Costa e Silva (1967-1970), pretendia manter o combate à inflação, garantir a proteção à empresa privada, o estímulo à indústria de base e a criação de empregos. Propósitos como “aceleração do desenvolvimento, contenção da inflação e valorização do homem brasileiro” mostravam um programa com as melhores das intenções: distribuir renda, ampliar o mercado interno, proteger a tecnologia nacional. As empresas estrangeiras permaneceram com privilégios e os trabalhadores passaram a ficar sujeitos à fórmula “aumento de salários na proporção do crescimento da produtividade”. O êxito econômico refletiu-se na recuperação industrial pós-1968, principalmente no setor automobilístico, de produtos químicos e material elétrico, além do impulso dado à construção civil, devido à expansão de crédito do Banco Nacional de Habitação – BNH.

C. O Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento – PND I: no Governo Garrastazu Médici (1971-1974), postulou três objetivos centrais: elevar o Brasil à categoria de nação desenvolvida, multiplicar por dois a renda per capita brasileira até 1980, intensificar o crescimento econômico entre 8% e 10% na taxa anual do PIB. Difundiu-se a ideia de “Brasil Grande”, repousado no desempenho do setor industrial e também nas chamadas “obras faraônicas” que serviam de propaganda para o governo, como a rodovia Transamazônica, a ponte Rio-Niterói, a hidrelétrica de Itaipu etc.

D. O Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento – PND II, durante o governo Geisel (1975-1979), pretendia cobrir a área de fronteira entre o subdesenvolvimento e o desenvolvimento, consolidando uma economia moderna com novos setores e aproveitamento tecnológico. Além do ajustamento à realidade internacional, almejou a integração nacional e o desenvolvimento social, assegurando o aumento da renda real e eliminando os focos de pobreza do país. Prezou-se pela presença ativa do Estado, responsável em dotar de eficácia os instrumentos da política econômica, distribuir renda e adaptar a estrutura econômica com a mudança de ênfase relativa dos setores essenciais.

Page 134: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

126

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

FONTE: Disponível em: <http://www.itaipu.gov.br/foto.php?foto =themes/ Historia/imgs/>. humano/grande/06.jpg>. Acesso em: 5 abr. 2010.

FIGURA 35 – CONSTRUÇÃO DA USINA DE ITAIPU, EM 1974

4 DO MILAGRE ECONÔMICO À CRISE FINAL

Através da análise do ciclo de crescimento econômico da ditadura militar, podemos identificar algumas etapas. O golpe de 1964 foi dado em meio a uma grave crise que acometeu a economia brasileira desde 1962. Uma das justificativas para a ação militar que resultou no golpe foi justamente a promessa de solucioná-la. No entanto, essa crise se estendeu até 1969, quando se iniciam as mostras de reação da economia e um rápido crescimento do Produto Interno Bruto – período do “milagre econômico” –, que durou, aproximadamente, de 1969 até 1974, ano em que estourou a crise mundial gerada pelo aumento dos preços do petróleo. A partir de então, pode-se considerar que o Brasil entrou numa grave crise de consequências enormes, adentrando pelos anos de 1980 e 1990. Mas é possível que um rápido crescimento ocorrido por volta de 1984 tenha interrompido, ainda que brevemente, essa fase depressiva.

Page 135: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESGOTAMENTO DO MODELO DE DESENVOLVIMENTO

127

FONTE: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A Modernização Autoritária: do golpe militar à redemocratização 1964/1984 (apud LINHARES, 1990, p. 287).

FIGURA 36 – VARIAÇÃO DAS TAXAS DE INFLAÇÃO DE 1960 A 1983

O que ocorreu na economia brasileira no final da década de 1960 foi avaliado como um “milagre”, pois se combinou um elevado crescimento anual do PIB com a redução das taxas de inflação. A conjuntura internacional era favorável economicamente e, dadas as condições de alinhamento político com os países do bloco capitalista, os países subdesenvolvidos industrializados, como o Brasil, aproveitaram para realizar empréstimos vultosos no exterior, sendo que o “total da dívida externa desses países, não produtores de petróleo, aumentou de menos de 40 bilhões de dólares em 1967 para 97 bilhões, em 1972, e 375 bilhões de dólares em 1980”. (FAUSTO, 1996, p. 485). Paralelamente, grandes investimentos por intermédio do capital estrangeiro foram executados. Veja-se, por exemplo, a indústria automobilística, através da Ford, General Motors e Chrysler. O comércio exterior se expandiu consideravelmente. Ao acreditar que a ideia de que o Brasil sofria com os estrangulamentos externos da economia mundial era uma forma de subestimar nosso potencial produtivo, os governos militares promoveram amplo incentivo às exportações. A pauta de produtos exportados é que foi modificada, como o ingresso da soja, valendo-se de produtos que tinham preço alto no mercado internacional. A arrecadação tributária deu um salto, ajudando na redução do déficit público e no controle da inflação.

Essa política do governo, criada pelo então ministro do Planejamento, Delfim Neto, ficou conhecida como “desenvolvimento capitalista associado”, ou seja, buscava-se o crescimento econômico do país acompanhando as fases de ascensão do capitalismo mundial e conjugando os investimentos privados com o incentivo público. Não foi propriamente um livre mercado, pois o Estado intervinha com políticas salariais, creditícias e tributárias, que beneficiaram os grandes setores das indústrias, serviços e agricultura. Apesar de ter recebido críticas do FMI, essa política foi em muito assentada na concessão de empréstimos do exterior.

Page 136: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

128

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

Entretanto, com a crise do petróleo, de nível mundial, em 1974, findaram-se as possibilidades de crédito fácil (pelo menos a juros baixos). A crise atingiu os credores mundiais e, principalmente, os EUA foram obrigados a saldar suas perdas cobrando juros mais altos pelos serviços da dívida externa dos países subdesenvolvidos que, por sua vez, tinham criado todo um modelo de desenvolvimento apoiado na poupança dos países desenvolvidos, de onde eram feitos os empréstimos. Assim, até então com uma política econômica sustentada no financiamento externo, base do “milagre”, o governo se viu frente à necessidade de uma política de ajustamento, ou seja, “frear” o crescimento do país para acompanhar a crise internacional, já que estava escassa a “fonte” dos recursos.

Aí que se colocam as opções que foram tomadas entre um ajustamento ao quadro internacional de forte crise, iniciada com o choque do petróleo, e a continuidade da política anterior de crescimento com endividamento, via o uso da poupança externa. Associando-se ao Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, o PND II, foi nesta última direção a política econômica a partir de então, supondo que, seja uma possível transitoriedade da crise, seja a manutenção de uma conjuntura econômica favorável, na qual poderiam ser investidos os ganhos conseguidos através da expansão do mercado interno no período do “milagre”, a “Safra de 74”. Esta escolha pela continuidade da política de financiamento (mesmo que com juros altos, causa da enorme dívida externa acumulada), foi denominada a “estratégia de 74”. À parte de todos os despropósitos políticos do regime em voga, a opção econômica foi satisfatória, pois permitiu a internalização dos processos produtivos, provocando a alteração na pauta da substituição de importações, fatores estes que foram posteriormente fundamentais para responder ao estrangulamento do segundo choque do petróleo em 1979.

FINANCIAMENTO AJUSTAMENTOAutoridades preferem evitar as dificuldades e sacrifícios para a adaptação

Engajamento da política econômica no novo quadro

Disponibilidade de recursos no mercado internacional

Políticas fiscal e monetária desaquecem a economia visando reação automática das forças de mercado

Crise passageira Crise duradoura, inevitável

Não há realocação de recursos no interior da economia

Admite-se o desequilíbrio interno

Brecha entre a oferta e a demanda de divisas é concebida como “temporal e não repetitiva”

Variação dos preços relativos e alteração da taxa de câmbio incitam o mercado

Evitam-se os custos do ajuste Reajuste pela mudança na composição do gasto

Page 137: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESGOTAMENTO DO MODELO DE DESENVOLVIMENTO

129

Também é dado um papel de grande relevância à execução orçamentária dos projetos levados a cabo com o PND II – ainda que não promovessem nenhum ganho social – como meio de assegurar investimentos em médio e longo prazos para setores estratégicos e de baixa lucratividade, mas fundamentais para a base industrial do país permanecer aquecida, mesmo que em um grau relativamente menor, tornando-se a principal fonte de divisas futuras, naqueles setores que foram privilegiados.

A situação favorável da economia brasileira, que atingiu a conjuntura nacional entre os anos de 1983 e 1984 com a retomada do crescimento econômico, foi expressa, principalmente, no superávit acumulado do balanço comercial de pagamentos. Uma opinião predominante de que este resultado positivo deve ser atribuído à política econômica adotada pelo governo em torno de 1982 é equivocada, encontrando-se as raízes deste saldo muito antes, na “estratégia de 74”, pois, do ponto de vista histórico, a conjuntura econômica que se inicia em meados da década de 1970, com a primeira crise do petróleo, e as opções realizadas naqueles tempos é que constituíram a base do crescimento econômico dos anos de 1983 e 1984. O suposto impacto do anúncio governamental, em outubro de 1982, de fim da política de “ajuste gradual”, na verdade, estava em perfeita correspondência com os determinantes da conjuntura internacional: a ausência de fundos para a manutenção de altos financiamentos, o colapso econômico dos países industrializados, o aumento do valor das importações e dos juros da dívida, levando à aplicação de um receituário ortodoxo, partido de acordo entre o Fundo Monetário Internacional e o Conselho Monetário Nacional.

Ao que parece, esta política elevou a taxa de câmbio e reduziu os salários, promovendo um efeito-preço que por si só permitiu uma resposta à altura da crise externa. Entretanto, isso não passa de uma explicação superficial. O retorno das exportações brasileiras, em 1984, conforme sua linha de tendência, esteve estreitamente relacionado com a mudança de rota de produtos de menor peso na pauta de importações, levando ao surgimento de superávit elevado e, consequentemente, à superação dos déficits. Esta característica não está associada à política econômica de 1983 e 1984, mas à orientação da estratégia econômica dada pelo governo dez anos antes, em 1974. A confusão pode ser justificada pela aparente coincidência entre a política econômica e os resultados obtidos. Porém, as alterações registradas nas contas externas não são o resultado de uma política econômica de curto prazo que estimulou o crescimento e proporcionou o aumento das exportações. Pelo contrário, o receituário ortodoxo adotado em 1982 impôs obstáculos às exportações e, fundamentalmente, conseguiu o superávit, através de uma rígida política de contenção de importações, aproveitando o desaquecimento interno que ocorrera nos anos anteriores, somada ao restabelecimento de condições internacionais mais favoráveis, de recuperação econômica também em outros países.

Apesar de ter sido adotada no país uma política de financiamento em 1974, esta foi a opção mais acertada, porque permitiu o crescimento econômico em uma conjuntura internacional extremamente desfavorável à economia brasileira, em outras palavras, uma economia subdesenvolvida, dependente das exportações

Page 138: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

130

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

para dar continuidade ao processo de substituição de importações. Também o endividamento e o redirecionamento dos gastos, com a compressão violenta dos salários, são aspectos de uma falta de opção admitida pela política econômica da época, mas que teve um impacto muito menos negativo do que seria o causado pela contenção do crescimento, visando a um ajustamento ao quadro internacional. Os reflexos desta opção serão percebidos justamente na retomada do crescimento e das exportações em 1984, pelo fato de já ter ocorrido uma transformação da economia brasileira, e não pelo ajuste tardio tentado pelo governo em 1982, cujas características sequer exprimem o significado que um ajustamento real que, hipoteticamente, tivesse ocorrido na primeira conjuntura da crise.

LEITURA COMPLEMENTAR I

QUAIS ERAM OS PONTOS FRACOS DO “MILAGRE”?

