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Livro de Lawrence Block da colecção Gato preto, publicada na Cotovia

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Lawrence Block

NA LINHA DA FRENTE

tradução de

Julia Romeu

Cotovia

Título original: Out on the cutting edge

Copyright © Lawrence Block, 1989Publicado mediante acordo com o autor

(Baror International, Inc., Armonk, Nova Iorque, E.U.A.)© Edições Cotovia, Lisboa, 2011

Tradução: Julia RomeuRevisão e adaptação ao português de Portugal:

Rute Gil

ISBN 978-972-795-313-4

Para o meu primo Jeffrey Nathan1943-1988

Estou num dos antrosDa Rua 52Inseguro e amedrontadoAo morrer a sagaz esperançaDe uma década desonesta:Ondas de raiva e medoCirculam sobre o luminosoE escurecido solo da terraObcecando a nossa vida privada;O inominável cheiro da morteOfende a noite de Setembro…

W. H. Auden“1.º de Setembro de 1939”

Quando imagino o que se passou, é sempre um dia perfeito deVerão, com o sol a pino num vívido céu azul. Era Verão, claro,mas não tenho forma de saber como estava o tempo nem se acon-teceu durante o dia. Alguém mencionou a luz da lua ao relatar oincidente, mas essa pessoa também não estava presente quandoaconteceu. Talvez a sua imaginação tenha fornecido a lua, assimcomo a minha escolheu um sol forte, um céu azul e algumasnuvens macias espalhadas aqui e ali.

Eles estão no alpendre de uma casa de campo de ripas demadeira branca. De vez em quando vejo-os dentro da casa, senta-dos na cozinha a uma mesa de pinho; mas, na maioria das vezes,estão no alpendre. Há um jarro grande de vidro cheio de vodkacom sumo de toranja, e eles estão sentados no alpendre a beberesse cocktail, que se chama salty dog.

De vez em quando imagino-os a andar pela quinta, de mãosdadas, ou com os braços enlaçando a cintura um do outro. A rapa-riga bebeu bastante, o que a deixa alegre, tagarela e um poucocambaleante. Muge para as vacas, cacareja para as galinhas, grunhepara os porcos e ri do mundo inteiro.

Ou vejo-os a passar por entre algumas árvores e logo a surgirna margem de um riacho. Alguns séculos atrás, havia um francêsque pintava sempre cenas rústicas idealizadas, com pastores ecamponesas descalços a brincar na natureza. Poderia ter sido elea pintar esta particular ficção da minha imaginação.

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E agora estão os dois nus, ali na margem do riacho, a fazeramor na relva fresca.

A minha imaginação é limitada nesta esfera, ou talvez estejaapenas a respeitar a privacidade deles. Tudo o que mostra é umplano aproximado do rosto. Diversas expressões surgem na caradela, e são como notícias de jornal vistas em sonhos, a mudar e asair da objectiva antes que eu possa lê-las.

Nesse momento, ele mostra-lhe a faca. Os olhos dela arrega-lam-se e algo neles desaparece. Uma nuvem desloca-se paracobrir o sol.

É como penso ter acontecido, mas não creio que a minha ima-ginação se aproxime da realidade. Como poderia? Até mesmo orelato das testemunhas é pouquíssimo fiável, e eu estou longe deser uma testemunha. Nunca vi a quinta. Nem sei se há um riachona propriedade.

E também nunca a vi a ela, sem ser em fotografias. Olho parauma delas agora e sinto que quase consigo ver a expressão amudar no rosto dela, os olhos a arregalarem-se. Mas claro quenão é verdade. Como em todas as fotografias, o que vejo é ummomento congelado no tempo. Esta fotografia não é um holo-grama ou algo que se modifique de acordo com o ângulo. Nelanão se pode ler o passado nem o futuro. Se olharmos para o verso,encontramos lá o meu nome e o meu telefone, mas, quando avoltamos a ver, vemos a mesma pose de sempre, os lábios entrea-bertos, os olhos a encarar a câmara, a expressão enigmática. Pode-mos examinar esta fotografia o tempo que quisermos que ela nãorevelará segredo algum.

Eu sei do que falo. Já a examinei o bastante.

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Existem três grandes companhias de actores em Nova Ior-que, e há alguns anos um actor chamado Maurice Jenkins--Lloyd resumiu-as para quem quisesse ouvir.

— Os Players são cavalheiros que fingem ser actores —explicava. — Os Lambs são actores a fingir ser cavalheiros.E os Friars… os Friars não são nem uma coisa nem outra e fin-gem ser as duas.

Não sei a que categoria pertencia o Jenkins-Lloyd. Quandoo conheci, estava quase sempre bêbado, e fingia estar sóbrio.Costumava beber no Armstrong’s, que ficava na Nona Ave-nida, entre as ruas 57 e 58. A sua bebida preferida era uísqueDewar’s com soda, que conseguia beber o dia todo e a noitetoda sem dar muito nas vistas. Nunca levantava a voz, nunca setornava agressivo ou caía da cadeira. Às vezes ficava com a vozum pouco pastosa já de madrugada, mas nada mais do queisso. Fosse um Player, um Lamb ou um Friar, o Jenkins-Lloydbebia como um cavalheiro.

