fundação luso-americana - flad · a historiadora trabalhou com paulo silveira e sousa, investiga...

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Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 2010�

Fundação Luso-Americana

ConseLho DireCtivo: Teodora Cardoso (Presidente)Embaixador dos Estados Unidos da AméricaJorge Figueiredo DiasJorge TorgalLuís Braga da CruzLuís Valente de OliveiraMaria Gabriela CanavilhasMichael de MelloVasco Graça Moura

ConseLho exeCutivo:Rui Chancerelle de Machete (Presidente)Charles Allen Buchanan, JrMário Mesquita

seCretário-GerAL: Fernando Durão

DireCtores: Fátima Fonseca, Paulo Zagalo e Melo, Miguel Vaz

subDireCtores: António Vicente, Rui Vallêra

responsáveL peLos serviços FinAnCeiros: Maria Fernanda David

responsáveL peLos serviços ADministrAtivos: Luiza Gomes

Assessores: João Silvério, Paula Vicente

Rua do Sacramento à Lapa, �1 1�49-090 Lisboa | PortugalTel.: (+351) �1 393 5800 • Fax: (+351) �1 396 3358Email: [email protected] • www.flad.pt

paralelo

DireCtor: Rui Chancerelle de Machete

eDitorA: Sara Pina

CoorDenADorA: Paula Vicente

seCretAriADo DA reDACção: Cristina Cambezes e Sofia Roquete

CoLAborAm neste número: Álvaro Monjardino, Ana Catarina Santos, Ana Maria Silva, Augusto Nascimento, Bernardo Nunes, Carlos Morganho, Carla Baptista, Carla Martins, Carlos Riley, Carmen Fonseca, Clara Pinto Caldeira, Fátima Fonseca, Francisco Belard, Gaye Tuchman, Jennifer Natali, Joana Fernandes, Joana Godinho, Leonor Xavier, Marco Leitão Silva, Marina Almeida, Maria Helena Nazaré, Mário Mesquita, Matt Kondolf, Nélia Alves, Nuno Crespo, Patrick J. Kennedy, Philip D. Murphy, Ricardo J. Rodrigues, Ricardo Madruga da Costa, Ricky Durães, Rita Siza, Roberto Saraiva, Rui Ochôa, Rui Machete, Sandra Inês Cruz, Sara Pina, Susana Neves, Werner Herzog e Victor Melo

DesiGn: José Brandão | Susana Brito [Atelier B�]

revisão: António Martins

impressão: www.textype.pt

niF: 501 5�6 307nº De reGisto nA erC: 1�5 563perioDiCiDADe: semestral

[email protected]

Depósito legal: �69 114/07ISSN 1646-883X

© Copyright: Fundação Luso-Americana para o DesenvolvimentoTodos os direitos reservados

Caro leitor

Nesta edição resolvemos falar da crise revelando o seu lado menos explorado e menos catastrófico.

Os Dabney foram uma família de diplomatas americanos que

viveu nos Açores ao longo do século XIX e cujas experiên­

cias relatadas, na altura, por Roxana Dabney, estão agora

publicadas em livro, destinado ao grande público, que dá a conhecer a

vida no arquipélago, as relações transatlânticas e a sociedade de Nove­

centos. Enquanto importante marco histórico, o livro merece um largo

tratamento nas nossas páginas.

Ao contrário dos Dabney, da crise todos ouvem notícias a um ritmo

diário. Nesta edição resolvemos falar da crise revelando o seu lado menos

explorado e menos catastrófico: as novas ocupações que gerou, o contri­

buto para o aumento do emprego feminino, as oportunidades criadas.

A queda do Muro de Berlim e o surgimento de um novo mundo

também têm um destaque especial na última parte deste número.

A reforma da saúde nos Estados Unidos, o ensino superior norte­

­americano e europeu e muitos outros assuntos de interesse para os

dois lados do Atlântico podem ser acompanhados nesta edição de

quase 100 páginas. sArA pinA

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índice

capaEspecial “Os Dabney”

06-23 | Especial “Os Dabney”

REVISTA DE IMPRENSA

Os Dabney: da correspondência se faz história por Marina Almeida

“É preciso não confundir os Dabney com missionários” Entrevista com Maria Filomena Mónica

por Susana Neves

05 | Editorial de Rui Chancerelle de Machete

No Termo de Um Longo Mandato

[ECONOMIA]

29-40 | O outro lado da crise

[PORTUGAL/EUA]

41 | America where? ou as influências americanas no mundopor Sandra Inês Cruz

48 | Dos Açores e da Galiza.Em busca do sonho americanopor Sara Pina

50 | Eleição para o Conselho de Segurança da ONU: Portugal, Alemanha ou Canadá?por Carla Baptista

60 | Universidades americanas e europeias

[SAÚDE]

24-28 | Reforma da Saúde nos EUApor Patrick J. Kennedy

e Joana Godinho

84-95 |

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Mudança no Conselho Executivoda Fundação Luso-Americana

Rui Machete, presidente do Conselho Executivo da Fundação Luso-Americana, considerou que, ao fim de mais de vinte anos de exercício, chegou a altura de deixar essas funções no termo do actual mandato. O primeiro-ministro designou, entretanto, Maria de Lurdes Rodrigues, ministra da Educação do XVII Governo constitucional e professora de Sociologia no ISCTE, presi-dente. Os dois outros elementos do CE, Charles Buchanan e Mário Mesquita, foram confirmados nos seus cargos.

A escolha de Maria de Lurdes Rodrigues, feita pelo primeiro-ministro, foi conhecida a 9 de Janeiro. A nova presidente assumirá funções a partir de 1 de Maio próximo.

A designação ocorre na sequência do anúncio de Rui Machete de se retirar das funções que ocupa para permitir uma reno-vação. Em entrevista ao jornal Público, Rui Machete considerou que “a decisão de sair da FLAD não foi fácil”, pois “25 anos não são três dias”. O actual presidente qualifi-cou ainda, na sua entrevista, a actividade desenvolvida pela Fundação ao longo des-tes vinte e cinco anos como “uma história de sucesso”, tendo destacado o papel da

FLAD como uma instituição não governa-mentalizada e com uma relação correcta com a representação diplomática norte-americana em Lisboa. Sublinhou que a FLAD tem hoje um património avaliado entre os 165 e os 170 milhões de euros e que evidencia no seu currículo um vasto trabalho de apoio à promoção do desen-volvimento económico, cultural e social do País. Para o futuro vê a FLAD “a desenvol-ver-se, a progredir”.

Conhecida a designação da nova presi-dente pelo primeiro-ministro, Rui Machete disse que “Maria de Lurdes Rodrigues terá todas as capacidades para o lugar”. Afirmou desde logo reconhecer na antiga ministra duas qualidades importantes: “seriedade” e “persistência”.

A acompanhar Maria de Lurdes Rodrigues continuarão Charles Buchanan (elemento do CE desde 1988) e Mário Mesquita (que integrou o CE em 2007).

Rui Machete permanecerá no cargo até Maio próximo, com o objectivo de acom-panhar as diversas iniciativas que marcarão as comemorações dos vinte e cinco anos da Fundação.

BREVES

A nova presidente do Conselho Executivo, Maria de Lurdes Rodrigues, assumirá funções

a partir de 1 de Maio.

LUSA

O Conselho Executivo da Fundação Luso-Americana cujo mandato termina no mês de Abril.

RUI OCH

ÔA

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Rui ChAnCERELLE dE MAChEtE

No Termo de Um Longo Mandato

‘Chegou, contudo, a altura de pôr um ponto final nesta minha ligação tão umbilical e afectuosa com a Fundação. ’

A vida de todo o ser humano é uma aven-tura que se vai desvendando no tempo. Em cada momento há oportunidades para o exercício da liberdade e tomada de inicia-tivas e, também, constrangimentos deriva-dos das coisas e, sobretudo, da acção dos homens.

Passei os últi-mos vinte e cinco anos dedi-cando par te importante da minha activida-de à Fundação Luso-Americana

para o Desenvolvimento. Poderei mesmo dizer que vivi com paixão o projecto que ela propõe.

Quando nela ingressei, esta era pratica-mente apenas um Decreto-Lei e um cifrão, mais modesta do que o seu património actual. Tinha, porém, uma missão, talvez demasiado vaga e ambiciosa mas, por isso mesmo, entusiasmante. Foi, ao longo dos anos, crescendo em obras e multiplicando--se em intervenções. Graças ao esforço dos que nela têm trabalhado, tornou-se uma instituição prestigiada, cuja participação em iniciativas relevantes para o progresso da sociedade portuguesa é frequentemen-te requerida. Outros, porém, melhor do que eu, avaliarão com imparcialidade a sua contribuição.

Chegou, contudo, a altura de pôr um ponto final nesta minha ligação tão umbilical e afectuosa com a Fundação.

Faço-o, após longa reflexão, consciente de que o afastamento não será indolor para mim, mas é útil para ambos.

Para a Fundação, porque experimentar outras pessoas ao leme, numa pessoa colec-tiva de tão largo espectro vocacional, per-mitirá descobrir novas formas de realização dos seus fins estatutários e afirmar novas potencialidades; para mim, porque, para além de um certo cansaço e entediamento em porfiar nas mesmas batalhas contra quem, americanos ou portugueses, não com-preende a necessidade vital de uma Fundação autónoma na sua gestão, embora sempre cooperante e transparente, ainda tenho a veleidade de julgar poder cumprir na vida alguns sonhos que gostaria de realizar.

Aguardo confiadamente que a Fundação, prosseguindo os objectivos que lhe foram atribuídos, granjeie um reconhecimento cada vez maior e mais alargado pelo seu papel na sociedade portuguesa.

A todos, e foram muitos, desde os cola-boradores mais próximos, aos que apenas ocasionalmente trabalharam connosco, quero, do coração, agradecer quanto fize-ram em benefício da Fundação e dos fins que prossegue e, de um modo particular, a constância e lealdade do vosso empenha-mento.

EditORiAL

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Raridade Bibliográfica

“Esta obra é a primeira edição destinada ao grande público base­ada nos ‘Anais da Família Dabney no Faial’, uma obra que Maria Filomena Mónica considera ser ‘uma raridade bibliográfica’. Trata­­se de uma das obras mais relevantes sobre as relações entre Portugal e os EUA e entre os Açores e o estado norte­americano do Massachusetts, elaborada por Roxana Dabney. […]Mário Mesquita, administrador da Fundação Luso­Americana, salientou que o lançamento do livro em português pretende ‘alargar a um público mais vasto uma obra fundamental que permanecia acessível apenas a eruditos e investigadores’ e ‘[…] espera que as dimensões pouco superiores a um livro de bolso desta edição, a cargo da Tinta da China, possa permitir uma

aproximação mais fácil dos leitores’.”[ Lusa – 15 de Setembro, Francisco Ribeiro ]

Preservação do legado

“É, por isso, relevante a iniciativa e apoio financeiro da Fundação Luso­Americana para o Desenvolvimento à edição pela ‘Tinta da China’ do livro, quase de bolso, ‘Os Dabney – Uma família ame­ricana nos Açores’, coordenado pela historiadora Maria Filomena Mónica lançado em Ponta Delgada. A FLAD pretende, com esta edição, ‘reforçar a importância deste tipo de trabalhos e promo­

ver o enriquecimento e preservação do legado que os Dabney deixaram em Portugal e a sua influência enquanto família ame­ricana repartida entre Boston e os Açores’.” [ Correio dos Açores – 16 de Setembro, João Paz ]

Entreposto Comercial

“(Os Dabney) transformaram a pequena ilha do Faial num autên­tico ‘entreposto comercial’ quando, no século XIX, foram inter­rompidas as relações comerciais entre os EUA e a Inglaterra. Esta família, que gerou quatro cônsules norte­americanos, esteve também ligada à actividade da baleação nos Açores, introduzin­do no arquipélago algumas das tradições dos baleeiros da Nova Inglaterra.” [ A União – 17 de Setembro ]

Trabalho quase doloroso

“A obra original – ‘Anais da Família Dabney no Faial’ – resulta de um trabalho de compilação de cartas, diários pessoais e artigos na imprensa regional de uma das descendentes, Roxana Dabney. O resultado forma três volumes e 1797 páginas. Mário Mesquita queria chegar ao grande público e desafiou Filomena Mónica. A historiadora trabalhou com Paulo Silveira e Sousa, investiga­dor que teve ’um trabalho quase doloroso’ – cortar para dar forma às 530 páginas. A FLAD quer agora avançar para uma edição em inglês para divulgar a presença dos Dabney nos

Açores nos EUA.”[ Diário de Notícias – 19 de Setembro, Marina Almeida ]

Centro do mundo

“O Faial e a Horta, cenário quase permanente dos ‘Anais’, aparecem­nos ali como centro de um mundo – o amplo mundo dos Dabney que, sem telégrafo e com navegação à vela, ia dos Estados Unidos da América a Valparaíso no Chile, ao norte da

revistA De imprensApor Ana maria silva*

Sam Longfellow, amigo dos Dabney, fez muitos desenhos sobre os açores. aqui retrata a Horta.

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Europa e às Canárias. Nessa medida, perpassam ali as lutas liberais portuguesas, a guerra da secessão norte­americana, muito da história mundial dos três primeiros quartéis do sécu­lo XIX […] a demonstrar que a centralidade destas ilhas, mais do que a sua localização geográfica, decorre sobretudo da cul­tura, do empreendedorismo e da capacidade de relacionamen­

to externo de quem nelas vive.” [ Açoriano Oriental – 23 de Setembro, Álvaro Monjardino ]

Importância dos arquivosfamiliares

“Os Dabney viveram na Horta entre 1804 e 1892. Os anais desta interessante e cosmopolita família americana foram organizados por Roxana Dabney (1827­1913). Uma antologia da tradu­ção portuguesa destes anais acaba de ser publicada. ‘Os Dabney: Uma Família Americana nos Açores’ tem a coordenação de Maria Filomena Mónica e o apoio da Fundação Luso­Americana para o Desenvolvimento. Um livro que nos chama a atenção para a

importância dos arquivos familiares.” [ Expresso – 25 de Setembro, Miguel Monjardino ]

Cartas para unir oceanos

“A antologia Os Dabney, Uma Família americana nos açores acentua a importância do seu singular espólio epistolar. […] Uma hipó­tese de espreitar o universo privado de uma família sui generis atenta e interveniente no seu tempo. E uma memória rara de quando a realidade ainda se relatava por escrito, em estilo pró­prio, em cartas que atravessavam os oceanos.” [ Sol – 30 de Outubro, Filipa Melo ]

Os Senhores das ilhas

“Em 1806, John Bass Dabney, patriarca de uma abastada família de Boston instala­se na Horta como cônsul­geral dos EUA e empresário de excepção. Nos 86 anos seguintes, os Dabney são verdadeiros senhores das ilhas, como prova o surpreendente

legado epistolar em parte divulgado na antologia ‘Os Dabney – uma Família Americana nos Açores’.[ Ler – 1 de Dezembro, Filipa Melo ]

Novos tempos

“O Faial ficou a dever aos Dabney a introdução de regras moder­nas de comportamento, espécies botânicas, maquinaria e o hábi­to do desporto e da vida ao ar livre. […] Paulo Silveira e Sousa, responsável pela edição, explica a razão de ser da antologia: ‘Fazer chegar ao grande público uma obra que, devido à sua extensão, ficaria relativamente ignorada’.”[ Público, Ípsilon – 11 de Dezembro ]

Americanos no Faial

“Em 541 páginas, ‘Os Dabney – Uma Família americana nos Açores’ […] é a história dos americanos que aterraram no Faial e do mundo que lhes entrou pela vida dentro. […] John Bass Dabney transforma­se no rico proprietário de uma frota comer­cial e, uma década depois, parte para a cidade da Horta. A iniciativa de publicar o livro é da Fundação Luso­Americana e do seu administrador Mário Mesquita.”[ Jornal i – 17 de Dezembro, Alexandre Soares ] *LpM

O professor Longfellow que dava aulas aos jovens Dabney desenhou a vida quotidiana nos açores, na segunda metade do século XIX.

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Um e-mail, um sms, um telefonema inter­continental e chegam as notícias, as his­tórias por contar. As imagens na hora, os sentimentos a quente. Há dois séculos uma família americana trocava intensa corres­pondência, numa cadência quase impen­sável para o ritmo actual. Viveram em pleno Atlântico, na ilha do Faial, Açores, entre 1806 e 1892. As cartas iam e vinham de barco. Demoravam meses na viagem, na notícia, na resposta. Eram manuscritas na toada dos acontecimentos e das esta­ções – e por vezes acabadas à pressa a tempo de chegar ao correio flutuante pres­tes a zarpar do porto. Os Dabney trocaram centenas de cartas. Roxana, uma das últi­mas descendentes a viver nos Açores, empreendeu a tarefa de as reunir. Nasceram os anais da Família Dabney: três volumes e 1797 páginas. Contam muito mais do que episódios da vida doméstica: são um documento precioso para entender a vida daquela época nos Açores.

Dezenas de e-mails trocados depois e do outro lado da linha telefónica está Arthur Lothrop. Tem sangue Dabney na família e um enorme entusiasmo nas palavras. É o conservador do arquivo dedicado à famí­lia, existente no Luso Centro do Bristol Community College (BCC), em Fall River, Massachusetts (EUA). Lá estão dois origi­nais dos cem existentes dos anais – um livro com circulação restrita na família –, (outras) cartas, desenhos da época, ilumi­nuras. Até um pequeno capote, traje típi­co das mulheres açorianas, “muito rústico, como se tivesse sido feito para uma bone­ca”. Lothrop, 67 anos, guarda­os. Quer que as gerações mais novas saibam ler estas “magníficas” histórias e que, tal como ele, se deixem transportar até ao Faial de há cento e cinquenta anos.

“É divertido imaginar. Imaginar como eles viviam naquela época, o que vestiam,

POR mArinA ALmeiDA

os Dabney:da correspondência

se faz história

William henry Dabney (1817-1888) no jardim de sua casa.

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o que faziam no Natal. Os escritos dos Dabney eram muito detalhados. Foi assim que me interessei pela história da família”, resume do outro lado da linha. “É muito invulgar um século de história baseada nas histórias de uma família”. Arthur deve estar a sorrir. Este homem é um Hickling – uma família de primos dos Dabney, que também viveram nos Açores, em São Miguel – foi trabalhar para o BCC, onde há uma forte comunidade açoriana, “por acaso”. Uma “funny coincidence”, diz diver­tido. Ainda não sabia que a sua própria famí­lia tinha passado por Portugal.

Entretanto chegou­lhe às mãos uma caixa de um dos seus familiares. Lá dentro estava o livro Saudades da pr ima Frances S. Dabney – que pertence à última geração a viver no Faial e deixou a ilha com 18 anos (em 1874). Aos 40, já em Boston a viver com duas irmãs, ela sabia bem o significado dessa palavra tão por­tuguesa: as saudades falaram mais alto e ela escreveu. Tal como os anais, poucos volumes e de circulação na família.

Tinha “uns 20 e tal anos” quando conhe­ceu José Costa, o (português) director do Luso Centro. “Trouxe­lhe uma cópia de

Saudades. Ele ficou muito espantado”, conta Lothrop. Eles não sabiam, mas era a semente do arquivo Dabney. Em 2004, quando se reformou, Lothrop já aprende­ra a ler as histórias daquela família ame­ricana (a sua) e queria passá­la às novas gerações. “Nessa altura tinha muitos des­ses livros no meu sótão e não estavam lá a fazer nada”, conta. Arranjaram “uma sala, uma secretária e umas estantes” e nasceu o arquivo, conta José Costa.

“O que estamos a fazer é a divulgá­lo junto dos estudantes. Há uma comunida­de portuguesa muito forte e queremos cativar os jovens para que eles possam ler, interpretar e perceber como foi a vida naquela época”, explica o conservador.

Ainda ao telefone, Lothrop recebe a notí­cia: foi lançada nos Açores uma antologia dos Dabney, com uma selecção de cartas dos anais. “A sério? São excelentes notí­cias!”, diz. A Fundação Luso­Americana

A Fredónia foi comprada pelos Dabney à Cable and Wireless por 75 mil escudos.hoje é um infantário, mas no seu interior permanecem vestígios da construção original.

‘neste, como noutros casos, trata-se de preservar o património escrito e iconográfico e de o divulgar de maneira eficaz. ’ maria Filomena mónica, Historiadora

A bagatelle foi a primeira casa da família.hoje está ao abandono.

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– que apoiou a edição – vai agora avançar para uma edição em inglês para chegar a esse lado do oceano. “Óptimo! Assim já posso ler”, exclama.

um Livro, DuAs eDiçõesOs Dabney – Uma Família americana nos açores, foi lançado em Setembro numa belíssima e arriscada edição da Tinta da China. O volume de 530 páginas é uma edição seleccionada a partir do original pelos historiadores Maria Filomena Mónica e Paulo Silveira e Sousa. “Tenho recebido algumas [reacções]: 100 por cento favo­ráveis” diz Maria Filomena Mónica, coor­denadora do livro e autora do prefácio.

Os anais da Família Dabney no Faial são um conjunto de cartas, diários pessoais e artigos publicados na imprensa regional. Inicialmente apenas disponíveis na língua original e com circulação restrita na família, o livro de Roxana Dabney recebeu uma tradução inte­gral para português pela mão do Instituto Açoriano de Cultura em 2005. Para Mário Mesquita, administrador da FLAD, este novo livro “está longe de ser um enfadonho calha­

maço de história e tem uma respiração pró­pria conforme o autor”. A edição em inglês, para divulgar nos Estados Unidos, deverá estar concluída dentro de um ano. Paulo Silveira e Sousa e Maria Filomena Mónica preparam­se para mergulhar novamente no mundo dos Dabney.

“O mais difícil, mas também o mais ali­ciante, vai ser a obrigação de estudar a História dos Estados Unidos, a qual é rela­tivamente pouco conhecida em Portugal, se comparada com a de outro qualquer país europeu. Como já sucedeu na edição portuguesa, será árduo cortar partes que, numa primeira leitura, nos parecem interes­santes, mas que, se quisermos, como que­remos, que a obra tenha uma difusão alargada, terão de ser postas de lado”, apon­ta Maria Filomena Mónica. Paulo Silveira

e Sousa, a quem coube a “dolorosa” tarefa de selecção na versão portuguesa, acredita que, “desta vez, a selecção e as notas vão ser uma tarefa mais difícil, pois haverá que ter sempre em mente uma espécie de leitor americano imaginário”. Há, porém, trechos obrigatórios: “Penso que os episódios mais interessantes nesta nova edição são aqueles que se relacionam com a Guerra Civil norte­americana. Entre 1861 e 1865, o esforço militar de ambas as partes foi enor­

A família de americanos tinha paixão pela natureza e dedicava-se a actividades ao ar livre.

‘um museu Dabney não poderá ser uma casa apenas destinada a albergar as recordações desta família ou do período em que esteve nos Açores. […] Deveria ser capaz de albergar os cruzamentos que o arquipélago sempre desenvolveu com as duas margens do Atlântico. ’ paulo silveira e sousa, Historiador

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me, tal como a destruição provocada. As cartas e os diários dos Dabney mostram­nos como o conflito era percepcionado e dis­cutido entre uma família de protestantes unionistas de Boston que sempre se mani­festaram contra a escravatura. O conflito entre o norte e os confederados, a sul, não se ficou pelo território americano. O Atlântico seria também o palco para vários conflitos navais”, refere.

E se pudesse falar com um Dabney qual escolheria? O investigador, que já leu de fio a pavio os escritos insulares, admite que “os Dabney eram todos um tanto sisudos. Muito cultos e curiosos, mas se calhar um tanto pedantes e livrescos ao primeiro olhar”. Mas acede ao desafio: “gostava de conversar com uns Dabney já tardios, que quase não constam nos anais e nesta nossa edição, mas que foram exce­lentes fotógrafos e deixaram álbuns fan­tásticos. Hoje, uns estão na Biblioteca Pública e Arquivo Regional da Horta e outros no Whale Museum de New Bedford. Acho que iríamos falar de fotografia e de botânica e estou certo de que eles conhe­ceriam todas as denominações das plantas em latim.”

o “séCuLo DAbney”Foram três os cônsules Dabney que vive­ram na Horta ao longo de oitenta e seis anos: John Bass Dabney, Charles William Dabney e Samuel Willis Dabney. Apesar de representantes dos Estados Unidos nos Açores, não se limitavam à actividade diplomática como hoje a conhecemos. Dedicaram­se às actividades comerciais pois a localização estratégica do porto da Horta não passou despercebida e o clã – pri­meiro orientado por um metódico John Bass – colocou a ilha no centro de um certo mundo. Exportavam laranjas, vinho do Pico, óleo de baleia (usado para ilu­minação, como o petróleo). Quando dei­xaram a ilha, definitivamente, em 1892, o seu legado não se apagou. Ficaram as casas (texto anexo), o nome de uma rua, um recanto no cemitério da Horta. E uma grande curiosidade em torno daquela época e daquela família que se instalou numa ilha recôndita.

Filomena Mónica ajuda a situar­nos: esta família estava “no topo do topo, eram a elite [em Boston] e vieram instalar­se numa ilha pobre” trazendo consigo novos hábitos, novos negócios e uma inusitada dinâmica. Uma espécie de “ilha dentro da

ilha” e três gerações que não passaram despercebidas a Ricardo Madruga da Costa, ainda estudante “no velho Liceu da Horta”. O agora historiador e autor de vários tex­tos sobre os Dabney não hesita em definir o século XIX no Faial como “o século Dabney”. E explica porquê: “A história do Faial confunde­se de um modo inextricá­vel com a própria história do seu porto localizado na cidade da Horta. Assim, dada a omnipresença dos Dabney em tudo o que envolvia a actividade portuária – mes­ mo de uma forma quase exclusiva duran­te algumas décadas do período em que residiram na ilha – compreende­se que o seu nome surja sempre associado ao que de mais relevante ocorreu na sociedade e na economia da ilha e do arquipélago nesta época.”

Dos três, o que mais marcou os faialenses foi precisamente Charles William, o segun­do cônsul. Chegou à ilha com 13 anos, cresceu no Faial e aprendeu português, derrubando a barreira linguística da pri­meira geração. Terá seguido os bons con­selhos do pai e fez florescer os negócios mas não esqueceu os faialenses. Contam os escritos, Charles W. pagou do seu bolso vários carregamentos de cereais para impe­

dir a população de morrer à fome. “They called him the father of the poor” (“cha­mavam­lhe o pai dos pobres”), ficou gra­vado, até hoje, na sua pedra tumular. Charles e outros 13 descendentes dos Dabney estão sepultados no Cemitério do Carmo, na Horta. O reconhecimento (visí­vel) da sociedade açoriana ficou expresso nas pedras dos mortos. Em 1863, a Câmara da Horta doou um talhão do cemitério à família. Lá está, na parede: “a Mr. Carlos Guilherme Dabney e sua família pela sua philantropia e actos de dedicação aos habi­tantes do districto da Horta”. A placa em português. Todas as nove lápides em inglês. E a erva, que cresce.

vista do pico do porto da horta, cenário de intensa actividade comercial dos americanos no século xix.

‘Defendo que o património edificado pelos Dabney deveria ser preservado, em particular a sua primeira residência, a bagatelle.’ ricardo madruga da Costa, Historiador

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Não se vê na planta da Horta, mas a Rua de São Paulo é estreita e docemente inclinada – não fora esta uma ilha “pen­durada” num vulcão. Procuramos a míti­ca Bagatelle, a primeira casa dos Dabney no Faial, aquela que faz brilhar os olhos dos investigadores e encher as palavras dos curiosos. Quer pela família e vida algo vistosa que alojou, quer pela con­trastante degradação – que ninguém parece conseguir travar. Sabíamos que o jardim da casa estava transformado numa espécie de “selva amazónica” mas sem­pre acreditámos que aquelas palavras seriam algo exageradas. Assim, chama­

nos a atenção o verde descontrolado de árvores e arbustos que surge por cima de um muro alto e antigo. Procuramos um rasgão naquela parede coberta de líquenes e vegetação. Há um portão de ferro, fechado, onde se acumulam folhas. Do outro lado, uma enorme sombra. As árvores, os arbustos, toda aquela vida que os Dabney semearam cresce sem dono. De tal maneira que é impossível ver uma tira que seja do cor­de­rosa da casa. Está um gato preto, vadio, do lado de lá do portão. Tem caixas com restos de comida que algumas vizinhas cúmplices lhe deixaram. É o guardião daquela

impressionante explosão de natureza no meio da cidade.

Há pouca informação sobre a Bagatelle dos dias de hoje. A casa foi erguida entre 1812 e 1814 e terão vindo dos Estados Unidos carpinteiros e madeira para con­cretizar aquela construção que durante anos terá mobilizado as atenções na Horta. Charles William escreve ao irmão e alvitra: “A nossa casa Bagatelle vai de vento em popa e, quando pronta, será a maior e mais agradável do Faial.” Na mesma época escreve à mãe a pedir­lhe que lhe envie sementes e plantas. O resul­tado… está à vista.

As casas e as árvoresque (não) falam

A baía da horta foi palco de conflitos navais em oitocentos.

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A Bagatelle foi vendida em 1892 à famí­lia açoriana Goulart de Medeiros (hoje já está noutras mãos). Conta­se que a casa, onde foi rodado o filme Mau Tempo no canal, é agora abrigo de marginais. Está à venda por um preço “exorbitante”. Consegue ver­se o telhado e pouco mais a partir da avenida Marginal e de outros pontos da cidade. É enorme, mas se ninguém lhe deitar a mão, um dia vem abaixo.

Melhor sorte tiveram a Fredónia e a Cedars. Ou mesmo a ruína do Monte da Guia, sobre a baía de Porto Pim. Da ruína deverá nascer uma nova casa, “com o aspecto da original”, que vai receber um

núcleo museológico destinado a contri­buir para o conhecimento científico das ilhas dos Açores”, disse o secretário regio­nal do Ambiente, Frederico Cardigos, no final da apresentação da antologia dos Dabney.

A Cedars, segunda casa da família ame­ricana no Faial, foi construída em 1851. No topo da Rua Cônsul Dabney, esquina com a Marcelino Lima, está resplande­cente. Tem um jardim cuidado com dedo de arquitecto onde se impõe, numa cota superior, uma magnífica e secular bela­­sombra, que apetece fazer falar. Hoje é a residência oficial do presidente da Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Tem bandeiras a esvoaçar, segurança vinte e quatro horas por dia e acesso restrito, com visitas guiadas por marcação. Maria Antónia já fez algumas. Bem­disposta, toca a ruidosa campainha antes de entrarmos. A incursão na casa é ao nível do primeiro andar, na zona social. Os quartos, no piso superior, ficam na devida intimidade. Num primeiro olhar, na imediata impressão, é como se visitássemos uma vulgar casa remodelada. Mas um olhar mais atento deixa­nos perceber que a tinta, o verniz e as mobílias renovadas não apagam a alma dos Dabney. Lá está o chão de tábua (debruado a basalto na sala de jantar), os batentes em ferro nas portas, os resquícios daquilo que terá sido um “sistema de ven­

tilação próprio” – hoje ar condiciona­do – e a enorme pedra da “boca” de um forno que se adivinha imenso, à medida de uma família grande, na cozinha. Mas o que deslumbra são as magníficas janelas de guilhotina, em três níveis. Maria Antónia tenta abri­las para acedermos ao apetecível terraço com vista sobre a cida­de, o porto e o Pico. Ao piano de cauda apetece­lhe ganhar vida e recordar as noi­tes de música e festa.

Esta Cedars deixou uma espécie de “des­cendência” na ilha. Isto porque as janelas hexagonais – as chamadas bay window –, que dominam as fachadas laterais, foram

depois reproduzidas noutras casas. De resto, explica a guia, “esta casa é conhecida entre os faialenses como a Cedars House, mas ninguém a conhece como a casa dos Dabney”. Uma espécie de conjunto de palavras sem significado.

Descendo a Rua Cônsul Dabney, ao número 60 corresponde uma outra casa da família. Esta sim, cheia de vida e de cheiros. Ouvem­se risos e con­versas de crianças, cheira a sopa na Fredónia – hoje Lar das Criancinhas da Horta. Eduardo Pereira, director desta ins­tituição particular de solidariedade social fundada em 1951, conta que “a Fredónia foi comprada, nos anos 70, por uma ins­tituição que albergava crianças órfãs, à Cable and Wireless [uma das companhias que instalou os cabos submarinos de comunicações na Horta] por 75 mil escu­dos” e, apesar do fim da manhã atarefada como é hábito numa casa cheia, leva­nos numa visita. Conta que em 1996 o pala­cete foi sujeito a obras que dividiram alguns dos grandes salões dos Dabney em salas de aula ou refeitórios mais modestos – trabalhos que acompanhou de perto. Um milhão de euros de obras que não apaga­ram todos os vestígios do passado. O chão em xadrez preto e branco recebe­nos à entrada, outra vez as janelas de guilhotina, o soalho de tábua corrida nos pisos supe­riores. E as duas imponentes lareiras de ferro – quase anacrónicas nas salas com mesas, cadeiras e meninos pequeninos. Eduardo Pereira vai dizendo que a casa teve que se adaptar às novas funções e que também o sismo de 1998 obrigou a novos ajustes. Explica­o enquanto percorremos corredores de tijoleira fresca que nos

levam às cozinhas modernas, onde domi­nam o aço inox e as afanosas funcionárias de avental e touca. Não deixa de ir fazen­do as pontes (possíveis) com o passado: “Queremos recuperar a fachada e aproxi­má­la ao que era dantes.” Talvez para o ano. No exterior, o jardim onde reina uma árvore que dá sombra a uma zona do par­que infantil. Mas rezam os relatos que no jardim dos Dabney existia uma alameda de sobreiros e uma imponente araucária excelsa (daquelas que gostam de tocar o céu). As fotos da época mostram um desa­linho de verde, que foi apagado. Sobram aqui e ali dragoeiros, no meio do alcatrão do pátio da entrada. “O jardim foi todo alterado, tinha um lago e mais árvores”, resume Eduardo Pereira – chamado de quando em vez a regressar ao passado. “Há três ou quatro anos” recebeu, tam­bém, duas netas dos Dabney para uma visita guiada. Despede­se e volta aos comandos do lar, no computador. A vida segue na Fredónia. mA

‘A Cedars, segunda casa da família americana no Faial, é, hoje, a residência oficial do presidente da Assembleia açoriana. ’

o jardim da casa Fredónia.

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[Paralelo] No prefácio da antologia Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores, Maria Filomena Mónica cita vários relatos de via-jantes que passaram pelo Faial no século XIX. De que maneira se aproximam ou distanciam dos Anais de Roxana Dabney, seleccionados e reunidos neste livro?[Maria Filomena Mónica] Antes de entrar no relato de Roxana, quis dar ao leitor moder­no a possibilidade de conhecer esta família e como ela se relacionava com os habitantes da ilha. Os Dabney viveram no Faial o tempo suficiente (três gerações, um século) para terem uma visão lúcida, mesmo se distante ou por vezes sobranceira, dos faialenses. De facto, gostavam de lá viver. O trágico con­siste em não terem podido legar quase nada à ilha, porque a distância entre o analfabe­tismo local e a cultura de onde provinham era profunda. Por outro lado, no Faial não havia escolas para os Dabney educarem os filhos, de maneira que os pais os enviavam para as escolas, primárias e superiores, de Boston (uma delas pertencente a Harriet Beecher Stowe, a autora da famosa obra, a cabana do pai Tomás, seguindo depois para a Universidade de Harvard). Este tipo de edu­cação e o facto de não se terem casado com locais aumentou a distância relativamente à comunidade. Do ponto de vista de uma possível modernização da economia da ilha, o que deixaram foi pouco, até porque eram negociantes. O Faial era um entreposto comercial, não a base de uma qualquer indústria.

[P] Um dos temas que atravessa o livro é o precon-ceito. Como é que as diferentes culturas reagem umas perante as outras?[MFM] Como quase todos os relatos de estrangeiros que visitaram os Açores provêm de protestantes chegam­nos eivados de alguns preconceitos (o mesmo se passaria

POR susAnA neves

“é preciso não confundir os Dabney com missionários”

Maria Filomena Mónica que, juntamente com paulo Silveira e Sousa, seleccionou os textos e prefaciou Os Dabney – Uma Família americana nos açores,

fala-nos do seu trabalho.

no prefácio do livro, maria Filomena mónica cita vários relatos de viajantes.

