marton, scarlett. . a morte de deus e a transvaloração dos valores. hypnós, são paulo, v. 5

12
  M O R T E E EUS E  TR NSV LOR Ç ÃO OS V LORES S  R L E T I M R T O N Abstract: The st atement  God is d ead is u ed by Nietzsche to de fine th e destiny of twenty centuries o f West ern History. If th e ruin of Christianity, tha t tried t o invent life after dea th in order to deny this lif e we a re liv ing h ere a nd n ow, ca rri es as a consequence the feeling that  everythin g is vai n , it is an atternpt t o demons - trate tha t the Chri stian religion is just another way of inter retin g exi stence. T he dea th of God m a kes i t possible to t hink ov er a gain th e relationsh ip betw ee n man and worl d, as w ell as stating thevalues which should rul e our behavior in different basis. Que se to me como p ont o e partida Assim f al ava Zarat ustra. Dos textos de Nietzsche, este é s em dú vidao mais contr ove rtido. O livro j á se abr e com o anúncio da transformação por que Zaratustra a caba de passar. Dur ant e uma d éc ada , ele p ermanece u na solidão de su a caver n a e de s u a montanha ; por fim , seu cor a ção tra nsformou-se . Diri- gindo- se ao va le, ond e irá t e r com os homens, enco n tra seu pr imeiro inter locutor . Surpreso, o sa nto homem do b o sque e xclama: N ão me é estranho es te and arilho ; há muitos anos passou por aqui. Chamava-se Zaratustra; mas transformou-se.  ZA Vor 2 , 2). Scarlett Marton é professora de Filosofia na Universida de de São Paulo. 1 . Ass im/alava Zaratust ra, Prólogo,  S ão, 1 Q pa r ágrafo  ZA Vo r 1, 1 ). Esta é a forma de citão que passaremos aadotar: ZA efere-se ao livro,o algarismo romano ind ica a pa rte do livro, os ará bicos que a ele s e segu em remetem, na ordem, à seção, à sub-se ção s e houver, ao parágrafo; e a s igla V or, de Vorrede, designa o prefácio. Utilizamos a edição das obras de Nietzsche  Werke. Kritiscbe Studienausgabe), organizada po r Colli e Monti nari, Berlim, Walter de Gruyter  Co., 1967 /1978. Sempr e que pos síve l, re corremos à tradução de Rubens Rodrigues To rres Filho para o vo lume Nietzsche - O bras I ncompletas da cole- ção Os Pensado res , São Paulo, Abril Cultural, 2ªedição, 1978. 2. O próprio Zaratustra define-se como andarilho em ZA III 1 , 2. HYPNOL AN O 4 / NO 5. S M . 1999· S Ã o P Au l o I p . I} }· 14}

Upload: francisco-porfirio

Post on 02-Nov-2015

11 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Excelente artigo da Prof. Dra. Scarlett Marton sobre os conceitos de morte de Deus e transvaloração em Nietzsche.

TRANSCRIPT

  • A MORTE DE DEUS EA TRANSVALORAO DOS VALORES

    SCARLETI MARTON

    Abstract: The statement "God is dead" is used by Nietzsche to define the destiny oftwenty centuries of Western History. If the ruin of Christianity, that tried to invent lifeafter death in order to deny this life we are living here and now, carries as aconsequence the feeling that "everything is vain", it is an atternpt to demons-trate that the Christian religion is just another way of interpreting existence. The deathof God makes it possible to think over again the relationship between man andworld, as well as stating the values which should rule our behavior in different basis.

    Que se tome como ponto de partida Assim falava Zaratustra. Dos textosde Nietzsche, este sem dvida o mais controvertido.

    O livro j se abre com o anncio da transformao por que Zaratustraacaba de passar. Durante uma dcada, ele permaneceu na solido de suacaverna e de sua montanha; "por fim, seu corao transformou-se"! . Diri-gindo-se ao vale, onde ir ter com os homens, encontra seu primeirointerlocutor. Surpreso, o santo homem do bosque exclama:

    No me estranho este andarilho"; h muitos anos passou por aqui.Chamava-se Zaratustra; mas transformou-se. (ZA Vor 2, 2).

    Scarlett Marton professora de Filosofia na Universidade de So Paulo.

