grande sertão veredas - comentário

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  • Universidade Federal de So Paulo - UNIFESP

    Grande Serto: Veredas

    Amor e Reconhecimento no Serto

    A significao de uma obra de arte sempre algo de mais vasto do que

    aquilo que se mostra na aparncia imediata (Hegel, G.W.F., Esthtique)

    Felipe Floriano Ado

    Resumo: O presente trabalho compe avaliao no Curso de Literatura Brasileira III ministrado pela Profa. Doutora Mirhiane Mendes de Abreu, na UNIFESP, 2013-2014. Os temas do amor e da revelao

    so comentados tendo por base textos tericos e reflexes em sala de aula.

    Palavras-chave: Grande Serto: Veredas; revelao; amor; Antonio Candido; Alcir Pcora; Benedito Nunes

    O tema da revelao em Grande Serto: Veredas vem sendo debatido pela

    crtica literria e questo fundamental para iluminar nossa compreenso da obra de

    Guimares Rosa. O reconhecimento por parte de Riobaldo de Diadorim como homem,

    depois de morto e pelo seu sexo, de grande impacto literrio e subjetivo. Se pensamos

    no espao que Diadorim ocupa na narrativa (e na vida de Riobaldo, tanto quanto na

    composio de uma ideia de Serto), inevitvel que se questione o significado de sua

    existncia, do seu carter, da sua significao enquanto objeto de paixo e, se quiser, de

    terror. Como exerccio de esclarecimento de ideias, sempre vale lembrar o que esta

    palavra reconhecimento significa ou vem significando na tradio da anlise/crtica

    literria. Logo posta a questo sobre existir um reconhecimento, a chave bsica, e

    universal, clssica e chega de Aristteles. Em sua Arte Potica, o mestre grego

    explica:

    O reconhecimento, como o nome indica, faz passar da ignorncia ao conhecimento, mudando a

    amizade em dio ou inversamente nas pessoas votadas felicidade ou ao infortnio. [...] Com

    efeito, a unio de um reconhecimento e de uma peripcia excitar compaixo ou terror, ora,

    precisamente nestes atos capazes de os excitarem consiste a imitao, objeto da tragdia

    (ARISTTELES, 2007, p. 47-48).

  • Seria foroso colar a definio de reconhecimento aristotlico para a tragdia

    sobre narrativa de Rosa e entender este projeto esttico como hipostasiao do conceito

    clssico em uma obra moderna, e assim conceber toda a narrativa como pretexto para a

    grande ao final que suscite catarse. Isto mesmo porque a imitao conceito

    anacrnico para entender algo fora da potica clssica, se o quiser fazer muito de perto.

    No entanto, defendo que a arte vive de arte e s se contar uma histria a partir das que

    j foram contadas. Neste sentido, como diz Antonio Candido sobre esta exata narrativa

    de que falamos, a imaginao criadora se autentica nos [...] grandes lugares comuns,

    sem os quais a arte no sobrevive: dor, jbilo, dio, amor, morte [...] (CANDIDO,

    2000, p.122). Assim, a suscitao de uma compaixo e de um terror no leitor a partir do

    reconhecimento doloroso e post-mortem configura exatamente a unio com uma

    peripcia, isto , a mudana da ao no sentido contrrio ao que foi indicado e sempre,

    como dissemos, em conformidade com o verossmil e necessrio (ARISTTELES,

    2007, p. 47). Assim legitimada fica a viso de Antonio Candido sobre uma espcie de

    princpio geral de reversibilidade [...] na reunio de esferas distintas (o real e o irreal, o

    aparente e o oculto, o dado e o suposto) um fator responsvel pela coerncia do livro e

    pelo carter uno, total, do Serto-enquanto-Mundo (CANDIDO, 2000, p.130-135).

    Superados tais esclarecimentos histrico-semnticos sobre o reconhecimento,

    pode-se partir para a tentativa de entender seu lugar dentro da obra de Guimares Rosa.

    Para existir uma revelao, deve-se, logicamente, existir antes uma ocultao e sua

    respectiva explicao. Assim, sobre o disfarce de Diadorim podemos fazer questes

    de interesse analtico-investigativo, quase nos aproximando da atividade jornalstica:

    Por que Diadorim se transvestia? Quando isto comeou? Qual o significado de

    Diadorim na obra? Onde podemos achar respostas? Alcir Pcora discorda da soluo

    fcil demais para o enigma de Diadorim, que se desenvolve de um release de TV da

    poca de publicao, segundo o qual Diadorim se transvestia de jaguno para vingar a

    morte de seu suposto pai Joca Ramiro. O professor acredita que uma aparente obviedade

    oculta vrias incertezas na obra. Questiona, assim, tanto o motivo de Deodorina se

    disfarar de Diadorim quanto sua afirmao sobre Joca Ramiro ser seu pai. O disfarce

    de jaguno para a vingana do pai morto no se justificaria uma vez que Deodorina j se

    apresentava com vestes menino quando se encontra com Riobaldo pela primeira vez,

    na infncia. Portanto, seu disfarce tem razo menos clara do que se tenta convencer.