Devemos distinguir entre pontos vulneráveis e pontos negativos. O principal ponto vulnerável estava em sua excessiva dependência do sistema financeiro e do comércio internacional, que eram responsáveis pela facilidade dos empréstimos externos, pela inversão de capitais estrangeiros, pela expansão das exportações etc. Outro ponto vulnerável era a necessidade cada vez maior de contar com determinados produtos importados, dos quais o mais importante era o petróleo. Os aspectos negativos do “milagre” foram principalmente de natureza social. A esse respeito, devemos fazer uma ressalva sobre a significação do PIB – um indicador que temos utilizado com frequência. O PIB é um bom indicador do estado geral da economia, mas, seja em números brutos, seja em números per capita, lembremos que ele divide igualmente o produto pela população total sem considerar os diferentes ganhos dos grupos sociais. O PIB não exprime também necessariamente o volume e a qualidade de serviços coletivos postos à disposição da população, nem a forma como um país preserva ou destrói seus recursos naturais.

A política econômica de Delfim tinha o propósito de fazer crescer o bolo para só depois pensar em distribuí-lo. Alegava-se que antes do crescimento pouco ou nada havia para distribuir. Privilegiou-se assim a acumulação de capitais através das facilidades já apontadas e da criação de um índice prévio de aumento de salários em nível que subestimava a inflação. Do ponto de vista do consumo pessoal, a expansão da indústria, notadamente no caso dos automóveis, favoreceu as classes de renda alta e média. Os salários dos trabalhadores de baixa qualificação foram comprimidos, enquanto os empregos em áreas como administração de empresas e publicidade valorizaram-se ao máximo. Tudo isso resultou em uma concentração de renda acentuada que vinha já de anos anteriores. Tomando-se como 100 o índice do salário mínimo de janeiro de 1959, ele caíra para 39 em janeiro de 1973. Esse dado é bastante expressivo se levarmos em conta que, em 1972, 52,5% da população economicamente ativa recebiam menos de um salário mínimo e 22,8%, entre um e dois salários. O impacto social da concentração de renda foi, entretanto, atenuado. A expansão das oportunidades de emprego permitiu que o número de

Page 139: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESGOTAMENTO DO MODELO DE DESENVOLVIMENTO

131

pessoas que trabalhavam, por família urbana, aumentasse bastante. Por outras palavras, ganhava-se individualmente menos, mas a redução era compensada pelo acesso ao trabalho de um maior número de membros de uma determinada família.

Outro aspecto negativo do “milagre” que perdurou depois dele foi a desproporção entre o avanço econômico e o retardamento ou mesmo o abandono dos programas sociais pelo Estado. O Brasil iria se notabilizar no contexto mundial por uma posição relativamente destacada pelo seu potencial industrial e por indicadores muito baixos de saúde, educação e habitação, que medem a qualidade de vida de um povo.

O “capitalismo selvagem” caracterizou aqueles anos e os seguintes, com seus imensos projetos que não consideravam nem a natureza nem as populações locais. A palavra “ecologia’ mal entrara nos dicionários e a poluição industrial e dos automóveis parecia uma bênção. No governo Médici, o projeto da rodovia Transamazônica representou um bom exemplo desse espírito. Ela foi construída para assegurar o controle brasileiro da região – um eterno fantasma na óptica dos militares – e para assentar em agrovilas trabalhadores nordestinos. Após provocar muita destruição e engordar as empreiteiras, a obra resultou em fracasso.

FONTE: Fausto (1996, p. 487-488).

LEITURA COMPLEMENTAR II

AS ETAPAS DA ABERTURA FINANCEIRA EXTERNA

Como qualquer movimento internacional de ativos financeiros, a abertura da economia brasileira aos empréstimos bancários externos apresenta um componente de ajustamento de estoque e outro de ajustamento de fluxo. Sem pretender quantificar a importância relativa desses dois componentes no conjunto do fluxo externo de empréstimos, o que se irá fazer [...] é analisar o processo de abertura financeira externa, separando-o em três subperíodos distintos: de 1964 a 1967, de 1968 a 1973, de 1974 a 1979.

O período de 1964 a 1967

Neste período, não se pode dizer que tenha existido uma política claramente formulada de absorção de poupanças externas, sob a forma de empréstimos bancários. Na verdade, a entrada destes últimos foi estimulada pelo governo, como uma solução temporária para os problemas de liquidez enfrentados pelas empresas, em decorrência do rígido programa de controle monetário implementado em 1964. Não eram outros os objetivos da Instrução 289 e da Resolução 63...

Nesta perspectiva, a inserção da economia brasileira no mercado financeiro internacional pode ser vista como resultante principalmente de um processo de ajustamento de estoque, em função de restrições monetárias internas e de elevação

Page 140: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

132

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

na taxa de juros no mercado financeiro doméstico. Os empréstimos externos representaram, portanto, uma tentativa para acomodar a oferta excedente de obrigações emitidas pelo setor privado nacional, pelas empresas públicas e pelas companhias estatais. O mercado financeiro internacional, mais especificamente o mercado de eurodólares, funcionou, no caso, como substituto à criação de crédito pelo sistema financeiro doméstico.

O período de 1968 a 1973: crescimento com endividamento

A abertura financeira externa, originalmente uma solução transitória para problemas de financiamento empresarial, tornou-se uma opção clara de política econômica do governo, no período de 1968 a 1973. Nesses anos, a extraordinária expansão cíclica da economia brasileira criou uma demanda por fundos externos de parte dos setores público e privado. De acordo com os argumentos oficiais, a absorção de empréstimos estrangeiros se justificava pela necessidade de crescer a taxas mais rápidas do que seria permitido pela poupança doméstica.

A introdução do sistema de minidesvalorização cambial, em agosto de 1968, certamente contribuiu para que as empresas no país se dispusessem a emitir dívidas denominadas em moedas fortes. Os potenciais tomadores de empréstimo cedo perceberam que a prática de desvalorizar o cruzeiro a níveis inferiores à inflação interna constituía um incentivo ao endividamento externo. Além disso, os prazos dos empréstimos no mercado de eurodólares eram superiores aos financiamentos obtidos junto ao sistema financeiro privado doméstico. De outro lado, saliente-se que boa parte dos créditos a longo prazo concedidos por agências financeiras governamentais (BNDE, Finame etc.) eram indexados, de acordo com a taxa de inflação, o que os tornava relativamente mais caros do que os empréstimos em moeda estrangeira.

Assim, como resultado de uma combinação de fatores (o rápido crescimento da economia, política cambial, política creditícia e monetária), observou-se, no período em análise, uma acentuada expansão do saldo dos empréstimos em moeda, os quais saltam de US$ 1.083 milhões, em 1968, para US$ 7.849 milhões, em 1973 (em percentagem da dívida externa, aquelas cifras representam 28,6% e 62,4%, respectivamente).

À vista deste considerável afluxo de recursos, as autoridades monetárias ganharam graus de liberdade adicionais para impor termos e condições para a aprovação dos novos empréstimos. Várias medidas são implementadas, denotando uma tentativa de controlar o processo de endividamento internacional do país. [...]

Em síntese, consolidou-se no período em foco a inserção da economia brasileira no sistema financeiro privado internacional, mais particularmente, no mercado de eurodólares. Sugere-se que esse movimento pode ser explicado, principalmente, por um ajustamento de fluxos, induzidos pelas altas taxas de crescimento da renda e das riquezas nacionais, observados no auge do “milagre brasileiro”.

Page 141: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESGOTAMENTO DO MODELO DE DESENVOLVIMENTO

133

O período 1974 a 1979: ajustamento à crise internacional

A crise do petróleo e as violentas flutuações nos preços mundiais de produtos agrícolas e de matérias-primas, em fins de 1973, contribuíram para acelerar a contratação de empréstimos externos. Tentando retardar os efeitos da alta do petróleo e posterior recessão nos países desenvolvidos sobre a economia nacional, o governo optou por financiar os déficits sucessivos em transações correntes através de novos empréstimos. Desta forma, o país continuou sendo uma presença constante no mercado de euromoedas, mesmo com os bancos internacionais tendo que acomodar os desequilíbrios comerciais dos países ricos e clientes já tradicionais.

É lógico que o “risco Brasil” foi aumentado e alguns artifícios foram colocados em prática, a fim de elevar-se a taxa efetiva de juros nas operações com residentes no país.

Ao se analisarem as medidas implementadas neste período para enfrentar o desequilíbrio externo, tem-se a nítida impressão de que os “policy-makers” ficaram presos numa situação constrangedora. De um lado, a necessidade de financiar os sucessivos déficits em transações correntes exigia a continuação do processo de abertura financeira e a manutenção da política de minidesvalorização do cruzeiro. De outro lado, todavia, a própria abertura trazia, como subproduto, uma maior instabilidade na base monetária e na condução da política monetária, o que, por sua vez, conduzia a medidas que procuravam desestimular a contratação de novos empréstimos. [...]

Dada a necessidade de compatibilizar a abertura financeira externa com controle monetário, em um regime de minidesvalorizações, as autoridades monetárias parecem ter optado pela imposição de controles administrativos sobre os fluxos de empréstimos (a mesma ênfase em restrições quantitativas foi aplicada para se equilibrarem os fluxos reais de bens e serviços). Assim, garantia-se a entrada de cambiais e procurava-se, ao mesmo tempo, neutralizar temporariamente os efeitos do aumento das reservas externas sobre a base monetária. Várias medidas, implementadas a partir de 1977, sugerem aquela orientação de política econômica. [...]

Resumindo a experiência dos últimos cinco anos, ela demonstra as dificuldades [...] que os “policy-makers” encontram para manter certo grau de autonomia em matéria de política monetária, em um contexto de intensa mobilidade entre países de fluxos de capitais. Tais problemas tornam-se mais críticos, no caso de um país pequeno em relação ao mercado financeiro internacional.

Page 142: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

134

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

FONTE: Moura (1981, p. 148-151)

GRÁFICO 1DíVIDA EXTERNA DO BRASIL

em milhões

Page 143: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 2 | O ESGOTAMENTO DO MODELO DE DESENVOLVIMENTO

135

Para aprofundamento destes temas, sugiro que você leia o livro, os textos e assista aos filmes indicados:

LIVRO: CASTRO, Antonio Barros de; SOUZA, Francisco E. P. A Economia Brasileira em Marcha Forçada. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. A obra ajuda a perceber as contradições entre o discurso oficial e a realidade brasileira. Trata-se de uma visão atenta dos fatos econômicos pré-1964 até a década de 1980.

TEXTOS: Um importante material, de dados estatísticos que servem como fontes históricas sobre as condições de vida da população brasileira, são os censos demográficos de 1960, 1970 e 1980, geral do Brasil (há também os regionais), que podem ser encontrados nas publicações do acervo digital da biblioteca no sítio do IBGE na internet. O acesso pode ser feito através de:

FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico de 1960. VII Recenseamento Geral do Brasil. Brasil: Departamento de Estatísticas de População, 1980 (Série Nacional, v. I). Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/CD1960/CD_1960_Brasil.pdf

FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico. VIII Recenseamento Geral do Brasil. Brasil: Departamento de Censos, 1970 (Série Nacional, v. I). Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/CD1970/CD_1970_BR.pdf

FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico: dados gerais, migração, instrução, fecundidade, mortalidade. IX Recenseamento Geral do Brasil, 1980. Rio de Janeiro: IBGE, 1982-83 (v. 1, Tomo 4, n. 1). Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/CD1980/CD_1980_Dados_Gerais_BR.pdf

FILMES: Os dois filmes a seguir selecionados são um vestígio do período da ditadura, não só pela temática que abordam, mas porque o próprio diretor, Leon Hirszman, é um ícone do período. Seu longa-metragem “Cinco vezes favela”, por exemplo, foi produzido pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, no início da década de 1960.