E morreu disso. Eu ainda bebia quando ele morreu de umaruptura espontânea do esófago. Não é a principal causa demorte associada a alcoólicos, mas não se vê acontecer muitocom outras pessoas. Não sei bem o que a provoca, se o efeitocumulativo de verter álcool goela abaixo ao longo de anos ouo esforço de vomitar uma ou duas vezes todas as manhãs.

Não pensava no Maurice Jenkins-Lloyd há muito tempo.Pensei nele agora porque estava a caminho de uma reunião dos

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Alcoólicos Anónimos no segundo andar do que costumava sero Clube Lambs. Há alguns anos, aquele prédio branco ele-gante da rua 44 Oeste tornara-se um luxo demasiado caro paraos Lambs, por isso venderam a propriedade e dividiram umespaço com outro clube noutro local do centro de Manhattan.Uma igreja qualquer comprara a propriedade, que agora abri-gava um teatro experimental e cedia as instalações para outrasactividades. Nas noites de quinta-feira, um grupo dos Alcoóli-cos Anónimos chamado Um Novo Começo pagava uma taxasimbólica para reunir-se numa das salas.

A reunião ia decorrer das oito e meia às nove e meia. Che-guei mais ou menos dez minutos antes e apresentei-me aocoordenador do programa. Peguei num café e sentei-me nolugar que ele indicara. Havia oito ou dez mesas de cerca dedois metros dispostas num rectângulo aberto, e a minha cadeiraficava no canto mais distante da porta, ao lado da mesa docoordenador.

Às oito e meia havia mais ou menos trinta pessoas sentadasà volta das mesas, a beber café em copos descartáveis. O coor-denador iniciou a reunião e leu o preâmbulo, depois pediu quealguém lesse um excerto do quinto capítulo do livro AlcoólicosAnónimos. Forneceu também algumas informações: haveriaum baile naquele fim-de-semana no Upper West Side; um grupodos AA celebraria o aniversário da sua fundação em MurrayHill; e o grupo Alanon tinha agora mais um horário livre parareuniões. Além disso, um grupo que se reunia sempre numa si-nagoga da Nona Avenida ia cancelar as próximas duas reuniõespor causa dos feriados judaicos.

De seguida o coordenador anunciou:— O nosso orador hoje é o Matt, do grupo Mantendo a

Simplicidade.Eu estava nervoso, claro. Começara a ficar nervoso no

minuto em que entrara na sala. Fico sempre assim antes deuma reunião, mas passa. Os participantes aplaudiram educa-

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damente quando o coordenador me apresentou e, no mo-mento em que pararam, eu disse:

— Obrigado. O meu nome é Matt e sou alcoólico. — Nessemomento, o nervosismo desapareceu. Contei a minha história.

***

Falei durante cerca de vinte minutos. Não me lembro doque disse. Basicamente, o que tu fazes é contar como as coisascostumavam ser, o que aconteceu e como são agora. Foi o queeu fiz, mas o relato é sempre diferente.

As histórias de algumas pessoas são tão inspiradoras quepoderiam ser transformadas numa mini-série. Contam comolevavam uma vida miserável em East St. Louis e como agora sãopresidentes da IBM e já vão ser novamente promovidas. Eu nãotenho uma história deste tipo para contar. Ainda moro no mes-mo sítio e faço a mesma coisa na vida. A diferença é que costu-mava beber e agora não bebo. Nada muito impressionante.

Quando terminei, as pessoas aplaudiram mais uma vez.Passaram um cesto de mão em mão, para que cada um colo-

casse um dólar, uma moeda de vinte e cinco centavos ou nada,para ajudar nas despesas da renda e do café. Depois de um inter-valo de cinco minutos, a reunião recomeçou. O formato variade lugar para lugar: nesta, deixam que todos falem um pouco.

Havia cerca de dez pessoas na sala que eu reconheci e maisou menos uma meia dúzia que me pareceu familiar. Uma mulherde maxilar proeminente e farta cabeleira ruiva referiu-se aofacto de eu ter sido polícia.

— O senhor pode muito bem já ter aparecido na minha casa— disse ela. — A polícia ia lá uma vez por semana. O meumarido e eu bebíamos e discutíamos, um vizinho chamava apolícia e vocês apareciam. O mesmo polícia foi lá três vezesseguidas, e eu comecei a ter um caso com ele. Depois zan-gámo-nos, e alguém chamou a polícia. Os vizinhos estavam

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sempre a chamar a polícia para ir a minha casa, mesmo quandoeu já tinha um polícia em casa.

Às nove e meia rezámos um pai-nosso e encerrámos a reu-nião. Algumas pessoas vieram apertar-me a mão e agradecer-mepor ter sido o orador. A maioria saiu a correr para poder fumar.

