jornal atelier real #2 (2009)

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LEFTOVERS, TRACKS AND TRACES: Documentation practices in contemporary creation. Ranging from the documentation of an artistic work during its creation process to the realisation of artistic works that use documentation (or, for example, archiving)

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Atelier Real Nov/Dez 2009

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Pamberi ne Zimbabwe*, significa “Para a frente Zimbabwe”. É este o título de um dos filmes que encontrei no arquivo de cinema de Moçambique durante a visita que fiz a Maputo, em Junho passado. Este filme passava então pelas mãos dos técnicos portugueses responsáveis pela inventariação de mais de 25 mil latas de película. Eu vi apenas algumas imagens, de lance, numa passagem técnica do filme por uma moviola. Uma cena mostrava grupos de militares negros sentados no chão, e um outro grupo de militares brancos, britânicos, em formatura. Noutro momento, uma outra cena com os preparativos para as primeiras eleições no Zimbabwe depois dos acordos de Lancaster, em 1980. Para além dessas duas cenas, vejo o genérico final e leio que se tratava de uma co-produção entre Moçambique e Angola; os dois países haviam trabalhado juntos num filme que militava pela independência de um dos últimos países africanos a obter autonomia.

No mesmo dia, deram-me a possibilidade de levar umas das muitas

latas vazias que se amontoavam nas traseiras do Instituto Nacional de Cinema. Apropriei-me da lata que dizia “Centro de Informação e Turismo de Angola - Actualidades de Angola nº 186”, uma série que fora produzida ainda por um organismo imperialista português: tinha escolhido a lata que marcava uma distância ideológica radical, totalmente oposta à do filme que acabara de conhecer. Com este gesto senti fechar-se um tipo de triangulação, afectivo. Com esse gesto denunciei também o meu estatuto político e geracional: a minha experiência com as   imagens e os vestígios deste arquivo são o espelho da minha relação com o mundo. É este o ponto de partida que me interessou na abordagem da história dos filmes produzidos num determinado período em Moçambique, mas também para questionar estas imagens (ou qualquer imagem) enquanto agentes históricos e documentais em transformação.

Quantas e quais intervenções ideológicas influenciaram este acervo de imagens? Moçambicanos, portugueses,

alemães, cubanos, soviéticos, ame-ricanos, Godard, Rouch, UNESCO, Cooperação Cultural Europeia, entre muitos outros, mantiveram ou mantêm uma ligação com este arquivo. Que triangulações sucessivas ou simultâneas foram sendo desenhadas ao longo da sua constituição e que reflexo tiveram na interpretação e organização do arquivo? O poder destas imagens é inquestionável, mas mais poderosos serão os indícios e os parâmetros de transformação revelados pela consciência da sua história social.

Catarina Simão

“Fora de Campo – sobre o arquivo de

cinema de Moçambique”, Outubro 2009.

* "Pamperi ne Zimbabwe", Dir. João Manuel Costa/ Carlos Henriques, 1981, 35mm, cor 50 minutos, Coprodução INC/IAC.

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A particularidade deste Programa-Jor-nal é situar-se num intervalo - espaço de observação e de mediação por excelên-cia - a meio caminho entre projectos em vias de se constituir – actualmente em residência – e dos quais é preciso anun-ciar a próxima apresentação, e projectos já acontecidos que podem – agora livres das contingências ligadas ao anúncio das suas “apresentações públicas” – en-contrar neste jornal um espaço renova-do de expressão e de composição; como se se tratasse de os acompanhar e de os prolongar, de lhes acrescentar um com-plemento ou um suplemento, ou sim-plesmente de os documentar.

O projecto que ocupará a segunda ses-são pública do ciclo “Restos, rastos e tra-ços. Práticas de documentação na cria-ção contemporânea” é o projecto “Fora de campo – sobre o arquivo de cinema de Moçambique”, de Catarina Simão (p. 4). Algumas temáticas subjacentes a este projecto inspiraram parcialmen-te uma outra parte da programação do Atelier Real e deste Jornal. Por um lado, a disponibilização no nosso ‘Gabinete Audiovisual’, de filmes de Jean Rouch

recentemente editados em Dvd (p. 19). Filmes que desde os anos 1950 abrem o nosso olhar (de europeus Europa-centrados) à África, e renovam a nossa concepção do cinema documental (mas não só), nomeadamente graças a experi-mentações formais e técnicas que darão origem à noção de “cinema-verdade” [“cinéma-vérité”] e influenciarão os re-alizadores da Nouvelle Vague. E por outro lado a encomenda de um texto a João Sousa Cardoso, artista que traba-lha desde há alguns anos num projecto de “experimentação em torno das ima-gens do nosso tempo social e político em Portugal” [1], sobre a utilização de documentos históricos em obras con-temporâneas (p. 21). Tentando perceber se a apropriação desses documentos da história portuguesa – referindo-se essen-cialmente ao período colonial e fascista – por parte de artistas contemporâneos portugueses (na sua maioria nascidos nos anos 1970), poderia interpretar-se como sinal de um desejo de (re-)politizar as suas obras ou a sua relação à arte e à sociedade contemporâneas.

O projecto ao qual desejámos voltar

é o Garage Project de Tehnica Schweiz, apresentado (de forma demasiado bre-ve) por altura da inauguração do ciclo “Restos, rastos e traços”, em 26 de Se-tembro (p. 8). Por isso organizámos um encontro/entrevista com Péter Rákosi e Gergely László, não só para penetrar melhor no contexto social e histórico do projecto, mas também para compre-ender melhor as motivações éticas e estéticas de Tehnica Schweiz. Com este Jornal, a nossa intenção foi pois am-pliar o Garage Porject dando importân-cia (tempo e volume) aos detalhes que o compõem, e oferecer-lhe um espaço complementar de exposição, quiçá um tempo suplementar de acção.

David-Alexandre Guéniot

Direcção artística do Atelier Real

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Editorial

[1] “A Terceira República” (2007), exposição apre-sentada no espaço Mad Woman in The Attic, Porto (http://mwita14jsc.blogspot.com/) e “Os Republi-canos” (2009), exposição apresentada no espaço A Certain Lack of Coherence, Porto (http://acloc-25-osrepublicanos.blogspot.com/)[Sites consultados em 3 de Novembro de 2009].

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Fotografias tiradas no Instituto Nacional de Cinema em Junho de 2009 – Maputo, Moçambique.

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A arquivística colonial passou de assunto histórico a tema da actualidade em 2008, quando um acordo entre os Governos de Portugal e Moçambique permitiu pôr em marcha um processo de recuperação do arquivo de cinema de Moçambique.

“Fora de campo – sobre o arquivo de cinema de Moçambique", é o título ge-nérico para um projecto de investigação artística sobre os actos de transforma-ção política das imagens e em especial as que constituem o arquivo de cinema Moçambicano. Organizar, preservar, indexar, classificar um acervo de ima-gens, são actos que operam de acordo com um propósito, uma tendência, um pensamento, num contexto tecnológico e intelectual. Como tal, todas estas ac-ções actuam sobre as imagens induzindo um reconhecimento subjectivo e nesse processo adquirem a capacidade de as transformar.

“Fora de campo” é uma expressão ti-rada do vocabulário técnico do cinema e que serve de marco para traduzir simul-taneamente um método e um território

de pesquisa. Trata-se de olhar essas ima-gens através dos vários dispositivos (téc-nicos, administrativos e políticos) que as organizam e as exibem, as construções subjacentes e colaterais que, não estan-do no centro da imagem, nelas influem ao mesmo nível que a cena ou a acção.

Quais as implicações do interesse dos governos europeus na organização dos testemunhos culturais de outro país? Que instrumentos, conceitos, pressupostos e discursos são usados para interpretar e avaliar o conhecimento dessa cultura? É possível trabalhar as imagens de um país ex-colónia sem reproduzir, veicular as mesmas lógicas de subordinação im-perialista? Na evidência de uma trama de total obliquidade, como reconhecer a autoridade dessas imagens?

A história do cinema em Moçambique revela uma total consciência do poder das imagens. Desde o início da produ-ção cinematográfica, no início dos anos 60, que o cinema foi simultaneamente testemunho e participante da história contemporânea do país. Ao contrário

dos arquivos coloniais de outros países africanos, o arquivo de cinema de Mo-çambique não nasceu com as estruturas deixadas pelos colonizadores. Uma gran-de parte dos filmes encontrados neste arquivo são usados como instrumento de guerrilha, são filmes de propaganda feitos pelos movimentos de Libertação com o propósito de denunciar as medi-das opressivas do regime colonizador a nível internacional, veiculam ideologias, consolidam medidas sociais e económi-cas por todo o país e denunciam confli-tos armados com os grupos rebeldes.

Isso explica uma produção que, no mesmo período, só viu semelhanças com o movimento de cinema cubano. Num dos países mais pobres do mundo, em pleno período de reconstrução social, o investimento no cinema institui-se a tal ponto que o Governo Moçambicano funda um Instituto de Cinema em 1975, após a Independência, e atrai a Moçam-bique realizadores e técnicos de vários países e os três maiores representantes das vanguardas cinematográficas, do Ci-

nema Novo ao Cinéma-Vérité passando pela Nouvelle Vague: Ruy Guerra, Jean Rouch e Jean-Luc Godard.