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se o inverso fosse o caso). Seja como for, estes tendiam a pensar que era a religião católica que provocava o atraso. Nisto, há uma parcela, mas só uma parcela, de ver­dade, uma vez que muitos outros factores explicam o subdesenvolvimento do Portugal oitocentista. A parte em que tinham razão está relacionada com a ênfase posta na lei­tura da Bíblia pelas comunidades protestan­tes, o que não sucedia com as católicas, onde bastava saber o catecismo de cor.

[P] Relativamente a Roxana Dabney (1827--1913) sabe-se muito pouco…[MFM] Sobre Roxana Dabney só se sabe o que ela diz ou o que deixa ver. Ela tem orgulho na família, isso é certo. Mas é pre­ciso recordar que foram as sobrinhas que a incentivaram a recolher e guardar o material memorialístico. Esta tradição – a de guardar os papéis da família – quase não existe em Portugal, o que é negativo. Os anais surgem devido ao brio familiar e não por razões genealógicas, embora os Dabney estivessem convencidos que descendiam da aristocracia francesa, os d’Aubigné. Roxana Dabney reu­niu os papéis para ilustração da família, não para um público em geral.

[P] Roxana Dabney destaca a personalidade exem-plar de Charles Dabney mas a sua filantropia não é consensual entre os leitores dos Anais.[MFM] Alguns açorianos têm dificuldade em reconhecer o carácter filantrópico das acções dos Dabney. Estes eram ricos, cultos e… generosos. Em momentos de crises de abas­tecimento, como sucedeu durante a década de 1850, quando houve fome um pouco por todo o lado, o Governo de Lisboa não tinha meios para alimentar as populações do Continente, quanto mais a das ilhas. Depois de terem aberto um peditório em Boston, os Dabney mandaram vir barcos com trigo dos Estados Unidos, a expensas suas. Outro factor que nem sempre está presente, na avaliação do que fizeram ou deixaram de fazer, é que eles estavam no Faial para fazer negócios. Os Dabney eram empresários, ou seja, gente que buscava o lucro: não tinham ido para lá como missio­nários. É preciso ainda recordar que a esco­lha do Faial foi determinada porque eclodira uma guerra [entre a França e a Inglaterra]. Não podendo dar continuidade aos seus negócios em França, John Bass Dabney, o primeiro a instalar­se nos Açores em 1804, optou por ir viver para aquela ilha, situada a meio do oceano, ideal para o comércio interatlântico.

[P] A religião dos Dabney era o unitarismo, depois aceitam o transcendentalismo de Emerson pelo qual se defendiam “as virtudes do individualismo”. Em que medida, esta família que em grupo deixa os Açores em 1892, era uma família de indivíduos?[MFM] A família era coesa, mas havia dissi­dentes. Por exemplo, Nancy casou com José Maria de Avelar Brotero, coisa de que ini­cialmente a família não gostou. Este acabou por se revelar um homem com enormes capacidades, tendo até sido ele a fundar a primeira Faculdade de Direito no Brasil. É divertido verificar o que o filho de Nancy, João, escreveu a um amigo quando foi à Horta, a fim de visitar os pri­mos: a troça que faz da sua mania da ginástica, as observa­ções sobre o rigor como eram educados, a atitude em relação ao seu puritanismo, o que, na sua opinião, tornava o quotidiano daquela família ame­ricana insuportavelmente aborrecido.

[P] Apesar do negócio estar quase sempre acima de tudo, até da política, durante a Guerra Civil, Charles William Dabney, segundo cônsul, rejeita vender carvão aos navios sulistas. Quem era afinal Charles Dabney?[MFM] O facto de o Sul afirmar a necessi­dade de trabalho escravo nas plantações nunca convenceu Charles Dabney, que apoiou o filho, quando este optou por se alistar no exército da União. Do ponto de vista da religião, a família seguia o unita­rismo, uma fé progressista típica dos patrí­cios bostonianos.

[P] O norte-americano Joseph C. Abdo, autor de um livro sobre os Dabney (On the Edge of History, Tenth Island Editions, 2006) aponta o crescimento da família como um dos factores de perda de qualidade de vida e o dese-jo de regressar aos Estados Unidos. Qual a razão da partida dos Dabney?[MFM] O regresso dos Dabney ficou a dever­se à inovação tecnológica. A passa­gem da vela para o vapor, a perda de dina­mismo face a um rival poderoso, os

Bensaúde, uma família judia com interes­ses no carvão e finalmente o aparecimen­to da doca de Ponta Delgada, que começou a ser construída entre 1862 e 1863. Os Dabney aperceberam­se que não poderiam vencer os Bensaúde nem fazer com que a Horta suplantasse Ponta Delgada. E deci­diram partir. Na regata oferecida pelos habitantes da Horta [24 de Junho de 1891] vê­se que a população estava grata à família. Infelizmente, a memória da sua presença é hoje ténue. Quando o livro foi lançado no Faial, a jornalista do Diário de Notícias, Marina Almeida, foi ao cemitério local [do Carmo] e já ninguém sabia, nem o coveiro, onde estavam os túmulos dos Dabney.

maria Filomena mónica: a família Dabney era coesa, mas havia dissidentes...

‘Alguns açorianos têm dificuldade em reconhecer o carácter filantrópico das acções dos Dabney. estes eram ricos, cultos e… generosos. ’

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É para mim uma honra e um prazer apresentar­vos uma iniciativa cultural da FLAD que consiste na publicação do livro Os Dabney – Uma Família americana nos açores, bela edição de capa dura e formato quase de bolso com que a Tinta da China nos brindou. Trata­se de uma antologia da obra monumental intitulada annals of the Dabney Family in Fayal composta por três volumes, com quase duas mil páginas. John

Bass Dabney foi nomeado cônsul nos Açores pelo Presidente Jefferson, no ano de 1806. Durante três gerações os membros da família Dabney assegura­ram a representação diplomática dos Estados Unidos da América nos Açores. Os Dabney não se limitaram, porém, a exercer influência política. Foram grandes homens de negócios. A sua prosperidade relaciona­va­se sobretudo com o mar e o comércio marítimo: foram armadores e proprietários de navios para transporte de passageiros e mercadorias entre a Nova Inglaterra e os Açores; dedicaram­se à venda de produtos americanos a barcos europeus e vice­versa e à exportação de laranjas e de vinho do Pico. Eram, naquele tempo, a principal força económica das

ilhas. Poderia dizer­se que os Dabney desempenha­ram nos Açores de Oitocentos um papel semelhan­te ao que os Bensaúde representaram para o Arquipélago no século XX. Os anais foram compi­lados no final do século XIX por Roxana Dabney que reuniu nesta obra uma selecção dos principais documentos da família, repartida entre a América e Portugal, Massachusetts e os Açores, Boston e a Horta. Não são um livro açoriano, nem português, nem bostoniano, nem americano. São tudo isso ao mesmo tempo. E é isso que faz o seu fascínio. Roxana reuniu uma vasta colecção de cartas, diários, artigos e outros textos escritos pela família dos dois lados do Atlântico. Dela consta a descrição de revol­tas populares e bailes burgueses, de batalhas marí­timas e passeios campestres, de erupções vulcânicas ou de problemas particulares da família, de refe­rências à Guerra Civil Americana ou à presença nos Açores dos exilados liberais.

Os anais da Família Dabney no Faial são uma obra poli­fónica em que se manifestam as vozes dos membros da família, dos seus amigos e parceiros de negócios. Com algum exagero, poderia dizer­se que estes anais constituem uma espécie de antevisão da blogosfera no século XIX, uma blogosfera oitocentista mais restrita, culta, ilustrada do que a do nosso tempo.

Ao convidar a professora Maria Filomena Mónica e o Dr. Paulo Silveira e Sousa para prepararem esta antologia – intitulada Os Dabney – Uma Família americana nos açores – o nosso objectivo foi alargar a um públi­co mais vasto o acesso a esta obra fascinante.

Esta edição portuguesa é apenas uma parte da nossa iniciativa. A Fundação Luso­Americana já solicitou aos mesmos investigadores a elaboração de nova antologia, com dimensão semelhante, mas, desta vez, em inglês e tendo em vista leitores luso­des­cendentes ou americanos. Além do valor cultural, enquanto narrativa e fonte histórica, esta “família americana nos Açores” pode transformar­se igual­mente, quero crer, num instrumento de diplomacia cultural, num traço de união entre portugueses e americanos, açorianos e bostonianos. Este artigo é uma edição do texto de apresentação do livro.

*conselho Executivo da FLaD

POR mário mesquitA*

Uma blogosfera do século XIX

Da esquerda para a direita:André bradford, Gavin sundwall, cônsul americano nos Açores, e a vice-cônsul Janett rebert, com mário mesquita no lançamento do livro em ponta Delgada.

DR

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POR áLvAro monJArDino*

Boston Brahmins

Os Dabney – Uma Família americana nos açores é uma obra que se propõe divulgar o que há de porventura mais impressivo nos anais da Família Dabney no Faial, sobre­tudo com vista a quem poderia assustar­se face aos três imponentes volumes da edição que o Instituto Açoriano de Cultura lançou entre 2004 e 2006.

O livro é enriquecido com um excelente prefácio de Maria Filomena Mónica, que nos traz ao Faial do século XIX – um Faial, diga­se, quase exclusivamen­

te descrito por estrangeiros, a quem José do Canto faz excepção. Também não havia grande alternativa, pois só praticamente aqueles escreveram e publicaram sobre o assunto. O prefácio resume ainda a história destes Boston Brahmins, descendentes já americanizados de huguenotes franceses e que, ao longo de três gera­ções, foram proeminentes na sociedade da Horta, onde exerceram funções consulares, mas vivendo e pros­perando de comércio exportador e da actividade de ship-chandler. Releva ainda os intuitos apologéticos de Roxana, neta do primeiro patriarca dos Dabney do Faial, filha do segundo e irmã do último deles, que escreveu para as suas sobrinhas esta história familiar, afinal inacabada, a julgar­se pela declarada intenção da autora de a completar com uma segunda parte o que, tanto quanto se saiba, não chegou a realizar.

O livro inclui também as notas de Paulo Silveira e Sousa, seleccionador dos textos que pareceram mais significativos dos anais. A maior parte dessas notas é biográfica, de pessoas ali referidas, muitas das quais passaram pela casa e pela mesa dos Dabney durante o período que vai do início aos anos 70 do século XIX, mostrando­nos bastante do relevo social, político e até científico de quem cru­zava o Atlântico e se detinha naquele porto e naque­las casas – que várias eram, e em crescendo, tanto na Horta como fora dela.

Cenário quase permanente dos factos revividos nos anais, o Faial e a Horta ressaltam ali, digamos que natu­ralmente, como centro de um mundo – o mundo dos Dabney, que, acentue­se, nunca se circunscreveu aos Açores, porque ia dos Estados Unidos da América a Valparaíso, ao Brasil, ao Norte da Europa e às Canárias. E é nessa medida que no livro perpassa muito da his­tória mundial dos três primeiros quartéis do século XIX, numa perspectiva que, feminina e/ou doméstica, de modo nenhum é provinciana, evidenciando antes como a centralidade destas ilhas, bem mais que a sua localização geográfica, decorre sobretudo da cultura, do empreendedorismo e da capacidade de relaciona­mento externo de quem nelas vive. Este artigo é uma edição do texto de apresentação do livro em Angra do Heroísmo.

*Instituto Histórico da Ilha Terceira/academia portuguesa da História

‘ Cenário quase permanente dos factos revividos nos Anais, o Faial e a horta ressaltam ali, digamos que naturalmente, como centro de um mundo – o mundo dos Dabney, que, acentue-se, nunca se circunscreveu aos Açores.’

álvaro monjardino na apresentação em Angra do heroísmo, terceira.

SARA

PINA

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 201018

‘ Felicitemos os intervenientes e felicitemos a nossa terra que por via dos Dabney ganhou forte protagonismo, reflectido eloquentemente nos Anais da Família Dabney no Faial que agora surgem em conveniente antologia. ’

O pulsar turbulento do Atlântico

Os Dabney – Uma Família americana nos açores, obra que ocupa 533 páginas de um volume graficamente muito bem conseguido e utilizando elementos a denotar sensibilidade artística em consonância com a época em causa, contempla um prefácio da auto­ria de Maria Filomena Mónica sobre o qual não é possível omitir um comentário.

Trata­se, na verdade, de um ensaio que esboça um perfil da Horta recobrindo a época a que se refere a antologia. Não é demais sublinhar que Maria Filomena Mónica, entre os vários exempla­

res de literatura de viagens a que poderia recorrer, convocou aqueles que, porventura, mais objectiva e detalhadamente se debruçaram sobre a Horta da primeira metade de Oitocentos, pese embora a sua visão preconceituosa, nomeadamente quan­do se trata de manifestar opinião em matéria reli­giosa. Referimo­nos ao capitão Boid, secretário do almirante George Sartorius, que aqui perma­neceu aquando da preparação da expedição de D. Pedro, e aos irmãos Bullar, estes e aquele, auto­res de dois livros de viagens que, em meu enten­der, mais fielmente espelham o quotidiano e a sociedade da ilha do Faial na época visada. Acresce, naturalmente, tratar­se de duas obras escritas por quem privou com os Dabney.

Para além do cuidado literário, condicionado pela compreensível economia do texto, esta obra é uma peça da maior utilidade – mesmo imprescin­ dível – para que o leitor se sinta identificado com a leitura que a antologia oferece.

O livro contempla peças essenciais do percurso que Roxana Dabney imprimiu aos seus anais. Mas há um aspecto que esta antologia obriga a desta­car e que acrescenta um valor assinalável a este trabalho. Refiro­me às notas que Paulo Silveira e Sousa, evidenciando notáveis recursos de erudição, foi apondo ao longo das páginas com que foi compondo a antologia. E isto, dito deste modo, parece pouca coisa. Só que, na verdade, a profusão das anotações e a riqueza da informação que estas contemplam, fazem deste exercício crítico um contributo merecedor do maior apreço.

Felicitemos os intervenientes e felicitemos a nossa terra que por via dos Dabney ganhou forte protagonismo, reflectido eloquentemente nos anais da Família Dabney no Faial que agora surgem em con­veniente antologia, mas a revelar de igual modo, como já escrevemos, “[…] o pulsar turbulento do Atlântico […] fazendo do Faial uma terra de vanguarda e um entreposto indispensável à eficaz ligação das margens deste oceano, cobrindo todas as direcções”. Este artigo é uma edição do texto de apresentação do livro no Faial.

* Historiador

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ricardo madruga da Costa: “[o livro é] um ensaio que esboça um perfil da horta recobrindo a época”.

POR riCArDo mADruGA DA CostA*

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Os Açores do outro lado do espelho

A família Dabney, que, ao longo de três gerações no decurso do século XIX, formou uma verdadei­ra dinastia consular americana no arquipélago – não obstante representar uma jovem repú­ blica – trouxe para as ilhas, designadamente para o Faial, um sopro de cosmopolitismo que ainda hoje perdura na memória da cidade da Horta. Importa, contudo, aprofundar e caracterizar melhor a natureza desse cosmopolitismo que, doutra forma, não passa de simples cliché e, nesse sentido, ninguém melhor do que Maria Filomena Mónica para nos abrir as portas do mundo dos Boston Brahmins a que os Dabney pertenciam. Trata­se, aliás, de um feliz reencontro, pois conforme a autora do prefácio explica logo de início, foi Mário Mesquita que lhe abriu as portas dos Dabney, com uma série de artigos publicados em 1981 no Diário de Notícias, e foram os Dabney que lhe abriram as portas dos Açores, tendo cabido à Biblioteca Pública de Ponta

Delgada o privilégio de servir de vestíbulo de entrada, pois foi nas antigas instalações da Graça, em 1988, que Maria Filomena Mónica consultou pela primeira vez, ainda em microfi­cha, a velha edição dos annals of the Dabney Family in Fayal compilados por Roxana Dabney, e impres­sos em 1899 para exclu­siva circulação entre os membros da família.

Os Dabney – Uma Família americana nos açores, além de se apresentar como alternativa amigável, na perspectiva do leitor não investigador, às cerca de 1800 páginas em três volumes dos anais da Família Dabney recente­mente publicados pelo

Instituto Açoriano de Cultura, encontra­se prefacia­do por alguém que, devido ao seu afecto e inte­resse pela figura de José do Canto, conhece como poucos o ambiente cosmopolita das elites açorianas do século XIX.

Gostaria de deixar uma nota sobre os novos cami­nhos abertos por este livro para uma reavaliação mais exigente e rigorosa das relações entre os Estados Unidos da América e os Açores, quantas vezes obsessivamente reduzidas ao monismo dos Acordos da Base das Lajes ou à saga da emigração açoriana para o continente americano. Faço votos para que este merecido investimento na divulgação e valorização das memórias de uma família ianque nos Açores do século XIX, possa servir de exemplo e incentivo para que se empreendam iguais dili­gências na recuperação de outro importante lega­do documental familiar, o dos Hickling, cujo espólio se encontra preservado – e em grande parte inédito – nas colecções da Massachusetts Historical Society em Boston.

É tempo de os Açores deixarem de olhar para si próprios só ao espelho da emigração. Tal como Alice, importa também considerar o outro lado do espelho, onde se encontram os Boston Brahmins à espera de serem lidos, estudados e compreendidos para proveito de nós todos. Vistos do outro lado do espelho, os Açores, podem não exibir o seu melhor perfil, mas uma coisa é certa, surgem­nos menos isolados e periféricos do que frequentemen­te julgamos e, mais importante ainda, apresentam um quadro de relações com os Estados Unidos da América que, ao contrário das ideias hoje instaladas, não se processaram num único sentido.

Os Dabney – Uma Família americana nos açores vem­­nos lembrar que os westerlies, os ventos predo­minantes que sopram de Oeste, empurraram primeiro os americanos para os Açores e creio ser chegada a altura, com a publicação deste livro, de começar finalmente a contar essa história pelo princípio. Este artigo é uma edição do texto de apresentação do livro em Ponta Delgada.

* Biblioteca pública e arquivo Regional de ponta Delgada

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Carlos riley: é tempo de os Açores deixarem de olhar para si próprios só ao espelho da emigração.

POR CArLos riLey*

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 201020

PORTUGAL/EUA

Devidamente decorada para o efeito em tons de branco e preto, a sala do Clube Português vestiu-se de gala para receber os cerca de 200 convidados que quiseram prestigiar a organização. Fernando Gonçalves Rosa, vice-presidente da PALCUS, deu ini-cio à cerimónia dando as boas-vindas aos directores da PALCUS ali presentes e que vieram de diferentes estados, aos membros, convidados e amigos.

A representar o congresso nacional esteve o congressista John Larson, do estado de Connecticut. O embaixador de Portugal em Washington DC, João de Vallera, também se deslocou propositadamente a Hartford. Mário Mesquita, da FLAD, salientou a pre-ocupação que deve existir na definição de estratégias próprias num país como os Estados Unidos onde a comunidade se encontra dispersa em diferentes estados.

John Bento, presidente da organização, reforçou o importante papel da PALCUS junto da comunidade portuguesa emigran-te. Bento referiu os problemas que organi-zações deste tipo têm e foi mais longe dizendo que “muitas vezes os maiores ini-migos estão dentro da comunidade”.

A cerimónia prosseguiu com a entrega dos prémios. Foi homenageado Paul Tavares com o prémio de serviço público.

Paul Tavares, filho de açorianos que emi-graram em 1930, tem um longo currículo enquanto político no estado de Rhode Island onde reside um grande número de portu-gueses e luso-descendentes. O prémio para “destaque nacional” foi entregue ao jovem luso-descendente David Leite, autor de um livro sobre gastronomia portuguesa, um discurso emotivo sobre a sua avó portugue-sa que teve uma importância fundamental na sua vida e na decisão de escrever sobre os sabores da cozinha portuguesa.

O prémio para negociante do ano foi entregue a Manuel Eduardo Garcia Vieira oriundo da ilha do Pico. Vieira começou por trabalhar com o seu tio numa explo-ração agrícola, tendo mais tarde adquiri-do o negócio. Hoje é o maior produtor do mundo de batata-doce.

A jovem Pilar Coelho foi galardoada com o prémio “Promessa Nova Geração”. Pilar nasceu em Providence e é filha de emi-grantes originários da ilha Terceira.

E, finalmente, o prémio “Filantropia” foi entregue a José Covas, natural de Trás-os--Montes, pelo trabalho desempenhado junto da sua comunidade em Nova Iorque.

Antes de se encerrarem os microfones, houve ainda tempo para se anunciar a próxima gala: será no portuguesíssimo estado de Massachusetts.

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POR NéLiA ALvEs

O 13.º aniversário da PALCUS (Portuguese-American Leadership Council of United States) comemorou-se num jantar realizado,

no Clube Português da cidade de Hartford, no estado de Connecticut.

PALCUs homenageia luso-descendentes

João Luís Pacheco, presidente da Casa dos Açores da Nova inglaterra, com Pilar Coelho, vencedora do Prémio “Promessa Nova Geração”.

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 2010 �1

[Paralelo] Em dia de aniversário da PALCUS, qual a importância desta organização para a comunidade? [João de Vallera] A PALCUS é uma organiza­ção muito relevante e é fundamental que exista. Organizações desta natureza vão­se fazendo e construindo gradualmente. Não é um trabalho fácil, quando estamos a falar

num território tão vasto como o dos Estados Unidos e com concentrações de comunidades muito distantes entre si. A PALCUS tem um papel importante no processo em que estamos envolvidos de nos conhecermos melhor uns aos outros, de valorizarmos a comunidade luso­ame­ricana e de melhorarmos a sua visibilida­

de neste país. Tal papel pode ser reforçado, e a celebração do seu 15.º aniversário em Washington, em 2011, oferece para tanto um contexto favorável.

[P] Como tem sido a experiência de embaixador nos Estados Unidos?[JV] Nos momentos “bons” incluo, generi­camente, tudo o que fizemos no sentido de reforçar as relações bilaterais e de melhorar a visibilidade de Portugal e a sua imagem nos Estados Unidos. Do lado “menos bom” prefiro falar de desafios. E entre estes, para além da questão da imagem, situa­se o do futuro de uma relação bilateral que, num contexto de enorme concorrência, precisa de ser atentamente acompanhada e culti­vada, ultrapassando formas dispersas de actuação e procurando identificar e fazer valer todas as sinergias que comporta.

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O embaixador de portugal nos Estados Unidos, João de Vallera,presente no aniversário da paLcUS, mostra-se satisfeito pelas celebrações de 2011 serem em Washington Dc.

[Paralelo] Que significado tem apresentar esse livro na comunidade?[Paulo Silveira e Sousa] Penso que é impor­tante porque os Dabney são pioneiros na relação transatlântica entre Portugal e os Estados Unidos. Os Dabney e esses anais são tanto mais curiosos quanto essa rela­

ção tem um carácter quase quotidiano, rotineiro, quase banal, podia dizer. Não é só a história política e administrativa e de uma família de cônsules, mas acima de tudo é a história do que essa família fazia, sentia, como reagia, como vivia diariamente.

[P] Esteve no Faial aquando do lançamento do livro. Ainda se sente a presença da família Dabney?[PSS] Sim, como se sente a presença dos Estados Unidos por todos os Açores. Os Dabney influenciaram a sociedade local bem como a emigração.

pALCus fundamental“para nos conhecermos melhor

uns aos outros”

Depois de ter sido apresentado nos Açores, o livro Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores viajou até aos Estados Unidos da América onde foi apre-sentado junto da comunidade portuguesa ali radicada. Aproveitando o jantar anual (PALCUS) para comemorar o seu aniver-sário, Mário Mesquita apresentou a mais recente obra editada a partir dos Anais daquela família aos portugueses presen-tes naquele evento. “Este é sem dúvida o melhor local, junto de portugueses e luso-descendentes, para falar de uma família americana que viveu no Faial”, disse Mário Mesquita. nA

Livro Dabney no Connecticut

o embaixador de portugal, João de vallera, e nélia Alves. Ao fundo, o senador do massachusetts, marc pacheco.

paulo Silveira e Sousa, que foi responsável, com Maria Filomena Mónica, pela organização do livro Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores.

“os Dabney são pioneiros na relação transatlântica”

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Descendente dos Bensaúde, pelo lado materno, uma família de origem judaica, que viria a pôr em causa a supremacia comercial dos Dabney, o antigo Presidente da República (1996­2006), Jorge Sampaio, não encontrou no livro senão uma breve nota relativa aos seus antepassados, o que não o impediu de lhe reservar três sema­nas de leitura, “surpreendido e agradado”

pelo seu alcance histórico e político. “Quem lê este livro vai buscar uma fun­damentação real e efectiva para a neces­sidade de preservar, aumentar, perspectivar, esta profunda individualidade que os Açores afinal de contas são. E que este livro, colocado embora no século XIX, ajuda tão profundamente a compreender.” E o alto­representante da ONU para a

Aliança das Civilizações, concluiu: “É um arquipélago bem individualizado no con­texto de Portugal e, portanto, a autonomia constitucional atribuída em 1976 foi uma belíssima resposta à saga de alegrias, sofri­mentos, cultura, diversão, pobreza, misé­ria e isolamento – o constante bater das ondas nestas ilhas.”

Não se deduza das suas palavras que Os Dabney – Uma Família americana nos açores se circunscreve ao arquipélago ou interesse apenas a “açorianos ou açorianófilos”. Recordando ter existido “uma sinagoga e um cemitério judaico”, lembrou que “o comércio da Horta unia pontos tão dis­tantes como Boston, Nova Iorque, São Salvador da Baía, Rio de Janeiro, Manchester, Harvard, Hamburgo, Riga, Canárias e Madeira”.

Ao explicar quais os critérios subjacen­tes ao “emagrecimento” do original annals of the Dabney Family in Fayal, Paulo Silveira e Sousa ressaltou a “introdução de factores de modernização”, entre eles, os “com­portamentos sociais”, protagonizados pelos elementos da família Dabney, “pro­testante, unitarista, culta, habituada à prá­tica regular de exercício físico, cujas mulheres, algo invulgar no século XIX, ajudavam a casa comercial Dabney quan­do os homens viajavam”.

Na opinião da historiadora Maria Filomena Mónica, autora do prefácio, o livro tem, no entanto, “uma dimensão trágica”, resultante da impossibilidade de os Dabney conseguirem de facto modificar as condições de vida e o

POR susAnA neves

“a experiência sempre me ensinou que nunca se deve falar no fim, é terrível porque está tudo rigorosamente dito”, advertiu Jorge Sampaio no lançamento do livro

Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores (edição Tinta-da-china, apoiada pela FLaD), mas pouco tempo depois já tinha captado a atenção da audiência

que enchia o histórico Grémio Literário, em Lisboa.

os Dabney – uma Família Americana nos Açores

quotidiano familiar,relato histórico

os Açores são “um arquipélago bem individualizado no contexto de portugal”, disse Jorge sampaio na apresentação.

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atraso cultural da maioria da população faialense, muito embora tivessem aju­dado durante os períodos de fome a que o Governo Central no Continente não conseguiu dar resposta [ver entrevista

“É preciso não confundir os Dabney com missionários”pp.14­15].

Os Dabney – Uma Família americana nos açores surge assim como uma importante fonte histórica, como referiu Rui Machete, pre­sidente do Conselho Executivo da FLAD, no início do lançamento: “Através do quo­tidiano de uma família estrangeira a viver nos Açores, durante todo um século, acompanha­se igualmente a História de Portugal e alguns dos principais aconte­cimentos do século XIX. Naquele peque­no mundo reflectem­se as vicissitudes de uma época particularmente rica, visto que assistimos desde a instalação do primeiro Dabney nos Açores ao culminar da Revolução Francesa, à instauração do Tribunal Constitucional, no caso dos Estados Unidos, à Guerra com a Inglaterra, depois, ao longo de um século, à Guerra da Secessão, etc.”

E sublinhando a sua autenticidade afir­mou: “É uma obra preciosa, feita sem grandes artifícios, diz as coisas aberta­mente, de modo que podemos auscultar o pensamento real dos seus autores invo­luntários.” O que adivinha, segundo Paulo Silveira e Sousa, da “rapidez” com que as cartas, coligidas por Roxana Dabney, eram escritas, na “urgência de serem enviadas

no navio seguinte”, e desta forma, “embo­ra os Dabney não fossem Flaubert, Balzac, Stendhal ou Eça de Queirós” – um dos célebres frequentadores do Grémio Literário, onde tão bem, na pessoa do seu presidente, José Macedo e Cunha, foi aco­lhido este lançamento – possuíam, no entanto, uma “escrita elegante”, expressi­va, capaz de transportar o destinatário para a situação que estavam a viver, com precisão e sentido crítico, como acontece numa carta que Maria Filomena Mónica leu por “vingança” contra os “óculos ideo­lógicos” com que os Dabney viam a realidade faialense. Datada de 1856, escri­ta pelo jovem João Dabney de Avelar Brotero, que vivia no Brasil e viera aos Açores passar umas férias com os primos, essa carta descreve um “serão de família” como um “horror” e um dos maiores “martírios”.

O contrário podemos afirmar sobre o lançamento deste livro. “A surpresa e a descoberta”, que Inês Hugon, uma das editoras da Tinta­da­China, sentiu ao ler Os Dabney – Uma Família americana nos açores, pareciam ter contagiado as mais de cem pessoas que ficaram no Grémio Literário até a noite já não permitir reconhecer as árvores do jardim.

A sala do Grémio Literário encheu para a apresentação do livro.

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Chegámos a um momento verdadeiramente histó­rico para todos os americanos, e, na minha quali­dade de representante eleito desta grande democracia, sinto­me extremamente orgulhoso. No dia 7 de Novembro de 2009, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou a nova lei relativa aos serviços de saúde, “The Affordable Health Care for America Act”. A aprovação desta lei é uma ocasião para enaltecer e agradecer a todos aqueles que lutaram para proteger o processo democrático do nosso país. É também uma ocasião para reconhecer e lembrar todos os americanos que sofreram enquanto esperavam que este dia chegas­se. Trabalhámos juntos para alcançar este objectivo de garantir cuidados de saúde de qualidade a pre­ços acessíveis a todos os americanos. Expresso aqui a minha sincera gratidão a todas essas pessoas e regozijo­me convosco, hoje, por termos iniciado um novo capítulo da nossa história.

A existência de cuidados de saúde a preços aces­síveis é uma questão moral, uma questão de saúde pública, uma questão de segurança interna e uma questão económica e de competitividade interna­cional. É incompreensível que mais de 45 milhões de pessoas – mais de 15 por cento da popula­ ção – do país mais rico do mundo sejam obrigadas a viver sem um seguro de saúde. Sem uma refor­ma, este número poderia aumentar 10 milhões até 2019. Manter o status quo não é uma opção a considerar.

A nova lei, “The Affordable Health Care for America Act”, introduz protecções de base para todos os americanos que pretendam aceder a cui­dados de saúde. As seguradoras vão deixar de poder anular a nossa apólice de seguro quando adoecermos ou negar­nos cobertura devido a uma condição de saúde preexistente. Foi introduzida uma “opção pública” que oferecerá aos consumi­dores uma possibilidade de escolha e competirá com as seguradoras, contribuindo para que ajam com honestidade. Deduções fiscais ajudarão os cidadãos e as pequenas empresas a adquirirem seguros de saúde. Além disso, o financiamento das novas medidas já está assegurado e as reformas irão efectivamente fazer baixar o défice ao longo dos próximos dez anos.

Sinto orgulho pelo facto de a versão final desta lei incluir numerosas disposições que defendo há muito e que me esforcei por conseguir, trabalhan­do nesse sentido com os meus colegas. Embora o projecto de lei inicial previsse um período de quin­ze anos para eliminar progressivamente o défice de cobertura da Medicare relativamente a medica­mentos de receita obrigatória, congratulo­me por ter conseguido reduzir o prazo dentro do qual será efectuada esta reforma fundamental, trabalhando em conjunto com o presidente da Câmara dos Representantes.

Congratulo­me igualmente pelo facto de a “Affordable Health Care for America Act” eliminar

POR pAtriCk J. kenneDy*

A promessa de cuidados de saúde“E assim, devido à sua visão e determinação, comecei a acreditar que em breve, muito em breve, todas as pessoas passarão a ter acesso a cuidados de saúde a preços acessíveis, numa américa em que o estado de saúde de uma família nunca mais voltará a depender do seu grau de riqueza. E embora eu não vá assistir à vitória, pude contemplar o futuro sabendo que iremos – sim, iremos – cumprir a promessa dos cuidados de saúde na américa como um direito e não como um privilégio.” Edward M. Kennedy

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os limites de capital que muitos planos de seguros de saúde estabelecem ao fixarem o montante total das prestações a pagar pelas seguradoras ao segurado ao longo da sua vida. Fui autor de uma carta, assi­nada por 23 colegas meus, pedindo que esta disposição, que tantas vidas pode sal­var, entrasse em vigor imediatamente.

Por último, um aspecto fundamental desta lei que considero especialmente importante é o alargamento do âmbito de aplicação do princípio da equiparação da saúde mental, que foi introduzido no ano passado por uma lei proposta por mim,

a “Paul Wellstone and Pete Domenici Mental Health Parity and Addiction Equity Act”. Não só as protecções decorrentes da aplicação daquele princípio serão alargadas a todos os planos abrangidos pela Health Insurance Exchange (“Central de Seguros de Saúde”), como também as prestações de saúde mental e de consumo de subs­tâncias foram incluídas no pacote básico criado por esta lei. Não podemos subes­timar a importância desta vitória para os 67 por cento de adultos e 80 por cento de crianças que necessitam de cuidados de saúde mental e não os recebem. Felicito

os meus colegas e os meus concidadãos pelo exemplo que deram ao reconhecer que não se pode efectivamente dissociar a saúde da mente da saúde do corpo.

Esta lei representa um passo gigantesco em direcção à transição de um sistema de prestação de cuidados a doentes para um sistema de prevenção e colaboração cen­trado em pacientes. Encontramo­nos num ponto de viragem, em que há um alinha­mento de forças que só aconteceu em algumas ocasiões na história da nossa nação. Felicito os meus colegas e os meus concidadãos pelo seu esforço constante, a sua diligência e o seu enorme empe­nhamento em realizar o sonho de cuida­dos de saúde de qualidade e a preços acessíveis para todos os americanos. Trabalhámos juntos para alcançar aquilo que o meu pai denominou “a causa” da sua vida: cuidados de saúde de qualidade e a preços acessíveis para todos os ame­ricanos. E continuarei a trabalhar no sen­tido de enviar ao Presidente uma lei o mais forte possível.

* congressista dos Estados Unidos da américa

Conferência de imprensa do senador mitch macConnell que falou acompanhado de uma cópia da proposta de lei democrata para a saúde, de 2074 páginas.

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‘trabalhámos juntos para alcançar aquilo que o meu pai denominou “a causa” da sua vida: cuidados de saúde de qualidade e a preços acessíveis para todos os americanos. e continuarei a trabalhar no sentido de enviar ao presidente uma lei o mais forte possível. ’

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A Câmara dos Representantes aprovou, por cinco votos de diferença apenas, uma proposta de lei com o título prometedor de “Cuidados de Saúde Acessíveis para a América”. O Senado aprovou uma proposta própria um pouco mais modesta. Em causa estão a inclusão na proposta do Congresso de uma opção de seguro público e os custos da reforma que, em qualquer dos casos, orçará em torno de um trilião de dólares na pró­xima década. Espera­se, no entanto, que a pro­posta de lei que deverá ser apresentada em breve

POR JoAnA GoDinho*

Saúde para todos nos EUA: utopia ou realidade?

Joana Godinho: “os estados unidos da América são o país do mundo que gasta mais em cuidados de saúde”.

‘entre as promessas eleitorais de barack obama, estava a de estender o financiamento de cuidados de saúde a toda a população americana. esta batalha, que data do tempo dos dois presidentes roosevelt, tornou-se desenfreada. ’

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ao Presidente Barack Obama para assi­natura, seja uma combinação das duas, como é habitual no sistema legislativo americano.