Lá fora a noite estava fresca, pois era início de Outono. O Ve-rão fora horrivelmente quente e as noites frias da nova estaçãoeram um alívio. Andei meio quarteirão na direcção oeste e umhomem saiu de uma porta e pediu-me uns trocos. Usava umcasaco que não combinava com as calças e uns ténis velhos semmeias. Parecia ter trinta e cinco anos, mas devia ser mais novo.Morar na rua envelhece.

O homem precisava de tomar banho, barbear-se, cortar ocabelo. Precisava de muito mais do que eu podia oferecer-lhe.Limitei-me a dar-lhe um dólar, que tirei do bolso das calças elhe coloquei na palma da mão. Ele agradeceu e pediu a Deusque me abençoasse. Comecei a andar e estava quase na esquinada Broadway quando ouvi alguém chamar-me pelo nome.

Virei-me e reconheci um homem chamado Eddie. Estiverana reunião e eu já o tinha visto outras vezes. Andava depressapara me alcançar.

— Olá, Matt — disse o Eddie. — Quer beber um café?— Bebi três cafés na reunião. Acho que vou para casa.— Vai para norte? Vou consigo.Seguimos pela Broadway até à rua 47, depois pela Oitava Ave-

nida, virámos à direita e prosseguimos para o norte de Manhat-tan. Cinco pessoas pediram-nos esmola pelo caminho. Eu disseque não a duas, dei um dólar a cada uma das outras três e recebium agradecimento e uma bênção. Depois da terceira ter guar-dado o dinheiro e me abençoado, o Eddie comentou:

— Você deve ser a pessoa com o melhor coração da cidade.Então, Matt, não sabe dizer não?

— Às vezes digo.— Mas a maioria das vezes diz sim.— A maioria das vezes digo sim.

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— Vi o presidente da câmara na televisão outro dia. Expli-cou que não devemos dar dinheiro às pessoas na rua. Disse quemetade dos mendigos é viciada em drogas e que só vai gastar odinheiro em crack.

— Pois, e a outra metade vai esbanjar tudo em comida eabrigos.

— Disse também que existem camas e refeições gratuitas nacidade para quem precisar.

— Pois é. Mas por que será que tanta gente dorme na rua ecome o que encontra no lixo?

— O presidente também quer acabar com esses gajos quelavam os vidros dos carros. Sabe, esses que limpam o pára-bri-sas mesmo que não esteja sujo e depois pedem uns trocos?Disse que não gosta de ver pessoas a trabalhar assim na rua.

— Tem razão — respondi. — E olhe que são uns tipos for-çudos. Deviam estar a assaltar pessoas ou a roubar lojas deconveniência. Alguma coisa menos visível.

— Parece que não gosta muito do presidente da câmara.— Não é dos piores. Deve ter o coração do tamanho de uma

uva-passa, mas acho que isso é um pré-requisito da função.Tento não prestar muita atenção a quem é o presidente ou aoque ele diz. Dou algum dinheiro todos os dias, só isso. Não meprejudica, e também não ajuda muito quem precisa. Mas é oque tenho feito ultimamente.

— Há muita gente na rua a pedir esmola.E havia mesmo. Era possível vê-los por toda a cidade, a dor-

mir nos parques, nas estações de Metro, de comboio e nas rodo-viárias. Alguns eram malucos, alguns eram viciados em crack, eoutros apenas pessoas que tinham ficado para trás na luta pelavida e acabado sem ter onde morar. É difícil arranjar empregoquando não se tem casa, porque é preciso manter-se suficiente-mente apresentável para se ser contratado. Mas alguns até ti-nham empregos. É difícil encontrar um apartamento em NovaIorque, e mais difícil ainda é mantê-lo; somando a renda e todasas taxas, às vezes são necessários mais de dois mil dólares para

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entrar pela porta de um apartamento. Mesmo a trabalhar, comoé possível poupar tanto dinheiro?

— Graças a Deus, tenho um apartamento — disse o Eddie.— É o apartamento onde passei a infância, acredita? Um quar-teirão à frente e dois para lá, perto da rua 10. Não é o primeirosítio onde morei na vida. O primeiro prédio foi demolido,ficava naquele terreno onde construíram o colégio novo. Mu-dámo-nos quando eu tinha, não sei, acho que uns nove anos.Deve ter sido, porque lembro-me que foi na terceira classe.Sabe que já estive preso?

— Mas não na terceira classe.O Eddie riu-se.— Não, um pouco mais tarde. O meu pai morreu quando

eu estava na cadeia em Green Haven, e quando saí não tinhaonde ficar, por isso fui morar com a minha mãe. Não paravamuito em casa, era só um lugar para deixar as roupas e as minhascoisas, mas depois ela adoeceu e comecei a passar lá mais tempo.Quando a minha mãe morreu, fiquei com o apartamento. É pe-queno, tem só um quarto e fica no quarto andar, não tem eleva-dor, mas a renda é controlada pelo governo, Matt. Só cento evinte e dois dólares e setenta e cinco centavos por mês. Qualquerhotel decente nesta cidade custa isso por uma noite.