Samora Machel e o novo poder político Moçambicano viram no cinema uma lin-guagem moderna que permitia “filmar o povo e devolver a imagem ao povo”. Mas as imagens de um povo devolverão ao povo o sistema em que assenta a sua imagem? Qual a função deste arquivo Moçambicano dentro dessa trama?

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A partir do dia 28 de Novembro, os documentos da investigação do projecto "Fora de Campo - sobre o arquivo de cinema de Moçambique", de Catarina Simão poderão ser consultados no Atelier Real, entre 30 de Novembro e 4 de Dezembro das 10h00 às 18h00, bem como no dia 5 de Dezembro entre as 14h30 e as 19h30. Uma visita comentada desses documentos será organizada no Sábado, dia 5 de Dezembro, às 16h00.

Atelier Real, 28 de Novembro, 18H00 (Entrada livre, lotação limitada)

Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea

SOBRE O ARQUIVO DE CINEMA DE MOÇAMBIQUE

de Catarina Simão (Portugal) com a participação de Jorge Blasco Gallardo (Espanha), Alex Arteaga (Espanha-Alemanha) e Ros Gray (Inglaterra)

FORA DE CAMPO

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CATARINA SIMÃO (Lisboa 1972)

Catarina Braga Simão é arquitecta e investigadora independente. Completou os estudos na Faculdade de Arquitectura de Lisboa e viajou depois para Barcelona para ampliar a sua formação na Escuela Superior de Arquitectura de Barcelona. Contudo, durante os cinco anos em que viveu em Espanha, trabalhou sobretudo para instituições culturais e curadores locais, desenvolvendo projectos de investigação sobre arte, política e tecnologia. Dirigiu a Fundação 30km/s, onde desenvolveu convocatórias de apoio a projectos artísticos, fílmicos e editoriais. De volta a Lisboa, integra varias estruturas associativas (Colectivo Dclic de Difusión, Procur.arte, Xerem) para desenvolver projectos com forte componente internacional. Na Europa trabalha as áreas da programação de cinema, música, teatro e artes plásticas. Em alguns países africanos participa em projectos de promoção da literacia visual. Em Setembro 2008 criou e produziu o evento Luso-phonia que se realizou em Barcelona, onde o argumento sonoro é chave para uma crítica electro-acústica da sociedade.

Desde então tem-se dedicado ao estudo de fenómenos do conhecimento subjectivo e à sua relação com a Diáspora, o pós-colonialismo, a experimentação, a tecnologia, e a outras áreas da produção industrial.

JORGE BLASCO GALLARDO (Salamanca 1972)

Estudou Belas Artes na Universidade de Salamanca e ampliou a sua formação na Technological Educational Institution of Athens. Realizou estudos de pós-graduação e doutoramento na Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona (ETSAB-UPC). Dirige o projecto em curso Culturas de archivo, iniciado na Fundação Antoni Tápiés em Outubro de 2000. Actualmente trabalha no desenvolvimento de projectos e publicações vinculadas a Culturas de archivo e na produção do AIAN, secção Guerra Civil Espanhola. É editor do portal www.culturasdearchivo.org e de diversas publicações relacionadas com o tema que dá o título ao projecto. Investiga os diferentes dispositivos aos quais geralmente se dá o nome de arquivo e actualmente faz

parte da equipa de criação do Archivo Tesauro da Fundació Antoni Tàpies.

ALEX ARTEAGA (Barcelona 1969)

Alex Arteaga estudou piano, teoria da música, composição e arquitectura em Barcelona e em Berlim. A investigação em torno de questões estéticas e criativas fundamentais, despoletadas pelo seu trabalho artístico, conduziu a uma tese de doutoramento com o título: Enquadramento sensual. Aspectos elementares de uma estratégia para a concepção e realização das condições de percepção [Sensuous framing. Basic features of a strategy for the conception and realisation of the conditions of perception], orientada pelo professor Krois no Departamento de Filosofia da Universidade Humboldt de Berlim. Actualmente é assistente de investigação no Grupo de Estudos Avançados do Acto Imagético e da Incorporação [Kollegforschergruppe “Bildakt und Verkörperung”] na Universidade Humboldt de Berlim; professor convidado de Estética e de Teoria da Inscrição Corporal no Master [MA in Solo / Dance / Authorship

(SODA)] do Centro Cooperativo de Educação da Dança de Berlim [Hochschulübergreifendes Zentrum Tanz (HZT) – Pilotprojekt Tanzplan Berlin]; director associado da Unidade de Investigação em Arquitectura Auditiva na Universidade das Artes de Berlim [Universität der Künste Berlin]; professor convidado no Instituto Universitário do Filme da Catalunha (Barcelona); investigador na Unidade de Investigação de Escultura Social da Universidade Oxford Brooks; chefe da secção de Humanidades no Instituto de Investigação Artística (Berlim).

ROS GRAY é escritora e teorizadora. Lecciona Estudos Críticos no Departamento de Arte do Goldsmiths College, na Universidade de Londres, e é directora de investigação no Departamento de Curadoria de Arte Contemporânea, no Royal College of Art. Os seus interesses concentram-se no cinema revolucionário, com as suas redes globais de produção; no ecrã como lugar de encontro radical; na teoria pós-colonial e política; nas culturas urbanas e na teoria do espaço; na arte fílmica e na vídeo-arte contemporâneas.

Bios

Foto de Catarina Simão.

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A primeira acção cultural do governo Moçambicano logo após a independên-cia, em 1975, foi a criação do INSTITU-TO NACIONAL DE CINEMA [INC] com o objectivo de utilizar o cinema como um “instrumento actuante na eli-minação total de todos os resíduos do colo-nialismo e de educar, mobilizar e organi-zar o povo”. Samora Machel, presidente da República Popular de Moçambique, tinha especial consciência do poder da imagem e de como utilizá-la para cons-truir uma nova nação socialista. As salas de cinema são nacionalizadas, os meios de produção, assim como o pessoal mais

especializado, vêm das antigas empre-sas privadas, agora também nacionali-zadas. Os acordos económicos com os países “aliados naturais do Leste”, vão permitir a compra de novo material e de película. A URSS oferece uma série de viaturas para a rede de cinema móvel que começa a projectar em todo o país a mais popular produção do INC, o Kuxa Kanema.

Kuxa Kanema [literalmente “o nasci-mento do cinema”] era um jornal cinema-tográfico de 10 minutos que tinha como objectivo “filmar a imagem do povo e devol-vê-la ao povo”. Apareciam muitas vezes

imagens e discursos de Samora Machel que pelo seu poder de expressão fasci-navam a população. O sucesso de Kuxa Kanema foi tal que ainda hoje se utiliza esta expressão para designar qualquer imagem em movimento.

Durante esse período da revolução so-cialista, o INC produzia essencialmente documentários educativos e (ou) mili-tantes. O cinema devia passar a men-sagem da unidade nacional e ajudar a divulgar e promover os grandes projec-tos do país: as aldeias comunais, assem-bleias populares e, de uma forma mais geral, a construção de uma sociedade à altura do homem novo. Mas muito cedo Moçambique viu-se confrontado com as agressões violentas cometidas pela Rodésia, descontente com o apoio dado por Samora Machel aos movimentes independentistas. Também a África do

Sul acusa Moçambique de dar guarida ao ANC [African National Congress] e começa a promover uma guerra civil que vai consumir o país durante 16 anos.

Apesar da guerra que aumentava de intensidade dia-a-dia, Moçambique com o seu projecto de país, e o INC com o seu projecto de cinema, vão atrair mui-tos técnicos cooperantes e cineastas estrangeiros. É feito um grande esforço de formação de novo pessoal com a aju-da destes cooperantes vindos sobretu-do dos países de Leste, Cuba, Canadá, Brasil e Inglaterra. Uma das figuras que vem dar grande popularidade ao INC, sobretudo a nível internacional, é Ruy Guerra. Moçambicano de origem e há muito radicado no Brasil, uma espécie de figura mítica, pai do Cinema Novo brasileiro, Ruy Guerra é convidado para voltar a Moçambique e participar neste

Sobre o Instituto Nacional de cinema de MoçambiqueDepois de 500 anos de colonialismo português e 10 anos de luta de libertação, Moçambique é um dos últimos países africanos a tornar-se independente.

Foto de Catarina Simão.

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nascimento do cinema.No final dos anos 70 Jean-Luc Godard

e a sua empresa, Sonimage, apresentam a Moçambique a proposta de utilização de um novo suporte, muito mais eco-nómico: o vídeo. A ideia de Godard era realizar uma série de 5 filmes chamados “Naissance (de l’image) d’une Nation”, e ao mesmo tempo fazer um estudo para a criação da nova televisão moçambica-na. Godard via em Moçambique — um país em que 95% da população nunca tinha visto uma imagem — o terreno ideal para a criação de uma televisão go-dardiana. “Uma só imagem”, “o povo”, “a imagem desse povo”, escreve Godard no seu relatório. Mas as questões que Go-dard queria levantar não eram apropria-das ao momento político que se vivia. O seu projecto é recusado pelo governo.