    1. Assim/alava Zaratustra, Prlogo, l' Seo, 1Q pargrafo (ZA Vor 1, 1). Esta a forma decitao que passaremos a adotar: ZA refere-se ao livro, o algarismo romano indica a partedo livro, os arbicos que a ele se seguem remetem, na ordem, seo, sub-seo sehouver, ao pargrafo; e a sigla Vor, de Vorrede, designa o prefcio. Utilizamos a edio dasobras de Nietzsche (Werke. Kritiscbe Studienausgabe), organizada por Colli e Montinari,Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1967/1978. Sempre que possvel, recorremos traduode Rubens Rodrigues Torres Filho para o volume Nietzsche - Obras Incompletas da cole-o "Os Pensadores", So Paulo, Abril Cultural, 2 edio, 1978.2. O prprio Zaratustra define-se como andarilho em ZA III 1, 2.

    HYPNOLANO4/ NO 5.2 SEM. 1999 So PAulo I p. I} }14}

  • 1}4

    A MORTE de DEUS E A TRANsvAloRAO dos vAloRES

    Ao avist-lo, percebe de imediato que mudanas ocorreram. E pros-segue:

    Outrora levavas tua cinza para o monte"; queres hoje levar teu fogopara o vale"? No temes os castigos contra os incendirios? Sim, reconheoZaratustra. Puro seu olhar e no h nojo em sua boca. No caminha porisso como um danarino'? Transformado est Zaratustra, uma criana tomou-se Zaratustra, um desperto" Zaratustra; o que queres agora entre os quedormem? (Za Vor 2, 3-5)

    Ao v-lo, logo compreende a relevncia das mudanas que ocorre-ram. Desde as primeiras pginas do prlogo, Zaratustra aparece como oanunciador de uma completa reviravolta em nossa cultura. E, aos poucos,a transformao por que acaba de passar ganha clareza. Sua causa entose explcita: ela reside no conhecimento da morte de Deus 7. Se foi nomundo supra-sensvel que at ento os valores encontraram legitimidade,trata-se agora de suprimir o solo mesmo a partir do qual eles foram colo-cados, para ento engendrar novos valores. "Humanos, demasiado huma-nos", os valores institudos surgiram em algum momento e em algumlugar". E, em qualquer momento e em qualquer lugar, novos valores po-dero vir a ser criados. a morte de Deus, pois, que permitir a Nietzscheacalentar o projeto de transvalorar todos os valores.

    Trao essencial de nossa cultura, o dualismo de mundos foi invenodo pensar metafsico e fabulao da religio crist. Com Scrates, teveincio a ruptura da unidade entre physis e logos - e a filosofia converteu-se,antes de mais nada, em antropologia. Com o judasmo, houve o despovoa-

    3. A idia reaparece em ZA I 3, 9; ZA I 17, 30 e ZA II 19, 26.4. Como Prometeu, levaria Zaratustra o fogo aos homens.5. Em ZA IV 13, 18, 2, Zaratustra tambm se autodenomina danarino.6. Cf. Oldenberg. Buddha, sein Leben, seine Lehre, seine Gemeinde, Berlim, 1881, p. 113. Oadjetivo, alis, aparece freqentemente associado a Buda. Nietzsche no s possua emsua biblioteca o trabalho de Hermann Oldenberg, como, ao que observa Andler, mais deuma vez manifestou sua admirao por ele (cf. Nietzsche, sa vie et sa pense, Paris, Gallimard,1958, tomo II, p. 415).7. Cf. A Gaia Cincia 125, onde o tema aparece pela primeira vez na obra do filsofo.No por acaso que ele vai retorn-lo no primeiro aforismo do quinto livro de A GaiaCincia ( 343), escrito depois da elaborao de Assim falava Zaratustra.8. Para alm de Bem e Mal e a Genealogia da Moral retomam as idias presentes em Assimfalava Zaratustra. No que diz respeito a serem os valores "humanos, demasiado huma-nos", cf. a Genealogia da Moral, Prefcio, 6.

    HYPN01:A~O 4/ N 5 - 2" SEM. 1999 - So PAulo / p. 1-14 ~

  • lH

    SCARlETT MARTON

    mento de um mundo que estava cheio de deuses - e a religio tornou-se,acima de tudo, um "monotono-tesmo=". Desvalorizando este mundo emnome de um outro, essencial, imutvel e eterno, a cultura socrtico-judai-co-crist niilista desde a base. a morte de Deus, pois, que tornarpossvel a Zaratustra fazer a travessia do niilismo.