E o mais incrível é que aquela parte de Nova Iorque estavaa ficar cada vez mais valorizada. A Hell’s Kitchen foi um lugarviolento e triste durante cem anos, mas agora os agentes imo-biliários chamavam Clinton ao bairro, transformaram os pré-dios velhos em lugares modernos e pedem até cem mil dólarespelos apartamentos. Nunca entendi para onde foram os pobresque lá moravam e de onde surgem os ricos.

O Eddie disse:— A noite está linda, não está? Claro que daqui a pouco

vamos queixar-nos do frio. Num momento morremos de calore no outro perguntamos onde está o Verão. É sempre assim,não é?

— É o que dizem.

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O Eddie tinha trinta e muitos anos, cerca de um metro esetenta, e era magro, com a pele muito branca e uns pálidosolhos azuis. O cabelo castanho-claro estava a cair e, comotinha a testa grande e o queixo para dentro, parecia-se umpouco com um coelho.

Mesmo que não me tivesse contado que já tinha estadopreso, eu provavelmente teria adivinhado, embora não saibaexplicar muito bem porquê. Só sei que o Eddie tinha cara deintrujão. Entre o valentão e o dissimulado, uma atitude que semanifestava fisicamente na maneira como inchava o peito eolhava sem parar de um lado para o outro. Não era muito óbviomas, na primeira vez em que o vi numa reunião, pensei: “Estegajo já fez merda e já deve ter ido para a cadeia por causa disso”.

O Eddie sacou de um maço de cigarros e ofereceu-me. Recu-sei com um gesto de cabeça. Tirou um e riscou um fósforo paraacendê-lo, protegendo a chama do vento com as mãos em con-cha. Soltou uma baforada e depois segurou o cigarro entre opolegar e o indicador, observando-o.

— Eu devia parar com esta merda — afirmou. — Fiqueisóbrio, mas vou morrer de cancro. Qual a vantagem?

— Há quanto tempo parou de beber?— Quase sete meses.— Muito bom.— Já participo no programa há quase um ano, mas demorei

algum tempo a parar de vez.— Eu também.— Sim? Ainda bebi durante um ou dois meses. Depois pen-

sei que podia fumar erva, porque afinal o meu problema eracom o álcool. Mas acho que por fim entendi o que diziam nasreuniões e acabei por largar os charros também. Sou total-mente abstémio há sete meses.

— Que bom.— Pois é, acho que é.— Quanto aos cigarros, dizem que não é boa ideia tentar

fazer tudo ao mesmo tempo.

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— Eu sei. Às vezes penso que, quando completar um anosem beber, vai estar na altura de largar isto.

O Eddie deu uma longa passa no cigarro e o morrão brilhouno escuro, vermelho.

— Moro aqui perto. Tem a certeza de que não quer beberum café?

— Tenho, mas faço-lhe companhia até à Nona Avenida.Atravessámos um quarteirão comprido e parámos na

esquina a conversar durante alguns minutos. Não me lembrobem sobre o que falámos. Sei que o Eddie perguntou:

— Quando o coordenador o apresentou, disse que o seugrupo era o Mantendo a Simplicidade. Esse é o grupo que sereúne na igreja de São Paulo Apóstolo?

Confirmei.— O nome oficial é Mantendo a Simplicidade, mas toda a

gente lhe chama o grupo da São Paulo Apóstolo — expliquei.— Costuma ir sempre lá?— Quase sempre.— Vai na volta e ainda nos cruzamos por lá. Tem telefone,

Matt?— Tenho. Moro num hotel chamado Northwestern. É só

ligar para a recepção que eles passam-me a chamada.— E peço para falar com quem?Olhei para ele e, após alguns segundos, comecei a rir-me.

Tinha algumas fotografias 5 x 7 no bolso da camisa e, na partede trás de cada uma, havia um carimbo com o meu nome etelefone. Tirei uma e dei-lhe. Ele leu e disse:

— Matthew Scudder. Com que então é assim que se chama?Olhou para o verso da fotografia.

— Mas este não é o Matt.— Sabe quem é?O Eddie balançou a cabeça.— Não, quem?— Uma rapariga de quem estou à procura.

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— Dá para perceber por quê. Encontre mas é duas, e dê-meuma a mim. Você trabalha nestas coisas?

— Trabalho.— Bonita. Jovem, ou pelo menos era, quando tiraram a

fotografia. Quantos anos tem ela, uns vinte e um?— Tem vinte e quatro agora. A fotografia foi tirada há um

ou dois anos.— Vinte e quatro. É muito nova — referiu, virando a foto-

grafia mais uma vez. — Matthew Scudder. É engraçado comoàs vezes sabemos coisas tão pessoais sobre alguém mas nãosabemos o nome. Quero dizer, o apelido. O meu é Dunphy,talvez já saiba.