Entre as promessas eleitorais de Barack Obama, estava a de estender o financia­mento de cuidados de saúde a toda a população americana. Esta batalha, que data do tempo dos dois presidentes Roosevelt, tornou­se desenfreada, envol­vendo não só o Presidente, mas também o Congresso, o Senado, as empresas segu­radoras e farmacêuticas, os partidos polí­ticos, os media e o público em geral. Mas o que é que está em jogo para justificar um problema que dura há aproximada­mente um século?

De um lado, estão os americanos que não têm financiamento de cuidados de saúde. Do outro, estão os que beneficiam de alguma forma de financiamento de saúde, seja ela privada (seguros como os prestados pela AETNA, Blue Cross, Blue Shield, Kaiser Permanente e outras gran­des empresas seguradoras) ou pública (Cr ianças, Medicare, Medicaid e Veteranos). Beneficiários mais arrebatados foram vistos nas televisões mundo fora defendendo o status quo, dominados pelo medo dos “painéis de morte” com que Sarah Palin os assustou, ou mais pragma­ticamente com receio de perderem bene­fícios se o sistema público cobrir mais do que algumas crianças e adultos pobres, os idosos e os veteranos.

De um lado, temos Obama e a maioria dos democratas, que prometeram aos “sem­seguro” arranjar uma solução para a questão do financiamento da saúde, como acontece em todos os outros paí­ses desenvolvidos. Do outro lado, temos a maioria dos republicanos, porta­vozes das indústrias médica, seguradora e far­macêutica, que dizem que um plano público de saúde vai afundar a iniciati­va privada e, a prazo, arruinar um Estado já demasiado endividado por duas guer­ras e a recente operação de ressuscitação in-extremis das indústrias financeira e automóvel. Não importa que seguros públicos que já existem noutros sectores nos Estados Unidos não tenham preju­dicado o sector privado. O que está em jogo, como escreveu Karl Rove no Wall Street Journal, não é só um mero plano de saúde, mas o controlo do Congresso nas próximas eleições.

Os Estados Unidos da América são o país do mundo que gasta mais em cui­dados de saúde. No entanto, o país tem alguns dos piores indicadores de saúde entre os seus pares, 30 a 46 milhões de americanos não têm qualquer tipo de

seguro de saúde público ou privado, e as dívidas de saúde são a principal causa de bancarrota pessoal. Os ”sem­seguro” podem ser atendidos em serviços de urgência de graça como “indigentes”, mas se precisam de cuidados preventivos como vacinas, de um parto, de cuidados continuados para doenças crónicas como

a diabetes, a hipertensão ou o cancro, ou de mudar a anca, têm de pagar médi­cos, exames diagnósticos, cirurgia, inter­namento e medicamentos (cada vez mais caros), do seu próprio bolso.

Não é possível dar todos os cuidados de saúde a todas as pessoas todo o tempo, a despeito de pretensões em contrário

Joana Godinho: “é possível financiar um pacote de serviços de saúde que assegure a prestação de cuidados efectivos para todos”.

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– e não há país que ilustre esta asserção tão bem como os Estados Unidos. Mas quero eu com isto dizer que é completa­mente irrealista esperar cobertura univer­sal por algum esquema de financiamento de saúde neste país? De maneira nenhu­ma – até nos Estados Unidos a utopia se pode tornar realidade.

Todos os sistemas de saúde racionam os cuidados de saúde de uma forma ou outra, implícita ou explicitamente, devi­do à dificuldade de fazer chegar serviços a todos os que vivem em locais de difí­cil acesso (os bairros de lata, os bairros sociais americanos, as reservas indígenas ou locais remotos) e aos custos cada vez mais elevados dos recursos humanos e da tecnologia de saúde. No entanto, é possível financiar um pacote de servi­ços de saúde, com mais ou menos serviços consoante os recursos dos países, que assegure a prestação de cuidados efecti­vos para todos – desde cuidados básicos como a vacinação e partos seguros, até à cirurgia cardíaca e substituição da anca no caso de países mais desenvolvidos.

Em Inglaterra e no Canadá, dois países com serviços nacionais de saúde que, como em Portugal, deveriam à partida financiar e prestar todos os cuidados de saúde a todas as pessoas, a qualquer momento, uma das formas de raciona­mento que se pratica é através das famo­sas listas de espera – deixam­se as pessoas sem acesso a serviços privados esperar por consultas ou cirurgias elec­

tivas meses, senão anos a fio, no sistema público. Em Portugal, o racionamento faz­se através de um acesso e uma qua­lidade desiguais aos serviços de saúde públicos, de Trás­os­Montes aos Açores. No Brasil, país em que o serviço nacio­nal de saúde paga até por mudança de sexo, as pessoas que vivem nas regiões Sul e Sudeste tem acesso a muito mais e melhores cuidados de saúde do que as pessoas que vivem no Norte e Nordeste do país, e as classes média e alta com­plementam o serviço de saúde público com seguros privados.

Em países desenvolvidos como a Alemanha, em que as pessoas são maio­ritariamente cobertas por seguros de saúde ligados ao emprego, estes ofere­cem pacotes de serviços standard parcial­mente financiados pelo sector público, e os restantes optam por seguros priva­dos que oferecem mais benefícios. Em França, as pessoas complementam os cuidados financiados pelo sistema públi­co com cuidados pagos por cooperativas com fins não lucrativos (mutualités).

Nos Estados Unidos, a maioria das pes­soas é coberta por seguros de saúde pri­vados (caros), em geral ligados ao emprego, que asseguram parte dos cus­tos dos cuidados de saúde (caros). O Estado financia alguns cuidados de saúde para crianças e adultos pobres, idosos e veteranos. Este sistema deixa 30 milhões de americanos incapazes de pagar seguros privados a terem de pagar por

serviços de saúde do seu próprio bolso ou a morrer sem cuidados.

Entretanto, os custos de saúde têm subido em flecha em todos os países desenvolvidos, devido à maior esperan­ça de vida e à expectativa de maior qua­lidade de vida (incluindo na doença e na morte). Nos Estados Unidos, as for­mas de pagamento dos serviços de saúde e os processos por alegadas más práticas médicas incentivam a prestação e o uso excessivo de serviços e tecnologia (incluindo medicamentos). Junte­se a isto a perversidade do racionamento explícito praticado pelas seguradoras privadas americanas: pessoa com doen­ça crónica estabelecida à data do seguro não é segurada; pessoa que se torne muito dispendiosa, devido aos cuidados de saúde intensivos que requer, é exclu­ída, deixando­as e às suas famílias a braços com custos catastróficos que as levam à bancarrota.

É possível resolver este problema sem arruinar os cofres do Estado e “socializar” a medicina e matar a iniciativa privada, como a oposição americana clama que vai acontecer se esta reforma de saúde for para a frente? É – mas é preciso, entre outras medidas, (i) aumentar a respon­sabilidade individual e social pela saúde e promover a saúde – por exemplo, ser­vindo alimentação salutar nas escolas em vez de comida rápida cozinhada com gor­duras trans e refrigerantes cheios de açú­car –, para diminuir a doença e morte prematuras; (ii) racionar os cuidados que são prestados no âmbito dos planos públi­cos e privados, à semelhança do que já fazem os planos privados, mas com base em critérios de custo­efectividade e sus­tentados por consensos sociais democrá­ticos; (iii) pagar aos médicos e hospitais de forma a promover a qualidade dos cuidados prestados, em vez de incentivar apenas os lucros dos prestadores e dos financiadores; (iv) racionalizar o uso de medicamentos através da contenção do seu uso indevido e tornando rotina o uso de doses individuais e de genéricos, e negociar os preços de alguns medicamen­tos de marca, como faz o Brasil no caso dos anti­retrovirais para o VIH/sida; e (v) organizar redes de cuidados de saúde para assegurar a continuidade dos cuidados e maior eficiência do sistema de saúde.

É possível passar da utopia à realidade – mas isso não é nada fácil, mesmo num país tão generoso como os Estados Unidos da América, quando interesses muito poderosos se sobrepõem ao bom senso e ao bem comum. * Especialista Sénior de Saúde do Banco Mundial

‘De um lado, temos obama e a maioria dos democratas, que prometeram aos “sem-seguro” arranjar uma solução para a questão do financiamento da saúde, como acontece em todos os outros países desenvolvidos. Do outro lado, temos a maioria dos republicanos, porta-vozes das indústrias médica, seguradora e farmacêutica, que dizem que um plano público de saúde vai afundar a iniciativa privada e, a prazo, arruinar um estado já demasiado endividado por duas guerras e a recente operação de ressuscitação in-extremis das indústrias financeira e automóvel. ’

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Os especialistas avisam que se está a assistir a um movimento de transforma­ção, “regeneração” e consolidação do mercado de trabalho, em resposta a um período de crise. A recessão iniciada em 2007 já custou mais de 6,7 milhões de empregos, e muitos deles são irrecupe­ráveis.

O desaparecimento dos chamados empregos blue collar – sobretudo ligados à actividade industrial e a sectores como os transportes ou a construção – está a forçar uma reconversão profissional e a desviar milhões de trabalhadores para novas pro­fissões, em muitos casos com uma nova passagem pela escola.

“Os novos postos de trabalho que vão ficando disponíveis já não dependem tanto da capacidade física e manual, mas exigem muito maior grau de literacia: conheci­mentos de informática, domínio de línguas estrangeiras, algum tipo de espe­cialização”, comenta Nigel Gault, econo­mista da empresa consultora IHS Global Insight.

Mas outras profissões do universo white collar, como, por exemplo, as que têm a ver com os sectores bancário e de seguros ou com o mercado imobiliário, e que foram particularmente afectadas com a recessão, também perderam o encanto para muitos trabalhadores.

São duas realidades diferentes para aque­les que perderam o emprego e aqueles que aproveitaram a recessão para tomar uma decisão que provavelmente antes não arriscariam: é tempo de fazer outra coisa. Motivados pelo excesso de trabalho (muita gente viu as suas responsabilidades ou carga horária reforçada por causa do

Crise força americanos a pensar em novas carreiras

POR ritA sizA*

a crise económica dos Estados Unidos já levou milhares de trabalhadores americanos a reinventar as suas carreiras profissionais – uns por paixão, outros por oportunidade

e alguns por desespero.

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muitos aproveitaram a recessão para mudar de carreira profissional que de outra forma não fariam.

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despedimento de colegas), ou pela redu­ção do salário ou dos benefícios, cada vez mais trabalhadores estão a encarar a pos­sibilidade de abandonar o mundo corpora-te e tornar­se o seu próprio patrão.

O Human Capital Institute, que faz estudos sobre o mercado de trabalho, constatou que o simples facto de manter o emprego não é suficiente para 53 por cento da força de trabalho das grandes empresas americanas: as pessoas sentem­se frustradas e estão em busca de novas oportunidades. Cerca de 20 por cento pretendem mudar de profissão nos próximos doze meses, revela um estudo recente do website SnagAJob.com.

A recessão económica tornou­se um “impulso” para a mudança. Pelo menos para Tamara Miranda, uma agente imobiliária de 48 anos, estabelecida há mais de uma déca­da na Carolina do Norte. Quando rebentou a bolha, e a crise hipotecária paralizou o mercado, a necessidade de encontrar uma nova carreira tornou­se evidente. Tamara tinha uma pequena empresa, sem problemas financeiros e com uma boa base de clientes. Mas, explica, “ao fim de tantos anos, sim­plesmente não tinha a energia para lutar e tentar sobreviver a esta crise imobiliária”.

A solução era esquecer a vida passada e aventurar­se numa nova carreira. “Não sabia o que queria fazer, mas sabia que queria mudar de vida”, conta. Foi quando encon­trou um cão abandonado na rua, e decidiu acolhê­lo, que teve uma ideia: porque não abrir uma empresa de serviços personaliza­dos para aqueles que têm cães e não podem levá­los ao veterinário ou não querem deixá­los no canil quando vão de férias?

“Fiz uma pesquisa de mercado, um estu­do financeiro, achei que era possível e arrisquei”, continua. O seu projecto não exigia muito capital nem mão­de­obra – e Tamara não esperava um grande retorno, apenas o suficiente para que o negócio fosse rentável. “Eu adoro cães e adoro fazer grandes passeios. Porque não dedicar­me a passear os cães que têm de ficar fechados em casa todo o dia?”, pergunta.

Mas uma mudança tão radical nem sem­pre é fácil, e não só por razões económi­cas. “Esta recessão foi um rude golpe financeiro mas sobretudo psicológico para muitas famílias americanas, e isso inde­pendentemente do estrato socioeconómi­co a que pertencem”, refere o professor Gerrald Shapiro da Universidade de Santa Clara, na Califórnia.

“A perda do emprego, da casa ou da pen­são despoleta inevitavelmente sentimentos de vergonha e raiva”, diz, acrescentando que por vezes as pessoas sentem­se blo­queadas para agir pela sua ideia de estatu­to ou poder. “Temos um problema de

ansiedade e depressão a afectar o mercado de trabalho. E temos outro, menos eviden­te, que tem a ver com a discrepância entre aquilo que as pessoas sonharam ou procu­raram e aquilo que é possível nesta con­juntura económica”, prossegue.

O ambiente de crise, considera, leva muitos a optar por carreiras que não são as desejadas nem aquelas para as quais se prepararam. Um caso paradigmático: o ensino. Segundo a National Education Association, o maior sin­dicato de professores dos Estados Unidos, a maioria dos mais de 100 mil professores que dei­xaram de ter lugar no sistema educativo ame­ricano no início deste ano lectivo poderá vir a abandonar definitiva­mente a profissão.

“Vamos perder muitos professores para outras profissões e muitos deles não vão voltar. A longo prazo, isso acabará por prejudicar a própria carreira, que é cada vez menos atrac­tiva”, lamenta o presidente da Federação Americana dos Professores, Randi Weingarten.

Alguns destes profissionais conseguem manter­se, de alguma maneira, ligados à carreira que inicialmente escolheram. “Para mim, a ideia foi sempre ser profes­sora”, conta Lauren Sikorski, de 25 anos, que nos últimos dois anos trabalhou como

professora de Matemática numa escola de educação especial. No final do ano escolar, foi informada que o seu contrato não seria renovado – Lauren decidiu então inscre­ver­se numa pós­graduação para se espe­cializar em terapia ocupacional. “Vou continuar a trabalhar com crianças, só que em termos ligeiramente diferentes. E quem sabe, um dia, posso retomar a minha carreira inicial, com muito mais experiência”, acredita.

Judith Franco, uma professora de gestão, aproveitou a sua experiência passada como costureira para fazer a transição de pro­fessora para empresária. Há mais de vinte anos, quando ainda era estudante, aumen­tava a sua conta bancária com pequenos trabalhos de costura. Quando perdeu o emprego, Judith lembrou­se do seu hobby de outrora. “Era uma coisa a que eu não dava grande importância mas que me fazia feliz e me dava dinheiro. Achei que devia pensar nisso mais seriamente.”

‘são duas realidades diferentes para aqueles que perderam o emprego e aqueles que aproveitaram a recessão para tomar uma decisão que provavelmente antes não arriscariam: é tempo de fazer outra coisa. ’

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Anúncios de empregos em Arlington, na virgínia.

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Assim, aos 45 anos, abriu um pequeno ateliê onde, além de baínhas e pequenas alterações, faz outros trabalhos mais sofis­ticados de costura. “Surpreendentemente, há procura para estes serviços mais espe­cializados. Não só consegui reencontrar alguns velhos clientes, como tenho muitas novas encomendas. O ensino ficou defi­nitivamente para trás”, garante.

No caso de LaMonte Monroe, de Xenia, no Delaware, o colapso das grandes cons­trutoras automóveis americanas revelou­se quase como uma “providência divina”. Depois de aceitar o acordo de rescisão oferecido pela General Motors, para quem trabalhava há dez anos como responsável do controlo de qualidade, este pai de famí­lia, de 50 anos, pode finalmente dedicar­se à sua verdadeira vocação: o serviço reli­gioso.

“Todos os dias ocupava­me de um tra­balho repetitivo e rotineiro, só porque pagava um salário”, recorda. Monroe foi um dos 630 trabalhadores que perderam o lugar no Mansfield/Ontario Metal Center da GM. A fábrica encerrará as por­tas, definitivamente, em Junho deste ano.

LaMonte colaborava com a sua igreja todas as quartas­feiras, participando nas sessões de estudo da Bíblia. Agora, está a estudar teologia e a trabalhar para ser ordenado pastor, para poder dedicar­se a tempo inteiro aos fiéis da Xenia Church of God. “Falo com muita gente que acaba de perder o emprego, e procuro sempre encorajá­los, dizer­lhes para terem cora­gem e fé. Ser despedido leva­nos a cami­nhar por territórios desconhecidos”, declara, já em jeito de sermão.

Para muitos desempregados urbanos, estes são, literalmente, “territórios desco­nhecidos”. Uma comparação de custos e benefícios está a fazer muitas famílias tro­car a cidade pelo espaço rural – na imprensa são frequentes histórias de ban­queiros, advogados e consultores que dei­xaram os respectivos escritórios e agora se dedicam a produzir vinho, fruta ou queijos artesanais.

As estatísticas oficiais revelam que apenas um por cento da população norte­ameri­cana activa se dedica exclusivamente à agricultura, mas esse é um número que pode aumentar. A actividade do sector pri­mário tem enorme impacto na economia, respondendo por 13 por cento do PIB.

Para quem quer “recomeçar do zero”, além do inevitável “apelo da terra”, há um factor muito importante a ter em conta: ao contrário de outros sectores, altamente concorrenciais e competitivos, a produção agrícola ainda é fortemente protegida pelo

Estado com subsídios e outro tipo de bene­fícios – ainda agora, o Congresso aprovou um reforço extraordinário de 250 milhões de dólares no programa de apoio à produ­ção de lacticínios.

Mas há mudanças de carreira que não são ditadas pela vocação, antes por razões bem mais prosaicas. “Qualquer coisa para pagar as contas”, resume James Williamson, de 26 anos, que terminou o seu MBA em Filadélfia quatro meses antes do colapso do banco de investimento Lehman Brothers.

“De repente, todas as portas em Wall Street fecharam­se”, recorda.

James arranjou trabalho a conduzir um táxi, e nas muitas horas de trânsito nova­­iorquino engendrou um plano de negó­cio para criar um serviço de estafetas. Um passageiro a quem falou na ideia mostrou­­se interessado – os dois estão a negociar o lançamento do projecto.

“Ainda é muito difícil mudar de carrei­ra quando não se quer”, nota Martha Mangelsdorf, autora do livro Strategies for Successful career change, na lista dos mais vendidos. “Mas já não é como na década de 50, quando as pessoas estavam conde­nadas a ter o mesmo emprego toda a vida”, acrescenta.

Desde então, a sociedade americana evo­luiu para um sistema muito aberto e de grande mobilidade profissional. Mas nunca como agora as pessoas encararam com tanta naturalidade atirar para o lixo toda a sua experiência anterior e começar de novo.

Alicia Azzopardi, do Michigan, chegou a pensar que tinha enlouquecido quando se despediu do departamento de vendas de uma empresa de moldes para a indústria automóvel. “A Chrysler e a General Motors estavam à beira de declarar falência e eu achei que era uma questão de tempo até a minha empresa fechar”, explica.

Aos 52 anos, Alicia foi inscrever­se no pro­grama de enfermagem da Michigan State University. “Tinha a certeza que ia ser a mais velha da classe”, brinca. “Tenho muito para recuperar, porque deixei os estudos há mais de trinta e cinco anos. Mas achei que isso não era razão para desistir de uma carreira que sempre quis – e onde o desemprego não é um problema”, justifica.

No ano passado, o sector da saúde absor­veu mais 350 mil profissionais, e continua a ser deficitário em enfermeiros, terapeu­tas e outros técnicos especializados. Alicia não estava doida. * correspondente do jornal Público nos Estados Unidos.

“De repente todas as portas em Wall street fecharam-se” – James arranjou trabalho a conduzir um táxi e engendrou um plano de negócios para criar um serviço de estafetas.

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Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 20103�

A subida do desemprego está a afectar desproporcionalmente os homens, que compunham a maior parte dos trabalha­dores dos sectores mais fustigados pela crise – só no passado mês de Julho, foram

eliminados 76 mil empregos na constru­ção e 52 mil na indústria pesada. Em con­traste, no sector da saúde, onde 81 por cento dos trabalhadores são mulheres, foram criados 20 mil novos empregos.

Três em cada quatro postos de trabalho perdidos nesta recessão eram desempe­nhados por homens, constatou um estu­do do Center for American Progress. A percentagem de homens adultos a tra­

os homens são os mais afectados pelo desemprego nos estados unidos.

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O desemprego nos Estados Unidos da américa abateu-se de tal forma sobre as profissões dominadas pela população masculina, que os especialistas

até inventaram um novo termo, mancession, uma mistura de homem e recessão, para melhor descrever as consequências da crise económica.

mancession:homens em recessão

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balhar nos Estados Unidos nunca foi tão baixa: só sete em dez têm emprego, ou seja, só 67 por cento da população acti­va masculina. Nunca na história ameri­cana esse valor tinha caído abaixo do patamar dos 70 por cento.

Actualmente, a taxa de desemprego é dois pontos superior para os homens do que para as mulheres (9,8 por cento e 7,5 por cento, respectivamente), uma inversão da tendência de maior desemprego femi­nino, que se verifica desde que se come­çaram a registar estatísticas, em 1948. Mas esta não é a primeira vez que os homens sofrem a recessão de forma particularmen­te acentuada: na recessão de 2001 verifi­cou­se o mesmo desequilíbrio. Na lon­ gínqua Grande Depressão, 90 por cento do desemprego foi masculino.

A actual mancession teve um impacto his­tórico no mercado laboral dos Estados Unidos: pela primeira vez, as mulheres tornaram­se a maioria da população acti­va. De acordo com os dados do Bureau of Labor Statistics, as mulheres já constituíam 49,9 por cento do total da força de tra­balho norte­americana no final do mês de Julho de 2009.

Em maioria nas escolas, há muito que os economistas esperavam que as mulhe­res se tornassem também dominantes no mercado laboral. Mas a tendência dos últimos anos ia no sentido oposto; há pelo menos uma década que o número de mulheres se subalternizou em relação aos homens, porque uma parcela da população feminina no activo decidiu abandonar o mercado de trabalho.

Os últimos números coligidos por aquele departamento de estatísticas reve­lam, porém, que muitas dessas mulheres que escolheram sair estão agora a regres­sar. Esse movimento verifica­se sobre­tudo entre o grupo das mulheres licenciadas com idades entre os 25 e os

44 anos: a proporção daquelas que estão a trabalhar ou em busca de trabalho cresceu para os 78,4 por cento no pri­meiro semestre de 2009, comparado com 76 por cento no mesmo período de 2007. Os especialistas sublinham que essa diferença é significativa, uma vez que as pessoas que estão fora do mer­cado geralmente não procuram empre­go em épocas de recessão.

Mas o facto de as mulheres estarem a resistir melhor à praga do desemprego e tornarem­se a maioria no mercado de trabalho não implica necessariamente uma melhoria em termos do seu acesso a empregos qualificados ou lugares de chefia, nem representa um progresso nas suas condições de trabalho ou na sua remuneração.

Os dados demonstram que a precariedade labo­ral é muito superior entre as mulheres do que entre os homens. Estas são muito mais vezes contratadas a meio­termo e não têm direito a bene­fícios como seguro de saúde ou subsídio de desemprego. E mesmo quando cumprem o mesmo número de horas de trabalho e por vezes até as mesmas tarefas que os homens, as mulheres continuam a ganhar ape­nas 80 cêntimos por cada

dólar pago a um trabalhador masculino. “Numa família típica americana, o mari­do contribui com cerca de dois terços do total do orçamento familiar. Isso quer dizer que quando o marido perde o emprego, a família perde a sua principal fonte de rendimento. E não é só dinhei­ro: são também os benefícios, como seguros de saúde, planos de pensão”, nota Heather Boushey, a economista do Center for American Progress que lidera os estudos sobre o emprego.

Neste momento, existem cerca de dois milhões de mulheres casadas que assumi­ram o papel do “ganha­pão” das respec­tivas famílias. A presidente do Institute for Womens’s Policy Research, Heidi Hartmann, duvida, contudo, que a actual recessão venha a alterar significativamen­te as dinâmicas familiares ou os papéis desempenhados por homens e mulheres na gestão do lar ou na educação dos filhos. “Historicamente, a forma como os casais dividem as suas tarefas domésticas tem sofrido poucas mudanças”, observa.

Segundo esta especialista, nos últimos

vinte anos o tempo gasto em tarefas domésticas pelas mulheres casadas e com emprego diminuiu. Mas a responsabili­dade por essas tarefas não foi assumida pelos seus maridos, antes foi outsourced a terceiros – as baby-sitters, as empresas de limpeza, as lavandarias e os serviços de comida pronta. “Esses substitutos para o trabalho doméstico são os primeiros ‘luxos’ que as famílias cortam quando passam a dispor de um orçamento mais reduzido. E a sua execução volta a recair sobre as mulheres”, refere.

Mas, como nota Heather Boushey, é provável que os homens passem a desem­penhar alguns dos trabalhos das mulhe­res: à medida que a sua situação de desemprego se prolonga, muitos optam por candidatar­se a empregos em secto­res tradicionalmente mais femininos. “Muitos homens desempregados estão a reorientar as suas carreiras para sectores como a educação, a saúde ou os serviços, onde prevalecem as mulheres”, diz. O que é uma boa notícia em termos da igualdade dos géneros no mercado de trabalho, considera. rs

As mulheres tornam-se a maioria no mercado de trabalho.

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‘A percentagem de homens adultos a trabalhar nos estados unidos nunca foi tão baixa: só sete em dez têm emprego, ou seja, só 67 por cento da população activa masculina. nunca na história americana esse valor tinha caído abaixo do patamar dos 70 por cento. ’

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[Paralelo] Pouco antes da recessão mundial se ins-talar, como estavam a evoluir os fluxos migratórios nas economias mais industrializadas?[Demetrios Papademetriou] A maioria dos países estava a crescer e tinha compreendido que a imigração era essencial para o seu desen­volvimento. Por isso, durante os primeiros anos do século XXI, foram aceitando largos fluxos de imigrantes. Privilegiaram uma imigração altamente qualificada, com objec­tivos sobretudo ligados à competitividade económica, mas também por questões demográficas. E, por isso, assistimos a uma abertura de portas. Esse alargamento do número de imigrantes foi potenciado por vias legais, mas o mais extraordinário cres­cimento foi verificado ao nível da imigração ilegal ou irregular. [P] E quais foram as repercussões da crise mundial nos padrões migratórios?[DP] Não foram tão profundas quanto se esperava. Até 2009, a maioria dos países continuou a recrutar imigrantes qualificados. E só nessa altura, cerca de metade dos países que eram mais agressivos em matéria de imigração começaram a repensar as suas políticas e a reduzir as quotas entre 10 por cento e 25 por cento. Não mais do que isso. E estamos a falar de países cuja política migratória é estrutura pelo Governo – não de países, como os Estados Unidos, onde são os empregadores quem recruta os imi­grantes, cabendo apenas ao poder central determinar parâmetros e regras – aí, os cor­tes foram maiores.[P] Houve diferenças significativas na resposta dada à crise pelos Estados Unidos e pela Europa, no que diz respeito às políticas de imigração?[DP] Sim e as diferenças são muito signifi­

“A crise mundial não trouxe reduções substanciais nas quotas de imigração da maioria dos países”, diz o presidente do migration policy institute.

RUI OCH

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É consultado por governos de todo o mundo, que procuram saber como estruturar as suas políticas de imigração. Demetrios papademetriou, presidente do Migration policy Institute,

esteve em portugal para uma conferência da Fundação Luso-americana e a Paralelo falou com ele. Em tempos de crise, deixou um alerta aos governos dos dois lados do atlântico: devem estar preparados para abrir portas aos imigrantes, quando a recessão for superada.

Demetrios papademetriou em discurso directo

“Abrir portas aos imigrantes quando a crise terminar”

POR mArCo Leitão siLvA

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cativas. Nos Estados Unidos, a situação foi muito mais dramática do que na Europa. Nos Estados Unidos, onde o mercado é decisivo para as políticas de imigração, os empregadores simplesmente não estão a pedir tantos trabalhadores como faziam no passado. E, além disso, há uma grande dife­rença: quase um terço dos imigrantes é ilegal e a maioria vem de países vizinhos. E quando as condições económicas são más, então os fluxos migratórios pratica­mente param. Nos Estados Unidos, os flu­xos migratórios respondem às condições económicas. [P] E dentro da União Europeia? Parece-lhe que houve uma resposta coordenada?[DP] O continente é vasto e todos estão a seguir caminhos diferentes. Os alemães, por exemplo, nunca se abriram muito à imigra­ção e, portanto, não têm de fechar portas. Já os britânicos, que se abriram muito mais, têm sido muito agressivos ao estreitar cri­térios de entrada e diminuindo quotas. Um exemplo extremo é o da Espanha, onde está a ser aplicado um sistema de “pagar para partir”, ou seja, é dado dinheiro aos imi­grantes para que abandonem o país.[P] O antigo comissário europeu, António Vitorino, defendeu que fossem dados incentivos semelhantes, mas apenas para um regresso temporário aos países de origem. Partilha esse ponto de vista?[DP] Tudo depende do tipo de incentivos e, para além disso, teremos de saber se há garantias de que os imigrantes podem depois voltar. Caso a promessa seja genérica, a maioria não vai aderir. Se quiséssemos criar um ritmo de entrada e saída mais intenso, não só deveríamos criar incentivos para as pessoas regressaram aos países de origem, mas também oportunidades para que, à chegada, tenham perspectivas de trabalho asseguradas. Quase temos de recriar condi­ções de trabalho nos países de origem. É um exercício de equilíbrio muito difícil.[P] Na Europa, floresceram nos últimos meses dis-cursos próximos da extrema-direita – agressivos em matéria de imigração. A crise proporcionou terreno fértil para esta ala política?[DP] Durante os momentos de crise, os ins­tintos das pessoas dizem­lhes que deve haver uma explicação para tudo aquilo pelo qual estão a passar. E a imigração torna­se com frequência uma parte muito fácil dessa expli­cação. São tempos em que as pessoas estão preocupadas com o seu futuro. E estes dis­cursos tornam­se então muito apelativos. Durante os tempos de estabilidade, ninguém dá grande atenção aos partidos e grupos de extrema­direita. Mas de repente, graças a esse discurso, tornaram­se poderosos: essas mensagens avessas à imigração, por exemplo, foram exploradas nas eleições europeias em Junho, em países como a Holanda ou o

Reino Unido – que conseguiram até enviar representantes para Bruxelas. [P] Pensando no discurso inverso: será que os imi-grantes podem fazer parte da solução para a crise?[DP] Há quem diga que se quisermos sair da recessão, precisamos de mais imigrantes. Não é uma proposta razoável. Nem sequer é razoável sugerir que a imigração que tive­mos é responsável pela recessão. São dois extremos muito pouco razoáveis. Uma polí­tica inteligente vai controlar a imigração durante os próximos tempos, estando pron­ta para abrir portas à medida que a econo­mia se for preparando para sair da recessão.

E essa abertura deve verificar­se sobretudo nos negócios, nas empresas e nos sectores que são mais cruciais para a recuperação económica.[P] Proponho-lhe um último exercício arriscado: que previsão se pode fazer quanto ao futuro dos fluxos migratórios nos Estados Unidos e na Europa?[DP] Os próximos dois anos vão ser duros para a imigração, sobretudo porque o desemprego vai continuar a ser um proble­ma sério para todos os países. Mesmo que a recessão termine, vai levar algum tempo até que comece a baixar. Como tal, os fluxos imigratórios vão abrandar, para mais tarde

se intensificarem. Durante estes tempos duros, os governos vão sobretudo ficar ainda mais convenci­dos da necessidade de regular a imigração, quan­do os imigrantes voltarem a ser necessários.

“há quem diga que se quisermos sair da recessão precisamos de mais imigrantes”, comenta papademetriou, tendo a seu lado António vitorino.

RUI OCH

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‘os próximos dois anos vão ser duros para a imigração, sobretudo porque o desemprego vai continuar a ser um problema sério para todos os países. ’

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Instantâneos lisboetas. Há fotografias em tamanho gigante penduradas nas facha­das dos edifícios do Martim Moniz. Junto ao Largo de Camões, já a caminho da Bica, esteve durante meses um mural grafitado por um dos mais conceituados street artists do mundo. Em Alcântara, uma antiga fábrica de tecidos deu lugar a

uma ilha de ideias. Todas as sextas, ao fim da tarde, no Largo do Chiado, um tocador de xilofone e uma cantora afri­cana dão um concerto de world music. No Teatro Nacional, ao Rossio, sobem ao palco miúdos dos bairros degradados e em Alvalade, mesmo junto ao Cinema King, ainda se vêem restos do cartaz de

um filme que não tem um único pro­fissional no elenco.

Nos últimos anos, o investimento cultu­ral encolheu brutalmente. Em 2009, por exemplo, o orçamento da Cultura repre­sentou 0,2 por cento do PIB, contra uma percentagem de 0,7 em 2001. Actores, músicos, cineastas, dançarinos, têm afina­

Os preços das obras estão mais baixos, há novos criadores a aparecer todos os dias, as intervenções artísticas são acessíveis a cada vez mais gente. Bem vistas as coisas,

esta crise económica pode ser o melhor que aconteceu às artes.

menos dá maiso elogio da crise nas artes

POR riCArDo J. roDriGues

FOTOS CArLos morGAnho

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Fotografias em tamanho gigante expostas pela cidade de Lisboa.

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do um verdadeiro coro de protestos contra a falta de apoios estatais ou contra a trans­formação de equipamentos culturais em espaços comerciais. Os números dão­lhes razão. Há menos gente a visitar museus, menos patronos a financiar fundações, a quebra de receita nas bilheteiras é uma evidência. E, no entanto, sente­se nas ruas um fervilhar criativo. A explicação pode resumir­se a uma ideia linear: em tempos de necessidade, não há outro remédio senão aguçar o engenho. E o facto é que, aparentemente, faz­se mais com menos.

A revista norte­americana New Yorker publi­cou um extenso artigo sobre a produção cultural no tempo da Grande Depressão. Nele, o jornalista Caleb Crain defendia que a crise dos anos 1930 pôs em causa a cul­tura de trabalho em que as pessoas viviam. “De repente, a vida deixou de significar fazer dinheiro, pagar as contas e ir a correr fazer mais dinheiro, para pagar mais contas.” À medida que a banca e os mercados finan­ceiros levavam a maior tareia da sua história, a arte e os artistas ganhavam uma sensação de poder até então inédita. E. Y. Harburg, o homem que escreveu o hino da década, Brother, can You Spare Me a Dime? [“Irmão, Emprestas­me Uns Trocos?», em tradução livre], resumiu os anos da crise assim: “Quando perdi todas as minhas posses, encontrei a minha criatividade.” E segura­mente não foi o único. Escreve Crain: “É claro que nem todos os desempregados fizeram carreira na literatura, na música ou no cinema mas mesmo os que não foram por aí tiveram de começar a pensar de forma mais original para conseguir fazer algum dinheiro.”

Ainda que a recessão deste final de déca­da esteja longe da depressão dos anos 1930, há vários historiadores de arte – com Jonathan Weinberg, da Universidade de Harvard, à cabeça – que dizem que o boom criativo está a repetir­se. Os novos cria­dores são mais autodidactas e trabalham por iniciativa própria. Algumas das foto­grafias do Martim Moniz são assinadas por Carlos Morganho, um tipo que perdeu o emprego, começou a fazer imagens dos habitantes da Mouraria e agora expõe regularmente. O graffito do Largo de Camões foi feito pelo norte­americano Above, que viaja por todo o mundo, enche as

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os novos criadores são mais autodidactas e trabalham por iniciativa própria.