Com o crescer da violência e o alas-trar da guerra civil, o INC luta com todo o género de problemas técnicos. Faltas de energia, falta de película e assistên-cia técnica. Mesmo assim, em 1983 o INC lança-se num projecto de filmes de ficção. Só vão ser produzidos dois fil-mes: o primeiro, O Tempo dos Leopardos, uma co-produção com a Jugoslávia, é um filme épico sobre os actos gloriosos da FRELIMO [Frente de Libertação de Moçambique] durante o tempo colonial. O segundo, O Vento Sopra do Norte, é um filme totalmente produzido em Mo-çambique. Os dois filmes são bastante maniqueístas, com histórias simples de “pretos e brancos”. Ambos são grandes sucessos comerciais.

Em 1986 Moçambique é considerado o país mais pobre do mundo. Nas cidades as salas de cinema foram destruídas e o Cinema Móvel deixou de projectar, pois já não se podia sair das cidades em segu-rança. Samora Machel morre em Outu-bro de 1986 e o novo poder não tem inte-resse em manter o INC. O meio que o irá substituir — a televisão — já tinha come-çado as suas emissões experimentais em Maputo. O INC deixa de produzir.

Em 1991 um fogo destrói o edifício do Instituto. Sobrevivem apenas os arqui-vos e uma parte da zona administrativa. Até essa data tinham sido produzidos cerca de 120 filmes — curtas, médias e longas metragens — e 350 edições do Kuxa Kanema.

fonte: KUXA KANEMA, O Nascimento do

Cinema, um documentário de Margarida

Cardoso, Filmes do Tejo, uma co-produção

RTP Rádiotelevisão Portuguesa– ARTE

France – RTBF Televisão Belga, 52

minutos, cor, 2003. DVD disponível para

consulta no Gabinete Audiovisual.

[Em 1978, os realizadores Jean-Luc Godard e Jean Rouch são convidados pelo Governo da República Socialista de Moçambique para conceber uma política cinematográfica e televisiva inovadora. Jean-Luc Godard trabalha num estudo sobre a instalação de uma televisão nacional. Jean Rouch aposta numa experiência baseada na formação de futuros cineastas locais através da constituição de um atelier de formação na área do filme documentário, em película de Super 8, com recurso a uma pedagogia simples, assente na prática: "filmar de manhã, revelar ao meio-dia, editar à tarde, projectar à noite". Essas experiências serão de curta duração e acabarão em 1979.]

“Aprender e ensinar a Imagem no Moçambique independente” Extractos de uma entrevista com Jean-Luc Godard publicada na revista moçambicana Tempo nº408, 30 de Julho 1978.

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Edward Said – On Orientalism

[Uma das razões pelas quais comecei a interessar-me pelo Orientalismo foi] a constante disparidade que sentia entre o que constituía a minha experiência de ser um árabe e as representações que apareciam na arte – e estou a referir-me a artistas fabulosos, como Delacroix, In-gres, Gérôme... romancistas que escre-veram sobre o Oriente, como Disraeli ou Flaubert – e o facto de essas representa-ções do Oriente terem muito pouco a ver com o que eu dele conhecia, através da minha experiência de vida. Foi por isso que decidi escrever essa história.”.

“Se nos anos 1850 ou 60 alguém dese-jasse, em Paris ou em Londres, falar ou ler sobre a Índia, o Egipto ou a Síria, teria muito poucas hipóteses de abordar sim-plesmente o tema – como gostamos de pensar – de uma forma, por assim dizer, livre e criativa. Já muita coisa tinha sido escrita, e essa escrita era uma forma orga-nizada de escrita, como uma ciência or-ganizada, quer dizer, aquilo a que chamei “orientalismo”. E parece-me que havia um espécie de repertório de imagens que estavam sempre a vir ao de cima... a mu-

lher sensual que só existe para ser mais ou menos usada pelo homem, o Oriente como uma espécie de lugar misterioso cheio de segredos e de monstros (as coi-sas de sempre... as “Maravilhas do Orien-te” era uma frase corrente)... E quanto mais olhava, mais compreendia que isso era bastante consistente; tinha muito pouco a ver com pessoas que tinham de facto lá estado. E mesmo que tivessem lá estado, não fazia grande diferença se não se obtivesse o que poderíamos chamar uma representação realista do Oriente, tanto na literatura como na pintura ou em música, ou em qualquer uma das ar-tes. E isso alargava-se inclusive às descri-ções dos árabes feitas por especialistas, por pessoas que os tinham estudado. E notei que mesmo no século XX podí-amos encontrar algumas das imagens correntes no século XIX entre académi-cos como Edward William Lane, que no início dos anos 1830 escreveu aquele livro sobre os egípcios modernos [Manners and Customs of the Modern Egyptians – Usos e costumes dos egípcios modernos]. E depois lemos outros autores dos anos 1920 e ainda estão a dizer mais ou menos a mesma coisa. Um bom exemplo é aque-

le poeta maravilhoso, Gérard de Nerval, que foi “en voyage” ao Oriente, como ele próprio dizia. E quando li o livro das suas viagens na Síria, soava muito fami-liar. Soava como tudo o que eu tinha lido antes. Compreendi então que o que ele fazia no livro quase inconscientemen-te era citar Lane sobre os egípcios, com a teoria segundo a qual os orientais são todos iguais, independentemente do lu-gar onde os encontremos, seja na índia, na Síria, ou no Egipto. É basicamente a mesma essência. [O poeta] Desenvolve assim uma espécie de imagem de um Oriente intemporal; como se o Oriente, contrastando com o Ocidente, não se desenvolvesse, permanecesse o mesmo. Esse é um dos problemas do Orientalis-mo: cria uma imagem fora da história, de algo de plácido e imóvel e eterno, que os factos da história simplesmente contra-dizem. Nesse sentido é uma criação de um outro ideal para a Europa.”

“[Em 1798, Napoleão invade o Egipto], mas não o invade da mesma maneira em que os espanhóis tinham invadido o Novo Mundo, em busca de pilhagem; em vez disso, vai com uma enorme armada de soldados mas também de científicos, [...],

de arquitectos, de filólogos, de biólogos, de historiadores, cuja função era registar o Egipto de todas as formas possíveis e imagináveis, e produzir uma espécie de levantamento científico, concebido não para os egípcios mas para os europeus. O que é impressionante, antes de mais, relativamente aos volumes que produzi-ram é a sua enorme dimensão: têm um metro quadrado cada um [20 volumes de textos e de desenhos no total, cuja reali-zação e publicação levou 20 anos. http://descegy.bibalex.org/], e de uma ponta a outra encontra-se neles escrito o poder e o prestígio de um país Europeu moderno, que pode fazer aos egípcios o que os egíp-cios não podem fazer aos franceses... ou seja, não existe um levantamento egípcio comparável da França. Para produzir co-nhecimento é preciso ter o poder de estar lá e ver, com olhos de especialista, coisas que os nativos não conseguem ver.

O projecto "Fora de campo – sobre o ar-quivo de cinema de Moçambique", de Catarina Simão, apoia-se em pressupos-tos históricos e teóricos que nos parece importante mencionar e citar, nomea-damente as reflexões de Edward Said em Orientalism [Orientalismo], um livro que publicou em 1978 e que em muito contri-buiu para a criação da área de estudos pós-coloniais no âmbito da disciplina de Estudos Culturais [Cultural Studies].

Pós-colonialismoDefinição da Stanford Encyclopedia of Philosophy, por Margaret Kohn

Na perspectiva da teoria do sistema mundial (TSM), a exploração económica da periferia não requer necessariamen-te uma dominação política ou militar directa. Na mesma ordem de ideias, os especialistas contemporâneos em teoria literária começaram a observar práticas de representação que reproduzem uma

lógica de subordinação que perdura, mesmo depois de as colónias terem ga-nho a independência. A área dos estu-dos pós-coloniais foi estabelecida por Edward Said, no seu livro fundador Orientalism [Orientalismo].

No livro Orientalism, Said aplica a téc-nica de análise do discurso de Michel Foucault à produção de conhecimento sobre o Médio Oriente. O termo “orien-talismo” designa ali um conjunto estru-turado de conceitos, pressuposições e práticas discursivas, que foram utiliza-das para produzir, interpretar e avaliar conhecimentos sobre os povos não eu-ropeus. A análise de Said permitiu aos investigadores a desconstrução de textos literários e históricos, com o intuito de compreender a maneira como reflectiam e reforçavam o projecto imperialista. Diferenciando-se de estudos anteriores focalizados na lógica económica ou polí-tica do colonialismo, Said concentrou-se na relação entre conhecimento e poder. Salientando o trabalho cultural e episte-

mológico do imperialismo, Said conse-guiu minar a pressuposição ideológica de um conhecimento isento de valor, e mostrar que “conhecer o Oriente” fazia parte integrante do projecto de o domi-nar. Orientalism pode pois ver-se como uma tentativa de alargar o terreno geo-gráfico e histórico da crítica pós-estrutu-ralista da epistemologia ocidental.