ABC da Greve. Brasil: Direção de Leon Hirzsman, colorido, 89 min. 1979/90. Um dos principais documentários da época acompanha os acontecimentos que desencadearam a greve dos metalúrgicos do ABC, até seu fim. Conta com cenas históricas das assembleias e da repressão policial, além de entrevistas com autoridades governamentais e representantes dos empresários. Uma denúncia sobre a condição de exploração do trabalhador brasileiro. Serviu de preparo para a filmagem de “Eles não usam black-tie”.

Eles não usam black-tie. Brasil: Produção, roteiro e direção de Leon Hirzsman, colorido, 134 min. 1981. O filme retrata o cotidiano conflituoso da classe trabalhadora na crise do final dos anos 1970, centrado no núcleo familiar operário de um metalúrgico sindicalizado. Baseado na peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri.

DICAS

Page 144: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

136

Neste tópico pudemos observar como se deu a dinâmica econômica no período dos governos militares, no qual foram abordados os seguintes itens:

l O ciclo econômico da ditadura, desde a crise de 1962-1969, a ascensão de 1970-1973, a nova crise de 1974-1982, a breve recuperação entre 1983-1984.

• A crise econômica dos anos de 1960 como causa e justificativa para o golpe, pois as soluções apontadas deveriam permanecer dentro das expectativas das classes economicamente dominantes.

• Os quatro planos econômicos dos governos militares, cujos objetivos foram propiciar uma modernização industrial, mas de cunho conservador, autoritário e excludente.

• O “milagre econômico”, no final dos anos de 1960 e início de 1970, política de crescimento com endividamento que levou à recuperação da produtividade, com altas taxas de elevação do PIB.

• A “estratégia de 74”, responsável pela manutenção do desenvolvimento capitalista associado, mesmo que com o alto preço pago pelos empréstimos externos.

• A diferença entre política de financiamento e política de ajustamento, ambas colocadas como possibilidades para os governos militares, que optaram pela primeira delas.

• A retomada do crescimento com alteração das exportações brasileiras entre 1983 e 1984, como resultado das transformações econômicas geradas no período anterior.

• Além da “explosão” da dívida externa, inflação, concentração de renda, queda do poder aquisitivo, desemprego e aumento dos bolsões de miséria foram tendências marcantes de todo o regime militar, pois o “modelo de desenvolvimento” privilegiava os grandes setores da economia e não a população.

RESUMO DO TÓPICO 2

Page 145: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

137

AUTOATIVIDADE

1 Caracterize, com suas palavras, a diretriz geral da política econômica dos governos militares.

2 Explique, brevemente, o processo de duas décadas (1960 e 1970) no qual se deu a multiplicação da dívida externa brasileira.

Page 146: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

138

Page 147: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

139

TÓPICO 3

A MOBILIZAÇÃO POPULAR, A TRANSIÇÃO

E A NOVA REPÚBLICA

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Dentre os diversos fatores que levaram ao fim da ditadura, temos os de ordem econômica, fundamentais. Também contam o desgaste do regime autoritário, o isolamento e a dificuldade dos militares em se manter no poder. Mas, sem a menor sombra de dúvida, é preciso destacar a importância histórica dos movimentos de oposição à ditadura que, oriundos de uma base popular, fomentaram organizações políticas e mobilizações populares, agindo no campo da pura contestação até a resistência pela luta armada.

2 A MOBILIZAÇÃO POPULAR

A influência da Revolução Cubana mostrava a possibilidade de um caminho diferente para toda a América Latina e a adesão de vários grupos ao modelo cubano de guerrilha intensificou-se após 1964. Essas organizações pretendiam ser embriões de um exército popular revolucionário. Entre outras, podemos citar o Movimento Nacionalista Revolucionário – MNR, dirigido pelo ex-governador gaúcho Leonel Brizola; o Movimento Armado Revolucionário – MAR, os Comandos de Libertação Nacional (COLINA), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), advindos do esfacelamento do MNR; a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP), que teve um movimento armado frustrado logo após o golpe, conhecido como a “guerrilha de Copacabana”; a VPR e o COLINA absorveram dissidentes da POLOP em 1967; a Ação Popular – AP, cujo dirigente principal foi Herbert José de Souza, o Betinho; o Partido Revolucionário dos Trabalhadores – PRT, dissidente da AP; a Aliança Nacional Libertadora – ANL, principal grupo de guerrilha urbana, dirigida por Carlos Marighela, dissidência do PCB, tal como do PCBR; Movimento Revolucionário 8 de Outubro – MR-8; a Ala Vermelha e o Partido Comunista Revolucionário – PCR, dissidências do PC do B.

Além desses grupos revolucionários, que tanto a grande imprensa como a ditadura denominavam de terroristas, ocorreram ainda dois movimentos armados de destaque: a guerrilha do Vale da Ribeira, organizada pelo capitão Lamarca, da VPR, e a guerrilha do Araguaia, organizada pelo PC do B, em 1972, após estarem praticamente desmantelados os movimentos armados urbanos, sendo considerada a principal e talvez, única, guerrilha rural do Brasil.

Page 148: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

140

Não somente de luta armada se constituiu a resistência ao regime. Também deve ser relevado o papel do movimento estudantil nos processos políticos oposicionistas. Ainda que com tradição elitista, os estudantes na década de 1960, principalmente os universitários, acabaram por assumir um posicionamento mais próximo das lutas populares, visto que, na maioria, constituía-se a massa estudantil de jovens pertencentes principalmente às classes médias brasileiras. O movimento conseguiu atingir uma escala nacional de organização e, entre 1964 e 1968, foi a principal força de oposição ao governo militar. Anteriormente, desde os anos de 1950, vinculados à ala progressista da Igreja Católica, a partir de 1961, militantes da AP passam a controlar a União Nacional dos Estudantes – UNE. As manifestações no final de março de 1968, em razão do sepultamento do estudante secundarista Edson Souto, morto pela polícia, se davam em um momento em que o movimento estudantil já acumulava certa experiência ao lado das aspirações de cunho popular. O ápice deste desenvolvimento político se deu na famosa Passeata dos Cem Mil, em fins de junho de 1968, quando a UNE começa a ser perseguida (um de seus congressos, em Ibiúna, interior de São Paulo, foi desmantelado pelo governo). Movimento que detinha um poder cultural, a UNE foi responsável pela criação do Centro Popular de Cultura – CPC, que objetivava a politização das massas.

Outra vertente que se destacou no combate à ditadura partiu de setores dissidentes da CNBB (que, em 1964, apoiara com fervor o golpe contra a escalada comunista) e estruturas leigas da Igreja Católica que, desde o começo de 1960, formaram uma ampla esquerda “cristã”. Neste campo estavam membros do clero e leigos organizados nas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, pastorais populares, na Juventude Universitária Católica – JUC, Juventude Estudantil Católica – JEC e Juventude Operária Católica – JOC, movimentos de educação de base e outros, em grande medida guiados pela Teologia da Libertação, movimento de fundo doutrinário que teve caráter cismático dentro da Igreja Católica Apostólica Romana.

Page 149: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

141

FONTE: UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES. História UNE. Disponível em: <http://www.une.org.br/>. Acesso em: 12 abr. 2010.

Poderia ser citado ainda o movimento da “Frente Ampla” que reuniu, em março de 1967, todos os políticos insatisfeitos com os rumos que foram tomados pelo movimento de 1964, chegando a divulgar um Programa Mínimo Inicial que pedia, dentre outras coisas, a elaboração de uma Constituição democrática. Apesar do impacto favorável na opinião pública, a Frente, que contava com nomes como os dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart e de antigos apoiadores do golpe insatisfeitos, não resistiu às tensões e a pouca coesão interna levou ao seu fim, fulminada pela Instrução 177 do Ministério da Justiça, proibindo qualquer manifestação em nome da Frente Ampla.

Por fim, cabe ressaltar, no final dos anos de 1970, a reorganização do movimento sindical, estimulando as greves dos trabalhadores, com destaque para os metalúrgicos. Em fins de outubro de 1978, cerca de oito mil metalúrgicos paralisaram as atividades nas fábricas da Fiat Automóveis, Krupp Indústrias Mecânicas e FMB Produtos Metalúrgicos, na região de Betim, junto de Belo Horizonte. Em São Paulo, a greve deflagrada a partir da zero hora do dia 30 do mesmo mês chegou a paralisar quase 148 mil operários, em 385 empresas, segundo dados da Delegacia Regional do Trabalho. Nestas manifestações é que se revelou publicamente o nome do líder sindical Luis Inácio, o Lula.

FIGURA 37 – CORTEJO FÚNEBRE DE ÉDSON LUIS, MORTO DURANTE MANIFESTAÇÃO NO PERÍODO MILITAR

Page 150: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

142

FONTE: Disponível em: <http://www.uniol.com.br/imagens/blogs/ postagens/ postBlog651.jpg>. Acesso em: 24 abr. 2010.

FIGURA 38 – GREVES NO ABC PAULISTA, 1979

3 A TRANSIÇÃO

Com uma maior possibilidade de manifestação da sociedade, as atenções se voltaram para a sucessão do general Figueiredo, prevista para o ano de 1985. A partir de 1983, os partidos de oposição mais expressivos, como o PMDB, o PDT, o PT e outras organizações começaram a organizar uma campanha pelo fim das eleições indiretas e para que a eleição presidencial seguinte fosse realizada através da escolha popular do candidato à presidência. Com um início modesto, esta campanha foi, aos poucos, ganhando as ruas, e se tornou uma grande mobilização popular, conhecida como a campanha das “diretas-já!”.

Para que tivesse sucesso, a emenda apresentada pelo deputado mato-grossense Dante de Oliveira, do MDB, deveria ser aprovada por dois terços do Congresso Nacional, cuja maioria era formada por representantes do PDS, partido de sustentação do governo que incorporou a ex-ARENA. Mas a Emenda Dante de Oliveira, que pretendia introduzir eleições diretas no país, não foi aprovada. Precisava de 320 votos na Câmara dos Deputados, de um total de 479. Obteve 298, faltaram apenas 22 votos.

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Diretas_J%C3%A1>. Acesso em: 7 maio 2010.

FIGURA 39 – PASSEATA NO CENTRO DE SÃO PAULO, EM 16 DE ABRIL DE 1984, REIVINDICANDO ELEIÇÕES DIRETAS PARA PRESIDENTE (FOTO DE JORGE H. SINGH)

Page 151: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

143

Frustrada a possibilidade de eleições diretas para o primeiro presidente civil, depois de vinte anos de ditadura e governos militares, a transição ocorrera com eleições indiretas, via Colégio Eleitoral, mantendo-se o processo político dentro dos planos do velho regime, sem maiores espaços para a participação do povo. O pleito se polarizou entre dois nomes: Paulo Maluf, amigo de Costa e Silva, ex-prefeito de São Paulo e deputado federal, concorreu pelo PDS (antiga Arena); Tancredo Neves, ex-ministro da Justiça de Getúlio (1954), primeiro-ministro durante o primeiro gabinete (até junho de 1962) do período parlamentarista no governo Jango, concorreu pela Aliança Democrática (entre o PMDB e a Frente Liberal, uma dissidência do PDS, liderada pelo vice-presidente Aureliano Chaves).

A 15 de janeiro de 1985, Tancredo e Sarney obtiveram uma vitória nítida no Colégio Eleitoral, batendo Maluf por 480 votos a 180. Tancredo obteve todos menos cinco dos 280 votos do PMDB; recebeu também 166 votos de congressistas eleitos pelo PDS agora em dissidência. O PDT votou em Tancredo, embora não integrasse a Aliança Democrática. O PT absteve-se de votar, em protesto contra a eleição indireta e o que entendia ser um arranjo de cúpula. Mesmo assim três de seus deputados não seguiram as diretrizes do partido e votaram em Tancredo. (FAUSTO, 1996, p. 512).

A transição se completaria com a posse de Tancredo Neves, marcada para março de 1985. Entretanto, acometido de uma grave doença, foi submetido a uma série de cirurgias, até sua morte, no dia de Tiradentes, em 21 de abril desse ano. O vice-presidente, José Sarney, já havia subido a rampa do Planalto e tomado a posse como Presidente da República, agora em definitivo.