‘A crise dos anos 1930 pôs em causa a cultura de trabalho em que as pessoas viviam. ’

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paredes de desenhos políticos e depois vende as fotografias do seu trabalho na internet. A LXFactory nasceu com o inves­timento de pequenos criadores que ainda estão em processo de afirmação. Os actores que brilham no Teatro de Dona Maria ou no filme aquele Querido Mês de agosto não têm curso do Conservatório. E há uma banda de world music a dar concertos gratuitos para um público em movimento em frente à estátua de Fernando Pessoa, tentando ven­der CD com o seu trabalho a quem pára e fica a ouvir.

eu Crio, eu ConsumoO coreógrafo Tiago Guedes anda a preparar um festival de artes performativas no con­celho de Alcanena, o Materiais Diversos. Terá espectáculos de música e teatro, mas o prato forte é claramente a dança. Com a excepção de um ou outro nome mais sonante, a maior parte dos artistas é rela­tivamente desconhecida. “Tenho cachets baixos para pagar e por isso decidi apostar em nomes mais jovens, com projectos inte­

ressantes, que nor­malmente não têm oportunidade de mostrar as suas ideias.” Todos eles ficarão alojados em casa de pessoas da terra, porque a orga­nização não tem dinheiro para pagar hotéis. Em troca, as famílias que acolhem os artistas recebem bilhetes para os espectáculos. “A própria sede do festival, que fica em Minde, foi toda decorada com doações de mobiliário da população. Ao mesmo tempo que pou­pamos nos gastos, convocamos as pessoas para dentro do festival, fazêmo­las sentir parte das coisas.”

A técnica de Tiago Guedes é a perfeita metáfora dos tempos. Por um lado, o aper­to económico obrigou­o a abrir espaço a novos criadores. Por outro, fê­lo garantir mais e novos públicos. O contexto de crise parece estar não só a democratizar a pro­dução artística, como também o acesso dos cidadãos à arte. Há mais gente a fazer,

há mais gente a consumir. Em suma, os preços do mercado baixaram, mas o aces­so às artes – seja o de aquisição ou o de criação – está a ampliar­se como nunca.

Ana Matos atira mais lenha para a mesma fogueira. “A vantagem desta crise econó­mica é que a arte está a deixar de ser um exclusivo das classes médias­altas”, diz a proprietária da Galeria das Salgadeiras, no Bairro Alto, um espaço que tem apostado em novos criadores, nomeadamente artis­tas plásticos e fotógrafos. “Há meia dúzia de anos eu vendia um quadro por 1500 euros, agora vendo cinco por 300. Isto é uma alteração tremenda de hábitos. Pessoas que hoje têm trinta anos já conseguem ter em casa uma obra original, em vez de

Concertos gratuitos para os traseuntes.

‘em tempos de necessidade, não há outro remédio senão aguçar o engenho. e o facto é que, aparentemente, faz-se mais com menos. ’

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comprarem serigrafias num museu ou quadros decorativos do IKEA.” Ana entu­siasma­se com o facto de o leque se ter aberto. Acredita na arte como bem públi­co e pensa que os bons efeitos da recessão vão sentir­se a longo prazo. Se há mais

consumo, explica, há mais predisposição para conhecer mais, perceber melhor, des­cobrir o novo.

reALity is A bLissO que têm em comum o realismo que dominou as artes plásticas nos anos 1930 e a criação dos nossos dias? Acima de tudo, o eco social. Tanto nos anos da Grande Depressão como nos da recessão, os cria­dores foram a voz da inquietação do seu tempo. “Os direitos são, grosso modo, a temá­tica dominante dos artistas em alturas de crise”, diz Stacy I. Morgan, historiadora na

Universidade da Geórgia. “A luta pela jus­tiça social é a grande marca da produção artística dos anos 1930. E volta a ser, num formato completamente diferente, nos nos­sos dias.” Se antes tínhamos as fotografias cruas de Dorothea Lange ou até uma Guernica de Picasso, hoje temos uma repre­sentação mais disruptiva e, na maior parte dos casos, mais interdisciplinar.

Vamos por exemplo ao grafito que Above desenhou numa parede junto ao Largo de Camões. É um stencil a que chamou Giving to the poor – Dar aos pobres. “Passava todos os dias no mesmo sítio e via uma sem­abri­go a pedir dinheiro. Achei tristemente irónico que a menos de cinco metros exis­tisse uma caixa multibanco, onde as pes­soas formavam fila para levantar dinheiro.” Pintou um assaltante a roubar aos ricos de arma em riste para entregar o dinhei­ro à pedinte. A instituição bancária, entre­tanto, removeu o desenho. Mas as foto­ grafias que Above tirou e afixou no seu site asseguraram a longevidade da imagem. É uma mistura de transgressão com cinis­mo. Tem um impacto tremendo.

Outra das grandes tendências actuais é a chamada arte social. Grupos minoritários ou excluídos têm ganho um papel visível nas actividades culturais. No festival que Tiago Guedes está a organizar, há por exemplo um encenador, John Romão, que tinha por hábito ensaiar as suas peças num palco a menos de cem metros do local

Antes era Veneza, Paris, Berlim e Nova Iorque. Agora podemos acrescentar à lista Sidney, Macau, Madrid ou Kwangju, na Coreia do Sul. A multiplicação de grandes bienais de arte (ou mais pequenas, como a de Vila Nova de Cerveira ou a experimentadesign) são sinais de que a crise não afectou o mercado de uma maneira extrema, apenas modifi-cou as regras do jogo.A arte continua a ser um valor seguro. Rui Brito, da Galeria 111, explicava há meses à agência Lusa que o investimento em arte, “quando bem escolhido, é o investimento mais seguro e rentável que existe”. Ana Matos concorda e acrescenta um dado: “A crise é o momento certo para comprar, porque os preços estão mais baixos e qualquer obra tem um potencial de valorização tremendo.” Mas lança um alerta: é preciso saber escolher. “As galerias, as bienais e os leiloeiros podem, aliás devem, ajudar o potencial cliente a optar pelo que é melhor. Mas é fundamental ter sensibilidade artística e uma compreensão do mercado.” Para fazer boas escolhas.

Um valor seguro

os bons efeitos da recessão vão sentir-se a longo prazo.

‘quando perdi todas as minhas posses, encontrei a minha criatividade. ’ e. y. harburg

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onde vários skaters de Almada costumavam praticar. Um dia, chamou­os à cena e, sem querer, tornou uma modalidade radical em arte. Os hospitais psiquiátricos, as prisões, as CERCI, as associações de minorias étni­cas fazem o mesmo. Muitos têm grupos de teatro, de dança ou de música. “A produção artística está mais reflexiva, mais conscien­te”, diz Ana Matos. “A recessão ajudou os artistas a porem os pontos nos is. A questão está a descentrar­se da forma – um sítio

bem desenhado pode ser arte, em última instância – e a centrar­se muito mais no conteúdo.”

Ninguém pode dizer, no que toca à pro­dução artística, se os períodos de recessão foram mais produtivos ou criativos do que as épocas de desenvolvimento. Mas é justo, segundo o filósofo britânico Robert C. Solomon, definir os anos de crise como mais emocionais. “Não só o realismo social dos anos 1930, mas também o realismo literário

do final do século XIX e o futurismo do início do século XX, ou a muito crítica arte povera dos anos 1970, são movimentos em que percebemos que algo está para mudar, que algo tem de mudar. É nestes períodos que se abrem caminhos, que a arte se redi­mensiona, que se reinventa a si mesma.”

O período de retoma económica está a chegar, segundo as declarações dos bancos centrais americano e europeu. Leiloeiros, galerias, museus e agentes culturais res­piram de alívio. Os subsídios vão voltar, os cachets vão subir, as iniciativas vão sur­gir. Mas significará isso que a ruptura artística destes últimos anos tem os dias contados? “O espaço que se abriu já não pode ser fechado”, diz o britânico Bill Childish, um dos fundadores do Stuckism, um dos mais importantes movimentos artísticos desta década, que advoga o aban­dono do conceptualismo e um retorno à criação figurativa, ou, como o pintor pre­fere dizer, “àquilo que realmente interes­sa às pessoas”. “Agora, a arte está mais massificada do que nunca. Agora, já não há elites. Agora todos podemos fazer, todos podemos criar, todos podemos experimentar e receber.” Seja. Yes, we can também é o lema aqui.

O homem é um joker. Só pode ser. Numa altura em que a Sotheby’s tem poucas ou nenhumas expectativas de bater recordes de vendas, o artista italiano Maurizio Cattelan surpreende tudo e todos ao vender uma peça por um valor que ninguém esperava, oito milhões de euros. A escultura em causa é uma imagem de Hitler ajoelhado em ora-ção e lança uma pergunta imediata: será que Deus lhe perdoaria?Em Junho, Cattelan esculpiu um retrato de si mesmo e vendeu-o por �50 mil euros. Desde �004, quando vendeu uma figura do papa João Paulo II atingido por um meteoro, por �,6 milhões de euros, que a sua cotação no mercado não pára de cres-cer. O bizarro e o absurdo são as suas marcas e a “realidade invertida”, como ele lhe chama, parece estar a marcar a ten-dência actual. Um facto é certo – em tempo de crise, Maurizio Cattelan está a triunfar. A sua fórmula é a mesma de todos os artistas de sucesso em todos os períodos de recessão: o realismo. Só que este é um realismo esquisito, apenas isso.

O fenómeno Cattelan

“é nestes períodos que se abrem caminhos, que a arte se redimensiona, que se reinventa a si mesma.”

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America where?

O colóquio de estudos americanos orga­nizado pela Faculdade de Letras trouxe à Universidade de Coimbra investigadores dos dois lados do Atlântico. Depois de um afro­americano ter chegado à Casa Branca, nomes internacionalmente reconhecidos na área da americanística ajudaram a ler os Estados Unidos num momento que mar­cará profundamente a História do país.

O encontro cruzou abordagens várias da multiculturalidade da nação que, às vezes permissiva, às vezes impiedosa, não deixa de atrair o mundo, e de influenciá­lo. O que estava em causa? Identidades e diferenças. Cultura. Onde está a “América” agora? O atlantismo, o neoliberalismo, o transnacionalismo, o racismo, a literatura, a fotografia, o cinema, as prisões, a guerra e as fron­teiras deram respostas.

George Hutchinson, da Universidade de Indiana, lembrou que o tempo de Barack Obama assenta numa ideologia racial maniqueísta que desde sempre predeter­minou lugares na sociedade norte­ameri­cana. A divisão entre preto e branco não dispensa a árvore genealógica. Ao contrá­rio, sempre ignorou a aparência, optando por uma classificação que é muito mais política do que racial.

A história de Nella Larsen e da sua personagem Helga Crane (a escandinava mulata, filha de mãe branca, de pai cari­

benho e enteada de um branco), e o trauma da experiência familiar inter­racial lançaram a questão da inevitável (?) subordinação da família à raça, e do alto preço que pode custar a transgres­são da linha de cor na sociedade que, vista de fora, parece apenas energica­mente colorida. Lá dentro, o sangue define o lugar, e outra ordem racial como a do Brasil, por exemplo, suben­tenderá um caos correspondente a um não­lugar. A pergunta será: como podem e como conseguem os Estados Unidos influenciar outras sociedades a adoptar as mesmas rígidas linhas divisórias na atribuição de uma identidade?

A fronteira foi o tema trazido por Ana Manzanas Calvo, da Universidade de Salamanca, que alimentou a reflexão sobre a obsessiva necessidade de delimitações

físicas como garantes da estabilidade da “América”. Especial­mente focada na divisão entre o México e os Estados Unidos, e recorrendo ao filme The Terminal, de Steven Spielberg, Ana Manzanas identificou a linha de fronteira como “entre­lugar”, isto é,

sítio de passagem, onde a permanência não tem nexo e a ameaça é real. Espécie de tranquilizador nacional, a fronteira separaria os “puros” dos outros, fixa sob um prenúncio de poder violento que, sempre que necessário, se manifestará a bem da integridade da nação.

Dessa “nação­centro” que o mundo não desiste de querer integrar, partiu Heinz Ickstadt, professor de Literatura Americana na Universidade de Berlim, para questio­nar o que deverá ser o coração dos estudos americanos actuais: o progresso?

Durante dois dias, o país pediu emprestado o nome ao continente para que coimbra pensasse a superpotência no século XXI. as influências que o mundo colhe, acolhe

ou rejeita. O mito que sobrevive. O puzzle de culturas que se faz e desfaz. as portas abertas e fechadas. Da “américa” para o resto do mundo. E de cá para lá.

POR sAnDrA inês Cruz

portuGAL/euA

‘o encontro cruzou abordagens várias da multiculturalidade da nação que, às vezes permissiva, às vezes impiedosa, não deixa de atrair o mundo, e de influenciá-lo. ’

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O processo demo­crático? A libertação da mulher? A (des)integração das minorias? Forçosamente diferentes em função do ângulo de visão, os objectivos da americanística deverão sempre ter em consideração que o alvo é suficientemen­te forte para transformar o resto do mundo. Nesse sentido, “América” será everywhere, independentemente dos focos e períodos de antiamericanismo referidos por Teresa Alves, da Universidade de Lisboa.

Afinal, de que falamos nós quando fala­mos da América? Do eldorado que, desde sempre, representou o novo mundo para os portugueses emigrantes que cimentavam

as ligações entre os países dos amigos Thomas Jefferson

e Abade Correia da Serra? Do exemplo da democracia? Da globalização?

Amy Kaplan, professora na Universidade da Pennsylvania e, como os outros ora­dores, autora de várias publicações na área dos estudos americanos, recuou ao século XIX para repensar a “América” através de Melville e do seu Moby Dick; Melville raramente identifica as suas per­sonagens pela nação, sendo antes o lugar em que vivem o factor determinante da sua identidade. Alheio ao peso das linhas de fronteira, o escritor que morreu sem grande reconhecimento do público cons­truiu, na sua ficção, um circuito trans­

nacional que permitia a circulação de pessoas e de saberes, adensados no e pelo movimento fluido da viagem: uma escri­ta entre espaços, sem as delimitações que lhe sugeriam estrangulamento, e agora são desejadas como inibidoras de ansie­dades e tensões.

A tensão foi o elemento de união entre os vários projec­tos fotográficos apre­sentados por Liam Kennedy, director do

Clinton Institute, em Dublin. Respondendo, num assumido nível de simbo­lismo, à pergunta que o colóquio mantinha pen­

dente, L. Kennedy usou a relativa autorida­de documental da fotografia para lembrar os seus

poderes de educação e consequente influ­ência. Testemunha,

exposição, espelho crí­tico, a imagem deixa pen­

sar realidades estranhas, distantes e ocultas.

Cenas de hospitais, interiores de casas, soldados sem exér­

cito podem trans­mitir e prolongar um

espírito de missão ou a vã glória do patriotismo. Num ou

noutro caminho, a ilusão de ver­dade reforça valores e objectivos.

Perante uma casa destruída e inundada de destroços, onde está a “América”? Na Guerra do Iraque? Num filme de

acção? Em tempo de crise, é a escandalosa tensão que alimenta

a imagem da homeland?Ruth Gilmore, presidente da Associação

de Estudos Americanos nos Estados Unidos, abriu a porta às prisões norte­americanas para deixar entrar em cena os conceitos de “culpado” e “inocente” associados aos de “imigrante” e “cida­dão”, numa perspectiva que deixa a des­coberto um racismo estrutural . O que é que “criminoso” tem a ver com “estrangeiro”?

Ruth Gilmore trabalhou durante anos o tema da sobrelotação das prisões. Lembra que, reforçando o carácter de “não­lugar”, a maioria das cadeias situa­se em zonas de fronteira. Como se organizam? O que trans­mite a sua organização? É na defesa de uma ordem social conseguida também pela punição da raça que está a “América”?

portuGAL/euA

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 2010

Rob Kroes, professor na Universidade de Amesterdão, ex-presidente da Asso- ciação Europeia de Estudos America- nos, tem mais de trinta livros publi- cados na área da americanística que também desenvolve em publicações peri-ódicas. Em Coimbra, propôs-se reler o atlantismo na sua dimensão cultural, pensando as relações actuais entre a Europa e os Estados Unidos, num exer-cício que equaciona a história cultural dos dois lados do Atlântico: como o fim do século XIX trouxe a consciência, por parte dos Estados Unidos, da sua dife-rença relativamente aos cânones euro-peus, ao som do jazz e não da música clássica; como os standards culturais que chegavam da Europa integravam os inte-resses, não da população em geral, mas das elites; como o século XX e a eman-cipação cultural da “América” fizeram nascer outras formas válidas de trans-missão da ideologia dominante; a cul-tura de massas e a aparente liberdade que representa a escolha livre cercada de publicidade; o sucesso da nova receita cultural e a eficácia dos ingredientes “sonho” e “fantasia”. Rob Kroes falou, a este propósito, de um softpower, por causa da capacidade que esses ingredien-tes têm de servir diferentes repertórios, funcionando como alicerces de variadís-simas expressões culturais. Imperia-lismo cultural? Talvez. Mas comercialmente assumido, pela valorização das técnicas de massa que não se diminuem perante as elites ciosas da pro-moção dos poderes político e económico. Beber uma Coca- -Cola ou fumar um Marlboro serão formas possíveis de viver o sonho americano, de forma mais ou menos cinematográfica. Com dispensa

de narrativa, é certo. E então, a “América” estará em todos os filmes em que a tra-gédia foi substituída por uma espécie de jogo de computador com vários níveis que as novas gerações querem passar. Ainda que não gostem da “América”, mas acei-tem, num darwiniano processo de adapta-ção, novas formas de cultura de que, dese-jada ou indesejada-mente, se apropriam. Reinventada, a “Amé-

rica” estará em todo o lado. O encontro de Coimbra quis prestar

uma atenção particular às dimensões social e cultural da nação que, na sua multiculturalidade, na conflitualidade das suas fronteiras, nas suas contradições e fascínios não deixa de estar espalhada pelo mundo.

A organização do colóquio foi pensada

de modo a que alunos de mestrado e dou-toramento em Estudos Americanos tives-sem mais do que o privilégio de assistir às palestras de especialistas; à margem das comunicações abertas ao público, os estu-dantes tiveram oportunidade de apresen-tar aos convidados os seus projectos de investigação.

Maria Irene Ramalho Santos, Isabel Caldeira e Maria José Canelo, organizado-ras do colóquio, falam de um balanço extremamente positivo: “Aprendemos todos muito, beneficiámos e beneficiare-mos dos contactos feitos (estudantes nos-sos já fizeram visitas aos centros e universidades que os especialistas convi-dados representam, para prosseguirem com a investigação no âmbito das suas teses, e outros estão a prepará-las ou, pelo menos, a beneficiar dos contactos feitos) e demos visibilidade e crédito aos progra-mas de Estudos Americanos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. As opiniões expressas durante e após o even-to, especialmente da parte dos especialis-tas convidados e de colegas de outras universidades, confirmaram plenamente esta nossa convicção.”

PORTUGAL/EUA

‘Afinal, de que falamos nós quando falamos da América? Do eldorado que, desde sempre, representou o novo mundo para os portugueses emigrantes que cimentavam as ligações entre os países dos amigos Thomas Jefferson e Abade Correia da Serra? Do exemplo da democracia? Da globalização? ’

43

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 201044

Quando a escritora Eudora Welty (1909- -2001) nasceu há cem anos, no Mississipi, já não havia escravos nas plantações dos estados sulistas, graças à Proclamação de Emancipação assinada no dia 1 de Janeiro de 1863 pelo Presidente Abraham Lincoln. Mas ainda existia uma dura segregação racial que empurrava os afro-americanos para os bancos traseiros dos transportes públicos, vedando-lhes o acesso às escolas, hospitais, teatros, cafés e parques frequen-tados pelos brancos e impedindo-os de votar ou serem eleitos. Os legados político de Lincoln e literário de Welty foram dis-cutidos durante um colóquio organizado pela Linha de Acção de Estudos Americanos do Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa (CEAUL), designa-do “Post Racial América: Has the USA Moved Beyond the Race Issue?”

Edgardo Medeiros Silva, um dos orga-nizadores, afirmou à Paralelo que o simpó-sio foi concebido com uma finalidade dupla: “Celebrar o bicentenário e o cen-tenário de Abraham Lincoln e de Eudora Welty, respectivamente; avaliar se a eleição de Barack Obama, o primeiro presidente afro-americano, representa o início de um momento político nos Estados Unidos em que para a maioria dos americanos as questões raciais possam já ter passado para um plano secundário das suas preocupa-ções enquanto cidadãos.”

A questão da raça é transversal a Lincoln e a Welty, justifica aquele professor: “O primeiro, como responsável pelo fim da escravatura nos Estados Unidos e por ter concedido direitos políticos aos ex-escra-vos; Welty, pelo facto de ser uma escrito-ra e fotógrafa do Sul, cuja produção artística evidencia um particular interesse pelas relações entre brancos e negros.”

O Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa organizou um colóquio para comemorar o bicentenário de Abraham Lincoln e o centenário de Eudora Welty.

Repensar Lincolne Welty numa América

multicultural

POR CARLA BAptistA

pORtUGAL/EUA

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 2010 45

Assassinado com um tiro na nuca, dis-parado pelo actor John Wilkes Booth, no dia 14 de Abril de 1865, quando assistia a uma peça cómica no Teatro Ford, em Washington, Lincoln ainda viveu para ver o fim iminente da guerra civil (1861- -1865), a pacificação da União e o sarar das feridas causadas por um conflito que ceifou mais de 650 mil vidas, objectivos principais do seu segundo mandato, ini-ciado em 1864.

Esta grande figura da história americana, tão grande que Jeff Childs, também ligado ao centro, recordou com ironia que, em criança, considerava Lincoln “o segundo Presidente americano, logo a seguir a George Washington”, fazendo-o galgar uns bons lugares em relação à sua real 16.ª posição, continua a inspirar a análise política.

Hoje, acrescenta, Lincoln surge “como uma figura de reconciliação. Basta consi-derar a forma como a sua imagem foi invocada durante as últimas eleições pre-

sidenciais americanas. A actual clivagem ideológica que se verifica nos Estados Unidos (cuja representação simbólica será a divisão do país em estados azuis e ver-melhos) pode ser lida em termos que fazem lembrar os tempos da Guerra Civil Americana e o profundo conflito social e político que se viveu na altura. Nessa pers-pectiva, Lincoln afigura-se como a espe-rança pela superação das diferenças ideológicas actuais e pela definição de um novo propósito nacional”.

O rosto granítico de Abraham Lincoln, filho de pais humildes nascido numa zona rural do estado de Kentucky, órfão de mãe aos 10 anos e cuja infância decorreu entre trabalhos agrícolas e os ursos que então ainda habitavam as florestas de Indiana, para onde o pai se mudou com a família quando ele tinha oito anos, é um dos íco-nes mais fortes da contemporaneidade. Forçado a usar barba para esconder a sua notória fealdade (foi o primeiro Presidente

americano barbudo), a sua imagem popu-larizou-se graças às fotografias de Mathew Brady, em Fevereiro de 1860, uma época que nos Estados Unidos marca também a rápida transformação do medium fotográ-fico numa forma de expressão popular.

A identificação empática suscitada pelo sofrimento entranhado no rosto presiden-cial, um homem que mergulhou com relutância o país numa sangrenta guerra civil para preservar um ideal político, per-deu três filhos bebés e morreu numa cama improvisada que era pequena demais para o seu corpo repousar, penosas horas depois de uma bala disparada à queima- -roupa lhe ter decepado parte do cérebro, é um dos factores que o liga à escrita humanista de Eudora Welty, acusada várias vezes, entre o elogio e a crítica, de gostar “excessivamente” das suas personagens.

Considerada a “mais clemente” do triun-virato feminino do Sul dos Estados Unidos, juntamente com Flannery O’Connor

pORtUGAL/EUA

Richard Carwardine, professor de História Americana no st. Catherine College, em Oxford, autor de uma das melhores bio-grafias de Abraham Lincoln, intitulada Lincoln: A Life of Purpose and Power (2003), condensou a visão política do 16.º Presidente dos Estados Unidos através da confidência feita a um amigo íntimo, Joshua Speed, em Fevereiro de 1865, numa altura em que já era assaltado por visões da sua própria morte: “Morra eu quando morrer, quero que aqueles que me conheceram melhor me recordem como alguém que arrancou cardos e plantou flores, sempre que pensei que uma flor podia crescer.”Carwardine demonstra como o projecto político e social de Lincoln buscou uma sociedade inclusiva e “fluida”, onde a liber-dade individual era condição para a felici-dade colectiva. O trabalho escravo, em que assentava a base da economia de estados como Alabama e Mississipi, corrompia este princípio original de igualdade entre os homens e meritocracia económica e por isso Lincoln escreveu: “Sou naturalmente antiescravatura. Se a escravatura não é errada, então nada é errado.”

Lincoln e a arte de plantar flores e arrancar cardos

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 201046

e Carson McCullers, Eudora Welty escreveu em 1965, no auge do movimento pelos direitos civis dos negros: “Precisamos de escrever com amor.”

Diana Almeida, investigadora do CEAUL e organizadora do evento, refere que “devido ao fundo realista da sua ficção, Welty dá a conhecer o contexto histórico dos Estados Unidos, potenciando a com-preensão da clivagem Norte-Sul”.

Autora de uma das ainda poucas tradu-ções portuguesas (Os Ventos e Outros Contos, da Antígona) da obra prolixa de Welty, aquela especialista em literatura não tem uma resposta “taxativa” para explicar o relativo alheamento nacional face a uma das autoras norte-americanas mais pro-eminentes do século XX: “A escrita de Welty pertence a uma tradição de mulhe-res sulistas que só há pouco começou a ser desvendada pelos nossos editores, sendo que a literatura do Sul ficou déca-das na sombra de William Faulkner. O facto de Welty ser uma contista (escre-veu romances e novelas, mas ela própria se definia como contista, e a crítica reco-nhece que a sua profunda inovação for-mal se centra sobretudo no conto) pode

ter contribuído para esta situação, visto o conto ser normalmente um género literário menorizado, com menos vendas do que o romance, pelo menos no mer-cado português.”

Um dos contos mais discutidos duran-te este encontro, que incluiu passagens de filmes na Cinemateca e leituras de histórias, foi Where is the Voice Coming From?, o único que Welty escreveu “com raiva”, na própria noite do assassinato de Medgar Evers, destacado líder da NAACP (National Association for the Advancement of Colored People), morto a 11 de Junho de 1963, horas depois de o Presidente

John Kennedy se ter dirigido pela televi-são ao país, exortando à aceitação da igualdade racial.

Medgar Evers foi um dos apoiantes de James Howard Meredth, candidato à

Universidade do Mississipi, a mais prestigiada da região, conhecida por “Ole Miss”. Nos papéis de ingresso, escreveu “Sou um cidadão negro amer icano do Mississipi” e, para não haver dúvidas, juntou uma foto. Previsivelmente, a sua admissão foi rejeitada, desencadeando uma luta de dezoito meses, violentos motins de rua, a invasão do

campus por tropas federais e “uma grave crise moral”, nas palavras de John Kennedy, que obrigava a repensar os princípios fun-dadores da nação americana, recordados por Lincoln num comovente discurso pro-ferido em honra das vítimas da guerra, no cemitério de Gettysburg: “que esta nação […] renasça em liberdade e que o governo do povo, pelo povo, para o povo, não desapareça da Terra.”.

‘Que esta nação […] renasça em liberdade e que o governo do povo, pelo povo, para o povo, não desapareça da terra. ’ Abraham Lincoln

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Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 2010 47

Desde 2003, ano da realização do primei­ro encontro, que a FLAD, em parceria com outras fundações, tem incentivado o esta­belecimento de laços entre as fundações da CPLP com propósitos de dar a conhe­cer as áreas de actuação e programas em desenvolvimento, reflectir em conjunto sobre os principais problemas sentidos no desenvolvimento das actividades, promo­ver parcerias institucionais, e facilitar con­tactos institucionais e pessoais.

A edição de 2009 (sexta) teve lugar na cidade de São Tomé, São Tomé e Príncipe, entre os dias 13 e 17 de Setembro de 2009 e constituiu o resultado de uma organi­zação conjunta da Fundação Mãe Santomense, na qualidade de anfitriã, e do Centro Português de Fundações, apoia­do por um secretariado composto pela Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (Moçambique), Fundação Sagrada Esperança (Angola), Fundação Infância Feliz (Cabo Verde), e pelas por­tuguesas Fundação Bissaya Barreto, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação Luso­Americana para o Desenvolvimento e Fundação Oriente.

O 6.º Encontro de Fundações da CPLP foi subordinado ao tema “A Valorização do Factor Humano nos Processos de Desenvolvimento” e da agenda de traba­lhos constou a análise e reflexão sobre: “As Novas Tendências na Ajuda ao Desenvolvimento”; “O Factor Humano e o Desenvolvimento”; “A Capacitação das Organizações da Sociedade Civil nos Processos de Desenvolvimento”; “Os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio nos Países da CPLP”; “A Cultura e a Criatividade no Desenvolvimento

Humano”; “As Estratégias de Cooperação entre as Fundações no Espaço da CPLP”.

Foi o encontro mais participado de sem­pre, quer em número de fundações, quer em número de representantes – cerca de 70 representantes de 40 fundações de Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe, várias ONG locais e uma delegação da CPLP encabeçada pelo secretário executivo.

O salto qualitativo registado neste encon­tro deveu­se, para além da excelência do debate, à apresentação do estudo “Metas de Desenvolvimento do Milénio – Relatório Comparativo de Progresso (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste”). Este estudo, realizado em conse­quência e por determinação do encontro de 2008, terá forte impacto na orientação das políticas de acção consideradas prio­ritárias pelas fundações da CPLP. Marcou um avanço pragmático na realização des­tes encontros, para além de constituir um

documento de análise e recomendações único no espaço da CPLP. Por outro lado, este estudo permitiu determinar alguns dos temas a incluir na agenda da próxima reunião e, consequentemente, recomen­dou a preparação de um outro dedicado, desta vez, às boas práticas sobre inovação social nos programas de cooperação para o desenvolvimento.

Em declaração final, as fundações pre­sentes adoptaram um conjunto de con­clusões, das quais se destacam: a importância de repensar o modelo da ajuda ao desenvolvimento; a orientação das actividades para projectos inovadores, dinâmicos e sustentáveis, que promovam o trabalho em rede e a capacitação das organizações da sociedade civil, que invis­tam na formação, na qualificação técnica e na criação de lideranças fortes, e que fomentem o empreendedorismo juvenil e a inovação social; a promoção de pro­jectos tendentes a melhorar o alcance dos objectivos de desenvolvimento do milénio, designadamente nos eixos da educação e da saúde (infantil e materna); e a impor­tância das fundações no estudo e divul­gação da cultura e da expressão artística nos países da CPLP.

A Fundação Luso­Americana esteve pre­sente neste encontro com a participação de Rui Machete (presidente), Charles Buchanan (administrador) e Fátima Fonseca (direc­tora para a área da Cooperação com Países de Língua Portuguesa).O 7.º Encontro terá lugar em Setembro de 2010, no Brasil, a convite da Fundação Roberto Marinho. * Directora para a cooperação com os países de Expressão portuguesa

Fundações da CpLp dialogam em são tomé

POR FátimA FonseCA*

a promoção anual de encontros de fundações de todo o espaço lusófono é um fórum privilegiado de dinamização do sector das fundações no contexto

das organizações da sociedade civil.

‘“A valorização do Factor humano nos processos de Desenvolvimento” foi o tema deste encontro. ’

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Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 201048

Deixou os açores e o seminário para ir tentar a sorte nos Estados Unidos poucos meses depois do 25 de abril. Queria estudar mas não tinha dinheiro que chegasse, desistiu e acabou por ingressar na actividade de outros familiares seus – a construção civil.

Os irmãos de antónio Goulart não queriam acreditar que ele conseguisse.

Dos Açores e da Galiza

em busca do sonho americano

“Tu nunca trabalhaste, andaste sempre a estudar, não sabes o que é trabalho, sobretudo a construção civil”, diziam. Mas se não sabia, Goulart depressa apren­deu e formou uma empresa familiar na Califórnia muito bem­sucedida. Tornou­ ­se um exemplo de self made man e passou a usar o nome Tony.

Como milhares de açorianos também muitos galegos optaram pela emigração para os Estados Unidos em busca do Eldorado. Por essa razão, o colóquio que decorreu na Horta, organizado pela FLAD em conjunto com o Governo Regional dos Açores, a Universidade dos Açores e o Consello da Cultura Galega, “Comunidades

Euro­Atlânticas nos EUA – Experiências da Emigração da Galiza e dos Açores”, que juntou um conjunto alargado de perso­nalidades, provenientes dos Açores, da Galiza, dos Estados Unidos e de Portugal continental para analisar e discutir as ques­tões relativas às origens da emigração da Galiza e dos Açores para os Estados Unidos, apresentando também as suas implicações ao nível económico e empresarial.

Nas palavras de Alberto Pena, professor da Universidade de Vigo, presente no coló­quio: “A Galiza e o arquipélago dos Açores são dois territórios atlânticos excepcionais, unidos por características de idiossincrasia social comum.

Partilharam os mesmos destinos ao longo da História, ainda que percorren­do caminhos diferentes. A Galiza foi e continua a ser uma espécie de ilha na Península Ibérica, cujos sinais culturais, como os do povo açoriano, foram forja­dos na sua relação com o oceano Atlântico, e cuja economia assenta histo­ricamente na pesca, na pecuária e na agricultura. As dificuldades de sobrevi­vência impulsionaram um espírito empreendedor que levou os galegos a espalharem­se pelo mundo na procura de novas oportunidades, abrindo a sua cultura ao intercâmbio atlântico desde o Norte do Canadá até aos confins da Terra do Fogo. O fenómeno da emigração gale­ga e açoriana tem muitas convergências, especialmente nos Estados Unidos, onde os emigrantes encontraram um mundo novo no qual lançaram novas raízes sem esquecer as velhas origens. Neste sentido, torna­se imprescindível resgatar a histó­ria desta experiência única de duas cul­turas atlânticas lusófonas imbuídas do sonho americano.”

“A sua vida é a realização do sonho americano?”, perguntámos a Goulart. “Até certo ponto”, responde. “Temos sempre dificuldade em avaliar as nossas próprias experiências.” Com o mestrado em Recursos Humanos, Goulart tem uma empresa de grande sucesso de revestimentos de interiores de imóveis. Tornou­se um homem forte do associa­tivismo da comunidade de emigrantes portugueses na Califórnia, tendo criado uma câmara de comércio. “Conseguimos dar essa visibilidade à comunidade. A Câmara de Comércio passou a ser a refe­rência para a senhora Mayor, que inclu­sivamente visitou Portugal. No período áureo da Câmara de Comércio, estáva­mos em pé de igualdade com os outros grupos étnicos.”Os Emigrantes, tela a óleo de Domingos rebelo, no museu Carlos machado, em ponta Delgada.

DR

portuGAL/euA

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 2010 49

DR

Da Galiza também se partia para os Estados Unidos, mas “há dualidade na emi­gração galega”, explica Xosé López, vice­­presidente do Conselho de Cultura Galega. Isto porque “com os emigrantes sem recur­sos, analfabetos que vão à procura de tra­balho, parte da Galiza gente da elite, exilados”.

Cultura de lá e Cultura de CáAo mesmo tempo que se tentam integrar, galegos e açorianos esforçam­se por con­servar as suas raízes. Como encarar a cul­tura que os recebe sem desprezar a de origem? “A vinculação com tudo o que é da Galiza e agrupamentos em colectivida­des espanholas faz a ligação”, afirma López, acrescentando: “Há uma série de publicações que surge com os fluxos migratórios, algumas das publicações incluem alguns textos em galego mas tam­bém em castelhano, porque nem toda a emigração era galega. Esse tipo de publi­cações perdeu algum sentido hoje, em que grande parte dessa geração já mantém uma relação através da internet.”

Compreendendo a importância das publicações ainda na actualidade, como elo de ligação das pessoas com a sua cultura, Tony Goulart também se dedi­cou a editar livros. “Fizemos um levan­tamento sobre a maior tradição social, cultural e religiosa dos açorianos na Califórnia – as Festas do Espírito Santo. O sucesso foi retumbante, tanto no apoio comunitário como no apoio ins­titucional. A nossa intenção seria que, ao fim desta publicação, tivéssemos lucros muito reduzidos que seriam dis­tribuídos por bolsas de estudo. O suces­so económico da iniciativa acabou por ser tão grande que tínhamos uma conta

bancária com 100 mil dólares depois da primeira edição. Criámos a editora. Até agora publicámos 18 títulos.”