Said utiliza o termo Orientalismo em vários sentidos. Antes de mais, o Orien-talismo é uma área específica de estu-dos académicos sobre o Médio Oriente e a Ásia, ainda que se trate de uma área que Said considera de forma bastante alargada como incluindo a história, a sociologia, a literatura, a antropologia e especialmente a filologia. Identifica-o igualmente como uma prática que aju-da a definir a Europa, nomeadamente criando uma descrição estável do seu outro, do seu exterior constitutivo. O orientalismo é uma forma de caracteri-zar a Europa desenhando uma imagem ou uma ideia contrastiva, baseada numa

série de oposições binárias (racional/irracional, mente/corpo, ordem/caos), que gerem e deslocam as ansiedades eu-ropeias. Por último, Said sublinha que se trata também de um modo de exercer uma autoridade através da organização e da classificação de conhecimentos sobre o Oriente. Esta abordagem discursiva di-fere tanto da pressuposição materialista vulgar de que o conhecimento é apenas o reflexo de interesses económicos ou polí-ticos, como da convicção idealista de que o saber é desinteressado e neutro. No seguimento de Foucault, o conceito de discurso de Said identifica uma via onde o conhecimento não é usado instrumen-talmente ao serviço do poder, mas cons-titui em si mesmo uma forma de poder.

PÓS-COLONIALISMO

Artigo consultado em 28 de Outubro de 2009.http://plato.stanford.edu/entries/colonialism/#PosColThe[O livro Orientalismo (Livros Cotovia, 2004) está disponível no Gabinete de Leitura do Atelier Real]

Edward Said – On Orientalism, de Sut JhallyMedia Education Foundation [40 minutos], 1998.Excertos disponíveis no You Tube / Palavras chave: Edward Said+Orientalism.http://www.youtube.com/watch?v=0HQiHuEuuhk&feature=related

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DE TEHNICA SCHWEIZ/PÉTER RÁKOSI & GERGELY LÁSZLÓ

GARAGE PROJECT

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GARAGE PROJECT DE TEHNICA SCHWEIZ/PÉTER RÁKOSI & GERGELY LÁSZLÓ

Dunaújváros é uma cidade do centro da Hungria, situada nas margens do Danúbio, 70 quilómetros a sul de Budapeste. Foi construída nos anos 1950 junto de uma vila já existente – Dunapentele (1). Dunaújváros é uma das cidades mais recentes do país.Após a Segunda Guerra Mundial o novo governo comunista iniciou um importante programa de industrialização, com o intuito de apoiar o esforço de rearmamento. Em 1949 Dunaújváros foi escolhida como terreno para as maiores obras de ferro e de aço. A cidade foi concebida para 25.000 habitantes. A construção teve início no dia 2 de Maio de 1950.

No espaço de um ano já tinham sido construídas mais de 1000 unidades de habitação (2) e o complexo fabril encontrava-se em vias de construção (3).

No dia 4 de Abril de 1952, a cidade adoptou oficialmente o nome de Sztálinváros (4), que significa “Cidade de Estaline”, constituindo assim um paralelo de Estalinegrado na URSS. A metalurgia abriu em 1954. Por essa altura, a cidade continha uma população de 27,772 habitantes: 85% vivendo em apartamentos aprazíveis e confortáveis (5), e cerca de 4,200 pessoas ainda alojadas nas barracas desconfortáveis que tinham inicialmente servido de “casa” aos operários da construção. Em meados da década de 1950 foi organizada uma rede de transportes públicos, com autocarros transportando 24,000 passageiros por dia (6). Durante os anos 1950, construíram-se várias instalações culturais e desportivas (7), nomeadamente

a Escola Primária Endre Ságvári, a maior escola da Europa Central nos anos 1960 (8).

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Graças ao grupo de arquitectos dirigido por Tibor Weiner, seguidor da Bauhaus, uma cidade espaçosa e confortável tinha sido criada (9). Representando a realização da utopia socialista, era apresentada aos visitantes estrangeiros como “imagem de marca” do socialismo na Hungria (10).Em 1960, 10 anos após a sua criação, a cidade contava com 31,000 habitantes para celebrar o seu aniversário (11). Em 26 de Novembro de 1961, no seguimento da morte de Estaline (1953) e da Revolução Húngara (1956), o nome da cidade foi mudado para Dunaújváros (que significa Cidade do Danúbio; “Nova Cidade nas margens do Danúbio”).

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O complexo fabril de DUNAFERR (12) continua actualmente a ser uma empresa determinante no seio da indústria húngara do aço, e constitui um importante gerador de empregos na região. Dunaújváros alberga diversas infra-estruturas recentes, incluindo a fábrica South Korean Hankook, a maior fábrica de pneus da Hankook na Europa.

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“Aprendi imenso com Támas quando vivi em Budapeste. Descobri que a arte contemporânea existia ali entre espaços alternativos e o Arquivo Artpool [www.artpool.hu/archives.html/] e que a energia desta nova geração exaltava a arte subversiva ao socialismo dos anos sessenta e setenta. Deste empenho social da arte, os jovens artistas criam uma comunidade útil que se presta à criação de condições para se poder fazer uma arte necessária" - ” Hugo Canoilas (Maio 2008), sobre o projecto “Disco Batata” de Támas Kaszás e Sophie Dodelin, apresentado no âmbito do PROJECTO 270; http://projecto270.blogspot.com

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O Garage Project surgiu no seguimento de um convite de Tamás Kaszás para participarmos num projecto de grupo. Tamás é um artista húngaro (13) originário de Dunaújváros, que vive e trabalha em Budapeste. Tinha-nos convidado no âmbito de um projecto do Instituto de Arte Contemporânea de Dunaújváros (www.ica-d.hu), que devia reunir vários artistas a trabalhar em tempos e lugares diferentes da cidade. Tamás organizou uma visita guiada através da cidade, revelando um percurso alternativo ao que é habitualmente preconizado pelo posto de turismo local (14), e foi assim que descobrimos essa zona exclusivamente constituída por garagens, um total de 1200. Este tipo de aglomerados de garagens não é raro na Hungria, mas torna-se único neste caso por causa da dimensão que atinge. Este é um dos aspectos que despertou o nosso interesse no início do projecto: a extensão do espaço ocupado pelas garagens, o território que definiam (15). O projecto de grupo não chegou a realizar-se,

mas nós continuámos a visitar Dunaújváros regularmente, para nos informarmos sobre o que se passava naquelas garagens. Descobrimos assim que as primeiras foram construídas em finais dos anos 1960 pelos (e para os) operários do complexo metalúrgico que fica ao lado (16).

As garagens situam-se um pouco à margem da cidade, a cerca de 30 minutos a pé do centro. O uso original que faziam das garagens compreende-se a partir do uso que davam ao carro por essa altura. Dunaújváros é uma cidade pequena e a quase totalidade dos seus habitantes trabalhavam (e ainda trabalham) no complexo industrial que ali foi implantado. Para ir para o trabalho, os habitantes deslocavam-se de autocarro ou a pé. Aqueles que tinham carro serviam-se dele principalmente ao fim de semana para os passeios em família. Durante a semana deviam passar o tempo livre a fazer bricolage nos carros e a poli-los. Nessa altura, ter uma garagem era um sinal importante de distinção. Indicava a posse de um carro. Ora, ter um carro era praticamente um privilégio estatal. Uma única firma se consagrava à produção de carros, e muitas vezes era preciso esperar um ano ou mais para receber o que se tinha encomendado.

Essas garagens continuam actualmente a ser usadas como garagens, mas conhecem igualmente outros usos. Algumas albergam pequenos bares, outras transformaram-se em armazéns de produtos de toda a espécie, outras em estúdios de ensaio para grupos de rock (18), mas também há cada vez mais garagens a ser alugadas a pessoas sem-abrigo (note-se que estas garagens não têm água corrente nem electricidade). Os grupos de rock e os sem-abrigo pagam o dobro dos outros porque são muito mal vistos. Reina ali um clima de suspeição geral, toda a gente receia ser assaltada, facto que gerou uma série de invenções de sistemas de fechadura e de encerramento muito imaginativos (risos)(19).

Para construir um bloco de garagens, era preciso que os operários se reunissem numa cooperativa de 20 membros (cada bloco é constituído por 20 garagens), que provassem possuir um carro e pedissem uma autorização à Câmara Municipal. Muitos faziam batota e arranjavam maneira de obter a autorização sem ter carro. A Câmara fornecia-lhes então os planos de construção das garagens (planos estabelecidos em função do plano geral da cidade) – independentemente do facto de se tratar dos mesmos planos para todos os blocos (duas filas de 10 garagens) e para todas as garagens (3 metros de largura, 2 metros e 60 de altura, e 5 metros de profundidade) (17). Uma vez que cada bloco era completamente independente, entre a construção de 2 blocos podiam passar 10 anos. Neste modo cooperativo, os operários que participavam activamente na construção (por terem conhecimentos na área da construção ou de engenharia) não pagavam nada pela garagem. Os outros operários dividiam os custos da construção.