FONTE: REVISTA MANCHETE. Tancredo Neves. O Mártir da Democracia. Ed. Histórica. São Paulo: Bloch, abr. 1985.

FIGURA 40 – CAPA DA REVISTA MANCHETE

4 A NOVA REPÚBLICA

A Nova República, como ficou conhecida a fase da história brasileira posterior ao fim da ditadura, foi iniciada – como sugere seu nome – com a busca de uma diferenciação em relação ao regime autoritário. A mais óbvia foi o exercício do poder pelos civis ao invés de governos militares, mas algumas inovações

Page 152: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

144

políticas, como a Anistia e o pluripartidarismo, foram realizadas ainda durante o governo do general Figueiredo. Nem todos os laços políticos com o passado foram desfeitos; por exemplo, o Serviço de Inteligência Nacional – SNI – foi mantido em funcionamento e vários políticos que alcançaram a fama durante a ditadura continuaram no poder. Por outro lado, os anseios sociais por maiores liberdades civis, pela garantia dos direitos políticos e por uma situação democrática definitiva pressionaram por mudanças que eram inevitáveis. Algumas das leis do regime militar foram revogadas (outras continuam até os dias de hoje), todos os partidos políticos foram legalizados, as eleições diretas, inclusive para a Presidência da República, foram restabelecidas, aos analfabetos foi dado o direito de voto e eleições para uma Assembleia Constituinte foram marcadas para novembro de 1986.

Naquela data, haveria eleições para o Congresso e o governo dos Estados. Os deputados e senadores eleitos seriam encarregados de elaborar a nova Constituição. Antes disso, em novembro de 1985 realizaram-se eleições para prefeito em 201 cidades, inclusive nas capitais dos estados e territórios. O PMDB saiu-se numericamente bem, ganhando em dezenove das 25 capitais e em 110 do total de 201 cidades. Mas começava a se desenhar sua perda de prestígio nas capitais mais importantes. Em São Paulo, Jânio Quadros derrotou Fernando Henrique Cardoso, para desânimo da ala social-democrata do partido; os candidatos de Brizola, Saturnino Braga e Alceu Collares, venceram respectivamente no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul; uma frente de esquerda elegeu Jarbas Vasconcelos no Recife. [...] As eleições de novembro de 1986 mostraram que o PMDB e o governo mantinham ainda àquela altura um grande prestígio. O PMDB elegeu os governadores de todos os Estados, menos o de Sergipe, e conquistou a maioria absoluta das cadeiras da Câmara dos Deputados e do Senado. O partido obteve 261 de um total de 487 cadeiras da Câmara (53% dos lugares), vindo a seguir o PFL com 116 (24%). As eleições para o Senado referiam-se a dois terços das cadeiras nos estados e à primeira eleição no Distrito Federal. O PMDB conseguiu 39 das 49 cadeiras em disputa. Considerando-se a totalidade dos assentos no Senado, inclusive os mandatos não renovados, o PMDB ficou com 45 cadeiras em um total de 72. (FAUSTO, 1996, p. 520, 524).

Os trabalhos da Constituinte se iniciaram em 1987, com uma discussão pouco centrada, pois faltavam embasamentos preliminares para o debate. Muitos eram os anseios em pauta, as regras a serem fixadas, assim como as pressões e conflitos sociais que vinham à tona por meio dos representantes dos diferentes grupos sociais. Ao lado de questões centrais, como os direitos dos cidadãos e a organização do Estado, aspectos menos relevantes ganharam seu espaço. A posição conservadora foi assegurada pela maioria parlamentar que se reuniu no chamado Centro Democrático, o “Centrão”. A presidência da Constituinte coube ao deputado Ulysses Guimarães. Após um longo percurso, finalmente, em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a nova Constituição do Brasil.

Page 153: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

145

FONTE: Novaes; Lobo, (1997, p. 297)

FIGURA 41 – CHARGE SOBRE A DEMORA NOS TRABALHOS DE ASSEMBLEIA CONSTITUINTE

Na Constituição de 1988, dentre outros aspectos, destacam-se: direitos sociais e políticos dos cidadãos e das minorias; direitos e deveres coletivos e individuais; extensão de direitos políticos aos partidos e sindicatos; acesso à informação pessoal por meio do habeas data; repasse de recursos da União para os Estados e Municípios; manutenção da aposentadoria por idade em qualquer profissão; estabilidade do funcionalismo público; redução do mandato presidencial de seis para cinco anos. Além disso, convocou para setembro de 1993 um plebiscito no qual a população optaria pelo presidencialismo ou parlamentarismo, pela monarquia ou a república (hoje se sabe que a opção vencedora foi a república presidencialista).

O governo de José Sarney assumiu um país numa condição econômica que não era a das piores – o saldo das exportações permitia o pagamento dos juros da dívida externa e as reservas acumuladas facilitaram a negociação com os credores –, nem das melhores, pois a inflação ultrapassava os 200% ao ano, em 1985. As políticas de contenção inflacionária com elevados custos sociais, aplicadas no passado, não apresentaram resultados satisfatórios e a ideia inicial do novo governo foi fazer uma “política de austeridade”, considerando que os altos gastos públicos eram a principal fonte dos problemas econômicos. Mas as pressões contra cortes no orçamento da União, entre outras medidas de contenção daqueles gastos, as disputas partidárias por cargos de direção no governo, a imobilidade do presidente e a concessão de favoritismo às pessoas e grupos econômicos forçaram uma mudança nas diretrizes governamentais. A preocupação central era conter a ameaça da hiperinflação em uma economia que já apresentava sinais de indexação com a inflação passada embutida na futura, isto é, numa economia indexada em que os agentes econômicos trabalhavam com uma expectativa inflacionária no mínimo igual ou superior à do mês anterior, formando um ciclo vicioso.

Foi então que surgiu a ideia, através do ministro da Fazenda, Dílson Funaro, de criar uma terapia de choque capaz de acabar com a correção monetária e criar uma moeda forte: era o Plano Cruzado. Houve congelamento de preços, acabou a

Page 154: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

146

indexação, estabeleceu-se o reajuste automático dos salários por meio do “gatilho”. O governo convocou os cidadãos brasileiros a fiscalizarem os preços dos produtos nas prateleiras dos supermercados, que foram tomados pela população. Mas com o boicote de setores econômicos do empresariado, os produtos começaram a sumir das prateleiras e o governo teve que tomar novas iniciativas. A partir de então, uma série de novos planos foram sendo lançados sucessivamente na tentativa de resolver os problemas econômicos do país, mas sempre obtendo fracassos. A inflação mantinha-se alta e se tornou parte do cotidiano do cidadão brasileiro. Com liberdade de organização, as centrais sindicais, principalmente a Confederação Geral dos Trabalhadores – CGT e a Central Única dos Trabalhadores – CUT, ficaram mais fortes e sucederam-se várias greves gerais, de nível nacional, ao longo da segunda metade dos anos de 1980. As greves entre profissionais sindicalizados de diversas categorias se espalharam por todo o país.

FONTE: SINDADOS-MG. Fotos. Disponível em: <http://www.sindados-mg. org.br/file/planocruzado1986.jpg>. Acesso em: 3 maio 2010.

FIGURA 42 – CAMPANHA SALARIAL DOS TRABALHADORES DE PROCESSAMENTO DE DADOS DURANTE O PLANO CRUZADO II, EM BELO HORIZONTE, 1987

O agravamento da crise econômica e o descontrole sobre a inflação geraram grande expectativa da população sobre as primeiras eleições diretas para a Presidência da República, em 1989, após os longos anos da ditadura militar. Diversos candidatos e partidos se candidataram no pleito, que apresentou propostas dos diferentes campos da política brasileira. Ao lado de candidatos tradicionais ou já bem conhecidos no cenário político nacional, como Paulo Maluf, Aureliano Chaves, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Luis Inácio Lula da Silva, entre outros, despontou o político alagoano Fernando Collor de Mello, de tradicional família da região, mas desconhecido da maioria do eleitorado nacional.

Com um discurso de inovação, Collor prometia o “Brasil Novo”, livre da corrupção, se apresentando como o “caçador de marajás”. Na verdade, tanto sua plataforma política como a sua aliança partidária de base eram pouco definidas, destacando-se na sua campanha eleitoral muito mais o marketing político e a exploração de sua imagem pessoal do que suas propostas propriamente ditas. Sua candidatura mostrou-se como uma articulação de parte da elite socioeconômica

Page 155: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

147

do Brasil para barrar a indesejável vitória de um dos dois principais candidatos da esquerda que disputaram a eleição daquele ano, Brizola ou Lula. Esta possibilidade se mostrava bastante real, como mostram os números dos resultados da eleição, que teve de ser decidida em dois turnos.

Candidato Vice Coligação Votos %Fernando Collor de Mello (PRN)

Itamar Franco (PRN) PRN, PSC, PTR, PST

22.611.011 28,52

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) José Paulo Bisol (PSB) PT, PSB, PC do B 11.622.673 16,08Leonel Brizola (PDT) Fernando Lyra (PDT) Nenhuma 11.168.228 15,45Mário Covas (PSDB) Almir Gabriel (PSDB) Nenhuma 7.790.392 10,78Paulo Salim Maluf (PDS) Bonifácio José de

Andrada (PDS)Nenhuma 5.986.575 8,28

Guilherme Afif Domingos (PL)

Aluísio Pimenta (PDC) PL, PDC 3.272.462 4,53

Ulysses Guimarães (PMDB) Waldir Pires (PMDB) Nenhuma 3.204.932 4,43Roberto Freire (PCB) Sérgio Arouca (PCB) Nenhuma 769.123 1,06Aureliano Chaves (PFL) Cláudio Lembo (PFL) Nenhuma 600.838 0,83Ronaldo Caiado (PSD) Camilo Calazans

Magalhães (PDN)PSD, PDN 488.846 0,68

Affonso Camargo Neto (PTB) Luís Gonzaga de Paiva Muniz (PTB)

Nenhuma 379.286 0,52

Enéas Ferreira Carneiro (PRONA)

Lenine Madeira de Souza (PRONA)

Nenhuma 360.561 0,50

José Alcides Marronzinho de Oliveira (PSP)

Reinau Valim (PSP) Nenhuma 238.425 0,33

Paulo Gontijo (PP) Luís Paulino (PP) Nenhuma 198.719 0,27Zamir José Teixeira (PCN) William Pereira da Silva

(PCN)Nenhuma 187.155 0,26

Lívia Maria de Abreu (PN) Ardwin Retto Grunewald (PN)

Nenhuma 179.922 0,25

Eudes Oliveira Mattar (PLP) Daniel Lazzeroni Júnior (PLP)

Nenhuma 162.350 0,22

Fernando Gabeira (PV) Maurício Lobo Abreu (PV)

Nenhuma 125.842 0,17

Celso Brant (PMN) José Natan Emídio Neto (PMN)

Nenhuma 109.909 0,15

Antônio dos Santos Pedreira (PPB)

José Fortunato da França (PPB)

Nenhuma 86.114 0,12

Manoel de Oliveira Horta (PDCdoB)

Jorge Coelho de Sá (PDC do B)

Nenhuma 83.286 0,12

Armando Corrêa da Silva (PMB)

Agostinho Linhares de Souza (PMB)

Nenhuma 4.363 0,01

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Elei%C3%A7%C3%A3o _presidencial_ brasileira_de_1989>. Acesso em: 20 abr. 2010.