    Aos homens Zaratustra espera levar um duplo presente. Aos homensele conta dar um novo amor e um novo desprezo: o alm-do-homem e oltimo homem". Diametralmente opostas so as perspectivas para as quaiseles apontam. Abraar a primeira delas implica aceitar a morte de Deus ea conseqente morte do homem como criatura em relao a um Criador":esposar a ltima importa advogar a existncia de um mundo transcenden-te e, por conseguinte, reiterar a interpretao crist do mundo. Enquanto aperspectiva aberta pelo alm-do-homem viabiliza criar novos valores, aestabelecida pelo ltimo homem exige a defesa dos valores institudos.

    At agora foi o homem, concebido como criatura em relao a um Cria-dor, quem avaliou; e os valores que criou desvalorizaram a Terra, deprecia-ram a vida, desprezaram o corpo. preciso, pois, combat-los, para quesurjam outros". preciso denunciar que se forjou a alma "para arruinar ocorpo", que se inventou o "mundo verdadeiro" como "nosso ATENTADO maisperigoso contra a vida", que se fabulou a noo de Deus como "a mximaobjeo contra a existncia" 13. S ento ser possvel engendrar uma novaconcepo de humanidade; s ento ser possvel criar novos valores.Tornando-se criatura e criador de si mesmo, o alm-do-homem prezar osvalores em consonncia com a Terra, com a vida e com o corpo".

    9. A expresso de Nietzsche em O Anticristo 19.10. Cf. o fragmento pstumo 4 [167] de novembro de 1882/ fevereiro de 1883, que apre-senta um esboo para esta seo.11. No entender de Lowith, "A morte de Deus exige do homem que se quer a si mesmo,alm do processo da libertao de Deus, uma superao do homem: o 'alm-do-homem'"(Nietzsches Pbilosopbie der ewigen Wiederkehr des Gleichen, 3 edio, Hamburg, FelixMeiner Verlag, 1978, p. 42). Cf. numa direo anloga Foucault, Les mots et les choses, Paris,Gallimard, 1966, p. 317.12. Temas recorrentes em ASSim/alava Zaratustra, eles encontram-se expressos de formaexemplar na seo "Dos mil e Um alvos" (ZA I 15).13. Cf. respectivamente Ecce Homo, Por que sou um destino, 7, o fragmento pstumo 14[103] da primavera de 1888 e Crepsculo dos dolos, Os quatro grandes erros, 8.14. "Amo Aqueles que no procuram atrs das estrelas uma razo para sucumbir e seremsacrificados", afirma Zaratustra; "mas que se sacrificam Terra, para que a Terra um diase torne do alm-do-homem" (ZA Vor 4, 7).

    HYPNOLAN04/NO 5-2"".1999-SOPAUlo/p. 1~~-14l

  • 1}6

    A MORTE dr DEUS E A TRANSVAloRAO dos vAloRES

    Depois de anunciar a morte de Deus e levar aos homens o seu duplopresente, Zaratustra julga ter feito a travessia do niilismo. Contudo, sento que encontra seu grande adversrio, o adivinho. "ridos tornamo-nos todos?", prega esta figura sinistra.

    E se casse fogo sobre ns, ento nos reduziramos a p, como acinza: - sim, cansamos at mesmo o fogo. Todas as fontes se nos secaram;at o mar recuou. Todo solo quer fender-se, mas a profundeza no nosquer tragar! 'Ah!Onde h ainda um mar, em que se possa afogar-se!': assimsoa o nosso lamento - atravs dos rasos pntanos". Em verdade, j esta-mos por demais cansados para morrer; agora continuamos em viglia e aviver - em cmaras morturias!' (ZA II 19,6-9)

    Ao contrrio de Zaratustra que levado a falar por abundncia, ex-cesso, transbordamento, o adivinho propala a esterilidade. Ao contrrio dequem desce a montanha para trazer o fogo aos homens, ele preconiza ogrande cansao. Enquanto um quer ir profundeza para dela sair fortaleci-do ", o outro espera por ela ser tragado.