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As garagens continuam a ser um espaço maioritariamente ocupado por homens, que fazem delas uma espécie de anexo privado, um compartimento secreto onde se podem entregar aos seus hobbies, transformando-as em atelier de bricolage ou de mecânica. Alguns operários que trabalham na fábrica, por exemplo, vão às garagens durante a pausa para o almoço. Uma garagem constitui uma escapatória, forma uma espécie de jardim secreto onde os homens se encontram sós. É também um lugar que contrasta com as vidas que levam nos seus apartamentos. A garagem oferece-lhes um acesso directo ao exterior, ou melhor, uma espécie de pátio interior.

No início não tínhamos ideia pré-definida sobre o que seria este projecto, aliás nem sequer era um “projecto”. Limitámo-nos a reunir informação sobre a história e os usos passados e presentes das garagens. Tratava-se de recensear esses usos, de falar com as pessoas que alugavam ou possuíam uma

garagem, de nos diluirmos na paisagem de forma a sermos aceites. Nós próprios alugámos uma garagem... para viver a experiência a partir do interior (risos). Durante essa primeira fase, víamos muitas pessoas que frequentavam as garagens, mas elas desapareciam todas atrás da porta das suas garagens. Estávamos intrigados com o que se passaria lá dentro. Por isso começámos a imaginar tácticas que nos permitiriam abrir as portas das garagens e saber o que continham. Uma dessas ideias foi a de trabalhar sobre a própria frustração. Como tínhamos uma garagem, lançámos um apelo à apresentação de projectos a amigos artistas, para que imaginassem o interior de uma garagem (20).

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Os projectos de Tehnica Schweiz baseiam-se numa colaboração efectiva e “igualitária” com a comunidade em que se inserem. O grau de sucesso que atingem depende mais do impacto humano, social e político, que essa colaboração terá na vida das pessoas que participam no projecto, do que da qualidade estética das obras que dele resultarem. É contudo frequente que durante o processo de realização se gerem relações de poder e de responsabilidade, que minam as intenções iniciais do projecto e deixam a amarga impressão de manipular e de tirar proveito da boa vontade dos participantes em função de um objectivo “cinicamente artístico”. No caso do Garage Project, a comunidade com a qual desejavam comunicar fecha-lhes a porta (das suas garagens) no nariz. Transformam então a sua própria garagem num estúdio e pedem aos amigos (artistas e outros) para imaginar e encenar novas funções para as garagens. Ao fazê-lo deixam formulada uma declaração de impotência que dita ao projecto uma necessidade de recolhimento. Organizam – de maneira utilitária e “cínica” – as condições para que sejam criadas obras que sirvam “igualitariamente” o seu interesse de continuar o Garage Project, mas também o interesse individual dos artistas de assistir à realização das suas proposições de garagem. A prática da colaboração e do intercâmbio mudou de comunidade alvo (passando dos utilizadores das garagens aos amigos artistas) mas realiza o objectivo de alargar o domínio da acção artística do Garage Project a outros contextos, nomeadamente aos contextos das exposições individuais nas quais se inserem agora as fotografias realizadas numa garagem em Dunaújváros, enquadramento-pretexto organizado por Tehnica Schweiz.

David-Alexandre Guéniot

O festival constituiu uma outra táctica para abrir as portas de garagem. Inicialmente tratava-se de organizar um “dia de portas abertas”, e de transformar esse espaço num mercado aberto, num lugar público e comum. A imagem que tínhamos dessa zona de garagens assemelhava-se a um calendário do advento [calendário com a forma de um quadro em cartão, sobre o qual se recortam previamente 24 janelas que serão abertas progressivamente, uma por dia até 24 de Dezembro, e nas quais se escondem chocolates, NdE]... onde cada porta de garagem se abriria revelando uma surpresa (risos) (21).

Para o primeiro festival, em Setembro de 2008, tínhamos alugado 5 garagens. Uma delas servia como escritório do festival, uma outra de bar (22), outra de palco, outra de cinema (23) e uma outra, enfim, de museu (24). No museu expusemos objectos encontrados nas garagens e que nos foram emprestados. Cada objecto fazia-se acompanhar de um texto que contava a sua história e a relação que tinha com o seu proprietário. No cinema projectámos excertos de um projecto de filme de Zsolt Keserue, um artista que vive e trabalha em Dunaújváros e que documenta,

desde 2002, a vida dos grupos de Heavy Metal que ensaiam nas garagens. Zsolt filmou a participação desses grupos no primeiro Festival Garage, e o seu projecto de filme pôde assim encontrar uma espécie de desfecho (25).

As fotografias dessas garagens vieram juntar-se às outras duas séries. Situam-se entre uma coisa e outra: nem são encenações nem são reais. O interior das garagens não foi completamente inventado, mas também não se pode dizer que existam realmente. Foram criadas especificamente para o projecto, mas também não são artificiais, são funcionais.

Para a segunda edição do festival decidimos investir mais na promoção; não só com posters nas ruas mas também através de um Blogue, no qual durante quinze dias se publicavam informações sobre a programação, sobre a organização, mas também notícias falsas, como a descoberta de imigrantes clandestinos numa garagem, ou um novo recorde Guiness com mais de 60 pessoas empilhadas numa garagem (26). Criámos também um logótipo (um lama (27)), que imprimimos em t-shirts, em autocolantes e chupa-chupas (28). No que diz respeito ao lama tudo começou com a ideia de criar uma garagem onde haveria um animal “exótico”. Ora, um circo encontrava-se por acaso nas redondezas e fomos ter com o director para ver se nos podia emprestar um animal. Podia emprestar-nos um cão, um cavalo... nada de muito exótico... ou então um lama. Dissemos que o lama entrou no projecto e passou a ser a sua mascote. Foi a partir desse acaso que o lama entrou no projecto e passa a ser a sua mascote (29).

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Investimos igualmente na decoração das ruas, de modo a criar um ambiente mais acolhedor (30). Por ocasião do segundo festival tínhamos 30 voluntários (31) que nos ajudaram a limpar a rua, a montar os equipamentos técnicos, a construir os palcos, a colocar as iluminações decorativas. Uma outra das nossas intervenções foi restabelecer a luz nas ruas, que tinha desaparecido desde há 6 ou 8 anos. O que fez com que o festival se tornasse mais popular e mais próximo das diferentes populações que utilizam as garagens.

No seguimento da ideia de alargar o festival a outros públicos (e não apenas ao público noctívago dos concertos de rock pesado, como tinha sido o caso da primeira edição) organizámos um desfile de “majorettes” com uma fanfarra, do centro da cidade até às garagens (32). Tratava-se de despertar a curiosidade dos passantes e dos residentes, e de os levar às garagens. Queríamos atingir um público mais variado, de outras faixas etárias, casais com filhos, idosos, etc (33). Por isso alargámos também a gama das intervenções, integrando espectáculos de marionetas (34), um palco aberto durante o dia para as pessoas recitarem textos ou sketches (35), pistas de skates e de bicicletas (36)... O desfile devia ligar simbolicamente o festival ao centro da cidade e contrariar a sua imagem de rock Underground nocturno (37).

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Se pensarmos no lama, a forma como passou de mão em mão, de suporte em suporte, de utilização em utilização, o facto de antes se encontrar num circo e depois na nossa garagem, e depois nas nossas fotografias, e depois nos nossos posters, nas t-shirts, nos crachás, nos chupa-chupas, nos autocolantes, e depois onde o vamos encontrar pintado nas ruas... (41) A partir de certa altura deixa de ser o “nosso” lama e torna-se algo que continua para além do nosso projecto, algo com vida própria. É uma boa metáfora do que desejamos fazer com os nossos projectos. Que os participantes se apropriem do projecto. O Garage Project constitui talvez o projecto artístico que mais se aproxima do que procuramos pôr em prática: partilhar com uma comunidade o mesmo grau de interesse por um projecto, sentir que as pessoas se encontram tão implicadas como nós, e que obtêm tanta satisfação como nós.

Imagens: Tehnica Schweiz/Péter Rákosi & Gergely László + found footage a partir de Internet, nomeadamente o site Dunaújváros 2400: http://sztalinvaros.uw.hu/start.php; o site oficial do Garage Festival: http://www.garazsfesztival.com/, bem como a galeria foto do festival 2009 no Flickr: http://www.flickr.com/photos/42823610@N08/.Textos: Wikipedia (artigo “Dunaújváros” consultado em 8 de Outubro de 2009: http://en.wikipedia.org/wiki/Dunaújváros); entrevista com Péter Rákosi e Gergely László por David-Alexandre Guéniot, 3 de Outubro de 2009, Atelier Real, Lisboa.

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Todas as intervenções que tiveram lugar durante o festival foram iniciativas que nos foram propostas. Tínhamos lançado um apelo à apresentação de projectos que convidava as pessoas a apresentar o que quisessem, tanto no palco aberto como numa garagem ou na rua (38). A programação de uma garagem foi inteiramente concebida por um DJ. Deu um nome à sua programação como se se tratasse de um programa integrado no programa do Festival Garage (39). E anunciou-o no seu site internet, integrando o lama ao design do anúncio. Até houve uma after party frente à garagem dele (40). Foi uma iniciativa da qual não tivemos que nos ocupar, apenas fornecemos a garagem.