— Não sabia, não.— Eu dava-lhe o meu número de telefone, se tivesse. Corta-

ram-no há um ano e meio por falta de pagamento. Vou ter deresolver isso um dia destes. Foi bom falar consigo, Matt. Quemsabe não nos vemos amanhã na São Paulo Apóstolo?

— Eu devo ir.— Vou fazer tudo para ir também. Até amanhã, então.— Até amanhã, Eddie.O Eddie esperou que o sinal ficasse vermelho e atravessou a

avenida a passos largos. A meio do caminho, voltou-se e sor-riu-me.

— Oxalá encontre a rapariga — exclamou.

Porém, não a encontrei nem nessa, nem em nenhuma outranoite. Percorri o resto do caminho até à rua 57 e fui à recepçãodo hotel onde moro. Não havia mensagens para mim mas oJacob disse que eu tinha recebido três telefonemas num espaçode meia hora.

— Talvez tenha sido a mesma pessoa de todas as vezes —afirmou. — Mas não deixou recado.

Fui até ao quarto, sentei-me e peguei num livro. Já tinhalido algumas páginas quando o telefone tocou.

Atendi, e um homem respondeu:

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— É o Scudder? — Confirmei.— Quanto é a recompensa? — perguntou.— Que recompensa?— Não és tu que estás à procura daquela miúda?Eu podia ter desligado, mas perguntei: — Qual miúda?— A fotografia dela está de um lado e o teu nome do outro.Não estás à procura dela? — Sabe onde é que ela está?— Primeiro responde à minha pergunta. Quanto é a recom-

pensa?— Pode ser que seja uma recompensa pequena.— Pequena, quanto?— Não vai ficar rico.— Diz uma quantia.— Umas centenas de dólares.— Quinhentos dólares?O preço não importava. Este tipo não tinha nada para me

vender.— Pode ser — concordei. — Quinhentos.— Que merda. Não é muito.— Eu sei.O homem fez uma pausa e depois respondeu apressada-

mente:— Pode ser. Ouve bem o que vais fazer. Vais até à esquina

da Broadway com a rua 53, aquela que fica mais perto daOitava Avenida. Encontro-me lá contigo dentro de meia hora.Leva o dinheiro. Se não tiveres o dinheiro, escusas de vir.

— Não vou conseguir arranjar o dinheiro a esta hora.— Não tens um cartão multibanco vinte e quatro horas?

Merda. Ok… quanto é que tens aí? Podes dar-me uma parteagora e o resto amanhã. Agora não me enroles, porque a miúdapode estar noutro sítio amanhã, estás a perceber?

— Percebo mais do que imagina.— Desculpa?— Como é que ela se chama?

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— O quê?— Qual é o nome da rapariga?— Tu é que andas atrás dela. Não sabes a merda do nome?— E você não sabe, ou sabe?O homem ficou em silêncio por um segundo, a pensar.— Sei qual é o nome que ela usa agora — respondeu.São sempre os mais imbecis que tentam ser espertos.— Mas não deve ser o mesmo que tu conheces — conti-

nuou.— Qual é o nome que ela usa agora?— Esquece. Essa é uma das informações que vais comprar

com os teus quinhentos dólares.O que eu iria comprar, na verdade, seria um murro na tra-

queia, talvez até uma facada nas costelas. Os que realmentetêm alguma coisa para contar nunca pedem uma recompensano princípio, e também não querem encontrar-se connosconuma esquina. Estava tão cansado que pensei desligar o tele-fone, mas não adiantaria: o tipo ia voltar a ligar.

Retorqui, impaciente:— Cala-te. O meu cliente não autorizou a recompensa até a

rapariga ser encontrada. Tu não tens nada para vender e nãome vais arrancar nem um tostão. Não quero encontrar-mecontigo em nenhuma esquina e, se quisesse, não levava dinhei-ro nenhum. Levava era uma arma, um par de algemas, umcolega, arrastava-te para um canto qualquer e batia-te até ter acerteza de que não tens mesmo nenhuma informação. Depois,batia-te ainda mais, porque havia de estar fodido por me teresfeito desperdiçar o meu tempo. É isso o que queres? Queresencontrar-te comigo na tal esquina?

— Filho da puta…— Não — respondi. — Estás enganado. O filho da puta és tu.Desliguei o telefone.— Cabrão — exclamei em voz alta, não sei se para ele ou

para mim.Tomei banho e fui para a cama.

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A rapariga chamava-se Paula Hoeldtke e eu não acreditavaque iria encontrá-la. Tinha tentado explicar isso ao pai dela,mas é difícil fazer com que as pessoas percebam algo que serecusam aceitar.

Warren Hoeldtke tinha um maxilar grande e quadrado, umrosto largo e cabelos ruivos encaracolados que estavam a ficargrisalhos. Era dono de um concessionário da Subaru na cidadede Muncie, em Indiana. Imaginava-o protagonista dos seuspróprios anúncios de televisão, a apontar para os carros, aolhar para a câmara e a garantir que a Hoeldtke Subaru tinhaos preços mais baixos.

