leandro durazzo - o amor é um brownie
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segundo livro de poemas de Leandro DurazzoTRANSCRIPT
o amor é um brownie
leandro durazzo
Ela arrancou seu coração por trás, pelas costas, quando ele seguia embora, os dois pésna estrada afora e ele nem notou, as unhas rompendo a carne e o grito do fio de linhoque se esgarçava, ele caminhava, ela segurava na ponta dos dedos o músculo quepulsava feito um catavento, vermelho e preto, triste e saltitante, palpitando um dia oudois, deixando morrer a voz, a estrada puxando as pernas e ela arrancando aorta,mordendo veias e sangue, jogando o resto no mangue e ele caminho andando, e os doisse desesperando. Ele por ter saído, ela chorando em fome.
flor
a cada fruta que comoeu te comoa cada dente que arrastaa pele o sumo a cascaa cada dentada certaa cada mordida adentrote trago eu pra mais pertoaos poucos vou te comendocomo o mar come o deserto
canção dialógica
ela me disse que trabalha muitoque acorda cedoque não tem mais tempo pra me ver cantar
ela me disse que não sabe ondedesde aquela noiteo amor está
ela me disse e disse novamenteque daqui pra frentenão seria assim
ela me disse, mas já não ouviae o que sentiajá chegara ao fim
eu disse a ela quepor mais que doasempre é coisa boaesse tal mudar
eu disse e digoa mim mesmo mintoe seguindo sintoa mudança andar
ela foi meu hospíciosede e serenidadeela foi alegria foi broto e flor e maldadesilêncio lacrado e carrêgo inclementeela foi o buraco na gentea bala varando a varanda geladade neveela foi brevemas foi tantoque me espanta o espanto de estar por aquisabendo que um dia morrie hoje canto
Teu nome foi meu mantra, Florine. Florine. Espírito de um tempo. Teu nome foi ponta dopensamento, que puxou tudo, que conduziu meus dias, teu nome foi meu mantra, Florine,antigamente, agora não. Agora, quando aparece, é pedaço de oração para outro tempo, pedaço deretrocesso. É como varrer o chão, teu nome, meu nome, tudo. Sempre há poeira nos cantos, sempreum caco de vidro, um grampo em papel antigo, sempre o que varrer. É como varrer o chão, juntar opó, teu nome, uma oração, espírito de um tempo que não. Teu nome, meu mantra, quebrou como sequebraram os vasos de planta do meu avô. A memória de minha avó. Meu contato com os meuspais. A tranquilidade. O salário de minha irmã, quebrou. Teu nome, meu mantra, meu ano, essesmeses de tempo escorrido, tudo isso se viu partido enquanto meu pé andou. Procurando um outropasso, procurando um outro porto, procurando fugir da neve, procurando fugir do fogo, teu nome,meu mantra. Reconhecer. Repetição. Teu nome na ponta de um outro mundo. Teu nome são e salvona ponta de outro mundo. E o meu, não. O meu, agora, depois de morto, olhando tudo. Agradecendoesses doze meses de danação, de corrida russa, de valsa turca, de perdição. Reconhecer. Morte erepetição. Recomeço, renascença, espaço desmesurado para que possa errar de novo. Teu nome,meu mantra, um rogo.
você disse, belaque não era preciso assim ser tão feliznão era assim pra tudo issovocê disse, eladisseeu ouvie então não fui
você disse – desfaça essa felicidade– espantando as moscas do sorrisovocê disse e depois dissotinha mais nada a ser dito
uma vez, no aeroporto de charleroibélgicaperdi algumas moedas na máquina que dispensaalimentação pouco saudável em aeroportos
não lembro agora se eu tentavapegar uma lata de coca ou se eraum waffleum gaufre
curiosidade: em liège, coma sempre gaufre de bruxelasbruxellesem bruxelas, de liège
não me pergunte o motivosó sei que é isso
e no aeroporto de charleroibélgica, anos atrásuma daquelas malditas maquinarias comeu minha pratae não me deu, no de volta, sequer uma lataum wafflenada
fiquei dez minutos bem puto, bem putona fila do voo, crianças chorandovelhos reclamando com a moça do aviãoComoNãoPossoCarregarEstaBagagem?compras caindo no chão e eu bem putopelas moedasque a máquina de charleroi me comeusem que eu comesse nada
era uma coca ou um waffle?por que isso, agora, me incomoda?