Os jovens descendentes de emigrantes, seja dos Açores ou da Galiza, estão já muito integrados. Goulart lembra que as pessoas ainda se juntam com frequência por serem portugueses ou descendentes de portugueses. Embora as mais novas já praticamente não o façam.

Para cativar os jovens para as origens dos seus antepassados, Xosé López apos­ta nas potencialidades da internet: “Ter recursos para que ouçam música galega, para que vejam como eram as casas, para que localizem a Galiza geograficamente... Isso atrai para a cultura Galega!” Tony Goulart opta por publicar em inglês para atrair os mais novos, embora até agora os autores tenham sido sempre portu­gueses ou luso­descendentes: “Publicamos em inglês porque, contrariamente ao que muita gente defende, achamos que a língua de transmissão de cultura muito brevemente será exclusivamente o inglês.” SP

POrtuGal/eua

tony Goulart opta por publicar em inglês para atrair os mais novos.

Xosé lópez: “a nova geração da comunidadeemigrante mantém a relação com a Galiza

pela internet”.

Casa da Galiza em Nova Iorque, em 1959.

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 201050

a candidatura a um dos dez lugares de membro não permanente do conselho de Segurança das Nações Unidas para o biénio 2011-2012 é actualmente

um dos principais objectivos diplomáticos de portugal, que não é candidato a mais nenhuma organização internacional até Outubro de 2010.

A estratégia passa por negociar com os res­tantes países uma troca de apoios suficien­temente alargada para garantir o acesso a esse “clube muito restrito, quase secreto”, nas palavras de Paula Escarameia, docente no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, na Faculdade de Direito da Universidade Nova e membro da Comissão de Direito Internacional da ONU desde 2002 (foi a primeira mulher a ser eleita para este órgão, cuja missão é preparar projectos de convenções internacionais).

O Conselho de Segurança (CS) é o órgão mais importante das Nações Unidas (NU), cuja estrutura principal compreende ainda o Secretariado, o Conselho Económico e Social e o Tribunal Internacional de Justiça, além da Assembleia Geral. O Conselho de Tutela suspendeu as suas actividades em 1994, depois de Palau, o último pequeno território no Pacífico que ainda se encon­trava sob administração das NU, se ter tornado um país independente.

Apesar de a Carta das Nações Unidas já ter sofrido várias emendas desde que foi assinada, em São Francisco, a 26 de Junho de 1945, a necessidade de reformar uma máquina burocrática vista como pesada e, em muitas situações, ineficiente, é um debate sempre presente na história mais recente da instituição.

Os três países que disputam os dois lugares disponíveis para o grupo regional que abrange a Europa e a América do Norte incluem a palavra “reforma” no seu argumentário de candidatura. Para Portugal, a reforma constitui uma discre­ta décima (e última) prioridade, resu­mindo­se a “apoiar a mudança em curso

visando uma organização mais represen­tativa, coerente, transparente e eficaz”.

Mas, para a Alemanha, é uma prioridade máxima da sua política externa que impli­ca conseguir para aquele país, o terceiro maior contribuinte da ONU (o primeiro é os Estados Unidos, com 22 por cento do total do orçamento, sendo, também, o maior devedor, e o segundo o Japão, que sustenta idêntica reivindicação), um lugar de membro permanente.

O Canadá, embora sendo um apoiante do alargamento do Conselho de Segurança, em princípio favorável à entrada de potências emergentes do Sul na qualidade de mem­bros permanentes, a mais provável das quais seria o Brasil (a Índia, outro candi­dato óbvio, não assinou o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, em 1970, mantém um programa nuclear activo e sustenta um conflito com o Paquistão que desperta várias resistências à sua candida­tura), concentra as suas prioridades numa gestão mais eficiente da rede de organismos especializados que trabalham em áreas tão diversas como a saúde, a agricultura, a avia­ção civil, a meteorologia e o trabalho.

Além dos fundos mais conhecidos, como a UNICEF (Fundo das NU para a Infância), e dos programas e órgãos com maior pro­

jecção internacional, como o ACNUR (Alto­Comissariado das NU para os Refugiados, actualmente presidido por António Guterres), o PMA (Programa Mundial de Alimentação) ou o PNUD (Programa das NU para o Desenvolvimento), existem dezenas de outros organismos especializados, como a FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação), o FMI (Fundo Monetário Internacional), o BIRD (Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento), além de institutos de estudo e pesquisa, comissões orgânicas, comissões regionais e órgãos conexos.

Cada um dos candidatos está empenhado em fazer valer os seus trunfos. E se, para Portugal, esta eleição se joga muito em torno do conceito de softpower, ou seja, a sua capacidade de atrair países de pequena e média dimensão susceptíveis de se iden­tificarem com os princípios universalistas e multiculturais da agenda portuguesa, tanto a Alemanha como o Canadá possuem um arsenal de hardpower infinitamente supe­rior, estimado em elementos como a popu­lação, o território, os recursos naturais, o poder económico e militar.

A Alemanha já esteve quatro vezes representada no CSNU, embora só seja membro das NU desde 1973, e apresen­tou a candidatura no final de 2006, depois de ter terminado o seu último mandato em 2003­2004. O facto de con­tribuir com quase 10 por cento do orça­mento das NU, e de estar activamente envolvida na reforma do CS, tendo em vista o seu alargamento a países como o Brasil, o Japão (cuja contribuição se apro­

portuGAL/euA

portugal, Alemanha e Canadá candidatos ao Conselho

de segurança

‘para portugal esta eleição joga-se em torno do softpower. ’

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 2010 51

xima dos 20 por cento) e a Índia, tanto pode jogar a seu favor como contra si.

O voto dos pequenos países vale tanto como o dos grandes (a regra é um país, dois votos, um para cada um dos assentos disponíveis no grupo WEOG (Europa Ocidental e Outros) e a China, um dos cinco ocupantes permanentes do CS, jun­tamente com os Estados Unidos, a França, o Reino Unido e a Rússia, que gozam do direito de veto em relação a todas as deci­sões daquela cúpula, opõe­se à entrada do Japão, posição partilhada com a Coreia do Sul. Por seu turno, o Paquistão opõe­se à entrada da Índia, e a Argentina e o México não apoiam a entrada do Brasil, visto como o vizinho sul­americano hegemónico.

O Canadá, que apresentou a candidatura após ter concluído o seu sexto mandato no CS, em 1999­2000, fará certamente valer os seus apoios no âmbito da Commonwealth e da comunidade francó­fona (pertence às duas).

No plano financeiro e nos apoios regionais declarados, Portugal tem poucas hipóteses de ganhar a contenda. Os PALOP, que cer­tamente o apoiarão, constituem apenas um núcleo de cinco países, e alguns podem já ter perdido o seu direito de voto devido à falta de pagamento das quotas para as NU.

Este é, aliás, um problema generalizado que afecta o funcionamento da instituição e coloca em causa o seu modelo de finan­ciamento. Em Outubro de 2009, a subse­cretária­geral de administração, Ângela Kane, anunciou que apenas 22 países não tinham dívidas com as NU. As missões de paz, que têm crescido nos últimos anos, e são financiadas com um orçamento à parte,

constituem a maior fatia de contas malpa­radas, com a factura em falta a ascender a cerca de 2,1 biliões de dólares.

Mas, no contexto geral, Portugal possui boas perspectivas de sucesso. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, já declarou ter reunido “cerca de uma centena de apoios, uns mais explícitos do que outros”, sendo que o país vencedor necessita de angariar pelo menos dois terços mais um (129) do total dos 192 Estados­Membros.

Por outro lado, a sua condição de país pequeno e periférico pode jogar a seu favor. Esteve apenas duas vezes representado no CS: em 1979­1980, como “prémio” pela sua então jovem democracia, e em 1997­1998, durante o Governo presidido por António Guterres, a pasta dos Negócios Estrangeiros ocupada pelo ministro Jaime Gama e a representação portuguesa junto das Nações Unidas chefiada pelo embaixa­dor António Monteiro.

Há muitos outros países que apoiam uma maior rotatividade e representatividade entre os membros do CS, e Portugal goza de um bom estatuto internacional, devido à sua elevada contribuição para as opera­ções de paz (participou em 20, com cerca de 20 mil efectivos, sendo o maior contri­buinte ocidental de agentes policiais, apro­ximadamente dois mil, números totais da contribuição de Portugal até hoje), a sua integração numa vasta rede de organizações internacionais (UE, OSCE, CPLP, OCDE, União para o Mediterrâneo, OEA), muitas desde a sua fundação (como a NATO).

Além disso, tem estado envolvido numa intensa actividade diplomática, com resul­

tados consensualmente vistos como posi­tivos: presidiu ao Conselho da UE entre 1 de Julho e 31 de Dezembro de 2007 e conseguiu fazer passar o difícil Tratado de Lisboa; acolheu a Cimeira Ibero­Americana em Novembro de 2009 e no final de 2010 vai ser o anfitrião da próxima cimeira da NATO, um encontro visto como decisivo para a definição de um novo conceito estratégico daquela aliança.

Todos estes fóruns constituem oportuni­dades cruciais para a angariação de apoios para a candidatura portuguesa, e mobili­zam todas as instituições políticas, desde o Governo, a Presidência da República, a Assembleia da República, ministérios e até empresas, fundações e personalidades individuais.

Na linha da frente está a Missão Permanente junto das Nações Unidas, actualmente chefiada pelo embaixador José Filipe Moraes Cabral. O voto é secreto e quem vota são os representantes permanentes, daí que sejam também eles os alvos pre­ferenciais de todas as acções de persuasão feitas pelos representantes e enviados espe­ciais dos países candidatos.

A história já provou que o poder eco­nómico de um país ajuda, mas não chega para garantir a sua eleição. Em 1996, Portugal disputou o mandato com a Suécia e a Austrália. Segundo Paula Escarameia, os australianos estavam tão convencidos da sua eleição que já tinham endereçado os convites para a festa de comemoração. Mas perderam, há quem diga que graças aos múltiplos almoços e jantares de boa comida portuguesa oferecidos pelos diplo­matas em Nova Iorque. Cb

para portugal ser um dos membros não permanentes do Conselho de segurança precisará do apoio de, pelo menos, dois terços mais um dos estados-membros das nações unidas.

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“Esta é realmente uma ocasião momen­tosa”, frisou o mayor da cidade de Fall River, Bob Correia. “Como nunca foi feito antes, não deixa de ser uma vergonha para todos nós”, lamentou. “Mas o poder é criativo, e se todos nos unirmos num movimento, acredito que conseguiremos cumprir o sonho de ver os descendentes portugueses ter mais influência neste país”, acrescentou.

A ideia de reunir todos os detentores de cargos públicos na América que têm ligações a Portugal era antiga e demorou a concre­tizar­se, reconheceu o anfitrião. “Era bom que este entusiasmo não se perdesse, antes fosse como um verdadeiro impulso para a continuidade desta iniciativa, talvez num outro tipo de estrutura que perdure”, reflec­tiu o embaixador João de Vallera.

Vindos de Portugal, o presidente do

Grupo de Amizade Portugal­EUA, João Bosco Mota Amaral, e o presidente da FLAD, Rui Machete, destacaram o interes­se do encontro para o desenvolvimento da relação bilateral dos dois países e para o reconhecimento de Portugal na América. “Fico satisfeito por ver que este primeiro encontro de políticos americanos decorre nesta embaixada, ou seja, em território português”, observou Mota Amaral.

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a Embaixada de portugal em Washington recebeu os mayors, representantes estaduais, congressistas e outros eleitos luso-americanos ou de ascendência portuguesa para reuniram

em Washington e discutirem as suas respectivas experiências, visões e expectativas. Não muito depois do início dos trabalhos já todos se perguntavam

“por que razão não fizemos isto há mais tempo?”.

primeiro encontro de eleitos luso-descendentes nos estados unidos

portuGAL/euA

o embaixador João de vallera com Jim Costa (à esquerda) e Devin nunes (à direita) congressistas no estado da Califórnia.

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Para não circunscrever o encontro a uma conversa de políticos, o âmbito da iniciativa foi alargado, de forma a incluir também membros da sociedade civil que representam ou estão envolvidos nas questões relativas às comunidades luso­americanas, e ainda representantes da actividade empresarial portuguesa nos Estados Unidos.

Mas foi sobretudo de política que se falou no arranque dos trabalhos. Os con­gressistas da Califórnia, Dennis Cardoza e Jim Costa, ambos democratas, lembraram as suas experiências pessoais, numa ten­tativa de “provocar” a audiência para um debate sobre a necessidade de a comuni­dade assumir maior protagonismo em termos políticos.

“A primeira vez que entrei no Congresso, tinha duas palavras na cabeça: duas gerações. Foi o que foi preciso para a minha família passar dos campos dos Açores para o Capitólio dos Estados Unidos”, lembrou Cardoza.

Pelo seu lado, o republicano Devin Nunes, o mais novo dos três congressistas federais, falou sobre o papel que os elei­tos luso­descendentes podem assumir na promoção de objectivos comuns, tanto em termos de política externa como nas ques­tões domésticas, “independentemente das tendências ideológicas”.

E enumerou situações concretas. Em ter­mos de política externa, Nunes considerou que os congressistas estaduais podiam desempenhar um papel importante fazen­do pressão e defendendo a proposta de transferência da sede do comando militar africano do Exército dos Estados Unidos (Africom, na sigla oficial), da sua actual localização em Estugarda, na Alemanha, para a base das Lajes, nos Açores. “Portugal, pela geografia e pelo papel proeminente que desempenha em África, é o único ponto na Europa onde faz sentido ter a sede do Africom”, sublinhou.

O outro dossiê em que todos podem tra­balhar em conjunto, prosseguiu, tem a ver com a promoção do emprego. Devin Nunes lembrou que na década de 1980, a indústria da pesca de atum sediada em San Diego, e controlada por portugueses, desapareceu na sequência de uma decisão legislativa que não foi questionada ou contrariada a nível nacional. “Precisamos de estar atentos e cer­tificar­nos que casos semelhantes não se repetem no futuro. Não podemos deixar de levantar a nossa voz”, considerou.

Na sequência das intervenções dos três legisladores da Califórnia, o empresário Tony Frias deixou no ar uma dúvida: “Porque não conseguimos também eleger um congressista no Massachusetts? Porque é que, mesmo nas áreas onde as votações

são decididas pelos portugueses, ainda pre­ferimos eleger um irlandês ou um italia­no?”, questionou­se.

A plateia animou­se em conjecturas, que foram desde a relativa apatia ou desinte­resse dos actores locais até à dificuldade em recolher contribuições para campanhas políticas de âmbito nacional. O que ime­diatamente levou a uma sugestão: a cria­ção de uma estrutura de fundraising para promover candidaturas de luso­america­nos, que pudesse contribuir para as dife­rentes campanhas independentemente dos estados a que pertencem os candidatos.

Inquiridos pelo único participante vindo do estado do Arizona, o representante da assembleia estadual Phil Lopes, os inter­venientes discutiram ainda a importância que a igreja mantém como elemento agre­gador da comunidade luso­americana.

“Há uma forte associação”, admitiu Bob Correia, que disse não ter a mínima dúvida que o seu sucesso político se deve à quan­tidade de procissões em que participou. “E presumo que acontece o mesmo com todos: a vida na igreja é muito importante para a comunidade portuguesa”, explicou.

O senador estadual de Rhode Island, Daniel da Ponte, recordou como todos aqueles que venceram no seu distrito elei­toral (há cinquenta anos representado por um luso­descendente) faziam parte da

mesma paróquia e eram membros da Sociedade do Espírito Santo. “Eles funcio­nam como uma espécie de comité de selecção”, comparou.

A segunda metade do encontro foi pas­sada a discutir os temas da economia e competitividade – com intervenções que acentuaram as actuais dinâmicas de inter­câmbio científico e tecnológico entre os dois países, e com apresentações de algu­mas das empresas portuguesas que se inseriram com sucesso no tecido industrial e financeiro americano, como o BES, a Efacec, a EDP ou a Brisa.

No espaço destinado ao debate, alguns representantes não resistiram a fazer algum esforço de lóbi no sentido de atrair negócio para as suas respectivas comunidades. “Gostava de saber se alguma das empresas aqui presentes considerou a hipótese de se

instalar no meu estado?”, lan­çou um dos participantes que viajou desde a Califórnia.

“Como estamos aqui em nome das comunidades por­tuguesas, julgo que também seria interessante e importan­te para as empresas portugue­sas [com intenção de investir nos Estados Unidos] instala­

rem­se nos lugares onde o ambiente e a representação política são mais favoráveis”, notou um representante do Massachusetts.

Além dos diferentes painéis de trabalho, o encontro também incluiu momentos de carácter “social”, como um jantar na chancelaria portuguesa, uma visita ao Congresso e outra à Casa Branca. “Socializar era uma componente impor­tante desta iniciativa, ainda que não a mais substantiva”, confessou o embaixa­dor português. rs

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o empresário tony Frias (à esquerda) com João bosco mota Amaral (à direita)no encontro de Washington.

‘socializar era uma componente importante desta iniciativa, ainda que não a mais substantiva. ’

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“O nosso maior êxito foi comprovar que os portugueses votam, e que votam, em algumas circunstâncias, em percentagens superiores às dos norte­americanos em geral”, considera Elmano Costa, presi­dente do PACP.

“Desfizemos um mito, mudámos a ima­gem da comunidade portuguesa nos Estados Unidos e contribuímos muito para o aumento da sua participação democrática”, defende.

O projecto funciona em 25 comuni­

dades luso­americanas, dispersas por cinco estados. Em cada comunidade o ciclo de trabalho é o mesmo: analisar e definir os traços fortes e os traços fracos da organização, articulando­os com uma lista dos votantes registados naquela

Desde 1999 que faz por desfazer o mito de que a comunidade luso-americana é politicamente invisível. Trabalhou para avaliar e promover a sua participação cívica e eleitoral, para fazê-la entrar no sistema e ensiná-la a fazer valer os seus direitos. O portuguese american

citizenship project (pacp) tem uma mão-cheia de sucessos e outra de desafios.

portuguese American Citizenship project

Dez anos a tornar os portugueses mais visíveis

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elmano Costa (à esquerda), rui machete e James mcGlinchey, coordenador do projecto (à direita). segundo este, “para votar nos estados unidos é preciso ser cidadão norte-americano, registar-se para votar e votar”.

portuGAL/euA

POR JoAnA FernAnDes

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 2010 55

zona; e planear a estratégia para promo-ver a cidadania, o registo para o voto e a ida às urnas.

James McGlinchey, coordenador do pro-jecto, recorda ainda “as noites de candi-datos”: “Em tempo de campanha juntamos em cada comunidade os candidatos a determinadas eleições para que possam dar-se conta dos problemas e interesses dos luso-americanos, bem como do seu poder de voto. Isto permite tam-bém às pessoas exigirem, depois das eleições, que o candidato eleito cumpra o que prometeu.”

A ideia de aproximar os luso- -americanos da política, garante, “não é original”: “Não inventámos isto. Alguns líderes da comunidade associativa portuguesa nos Estados Unidos já faziam esta promoção da cidadania e da participação eleito-ral. O nosso contributo foi colocar as diferentes comunidades a falar e a trocar ideias. Fizemos que as melhores ideias passassem para a linha da frente e nesse sentido o nosso trabalho foi muito produtivo. Contribuímos para o crescimento do respeito dos líderes locais, esta-tais e federais pela comunidade luso-americana.”

“Para votar nos Estados Unidos é preciso ser cidadão norte-america-no, registar-se para votar e votar. Cinquenta por cento dos portugue-ses nos EUA não são cidadãos norte- -americanos; 50 por cento desses não estão registados para votar; e 50 por cento dos últimos não votam. E é aí que trabalhamos. Não nos inte-ressa em quem votam. Interessa-nos que votem”, concluiu.

AvAliAr o impActoJames McGlinchey explica que “não há forma de saber quantas pessoas o PACP registou para votar desde o seu início”: “Sabemos que o número de luso-ameri-canos recenseados para votar aumentou largamente nos últimos dez anos, mas não só não temos um estudo completo sobre isso, com um número certo, como também não podemos garantir que o registo para votar foi feito devido à nossa acção”, diz.

“Podemos, sim, dizer que elevámos a consciência da força do voto da comuni-dade portuguesa nos Estados Unidos e podemos demonstrar que os nossos esfor-ços para motivar as pessoas a irem votar foram bem-sucedidos, sobretudo nas elei-ções locais e estatais”, defendeu.

metAde do orçAmentoTambém Rui Machete, presidente da FLAD, considera que “os bons resultados são inegáveis”. Apesar disso, defende, o pro-jecto, que há dez anos vê o seu orçamen-to anual, de 200 mil dólares, quase inteiramente assegurado pela Fundação, “precisa de se autonomizar, recorrendo às comunidades”.

A FlAd vai, neste sentido, e para con-seguir diversificar os seus apoios e abran-ger novos projectos, reduzir a sua comparticipação no PACP.

“Tivemos sempre o problema da an gariação de fundos, foi sempre difícil. E agora, mais do que nunca, é um desa-fio”, afirma o coordenador do projecto. “Precisamos de ser capazes de envolver a comunidade norte-americana neste pro-jecto, de fazê-la apoiá-lo.”

James McGlinchey sublinha que “apesar de o projecto ter, durante dez anos, feito muito trabalho com pouco dinheiro (gas-támos um dólar por votante contra 30 ou 40 que são gastos pelos partidos nas eleições presidenciais), este trabalho não pode ser feito apenas em regime de voluntariado.” “É uma campanha nacio-

nal e o trabalho é muito intenso e can-sativo. É preciso pagar ordenados, viagens e falar com as pessoas, mantê-las envol-vidas... Tudo custa dinheiro”, nota.

“Mas a questão é simples. As pessoas faziam isto antes de chegarmos e vão con-tinuar a fazê-lo. A sobrevivência do pro-jecto vai depender da forma como a comunidade o entende; se entender que

ele vale a pena, ele terá continui-dade.”

Por agora, as contas que McGlinchey faz são estas: “O Governo dos Açores já se comprometeu a apoiar o PACP até 2012 com 35 mil euros por ano e a FlAd vai também contribuir. Teremos um orçamento de cerca de 100 mil dólares anuais. Embora seja metade do que tínhamos, perfaz um montante significativo e permite desenvolver muito trabalho, não obs-tante vá exigir um maior esforço da nossa parte”, considera.

Elmano Costa reconhece que, “funcionando com metade do orça-mento, o projecto não pode ser o mesmo”, mas considera que “o facto deve ser encarado como desa-fio e também como oportunidade para repensar o funcionamento do projecto e a sua organização”.

chegAr Aos mAis novos“Só paro de trabalhar neste pro-jecto quando todos os luso-des-cendentes nos Estados Unidos forem votar”, brinca Elmano Costa, para explicar de seguida que “um outro desafio do projecto prende- -se com a necessidade de chegar aos mais novos, os imigrantes de segunda e terceira geração”.

James McGlinchey lembra os números: “Nos Estados Unidos, apenas sete por cento das pessoas abaixo dos 30 anos votam. Aos mais velhos nós chegá-mos. Mas este é um desafio global, não apenas nosso”, argumentou.

Um novo coordenAdorPara António Vicente, subdirector da Fundação, “O desafio de substituir James McGlinchey no final do ano foi ultrapas-sado”. “Quero fazer outras coisas […] – diz McGlinchey – mas nunca na minha vida gostei tanto de fazer uma coisa como esta”, sorriu.

Elmano Costa e António Borba foram nomeados, respectivamente, presidente e coordenador, o que dá garantias da con-tinuidade do projecto.

cartaz de incentivo à participação políticada comunidade luso-americana.

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Lamonte Aimoo chega à aula com um saco carregado de livros, o alívio estampado no rosto quando deposita o pesado fardo sobre a mesa. “Lamonte, os livros não são para trazer, são para ler”, brinca Onésimo Teotónio Almeida, provocando o riso dos alunos. O good mood está instalado para abor­dar, nesta aula do curso “On the Dawn of Modernity”, o labiríntico jogo do imaginá­rio português de Eduardo Lourenço.

O ensaísta foi uma das muitas persona­

lidades que, nos últimos trinta anos, visitou o Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Brown. Nasceu como centro na déca­da de 1970 e adquiriu o actual estatuto em 1991, num reconhecimento institu­cional dos estudos lusófonos como campo autónomo. “Foi o primeiro Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros dos EUA”, salienta Onésimo, professor desde 1975 na universidade da Ivy League

sediada em Providence, Rhode Island, e acting chair no semestre de Outono.“Os núcleos de Estudos Portugueses e Brasileiros eram pequenos enclaves nos departamentos de Espanhol, ou de Românicas, ou simplesmente de Línguas e Literaturas Modernas”, explica.

A língua e culturas portuguesas estão vivas na casa de tijolo de três andares que alberga o departamento, a Meiklejohn House, situada na George Street, assim cha­mada em homenagem a um antigo direc­tor da Universidade de Brown e presidente do Amherst College. Uma casa de família, onde todos se conhecem e, com mil sotaques, comunicam na mesma língua. Aqui promovem­se conferências e publi­cações, organizam­se sessões de cinema e eventos especiais de convívio convocados sob as curiosas designações de “bate­papo” e “piza & papo”, destinados a “todos os estudantes e falantes de português”.

O que é que esta casa tem? Uma das “singularidades”, confidencia Leonor Simas­Almeida, professora na Brown desde 1989, é a “atmosfera familiar que geral­mente (e naturalmente) se cria entre pro­fessores, alunos e funcionários”.

O departamento abraça várias direcções científicas. “É muito importante ter liga­ções com outros departamentos, somos um departamento interdisciplinar”, afirma o chair Luiz Valente, professor na Brown desde 1983, notando que “grande núme­ro dos nossos professores está também noutros departamentos”.

É o caso de Jorge Flores, simultaneamen­te professor de Estudos Portugueses e de História. No primeiro semestre a ministrar o curso “A Europa e o Oceano Índico”, é professor na Brown desde 2007, depois de uma experiência anterior nesta univer­sidade. Ocupa a Cátedra Vasco da Gama de História dos Descobrimentos, estabe­lecida nos anos 1990 através de um Endowment para o qual contribuíram várias instituições, entre as quais a FLAD. “Esta

O Departamento de Estudos portugueses e Brasileiros da Universidade de Brown foi criado na década de 1970. aqui há paixão pela língua portuguesa.

meiklejohn house:uma casa do mundo português

portuGAL/euA

POR CArLA mArtins

‘A língua e culturas portuguesas estão vivas na casa de tijolo de três andares que alberga o departamento, a meiklejohn house, situada na George street. ’

o main green da universidade de brown que acolhe o Departamento de estudos portugueses e brasileiros.

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é uma boa criação, trata­se de uma área que não estava coberta pelo departamen­to”, comenta o historiador.

“it FeeLs riGht”A Brown é uma das universidades norte­ ­americanas mais liberais, os alunos são convidados a ir além do seu campo de estudos. No início do ano lectivo fazem festas, claro, mas também shopping para escolher os cursos que vão seguir. As com­binações possíveis são acompanhadas pelos concentration advisers.

Brianna Medeiros, aluna da licenciatura em Relações Internacionais e Português, salien­ta precisamente o free curriculum da Brown. O facto de a família do pai ser dos Açores pesou na decisão de aprender português. E deixou­se fascinar. “Não esperava focalizar­­me tanto nos estudos portugueses”, con­fessa. Brianna visitou o arquipélago pela primeira vez em Setembro e passará o segundo semestre numa universidade portuguesa.

A maior parte dos alunos de licenciatura é america­na, nos estudos pós­gradu­ados as percentagens são mais equilibradas, contex­tualiza Onésimo T. Almeida. Três programas de mestrado e um de doutoramento em língua, literatura e culturas do mundo que fala português, com duração de cinco anos, compõem a oferta de estudos pós­graduados do departamento. O horizonte de temas de investigação é tão variado como os territó­rios da língua.

Daniel Silva é aluno do primeiro ano de doutoramento. Filho de pais portugueses, apegou­se à língua na Rutgers University. Neste momento está interessado em inves­tigar a figura do retornado no processo de pós­colonização africana. Lamonte, no segundo ano do doutoramento, planeia estudar literatura moçambicana e cabo­ ­verdiana e a construção da imagem do

Brasil na cultura popular portuguesa e norte­­americana. “Para mim o português é uma língua muito natural, it feels right”, diz, ao procurar descrever a paixão que sentiu pela língua na Lincoln University. Ana Catarina Teixeira está na fase final do doutoramento. Portuguesa, fez os seus estudos nos Estados Unidos, em Relações Internacionais e Estudos Portugueses e Brasileiros, e a sua dissertação será consagrada à literatura ango­lana dos anos 1980.

triânGuLo Luso-AFro-brAsiLeiroA procura de cursos de português como língua estrangeira tem crescido e cada aluno vive com ela uma história de amor diferente. “A Brown tem expandido o ensino da língua portuguesa além das fronteiras das famílias de origem lusófo­na”, salienta Luiz Valente.

Aqui ensina­se a “norma europeia” e a “norma brasileira” e ambas “são legíti­mas”, enquadra Leonor Simas­Almeida. “Procuro que os alunos tenham conheci­mento das duas”, no uso é­lhes “apenas exigida consistência”. Na sua aula de Estilística e Gramática Avançada resolvem­ ­se subtilezas gramaticais de uma língua de muitas regras e excepções à regra, escreve­se e discutem­se textos criativos.

Vários alunos de doutoramento com bolsa leccionam português como teaching assistants. Sandra Sousa, nos Estados Unidos há oito anos, está no terceiro ano do doutoramen­to e há dois que ensina português na Brown. “Sou muito feliz a dar aulas”, afirma Sandra, que também deu aulas na Universidade de

Massachusetts. Dartmouth, onde fez o mes­trado sobre a importância do espaço na constituição do género no primo Basílio.

No Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros cruzam­se as diferentes latitudes do mundo lusófono. Têm sido felizes os encontros? “Não é simples”, admite Onésimo. “Insistimos sempre no triângulo luso­afro­brasileiro.” Uma paleta de culturas do mundo lusófono projecta­se na Meiklejohn House. A língua portuguesa ani­nhou­se nesta casa, cresce, enriquece­se, multiplica­se, transforma­se. Igual a si pró­pria, diferente de si própria.

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‘uma das “singularidades” é a “atmosfera familiar que geralmente se cria entre professores, alunos e funcionários”. ’

Daniel silva, brianna medeiros e sandra sousa, alunos do Departamento de estudos portugueses e brasileiros.

Além das aulas, há muitas iniciativas em português.

Capa do manual de ensino do português.

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Foram inaugurados, na Universidade de Massachusetts Dartmouth (UMD), os arquivos Luso-americanos Ferreira-Mendes, cinco anos depois de propostos

pelo centro de Estudos e cultura portuguesa daquela instituição.

memória com futuro

Um chapéu de palha sorria na cabeça de Ferreira­Mendes quando este viajou para os Estados Unidos nos anos 1920, ganhando a alcunha de O palhinhas. Décadas depois a filha, Otília Ferreira, quis homenageá­lo dando o seu nome aos Arquivos Luso­Americanos da Universidade de Massachusetts Dartmouth (UMD), o que lhe foi concedido por ter feito o leading gift.

Ferreira­Mendes era outro nome pelo qual era conhecido Affonso Gil Mendes Ferreira, fundador da rádio portuguesa nos Estados Unidos nos anos 1930. O popular programa “A Voz de Portugal” tinha ouvin­tes em Massachusetts e Rhode Island. Hoje, os seus programas podem ouvir­se nos 48 discos de 78 rotações da “Affonso Ferreira­­Mendes Collection of Portuguese Musical Recordings, 1930s­1950s”. Programas gra­

vados secretamente sob orientação do Governo americano, durante o período do mcarthismo. Anos mais tarde, os discos foram surpreendentemente enviados a Otília pelo correio.

A entrada dos Ferreira­Mendes Portuguese­American Archives descobre­se circundan­do à esquerda a Biblioteca Claire T. Carney. Entra­se para a Prince Henry Society of Massachusetts, Inc. Reading Room, mesas

A entrada dos Ferreira-mendes portuguese-American Archives inaugurados na universidade de massachusetts Dartmouth.

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e cadeiras alinhadas, rodeadas por discretas estantes de onde irrompe uma ténue luz. À direita uma sala mais pequena, a The William Q. and Mary Jane MacLean Gallery, onde um esfíngico banco é contornado por mais estantes difundindo a mesma quase imperceptível luz. As estantes, com livros, documentos, fotografias e outros objectos, lembram narrativas, pessoas, memórias e significados. Mas a leveza da luz que delas irradia pode bem servir de metáfora para a realidade aqui retratada.

umA iDeiA Com GeoGrAFiAA criação dos Arquivos foi formalmente proposta à chancellor da UMD, Jean F. MacCormack, em 2004 pelo Centro de Estudos e Cultura Portuguesa desta uni­versidade, dirigido por Frank F. Sousa. Cinco anos depois, a 18 de Setembro, na respectiva apresentação pública, Frank F. Sousa recuperou a expressão “minoria invisível” que a antropóloga luso­ameri­cana Estellie Smith usou há trinta anos para se referir aos portugueses do Sudeste do Massachusetts. Uma invisibilidade que se estende do século XVIII ao presente e se manifesta na falta de registos que docu­mentem a já historicamente significativa aventura luso­americana.

Os “Ferreira­Mendes” resistem ao esque­cimento e corporizam a interacção da universidade com a comunidade envol­vente. A UMD, situada entre as cidades de Fall River e New Bedford, está no coração de uma das regiões da Nova Inglaterra com a mais densa comunidade de emi­grantes portugueses e seus descendentes.

MacCormack garantiu o apoio da uni­versidade ao projecto, traduzido na con­cessão de um espaço e de recursos, depois de, em 2005, o Centro de Estudos e Cultura Portuguesa constituir um Endowment de 1,5 milhões de dólares, através de donativos pessoais e institucionais, em que se inclui um subsídio da FLAD.

A ideia ganhou geografia. Os arquivos, dirigidos pela socióloga Glória de Sá e tendo como arquivista a luso­americana Sonia Pacheco, tornam­se lugar de orga­nização e compreensão da memória colec­tiva dos portugueses como grupo social nos Estados Unidos. São o primeiro do género e têm âmbito nacional, sublinha à paralelo Glória de Sá.

Aqui estão actualmente reunidas 19 colecções de manuscritos que documen­tam famílias e organizações luso­ameri­canas locais e o trabalho de figuras de vulto dentro da comunidade portuguesa em vários domínios. Acolhem ainda regis­tos genealógicos, livros, gravações, foto­

grafias, correspondência, testemunhos de história oral, colecções de jornais, colec­ções privadas de políticos, educadores, autores e homens de negócios locais. Itens que devem ser imaginados no quotidiano das pessoas a quem se referem.

Arquivo em movimentoAffonso Ferreira tem papel principal entre os acervos de outras figuras tão fascinantes quanto decisivas na docu­mentação da experiência luso­america­na. Os arquivos incluem os Mary L. Fonseca Papers (pioneira na vida polí­tica de Massachusetts e que se singula­rizava pelos seus signature hats), os Carlton Viveiros Papers (mayor de Fall River durante treze anos), os Rita Duarte Marinho Papers (destacou­se na educa­ção e escreveu Os Luso-americanos no processo político americano), os Alfred E. Lewis Literary Papers (self-made-man, autor dos romances Home is an Island e Sixty acres and a Barn), entre outros.

É também disponibilizada a Edmund Dinis Portuguese American, Political, Legal and Public Service Collection, dedi­cada a este político que seguiu as pisadas do pai, Jacinto F. Dinis, o primeiro emi­grante português a ocupar um cargo político estadual em Massachusetts. E. Dinis, amigo da família Kennedy, foi também procurador de justiça num famo­so escândalo judicial que nos anos 1960 envolveu Edward Kennedy e a morte de uma jovem.