Paula era a quarta filha dos Hoeldtke, de um total de seis.Estudara na Universidade Ball State, que fica também emMuncie.

— O David Letterman estudou lá — disse-me o Hoeldtke.— Já deve ter ouvido falar. Claro que foi muito antes da Paula.

Ela tinha-se licenciado em Artes Performativas e mudara-seimediatamente para Nova Iorque.

— Não é possível ser-se actor em Muncie — explicou oHoeldtke. — Aliás, em nenhuma cidade de Indiana. É precisoir para Nova Iorque ou para a Califórnia. Mas, mesmo que elanão tivesse essa vontade de ser actriz, acho que teria partido.Tinha uma ânsia de correr mundo. As duas irmãs mais velhascasaram-se com rapazes de outras cidades mas, nos dois casos,os maridos decidiram mudar-se para Muncie. E o irmão maisvelho, o meu filho Gordon, vende carros comigo. Ainda temosmais um rapaz e uma rapariga, que estão a estudar, e ainda nãodá para perceber o que vão fazer da vida, mas acho que vão ficarlá por perto. A Paula é que nunca foi de parar quieta. Nem sabiase ela ia aguentar ficar em Muncie até terminar a faculdade.

Em Nova Iorque, a Paula teve aulas de teatro, trabalhou comoempregada de mesa, morou no lado oeste da cidade e fez várias

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audições. Actuou na peça Outra Parte da Cidade, que teve umaapresentação única num teatro minúsculo da Segunda Avenida,e também fez uma leitura dramática da peça Grandes Amigosno West Village. O Hoeldtke tinha os programas e mostrou-mos,apontando o nome dela e a pequena biografia abaixo do cabe-çalho “Quem é quem no elenco”.

— A Paula não recebeu nada por estes trabalhos — contou.— Ninguém ganha dinheiro quando está a começar. É só parapoderem subir ao palco e serem vistos pelas pessoas: agentes,directores, encenadores. Ouvimos falar desses salários, de quefulano ganhou cinco milhões por um filme, mas a maioriaganha pouco ou nada nos primeiros anos.

— Eu sei.— Nós queríamos ver a peça, eu e a mãe dela. Não a tal da

leitura, isso era só actores parados no palco a ler as falas decada um. Não parecia muito interessante. Mas teríamos ido namesma, se a Paula tivesse pedido. Porém, ela não quis nem quefôssemos à peça de verdade. Disse que não era uma obra muitoboa e que o papel dela era pequeno. Achou que devíamosesperar até que fizesse alguma coisa melhor.

As últimas notícias da Paula tinham chegado no final deJunho. Parecia estar bem. Mencionara que talvez saísse dacidade no Verão, mas não entrara em detalhes. Passaram-sealgumas semanas e, como não voltou a dizer nada, os pais liga-ram-lhe. Mas só respondia o atendedor automático.

— A Paula quase nunca estava em casa. Dizia que o aparta-mento era muito pequeno, escuro e deprimente, e por isso nãopassava lá muito tempo. Quando o vi noutro dia, entendi por-quê. Não vi o apartamento dela, só o prédio e o hall de entrada,mas mesmo assim percebi. Em Nova Iorque, as pessoas pagammuito para morar em lugares que noutras cidades acabariampor ser demolidos.

Como a Paula quase nunca estava em casa, não costumavamtelefonar-lhe. Em vez disso, tinham um esquema. A cada doisou três domingos, ela ligava para a casa dos pais e pedia à tele-

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fonista que só fizesse a ligação se lá estivesse a Paula Hoeldtke.Os pais diziam à telefonista que a Paula não estava, porqueassim ela não tinha de pagar o telefonema, e em seguida liga-vam-lhe.

— Não era desonesto — disse o Hoeldtke —, porque custa-ria a mesma coisa se a Paula nos ligasse, mas assim éramos nósque pagávamos em vez dela. E desta forma ela não tinha defalar a correr, e a companhia telefónica também lucrava.

Mas a Paula não ligara nem respondera aos recados deixa-dos no atendedor automático. No final de Julho, WarrenHoeldtke, a mulher e a filha mais nova encheram o depósito deum dos Subarus e foram até Dakota do Sul e Dakota do Nortepassar uma semana a montar a cavalo num rancho, a ver a pai-sagem árida e o monte Rushmore. Já estávamos em meados deAgosto quando eles voltaram e, ao tentarem falar com a Paula,não ouviram a mensagem do atendedor automático mas simuma que dizia que a linha havia sido cancelada.

— Se ela tivesse ido passar o Verão fora da cidade, poderiater desligado a linha para poupar dinheiro. Mas não acreditoque o fizesse sem nos avisar. Ela não costuma fazer isso. A Paulaàs vezes decidia fazer coisas à última hora, mas ligava a avisar--nos. Era responsável.