    Pregador de uma nova doutrina, o adivinho vem substituir o sentido,que a interpretao crist do mundo havia dado existncia humana, pelatotal ausncia de sentido. Difusor de uma nova crena, ele vem substi-tuir o ideal asctico pelo "niilismo suicida":". Com a falncia do cristia-nismo, como doutrina e crena que o niilismo se propaga. Paralisante,seu veneno atinge todos os domnios, at o do conhecimento. Niilistasso os contemplativos'", que separam teoria e prtica, que renunciam

    15. O tema j aparece na seo intitulada "Do pas da cultura", em que Zaratustra fala deseus contemporneos: "Estreis sais vs: por isso vos falta f. Mas quem teve de criar tevesempre, tambm, seus sonhos profticos e signos estelares - e acreditava na f! Portasentreabertas sais vs, junto das quais aguardam coveiros. E esta a vossa realidade:'Tudo digno de perecer" (ZA II 14, 22-23).16. Cf. o fragmento pstumo 3 [1] 234 do vero / outono de 1882: '''Onde h um mar, emque se possa ainda afogar-se? mesmo um homem!' - esse grito atravessa o nosso tempo".Aqui, Nietzsche registra o impacto do niilismo em sua poca.17. Cf. ZA Vor 4,5: "Amo Aqueles que no sabem viver a no ser como os que sucumbem,pois so os que atravessam". Cf. ainda ZA I 8, 6: "Quanto mais (a rvore) quer crescer parao alto e para a claridade, tanto mais fortemente suas razes tendem para a terra, parabaixo, para a treva, para a profundeza".18. Cf. Genealogia da Moral III 28.19. Na seo intitulada "Do imaculado conhecimento", dirigindo-se a eles, Zaratustra re-corre imagem da lua. "Isto seria para mim o mais alto" - assim diz a si mesmo vosso

    HYPNOLANO 4 / NO 5 2 SEM. 1999 So PAulo / p. I n14~

  • lU

    SCAR1ETT MARTON

    a criar valores, que abdicam de legislar. Em decorrncia da morte de Deus,e da conseqente supresso do solo a partir do qual os valores institudosforam engendrados, o adivinho, esta figura do niilismo, instaura o vazio.

    Ora, Zaratustra bem sabe que no basta atacar o Cristianismo, que j niilista em sua base; preciso ainda combater o niilismo, que resulta daderrocada da interpretao crist do mundo. Tanto que ao homem ele pro-cura dar um novo sentido. "Amo todos Aqueles que so como gotas pesa-das caindo uma a uma da nuvem escura que pende sobre os homens",revela. "Eles anunciam que o relmpago vem, e vo ao fundo comoanunciadores. Vede, eu sou um anunciador do relmpago, e uma gotapesada da nuvem: mas esse relmpago se chama o alm-do-bomem'v".

    Em seu percurso, antes de deixar sua terra natal e rumar para amontanha, talvez ele mesmo crera em Deus. Imerso na cultura socrtico-judaico-crist, que a nossa, talvez fora niilsta". Contudo, o niilismo deque o adivinho se faz porta-voz outro; a renncia vida que eleprega, a morte em vida que apregoa. Atravess-Ia implica aceitar a vidatal como ela , importa aceitar inclusive tudo o que nela h de maisexecrado e infame. Eis o grande desafio que Zaratustra ter de enfrentar.Ser preciso coragem para fazer a travessia do niilismo; ser precisocoragem para realizar o projeto de transvalorar todos os valores.

    esprito mentiroso, - 'contemplar a vida sem desejo e no, igual ao co, com a lnguapendente. Ser feliz no contemplar, com a vontade amortecida, sem a garra e a cobiadoegosmo - frio e cinzento a vida inteira, mas com bbados olhos de lua! Isto seria paramim o mais querido' - assim seduz a si prprio o seduzido -, 'amar a Terra, como a luaa ama, e to-somente com o olho degustar sua beleza. E isto se chama para mim lMACULADOconhecimento de todas as coisas, no querer nada das coisas: a no ser poder ficar diantedelas com um espelho de cem olhos" (ZA II 15, 12-15). Alis, nos esboos do vero de1883, o ttulo original da seo era justamente "Dos contemplativos".20. ZA Vor 4, 22-23. Ainda no prlogo, depois de presenciar o acidente que levou osaltimbanco ao cho e morte, diz Zaratustra ao seu corao: "Desconcertante a exis-tncia humana e ainda sem sentido: um bufo pode tornar-se-lhe fatal. Quero ensinar aoshomens o sentido de seu ser: que o alm-do-homem, o raio que surge da negra nuvemhomem" (ZA Vor 7, 3-4).21. Cf. ZA Vor 2, 3, em que o santo homem do bosque diz a Zaratustra: "Outrora levavastua cinza para o monte; queres hoje levar teu fogo para o vale?" E, na seo intitulada "OAdivinho" que ora examinamos, ao relatar o seu sonho, o protagonista conta que ouviutrs pancadas na porta, caminhou at l e gritou: "quem traz a sua cinza para o monte?"(ZA II 19, 26)

    HYPNOLANO4/No 5.2" .1999SOPAUlo!p. I ~~14~

  • naA MORTE dr DEUS E A TRANSVAloRAO dos vAloRES

    Transvalorar , antes de mais nada, suprimir o solo a partir do qual osvalores at ento foram engendrados. Aqui, Nietzsche espera realizar obraanloga dos iconoclastas: derrubar dolos, demolir alicerces, dinamitar fun-damentos. deste ponto de vista que critica a metafsica, a religio e a moral.