QUADRO 1 – RESULTADO DO PRIMEIRO TURNO DAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 1989

Page 156: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

148

No segundo turno, a definição entre os campos políticos da direita e da esquerda ficou mais nítida, e a polarização e radicalização tomaram conta dos discursos dos candidatos finalistas, Collor e Lula. Houve grande adesão popular às duas campanhas, com a realização de comícios enormes pelos principais centros urbanos do país. Tendo ocorrido em 17 de dezembro de 1989, o resultado do segundo turno foi o seguinte:

Candidato Votos %Fernando Collor de Mello (PRN, PSC, PTR, PST) 35.089.998 49,94Luiz Inácio Lula da Silva (PT, PSB, PC do B) 31.076.364 44,23Votos brancos 986.446 1,40Votos nulos 3.107.893 4,42Total 70.260.701ª 100ª: abstenção = 11.814.017

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Elei%C3%A3o_presidencial_bresileira _ de_1989>. Acesso em: 12 maio 2010.

QUADRO 2 – RESULTADO DO SEGUNDO TURNO DAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 1989

Apesar da vitória apertada, Fernando Collor de Mello saía vitorioso das eleições de 1989. Embora respondesse pela ideia de um “Brasil Novo”, a representação política de Collor era de cunho tradicional e conservador.

Durante a campanha eleitoral, o candidato Collor de Mello apontou o combate à inflação, à corrupção e à miséria como as prioridades de suas Diretrizes de Ação do Governo (Collor de Mello). Em seu discurso de posse, o presidente eleito indicou, como estratégia central de sua política econômica, a busca da articulação simultânea dos princípios da eficiência e da equidade, ao afirmar ser competência prioritária da livre iniciativa – não do Estado – “criar riqueza e dinamizar a economia”, e do Estado planejar o desenvolvimento e “assegurar à justiça o sentido amplo e substantivo do termo”. Ao anunciar suas primeiras medidas, o governo Collor elegeu o controle da inflação como condição necessária à retomada do crescimento. O Plano Collor se compõe de alguns instrumentos tradicionalmente utilizados nos programas de concepção liberal e de outros de origem keynesiana e de tradição heterodoxa. Os últimos poderiam ser identificados como parte da concepção social-democrata. Assim é possível se identificar medidas que compõem um coerente eixo liberal no Programa Collor e medidas e intenções que sugerem um outro eixo de origem social-democrata. (PAIVA apud FARO, 1990, p. 36).

Contudo, após um resgate (confisco) da poupança de milhões de brasileiros, entre outras medidas polêmicas que não surtiram o efeito desejado, Fernando Collor começou a se desgastar politicamente, até o estouro de um escândalo envolvendo graves denúncias de corrupção feitas pelo próprio irmão do presidente. O Congresso Nacional e os setores oposicionistas, principalmente, iniciaram um processo de impeachment do presidente, ou seja, a cassação do seu mandato. A insatisfação popular frente aos escândalos do governo e aos rumos da economia acabou levando, mais uma vez, à mobilização da população brasileira. Destacou-se neste período a ação do movimento estudantil, que deflagrou o

Page 157: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

149

protesto que ficou conhecido como o “movimento dos caras-pintadas”, pois os estudantes, negando o pedido pessoal do presidente de apoio naquele momento, pintaram seus rostos e saíram às ruas, em grandes passeatas e concentrações.

Podemos perceber que, ao longo das últimas décadas do século XX, a população brasileira se mobilizou e saiu às ruas, para protestar ou apoiar, enfim, para manifestar-se politicamente sobre os rumos da nação. É importante atentar para estes fatos, não somente para conhecermos as características culturais do povo brasileiro, mas para identificarmos o papel das massas na história do país.

As lutas populares continuam até os dias de hoje, mas as grandes manifestações políticas em âmbito nacional sofreram uma sensível diminuição. Se isso representa alguma coisa em termos de avanço social, é uma pergunta que devemos buscar responder, para não ficarmos às cegas na “câmara escura” das ideologias, dos discursos vazios, do marketing político.

FONTE: Disponível em: <www.falandoprasparedes.blogspot.com/2009/03/ o-cac...>. Acesso em: 25 abr. 2010.

FIGURA 43 – MANIFESTAÇÕES POPULARES CONTRA COLLOR

LEITURA COMPLEMENTAR

A VIGILÂNCIA DO REGIME MILITAR SOBRE O MEIO MUSICAL: UMA CRONOLOGIA

O leque de atuação dos agentes dos órgãos de repressão junto ao meio musical

vai de 1967 a 1982, conforme as coleções do DOPS disponíveis no Arquivo Público de São Paulo e do Rio de Janeiro. Podemos notar algumas dinâmicas diferenciadas dentro dessa cronologia mais ampla. Entre 1967 e 1968 já se configurara o campo da MPB, para

Page 158: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

150

o que concorreu o sucesso dos festivais da canção dos anos 60; concomitantemente, houve o recrudescimento da “questão estudantil”, o que levou a repressão a destacar o papel da música como “propaganda subversiva” e “guerra psicológica”. O principal suspeito de então, aglutinador dos opositores, era Geraldo Vandré, surgindo muitas referências a Nara Leão, Edu Lobo, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros.

A partir de 1971, os shows do chamado “Circuito Universitário” passam a ocupar a maior parte dos informes e relatórios. O inimigo número 1 do regime passou a ser Chico Buarque, secundado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Gonzaguinha e Ivan Lins. Com o exílio de Vandré e sua desagregação enquanto persona pública do meio musical politizado, aliado às novas posturas de Chico Buarque, este passa a ser destacado como o centro aglutinador da oposição musical de esquerda, sendo frequente nas fichas e prontuários aparecer a expressão “pessoa ligada a Chico Buarque de Hollanda”, como se essa relação, por si, aumentasse o grau de suspeição.

Depois de 1978, a participação dos compositores e cantores na Campanha da Anistia e nos eventos do movimento operário se agregou ao mapa da suspeição que recaía sobre eles. Elis Regina, já citada nos primeiros relatórios e informações, começa a aparecer com mais frequência por ter gravado o “Hino da Anistia” (a canção O bêbado e a equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc).

Os documentos produzidos pela vigilância dos serviços de informação e repressão do regime nos permitem, indiretamente, mapear a circulação social da MPB, ao menos enquanto experiência sociocultural presencial e direta. Num primeiro momento, o foco de atenção recai sobre a plateia dos festivais da canção abrigados nas televisões. Em seguida, passa a abranger o circuito universitário da primeira metade dos anos 70, realizado nos campi e nos ginásios das médias cidades do interior.

No início da década de 1970, sobretudo entre 1971 e 1974, a vigilância sobre a MPB estava ligada, intimamente, à vigilância sobre o movimento estudantil. É de supor que este determinava os termos da vigilância e da suspeita sobre aquela. Qualquer movimento de artistas ligados à MPB junto ao público jovem e estudantil deveria ser objeto de atenção redobrada e preventiva. Em 1973, o Centro de Informações do Exército, em Brasília, enviou uma solicitação formal ao DOPS do Rio de Janeiro para “acompanhar o comportamento de estudantes e artistas no show de Vinicius de Moraes, O POETA, A VOZ E O VIOLÃO, no Rio de Janeiro (Com Vinicius, Clara Nunes e Toquinho – além de participações especiais de Chico Buarque, Maria Bethânia e outros)”.

O informante, entretanto, tranquiliza os seus superiores quanto ao citado show afirmando que “a plateia é formada por pessoas maduras e que apenas nos fins de semana há predominância dos ‘elementos jovens’. Também não há contato entre espectadores e artistas, uma vez que no auditório não há acesso ao palco, não havendo possibilidade de diálogo”.

Na segunda metade da década, os agentes da repressão destacam os espetáculos de massa ligados às campanhas políticas e às entidades de oposição,

Page 159: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

151

com destaque para o Comitê Brasileiro de Anistia, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e o Comitê Brasil Democrático. Finalmente, o movimento operário, na virada da década de 1970 para a de 80, passou a ser a grande preocupação da “comunidade de informações”, cuja ação se viu enfraquecida após o atentado frustrado do Riocentro, que seria perpetrado, justamente, contra um show de MPB, no dia 1º de maio de 1981.

A produção da suspeita se fazia pela vigilância a eventos, personalidades e espaços sociais considerados, em si e por si, “subversivos” e pela vigilância à atuação pública ou às ligações partidárias de personalidades do meio artístico-musical. Além de certos espaços sociais serem considerados suspeitos, qualquer atitude poderia ser qualificada como subversiva, fosse ela de ordem político-ideológica ou comportamental. As inferências dos agentes da repressão, porém, não eram aleatórias, na medida em que se pautavam pelo imaginário que aglutinava, muitas vezes sem a mínima plausibilidade, o medo à desordem política e social com a dissolução dos laços morais e familiares, pautados por um pensamento ultraconservador. Para a lógica da repressão as duas coisas andavam pari passu [no mesmo ritmo] e, nesse sentido, compreendemos por que tanto Chico Buarque quanto Caetano Veloso, dois artistas com posições ideológicas e graus de engajamento político distintos, eram vistos como ameaças à ordem vigente.

FONTE: NAPOLITANO, Marcos. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981). Revista Brasileira de História, São Paulo, 2004. v. 24, n. 47. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0102-01882004000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 18 abr. 2010.

Para aprofundamento destes temas, sugiro que você leia o livro e assista aos filmes indicados:LIVRO: GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? São Paulo: Cia das Letras, 2009. (Coleção Companhia de Bolso).Narrativa em primeira pessoa das memórias do autor sobre a sua participação na luta armada contra a ditadura.

FILMES: Os filmes a seguir sugeridos são produções cinematográficas mais recentes, do período pós-ditadura, mas retratam os movimentos de luta armada no Brasil, que fizeram oposição ao regime militar.Lamarca. Brasil: Direção de Sergio Rezende, colorido, 129 min. 1994. Crônica dos últimos dias de vida do capitão Carlos Lamarca, ex-soldado do Exército, militante da VPR, organizador de várias ações, como a guerrilha no Vale da Ribeira, em São Paulo. Refugiou-se no sertão da Bahia onde foi caçado até a morte.

Araguaya, a conspiração do silêncio. Brasil: Direção de Ronaldo Duque, colorido, 109 min. 2004. Baseado em fatos reais, o filme descreve a ação guerrilheira na região do Rio Araguaia, no início dos anos de 1970. Depoimentos de ex-guerrilheiros e algumas imagens da época (a inauguração da Transamazônica no governo Médici) intercalam a narrativa cinematográfica.

Além de: GOOF, Jacques Le. História e memória. 5º ed. Campinas: Unicamp, 2003.

DICAS

Page 160: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

152

Neste tópico pudemos observar uma discussão acerca do significado das manifestações populares na história recente do Brasil, no qual foram abordados os seguintes itens:

• Os movimentos populares de um modo geral, no período da ditadura e no democrático, mostrando a existência de uma capacidade de mobilização da maioria da sociedade brasileira em momentos distintos.

• Os movimentos de resistência à ditadura militar, de cunho armado, como as guerrilhas urbanas e rurais.

• Os movimentos de resistência à ditadura, de cunho institucional, partindo de setores ligados à Igreja, Justiça, Imprensa etc.

• O movimento estudantil, secundarista e universitário, participando de importantes momentos da vida nacional.

• O sindicalismo, como principal meio de representação das classes trabalhadoras naqueles conflitos próprios do sistema capitalista, seja sob o regime autoritário, seja sob o democrático.

• A transição “moderada” que marcou o fim da ditadura e o início da democracia, organizada pelos setores políticos dominantes, ainda que com forte pressão popular dada no movimento das “diretas-já!”.

• As expectativas e frustrações da população durante a instalação da Nova República, em processos como o do Plano Cruzado, nas primeiras eleições diretas, no impeachment de Collor.

RESUMO DO TÓPICO 3

Page 161: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

153

1 “Apesar do autoritarismo, a ideologia de esquerda continuou dominante”. Faça uma reflexão crítica sobre essa afirmação, pressupondo as características e motivações das contestações ao aparelho ideológico do Estado, durante a ditadura.

2 Faça uma avaliação sobre a importância da participação popular na transição para o regime democrático e após a sua instalação.

AUTOATIVIDADE

Page 162: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

154

Page 163: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

155

TÓPICO 4

DEMOCRACIA, AFINAL, PARA QUEM?