Mas não muito responsável. Não chegava a ser a pessoamais disciplinada do mundo. Algumas vezes, ao longo dos trêsanos decorridos desde que acabara a faculdade, passava maisde duas ou três semanas sem ligar aos pais. Por isso, era possí-vel que tivesse ido passar o Verão num sítio qualquer e queestivesse demasiado ocupada para entrar em contacto comeles. E também era possível que tivesse tentado ligar enquantoeles cavalgavam e percorriam trilhos no Parque NacionalWind Cave durante as férias.

— Há dez dias a minha mulher fez anos — disse WarrenHoeldtke. — E a Paula não telefonou.

— Isso nunca tinha acontecido antes?

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— Nunca. Ela não se esquecia da data, nem de ligar. E se,por acaso, não pudesse ligar no próprio dia, telefonava no diaseguinte.

Warren Hoeldtke ficara sem saber o que fazer. Ligou para apolícia de Nova Iorque mas, como era de esperar, não obtevequalquer resultado. Depois, procurou uma agência de detecti-ves que tinha um escritório em Muncie. Um investigador dafilial de Nova Iorque visitou a última morada conhecida daPaula e constatou que ela já não morava lá. Se o Hoeldtke con-cordasse em pagar-lhes um adiantamento considerável, conti-nuariam a investigar o caso.

— Mas pensei: o que é que eles fizeram pelo dinheiro que jápaguei? Foram até ao local onde a Paula morava e descobriramque ela já não estava lá. Isso podia ter feito eu. Depois disto,apanhei um avião e vim para cá.

Foi ao prédio onde a Paula vivia. Ela tinha-se mudado de láno início de Julho, sem deixar a nova morada. A companhiatelefónica só repetiu o que ele já sabia: que o número tinhasido desligado. Hoeldtke foi ao restaurante onde a Paula traba-lhava e descobriu que ela tinha deixado o emprego em Abril.

— Talvez tenha até comentado connosco — disse. — A Pauladeve ter trabalhado nuns cinco ou seis lugares desde que che-gou a Nova Iorque, e eu não sei se ela nos contava de cada vezque mudava de emprego. Despedia-se porque as gorjetas nãoeram boas, ou porque não se dava bem com alguém, ou por-que não a deixavam tirar folga quando tinha que fazer umaaudição. Por isso, pode ter largado o último emprego e idopara outro sem dizer nada, ou talvez tenha dito alguma coisa enós não nos lembramos.

Sem saber o que fazer, Hoeldtke decidiu procurar a polícia.Os inspectores disseram que não podiam fazer nada porque aPaula, evidentemente, tinha-se mudado sem informar os paise, como era adulta, tinha direito a fazê-lo. Também disseramque ele esperou demasiado tempo, que fazia quase três meses

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desde que ela desaparecera e que agora seria muito difícilencontrar pistas.

O inspector que conversou com o Hoeldtke explicou-lheque, se quisesse continuar a procurar a filha, o melhor eracontratar um detective particular. As normas do departamentoimpediam-no de recomendar um. Mas, disse o inspector, pro-vavelmente não haveria problema se ele lhe dissesse o que fariase estivesse no lugar do Sr. Hoeldtke. Havia um homem cha-mado Matthew Scudder, que era ex-inspector e por acasomorava na vizinhança da Paula Hoeldtke e…

— Qual era o nome do inspector?— Durkin.— Joe Durkin — completei eu. — Muito gentil da parte dele.— Eu gostei dele.— Sim, o Durkin é cinco estrelas.Estávamos num café da rua 57, a alguns metros do meu

hotel. Como a hora do almoço já tinha terminado, deixaram--nos ficar numa mesa a tomar café. Eu já ia na segunda chá-vena. O Hoeldtke ainda tinha a primeira à frente.

— Senhor Hoeldtke, não sei se sou a pessoa certa para ocaso — expliquei.

— O Durkin disse-me…— Eu sei o que ele disse. Mas as pessoas que o senhor pro-

curou antes, aquela agência que tem uma filial em Muncie, pro-vavelmente vão fazer um trabalho mais completo. Eles podemcolocar vários funcionários a investigar o caso e descobrir muitomais detalhes do que eu.

— Está a dizer que eles são mais competentes? Pensei antes de responder.— Não. Mas talvez pareçam ser. Em primeiro lugar, vão dar-

-lhe relatórios detalhados a contar exactamente o que fizeram,com quem falaram e o que descobriram. Vão detalhar as des-pesas que tiveram, ponto por ponto, e vão cobrar-lhe o númeroexacto de horas que gastarem no caso.

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Bebi um gole do café, coloquei a chávena sobre o pires,inclinei-me para a frente e disse:

— Senhor Hoeldtke, eu não sou um mau detective, mas nãoestou legalizado. É necessário obter uma licença para ser detec-tive privado neste Estado, e eu não a tenho. Nunca me dei aotrabalho de tirar a licença. Não detalho as minhas despesasponto por ponto, não aponto quantas horas passo num caso enão escrevo relatórios pormenorizados. Também não tenhoescritório, e é por isso que estamos a conversar aqui, nestecafé. Tudo o que tenho são o instinto e a habilidade que desen-volvi ao longo dos anos, e não sei se é disso que o senhor estáà procura.