O todo arquivístico Ferreira­Mendes está em movimento. Uma das preciosidades é a colecção digitalizada do Diário de Notícias de New Bedford. Está a ser organizado o acervo Luís de Figueiredo Lemos Corte­­Real, reunido pelo seu filho, Miguel Corte­Real. Estão em curso contactos com a Freitas Library, da União Portuguesa do Estado da Califórnia, para a digitalização da colecção de jornais portugueses daque­la biblioteca privada.

Espera­se o entusiasmo das pessoas para doações de espólio e resgate de memó­rias. Para estas é a oportunidade do ajus­te de contas com a invisibilidade de que fala Estellie Smith, de contribuir para trazer mais luz não apenas sobre a iden­tidade lusa overseas como sobre o lugar da comunidade portuguesa na narrativa americana. Cm

Glória de sá, responsável pelos arquivos que reúnem 19 colecções de manuscritosque documentam famílias e organizações luso-americanas.

CARLA

MART

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Podem ser consultadas online as cerca de 16 mil edições e 84 mil páginas do Diário de Notícias de New Bedford, publicado entre 1919 e 1973 (news.arcasearch.com/us/um/?paper=), colecção doada pela filha do seu director João Rocha. O projecto de digitalização contou com donativos no valor de 180 mil dólares da parte do Governo Regional dos Açores e de Luís Pedroso e de Mark e Elísia Saab.

84 mil páginas online

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POR CArLA bAptistA

para onde vão as universidades americanas?

Gaye tuchman na FLAD

A investigação, de carácter etnográfico, demorou­lhe seis anos a concluir e decorreu numa escola pública de ensino superior, cujo nome a autora oculta, bem como a identidade dos seus múltiplos entrevistados, incluindo professores, fun­cionários e estudantes. Tuchman diz que “provavelmente não lhes aconteceria nada”, mas ainda assim sente uma obri­gação especial de proteger as pessoas que, de uma forma aberta e franca, lhe per­mitiram reconstituir e analisar a vida dentro de uma universidade determina­da em subir uns pontos nos rankings inter­nacionais que class i ficam estas instituições.

O olhar de Gaye Tuchman tem sido sempre severo com as instituições sociais que escrutina, cruzando as metodologias da etnografia com a teoria sociológica. Foi assim com um dos seus livros mais famosos, Making News: a Study in the construction of Reality (Free Press, 1978), em que atribuiu a muitas das convenções narrativas do jornalismo o carácter de “rituais estratégicos de objectividade” destinados a construir com alguma dose de artificialidade aquilo que, aparente­mente, decorria de uma (falsa) apropria­ção objectiva do mundo.

Na conferência que proferiu a convite da FLAD, muito participada por estu­dantes universitários e que contou com os comentários da professora Maria Helena Nazaré, reitora da Universidade de Aveiro (ver textos a seguir), mostrou­ ­se preocupada com o actual rumo “mercantilista”. As instituições ameri­canas, sempre ciosas de manter a inde­pendência financeira e habitualmente

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Gaye tuchman mostrou-se preocupada com o rumo “mercantilista” das universidades.

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No seu último livro, Wannabe U – Inside the Corporate University (University of chicago press, 2009), a socióloga Gaye Tuchman, professora no

Departamento de Sociologia da Universidade de connecticut, traça um retrato divertido mas impiedoso das mudanças em curso nas universidades americanas.

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hábeis em captar fundos privados, estão a ressentir­se de brutais cortes nos seus financiamentos estaduais, que nalguns casos já só cobrem 10 por cento dos gastos (Tuchman deu os exemplos de Virginia e Michigan).

A resposta tem sido a adopção de uma forma de gestão cada vez mais corpora­

tiva, burocrática e centralizada, “obceca­da” com os procedimentos de auditoria e o controlo quase “panóptico” dos seus membros, o alojamento de projectos téc­nico­científicos lucrativos e os níveis de produtividade traduzíveis no número de patentes registadas. A socióloga receia que esta lógica de “linha de montagem” apli­

cada a uma instituição cuja missão prin­cipal ainda é, na sua opinião, educare, no sentido original da palavra latina (indicar o caminho), subordine “o conhecimen­to mais às necessidades de prestígio e reconhecimento da universidade do que ao bem público”. E acabe roubando­lhes a alma.

portuGAL/euA

A etnografia como forma de espantar as pessoas

[Paralelo] É muito crítica em relação à forma como as universidades americanas estão a mudar. Porquê?[Gaye Tuchman] Há duas coisas que me pre­ocupam: o desejo que o maior número possível de pessoas tenha uma boa educa­ção e definir o que é uma boa educação. Muita gente pensa que o ensino superior é bom quando as pessoas saem da facul­dade e encontram emprego. Para mim, é mais do que isso. Envolve a capacidade de ter um pensamento crítico e analisar situações; ser um bom cidadão à escala da família, do estado, do país e do mundo; agir eticamente, com respeito pelos outros. Receio que a tendência actual para gerir as universidades como se fossem empresas, colocando o foco no treino para um tra­balho e aumentando a burocracia e a cen­tralização inerentes a constantes auditorias e avaliações, vá afectar tanto a universida­de como os estudantes, prejudicando o estímulo ao pensamento crítico.

[P] Quais são as ferramentas intelectuais da sociologia e da etnografia para compreender melhor o mundo?[GT] Existem dois aspectos difíceis na etnografia: saber ver e saber pensar sobre aquilo que se observa. Quando escrevo etnografia, tento dar ao leitor uma visão do mundo que ele/ela talvez porque tenha estado demasiado ocupado/a não conse­guiu construir e analisar por si próprio. Por exemplo, com Wannabe U, tentei escre­ver um ensaio sobre a transformação nas universidades americanas que fizesse as pessoas exclamar: “Meu Deus, o que é que se está a passar e como é que isto

afecta a minha vida e a vida das próximas gerações?” Se as pessoas não se sentirem interpeladas, não existe esperança de aju­dar a transformar as universidades num lugar melhor para todos.

[P] Essa visão do trabalho sociológico – como uma actividade que nos ajuda a revelar o que está escondido e fazer as pessoas pensar sobre isso – tem alguma semelhança com a missão do jornalismo. Concorda? [GT] Um dos pioneiros da sociologia e da etnografia americanas, Robert Park, fez a sua carreira inicial como jornalista e con­siderava que o sociólogo era uma espécie de “super­repórter”, investigando sobre a longa duração em vez de sobre os acon­tecimentos da superfície. Uma das minhas professoras trabalhou com ele e até por essa razão pessoal concordo inteiramente com o facto de haver uma similaridade entre as duas actividades.

[P] Se perdermos o jornalismo, que atravessa uma crise séria, e também perdermos as universidades, pelo menos nas suas configurações tradicio-nais….[GT] Será um mundo diferente.

[P] Um mundo menos democráti-co?[GT] Ah, não sei! Eu sou ape­nas uma boa observadora da realidade, não consigo prever o futuro.

[P] Mas como é que se imagina daqui a dez anos?[GT] Reformada. E viva, espe­ro!

[P] A ler um jornal em papel?[GT] Sabe, já faço isso online agora. Vivo numa comunida­de rural tão pequena que é

impossível assinar o New York Times e leva­rem­mo a casa. Para ler o NYT de manhã, à mesa do pequeno­almoço, teria de o ir buscar ao fundo do caminho que rodeia a casa, o que é uma perspectiva deveras desencorajadora. Depois teria de reciclar todo aquele monte de papel, o que tam­bém excede a minha capacidade organi­zativa. Por isso leio a versão digital do NYT, que continua a ser um bom jornal. O meu jornal local, pelo contrário, não se está a sair tão bem. Tenho dois vizinhos que trabalham nesse jornal local e con­tam­me que a empresa é obrigada a redu­zir continuamente o corpo redactorial. Já não existe a possibilidade de investigar uma boa história em profundidade

‘existem dois aspectos difíceis na etnografia: saber ver e saber pensar sobre aquilo que se observa. quando escrevo etnografia, tento dar ao leitor uma visão do mundo que ele/ela talvez porque tenha estado demasiado ocupado/a não conseguiu construir e analisar por si próprio. ’

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 20106�

durante algum tempo. Quando leio esse jornal, encontro cada vez mais notícias na primeira página sobre crimes e aci­dentes. São assuntos cuja informação é fácil de apanhar através dos comunica­dos da polícia. As histórias sobre trans­formações sociais e políticas que afectam qualquer comunidade exigem porven­tura mais esforço e acompanhamento. A crise no jornalismo escrito tem rami­ficações nos outros media, pois a rádio, a televisão e os blogues dependem, em

grande parte, dos conteúdos dos jornais. Quando existem menos repórteres para acompanhar os acontecimentos colecti­vamente pertinentes, todos os media sofrem e, em última análise, todos nós sofremos.

[P] Considera que os media continuam a perpe-tuar a “aniquilação simbólica” das mulheres e de outros grupos sociais e étnicos menos repre-sentados. Este potencial para a discriminação está implícito na própria estrutura organizativa do

jornalismo, na forma como os jornalistas reco-lhem e trabalham a informação? [GT] A cultura muda muito lentamente. Imaginemos que as mulheres que hoje são editoras nas principais empresas jornalís­ticas começaram a trabalhar há vinte anos.Foram treinadas por homens que lhes transmitiram as convenções jornalísticas e a decidir sobre o que é notícia. Elas apren­deram tão bem que, eventualmente, decor­ridos estes anos, tornaram­se editoras. Apenas os pensadores extraordinariamente independentes são capazes de deitar fora tudo o que aprenderam e os que fazem isso normalmente são despedidos e não progridem nas instituições. A única coisa que está ao alcance da maioria de nós é ganhar consciência de que existem este­reótipos de género e classe potencialmen­te discriminadores e injustos e, se não podemos mudá­los a todos, pelo menos podemos tentar mudar aquela pequena parte que depende do nosso controlo.

[P] O que significa ser uma feminista hoje?[GT] Não penso muito nisso.

[P] Mas considera-se feminista?[GT] Sim, sou feminista. Mas não me preo­cupo com a definição de feminismo. Tento fazer aquilo que está certo para que, em última instância, me possa olhar nos olhos. Isso já é um objectivo sufi­cientemente duro.

[P] Incorpora a teoria feminista nos seus traba-lhos sociológicos?[GT] No meu último livro, Wannabe U, não dediquei muitas palavras à situação parti­cular das mulheres na universidade. A primeira razão é ética, sinto a respon­sabilidade de proteger as pessoas que falam comigo e por isso escondo as suas identidades sexuais, os nomes e os cargos que ocupam. A segunda é política, não desejo escrever mais livros (fiz isso em Making News) em que há um capítulo dedi­cado às mulheres. Quero que a minha etnografia reflicta a situação das mulheres de uma forma contínua e integrada, exac­tamente como se passa na vida.

“muita gente pensa que o ensino superior é bom quando as pessoas saem da faculdade e encontram emprego. para mim, é mais do que isso.”

RUI OCH

ÔA

portuGAL/euA

‘quero que a minha etnografia reflicta a situação das mulheres de uma forma contínua e integrada, exactamente como se passa na vida. ’

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PORTUGAL/EUA

Nas universidades americanas, “o conhecimento passou a estar subordinado às necessidades de lucro”

Wannabe U – Inside the Corporate University situa algumas genera-lizações muito conhecidas num contexto etnográfico examinan-do a forma como uma univer-sidade de investigação pública tentou transformar-se ao longo de um período de dez anos. Observei a Wannabe U durante aproximadamente seis anos.

As universidades Wannabe são instituições de investigação que gostariam de se ver incluídas entre a elite.

Estão a tentar à viva força ser incluídas entre as 20 principais universidades nacionais, segun-do a classificação da revista US News & World Report. “Todos nós ‘gostaríamos de ser’”, disse recentemente um professor uni-versitário. Há aqui também uma outra ironia. Há muitos anos que as universidades de inves-tigação privadas ricas e dotadas de bons fundos, que atraem estudantes das classes alta e média-alta – escolas como Harvard, Princeton, Yale, Duke,

Stanford e Brown –, ocupam os 19 primeiros luga-res. (A Universidade da Califórnia, em Berkeley, ocupa o vigésimo ou o vigésimo primeiro lugar há vários anos.)

Quando as pessoas pensam em instituições do ensino superior americanas, imaginam universida-des residenciais, com estudantes dos 17 aos 22 anos, das classse alta e média-alta. A Wannabe U é uma das universidades que ainda se enquadra nessa descrição, mas trata-se de uma imagem geral que, há décadas, já não corresponde à realidade. O que parece ser verdade hoje, tal como no passado, é que a governação das universidades americanas é pesada, combinando diferentes tipos de burocra-cias e direitos e responsabilidades antagónicos.

O que mudou é que as administrações centrais estão lentamente a reivindicar para si os direitos e as responsabilidades anteriormente atribuídos aos docentes, o que significa que os professores se estão a tornar profissionais geridos e que estão cada vez mais sob a alçada de gestores profissionais. Estes gestores profissionais estão a ceder à vontade dos estados à medida que as universidades começam a introduzir mais auditorias e mais responsabilização e, em vez de educarem (no sentido do latim e-ducere, conduzir para fora), estão a dar formação para ocu-pações e profissões que se julgam necessárias ao mercado de trabalho. Muitas universidades ameri-canas abandonaram a noção de que a educação alimenta a alma. Na verdade, as universidades sofre-ram uma inversão. Em vez de estarem subordinadas à produção e transmissão de conhecimentos, o conhecimento passou a estar subordinado às neces-sidades de lucro e reconhecimento das universida-des. Em busca do lucro, as administrações universitárias dedicam-se a um “novo manageria-lismo” que procura maximizar a eficiência, econo-mia e eficácia e, como subproduto, suplantar a autoridade do corpo docente introduzindo mudan-ças de cima para baixo.

Tenho criticado de forma veemente a maneira como as universidades americanas estão a mudar. O que me impressiona são não só as mudanças, mas também a lógica de conformidade. Recentemente, ouvi alguém proferir uma frase que me pareceu a personificação daquilo que David Riesman em tempos denominou other-directedness (obediência às preferências dos outros): “Não quero dar uma opinião porque não sei o que as outras pessoas pensam.” O que acontece quando os professores universitários, incluindo aqueles que têm ambições em relação à sua carreira, não põem em causa o regime emergente e cada vez mais forte de responsabilização? Fazer perguntas e dar respostas a perguntas impopulares ou mesmo disparatadas é fundamental para o saber. O que acontece ao conhe-cimento quando os professores não perguntam nem dizem o que pensam? * Socióloga e professora no Departamento de Sociologia da Universidade de Connecticut.

POR GAyE TUchmAn*

Wannabe U – Inside the Corporate University, o novo livro de Tuchman.

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 201064

portuGAL/euA

RUI OCH

ÔA

POR mAriA heLenA nAzAré*

A Oeste nada de novo

Não é verdade; as coisas estão a mudar em Portugal, a um ritmo que não é inferior ao de outros países europeus.

Os últimos dez anos trouxeram mudanças pro­fundas às universidades europeias e também às portuguesas.

Essas mudanças foram impulsionadas por três factores principais.

1. Massificação que levou ao Processo de BolonhaA reforma de Bolonha teve um impacto profundo no ensino superior europeu de várias maneiras. A realização de reformas também realçou a necessida­de de mudanças na governação e autonomia das instituições, e, em muitos países europeus, essas mudanças foram introduzidas por um conjunto de novas leis aplicáveis ao sector.

2. A Agenda de LisboaAs necessidades sociais crescentes de uma população envelhecida, conjugadas com a competitividade cada vez maior de economias em rápido crescimento como a China e a Índia, levaram o mundo ocidental e, nomeadamente, a Europa a procurarem um mode­lo de desenvolvimento económico susceptível de gerar um maior dinamismo e assegurar um melhor desempenho. Procurou­se uma solução através da promoção de uma economia baseada no conheci­mento e na inovação que, até 2010, deveria produ­zir a sociedade do conhecimento mais dinâmica. A chamada Agenda de Lisboa é isto.

Os governos reconhecem que o ensino superior é um importante impulsionador da economia mundial baseada no conhecimento e que a competitividade económica depende, em última análise, da qualida­de dos recursos humanos. Daí a importância atri­buída ao ensino superior e à investigação, que estão a crescer desde o princípio do milénio e são actu­almente considerados instrumentos fundamentais.

3. Internacionalização do ensino superiorA qualidade sempre desempenhou o seu papel no ensino superior, mas a sua importância aumentou muito durante a última década, principalmente devi­do aos novos desafios com que as instituições de ensi­

no superior, e especialmente as universidades, se viram confrontadas. Entre esses desafios destacam­se as neces­sidades da promoção do processo de Lisboa, da par­ticipação no Espaço Europeu de Ensino Superior e da criação de uma sociedade europeia do conhecimento. A qualidade é sempre tida como um factor fundamen­tal para alcançar estes objectivos. Com efeito, a quali­dade e a auditoria da mesma são essenciais para garantir a necessária confiança entre as instituições, indispensável para assegurar que elas aceitem estudan­tes que tenham obtido um determinado número de créditos numa outra instituição, especialmente de outro país, e para o reconhecimento de diplomas.

Governação do sistema e das instituiçõesHoje em dia, a sociedade espera que as universida­des assegurem: investigação, transferência de conhe­cimentos, aprendizagem ao longo da vida e ainda ensino, desenvolvimento económico e formação para a cidadania. Simultaneamente, o apoio financeiro das autoridades públicas está a diminuir.

Por conseguinte, o desenvolvimento de estratégias de financiamento e receitas sustentáveis para as uni­versidades é crucial para o futuro do ensino superior. Isto exige não só a diversificação de fontes de finan­ciamento, mas também uma melhor liderança e governação institucional.

As universidades têm de ser proactivas e empre­endedoras, sensíveis às necessidades a curto prazo da economia, do Estado e das principais partes inte­ressadas e, ao mesmo tempo, continuar a ser a cons­ciência crítica da sociedade, orientando a reflexão e a formulação de políticas.

As universidades devem ser autónomas, responder perante o Estado e o público em geral, ser bem gover­nadas, geridas e conduzidas. Necessitam não só de se adaptar a um ambiente em rápida evolução, mas tam­bém de conduzir a mudança. Na verdade, de tudo aquilo que foi dito, podemos concluir que o desem­penho das universidades depende fundamentalmente de duas coisas distintas: governação e financiamento, sendo a governação o elemento fundamental. Esta é uma síntese feita a partir da intervenção de Maria HelenaNazaré sobre o Ensino Superior.

*Reitora da Universidade de aveiro

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 2010 65

O administrador da Fundação Luso­ ­Americana, Charles Buchanan, recebeu das mãos do presidente da Direcção da Casa dos Açores de Lisboa, Miguel Loureiro, a Medalha de Mérito conce­dida à Fundação Luso­Americana, na presença de Jaime Gama, presidente da

Assembleia da República. Esta distinção foi atribuída pelo Conselho Mundial das Casas dos Açores, sob proposta da Casa dos Açores de Lisboa, “pelo apoio e dinamização que esta instituição (FLAD), nos últimos anos, tem vindo a dar a projectos que privilegiam os mais diver­

sos aspectos das relações entre os Estados Unidos da América e os Açores”. O administrador da Fundação Luso­ ­Americana, Mário Mesquita, responsá­vel pelos projectos da FLAD relativos à Região Autónoma dos Açores, não este­ve presente na sessão.

Casas dos Açores atribuem medalha de mérito à FLAD

D.R.

portuGAL/euA

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 201066

POR AnA CAtArinA sAntos*

os dias da rádio – de roosevelt à internet

As luzes amarelas do tecto davam um ar romântico à sala. Uma pilha de livros dos Dabney sobre o veludo vermelho. Uma prateleira cheia de discos antigos de capas coloridas. As cadeiras estavam simetrica­mente alinhadas. Tudo preparado. Olhei para o relógio e senti um nervoso miu­dinho. Da janela da sala espreitei um

autêntico dia de inverno lá fora. Naquele dia em nenhum local da ilha amarela se conseguia ver o mar.

Naquele dia falava­se de rádio. A pro­pósito da exposição “Roosevelt nos Açores”, a Fundação Luso­Americana organizou o colóquio “Os Dias da Rá­ dio – de Franklin D. Roosevelt à Internet”.

O nome de Roosevelt ficará sempre asso­ciado à rádio, pois soube como nenhum outro presidente norte­americano explo­rar este meio de massas para difundir a mensagem política e aproximar­se dos cidadãos.

“My friends” ou “my fellow ameri­ cans” – assim começava Roosevelt as suas

Adelino Gomes (sentado) no Clube Asas do Atlântico, em santa maria, onde decorreu o colóquio “os Dias da rádio – de Franklin D. roosevelt à internet”.

portuGAL/euA

Naquele dia estava um nevoeiro cerrado. chovia e cheirava a terra molhada. No clube asas do atlântico preparavam-se os últimos retoques e havia uma azáfama de pessoas para cá e

para lá. O chão escorregava, de tão encerado. as mobílias de madeira reluziam o óleo de cedro passado pela manhã. ao fundo da sala testava-se o som.

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 2010 67

comunicações via rádio. E assim, ouvindo as palavras de uma gravação original de um fireside chat, começou a conferência nos Açores. Estava estendida a passadeira ver­melha para os homens da rádio, grandes contadores de histórias.

Adelino Gomes, provedor do ouvinte da RDP, começou por destacar a inteli­gência de um político que, nos anos 1930, compreendeu a modernidade do uso da rádio. O primeiro fireside chat Roosevelt foi em 1933, vivia a América as dores da Grande Depressão. Roosevelt percebeu, afirmou Adelino Gomes, que tinha de prestar contas ao “fellow ame­rican” – e este “é um grande ganho de cidadania”. A rádio, naquelas conversas com o povo americano, “humanizava o Presidente”, fazia que entrasse nas casas de quem o escutava, partilhasse sensações e emoções – se estava cansado ou com frio. Promoveu a “interactividade avant la lettre, a rádio um­para­um”. Adelino Gomes gesticulava, sorria e as mãos muito abertas coloriam­lhe o discurso. Os olhos brilhavam.

Já João Braga, director do jornal Baluarte, abordou a história do Asas do Atlântico e da forte ligação que tem à comunidade. Recordou o inicial Clube do Ganso, falou dos anos de ouro do Asas, que chegou a ter 30 funcionários, estimulou a memó­ria da plateia que acenava a cada frag­mento da história que identificava. Naquele dia falava­se do futuro da rádio e, feliz coincidência, naquele dia o Asas testava o novo equipamento digital, vai ter uma nova antena e já emite online para todo o mundo.

Havia algumas cadeiras vazias mas a sala estava muito composta. À minha frente encontra­se uma das plateias mais atentas de que me recordo.

O terceiro orador da tarde começou por falar baixinho. Muitos conheciam apenas a voz do homem que agora viam. O aço­riano João Coelho começou muito novo a fazer rádio no Emissor Regional dos Açores. Locutor, redactor, homem da rádio, contador de histórias. Contou como entrevistou em directo Marcello Caetano quebrando as regras e o proto­colo à conta da irreverência da juventu­de, contou como passou pela primeira vez um disco de Elton John, como o movimento de aviões e navios nos Açores alterava as rotinas da rádio. João Coelho continuaria a contar histórias noite den­tro, levado pelos contos que lhe fervilham na memória.

Evocar Roosevelt permitia­nos recordar o passado mas também reflectir sobre o futuro da rádio. Rogério Santos, professor

na Universidade Católica, tinha avisado que iria fazer o papel de “mau da fita”, antevendo um futuro negro para a rádio. Começou por dizer que a rádio tem per­dido ouvintes, que estamos no período do pós­rádio que é o período internet, que as redes sociais, o Facebook e o

Twitter reduzem a escuta de rádio, que tinha acaba­do a era da audição passiva e que os tempos dourados da rádio tinham terminado. Mas o tom foi aliviando. Recordou que ciclicamen­te a rádio tem sobrevivido a sentenças de morte: “A rádio está sempre em mudança e sempre soube reinventar­se.”

Todos o escutavam em silêncio.

Rogério Santos rematou: “Nenhum meio é mais mágico do que a rádio.” Havia magia naquela sala. Eram quase nove da noite e ninguém parecia querer ir­se embora. Teríamos continua­do ali noite dentro. E havia tanto para dizer. * Jornalista da rádio TSF

portuGAL/euA

Carlos riley, o comissário da exposição, fazendo a apresentação desta aos muitos visitantes.

‘“my friends” ou “my fellow americans” – assim começava roosevelt as suas comunicações via rádio. e assim, ouvindo as palavras de uma gravação original de um fireside chat, começou a conferência nos Açores. ’

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portuGAL/euA

POR JenniFer nAtALi E mAtt konDoLF*

Alunos da universidade de berkeley investigam

rios portugueses

Embora constituam apenas dois por cento da superfície terrestre da Terra, as regiões de clima mediterrânico possuem uma percentagem extraordinária da diversida­de biológica e dos povoamentos humanos do planeta. A fauna e a flora selvagens e os seres humanos adaptaram­se aos ciclos hidrológicos únicos e variáveis do clima. Os verões do clima mediterrânico garan­tem céu azul, sem praticamente nenhuma precipitação. Os invernos podem ser imprevisivelmente húmidos, trazendo anos sequenciais de cheias ou secas. Com as alterações climáticas, é de esperar menos previsibilidade e mais condições extremas.

A urbanização trouxe grandes mudanças às vias navegáveis e exacerbou as pressões sobre o abastecimento de água. Atendendo a que as sociedades de zonas de clima mediterrânico tendem a depender muito do armazenamento e transporte de água para garantir o abastecimento durante o tempo seco, e dada a existência de nume­rosos diques, canais e açudes para contro­lar as cheias, os rios das regiões de clima mediterrânico sofreram mais alterações em relação ao seu estado natural do que os dos climas atlânticos húmidos. Os nutrientes, sedimentos e contaminantes provenientes da erosão das terras altas concentram­se progressivamente nos cau­dais de base reduzidos do Verão, caracte­rísticos destas ribeiras. Estamos a assistir,

em todas as regiões de clima mediterrâ­nico, à ruptura das populações de espécies de peixes autóctones, à invasão de espécies exóticas e ao declínio da biodiversidade. Os desafios da gestão dos recursos hídri­cos nas regiões de clima mediterrânico evidenciam a necessidade imediata e urgente de investigação, inovação e inves­timento.

As pressões ambientais comuns às zonas costeiras da Califórnia e de Portugal reve­lam a grande oportunidade dos estudos comparativos sobre a interacção complexa dos processos físicos, biológicos e sociais que influenciam as questões relacionadas com a gestão de recursos hídricos.

A comparação permitir­nos­á alcançar uma melhor compreensão, testar hipóte­ses, encontrar oportunidades, reconhecer limites, partilhar conhecimentos e difun­dir ideias inovadoras. Neste espírito, a Universidade da Califórnia, em Berkeley, ministra uma cadeira, Mediterranean­Climate Landscapes, que oferece aos seus alunos a oportunidade de realizar inves­tigação na região da Baía de São Francisco e em Portugal, trabalhando em equipa com estudantes portugueses (Anderson et al. 2007, Natali et al. 2009). Com o apoio da FLAD, o Programa de Estudos Portugueses da Universidade da Califórnia, em Berkeley, apoia as deslocações de estu­dantes a Portugal para realizar estudos comparativos de ameaças, oportunidades

e impactos que sejam relevantes para as ciências do ambiente, formulação de polí­ticas ambientais, planeamento ambiental e concepção ecológica. A investigação rea­lizada por alunos abrange uma série de escalas e ambientes geográficos: lagoas costeiras, estuários, corredores ribeirinhos, zonas ribeirinhas e bacias hidrográficas urbanizadas.

Um dos benefícios da investigação com­parativa internacional é a possibilidade de utilizar amostras de maior dimensão. Durante o Verão de 2008, Katie Jagt, uma estudante de pós­graduação em Engenharia, recolheu dados na foz de mais de trinta rios portugueses para investigar os pro­cessos físicos subjacentes à formação de lagoas sazonais na foz dos rios. Nos rios de clima mediterrânico que correm para o mar, é frequente a foz ser fechada por bancos de areia, à medida que o caudal de água doce vai diminuindo ao longo do Verão. Daí resulta a formação de uma lagoa de água doce, morna, que é um habitat fundamental para o desenvolvimento de peixes jovens. Assim que a chuva do Inverno regressa e os caudais aumentam, o canal fluvial volta a ligar­se ao mar e peixes oceânicos, bem alimentados, nadam para o mar. Na Califórnia, a construção da famosa auto­estrada costeira, denomi­nada “Route 1”, interrompeu a formação de muitas lagoas costeiras, o que teve repercussões negativas para os habitats onde

a califórnia e a península Ibérica beneficiam ambas de um clima mediterrânico, com verões quentes e secos e invernos suaves. O seu clima favorável e as suas zonas

costeiras estão na origem de algumas das taxas de imigração e urbanização mais rápidas do mundo desenvolvido.

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se desenvolvem os peixes. A foz dos rios portugueses constitui uma amostra nume­rosa de estuários intactos e sem obstru­ções, que permitem desenvolver o trabalho de investigação de Jagt ao pro­porcionarem um bom termo de compa­ração com as conclusões extraídas da foz de ribeiras costeiras da Califórnia.

Katie Jagt constatou que as principais razões determinantes do fecho da barra eram a dimensão dos grãos de areia, o grau de inclinação da praia, a velocidade da corrente do rio e o ângulo da praia em relação às correntes oceânicas. Para além de ter conseguido obter uma compreensão básica dos processos físicos que determi­nam a formação de lagoas costeiras, o estudo levanta questões mais sofisticadas sobre os processos por trás destes aspectos biológicos importantes dos rios de climas mediterrânicos.

Num estudo de um estuário de maiores dimensões, Alex Westhoff, um aluno de pós­graduação da área do planeamento ambiental, explorou a Reserva Natural do estuário do Tejo próximo de Lisboa. O estu­ário do Tejo apresenta muitos paralelismos

com o tema da sua tese de mestrado, uma proposta de criação de um “Corredor do Património Nacional” no delta de Sacramento­San Joaquin, próximo de São Francisco. Trata­se de dois locais que estão sujeitos às pressões da urbanização, devido à sua proximidade de zonas metropolitanas em expansão. Contudo essa proximidade é um factor subjacente ao seu valor potencial como destino turístico. Embora tanto as

autoridades portuguesas como californianas reco­nheçam o turismo como uma ferramenta estratégica do desenvolvimento econó­mico, o facto de designarem estes estuários zonas de conservação com utilizações recreativas e ambientais traz múltiplos benefícios, como, por exemplo, travar a expansão das zonas cons­truídas e preservar habitats aquáticos vitais.

A proposta de Alex pre­coniza a elaboração de um plano integrado de turismo

para a região, que articule o ecoturismo em zonas naturais com o agroturismo e o turismo ligado ao património cultural, de modo a apoiar as paisagens produtivas e aldeias despovoadas da zona do estuário. Alex visitou as Salinas do Samouco, a Com­panhia das Lezírias, o Seixal, Alcochete e Palhoto a fim de tomar conhecimento das oportunidades e condicionamentos da elaboração de um plano regional.

DR

estudantes de berkeley analisaram a eficácia do parque verde do mondego.

portuGAL/euA

‘As pressões ambientais comuns às zonas costeiras da Califórnia e de portugal revelam a grande oportunidade dos estudos comparativos sobre a interacção dos processos físicos, biológicos e sociais que influenciam a gestão de recursos hídricos. ’

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 201070

Nas suas entrevistas com representantes das juntas de turismo, Alex constatou que, tal como acontece no delta da região da Califórnia, estão a descurar­se muitas oportunidades de atrair visitantes aos sítios naturais e culturais únicos destes belos e diversos estuários, por se estarem a con­centrar os esforços de marketing noutros

destinos situados dentro dos limites polí­ticos da região oficial de turismo.

Na Califórnia, as margens ribeirinhas urbanas também são vítimas do flagelo das oportunidades perdidas. Os danos causados pelas cheias levaram a projectos de contro­lo das mesmas baseados em soluções extre­mamente tecnológicas, que separam as

comunidades dos rios que estiveram pre­cisamente na origem da sua formação. Grandes extensões de canais de betão des­tinados a escoar rapidamente as águas das cheias tornam­se zonas mortas e isoladas, desprovidas de vida e de cuidados. Noutros casos, são construídos diques, que criam uma barreira entre a cidade e o rio, sendo posteriormente descurados e tornando­se um convite a comportamentos aberrantes, o que dá origem a uma sensação geral de que o rio é uma desvantagem e não um recurso. Em busca de inspiração, três estu­dantes de Planeamento Ambiental e Arquitectura Paisagísta procuraram exem­plos da revitalização de zonas ribeirinhas urbanas em Portugal, entre 2007 e 2008. Estudaram três projectos de intervenção em zonas ribeirinhas realizados no âmbito do Programa Polis, um programa nacional recente que prevê intervenções urbanísticas em 17 cidades de Portugal. Observaram as relações entre a implantação no território, a programação e a actividade social, a fim de formularem orientações sobre concep­ção ecológica, com vista a melhorar a qua­lidade do espaço público urbano, aumentar a interacção humana com a água em ambientes urbanos e promover um sentido de apreciação da conservação de recursos.

O Parque Verde do Mondego, em Coimbra, foi um tópico abordado pelos três investi­gadores. Revelando grande eficácia concep­cional, o parque concentra as atenções no núcleo de actividade mais próximo do cen­tro da cidade mediante um passeio pedonal formal, que liga destinos sociais tais como restaurantes, cafés, bares, esplanadas e pavi­lhões para exposições.

Tal como se pretendia, o parque foi con­cebido e programado de modo a promo­ver a leitura ou a pesca nas zonas informais.

DR

o passeio do Cais da ribeira, de vários níveis, e flexibilidade incentiva várias actividades ao longo do ano junto ao Douro, no porto.

portuGAL/euA

‘os portugueses mantêm há muito uma relação com as suas paisagens e cursos de água, com tradições e formas urbanas que tendem a respeitar as variações climáticas da precipitação e a tendência para a ocorrência de cheias. ’

Paralelo n.o 4 | INVERNO | PRIMAVERA 2010 71

Entrevistas realizadas com partes interes­sadas locais revelaram que, embora o pro­jecto tenha pouco impacto no centro histórico da cidade, veio acrescentar gran­de valor à qualidade de vida dos residen­tes urbanos.

A análise de outros projectos do Programa Polis revelaram a importância da ligação entre os centros urbanos, a implantação de pontes e as actividades nas zonas ribei­rinhas. A facilidade de acesso contribui para uma maior diversidade de utilizações por diferentes utentes. As zonas ribeirinhas urbanas de Leiria e de Bragança apresen­tavam deficiências óbvias ao nível da qua­lidade da água, o que constituía um desincentivo à interacção física com a mesma. A fim de estabelecer uma compa­ração com os sítios do Programa Polis, os métodos de investigação do levantamento de comportamentos e da análise espacial foram também aplicados ao Cais da Ribeira, a zona ribeirinha histórica do Porto. Para além dos atractivos de lazer e restauração do ambiente espectacular da zona ribeirinha, a concepção do paredão ao longo do Cais da Ribeira contribui para um elevado grau de interacção social entre

os seus diversos utentes e para uma uti­lização activa da ponte como prancha de mergulho para os jovens. Existe toda uma série de espaços públicos acessíveis, com elevações e inclinações diferentes, que criam múltiplas camadas de miradouros e pontos de acesso entre o paredão, o pas­seio pedonal elevado, a base da torre e as escadarias que descem até ao rio. Os pró­prios materiais escolhidos para pavimen­tação incentivam uma utilização activa.

Os portugueses mantêm há muito uma relação com as suas paisagens e cursos de água, com tradições e formas urbanas que tendem a respeitar as variações climáticas da precipitação e a tendência para a ocor­rência de cheias. Contudo, a rápida urba­nização da região metropolitana de Lisboa contribuiu para um aumento significativo das superfícies pavimentadas e das ligações indevidas às redes de esgotos, o que se traduz num aumento do escoamento de águas pluviais, em maior risco de cheias e numa menor qualidade da água. A urba­nização da zona superior da bacia hidro­gráfica da Ribeira da Lage, a oeste de Lisboa, é um exemplo típico desta ten­dência. Depois de estudarem estes riscos

no workshop subordinado ao tema “Paisagens de climas mediterrânicos”, que teve lugar em 2007, Rosey Jencks e Rebecca Leonardson regressaram à Ribeira da Lage a fim de construírem um modelo de uma técnica de gestão de águas pluviais cujas origens remontam à história antiga de Portugal. Dado que a utilização de cister­nas permite reduzir os níveis do caudal de base na bacia, o que tem um impacto na ecologia aquática e ribeirinha, os estu­dantes recomendaram que se conjugasse a utilização de cisternas com um aumen­to da infiltração de águas pluviais em zonas apropriadas da bacia.