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Do ponto de vista do senso comum é mais do que correto considerar que, após algo em torno de 20 anos de ditadura militar – durante os quais se extinguiram direitos civis básicos e elementares, nutriu-se o autoritarismo e o abuso do poder por parte do Estado alcançou níveis inaceitáveis, via perseguição e extermínio de opositores –, o processo de transição para outro regime de governo só poderia ser, necessariamente, pela via democrática.

Com essa noção presa ao imaginário popular e ao grosso da sociedade brasileira, vários grupos tomaram como certo a ideia de que, desde o fim da ditadura, vive-se em uma democracia, pois agora há liberdade de organização e expressão, direito de ir e vir, eleições diretas, governos civis, entre outras garantias basilares do chamado Estado Democrático de Direito. Contudo, há que se perguntar: tal definição jurídica, respaldada nas formas da lei, constitui uma democracia no sentido pleno, de fato?

2 O REGIME POLÍTICO PÓS-DITADURA

Primeiramente, é preciso ter consciência de que a traumática experiência autoritária coibiu o diálogo e a percepção conjunta da sociedade brasileira de que se faz necessário um avanço no processo político e a consciência de que, para chegarmos a uma convivência melhor entre os cidadãos de nosso país, a concentração exacerbada de renda deve ser combatida. Os governos militares pregaram este credo, mas não o colocaram em prática. Quando se conseguiu pôr fim ao regime militar, tudo pareceu muito democrático e as portas pareciam abertas para uma nova experiência histórica, na qual estariam superados os erros do passado. Infelizmente, não foi bem aí que se chegou.

O caráter da transição, que já abordamos anteriormente, pode ser considerado como uma vigorosa manobra política, apesar da indiscutível pressão do povo e de uma maior interferência da sociedade civil organizada. O confronto Tancredo-Maluf foi um resultado do panorama nacional que apresentava, de um lado, uma oposição que durante anos se manteve nas rédeas do governo e, de outro, um candidato que poderia salvar a elite política da ditadura através do apoio de uma base popular. Sobravam as ênfases nas personalidades políticas pessoais e,

Page 164: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

156

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

claramente, estava ausente um projeto alternativo de poder. A via eleitoral indireta consagrou a escolha dentro de um estreitíssimo leque de opções que restavam do desmanche do regime autoritário.

Independentemente do candidato que chegou ao poder – ironicamente não foi nenhum dos candidatos que disputaram o pleito, mas sim José Sarney, vice de Tancredo, ex-integrante da Arena –, deve-se notar que foi mantida, mesmo que com nova face, uma estrutura política que se mostraria incapaz de transformar a realidade socioeconômica com a profundidade pela qual o conjunto majoritário da sociedade ansiava.

Essa “autocracia burguesa institucionalizada” foi, marcadamente, a característica principal de uma “democracia da ambiguidade” que se instalou no Brasil após os governos militares. Pelas relações de poder e vínculos que mantiveram as classes políticas dominantes, pela natureza do projeto econômico que foi seguido, pela manutenção das graves injustiças sociais e dos privilégios concedidos, percebe-se que, no país, a condução da política foi orientada pelos interesses de uma minoria. Mergulhado em entraves administrativos e bucráticos, o novo governo sequer conseguiu acompanhar o avanço das sociedades ditas “desenvolvidas”, isto é, com relações capitalistas alicerçadas, e manteve o país no atraso em troca de benefícios próprios. Essa atitude, denominada de “conservantismo civilizado”, reforçou o segundo termo da expressão sinônima “liberalismo-conservador”, pois, se é inegável que o projeto que se colocou para o Brasil foi de cunho capitalista e, portanto, dirigido pelas classes burguesas e seus representantes, não é tão claro quais foram as medidas liberais que estiveram em campo. O que é pior: estas nem de longe representavam o que existia de mais avançado no sistema capitalista.

Portanto, a transição para a democracia não foi um processo que se efetivou de maneira plena. A democracia plena, constituída pela possibilidade de toda a sociedade ter as mesmas chances de alcançar o poder político, econômico, cultural etc. permanece uma meta a ser atingida nos nossos dias e ainda como projeto de futuro. O regime político pós-ditadura só pode ser considerado democrático de dois pontos de vista: o das classes dominantes e o das instituições do Estado de Direito. Historicamente, seria mais correto chamá-lo de “regime autocrático da burguesia”.

Durante a segunda metade dos anos de 1980 a renda per capita manteve-se estagnada, a inflação atingiu recordes e a dívida externa aumentou. Ao mesmo tempo em que houve o enriquecimento de grupos econômicos e, em algumas oportunidades, o próprio crescimento econômico – já que o país nunca deixou de produzir riqueza –, também ocorreu a perda do poder aquisitivo pela tendência da queda do salário real, prejudicando toda a massa de trabalhadores. No caso brasileiro deve-se ainda acrescentar que o Estado serviu a diversos interesses privados, comprando empresas falidas, estatizando a dívida externa, mantendo subsídios aos setores de baixa eficiência, transferindo recursos públicos para o setor privado, favorecendo os segmentos sociais de renda mais elevada.

Page 165: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 4 | DEMOCRACIA, AFINAL, PARA QUEM?

157

Entre outros efeitos nefastos dessa política, figurou a completa desorganização dos serviços públicos, alguns essenciais, como a saúde e a educação. As tentativas de pacto social fracassaram, seja pela falta de objetivos, seja pela incapacidade governamental de mediar entendimentos entre empresários e trabalhadores. A conjugação do fracasso na formulação de pactos sociais e nos programas de estabilização econômica, no quadro de manutenção das desigualdades sociais, levou os analistas a considerarem a década de 1980 como a “década perdida”.

3 OS “PACOTES” DE ESTABILIZAÇÃO ECONÔMICA

A política econômica depois de 1985 marca uma clara diferença com a das décadas anteriores. Desde antes da ditadura, o Brasil vinha passando por um projeto de desenvolvimento – dada a problemática do subdesenvolvimento – através da ação estatal, cuja característica fundamental foi o planejamento econômico. Todos os planos governamentais surgidos naquela época, desde o período Vargas, visavam criar condições para a industrialização do Brasil. Os planos visavam atrair investimentos públicos, principalmente nas obras de infraestrutura, e investimentos privados de capital nacional ou estrangeiro. Este processo chegou ao seu ápice no governo de Juscelino Kubitschek, com o Programa de Metas. Guardadas as devidas diferenças – aumento da influência da tecnoburocracia e da dependência ao financiamento externo – e feitas as necessárias ressalvas, os planos da época da ditadura (PAEG, PED e os dois PNDs – o PND III não teve possibilidade de ser colocado em prática, durante o governo Figueiredo) também visavam a mudanças estruturais da economia brasileira, pelo incremento da infraestrutura e da industrialização.

Essas características não se encontravam presentes nos anos iniciais da República Nova. Apesar do aumento das exportações no final da ditadura (1983 e 1984), que trouxeram um mínimo de equilíbrio financeiro, o país contava com uma dívida externa galopante e a ameaça de hiperinflação, além, é claro, de todos os outros problemas de concentração de renda, desigualdades sociais, desemprego etc. Ou seja, praticamente cinco décadas de planos de desenvolvimento econômico não os resolveram. Mais corretamente denominados de “pacotes econômicos”, os planos pós-ditadura não visaram transformar as estruturas econômicas do país, mas ajustá-las dentro do contexto de crise global, utilizando-se de medidas recessivas (para desaquecer a economia e buscar a retomada de seu funcionamento numa dinâmica mais “natural”). Conforme vimos, tais pacotes não surtiram o efeito desejado, sendo necessário o lançamento de novas alternativas sucessivamente: só no governo Sarney foram quatro planos.

A seguir, faremos um breve apanhado desses pacotes, nos governos Sarney e Collor:

• Plano Cruzado: lançado em fevereiro de 1986, foi um conjunto de medidas de

Page 166: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

158

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

contenção da inflação, pelo qual os mercados funcionavam parcialmente e a União controlava preços, salários e câmbio. Houve congelamento de preços e salários e alteração do sistema monetário, que passou a denominar-se Cruzado, correspondente a mil cruzeiros.

• Plano Cruzado II: foi uma série de mais de trinta medidas (decretos e decretos-leis), adotadas em novembro de 1986, para corrigir os defeitos do primeiro plano. Foram muito pouco executadas por pura incompreensão do que se tratava. Somente as medidas compulsórias (na fonte) entraram em vigor, como o aumento dos impostos, caracterizando um choque fiscal, mais do que um plano. Acabou sendo abortado e o governo teve que lidar com o que sobrou do Cruzado I.

• Plano Bresser: em junho de 1987, voltou-se ao congelamento de preços, salários e tarifas, para tentar debelar a inflação. O congelamento foi provisório, seguido de reajustes mensais e posterior liberação, determinados os valores pelo mercado. Buscou-se reduzir o déficit público e os salários reais. O descontrole dos preços levou à volta da inflação e ao fracasso do plano.

• Plano Verão: foi anunciado em janeiro de 1989, como mais um choque econômico visando à desindexação da economia. Salários, aposentadorias e aluguéis foram corrigidos pela média real dos últimos doze meses e congelados. Cortaram-se três zeros do Cruzado, criando-se o Cruzado Novo, equivalente a um dólar. Entretanto, a economia ficou ainda mais indexada e, somente em fevereiro de 1990, último ano do governo Sarney, a inflação registrou mais de 80%.

• Plano Collor: oficialmente denominado “Plano Brasil Novo”, foi o quinto programa de estabilização desde o Cruzado. Dentre as principais medidas estavam a reintrodução do Cruzeiro e a extinção do Cruzado Novo, aumento da arrecadação, congelamento de preços, salários, aposentadorias, serviços e aluguéis e bloqueio dos ativos financeiros (até da caderneta de poupança). O confisco dos Cruzados Novos equilibrou as finanças públicas e as reservas externas aumentaram, mas, no início de 1991, o país entrava em recessão profunda, com queda no PIB, mais de um milhão de desempregados e inflação mensal em torno dos 20%.

Plano Collor II: em fevereiro de 1991 houve novo congelamento de salários e aposentadorias, após correção pela média dos últimos doze meses. Aluguéis também foram reajustados e congelados. Não houve congelamento geral de preços nem mudança na moeda, e acabou o mecanismo de indexação da economia. Os objetivos deste plano foram o de conter a inflação, equilibrar as finanças públicas com o corte de despesas, privatizar a economia, modernizar o parque industrial. A inflação não cedeu e iniciou-se o desmonte da máquina pública, enfraquecendo o governo que não resistiu aos escândalos de corrupção.

Page 167: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 4 | DEMOCRACIA, AFINAL, PARA QUEM?

159

4 O PLANO REAL E A ONDA NEOLIBERAL DE FHC

Após o relatório final da CPI do PC (alusão a Paulo César Farias, empresário e ex-tesoureiro de Collor, envolvido em um esquema de corrupção), foi aprovada em votação, pelo Congresso Nacional, a abertura do processo do impeachment do presidente, em 29 de setembro de 1992. Para preservar seus direitos políticos, Fernando Collor renunciou ao mandato antes que iniciasse a sessão de seu julgamento pelo Senado, em 29 de dezembro de 1992, quando foi condenado à perda do cargo e ao afastamento por oito anos da política.

Na Presidência desde a abertura do processo de impeachment, o ex-vice-presidente de Collor, Itamar Franco, tornou-se presidente com o julgamento do Senado. Assumiu o país em péssima condição econômica, com inflação anual de quatro dígitos (1100% em 1992 e 2500% em 1993), o que o levou a experimentar vários ministros até a opção por Fernando Henrique Cardoso, Ministro da Fazenda de 19 de maio de 1993 até 30 de março de 1994, período em que iniciou a implantação do Plano Real. Fernando Henrique já era figura conhecida no cenário político nacional, como liderança do PMDB e segundo senador mais votado até então (o primeiro havia sido Mário Covas). Nesta condição chegou a participar da Assembleia Constituinte. Em 1988, junto com outros políticos, formou uma dissidência do PMDB que resultou na criação do PSDB.