— O Durkin não me contou que o senhor não tinha licença.— Poderia ter contado. Não é segredo nenhum.— E porque é que acha que o recomendou a si?Eu devia estar a ter um ataque de escrúpulos. Ou talvez não

quisesse lá muito este trabalho.— Em parte, porque espera que eu lhe dê uma compensa-

ção pela referência.O Hoeldtke torceu o nariz.— Ele também não mencionou isso — disse.— Não me surpreende.— Isso não é ético — afirmou o Hoeldtke. — É?— Não, mas também não é ético da parte dele recomendar

um detective. Além disso, o Durkin não lhe teria dado o meucontacto se não acreditasse que eu era a pessoa ideal para ocaso. Deve achar que eu vou pedir um preço justo e ser honestoconsigo.

— E vai?Assenti.— E, como sou honesto, devo dizer-lhe já que o senhor muito

provavelmente está a desperdiçar dinheiro.— Porquê?— Porque é muito possível que ela apareça sozinha, ou que

nunca mais apareça.

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Hoeldtke ficou em silêncio durante alguns segundos, reflec-tindo sobre o significado do que acabara de ouvir. Nem eunem ele tínhamos mencionado a hipótese de a filha dele estarmorta, e parecia que não íamos fazê-lo. O que não significavaque era fácil deixar de pensar no assunto.

— Quanto estaria eu a desperdiçar? — perguntou ele.— Digamos que o senhor me dê mil dólares.— Isso como adiantamento, ou quê?— Pode chamar o que quiser. Não tenho uma tarifa diária e

não aponto quantas horas demoro a fazer um trabalho. Só saioe ajo da maneira que fizer mais sentido para mim. Existemalguns passos básicos a dar no princípio de qualquer caso, e euvou segui-los, mas não espere que eles nos levem a algum lugar.Depois, existem mais umas coisas que eu posso fazer, e veremosse dão algum resultado. Quando me parecer que os seus mildólares já foram gastos, peço-lhe mais dinheiro, e o senhor de-cide se quer pagar-me.

Obviamente, ele riu-se.— Não me parece um acordo muito profissional.— Eu sei. Não sou uma pessoa muito profissional.— É curioso, mas isso inspira-me confiança. Quanto aos mil

dólares… suponho que as suas despesas serão cobradas à parte.Neguei com um movimento de cabeça.— Não creio que haja muitas despesas, e prefiro pagá-las eu

próprio a ter de anotá-las.— O que acha de colocar um anúncio no jornal? Pensei

fazer isso, colocar nos classificados ou pagar por um anúnciocom a fotografia dela e uma recompensa por qualquer notícia.É claro que isso não estaria incluído nesses mil dólares. Prova-velmente custa tanto quanto isso, ou até mais, pôr um anúnciosuficientemente grande.

Aconselhei-o a não fazer isso.— Se ela fosse menor de idade, poderíamos colocar a foto-

grafia dela nos pacotes de leite, como costumam fazer com ascrianças desaparecidas — disse eu. — Mas não tenho a certeza

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se um anúncio no jornal seria boa ideia. Só atrai gente queanda atrás das recompensas, e essa gente atrapalha mais doque ajuda.

— Acho que a Paula pode estar com amnésia. Se ela pró-pria, ou outra pessoa, visse a fotografia no jornal…

— Bem, é uma possibilidade. Mas vamos guardar essa car-tada por enquanto.

Resumindo, o Hoeldtke deu-me um cheque de mil dólares,algumas fotografias e todas as informações que tinha: o últimoendereço da Paula e os nomes de diversos restaurantes ondeela tinha trabalhado. Deixou-me ficar com os dois programasdas peças, garantindo que tinha várias cópias de um e de outro.Anotei a morada dele em Muncie e os telefones de casa e doconcessionário de carros.

— Pode ligar quando quiser — disse ele.Expliquei que provavelmente só ligaria quando tivesse algo

de concreto para contar. Quando isso acontecesse, entraria emcontacto.

O Hoeldtke pagou os cafés e deixou um dólar para a empre-gada. À porta do café, disse:

— Estou com uma boa sensação. Acho que tomei a decisãocerta. O senhor dá a impressão de ser honesto e directo, e eugosto disso.

Lá fora, um homem cercado por uma pequena multidão con-vidava os transeuntes a adivinhar quais das três cartas viradaspara baixo era a de copas, e olhava em volta para ver se a polí-cia estava a chegar.

— Já li uma coisa sobre este jogo — disse o Hoeldtke.— Não é um jogo — afirmei. — É uma intrujice. É impos-

sível ganhar.— Foi o que li. Mas as pessoas continuam a tentar.— Pois é. Vá-se lá perceber...

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