Aplicando métodos de investigação num contexto novo e alargado, estes estudos comparativos ajudaram os estudantes a aperfeiçoar as suas hipóteses e abordagens. No seu conjunto, o trabalho de investiga­ção realizado ilustra as possibilidades de colaboração nas regiões mediterrânicas. No sítio web do Programa de Estudos Portugueses, em http://ies.berkeley.edu/psp/portuguesestudies/research.html, estão disponíveis para download relatórios pormenorizados. *Universidade da califórnia, Berkeley

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estes estudos comparativos ajudaram os estudantes a aperfeiçoar as suas hipóteses e abordagens. o trabalho de investigação realizado ilustra as possibilidades de colaboração nas regiões mediterrânicas.

portuGAL/euA

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POR CLArA pinto CALDeirA

Formada em Economia pelo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), a ideia de intervir e mudar a sociedade sempre orientou o seu percurso. Depois de considerar as ciências naturais, é na economia que encontra as ferramentas apropriadas para “conhecer melhor os mecanismos sociais”, num tempo em que os cursos de Sociologia não faziam parte da realidade nacional. Portugal estava na década de 1960, quan­do Idalina Salgueiro termina a licenciatu­ra. Dos tempos da formação inicial, Idalina Salgueiro recorda os professores que a marcaram, Sedas Nunes, Pereira de Moura, Teixeira Pinto, e também o grupo que ajudou a formar de docentes e alunos para discutir os problemas da faculdade, “um tempo sensacional”. Integrou as direcções da Juventude Universitária Católica, no seio da qual nasceu um cineclube, e a Associação Académica da sua universidade. Nem o associativismo nem a vontade de intervir socialmente alguma vez deixaram de estar presentes na sua vida.

os Anos DeDiCADos Ao pLAneAmentoPouco disposta a integrar uma empresa, destino mais natural para quem se forma­va em Economia, Idalina Salgueiro é con­vidada a fazer investigação no ISCEF. Pouco depois surge a oportunidade de participar nas equipas­piloto que se encarregariam de desenvolver projectos em duas locali­dades de Leiria, o Barrio e a Benedita. A ideia era fazer um levantamento das necessidades e contribuir para a sua supe­ração, “um trabalho com as populações”, sublinha Idalina Salgueiro. Miguel Caetano, envolvido no projecto onde se conhece­ram, conta: “Foi uma iniciativa na qual nos empenhámos muito para além do

profissionalmente exigido. A Maria Idalina e eu ficámos encarregues da dinamização do sector do calçado, ajudando os peque­nos e muito pequenos empresários a orga­nizarem­se numa cooperativa.”

Marcas em território nacional de um trabalho com rumo certo. Em 1964, Idalina Salgueiro parte para Paris, para o Institut d’Études et Developpement

Ecónomique, em busca de um aprofun­damento das suas preocupações socioló­gicas. Encontrou o que precisava e muito mais, na Cidade da Luz: “Uma liberdade enorme e quase um esmagamento pela informação e conhecimento que havia. Os livros que podia ter à mão, os filmes, as exposições, os teatros, os concertos…”

Regressa a Portugal em 1965 e come­

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Com rui rio e manuel sobrinho simões na comemoração dos 15 anos do ipAtimup.

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As ciências económicas e a intervenção social não

são universos opostos

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ça a trabalhar no Gabinete de Estudos e Planeamento da Acção Educativa, no âmbito da segunda fase do Plano Regional do Mediterrâneo. A equipa de Idalina Salgueiro tinha a seu cargo, na altura, a chamada educação primária. “Era uma tarefa nova, era fazer o planea-mento conhecendo as necessidades, para levar a educação com qualidade a toda a gente.” Projectos inovadores são aque-les que sempre motivaram Idalina Salgueiro, que em 1967 integra a Divisão do Secretariado Técnico da Presidência do Conselho de Ministros. Sem perder de vista o foco no desenvolvimento social, Idalina Salgueiro dedica-se a pro-jectos no âmbito do Plano do Fomento que resultam num conhecimento inédi-to do País, dos seus indicadores econó-micos, sociais e urbanos. Algumas das recomendações e projectos em que este-ve envolvida foram de tal forma funda-dores que continuam actuais; é o caso das Comissões Regionais de Planeamento, ainda em vigor. “Os anos 60 tiveram grandes taxas de crescimento, mas com muitos desequilíbrios sociais. Era muito aliciante, havia muito entusiasmo e era grande a vontade de contribuir para uma sociedade portuguesa mais moderna, mais justa”, explica.

Algumas das futuras personalidades políticas que encontrou no Planeamento (onde ingressou em 1969), partilhariam com Idalina Salgueiro a aventura da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (Sedes). A organi-zação, fundada em 1970, foi considera-da por muitos um pólo de democracia, quando ela ainda não passava de um anúncio. “Já havia uma percepção de que alguma coisa tinha que mudar. E na altu-ra, o impacto da Sedes foi muito gran-de”, conta Idalina Salgueiro, que veio a

estar à frente do Conselho Coordenador de 1995 a 2000 e foi responsável pela publicação de um volume da história da associação, sobre o período 1973-1975. Emílio Rui Vilar, uma das muitas perso-nalidades com quem partilhou a funda-ção da Sedes e uma das principais figuras desta associação, conta à Paralelo: “Creio que o tempo que precedeu a aprovação dos estatutos e os debates que

se seguiram ao 25 de Abril foram perío-dos intensamente vividos, com enorme entusiasmo e esperança, em que a Maria Idalina esteve sempre presente e inter-veniente.” Da amizade de longa data, o presidente da Fundação Calouste Gulbenkian sublinha como constante na personalidade de Idalina Salgueiro “a persistência, o rigor, a lealdade… e um bom gosto discreto”.

Conferência de imprensa após a entrada de Portugal como membro permanente da AISEC (1960). Idalina Salgueiro, segunda à esquerda.

PERFIL

‘Os anos 60 tiveram grandes taxas de crescimento, mas com muitos desequilíbrios sociais. Era muito aliciante, havia muito entusiasmo e era grande a vontade de contribuir para uma sociedade portuguesa mais moderna, mais justa. ’

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muDAr, porque não?Em 1980, Vítor Cunha Rego dirige­lhe um convite quase irrecusável: a adminis­tração da Radiotelevisão Portuguesa (RTP). Idalina Salgueiro fala com emoção desse amigo: “Faz­nos imensa falta, aos amigos e ao País.” Foram três os anos que Idalina Salgueiro dedicou à televisão pública, num período especialmente delicado, em que se impunha a difícil tarefa de regularizar a estação financeiramente, e quando esta ainda procurava uma identidade. A palavra de ordem era, portanto, assegurar um projecto sustentável financeira e profis­sionalmente, de competência técnica e de vontade de progresso. Havia também a necessidade de contribuir para uma pro­gramação com padrões mais abertos. Idalina Salgueiro ficou responsável pelo pelouro da produção e das relações inter­nacionais. Fala da experiência televisiva de maneira carinhosa: “Era lidar com pesso­as muito diferentes… com artistas!” O seu espírito de conciliação, trabalho de equi­pa e melhoria comum também aqui encontrou expressão. Foi Idalina Salgueiro quem, numa iniciativa inédita até então,

organizou reuniões periódicas com toda a equipa de produção, para balanço e pla­neamento das actividades. Um mundo diferente, mas, como outros à época, muito masculino. No entanto, Idalina Salgueiro representou a RTP na Union Européene de Radiotelévision (UER) e fez parte da comitiva que se desloca a Roma para entregar ao Papa João Paulo II as gra­vações da sua primeira visita a Portugal, em 1982.

Pouco depois da passagem pela televisão, e ocupando ainda novo lugar na área do planeamento, desta vez em projectos rela­cionados com o artesanato (legislação, apoios institucionais e exportação), Idalina Salgueiro começa um novo capítulo na sua vida, que duraria vinte e dois anos: a Fundação Luso­Americana para o Desenvolvimento.

A “viAGem” FLADIdalina Salgueiro viajou muito ao longo da sua vida. Além das suas viagens pesso­ais, participou em conferências e realizou inúmeros estágios no âmbito da OCDE,

na área do planeamento regional e urba­no e do desenvolvimento económico e social, em Espanha, França, Polónia, Reino Unido e Holanda. Mas sentia a necessida­de de ter maior conhecimento e contacto com os Estados Unidos da América. Uma “viagem” que duraria vinte e dois anos na FLAD, onde também encontrou outra agilidade financeira para a viabilização dos projectos em que acreditava.

Ocupou­se de projectos muito variados, e em áreas inovadoras para Portugal. Foi com alegria que herdou alguns e desen­volveu os seus, na área da medicina e da biotecnologia, em parcerias felizes com o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP), o Hospital de São João, o Instituto Gulbenkian de Ciência, entre outros, sobretudo no incentivo à investi­gação e na promoção do contacto entre investigadores portugueses e americanos. Manuel Sobrinho Simões, director do IPATIMUP, destaca de todos os projectos realizados a construção de um modelo de avaliação e acompanhamento externo para instituições de investigação científica e pós­graduação na área das ciências da saúde. “A Dr.ª Idalina, e através dela a FLAD, foram incansáveis no desenvolvi­mento da ideia, na sua execução e depois na sua manutenção, há já quase vinte anos.” Uma inovação na área da saúde em Portugal, a que Idalina Salgueiro gosta de estar associada, sobretudo pelas relações que estabeleceu e preservou com “pesso­as cientificamente muito válidas, equipas de um entusiasmo espantoso”. Sobrinho Simões sublinha ainda a forma como Idalina Salgueiro abordava domínios para si antes desconhecidos: “Com um misto de humildade, curiosidade e vontade de aprender, num registo de grande franque­za. Nunca a vi fazer bluff…”. Admiração expressa na homenagem que o IPATIMUP prestou à sua personalidade, no dia 20 de Fevereiro de 2009, por ocasião dos 20 anos do instituto.

Dos projectos em áreas científicas total­mente novas, a ex­directora da FLAD refere­se também com entusiasmo ao trabalho realizado com Alexandre Quintanilha, que liderou o Instituto de Biologia Molecular e Celular no Porto (IBMC) até este ano, que a despertou para as questões da biotecnologia e da bio­economia, áreas que estarão no centro do desenvolvimento humano futuro. O ciclo de conferências publicado em livro sob o título a condição Humana (Dom Quixote, 2009), uma reflexão de especialistas por­tugueses e internacionais sobre questões da bioética, como o aborto, a eutanásia,

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Com o papa João paulo ii e José macedo e Cunha, presidente da rtp à época.

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o suicídio, o código genético, o trans­plante de órgãos, é um dos resultados desta parceria. Bernardino Gomes, que partilhou consigo este e outros projectos, como as conferências promovidas sobre as ciências do mar, que trouxeram a Portugal, durante uma década, especia­listas internacionais na área, afirma sobre tantos anos de companheirismo: “Os projectos eram submetidos a uma análi­se em profundidade e com grande rigor. Uma das grandes qualidades da Dr.ª Idalina é a seriedade que põe em tudo o que faz. Ajudou a Fundação a ter visibi­lidade e qualidade naquilo que fazia.”

Outros projectos, mais relacionados com a sua experiência na área do planea­mento, marcaram a sua passagem pela FLAD, como os Business Information Centers, uma plataforma de apoio à cons­tituição de empresas, com resultados evidentes: uma das empresas formadas na sequência deste projecto foi vendida à Deutsche Telekom.

A problemática dos incêndios e da devas­tação florestal, particularmente sentida no nosso país depois dos fogos de grande dimensão de 2003, originou outro pro­jecto caro a Idalina Salgueiro, particular­mente orientado para a prevenção, a

gestão e o planeamento do problema em Portugal, também fixado em livro, numa edição da Fundação Luso­Americana. O ambiente é, aliás, preocupação transver­sal à sua vida, como nos conta Isabel Alçada, amiga de longa data, com quem veio a

trabalhar no Plano Nacional de Leitura, a seu convite. “Ela é muito forte de carác­ter, uma pessoa muito consistente entre aquilo que pensa e a maneira como vive. O convívio pessoal leva­me a verificar isso todos os dias, ela não infringe princípios, e isso é muito bonito. No ambiente, por exemplo… ela cumpre mesmo o fechar a torneira ou poupar electricidade, natural­mente e sempre!”

Idalina Salgueiro saiu da FLAD ao fim de vinte e dois anos de projectos, cuja

extensão e variedade seriam impossíveis enumerar aqui. Hoje continua associada à Sedes, é fundadora da Associação de Moradores da sua zona de residência e gere a empresa da sua família, com o entu­siasmo, a dedicação e o interesse pela

novidade transversal ao seu percurso.

Miguel Caetano, que a conheceu num projecto­ ­piloto com comunidades locais e com quem traba­lhou em instituições públicas de planeamento, afirma: “Foi sempre uma pessoa empenhada e soli­dária, entregando­se às causas em que acredita­

va.” Bernardino Gomes comenta que “desde muito jovem se bateu pelos ideais de igualdade, justiça e liberdade”. Sobrinho Simões considera que reúne duas quali­dades raras: “Por um lado é generosa, por outro não deixa de ser muito séria e exi­gente e tem uma notável capacidade de pôr as suas características pessoais ao ser­viço das actividades de planeamento, ges­tão e acompanhamento.” Isabel Alçada não tem dúvidas em afirmar: “A tendência dela é para actuar, não para esperar.”

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idalina salgueiro entre David halpern (marine sciences) e rui machete.

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‘“ela é muito forte de carácter, uma pessoa muito consistente entre aquilo que pensa e a maneira como vive. ’

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Leonor xAvier

Andei por reminiscências e impressões, por cadernos de notas e diários, à procura dos meus Estados Unidos, a América, como me lembro de ouvir dizer, quando era pequena. Em vários tem­pos e diferentes cenários, tentei voltar à viagem interior das muitas outras viagens reais que depois fiz. Redescobri a imagem que me ficou sobre o Empire State Building, que seria o primei­ro e o mais alto arranha­céus do pequeno mundo da minha infância. Retomei a fantasia sobre o american way of life dos anos 1950, os estilos de vida que via no cinema, tão diferentes dos nossos. Recordei as minhas emoções adolescentes sobre aquele espaço pasmoso, o infinito da distância, o tudo que lá parecia possível acontecer. Relembrei cenas de guerra em reportagens no paris-Match de todas as semanas em casa dos meus pais, e, já nos anos 1970, as conversas de quando vivia no Brasil, com os amigos que tinham visto os canhões americanos à beira de Saigão. Vieram­me lembranças de idas à Broadway, mais tarde, e de saídas pela noite no Fifty Four Studio, com os excessos do des­lumbramento, os brilhos e as luzes de nunca mais acabar.

Em tumultuosas misturas, a lucidez da memória trouxe­me a voz do meu pai, que nos anos 1930 tinha feito a sua especialida­de médica na John Hopkins University, em Filadélfia, e de lá trazia originais preceitos de saúde e educação, que aplicava ao ordenamento da casa. A excelência dos corn flakes, pelo milho, e da água da torneira, pelo cálcio. O cuidado com legumes crus e saladas, o modo americano de cortar as laranjas, ou de lavar as mãos correctamente. Não me esforço por evocar a literatura ou a música, as convulsões políticas, as grandes questões sociais, as

diferenciações entre os estados norte­americanos, a explosão do Lehman Brothers, o mandato de Barack Obama, as aflições pelo Afeganistão. Experimento a liberdade de fugir de nobres temas, e penso em TMI (too much information), uma sigla muito usada pelos meus três sobrinhos que vivem e trabalham em Nova Iorque. Sempre que um enunciado de saberes esteja perto de ultrapassar o bom senso das desimportâncias, lá vem a várias vozes a sigla, aviso de cautela numa conversa que se queira leve e casual. E não é verdade que uma crónica escrita se quer assim?

Revisitando anotações de viagem, descubro­me no Metropolitan Museum, na exposição de Paul Strand, que em 1915 escrevia sobre formas e superfícies conjugadas para uma espécie de uni­dade, na fotografia acabada. Movimentos na cidade, detalhes de coisas e gente, retratos de rua eram os motivos das fotografias expostas, primeiras abstracções com significado feitas intencio­nalmente com uma câmera. “The hot flux of immediate life”, foi a frase de Paul Strand que nesse Maio de 1989 passei para o meu caderno e sempre me vem, quando penso em Nova Iorque. Ao lado, na mesma página, a palavra Blind traz­me a fotografia da mulher cega, com um olho aberto e o outro fechado, que usa ao pescoço a tabuleta com esta palavra e o número da licen­ça de vendedora de jornais. “Em outros recados, o pasmo da desgraça, do alcoolismo, da miséria,” comentei então.

Por esses dias, a morte de Frank Sinatra era luto universal, devi­damente celebrado na CNN. Atravessando a Nova Inglaterra, o cheiro da floresta invadia o tudo onde se estivesse. A América não tinha fim, em desfile de sensações, movimento perpétuo.

‘ redescobri a imagem que me ficou sobre o empire state building, que seria o primeiro e o mais alto arranha-céus do pequeno mundo da minha infância. ’

A América não tinha fim

CArtA brAnCA

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Quase diáriode bordo

POR FrAnCisCo beLArD

Este breve livro passou despercebido na altura em que saiu. Fala de andanças (ou melhor, naveganças) do autor, fotógrafo embarcadiço no mar dos Açores e até Sagres. Sem epopeia, naufrágios ou pirata­ria (mas pode haver um veleiro destroçado e o esqueleto do tripulante), os perigos vêm da vida no mar alto, as emoções pro­cedem da descoberta não de continentes mas de ilhas habitadas e sobretudo do dia­ ­a­dia de um aprendiz de marinheiro que acompanha pescadores de ofício ou vele­jadores de índole solitária. Alexandre Delgado O’Neill é nessa altura (Agosto­ ­Setembro de 1983) um jovem de 25 anos, que trabalhou em publicidade, cinema, etc.; em 1987­1990 havia de tirar um curso de fotografia no Art Institute of Boston.

“Não existem palavras, a não ser de Melville ou do Ruspoli, para descrever a caça ao cachalote”, escreve a 27 de Agosto de 1983. Mas ele não faz aqui literatura, nem jornalismo escrito; são notas à mar­gem de um roteiro fotográfico. Aponta­as num caderno, ao sabor do que acontece (ou não), como um diário de bordo sem obrigação diária. É um observador, e as anotações tanto são escritas como fotográ­ficas. O trivial torna­se despretensiosamen­te saboroso, como no escrito a 25 de Agosto: «Hoje finalmente consegui […] a autorização de embarque para a pesca ao cachalote. Falei com o Sr. Chaves da capi­tania para ele assinar o requerimento. Ao falar com ele veio à conversa, por causa do requerimento do qual copiei o meu, o Antonio Tabucchi, e ele logo me disse que ‘se você é amigo desse italiano, é meu amigo também. Sabe, ele ficou com a

minha morada para me mandar o livro ou lá o que é. Mas ouça, eu trabalho aqui há 20 anos, têm chegado aqui tipos impor­tantes! […] Fotógrafos, escritores, antro­pófagos ou lá o que é isso. Bem, mas isto para lhe dizer que, em 20 anos que traba­lho aqui, nunca me mandaram nada’.” O Sr. Chaves não foi vítima da antropofagia dos antropólogos. Mas também não terá recebido este livro de Alexandre Delgado O’Neill, pois é edição póstuma que associa as notas diarísticas a um conjunto de fotos (o editor não pôde utilizar originais, que terão ficado algures na América). O autor, filho da cineasta Noémia Delgado e do poeta Alexandre O’Neill, faleceu a 4 de Janeiro de 1993, de doença que não foi prolongada nem parecia grave.

Na parte final, chega ao Algarve no barco do californiano Ed Sanford (piloto na II Guerra Mundial, esteve em Guadalcanal e voltou). Do que Ed gosta é de partir e vele­jar. Alexandre prefere “chegar aos sítios, chegar”; no mar, pode ficar cismando durante dias, saudoso de uma rapariga que encontrou no Faial. Ou temeroso, quando o põem ao leme numa noite sem lua, já não longe do Corvo, “tapado pelas nuvens”.

As imagens não puxam pelo dramatis­mo nem por grandes efeitos; relatam rotinas, a faina, as vagas, o pescado. Tal como os textos, retratam bem experi­ências que a maior parte de nós não teve. O autor assiste com aparente indi­ferença à sorte dos animais, embora comente: “Faz muita impressão todo o sangue que o peixe solta que mancha os pescadores, e o barulho do peixe no porão do barco é muito grande, tem um olho aflito, este peixe, e demora muito tempo a morrer” (isto sobre um atum voador de 30 quilos). Noutra viagem tenta salvar no barco um pássaro perdi­do no mar alto e no mau tempo, peran­te a indiferença de Ed, que diz: “Morria de qualquer forma!”

No texto de apresentação, Alfredo Saramago evoca Alexandre e o que soube do itinerário deste na fotografia, “onde o acaso aparece por vezes com uma furiosa necessidade”. Acrescenta que nele “não existe cálculo sofisticado nem ingenuida­de mas uma maneira de ficar o mais perto possível ao lado da vida”. Termina: “O Alexandre morreu cedo.” E mais tarde o Alfredo, menos jovem, também.

Reportagem nos Açores

Alexandre Delgado o’neillAssírio & Alvim, Lisboa, �007

‘ “não existem palavras, a não ser de melville ou do ruspoli, para descrever a caça ao cachalote”, escreve a 27 de Agosto de 1983. mas ele não faz aqui literatura, nem jornalismo escrito; são notas à margem de um roteiro fotográfico. Aponta-as num caderno, ao sabor do que acontece (ou não), como um diário de bordo sem obrigação diária. é um observador, e as anotações tanto são escritas como fotográficas.

Livros

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LIVROS

Cinco séculos do arquipélago

POR AuguStO NAScImeNtO

Estamos em presença de um cometimen-to ambicioso, o de proporcionar uma visão sintética da história de mais de cinco séculos do arquipélago dos Açores numa obra (bilingue) de divulgação. Como é referido no título, o arquipélago, embora constituindo uma unidade, não deixa de ser composto por nove ilhas. Na impos-sibilidade de traçar uma história de cada uma delas, a autora pretendeu deixar registadas algumas particularidades ilhen-ses, remetendo os leitores mais interessa-dos para a bibliografia já existente.

A Introdução contém uma brevíssima mas sugestiva apresentação de trabalhos sobre os Açores, qual repositório da “memória das ilhas”. Significativamente, a autora filia o seu trabalho na tradição inaugurada pela obra de Gaspar Frutuoso, cuja particularidade assinalável, porque actual, foi a sua abrangência: uma história dos arquipélagos do Atlântico.

No início da história das ilhas encontram- -se, entre os temas habituais, a descrição física, em cuja configuração cumpre realçar o papel das erupções e dos sismos, e a saga do povoamento, de que se formou o patri-mónio humano açoriano. Este é tributário de diversas nações europeias, assim como do Médio Oriente e de África.

Seguem-se as dinâmicas políticas, cuja relevância se prende com o nexo que se tende a estabelecer entre tais dinâmicas, por um lado, e o actual modelo autonó-mico e a expressão identitária dos aço-rianos, por outro. À luz da evolução

política, a autora divide a história admi-nistrativa e política dos Açores em três partes: da descoberta a 1766, desta data a 1831 e do liberalismo ao presente. Diga- -se, a autonomia tece-se a partir das lutas liberais, encontra expressão em reivindi-cações de finais de Oitocentos, aflora na República e vem, depois da percepção dos Açores como um todo nos anos 1960, a materializar-se após o 25 de Abril.

Outro capítulo trata da plurissecular con-dição de “trampolim do Atlântico”. “Do” e não “no” Atlântico, decerto por os Açores

terem sido procurados por mui-tos. Ao longo de séculos, suce-deram-se acções de corso e de pirataria, o interesse diplomá-tico dos vários países e os tra-tados de aliança militar.

Revisitadas as facetas econó-micas, a autora explana as estruturas sociais, destacando os modelos familiares, a emigração e, ainda, a educação, que só se terá tornado um mecanismo de mobilidade e de transformação social num passado muito recente. Perante os temas esco-lhidos, alvitraria que, sem embargo da importância de que a religiosidade se reveste nas ilhas, talvez outros aspectos da ordem do simbólico mereces-sem algum tratamento, sumário que fosse…

Sintético, bem escrito, este livro não deixa de ser uma obra de “fragmentos” como, afinal, sucede em muitos intentos monográficos. Tal não impede a autora de salientar a constan-te das lutas pela humanização do território e de expor a per-sistência de uma simbiose entre o tradicional e o moderno ou entre a pobreza e a ruralidade, por um lado, e a intelectualida-de e o modernismo, por outro. Por mim, não saberia dizer se simbiose, se justaposição…

As abordagens dos espaços insulares suscitam sempre inter-rogações: por exemplo, serão as

ilhas mais atreitas a oscilar da “mobilidade à permanência e da estabilidade à incons-tância” ou esse processo, comum às várias formações humanas, é mais visível nas ilhas? A história das ilhas produz uma iden-tidade específica e assaz diferente da das terras de origem dos colonizadores ou, como se preferirá, dos humanizadores do território e criadores das sociedades insula-res? Encontramos neste livro alguns ele-mentos para melhor fundamentar estas problemáticas e, de caminho, aumentar o conhecimento necessário dos Açores.

Açores: Nove Ilhas, Uma História

Susana goulart costaUniversidade da Califórnia, Berkeley, 2008

‘Ao longo de séculos, sucederam-se acções de corso e de pirataria, o interesse diplomático dos vários países e os tratados de aliança militar.

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LIVROS

Dois volumes de referênciaPOR AuguStO NAScImeNtO

Obra de um fôlego que se vai tornando desusado, esta História dos Açores beneficia do esforço de investigação sistemática sobre a história do arquipélago, para o que muito contribuíram as mudanças políticas após o 25 de Abril de 1974 e a existência de condições institucionais – entre elas, a criação da Universidade dos Açores – propícias à elaboração de um saber sobre a região. Trata-se de uma obra que mobiliza dados actualizados e apro-fundados por estudiosos que se especia-lizaram em história dos Açores e não só.

O primeiro volume vai até 1836, o segundo abarca a subsequente história até à actualidade. Independentemente das dis-cussões que possam existir em torno da periodização, parece que o liberalismo introduziu uma diferença que é de assi-nalar na vida das ilhas.

Mais ou menos na moda, consoante as conjunturas, as ilhas têm algo de mito-lógico, a que se faz referência na apre-sentação do descobrimento, cujas circunstâncias andam rodeadas de con-trovérsia, no caso dos Açores ainda mais acentuada devido à dispersão das ilhas por uma vasta área oceânica.

Aborda-se com pormenor o povoamen-to das ilhas por indivíduos de variadas proveniências e de diferentes condições sociais. A microinsularidade suscita a

necessidade de organização do espaço dependente de arranjos po l í t i co-admini s t ra t ivos. Descrevem-se com minúcia a estrutura da propriedade fun-diária e as actividades econó-micas.

Numa obra tão aprofundada, a Igreja ganha centralidade. Apresenta-se a sua estrutura multiforme, descreve-se a reli-giosidade popular e recenseia- -se a cultura erudita que ela promoveu, por exemplo, atra-vés da Companhia de Jesus.

Arrolam-se as várias dimen-sões da produção literária e da criação artística nas ilhas até à institucionalização da aprendi-zagem laica por via da reforma de estudos do marquês de Pombal.

Não só a Igreja, também a vinculação da propriedade fun-diária e o estorvo que ela repre-senta à mobilidade social merecem uma abordagem deta-lhada, assim como as várias actividades referentes à

História dos Açores. Do Descobrimento ao Século XX

Artur teodoro de matos, Avelino de Freitas de menezes e José guilherme Reis Leite2 volumes, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 2008

‘O primeiro volume vai até 1836, o segundo abarca a subsequente história até à actualidade. Independentemente das discussões que possam existir em torno da periodização, parece que o liberalismo introduziu uma diferença que é de assinalar na vida das ilhas.

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Livros

subsistência dos povos e às demandas dos que por ali passavam.

Narram­se com pormenor as pelejas por ocasião da submissão do reino de Portugal a Castela, que terminaram com a integra­ção das ilhas na monarquia hispânica. Não deixa de ser interessante a descrição das clivagens político­administrativas referidas à descontinuidade territorial. A autorida­de numa ilha, mesmo do delegado régio, podia não ser repercutida noutra, para além, evidentemente, das obstruções levantadas pelos desempenhos municipais. Se há a reter algum eco de séculos passa­dos no tocante à flutuação do poder polí­tico, ele remete para o peso de diferentes pólos de poder derivados da multiplici­dade de ilhas. No passado, como hoje.

Referem­se os ensaios de reorganização da administração e da (tentada) centrali­zação de poder gizada pelo conde de Oeiras – aliás, para todo o império –, que esbar­raram nas resistências de elites locais às reformas. As invasões francesas mudaram o panorama geopolítico e tornaram o esta­tuto dos Açores algo indefinido. Anos depois, o destino político de Portugal teria

episodicamente o seu epicentro nos Açores. Como noutros arquipélagos, as clivagens entre elites das ilhas nutriram­se de disso­nâncias ideológicas de circunstância e das dificuldades de imposição de hegemonia a autoridades ou potentados de outras ilhas. Por exemplo, em 1821, estava em ques­tão, mais do que a adesão ao liberalismo, a vontade micaelense de não depender de Angra. As sucessivas lutas, cujo pendor dependia em parte dos sucessos em Lisboa, nunca apagaram o regateio da primazia e da não submissão entre São Miguel e Terceira, ilha que acabou como o rochedo liberal. Com o triunfo do liberalismo, adoptar­se­ia uma divisão pelas duas ilhas das instâncias administrativa, jurídica e religiosa.

A atracção pelo Novo Mundo começou pelo Brasil, para onde os açorianos iam

desde finais de Quinhentos. Para ali foram levas de casais em meados de Setecentos, designadamente para Santa Catarina, no sul daquele território. Nas décadas seguin­tes, diversificar­se­iam os destinos no

Brasil, mas aquela região ficou especial­mente marcada pela migração açoriana.

Também como noutros arquipélagos, nas urbes açorianas conviviam arreigadas clivagens sociais. A um sentido cosmo­polita de vida contrapunha­se o trabalho como modo de vida dos pobres, cujas

‘ Aborda-se com pormenor o povoamento das ilhas por indivíduos de variadas proveniências e de diferentes condições sociais. A microinsularidade suscita a necessidade de organização do espaço dependente de arranjos político-administrativos. Descrevem-se com minúcia a estrutura da propriedade fundiária e as actividades económicas.

eugénio dos santos (apresentador da obra na FLAD) enfatizou a relevância da primeira história dos Açores com chancela universitária.

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Livros

balizas eram o calendário litúrgico e o ano agrícola.

O volume II traz­nos desde o liberalis­mo aos nossos dias. Pela ênfase concedi­da à história que já vivemos, percebe­se, de imediato, a motivação de fincar a identidade regional na história. Daí, a importância de temas como o estatuto político­administrativo, a representação, a autonomia e a identidade.

A implementação do liberalismo legou a divisão das ilhas em três distritos inte­grados no reino e não mais considerados possessões ultramarinas. Contra a percep­ção induzida por esta condição político­ ­administrativa, e significativamente estimuladas pelo olhar dos estrangeiros ou dos de fora, as elites insulares ensaia­vam construir uma identidade arquipe­lágica. Não deixa de ser curioso que se tenha procurado o veio de uma origem não portuguesa, antes o resultante da mistura de povos europeus… Esta pers­pectiva instrumental confluía com a ideia de alguns açorianos de que seria melhor ter por pátria­mãe outra nação mais poderosa do que o decadente Portugal (talvez fosse curioso estabelecer uma comparação com mais ou menos subli­minares cálculos políticos das elites cabo­ ­verdianas, que, por essas épocas, oscilaram entre a pulsão independentis­ta e a acomodação à albarda de um poder colonial que não tinha meios de asfixiar). As dificuldades do pensamento e da acção autonomista, geradoras do decreto auto­

nómico de 1895, prendiam­se com a identificação do comum dos indivíduos com a sua ilha, mas não necessariamen­te com o conjunto das ilhas, um entrave igualmente observável noutros arquipé­lagos.

Quer na República, quer após o 25 de Abril, a autonomia tornou­se instrumental, dando corpo a manifestações de contornos conservadores. Na realidade, a proposta autonómica, procurando apoio em senti­mentos populares, correspondeu a um projecto de sectores conservadores.

Numa sociedade cuja economia mudava, assinale­se a persistência da pobreza. O desenvolvimento industrial, em parte limitado devido à exiguidade do mercado insular, também era estreitado por deter­minações políticas. Estas decisões favore­ceram a construção de algumas fortunas, enquanto os padrões de vida estagnavam,

impelindo à emigração, que, mais cedo do que a do continente, trocou o Brasil pelos Estados Unidos, onde, provavelmen­te, muitos se terão descoberto açorianos.

Um dos mais interessantes capítulos, “Os Açores e as estratégias para o Atlântico”, versa sobre a evolução da valia da posição estratégica dos Açores, desde finais de Oitocentos ao tempo do marcelismo. Todas as potências tinham ou pretenderam ter relações com os Açores, tentando simul­taneamente apartar das ilhas os poderes concorrentes. A importância estratégica do arquipélago superou de longe a aparente relevância económica. Não subscreveria a asserção de que os “Açores têm estado no centro da relação de Portugal com o mundo”, mas, sem dúvida, o arquipé­ lago foi assaz importante durante e após a II Guerra Mundial.

Talvez não por acaso, o capítulo onde se procede à inventariação dos vectores que, em Novecentos, sustentam a afir­mação de “cultura própria” precede o da “revolução autonómica”, de alguma forma decidida em função da evolução política do País e do contexto interna­cional. A autonomia ocupa a derradeira parte do livro que encerra com um capí­tulo sobre a universidade e a criação da cultura universitária – já não simples­mente erudita – nos Açores.

Salvo no plano retórico, os tempos pre­sentes não cuidam das identidades. De alguma forma, a recorrência do tópico identidade e ilhas poderá ter sugerido aos estudiosos o contributo para escorar os lemas da filiação identitária açoriana no saber social e, mais especificamente, na produção historiográfica. Neste caso, de uma forma muito sólida e interessante. Uma nota final para dizer que fica bem apelar à “escrita de outras Histórias dos Açores”, mas, compreensivelmente, esta História passa a ser uma obra de referência para quem quiser familiarizar­se com a evolução do arquipélago.

‘ narram-se com pormenor as pelejas por ocasião da submissão do reino de portugal a Castela, que terminaram com a integração das ilhas na monarquia hispânica. não deixa de ser interessante a descrição das clivagens político-administrativas referidas à descontinuidade territorial. A autoridade numa ilha, mesmo do delegado régio, podia não ser repercutida noutra, para além, evidentemente, das obstruções levantadas pelos desempenhos municipais.

história dos Açores em apresentação no auditório da FLAD.

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CoLeCção FLAD

Emma é o nome de uma figura decalcada sobre papel, poder­se­

­ia falar de desenho, mas o decalque enquanto forma de capturar

e tornar seu um corpo está mais próximo da força anímica deste

artista. Não se poderá dizer ser simplesmente um corpo ou uma

figura, mas uma sugestão tornada imagem sobre o papel. A sua

presença não se inscreve num registo simples imagético ou oníri­

co, mas trata­se de um espectro ou fantasia, um gesto insinuante

que se torna cada vez mais presente e material. Esta sua qualida­

de, quase diáfana, não reside no facto de ser um vestígio ou ruína

de um corpo passado, mas no modo como torna seu o espaço

em volta. Uma ocupação caracterizada pela sensualidade e pela

promessa de visibilidade: parece que a qualquer momento se vai

conseguir espreitar e ver todo o corpo, mas essa visão permanece

uma expectativa.