Em abril de 1993, de acordo com o previsto na Constituição de 1988, foi realizado o plebiscito para a escolha da forma e sistema de governo no Brasil. A participação não era obrigatória e pouco mais de 70% do eleitorado compareceu às urnas com votos válidos – os demais anularam o voto ou não votaram. Do total de votantes, 66% votaram na República contra 10% na Monarquia, e 55% para o presidencialismo contra 25% para o parlamentarismo. Desta forma manteve-se o regime republicano presidencialista vigente até hoje.

O Plano Real foi um programa de estabilização econômica cujo objetivo principal era o de controlar a inflação, área em que obteve êxito. Foi composto de três fases:

1ª fase – (ortodoxa) – contemplou um ajuste fiscal, para equacionar o desequilíbrio orçamentário da União. Criou-se o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF), imposto de caráter temporário, e o Fundo Social de Emergência (FSE), correspondendo a uma diminuição das transferências da União para Estados e Municípios, liberando parcelas das receitas, que eram legalmente vinculadas a determinados fins, possibilitando, assim, o aumento dos recursos livres de que dispõe o Governo Federal; 2ª fase – (heterodoxa) – tentativa de eliminar a inércia inflacionária, através da introdução de uma nova unidade de conta, a Unidade Real de Valor (URV). Objetivou-se, nessa fase, promover todos os ajustes de preços relativos com base nesse índice, tornando previsível a participação dos diversos agentes na renda nacional, reduzindo conflitos agudos na distribuição de renda. Procuraram-se eliminar os efeitos de uma provável hiperinflação na moeda velha – o Cruzeiro Real – que perdeu sua função de meio de pagamento. Todos os preços passaram a ser estabelecidos pela URV, que continuou sendo referenciada e

Page 168: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

160

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

equivalente em Cruzeiro Real; 3ª fase – transforma-se a URV em Real. Houve as moedas: (1) cruzeiro; (2) cruzeiro real e (3) real, sobrevivendo somente esta última. (BRITO, 2004, p. 29).

Com o êxito inicial do plano e tendo sido já executadas as duas primeiras fases, Fernando Henrique Cardoso (FHC) encontrava-se em circunstâncias favoráveis para candidatar-se à Presidência da República. Pode-se dizer que o Plano Real vinha dando certo por uma série de fatores: as condições externas para a estabilização eram muito melhores em 1994 do que em 1986, por exemplo; a abundante liquidez internacional e a abertura da economia brasileira permitiram um equilíbrio do câmbio e a melhoria das condições de pagamento da dívida externa; a URV mostrou-se um mecanismo de desindexação da economia mais eficaz do que o congelamento de preços; contava-se com apoio político do Congresso.

A possibilidade de continuidade do êxito em estabilizar a economia através do Plano Real foi determinante para o sucesso da candidatura de FHC. Venceu em primeiro turno, com 55% dos votos válidos, ultrapassando com facilidade diversos outros candidatos de peso, como Lula e Brizola, da oposição.

Candidato Vice Coligação Votos %

Fernando Henrique Cardoso (PSDB)

Marco Maciel (PFL) PSDB, PFL, PTB 34.364.961 54,27

Luiz Inácio Lula da Silva (PT)

Aloizio Mercadante (PT) PT, PSB, PCdoB, PPS, PV, PSTU

17.122.127 27,04

Enéas Carneiro (PRONA)

Roberto Gama e Silva (PRONA)

Nenhuma 4.671.457 7,38

Orestes Quércia (PMDB)

Isis de Araújo (PMDB) PMDB, PSD 2.772.121 4,38

Leonel Brizola (PDT) Darcy Ribeiro (PDT) Nenhuma 2.015.836 3,18

Esperidião Amin (PPR)

Maria Gardênia Santos Ribeiro Gonçalves (PPR)

Nenhuma 1.739.894 2,75

Carlos Antônio Gomes (PRN)

Dilton Carlos Salomoni (PRN) Nenhuma 387.738 0,61

Hernani Goulart Fortuna (PSC)

Vítor Jorge Abdala Nósseis (PSC)

Nenhuma 238.197 0,38

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Elei%C3%A7%C3%A3o_presidencial_ brasileira_de_1994>. Acesso em: 15 maio 2010.

QUADRO 3 – ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS BRASILEIRAS DE 1994

O primeiro governo de FHC (1995-1998) foi dominado pelo tema da estabilização, após as traumáticas experiências de seis planos fracassados ao longo de dez anos. No começo de 1995 havia uma ameaça concreta de retorno da inflação e da indexação da economia, agravada pela deterioração do balanço de pagamentos. Mas medidas adotadas pelo governo no sentido de uma desvalorização controlada do

Page 169: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 4 | DEMOCRACIA, AFINAL, PARA QUEM?

161

QUADRO 4 – ELEIÇÃO PRESIDENCIAL BRASILEIRA DE 1998

Candidato Vice Coligação Votos %

Fernando Henrique Cardoso (PSDB)

Marco Maciel (PFL) PSDB, PFL, PPB, PTB, PSD

35.936.540 53,06

Luiz Inácio Lula da Silva (PT)

Leonel Brizola (PDT) PT, PDT, PSB, PCdoB, PCB

21.475.218 31,71

Ciro Gomes (PPS) Roberto Freire (PPS) PPS, PL, PAN 7.426.190 10,97

Enéas Carneiro (PRONA)

Irapuan Teixeira (PRONA) Nenhuma 1.447.090 2,14

Ivan Moacir da Frota (PMN)

João Ferreira da Silva (PMN)

Nenhuma 251.337 0,37

Alfredo Sirkis (PV) Carla Piranda Rabello (PV) Nenhuma 212.984 0,31

José Maria de Almeida (PSTU)

José Galvão de Lima (PSTU)

Nenhuma 202.659 0,30

João de Deus Barbosa de Jesus (PT do B)

Nanci Pilar (PT do B) Nenhuma 198.916 0,29

José Maria Eymael (PSDC)

Josmar Oliveira Alderete (PSDC)

Nenhuma 171.831 0,25

Thereza Tinajero Ruiz (PTN)

Eduardo Gomes (PTN) Nenhuma 166.138 0,25

Sergio Bueno (PSC) Ronald Abrahão Azaro (PSC)

Nenhuma 124.659 0,18

Vasco Azevedo Neto (PSN)

Alexandre José Ferreira dos Santos (PSN)

Nenhuma 109.003 0,16

FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Elei%C3%A7%C3%A3o_ presidencial_ brasileira_de_1998>. Acesso em: 10 maio 2010.

câmbio e manutenção de altas taxas de juros permitiram a possibilidade de retorno dos investimentos, principalmente internacionais, e a queda da inflação durante quatro anos consecutivos. Apesar do sucesso no controle da inflação, o plano não resolvia o problema do déficit da balança comercial (as importações superavam as exportações e a dívida externa voltou a crescer) e da crise fiscal, com o déficit de diversas áreas do setor público (aumentava a dívida pública e escasseavam as possibilidades de financiamento desse setor). Com as crises internacionais de 1995, 1997 e 1998 (respectivamente: México, Sudeste Asiático e Rússia), o Real foi atacado de tal forma que a alta taxa de juros mostrou-se ineficaz para debelar os problemas na área fiscal.

Aproximavam-se as novas eleições e, para buscar um controle imediato da situação, o governo recorreu a um empréstimo de 42 bilhões de dólares junto ao FMI e iniciou o programa de metas da inflação. FHC se reelegeu novamente no primeiro turno, com 53% dos votos.

Page 170: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

162

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

Segundo Giambiagi et al. (2005, p. 182), além do êxito da política de estabilização econômica, os governos FHC foram marcados por um conjunto de reformas, que se resumem em:

• privatização;• fim dos monopólios estatais nos setores de petróleo e telecomunicações;• mudança no tratamento do capital estrangeiro, que passou a ter uma maior

participação (mineração e energia);• saneamento do sistema financeiro;• reforma parcial da Previdência Social;• renegociação das dívidas estaduais;• aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal;• ajuste fiscal, a partir de 1999;• criação de uma série de agências reguladoras de serviços de utilidade pública;• estabelecimento do sistema de metas de inflação como modelo de política

monetária.

Primeiro item em importância, as privatizações no período aconteceram em torno de grande polêmica, pois, se por um lado, o objetivo era buscar o equilíbrio das contas públicas ao transferir para o setor privado empresas deficitárias ou superavitárias com níveis inadequados de investimento, por outro, foi uma verdadeira desmontagem da máquina pública (uma desestatização) e, nesse sentido, uma venda do patrimônio nacional. Com a revogação da Lei n. 2004 (de 3 de outubro de 1953), o governo acabou com o monopólio estatal do petróleo e também com o das telecomunicações. Setores estratégicos passaram a ter participação do capital estrangeiro (mineração e energia), abriu-se caminho para a competição no setor petrolífero – a Petrobras permaneceu estatal – e a Telebrás foi privatizada; no sistema financeiro, a grande maioria dos bancos estaduais também foi privatizada. Do ponto de vista da política econômica, essas privatizações foram largamente criticadas:

Tome-se como exemplo a privatização das empresas públicas. Foi orquestrada toda uma campanha de apropriação desta parte fundamental do patrimônio nacional, sob o escudo da teoria do “rombo” que as estatais causavam nas contas públicas, o Estado “elefante”, etc.É interessante notar que o miolo da publicidade da privatização estava alicerçado em puras mentiras, devidamente orquestradas pelas estratégias da micropolítica. Autoridades governamentais proibiram, ao mesmo tempo, que as empresas públicas viessem à mídia contra-argumentar aquela propaganda [...].O “rombo” nas contas públicas constitui, assim, importante elemento na estratégia micropolítica para desmoralizar os administradores públicos e colocá-los na defensiva nos meios de informação. Ao apresentar despesas de investimentos, necessárias à expansão da produção ou dos serviços, sob a ótica exclusiva de débitos do FMI, os dirigentes do Estado brasileiro adotaram mais um traço da micropolítica, evidenciando sua ação antinacional. Esta estratégia bloqueia uma interpretação efetiva da ação das empresas e dos serviços públicos, tornando possível justificar sua liquidação.O desaparecimento das empresas rentáveis do setor público da economia acrescenta uma série de dificuldades para um crescimento sustentado.

Page 171: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 4 | DEMOCRACIA, AFINAL, PARA QUEM?

163

Tem ocorrido uma depressão do nível de emprego, que atinge neste caso “colarinhos brancos”, trabalhadores de escritório com curso superior ou não. Muitos especialistas encontram no desemprego e na depressão dos salários uma nova experiência, que já implica centenas de milhares ou mais de um milhão de trabalhadores em todo país. (BARBOSA, 1998, p. 82-83, grifo nosso).

Não obstante as críticas da política de privatizações, o processo em si foi

muito conturbado e pouco transparente, com as empresas estatais sendo vendidas a “preço de banana” e denúncias de corrupção relativas ao favorecimento de certos grupos econômicos – como no “Escândalo do caso Alstom”, em que este grupo teria pago aos governantes brasileiros mais de 200 milhões de dólares, através de uma empresa panamenha, para obter a concessão da usina Hidrelétrica de Itá.

FONTE: Barbosa (2001, p. 15)

FIGURA 44 – CHARGE ALUDINDO AO LEILÃO DA EMPRESA ESTATAL DE MINERAÇÃO VALE DO RIO DOCE

Considerando a relação entre as práticas dos governos no Brasil e a condição de vida da imensa maioria da população brasileira, vemos que há necessidade de mudanças mais profundas e estruturais para alcançar uma democracia de fato. Apesar de políticas sociais implantadas pelos governos na última década (ver texto da Leitura Complementar), a sociedade mostra desigualdades exorbitantes que rompem os próprios vínculos sociais entre os cidadãos, passando o cotidiano nacional a ser marcado por violência, greves, mortes em hospitais públicos, baixos níveis de escolaridade, desemprego, indigência, déficit habitacional e muitos outros problemas que põem em risco a própria permanência do regime democrático vigente, arduamente conquistado.