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Com Les Maîtres fous, Moi un Noir e Chronique d'un été, filmes realizados en-tre 1954 e 1961, Jean Rouch subverte o cinema etnográfico (inventando assim a etno-ficção) e, de maneira mais geral, modifica a concepção de narrativa docu-mental, integrando-lhe uma dimensão poética e imaginária.

Les Maîtres fous é um filme de trinta minutos sobre uma nova seita, os Haou-kas, que recrutam entre os imigrantes ni-gerianos à procura de trabalho em Gold Coast (o Gana actual). Essa seita pratica um ritual que encena a ordem colonial, na qual homens e mulheres possuídos pelo transe incarnam personagens como “o governador”, “o capitão do Mar Ver-melho”, “a mulher do médico”, “o con-dutor de locomotiva”, “o cabo de guar-da”, e onde o altar se chama “a casa do governo”, sobre o qual esvoaçam lençóis com motivos impressos a que chamam “Union Jack”. Na altura, o filme provoca reacções violentas por parte dos univer-

sitários (Marcel Griaule, grande etnó-logo francês e director de tese de Jean Rouch, exige que o filme seja destruído), mas também por parte do público du-rante o festival de Veneza de 1957, que reage à crueza de certas cenas (os possuí-dos, espumando baba e ranho, degolam, escaldam e comem um cão). Por outro lado chama a atenção [2] dos críticos (e futuros cineastas) Éric Rohmer, Jac-ques Rivette e Jean-Luc Godard, que se apercebem de toda a potencialidade de um equipamento técnico sumário (ape-nas uma câmara e um captador de som) em termos de liberdade de movimentos (possibilidade, por exemplo, de filmar na rua) e de intensidade dramática (uma sensação reforçada de realismo).

O que Les Maîtres fous já comporta - metaforicamente - e que constitui a assi-natura artística de Jean Rouch, é o facto de se situar numa linha de partilha que diferencia ao mesmo tempo que produz um intercâmbio; simultaneamente limi-

te e passagem, de um indivíduo a outro, de uma cultura a outra. Lugar fronteira onde duas culturas se encontram uma na outra, de maneira impura, confundi-da, contaminada uma pela outra. Já que Jean Rouch não é um etnólogo do géne-ro observador-objectivo-distante, mas um actor participativo, organizador de um jogo etnológico no qual os objectos de estudo se transformam em sujeitos do seu próprio estudo, tornando-se actores dos seus costumes e rituais, narradores das suas vidas e das considerações que sobre elas fazem. Os seus filmes são como moedas de troca (espécie de Potla-tchs alimentando o fluxo do intercâm-bio) entre o autor e o espectador, entre o realizador e o actor, entre o estrangeiro e o autóctone, entre o Branco e o Negro, entre o Europeu e o Africano, entre siste-mas de representação e ordens simbóli-cas que presidem a identidades culturais diferentes.

Rouch falava de cine-prazer a propósi-

to dos seus filmes, ele próprio tão interes-sado (como o actor) em vê-los como um espectador, reduzindo assim a distância entre quem concebe (o realizador), quem representa (o actor) e quem olha (o es-pectador). Organizava por isso sessões de feedback nas quais mostrava aos seus actores (e não-actores) montagens do filme, para compreender melhor (e com-pletar assim), graças às reacções deles, o que se tinha esquecido de considerar na construção das personagens que eram e/ou imaginavam ser e/ou queriam signifi-car. Em Moi un Noir, a pós-sincronização dos diálogos é substituída pelos actores que contam e comentam as suas acções na qualidade de pessoas auto-intituladas (chamam-se Tarzan ou Edward J. Robin-son – um actor americano que estava na moda – ou ainda Lemmy Caution – herói de policial de série B, muito popular em França na altura). Em cada filme, a nar-rativa toma a forma de uma fábula que se apodera da realidade para a mostrar imaginando-a, para a imaginar mostran-do-a, à semelhança dos comentários das personagens sobre si próprias em Moi un Noir. A imaginação serve a palavra ini-ciática e fundadora da fábula, enquanto força constitutiva de estruturas sobre as quais se constroem as nossas crenças, as nossas lendas e as nossas representa-ções, científicas e culturais. Descobrindo assim a poética de qualquer ciência, de qualquer esforço que se confronte com o Mundo, para o com-preender [NdT].

David-Alexandre Guéniot

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Nadine Wanono numa sessão de feedback em Moçambique, 1978. Fotografia de Françoise Foucault. DR.

Jean Rouch, Investigador do Museu do Homem [1]

[1] A propósito desta designação profissional, ver o ar-tigo de Jean-Luc Godard sobre Jean Rouch: "Chargé de recherche pour le Musée de l’Homme ? Existe-t-il une plus belle définition du cinéaste ?" (Les Cahiers du Cinéma n°94, Abril de 1959). [2] Jean Genet inspirar-se-á igualmente do filme para escrever Les Nègres (1958), uma peça na qual os Negros põem máscaras para imitar a justiça dos Brancos. [NdT] Tal como aparece no texto original em francês, a hifenização do termo “com-prendre” no contexto de uma reflexão so-bre a prática etno-poética de Jean Rouch merece uma breve nota, pois diz-nos que “compreender” é sempre um acto de “entender ou pensar com”, e não um acto de reflexão isolada e à distância. Literalmente: com-preender equivale a tomar em consideração conjunta-mente.

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Jean Rouch nasce em 1917. O seu pai tinha participado, como oficial da marinha, na expedição polar de Jean Charcot, em 1908-1910. Admitido na “École des Ponts et Chaussées” [reputada escola de engenharia de Paris], frequenta durante os anos 1930 as vanguardas parisienses. Fugindo da França ocupada, parte em 1941 para a região do Níger, na qualidade de engenheiro civil. Volta ao Níger em 1946, para descer o rio Níger com dois amigos de curso, viagem durante a qual realiza o seu primeiro filme (Au pays des mages noirs, 1946). Rouch decide então voltar-se para a etnologia e escreve uma tese sob a direcção de Marcel Griaule. Em 1954 realiza Les Maitres Fous, o seu primeiro filme a abranger um público não exclusivamente científico. Rouch é um dos teorizadores e fundadores da antropologia visual. Morre em 2004, em consequência de um acidente de carro no Níger.

Filmes em consultaLes Maîtres fous (1956, 28 min)Mammy Water (1956, 18 min)Jaguar (1955, 88 min)Moi, un Noir (1959, 70 min)Chronique d’un été (1960, 147 min), co-realizado com Edgar MorinLa pyramide humaine (1961, 88 min)Les veuves de 15 ans (1966, 24 min)La chasse au lion à l’arc (1967, 77 min)Petit à petit (1971, 92 min)Un lion nommé l’Américain (1972, 20 min)Les tambours d’avant / Tourou et Bitti (1972, 9min)Cocorico ! Monsieur Poulet (1974, 93 min)

Complementos: Entrevistas e conversas inéditas com e sobre Jean Rouch

Jean Rouch raconte Pierre-André Boutang (1992, 104mn)À propos de Jean Rouch, conversation Bernard Surugue/Patrick Leboutte (28mn)Le double d’hier a rencontré demain… (2004, 10mn) de Bernard Surugue e Jean Rouch

Moi un Noir, de Jean Rouch, 1959.

“Quando fiz filmes como Jaguar, ou Moi un Noir, foi para mostrar esse contacto difícil entre uma cultura tradicional e uma cultura dita industrial: e para além de dois filmes de ficção, não tinha outra resposta a esse problema essencial da África actual.” (Jean Rouch, in Emmanuel Gallet (ed.),

Jean Rouch, une rétrospective, Paris, Ministère

des Affaires Étrangères, 1981, p.14)

“O importante, tanto nas comédias ‘negras’ de Jean Rouch como nos seus filmes de possessão, é que sem ignorar nada das tradições dos seus amigos do Níger, faz deles não um objecto exótico de estudo mas os sujeitos da sua própria história, actuando juntamente com ele numa história presente, que é a história

do filme que se está a fazer. A passagem para a ficção, em jogo nestas ‘fábulas de cinema verdade’ [cinéfables vérité] (ficção improvisada para o filme ou ficção inerente ao teatro da possessão), permite a Rouch evitar dois obstáculos: o da museografia ‘primitiva’ e o da reconstituição naturalista à maneira de Flaherty.” (François Niney, L’épreuve du réel à l’écran:

essai sur le principe de réalité documentaire,

Bruxelles, Editions De Boeck, 2002, p. 161)

“Moi un Noir não é um filme de ficção nem um documentário, mas os dois ao mesmo tempo, ou melhor: é um multiplicado pelo outro.”(André Labarthe, Essai sur le jeune cinéma

français, Paris, Le Terrain Vague, 1960, p. 29)

“Para mim a única maneira de filmar é pois andar com a câmara, levá-la aonde for mais eficaz, e improvisar para ela um outro tipo de ballet no qual se torne tão viva como os homens que filma [...]. Assim, em vez de utilizar o zoom, o realizador operador de câmara penetra realmente no seu tema, precedendo ou seguindo o bailarino, o padre, o artesão; deixa de ser ele próprio para ser um ‘olho mecânico’ acompanhado por uma ‘orelha electrónica’. É esse o estranho estado de transformação da pessoa a que chamei ‘cine-transe’, por analogia com os fenómenos de possessão.”(Jean Rouch, “La Caméra et les

Hommes" (1973), in Claudine de France

(ed.), Pour une anthropologie visuelle,

La Haye, Mouton, 1979, p.53-71)

“O que Rouch é o primeiro a filmar já não são os comportamentos, ou os sonhos, ou os discursos subjectivos, mas a mistura indissociável que os une. [...] Criação colectiva, improvisação, espontaneidade, cumplicidade: sem dúvida os meios privilegiados que permitiram a Rouch atravessar a fronteira através da qual o observador de ritos se trans-formava, à sua maneira, em criador de ritos.”(Jean-André Fieschi, “Dérives de la fiction”,

in Dominique Noguez (ed.), Cinéma, théorie,

lectures, Klincksieck, 1978, pp. 260-261)

Gabinete Audiovisual e Gabinete de Leitura:

Aberturas públicas que os artistas em residência proporcionam ao público, o Atelier Real disponibiliza, durante tudo o ciclo, um Gabinete Audiovi-sual e um Gabinete de Leitura – dois espaços de consulta em livre acesso, onde os interessados podem consultar materiais audiovisuais e livros relacio-nados com o tema do ciclo, inclusive os que foram utilizados ou referencia-dos pelos participantes na elaboração das suas propostas.