  • A afirmao de que Joca Ramiro fosse pai de Diadorim tambm posta em

    xeque por Pcora. A constituio do carter de Diadorim na obra no indica, segundo o

    crtico, uma propenso moral mentira, mas tambm seria verdade que h uma

    propenso ao disfarce. Dado isto, aceitao de Joca Ramiro como pai de Diadorim se

    basearia apenas na afirmao feita por este, uma vez que Riobaldo pouco se

    questionaria sobre essa premissa diante do convincente desejo de vingana. No

    desenvolvimento do romance, indicaes do provvel reconhecimento de Deodorina em

    Diadorim so amplamente distribudas como se pode confirmar pela produo de

    obras que identificam exatamente tais pistas , mas da confirmao final na revelao,

    suscitam-se outras perguntas, o que evidencia uma outra dimenso do verdadeiro

    enigma posto pelo livro (PCORA, 1987, p. 70). Alm de simplesmente por em

    dvida o disfarce como meio de se alcanar a vingana da perda do pai pelos Judas, se

    questiona tal paternidade e tambm a significao dessa revelao para a relao

    inquietante entre Riobaldo e Diadorim. O crtico ainda atenta para dois equvocos de

    interpretao em que se pode cair na tentativa de explicao do disfarce baseada em

    uma liberdade de composio: o primeiro seria o de explica-lo como expresso de

    liberdade romanesca, que Pcora nega existir no projeto esttico de Rosa; o segundo

    seria esquecer que o romanesco em Grande Serto seria mesclado com o romance de

    formao e este exige uma verossimilhana realista que pode ser descartada de uma

    narrativa maravilhosa.

    Para alm da questo da verossimilhana na critica, Grande Serto: Veredas

    passa uma forte impresso de tentar significar a vida, a existncia no serto, a partir do

    limite das experincias e na remontagem dessas experincias pelo ato de narrar. No

    desenvolvimento do curso de Literatura Brasileira III, ministrado pela Professora

    Doutora Mirhiane Mendes de Abreu, na UNIFESP, 2013-2014, puderam ser feitas

    reflexes sobre a necessidade da personagem de Riobaldo de narrar sua histria para, de

    certa forma, entende-la ou, mais ainda, para legitima-la na opinio de algum douto,

    culto, para quem se narra. A mstica em torno da existncia do jaguno se d tanto no

    sentido da paixo dbia por um companheiro de mesmo sexo, quanto no sentido do

    entendimento da figura do diabo e da feitura ou no do pacto. Neste sentido, os aspectos

    formais da narrativa, que vai e volta, mostra e esconde, so, ao mesmo tempo, aspectos

    de importncia semntica, por comporem mistrios cujas solues tanto o leitor quanto

    a personagem querem desvelar. A paixo por Diadorim chega a ser cogitada pelo

  • prprio Riobaldo como obra demonaca. Sobre isto, nos fala Pcora (a citao se alonga,

    mas fala por si prpria e importante):

    No que diz respeito propriamente concepo de conhecimento ensejada a partir desse tipo de

    revelao, fica fcil ver que ela se refere [...] a uma impiedosa tomada de conhecimento do

    existir que no conduz a seu ponto de resgate, que no logra, a tempo, distinguir entre ser e

    aparncia. O conhecimento, neste caso, resta sobretudo como a desconfiana do que no

    possvel saber, e, tambm, da importncia inestimvel de um erro que, entretanto, no se pode

    evitar; o conhecimento confunde-se com o temor de que os acontecimentos, diabolicamente,

    apenas simulem seus nexos: a vida disfara? (PCORA, 1987, p. 72, grifo meu).

    Por sua vez, o amor na obra de Guimares Rosa tem complexidade tripla na

    figura das trs amadas de Riobaldo, a dizer, Otaclia, Nhorinh e Diadorim. Riobaldo

    carrega durante a narrativa o amor pelas trs figuras, sem distino de valor aparente,

    mas de qualidades diferentes que, s vezes, se mesclam: enquanto nas jagunangens se

    relaciona dubiamente com Diadorim, divide a cama com Nhorinh num amor

    fortemente carnal e tambm pensa em Otaclia, mulher ideal e boa. Dos trs amores,

    Benedito Nunes tira uma dialtica ascensional encontrada na obra do filsofo ateniense

    Plato. NO Banquete em absteno de bebidas alcolicas, os homens do dilogo

    discutem a ideia de Eros, o amor. Nos diz Nunes sobre o amor de Riobaldo:

    eleva-se gradualmente, do sensvel ao inteligvel, do corpo alma, da carne ao

    esprito, num esforo perene de sublimao, que parte do mais baixo para atingir o mais

    alto, e que, em sua escalada, no elimina os estgios inferiores de que se serviu, porque

    s por intermdio deles pode atingir o alvo superior para onde se dirige (NUNES,

    1976, p. 144) .