não consigo lembrar se era coca
talvez o resto do dia seja passadonessa viagem pela cabeçatentando lembrar no que foi que as moedas de charleroise perderam
dez minutos emputecido, na fila do vooaté que então entendique não adianta ficarirritadonunca, por nadanem coca nem gaufre nem waffle nem moneynem elaque ficou do lado de fora do aeroporto de charleroibélgica
o amor é um browniefeio, duro, ressecadocomprado numa estação de subwayàs três da madrugada, no escurocom moedas tateadaso amor é um brownie
o amoré uma cerveja quente e já chocanão!, são duasduas cervejas chocas e quenteso amor é a gente
o amor é tomate de fim de feiramais triste esmagado mais plofque os tomatinhos da piadaatravessando a rua sem olharpra nadao amor é uma fruta aguada
o amor é o filhodaputa do gordinho que chega atrasadona fila do ônibus que leva as crianças pro orquidárioo amor é o salafrário do gordinhoque vai apanhar danado no intervalona hora do recreio esse gordinhocoitadovai caber no raloo amor é o que chega atrasado
o amor é uma diaba de palavra que ritoda vez que olho pra elatoda santa vez
o amor é uma moléstiaé uma febre tifóidemiopia certeira que chega na horana horada leitura do último poema
céu
lá fora, pela janelao céu amanhece vermelho e os helicópterosinfestam o ar da cidade
parados, por dentronós dois nos atemos ao fatode que o céu amanhece vermelhoe grato
a despeito dos helicópterosa despeito do ar, da cidadea despeito da banalidade do mal
olhamos o céu lá de forae tá tudo legal
cigarraa água de meu chuveirocanta
formigaeume banho
tudoé mistérioem meio à brumatudo é mistério
a nuvem ciganaa nuvem nenhumae o rosto voltadopro alto
tudo é evolaçãoe cor
tudo é imensidãoem suma, tudo é dizer ao sulao céutudo é mistério e vozalguma
porque se chamasse enganotambém se chamava aurorae outras destemperanças
porque se dançasse em rodatambém chegaria ao fundode mar, de cratera e poça
porque se pudesse olharpra tudo com outros olhosporque se pudesse pôras mãos sobre os mesmos sonhosde novo faria tudo
mas nunca mais nunca igual
porque se chamasse encantoporque se soubesse o quantoo amor andava perdido
faria de tudo um poucoe mesmo que fosse loucolançava-se ao perigo
resignou-se a ter no peito uma feridaaberta como um tronco de calvário
às vezes despontavam alguns brotosnos ramos temperados pelo orvalho
acostumou-se, assim, a ter nos ombrosa árvore que o mundo carregava
resignado, aberto, solto, roucoem cada dia vão do calendário
eu não me desgasto, eu não me desgastojá me desgasteilarguei-me aos pedaçoscaminhei soltandofarpa, esporo, ratosjá me encaminheipelo devastado
já não me desgasto
já não sobra nadasobre meus sapatos
administrar a faltaa dívidaa dúvida dividida entre a fatura e a esperança
admoestar a faltaa dívidaa dúvida que se traveste em cínicacerteza absoluta
há de admirar-seenfima vidaessa cômica essa trágicafilha da puta
seguir o cursoo fluxoa calmaé o que diz a sabedoriaantiga
mas somos jovens, mas somos burrosvamos ao mundocomo quem briga
o pesar de orfeué olhar pra trás
não sair do infernosem achar que trazna ponta do versoum amor eterno
o pesar de orfeué olhar demais
a mesma velha história angustia nossas tripasa mesma velha história antiga
que fazerse somos animais mas minha psiquêé de uma pedra?
a mesma história antiga, a mesma merda
recosturar o passadoo presentea presença
ter dedos levespassos levesmente tesa
calmapalmas unidasvida
reconstruir a existênciareencontrar a saída
não é na bolívia que estála pazmas dentro de ti
não desesperarnão desesperarnão entristecernão desistir
respirarnão é em la paz que vocêestá
é na paze na pazapenas
lar
água fervidae floresbanhadas em águafervida
chá de jasmimpernas cruzadasrespiração
vidaestrada
água fervidaflores banhadas
guardar dinheiro no colchãoter um colchãoguardar pouco dinheiro no colchãoter um chãoum teto e um pouco de dinheiro no colchãoa cozinha cheia de sementes e legumesfrutas, verduras e pouca genteo som rodando no som e o mar vagueando no marrepousarter dinheiro no colchão, não muitonãoter um colchão e os pés pro altocomeçar
certo ele que sabe acalmar mesmo tendo passado por noites sem tetoinfartos, mordidas de sucuri que não tragaramseus ossos até o inferno, certo ele queouviu o cintilar de estrela e água, que se atiroupor entre a mata na procura do que não achaestando em pé, estando em coma, estando atrás do que não se encontraem lugar nenhumcerto ele que se arremete na madrugadacom as mãos dadascom filho eternoco'abençoadados olhos férteis das águas clarascerto o relógio biológico da casa armada em pés descalçoso coração no alvo e a flor abertacerto ele, certa
fotografar fótonsna cabeça de um fósforo acesoenquantosobre a mesanem ela nem eu mesmo nos dispomos
lavar panoslençóis e almofadas ao relentoouvir a voz que chama a vizinhançaseguir a contradança de outro tempo
passar um café fresco ao fim da tardepra nós, pra mim, pra quem seja a visitadespertar do cochilocoçar a vistae ver onde se esconde o menino
encher filtro de barroas garrafinhas que vão já pra geladeiracatar fruta madura, pitangueiraamora, umbu, cajá, banana e pinha
saber que horas são sem que se saibasem que sevejasem que preciseprecisar horasem um relógio, qualquer ponteiro
e contemplar a chamafogareiroe contemplar a noitea casa acesa
deixe que façamcomo bementenderem, deixeque saiamquando bem quiseremfaz vista grossatapa ouvidosfecha tua bocavem comigo
em silêncioe despidos
limparas migalhasda mente
deixá-las cairsobre o chãoe varrer
lavarduas mãosque seguram vassoura
viver
eu pensava caminhando na ruana calçada batendo um vento tremendosobre ficar, sobre ir, sobre o momento depoisdo outro eu pensava
e uma borboleta voou por entre os ramosde uma samambaiapassou pelos meus olhos enquanto euolhavado lado de lá da ruana outra calçadabeirando o barpixinguinha se encaminhandoenquanto eu pensavana ruasobre ficar, e ir
e passou uma criança, na encruzilhadae riue eutambém