O Gabinete Audiovisual desenvol-ve também uma programação própria relacionada com o tema da documen-tação. Disponibiliza retrospectivas (em DVD) de cineastas e artistas que trabalham a partir de uma postura documental e numa reflexão crítica sobre o género documentário.

Atelier Real, todos os dias da semana, 12h00 às 18h00 (ENTRADA LIVRE)

Jean Rouch Tribute Website (em Inglês): http://www.der.org/jean-rouch/content/index.php

Comité du Film Ethnographique, organizador do Festival do Filme Etnográfico fundado por Jean Rouch em 1982 (em Francês): http://www.co-mite-film-ethno.net/rouch/rouch.htm

Uma entrevista traduzida em Por-tuguês e comentada no âmbito de um artigo de José da Silva Ribeiro, do CEMRI - Laboratório de An-tropologia Visual, Universidade Aberta, Lisboa: http://www.doc.ubi.pt/03/artigo_jose_ribeiro.pdf

De uma forma geral, o artigo Jean Rouch do Wikipedia versão portu-guesa tem vários links para textos (em várias línguas) sobre a obra de Jean Rouch: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_Rouch (consulta-do em 28 de outubro de 2009)

Mais documentos, textos e imagens sobre a obra de Jean Rouch :

Bio

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Atelier Real Nov/Dez 2009 21

Tem surgido frequentemente, entre nós, a ideia difusa segundo a qual se assis-tiria a uma repolitização das artes em Portugal e que o dito movimento seria sobretudo evidente no domínio das ar-tes plásticas. De acordo com esta pers-pectiva, todo o trabalho de investigação determinado a averiguar as condições de existência do nosso país (designada-mente pela sua interpelação à luz de um passado comum), faria prova bastante do renovado interesse pela problemati-zação histórica e pelas questões éticas entre uma nova geração de artistas, ao mesmo tempo que assinalaria o retorno às formas e aos discursos socialmente implicados. Haveria, pois, ainda sob esta perspectiva, jovens artistas que, uma vez nascidos na convulsa década de 1970, hoje se dedicariam a projectos apostados em reaver a paisagem das re-lações e das circunstâncias de um tempo volvido – doméstico e nacional –, ficado por testemunhar e por debater tanto no seio familiar como no território das instituições escolares e culturais. O que ajudaria a compreender que alguns da-queles jovens tomassem doravante nos braços a responsabilidade de, pela via da produção artística, auscultar o não-dito e devolver à visibilidade o camu-flado na sociedade portuguesa. Talvez o retrato no seu conjunto tenha alguma verdade. Não considero, no entanto, o emprego da expressão “repolitização da arte” completamente justo.

O manifesto desejo de alguns artistas (entre os quais não tenho a certeza de me incluir) de recuar no tempo e ir ao encontro do contexto histórico em que se forjou uma memória colectiva é o pro-duto natural de uma súbita descontinui-dade ressentida nos processos de trans-missão da experiência e do saber entre as mais recentes gerações no nosso país, sendo a Guerra em África (colonial ou de independência, segundo o ponto de vis-ta) e o processo de descolonização talvez os incidentes mais emblemáticos. Mas o exercício da restituição histórica capaz de conferir uma coerência actualizada aos elementos até agora mantidos invisí-veis, amputados ou dispersos, depende do estabelecimento de uma proporção, isto é, do engenho da escala justa que os revele nas complexas relações em que tomam forma. É a descoberta da escala

que autoriza a análise e a elaboração de uma crítica de alcance estético e políti-co a um só tempo (ou “politicamente”, como insiste Godard), liberta das figu-ras da domesticidade firmadas contra o fundo vago da História e desenredada, não menos, das grandes narrativas ideo-lógicas incapazes de dar conta de outras conexões além das relações de natureza mecânica no interior de enquadramen-tos gerais.

Não basta, pois, para resgatar as his-tórias ao silêncio que ensombrou o cres-cimento da nossa geração, a procura imediata da exteriorização pela palavra, nem o descobrimento das imagens elidi-das depende, prioritariamente, do valor compensador da exposição. Inventariar ocorrências e exibir documentos não é o mesmo que dá-los a pensar no seu contexto originário nem ajuizar do pa-pel activo que lhes cabe, no mais subtil e decisivo dos acontecimentos que é o tempo presente. Será, antes, no encalço do parentesco entre a disparidade dos elementos históricos (nomeadamente os elementos documentais) e na proporcio-nada articulação entre esses elementos heteróclitos (e o espaço intervalar, noção central na iconologia de Aby Warburg [1], desenhado entre eles), as qualidades da imperceptibilidade e os momentos de suspensão, que poderemos aspirar a um mais adequado entendimento da trama instável das relações subjectivas, mne-mónicas e culturais entretecidas pelo antigo e pelo devir.

O problema da descoberta da esca-la justa é a grande dificuldade que se atravessa ao labor estético (que con-trariamente à actividade das ciências históricas não nasce do fundamento documental estável nem reconhece na objectividade uma obrigação), quando as artes tomam um conjunto de docu-mentos sociais e políticos como corpus privilegiado de trabalho. Desde o início do século passado que Maïakovski cha-ma a atenção para a necessidade de no-vas formas capazes de acompanhar e de fazer emergir ideias novas.

O ensaio da actualização (i.e., tornar presente e actuante) de um banco de do-cumentos implica a sua reinterpretação ética e estética, de modo a transpor a resistência com que os objectos do pas-sado desafiam o nosso espírito e o nosso

tempo. Tenho para mim que o alcance poético e intelectual de um projecto des-ta natureza depende estreitamente da delicada associação entre a capacidade de observação paciente, o rigor metodo-lógico da pesquisa e a incessante procu-ra da liberdade formal. Desde os anos 90 que artistas como a Ângela Ferreira [2] (uma das primeiras figuras portuguesas a debruçar-se sobre a rememoração do período colonialista e a condição pós-colonial) ou, de modo tangencial, o Pau-lo Mendes [3], trabalham com referência a elementos documentais relevantes (desde a fotografia à arquitectura) do passado nacional. Mais recentemente, artistas como Daniel Barroca [4] e, so-bretudo, Manuel Santos Maia [5], desen-volvem uma investigação em torno das possibilidades de actualização de exten-sas colecções documentais relacionadas com o regime fascista, a guerra colonial e a presença portuguesa em África. Os dois últimos casos são representativos de duas posturas distintas face ao docu-mento histórico: na primeira situação, os registos documentais (visuais e audi-tivos principalmente) são apresentados na sua dimensão parcial, distorcida e fantasmática, enfatizando a qualidade esquiva do passado, tornado perceptí-vel pela poética da sua ruína material; no segundo caso, o coleccionismo de testemunhos escritos, sonoros, visuais e objectuais, extraídos maioritariamente do património familiar, procura consti-tuir um espólio exaustivo e de aparência sistematizada (mas que se desdobra em exercícios de tradução, reinterpretação e complementaridade para melhor ilu-minar o documento) com o objectivo de tornar visíveis associações entre as his-tórias particulares e a macroestrutura ideológica do Estado Novo. São dois ca-sos específicos, no contexto da produção artística em Portugal, que geralmente se faz sentir pouco disponível para as in-terrogações sobre o tempo transcorrido e as suas reverberações no mundo con-temporâneo. Mas, ainda assim, o passa-do consagrado nos dois exemplos ante-riores, revela-se limitado a um determi-nado passado. E, neste ponto, a questão geracional (notada por quem identifica a tal “repolitização”) é determinante nas motivações essencialmente biográficas que conduzem alguns dos nossos artis-

tas a uma reflexão em torno da História, que – encontrando-se eles subjugados a um condicionamento original nem sempre consciente e relativizado –, não deixa portanto de ser a viagem a um pas-sado temático. Que razão existirá para que os trabalhos artísticos que vivem da investigação documental tratem quase exclusivamente (e numa abordagem por vezes atomizada) o período fascista por-tuguês? Não será necessário procurar compreender em profundidade as pon-tes reais entre os nacionalismos român-ticos de oitocentos ou o regime da Velha República, de um lado, e o Estado Novo, do outro? Ou ainda as violentas rupturas e as continuidades subterrâneas entre a ditadura e a nossa actual democracia? É sintomática a escassez na elaboração de relações de agravada complexidade entre documentos históricos, acompa-nhando um arco temporal amplo, com apoio numa escala mais justa.