Este trabalho de Julião Sarmento apresenta

aspectos muito característicos de todo o

seu trabalho: em primeiro lugar o corpo

feminino, depois a sedução, a insinuação

e a clareza do traço que marca um territó­

rio a partir do qual se constrói um corpo.

É interessante perceber­se que a presença

neste desenho (semelhante a muitos outros

lugares do trabalho do artista) decorre não

da criação de uma simples figura, mas da

fixação dos seus limites: é do interior do

espaço marcado pelo grafite que acontece

este desenho. Mas depois a figura que se vê

surgir caracteriza aquele espaço de um modo

particular e estabelece com o espectador um

jogo dinâmico e intenso de aproximação e afastamento, reve­

lação e ocultação.

Todas as linhas são vibrantes e atravessa­as a energia que o sujeito

emana quando exige do desenho a sua revelação, a sua entrega:

exige ver uma forma, um objecto, uma matéria, mas só conse­

gue sentir a energia gerada pela expectativa da visão. É o modo

como aquele que vê completa (ou não) as insinuações inscritas

na folha o que melhor revela e caracteriza esta obra. Pode dizer­se

estar em causa não a visão do corpo, mas a apresentação de um

desafio: conquista­se aquele corpo ao completar o desenho e ao

deixar­se levar pelas insinuações por ele estabelecidas. Seguir a

linha, ouvir a voz, sentir o arrepio são os princípios que podem

guiar a conquista do desenho, a sedução do corpo, o prazer do

contacto. nuno Crespo

Julião sarmentoconquistar o corpo

Julião Sarmento nasceu em Lis-boa em 1948. Estudou Pintura e Arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa e foi profes-sor na Academia de Belas-Artes de Munique, Alemanha, na Faculda-de de Belas-Artes da Universida-de Complutense de Madrid, entre outras. Vive e trabalha no Estoril.Expõe regularmente desde 1976 e do seu vasto currículo expositivo pode destacar-se a presença nas

importantes exposições interna-cionais Documenta 7, em 198�, e depois na Documenta 8, em 1987, e nas importantes bienais de Veneza de 1980, 1997 (ano em que foi o representante português) e �001. Em Portugal, a sua obra já foi objecto de inúmeras expo-sições nas principais instituições (Museu de Serralves, Fundação Calouste Gulbenkian, Museu do Chiado, etc.).

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CoLeCção FLAD

Emma (23), 1991, Grafite sobre papel, 100 × 70 cm

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A coragem dos homens

Vinte anos sem muro. Esta frase soa tão simples como se o muro tivesse caído por si mesmo faz 20 anos. Mas isto é um erro. O que celebramos agora deveria ter outro nome: 20 anos de revo­lução pacífica para a liberdade. A queda do muro foi uma revolução com muitos riscos para a vida dos seus autores. Hoje sabemos que aquela noite foi um acontecimento feliz e que as manifestações anteriores nas cida­des da Alemanha Oriental poderiam ter sido reprimidas violen­tamente. Nas ruas de Leipzig, Berlim e de outros lugares as velas e os cânticos conseguiram silenciar as armas. A vontade do povo foi mais forte do que o poder dos funcionários. Celebramos a coragem das pessoas que colocavam a liberdade acima de tudo, homens e mulheres que arriscaram tudo e ganharam tudo.

O muro não caiu, foi derrubado.

[ Die Welt, Mathias Döpfner ]

Uma nova ordem mundial

Nas suas celebrações da queda do muro os alemães esquecem facilmente que 1989 não foi só um acontecimento nacional. Esse ano marcou uma época e mudou o mundo, possivelmen­te mais do que o fizeram as duas guerras mundiais com a sua força destrutiva no início do século. O 9 de Novembro é o dia simbólico para uma ruptura geopolítica que deu início a uma nova ordem mundial. Com a queda do muro começou a desa­parecer o eurocentrismo. A Europa perdeu a sua importância como eixo da política mundial, como campo de batalha das ideologias e aspirações de poder. As forças políticas e econó­micas liberadas naquele ano contribuíram para a ascensão de continentes inteiros e aceleraram uma certa destruição cultural e mudança social. O ano de 1989 significa o fim da ordem criada depois da II Guerra Mundial. […] Acabou com a ideia de simetria e esta­bilidade característica do período da Guerra Fria. O seu lugar

foi ocupado pelas forças da globalização, da multipolaridade, do fanatismo e do nacionalismo.

[ Sueddeutsche Zeitung, Stefan Cornelius ]

Caiu o muro nas cabeças

Hoje em dia, a maioria dos alemães mostra a sua gratidão pela unidade alemã. Neste momento, 63 por cento das pessoas inter­peladas respondem que a reunificação é para elas causa de alegria. Nos novos bundesländer (na antiga Alemanha Oriental) a percen­tagem sobe até 71 por cento. Dezassete por cento das pessoas mostram alguma preocupação. A pergunta relativa ao resultado positivo do reencontro das duas Alemanhas é respondida com optimismo. Sessenta e oito por cento dos cidadãos da antiga Alemanha Ocidental e 51 por cento da antiga Alemanha Oriental indicam que a reunificação vai ser um êxito.Mas há também que sublinhar que 34 por cento dos alemães de Leste não acreditam nisso.

revistA De imprensApor Werner herzog*

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Apesar de tudo, as maiorias são claras. Parece que na vida diária o “muro nas cabeças” tem menos importância do que nos anos 1990. Relativamente à ideia de que os alemães de Leste se sen­tem como cidadãos de segunda categoria, as respostas são mais positivas do que há alguns anos. Hoje, 35 por cento dos alemães de Leste pensam que efec­tivamente sentem isso. Em 2002, 57 por cento dos interpelados afirmavam que se sentiam cidadãos de segunda categoria. Há alguns anos que é possível constatar uma distensão nas relações entre alemães do Oeste e do Leste. Mas continuam a existir grandes diferenças na avaliação da Alemanha de Leste do tempo do socialismo. Surgiu mesmo, entre alemães do Leste, um pensamento que se pode qualificar como “nostalgia”. Setenta e oito por cento dos alemães do Leste pensam que na antiga Alemanha Democrática havia mais coe­são entre as pessoas e que a relação entre cida­dãos era mais humana do que é hoje. Este sentimento de nostalgia manifesta­se no facto de que para 47 por cento dos entrevistados não havia um regime ditatorial na Alemanha Democrática. Deveríamos fazer tábua rasa do passado e realizar uma nova contagem? Cinquenta por cento dos entrevistados na anti­ga Alemanha Democrática acham que sim. Face a estas respostas, permanece a ideia de que o

acordo com o nosso passado problemático (Vergangenheitsbewältigung), que já está a preocupar muitos alemães, na realidade ainda nem sequer começou. [ Frankfurter allgemeine Zeitung, Thomas Petersen ]

Helmut Köhl: foi um milagre

Nunca duvidei que o muro iria cair a qualquer momento e que a Alemanha seria reunificada. Mas ignorava como e quando iria acontecer.O muro tinha separado famílias, uma cidade e, na realidade, todo o país em duas partes. Significava a separação de Berlim, do nosso país, da Europa, e mesmo do mundo numa parte livre e numa parte que não era livre. O muro caiu da maneira pací­fica, sem um tiro, sem sangue. Foi um milagre. O regime da RDA, que negava reformas essenciais até ao último momento, fracassou ante a vontade de liberdade da população. Depois da queda do muro conseguimos em menos de um ano a reunificação em paz e em liberdade. A 3 de Outubro podíamos

celebrar o dia da unidade alemã. Foi o triunfo da liberdade.

[ Focus Magazin ]

Angela Merkel: a sauna antesde atravessar o muro

Naquele 9 de Novembro, cheguei do trabalho e vi a conferência de impren­

sa que estava a dar Günter Schabowski. Telefonei à minha mãe imediata­

mente e disse­lhe que era possível que o muro caísse e que depois íamos

comer ostras ao restaurante de luxo Kempinski em Berlim Ocidental. Era

o que tínhamos planeado para a eventualidade de que algum dia o muro

caísse. Depois do telefonema fui fazer sauna como era costume todas as

quintas­feiras. Depois juntei­me às pessoas que corriam na direcção de

Bornholmer­Strasse – e passei a fronteira. Foi uma sensação indescritível!

Para nós, alemães, e para mim, pessoalmente, a queda do muro e a reuni­

ficação foram uma grande felicidade. [ Focus Magazin ]

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*Jornalista correspondente em Madrid

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Pouco depois de o Muro ter sido construído, um Presidente americano deslocou-se a Berlim e, com uma simples frase em alemão, sintetizou o empe-nho dos Estados Unidos nos valores democráticos: “Ich bin ein Berliner.”

Pouco antes de o Muro ser derrubado, um outro Presidente americano foi a Berlim e, com outra

frase simples, voltou a reafirmar o empenhamen-to permanente dos Estados Unidos nos mesmos valores para todo o povo alemão: “Derrubem o Muro.”

E há pouco mais de um ano, Barack Obama, que ainda não era presidente, discursou em Berlim. “Povos do mundo”, disse, “vejam Berlim, onde um muro foi derrubado, uniu-se um continente e a História provou que não há desafio nenhum demasiado grande para um mundo que se apre-sente unido”.

Até o Muro ser desmantelado, a Alemanha manteve--se sempre bem presente na mente da maioria dos americanos, enquanto a divisão do país era um assunto que preocupava todos os alemães, orientais e ocidentais. Desde 1989, os muros ideológicos têm vindo a ruir por toda a parte, levando espe-rança a pessoas do mundo inteiro. Mas esta nova promessa também trouxe um novo perigo. Hoje, enfrentamos desafios cuja complexidade nunca teríamos imaginado ser possível há vinte anos. As questões germano-americanas poderão ter deixado de merecer grande destaque na imprensa, mas as relações germano-americanas e transatlânticas são as mais importantes para os Estados Unidos.

Numa altura em que numerosos actores competem

POR PhiliP D. MurPhy*

20 anos depois de 1989 – olhar o passado e o futuro

Nos últimos sessenta anos, as relações entre governos americanos e europeus, a todos os níveis da administração, têm-se caracterizado por uma compreensão mútua, assente nos mesmos valores fundamentais. Mas, durante dois terços desse período, um muro impediu muitos alemães de usufruírem de liberdades fundamentais e da democracia.

Embaixador Murphy: “Pouco antes de o Muro ser derrubado, um outro Presidente americano foi a Berlim e disse ‘Derrubem o Muro’”.

‘As relações germano-americanas e transatlânticas são as mais importantes para os Estados unidos. ’

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entre si para conquistar influência – desde potências em ascensão a empresas e cartéis criminosos, desde as ONG à Al-Qaeda, e desde os meios de comunicação social con-trolados pelo Estado ao Twitter – a nossa parceria é crucial.

Como havemos de enfrentar as dificul-dades mundiais do nosso tempo? A res-posta é breve: juntos.

Como embaixador, o meu objectivo é reforçar esta mensagem, transmitir o novo optimismo e o empenhamento na relação

transatlântica que o Presidente Obama tornou possíveis. Um dos objectivos do Presidente Obama é, e passo a citá-lo, “renovar a nossa relação para uma nova geração, num novo século”. A fim de che-garmos a essa nova geração, vamos reali-zar uma série de sessões públicas em escolas e universidades alemãs.

Resolver os grandes desafios políticos do mundo requer paciência, um planea-mento hábil e uma compreensão profun-da dos factos e tendências específicos das

várias regiões. Estes desafios exigem que façamos escolhas difíceis, susceptíveis de conjugar os interesses do presente com a busca da paz e estabilidade a longo prazo. Mas a superação dos desafios do presente também exige que tenhamos uma visão para a nossa cooperação tran-satlântica tão importante. Podemos criar a mesma sensação de magia que as pes-soas sentiram há sessenta anos quando europeus e americanos aprenderam a caminhar juntos e a confiar uns nos outros, apenas escassos anos após se terem defrontado no campo de batalha; a mesma magia que aconteceu há vinte anos quando o Muro foi derrubado.

O Presidente Obama está convencido de que a nossa parceria será essencial se qui-sermos fazer progressos no que respeita a algumas das questões mundiais críticas que enfrentamos. O Comité Nobel refor-çou a determinação do Presidente ao deci-dir recentemente conceder-lhe o Prémio Nobel da Paz. O Presidente Obama ficou surpreendido e profundamente tocado com aquela decisão, mas aceita o prémio como um apelo à acção dirigido a todas as nações para que enfrentem os desafios comuns do século XXI. O presente artigo é uma versão editada do discurso pro-ferido por ocasião da abertura do Marshall Memorial Fellowship Forum do German Marshall Fund.

* Embaixador dos Estados Unidos da América na Alemanha

“Como havemos de enfrentar as dificuldades mundiais do nosso tempo? A resposta é breve: juntos”, diz o embaixador.

‘Podemos criar a mesma sensação de magia que as pessoas sentiram há sessenta anos quando europeus e americanos aprenderam a caminhar juntos e a confiar uns nos outros, apenas escassos anos após se terem defrontado no campo de batalha; a mesma magia que aconteceu há vinte anos quando o Muro foi derrubado. ’

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Com o objectivo de assinalar esta efemé­ride, o n.º 23 da revista Relações Internacionais, editada pelo Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, dedica um dossiê à “Revolução europeia: 1989­2009”.

O artigo que inaugura a revista, da auto­ria de Vesselini Dimitrov, avalia as dimen­sões interna e externa das transições políticas de quatro estados: a Hungria, a Polónia, a República Checa e a Bulgária. O autor refere que os desafios com que aqueles países foram confronta­dos após a queda do comunismo estão relacionados com a criação e a consolidação das instituições da democracia representativa e, simultaneamente, com a neces­sidade de criar governos efecti­vos. A questão da unificação alemã, em particular, é tratada por Patrícia Daehnhardt que tenta compreender como é que a liderança da República Federal da Alemanha conduziu o pro­cesso negocial e geriu a recupe­ração do estatuto de poder da Alemanha. A autora conclui que a condição prévia para a unifi­cação foi o reforço da continui­dade institucional euro­atlântica, que permitiu à Alemanha a per­manência nas estruturas da NATO e da União Europeia ao mesmo tempo que fortalecia os seus relacionamentos especiais com os Estados Unidos e a França.

Com outra perspectiva, e cen­trando­se no caso polaco, Roman Kuzniar dá­nos a conhecer a “Primavera dos Povos” de 1989. Kuzniar con­sidera que as transformações ocorridas na Polónia derivaram não só da queda do Muro de Berlim, mas também das polí­

ticas do Presidente americano Ronald Reagan; do colapso inter­no do sistema comunista junta­mente com as tentativas do líder soviético Mikhail Gorbachev para o travar; assim como da Conferência de Segurança e Cooperação Europeia. Ao mesmo tempo, a ascensão do movimen­to Solidariedade representou um prenúncio e um sintoma da crise mundial do comunismo.

Por outro lado, e porque o efeito dominó atingiu também a URSS, este dossiê conta ainda com um artigo de Maria Raquel Freire que analisa a política externa em transição de um regime comunista para o que viriam a ser tentativas falhadas de democratização no caso da Federação Russa. A análise cen­tra­se essencialmente na formu­lação e implementação da política externa, no quadro soviético e pós­soviético. No mesmo contexto, Andrey S. Makarychev analisa alguns casos notórios das relações confli tuosas da Rússia com os estados adjacentes pós­soviéticos, assim como as relações controversas com a Grã­Bretanha, demons­trando que todos aqueles casos representam a dificuldade da política externa russa em ultra­passar a herança soviética.

Para além deste, a revista Relações Internacionais contém ainda um outro dossiê que se dedica aos “20 anos de Tiananmen” e um conjunto de artigos sobre a Liga das Democracias, a crise financeira e os assuntos coloniais. * Instituto português de Relações Internacionais

POR CArmen FonseCA*

A revolução europeiaO efeito dominó provocado pela queda do Muro de Berlim, em 1989,

foi simbolizado nas comemorações realizadas na capital alemã.

‘A condição prévia para a unificação foi o reforço da continuidade institucional euro-atlântica, que permitiu à Alemanha a permanência nas estruturas da nAto e da união europeia ao mesmo tempo. ’

23 SET : 2009 : TRIMESTRAL12,50

A revolução europeia de 1989Vesselin Dimitrov

Roman KuzniarPatrícia Daehnhardt

Andrey S. MakarychevMaria Raquel Freire

Tiananmen 20 anos depoisRaquel Vaz-Pinto

Dora Martins

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Mazowiecki, opositor ao regime polaco e membro do, então ilegal, sindicato Solidariedade, tinha sido eleito em Setembro primeiro­ministro, do primeiro governo não comunista na Polónia, desde a II Guerra Mundial, e considera a queda do Muro “o tipo de fenómeno que os profissionais da Realpolitik – incluindo os da Europa de Leste da altura – não con­seguem antever”1.

Poucos esperavam que o Muro fosse der­rubado naquela noite e as duas Alemanhas voltassem a ser uma. Nem Gunter Schabowski, o ex­jornalista da RDA que recentemente se tornara secretário para a propaganda do Comité Central, ao sentar­ ­se naquele fim de tarde de Novembro, para mais uma conferência de imprensa das 18 horas, no palanque que o punha em destaque e em directo na TV, imagi­nava ser ele próprio a proferir as palavras que originariam a reunificação das duas Alemanhas nas horas seguintes.

Uma hora a falar para dezenas de jorna­listas, enfiado no seu fato cinzento, visi­velmente agastado, a cara já do tom dos cortinados, velhos e pálidos de tanto uso, microfones e gravadores apontados à sua cara; por fim, anunciou a nova lei que regulamentava as viagens dos alemães de

Leste. Schabowski ainda coçou a cabeça e pôs os óculos passando de novo os olhos nas duas páginas do decreto mas acabou por dizê­lo: a partir de agora podia­se atravessar para Oeste, de qualquer posto, sem necessidade de visto – “Sofort, Unverzuglich”. As palavras mágicas.

“imeDiAtAmente, sem DemorA” nA ALemAnhA...As palavras proferidas por Gunter Schabowski levaram milhares de alemães para junto do Muro que rapidamente começou a ser derrubado. “Ninguém que­ria acreditar”, diz David Gill, vice­repre­sentante da igreja protestante alemã. “Até

ali íamos a manifestações sempre com medo. Eu era estudante de Teologia e tinha tido uma educação própria do filho de um padre protestante, uma educação cris­tã que significava lealdade à RDA. Se o muro não tivesse caído eu seria padre.” Gill é advogado.

“Vivia numa gaiola. Sem hipótese de ser livre, espiritual ou fisicamente”, relembra Jens Reich, membro do Conselho Alemão de Ética, activista dos Direitos Civis e fun­dador do Neues Forum. “Vi o Muro des­truir a minha vida de adulto com os olhos no Oeste tão virtuoso mas inatingível. Nunca nos tínhamos sentido tão partici­pativos como com a reunificação.”

Curtis Robinhold é um americano que viveu em Berlim, filho de um alemão, conta: “O meu pai mandava mantimentos para Berlim Leste para familiares que nunca pôde visitar e que ele não conhe­cia.” Curtis achava que sucederia ao pai nesta missão de passar clandestinamente encomendas para parentes desconhecidos. “Nunca acreditei que o Muro fosse der­rubado.” Estava no liceu em San Diego, na Califórnia, e soube das notícias. Passou a tarde a ver a CNN.

POR sArA pinA

West meets east “Tornar possível o impossível”, é como Tadeusz Mazowiecki chama à destruição

do Muro de Berlim que separou o mundo em dois blocos até 9 de Novembro de 1989, durante quase cinquenta anos.

‘por volta das oito da noite nada se passava mas à meia-noite tudo estava em alvoroço. nós estávamos no cimo do muro e muitos choravam. ’

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George Bush pai, então na Presidência, também. Naquele momento, a CNN tinha mais informações para dar do que a CIA. “Não se pode dizer que tenhamos previs­to este desenvolvimento”, disse na altura o Presidente americano.

Com familiares no Leste, Dirk Rumberg vivia em Munique; quando se mudou para Berlim, visitava com frequência a RDA. “Sempre acreditei que aquela situação não se manteria eternamente. Tinha de acabar. Naquela noite, fui com amigos para a beira do Muro. Por volta das oito da noite nada se passava mas à meia­noite tudo

estava em alvoroço. Nós estávamos no cimo do Muro e muitos choravam.”

Professora na Universidade George Washington, Hope Harrison estava a fazer o doutoramento em 1989 e preparava uma tese sobre o Muro. Viajava de avião de Nova Iorque para Berlim com escala em Frankfurt. Começou a ouvir a notícia – o fim do Muro de Berlim. “Pensei que o dia 10 de Novembro era o equivalente ao 1 de Abril em Portugal. O dia das mentiras. Mas o comandante do voo informou­nos do que se estava a passar e só então acreditei.”

...e nA europA De Leste“A queda do Muro de Berlim foi o último momento em que a Europa interessou ao mundo”, Steven Erlanger, chefe da dele­gação do New York Times em Paris, inicia a descrição do seu Verão de 1989. “Viajava pela Europa de Leste tentando perceber se os movimentos libertadores na Polónia tinham influenciado os países vizinhos.

Era um miúdo de esquerda e confrontei­ ­me com uma Europa degradante, depres­siva e que punha as pessoas umas contra as outras. Berlim Leste era muito triste.”

Erlanger, na altura do The Boston Globe, tinha como guia um jovem muito des­confiado mas que acabou por lhe pedir ajuda – queria arranjar uma mulher estrangeira para se casar e fugir dali...

Na Polónia, no Outono de 1989, Lukasz Lipinski tinha 17 anos e recorda uma maior liberdade graças ao movimento do Solidariedade: “Tinha havido eleições livres e o primeiro­ministro eleito não era comunista. Esse foi o momento em que achámos que juntos podíamos fazer muito. Mudar o mundo.”

A 9 de Novembro, o checo Jiri Sitler sabia que alguma coisa importante se estava a passar em Berlim mas não na Checoslováquia, onde depois de várias perseguições policiais por participar em manifestações não acre­ditava que a liberdade chegasse a Praga. Mas entre Novembro e Dezembro o poder e o

‘A partir de agora podia-se atravessar para oeste, de qualquer posto, sem necessidade de visto. ’

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regime de partido único caíam às mãos dos cidadãos que se manifestavam nas ruas. “Gritávamos nas manifestações – ‘Venham todos os checos e juntem-se a nós’. Um grupo de ciganos perguntou: ‘Nós também nos podemos juntar?’, ‘Claro!’ dissemos. Éramos cada vez mais e mais.”

No final do ano, Vaclav Havel é eleito pre-sidente pelo Parlamento. Em 1992, Vaclav Klaus ganha as eleições legislativas livres e vem a constituir um Estado independente.

Na Hungria, ainda sob o regime comu-nista, o primeiro-ministro Nemeth procu-rava distanciar o seu Governo do Partido Comunista. “A primeira vez que me ocorreu que alguma coisa podia mudar foi quando milhares de alemães orientais atravessaram a fronteira húngara para a Áustria, em Agosto de 89. Eu estava em casa a ver tele-visão e mal podia acreditar”, lembra Pavos Demes. A transição para a democracia na Hungria foi inspirada pela Polónia.

Em 1989, em toda a Europa Central e de Leste se exigiam mudanças. Vinte anos passados, o polaco Lukasz Lipinski, agora jornalista da Gazeta Wyborcza, diz que esta força do povo se perdeu: “É do que eu sinto mais falta – a crença de que as pes-soas podem fazer mudar mundo.”

Estes depoimentos foram recolhidos ao longo do Marshall Memorial Fellowship do German Marshall Fund em Berlim

1. In RI, n.º 23, p. 21.

O tríptico Abertura do Muro de Berlim, por Mathias Koeppel, está exposto na Câmara dos Representantes, a Abgeordnetenhaus, de Berlim. O autor optou por ilustrar os acontecimentos em três painéis por considerar a queda do Muro um processo com três partes. O painel da esquerda retrata a noite de 9 de Novembro, a abertura do posto de fronteira em Invalidenstrasse. À direita, vê-se Walter Momper, na altura presidente da Câmara de Berlim, a dirigir o trânsito com um megafone.O painel do centro descreve os acontecimentos dos dias que se seguiram. Os cidadãos de Berlim reuniam-se na Porta de Bradenburgo e subiam para cima do Muro. Esta imagem junta muitas pessoas que tiveram um papel fundamental

no desenrolar dos acontecimentos mas que não estiveram juntas, ao mesmo tempo, no local. À esquerda, Willy Brandt entrando em cena, depois Helmut Köhl, o chanceler alemão na altura; Jürgen Wohlrabe do CDU; Herwig Haase e Hanna-Renate Laurien, também do CDU; e o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Hans-Dietrich Genscher.No painel da direita a abertura do Muro em Potsdamer Platz, a 12 de Novembro. Eberhard Diepgen, antigo presidente da Câmara de Berlim, mais tarde reeleito, está à esquerda. À frente, o então Presidente da Alemanha Federal, Richard von Weizsäcker, fala com o guarda fronteiriço da Alemanha de Leste – o tenente--coronel de serviço no dia em que aquele controlo desapareceu.

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retrato de uma fuga

Detlev era um jovem estudante alemão oci­dental e lembra a Alemanha de Leste de algumas visitas: “Era um sítio exótico. Muito diferente da Alemanha que eu conhecia.” Mas na Primavera de 1989, Detlev faria uma viagem à então Alemanha Democrática que lhe mudaria a vida. Conheceu Bärbel e foi paixão à primeira vista. E, claro, foi o desejo de ajudá­la a fugir para viverem juntos a liberdade da sua Alemanha. Bärbel terminara o liceu determinada a conti­ nuar a estudar e ser livre e conseguiu um visto para viajar para a Hungria.Em Agosto, decidiram tentar a fuga. Os dois combinaram o reencontro: meio­dia, na estação de comboios de Budapeste. Thomas, um amigo de Detlev, ajudá­los­ia, ao longo desta aventura, a que se juntaram as duas irmãs de Bärbel, uma de 17 e outra de 21 anos, que queriam, também, tentar a sua sorte.(Foto 1: O reencontro em Budapeste. Foto 2:

Bärbel e Detlev com o amigo Thomas (à direita) na estação de comboios)

Havia notícias que era possível transpor a fronteira para oeste, pela Hungria. A cidade recebera milhares de alemães de Leste que, passando por turistas, preten­diam uma ida sem retorno. “A confusão era grande em Budapeste. Junto da Embaixada da Alemanha Ocidental havia centenas de pessoas a pedir asilo. Tantas que o embaixador ficou sem espaço na sua embaixada para acolher mais gente”, lembra Thomas. (Foto 3)

A 19 de Agosto, o grupo seguiu para o “piquenique” em Sopron. A separar a Hungria da Áustria, o muro, o arame farpado e os guardas com ordens para matar. Mas as pessoas começaram em grande número a desafiar a autoridade. “Cortavam o arame farpado, subiam às torres”, diz Bärbel. (Foto 5)

Começou a circular a notícia de que a fronteira poderia abrir por algumas horas. Panfletos para um “piquenique” junto à fronteira com a Áustria, passa­vam de mão em mão, indicando o pos­sível ponto de passagem para escapar: “Elsernen Vorhangs”. “Nós resolvemos tentar”, conta Detlev. (Foto 4)

“A certa altura, todas as pessoas ali con­centradas começaram a encaminhar­se para a fronteira”, descreve Thomas, mos­trando as fotos e continuando. “Nós também. Muita gente ia a pé, algumas de carro. Ninguém falava. Caminhavam para ocidente.” (Foto 6)

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“Chegados ao posto fronteiriço ninguém sabia o que fazer. Os guardas podiam disparar. Ficámos parados ao pé da cerca de madeira”, explica Thomas.“Alguém começou a gritar: ‘Abram a vedação’, e as muitas pessoas que ali se tinham juntado começaram a empurrar­ ­se para a saída. Os guardas não reagiam e começámos a passar.” (Foto 7)

As pessoas corriam atravessando a pé a fronteira, algumas só com a roupa que tinham no corpo. Do lado de cá havia aus­tríacos que ali se tinham juntado com garrafas de champanhe, à espera para comemorar. (Foto 8)

As três irmãs choravam de felicidade. Bärbel estava muito feliz mas, ao mesmo tempo, “era tudo muito estranho, era livre mas não sabia se voltaria a ver os meus pais”. (Foto 9: Bärbel com as duas irmãs quando atravessaram para a Áustria.)

Muito mais cedo do que pensavam todos se reencontrariam. O retrato desta fuga teve um final feliz. Pouco tempo depois, o Muro viria a ser derrubado e a Alemanha unificada. Juntos, também Detlev e Bärbel, agora com três filhas. (Foto 10) sp

Estes depoimentos foram recolhidos ao longo do Marshall Memorial Fellowship do German Marshall Fund em Berlim. As fotos foram cedidas por Thomas Kleine­Brocknoff.

‘“Chegados ao posto fronteiriço ninguém sabia o que fazer. os guardas podiam disparar. Ficámos parados ao pé da cerca de madeira”, explica thomas. “Alguém começou a gritar: ‘Abram a vedação’, e as muitas pessoas que ali se tinham juntado começaram a empurrar-se para a saída. os guardas não reagiam e começámos a passar.” ’

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mário mesquitA

bLoCo De notAs

A 9 de Novembro de 1989, dois alemães residentes em Berlim Leste conversavam e bebiam, numa sala, com a televisão quase emudecida. Quando olharam, dis­traídos, para o ecrã, depararam com estra­nhas imagens. Parecia “um filme cuja acção mostrava gente jovem a trepar o muro, a encavalitar­se no cimo do respec­tivo rebordo e a polícia da fronteira a observar toda aquela animação sem mexer um dedo”. Seria uma ficção ocidental “do tempo da Guerra Fria”? Demorou algum tempo até decidirem aumentar o som do televisor, o que os forçou a sair da supos­ta narrativa e a descerem à rua e às filas de carros que “se engarrafavam, porque todos convergiam para o posto fronteiri­ço que se encontrava miraculosamente aberto”. Por todo o lado se ouvia as pes­soas a “exclamarem ou murmurarem É uma loucura!”... Este relato de Günter Grass (em O Meu Século) é ficcional, mas o sen­timento de incredulidade que traduz era comum a todas as pessoas que, pela tele­visão, na Alemanha ou fora dela, observa­vam a travessia, sem oposição policial, da linha que dividia Berlim em duas partes antagónicas.

Com os seus quarenta e três quilóme­tros de comprimento, o muro parecia indestrutível, à força de betão e arame farpado. Quem se atreveria a predizer que, subitamente, numa noite invernosa de Novembro, a barreira ruiria como um lego? Não foi obviamente um golpe de magia. A partir de 1987, as reformas introduzidas por Gorbatchev, na União Soviética, repercutem­se, de forma indi­recta, na situação interna da RDA, com manifestações de grupos críticos do regi­me – activistas dos direitos humanos,

pacifistas, evangéli­cos, ecologistas e outros. Em 1989, constitui­se o Novo Fórum, pr imeira organização oposicio­nista com representa­ção em todo o território. O equilí­brio altera­se quando, a 2 de Maio, o Governo húngaro, em vias de transição liberalizante, desmantela a cerca de arame farpado na fronteira com a Áustria. Milhares de alemães de Leste mudaram­se para a República Federal, pelo corredor austro­húngaro. A queda da

muralha da Hungria abriu caminho ao desfazer do Muro de Berlim.

Mais de 300 mil pessoas passaram de Leste para Oeste ao longo do ano de 1989. O êxodo para o Ocidente e o tropismo favorável à reunificação produziram efeitos

Os muros que restam

‘ A aparente força dos muros resulta, afinal, da fraqueza das situações que lhes dão origem. quando menos se prevê, o betão desfaz-se em areia fina. ’

A queda do bloco de Leste não teve repercussões favoráveis à paz no médio oriente. Depois do muro de berlim, novos muros se constituiram. muro da palestina, na fronteira de Gaza,

separando a população israelita da palestiniana.

LUSA

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rápidos. A ideia de uma “terceira via”, favo­rável a uma república autónoma e demo­cratizada no Leste alemão, acabou reduzida à insignificância. As propostas do Fórum Democrático, ou de intelectuais e escritores, como Christa Wolf, quase isolados, ao tempo de Honecker, a lutar pela democra­tização da RDA, foram vencidas pela von­tade da antiga “maioria silenciosa”, que se acomodava ao regime comunista, mas rapi­damente aderiu ao apelo de integração na República Federal.

Como escreveu o escritor holandês Cees Nooteboom, testemunha dos acontecimen­tos de 1989­1990, “teria sido mais belo, como desejavam Grass e Habermas, deixar os alemães pronunciarem­se acerca da alter­nativa entre um Estado único ou uma fede­ração das duas repúblicas existentes”, mas “o povo canta mais depressa do que os seus pensadores”... O Reino Unido e a França hesitaram, mas o apelo da reunificação era muito radical. Deixou de ser possível repe­tir a frase cínica de Mauriac, no pós­Guerra: “Gosto tanto da Alemanha que fico feliz por existirem duas.” Apesar das hesitações iniciais de Gorbatchev e das reservas de Thatcher e Mitterrand, a corrente favorável à unidade alemã, liderada por Helmut Köhl, triunfou sem reticências.

No plano internacional, o desaparecimen­to da bipolaridade Leste­Oeste não signi­ficou o “fim da história”, mas uma nova era de conflitos, acompanhada por múlti­plos confrontos armados nas zonas de tra­dicional influência da Rússia e pelo ressurgimento de velhos demónios nos Balcãs, enquanto prosseguia a saga do Médio Oriente e se fortaleciam fundamen­talismos islâmicos.

A queda do Muro de Berlim não signifi­cou, ao contrário do que se poderia espe­rar, a progressiva queda de outros separadores entre os homens, as cidades, os países. É possível distinguir, no mundo contemporâneo, diferentes tipos de muros, consoante as respectivas funções estratégi­cas. O diplomata e escritor Jean­Claude Ruffin, distingue o modelo tradicional em que funcionam como “fronteiras armadas” entre potências inimigas, casos da Alemanha e da Coreia, de um outro tipo de barreiras que separam “um lugar de poder, de um lado, de nada ou quase nada do outro”, conforme sucede ao longo do Rio Grande entre o México e os Estados Unidos: “de um lado, o cidadão, o semelhante, nós; do outro, o vazio, o selvagem, os bárbaros.”

Oito significativos muros permanecem no mundo, após a reunificação da Alemanha e da cidade de Berlim, de acordo com um estudo recente (Novosseloff e Neisse, Des murs entre les hommes, 2007). A zona desmi­

litarizada entre as duas Coreias, construída em 1953. A área­tampão, estabelecida entre 1964 e 1974, a separar os cipriotas gregos dos cipriotas turcos. As peaceline da Irlanda do Norte, em Belfast. Os bancos de areia do Sara Ocidental, separando marroquinos e sarauís. A barreira entre os Estados Unidos e o México, com vista a impedir a emigra­ção clandestina, erguida a partir de 1994. O arame farpado que cerca os territórios espanhóis de Melilla e Ceuta. A barreira eléctrica em Caxemira, a dividir paquista­neses e indianos. O muro da Palestina a consolidar a divisão entre palestinos e colo­nos israelitas desde 2007.Vinte anos após a queda do símbolo de todos os muros, barreiras semelhantes

permaneceram ou foram erguidas de novo. Certamente chegará um dia o seu 9 de Novembro. A aparente força dos muros resulta, afinal, da fraqueza das situações que lhes dão origem. Quando menos se prevê, o betão desfaz­se em areia fina. A queda do Muro de Berlim significou o início de uma era de liber­dades públicas na antiga RDA e em toda a Europa de Leste, mas, ao contrário das previsões optimistas, não assinalou o iní­cio de um novo mundo de paz, seguran­ça e bem­estar. Talvez por isso, no início do século XXI, a principal data simbóli­ca no plano internacional transferiu­se de 9 de Novembro de 1989 para 11 de Setembro de 2001.

Após a queda do muro de berlim, outros muros permanecem em diversas regiões. na foto a peaceline de belfast na irlanda do norte, que separa protestantes e católicos.

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