    Em Assim falava Zaratustra, aqueles a quem a personagem se opej aparecem nas primeiras linhas - o cristianismo e o platonismo. Depoisde abrasar a terra, o sol tem de pr-se no horizonte; depois de saturar-sede sabedoria, Zaratustra tem de voltar ao convvio com os homens. Aosquarenta anos, ele tem de descer da montanha para o vale, dos cumespara as profundezas, do mundo para o submundo; por excesso, ele temde declinar". diferena dos Evangelhos 23, porm, aos quarenta e noaos trinta anos que comea seu ministrio e, ao contrrio da Repblica 24 , na caverna e no fora dela que se faz sbio. O deslocamento espao-temporal no gratuito; indica distncia e recuo em relao a referenciaismilenares de nossa cultura. No por constatar a misria do ser humano,querer resgat-lo e salv-lo que Zaratustra vai ter com os homens - mas porestar farto da prpria sabedoria. No por perfazer a ascese dialtica, aban-donando a diversidade sensvel e contemplando a verdade inteligvel, queele desce da montanha para o vale - mas por compreender que tal dicoto-mia no existe. O que o move no a penria alheia mas a prpria abun-dncia; o que o impulsiona no so as carncias do homem mas o transbor-damento do mundo. Presente j na primeira pgina, ainda que de forma alu-siva, a crtica ao dualismo metafsico e religio crist, aliada aos ataques moral do ressentimento que deles decorre, ser uma constante no livro.

    Transvalorar , tambm, inverter os valores. Aqui, Nietzsche contarealizar obra anloga dos alquimistas: transformar em "ouro'

  • 119

    SCARIETI MARlON

    que exorta seus ouvintes a permanecerem fiis Terra. Se outrora o maiordelito era o cometido contra Deus, agora mais sacrlego ainda delinqircontra a Terra. Se outrora a alma mostrava descaso pelo corpo, agora ocorpo que torna evidente a misria da alma. Se outrora o homem, comocriatura em relao a um Criador, dava sentido ao que o cercava, agora eleno passa de ponte para o alm-do-homem". chegada "a hora do gran-de desprezov", chegado o momento de desdenhar tudo o que at entose venerou e, pelo mesmo movimento, afirmar tudo o que at ento senegou. S assim ser possvel revelar o que por trs dos valores institu-dos se esconde e trazer luz o que eles mesmos escondem. No poracaso que o termo transvalorao C Umwertung) tambm abriga a idia deinverso CUmkehrung). Eliminando as esperanas ultraterrenas, Zaratustra,"o sem-Deus", conta naturalizar os valores morais. Suprimindo o alm,Nietzsche, "o anticristo", quer reinscrever o homem na natureza, estabele-cer nova aliana entre physis e logos?',

    Transvalorar , ainda, criar novos valores. Aqui, Nietzsche pretenderealizar obra anloga dos legisladores: estabelecer novas tbuas de valo-res. desta perspectiva que concebe a filosofia.

    Em Assim falava Zaratustra, ao eleger os seus interlocutores, a per-sonagem determina-se a falar para companheiros de viagem. Junto com