    Sendo assim, em jogo dialtico, Otaclia-Nhorinh-Diadorim comporiam a

    experincia amorosa de Riobaldo, em que uma supera a anterior sem, no entendo,

    invalid-la. O alvo superior seria um amor de ascese, etreo e sublimado, que se

    encontra em Otaclia aps superao constitutiva do amor carnal e voluptuoso por

    Nhorinh e do amor sagrado-profano por Diadorim. Como j foi dito, Riobaldo e

    Diadorim dividem uma relao equvoca que se questiona na mstica: Eu no pensava

    em adiao nenhuma, de pior propsito. Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais

    gostava. Diga o senhor: como um feitio? Isso. Feito coisa-feita (ROSA, 2001, p.45).

    Nhorinh uma prostituta filha de dona Ana Duzuza que se entrega a Riobaldo e divide

  • com ele uma paixo leve e longa, que na narrativa rememorada intimamente pelos

    prazeres sensoriais que proporcionou, levando o jaguno a cultivar secretamente tal

    paixo por muitos anos e reviv-la com a chegada de uma carta da amada 9 anos depois.

    Tal paixo tambm objeto de cimes por parte de Diadorim que, logo aps discusso

    com Riobaldo, revela ser Joca Ramiro seu pai. O amor por Otaclia mais espiritual e

    pacfico, com superao da sensualidade de Nhorinh e, de certa forma, do mistrio de

    Diadorim, de forma que se interpenetrem e uma faa lembrar-se das outras e assim por

    conseguinte.

    Como exposto, o amor em Grande Serto: Veredas desempenha papel

    privilegiado, com significao pouco unvoca e motes complexos. Benedito Nunes

    arrisca haver uma dialtica ascensionista que coloca Otaclia como grau elevado de

    sublimao, o que pode, em oposio, enriquecer o debate sobre a importncia de

    Diadorim e seu reconhecimento, uma vez que o espao de Deodorina/Diadorim maior

    na narrativa. Assim, o reconhecimento final levanta, portanto, tantas outras questes

    sem respostas que Alcir Pcora julga serem mais produtivos e frutferos os estudos que

    se atentem aos aspectos realmente esclarecedores sobre o momento do reconhecimento

    da revelao, como a inverso da fortuna do heri e a suspenso das certezas do leitor.

    Tais objetivos, em oposio ao release um tanto simplicista, seriam os da melhor

    crtica, para o professor da Unicamp. Neste sentido, ser de extrema importncia citar

    os estudos da semitica moderna e do estudo literrio em Umberto Eco, Vicente Jouve e

    Annie Rouxell. Em Eco, os conceitos encontrados em Obra Aberta, as consideraes

    desenvolvidas a partir de O Nome da Rosa e seu respectivo Ps-escrito ao Nome da

    Rosa, bem como o conceito de texto literrio como mquina preguiosa, sero

    fundamentais no entrave entre sentido e interpretao. Em Jouve e Rouxell, por vez, se

    concebe a leitura como processo individual (de subjetivao) que pe o leitor em

    contado com textos literrios compostos de espaos de certeza e de incerteza, cabendo

    ao sujeito completar seus sentidos, sem, no entanto, dar margem para categorizaes

    unvocas. Assim, com as chaves dos tericos Umberto Eco, Vicente Jouve e Annie

    Rouxell, se faria a tal crtica pertinente que Pcora valoriza, nos ajudando a entender

    o(s) sentido(s) da revelao que realmente existem e admitindo que a caracterstica

    desta revelao tambm a de velar (PCORA, 1987, p. 71, grifo do autor).

    Bibliografia

  • ARISTTELIS, Arte Potica. 1. ed. So Paulo: Martin Claret, 2007

    CANDIDO, A. Jagunos mineiros de Cludio a Guimares Rosa. In: ______. Vrios

    escritos. 4.ed. Reorganizado pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p.99-124.

    NUNES, B. O Amor na Obra de Guimares Rosa. In: ______. O dorso do tigre. 2. Ed. So Paulo:

    Perspectiva, 1976. p. 143-171.

    ROSA, Joo Guimares, Grande Serto: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

    O homem dos avessos. In: ______. Tese e anttese. So Paulo: T. A. Queiroz,

    2000. p.119-139.