Page 172: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

164

UNIDADE 3 | DO REGIME MILITAR À NOVA REPÚBLICA

LEITURA COMPLEMENTAR

AS POLÍTICAS SOCIAIS NOS ANOS FHC

No governo FHC e, especialmente, ao longo da sua segunda gestão, foram lançados ou aprimorados diversos programas que aumentaram o gasto público e criaram uma rede de proteção social relativamente desenvolvida para os padrões de um país latino-americano de renda média, como é o nosso.

Entre essas ações, algumas das quais corresponderam a desdobramentos de programas já existentes, encontram-se:

• A expansão das medidas previstas na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que garante um salário mínimo a idosos e deficientes, independentemente de contribuição prévia e, no final de 2002, atendia diretamente a aproximadamente 1,4 milhão de pessoas.

• O Bolsa-Escola, do Ministério da Educação, que, em 2002, garantia benefícios às famílias com crianças na escola, na época correspondentes a R$ 15 mensais por criança, até o limite de três crianças (R$ 45/mês) e que no final do governo beneficiava 5 milhões de famílias.

• O Bolsa-Renda, do Ministério da Integração, dirigido a aproximadamente 2 milhões de famílias pobres das regiões que enfrentavam o problema da seca.

• O Bolsa-Alimentação, a cargo do Ministério da Saúde, que atendia a 1 milhão de gestantes/ano na fase de amamentação.

• O Auxílio Gás, do Ministério das Minas e Energia, que previa a doação, em 2002, de R$ 8 mensais, beneficiando 9 milhões de famílias para subsidiar o custo do botijão.

• O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), da Secretaria de

Assistência Social, para retirar 1 milhão de crianças do trabalho, dando a elas bolsas para estudar.

Quando se compara a situação social do Brasil no início da década de 2000 com a de outros países da América Latina afetados por processo de ajuste fiscal, nota-se que, como resultado dessas iniciativas, o Brasil dispõe de mais instrumentos de proteção às classes mais desfavorecidas da população. Além disso, a distribuição dos recursos é feita de forma democrática, já que a verba de um modo geral é repassada diretamente para as pessoas, sem passar pela intermediação de lideranças políticas, como em outros países da região. O fato de esses programas não terem sido na época mais populares revela, principalmente, três questões: (1) o peso da redução da renda real do trabalho no período, como um dos principais determinantes do que se poderia denominar “humor” da população; (2) a falta de competência política do governo federal para assumir a paternidade desses

Page 173: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

TÓPICO 4 | DEMOCRACIA, AFINAL, PARA QUEM?

165

programas e se comunicar melhor com a população; (3) o predomínio da percepção de insegurança nas grandes metrópoles, ligada ao aumento da criminalidade no meio urbano, já que muitos desses programas específicos estavam voltados para outras regiões que não as periferias dos grandes centros, onde se localizam as principais fontes da violência.

FONTE: GIAMBIAGI, Fabio. Estabilização, reformas e desequilíbrios macroeconômicos: os anos FHC (1995-2002) (apud GIAMBIAGI et al., 2005)

Para aprofundamento destes temas, sugiro que você leia os seguintes livros e assista aos filmes indicados:

LIVROS:CHASIN, José. A miséria brasileira 1964-1994: do golpe militar à crise social. Santo André: Ad Hominem, 2000.Trata-se de uma coletânea de textos de um dos principais pensadores brasileiros contemporâneos.

SILVA, Cláudio Humberto Rosa e. Mil dias de solidão – Collor bateu e levou. 3. ed. São Paulo: Geração, 1993.Visão dos dias de governo do presidente Collor pelo jornalista e porta-voz da Presidência na época.

MERCADANTE, Aloizio (Org.). O Brasil pós-Real. A política econômica em debate. Campinas: Fecamp, 1998. Traz o debate do final dos anos 1990 sobre problemas e perspectivas da política econômica brasileira daquela época.

FILMES:Central do Brasil. Brasil/França: Direção de Walter Salles, colorido, 113 min. 1998. Road-movie centrado no encontro entre parentes distantes, afastados pelas necessidades de sobrevivência. Retrata a desigualdade social e aspectos da vida dos migrantes dentro do território nacional.

Carandiru. Brasil/Argentina: Direção de Hector Babenco, colorido, 147 min. 2002. Drama baseado na obra do médico Dráuzio Varella, que tratou os doentes de AIDS da “Casa de Detenção” do bairro Carandiru, na cidade de São Paulo. Em uma ação de invasão pela polícia, em 2 de outubro de 2002, 111 presos foram mortos.

DICAS

Page 174: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

166

Neste tópico pudemos observar uma discussão acerca do significado da democracia no Brasil pós-ditadura, enfocando elementos relativos às políticas econômicas, que determinam fortemente muitas das relações sociais atuais, e foram abordados os seguintes itens:

• As diferentes visões de democracia no período pós-ditadura, haja vista a manutenção de uma estrutura de poder e de um projeto político.

• A contradição entre o domínio de classes com interesses específicos e os objetivos de democratização plena da sociedade.

• A caracterização dessa condição política nacional como uma autocracia burguesa institucionalizada.

• A falta de autenticidade dos projetos dos governos, mais conservadores do que liberais.

• A ausência de estabilização econômica e de pactos sociais, resultando numa “década perdida”.

• Os diversos pacotes econômicos como tentativas fracassadas de estabilizar a economia.

• O Plano Real e o governo FHC, que trouxe a estabilidade econômica, mas não resolveu os problemas de fundo da nação, partindo de medidas contestáveis, como as privatizações, mais motivadas por um projeto neoliberal.

RESUMO DO TÓPICO 4

Page 175: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

167

1 A partir do que foi lido, identifique os principais empecilhos para a instalação de um regime democrático pleno no Brasil, após o fim da ditadura, em 1985.

2 Faça uma breve reflexão sobre o papel do governo FHC quanto à economia e à democracia no Brasil, durante a década de noventa e o início do século XXI.

AUTOATIVIDADE

Page 176: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

168

Page 177: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

169

REFERÊNCIASBARBOSA, Paulo. Frangus et circensis. Charges da era tucana. Belo Horizonte: O Autor, 2001.

BARBOSA, Wilson do Nascimento. Globalização: uma péssima parceria. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 12, n. 3, p. 79-88, jul./set. 1998.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. 2° ed. São Paulo: Fundamento, 2010. BRASIL. Lei nº 6.767, de 20 de dezembro de 1979. Modifica dispositivos da Lei nº 5.682, de 21 de julho de 1971 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos), nos termos do artigo 152 da Constituição, alterado pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978; dispõe sobre preceitos do Decreto-Lei nº 1.541, de 14 de abril de 1977; e dá outras providências. Disponível em: <www2.camara.gov.br/.../lei/...1979/lei-6767-20-dezembro-1979-357280-norma-pl.html>. Acesso em: 24 maio 2010.

______. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra e dá outras providências. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L4504.htm>. Acesso em: 24 maio 2010.

BRITO, Paulo. Economia brasileira. Planos econômicos e políticas econômicas básicas. São Paulo: Atlas, 2004.

CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1990.

CASTRO, Antonio Barros de; SOUZA, Francisco E. P. A economia brasileira em marcha forçada. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

CHASIN, José. A miséria brasileira 1964-1994: do golpe militar à crise social. Santo André: Ad Hominem, 2000.

COHEN, Marleine. JK – o presidente bossa nova. Rio de Janeiro: Globo, 2001.

COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994.

CUNHA, Euclides. Os sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato. O livro de ouro da história do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

Page 178: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

170

FARO, Clovis de (Org.). Plano Collor. Avaliações e perspectivas. Rio de Janeiro; São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1990.

FAUSTO, Bóris. A revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1972.

______. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.

FENELON, Dea R. 50 textos de história do Brasil. São Paulo: Hucitec, 1983. v. 2. (Col. Textos).

FERREIRA, Jorge L.; DELGADO, Lucília de A. N. (Org.). O Brasil republicano 4. O tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v. 4.

FIGUEREDO, Eurico de Lima (Org.). Os militares e a revolução de 30. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

FICO, Carlos. Além do golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? São Paulo: Cia das Letras, 2009 (Col. Companhia de Bolso).

GARCIA, Nelson Jahr. Estado novo – ideologia e propaganda política. São Paulo: Loyola, 1982.

GIAMBIAGI, Fabio; VILLELA, André; CASTRO, Lavínia Barros de; HERMANN, Jennifer (Org.). Economia brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Campus, 2005.

GOOF, Jacques Le. História e memória. 5° ed. Campinas: Unicamp, 2003. HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1989. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira: o Brasil republicano economia e cultura. São Paulo: Bertrand do Brasil, 2008. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa – com a nova ortografia da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

HUBERMAN, Léo. História da Riqueza do Homem: do feudalismo ao século XXI. 22. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2010.

Page 179: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

171

JARDIM, Serafim. Juscelino Kubitschek – onde está a verdade?. Petrópolis: Vozes, 1999.

LAPA, José Roberto do. Os excluídos: contribuição à história da pobreza no Brasil. Campinas: Unicamp, 2008 LINHARES, Maria Yedda (Org.). História geral do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990.

MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário brasileiro, 1890-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

MARQUES, Ademar ; BERUTTI, Flavio; FARIA, Ricardo. História contemporânea: através de texto. 11° ed. São Paulo: Contexto, 2008. MARQUES, Ademar; BERUTTI, Flavio; FARIA, Ricardo. História moderna: através de textos. 11° ed. São Paulo: Contexto, 2010. MÉDICI, Emílio Garrastazu. 1970 – Médici preserva AI-5. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 fev. 1970. Disponível em: <www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?bl ogid=57...>. Acesso em: 24 maio 2010.

MERCADANTE, Aloizio (Org.). O Brasil pós-real. A política econômica em debate. Campinas: Fecamp, 1998.

MOURA, Alkimar R. A abertura financeira externa: um breve relato da experiência brasileira. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 148-151, jan./mar. 1981.

NAPOLITANO, Marcos. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, 2004.

NOVAES, C. E.; LOBO, C. História do Brasil para principiantes. São Paulo: Ática, 1997.

NOVAIS, Fernando A. (Org.). História da vida privada no Brasil. República: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

OPERAÇÃO Brother Sam. Disponível em: <pt.wikipedia.org/wiki/Operação_Brother_Sam>. Acesso em: 10 maio 2010.

PENNA, Lincoln de Abreu. República brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

PONTES, José A. V. Sangue brasileiro. Nossa História em Revista, São Paulo, ano 2, n. 21, jul. 2005.

Page 180: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

172

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: Colônia. 23. ed. São Paulo: Brasiliense, 1999.

SAES, Décio. A formação do Estado burguês no Brasil (1888-1889). 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

SILVA, Cláudio Humberto Rosa e. Mil dias de solidão – Collor bateu e levou. 3. ed. São Paulo: Geração, 1993.

SOARES, Laura T. R. Ajuste neoliberal e desajuste social na América latina. Petrópolis: Vozes, 2001.

TORRES, Lilian de Lucca. O Brasil de Euclides da Cunha. Leituras da História, São Paulo, ano 2, n. 21. p. 60-61, 2009.

VARGAS, Getúlio Dornelles. As diretrizes da nova política do Brasil. São Paulo: José Olímpio, 1942.

VIEIRA, Evaldo. A república brasileira 1964-1984. 9. ed. São Paulo: Moderna, 1991.

WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

Page 181: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

173

ANOTAÇÕES

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

Page 182: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

174

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

Page 183: Formação Social HiStórica e Política do BraSil

175

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________

____________________________________________________________