De qualquer dos modos, e em adenda às considerações aqui expostas, talvez seja injusto falarmos de “repolitização das artes”, quando afinal não assistimos ainda a uma repolitização das formas. Nisto, estamos com Maïakovski.

Uma repolitização das artes?João Sousa Cardoso [6]

Notas do Editor[1] Abraham Moritz Warburg, mais conhecido como Aby Warburg (1866 – 1929), foi historiador de arte e teorizador da cultura. O tema da sua investigação foi a herança do Mundo Clássico nas mais variadas áreas da cultura ocidental e até ao Renascimento. A Warburg se deve o estabelecimento da iconologia como disciplina independente da história da arte. [2] Ângela Ferreira (Maputo, Moçambique, 1958). Estu-dou Artes Plásticas e Escultura na Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul. Representou Portugal na Bienal de Veneza em 2007, com o projecto ‘Maison Tropicale’. [3] Paulo Mendes (Lisboa, 1966). Estudou Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Artista plástico, comissário de exposições e produtor de projectos culturais. É fundador e membro da direcção da associação cultural PLANO 21. Mais infos: http://www.paulomendes.org/ [4] Daniel Bar-roca (Lisboa, 1976). Estudou Artes Visuais na Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha, foi nomeado em 2003 para o Prémio EDP Novos Artistas, e artista em residência na Kunstlerhaus Bethanien em Berlim, em 2008. Tem trabalhado de forma parale-la e articulada o desenho e o vídeo. Mais infos: http://www.danielbarroca.net/ [5] Manuel Santos Maia (Nampula, Moçambique, 1970). Estudou Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. É um dos protagonistas da cena artística desta cidade, não só pelo seu percurso enquanto criador mas tam-bém devido ao papel desempenhado na dinamização de ideias e na organização de eventos. Sobre o pro-jecto Alheava, consultar: http://manuelsantosmaia-alheava.blogspot.com/ [6] João Sousa Cardoso (Vila Nova de Famalicão, 1977) é artista plástico, escreve regularmente crítica e ensaio. Doutorado em Ciências Sociais, pela Universidade Paris Descartes (Sorbon-ne), lecciona na Universidade Lusófona.

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Foto de Sete Tele e Rachel Arianne Ogle

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Atelier Real Nov/Dez 2009 23

A premissa inicial de FORaBODY redu-ziu-se à palavra “compartimentação”.

Decidimos explorar este termo de classificação e de codificação. Por acaso o material que se encontrava imediata-mente à nossa disposição e que decidi-mos utilizar, era um monte de lixo dei-xado no estúdio, proveniente das activi-dades de dança do fim de semana prece-dente. O processo de selecção constituiu uma experiência com a duração de cinco horas. Documentámo-lo fotografando várias etapas da nossa progressão. Por acaso a nossa casa estava nesse preciso momento a ser assaltada, um facto que desconhecíamos até ao final da nossa selecção. A polícia notificou-nos e solicitou a nossa presença no posto, para identificarmos os artigos recuperados pelos agentes. No posto da polícia informaram-nos sobre os detalhes do roubo e sobre a prisão dos malfeitores. Documentámos igualmente o processo de identificação dos nossos pertences. Ficou nesse dia inexoravelmente confirmada a conexão entre o nosso trabalho de estúdio e a nossa vida doméstica.

O objectivo inicial da exploração da compartimentação foi tangencialmente desviado por via de circunstâncias im-previstas. Essa tangente, objectivo se-cundário, redefiniu o trabalho, apoiando o objectivo inicial. O tema da categoriza-ção/classificação era evidente em ambos os níveis. Reconhecer a importância e a incorporação deste paralelismo foi um factor determinante na construção do trabalho.

O desafio seguinte foi conceber uma forma adequada à apresentação desse resultado. Após uma quantidade consi-derável de explorações e de discussões, estabelecemos finalmente um esquema que permite a visualização simultânea dos dois enredos da história. O processo de fabricação deste mapa foi igualmente documentado com fotografias.

O projecto (em processo) FORaBO-DY será submetido a uma redefinição e adaptação às novas influências que surgirão naturalmente durante a nossa residência no Atelier REAL.

Sete Tele & Rachel Arianne Ogle,

Setembro 2009.

SETE TELE (Austrália)

Artista na área da dança, intérprete e coreó-grafo em várias companhias de dança australianas e internacionais. É um membro activo da estrutura Strut Dance (www.strutdance.org.au).

Enquanto bailarino e intérprete, integrou

várias companhias, de entre as quais o Teatro Deckchair, a Companhia Didier Théron, e a Companhia de Teatro de Perth. Em 2005, recebeu o prémio inaugural de dança da melhor performance desempenhada por um bailarino masculino [WA Dance Award for Outstanding Performance by a Male Dancer]. Em 2007 foi-lhe atribuído o prémio de dança

do melhor professor [WA Dance Award for Outstanding Teacher]. Enquanto professor, tem orientado várias residências para comunidades regionais remotas da Austrália, e também organiza workshops para pessoas com deficiências. Actualmente trabalha num projecto de solo sobre a perda de memória – “Crossfade”.

Bio

Programa de Residências Artísticas

SETE TELE & RACHEL ARIANNE OGLE Austrália [em residência de 24 de Novembro até 12 de Dezembro]

Atelier Real, 12 de Dezembro, 18H00 (Entrada livre, lotação limitada)

FORaBODY

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Sábado 28 de Novembro 18h00 Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea

Fora de Campo Sobre o arquivo de cinema de Moçambique

de Catarina Simão (Portugal).Com a participação de Alex Arteaga (Espanha-Alemanha), Jorge Blasco Gallardo (Espanha) e Ros Gray (Inglaterra).

Os documentos da investigação do projecto ‘Fora de Campo’ poderão ser consultados entre 30 de Novembro e 4 de Dezembro das 10h00 às 18h00 (excepto feriado) e no dia 5 de Dezembro entre as 14h30 e as 19h30.

Sábado 5 de Dezembro16h00 Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea

Visita comentada dos documentos do projecto “Fora de Campo – sobre o arquivo de cinema de Moçambique” por Catarina Simão.

Sábado 12 de Dezembro18h00 Programa Residências artísticas do Atelier Real

Sete Tele & Rachel Arianne Ogle (Austrália)Uma apresentação do(s) resultado(s) da residência artística a ocorrer entre 24 de Novembro e 12 de Dezembro.

Próximas apresentaçõesSábado 23 de Janeiro18h00 Ciclo Restos, rastos e traços. Práticas de documentação na criação contemporânea

Apresentação do projecto de investigação de

Bettina Wind & Alexandra Ferreira (Alemanha-Portugal)

Sábado 20 de Fevereiro 18h00 Programa Residências artísticas do Atelier Real

Rui Catalão (Portugal)Uma apresentação do(s) resultado(s) da residência artística a ocorrer entre 1 e 20 de Fevereiro.

Programa

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RE.AL | Produtora Direcção geral e artística: João Fiadeiro Artistas representados: João Fiadeiro, Cláudia Dias e Gustavo Sumpta Direcção de produção: Sofia Campos Gestão financeira e administrativa: Cláudia Nunes Secretariado: Alaíde Costa Contabilidade: Saldo Certo/Rui Silva Assessoria jurídica: Duarte Gorjão Henriques Limpeza: Rita Guimarãeswww.re-al.org [email protected]

Atelier Real | Programação e residência de artistas Direcção artística: David-Alexandre GuéniotAgradecimentos à Bomba Suicida e à Lia Guerreiro Marques pelo apoio à residência artística de Patrícia Caballero, ao Alkantara pelo apoio ao lançamento do Ciclo “Restos, rastos e traços” e à residência artística de Catarina Simão.

www.atelier-real.org [email protected]

Programa Editor: David-Alexandre Guéniot Tradução e revisão (inglês, francês, português): Paula Caspão Grafismo: Linda Romano Textos e imagens, copyright dos autores.Agradecimentos: Patrícia Almeida, Daniel Barroca.

RE.AL, estrutura financiada pela DGArtes (Direcção-Geral das Artes) / MC (Ministério da Cultura).

Atelier Real Rua Poço dos Negros nº55. 1200-336 Lisboa T (+351) 21 390 92 55 F (+351) 21 390 92 54 e: [email protected]

www.atelier-real.org

Autocarros nº60, 706, 727, 794 (paragem Conde Barão / Av. D. Carlos I) Eléctricos nº25 (paragem Conde Barão), nº28 (paragem R. Poiais S. Bento ou Cç. Combro) Metro Linha Verde, Linha Azul: Estação Baixa-Chiado: saída Largo do Chiado. Comboio Linha de Cascais: Estação Santos.

Financiamento

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Parcerias