    que em linguagem filosfica designa, especificamente, a atuao da causa (eficiente) naproduo do efeito (Wirkung). Nietzsche faz questo dessa derivao, j desde o texto de1873 em que cita, a propsito de Herclito, esta passagem de Schopenhauer: 'Causa eefeito so, portanto, toda a essncia da matria. Seu ser seu efetuar-se. com o maioracerto, portanto, que em alemo o conjunto de tudo o que material denominadoefetiuidade, palavra que o designa muito melhor do que realidade' (Cf. A filosofia napoca trgica dos gregos 5)" (Nietzsche - Obras incompletas, coleo "Os Pensadores", 2'edio, So Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 197, nota 2).27. Em sua autobiografia, Nietzsche esclarece: "A palavra 'alm-do-homem', como desig-nao do tipo mais altamente bem logrado" em oposio ao homem 'moderno', ao ho-mem 'bom', aos cristos e outros niilistas - uma palavra que, na boca de um Zaratustra,do aniquilador da moral, se torna uma palavra que d muito o que pensar -, foi, quasepor toda parte, com total inocncia, entendida no sentido daqueles valores cujo opostofoi apresentado na figura de Zaratustra: quer dizer, como tipo 'idealista' de uma espciesuperior de homem, meio 'santo', meio 'gnio' ..." (Ecce Homo, Por que escrevo livros tobons, 1).28. em ZA Vor 3 que Nietzsche introduz esta perspectiva avaliadora.29. Cf. nessa direo Karl Lowith, "Nietzsche et sa tentative de rcupration du monde", inNietzsche - Cahiers de Royaumont, Paris, Minuit, 1967, p. 45.

    HYPNOEANO 4/ N 5 - 2 SEM. 1999 - So PAulo I p. 1))-14)

  • 140

    A MORTE dt DEUS E A TRANsvAloRAo dos vAloRES

    eles espera "escrever novos valores em novas tbuas'

  • 141

    SCAR1ETT MARTON

    sentido de homem! Por isso ele se chama de 'homem', isto : o estmador ".Estimar criar: ouvi isto, criadores! (. ..) Ouvi isto, criadores! Mutaodos valores - essa a mutao daqueles que criam. Sempre aniquila,quem quer ser um criador>" (ZA I 15, 13-17). Ao fazer ver que os valoresso "humanos, demasiado humanos", ao atribuir-lhes uma provenincia euma histria, a personagem desmantela o solo mesmo a partir do qual atento foram colocados. Com o combate ao dualismo de mundos, pe porterra a interpretao imposta pelo pensar metafsico e pela religio crist.Atento ao vazio que se instala, quando tal interpretao desmorona, des-qualifica a idia de que nada vale a pena, de que tudo em v035. Comisso, perfaz a travessia do niilsmo". existncia humana o autor quer darum novo sentido. E, para tanto, sabe que preciso conceber o homem deoutra maneira. Entendendo-o como parte integrante deste mundo, emalm-do-homem que o converte; s ento ser possvel transvalorar todosos valores. Tanto que, no final da seo, so estas as palavras que elepe na boca da personagem: "Mil alvos houve at agora, pois mil povoshouve. Apenas falta, ainda, a rdea para as mil nucas, falta o alvo nico.Ainda a humanidade no tem um alvo. Mas dizei-me, meus irmos: se

    33. Vale lembrar o comentrio lxico de Rubens Rodrigues Torres Filho: '''Mensch, das ist:der Scbtzende. na origem da palavra Menscb, mannisco, substantivao do velho-alto-alemo mennisc (humano), encontra-se o radical indogermnico men (pensar), o mesmoque em latim deu mens (mente) e mensurare (medir). Talvez Nietzsche se refira a esteltimo sentido, tanto mais que 'pensar' guarda lembrana de: tomar o peso, ponderar.Scbtzen por: estimar, avaliar, apreciar, da Scbtzende, o que estima, o taxador" (Op. cit.,p. 233, nota 4).34. Cf. ZA Vor 9, 7-8: "Vede os bons e justos! Quem eles odeiam mais? Aquele que quebrasuas tbuas de valores, o quebrador, o infrator: - mas este o criador. Vede os crentes detoda crena! Quem eles odeiam mais? Aquele que quebra suas tbuas de valores, oquebrador, o infrator: - mas este o criador".35. Cf. A Caia Cincia 346: "No camos, justamente com isso, na suspeita de umaoposio, de uma oposio entre o mundo em que at agora nos sentamos em casa comnossas veneraes - em virtude das quais, talvez, tolervamos viver - e um outro mundo,que somos ns prprios: uma inexorvel, radical, profundssima suspeita sobre ns mes-mos, que se apodera de ns, europeus, cada vez mais, cada vez pior, e facilmente poderiacolocar as geraes vindouras diante deste terrvel ou-ou: 'ou abolir vossas veneraes, ou- vs mesmos!' Este ltimo seria o niilismo; mas o primeiro no seria tambm ... o niilismo?"36. No artigo "A palavra de Nietzsche: 'Deus est morto"', Heidegger analisa a conceponietzschiana de niilismo em seus diversos aspectos. Entendendo-o como um processohistrico e pensando-o como a lgica interna da Histria Ocidental, Nietzsche concebe oniilismo como a "desvalorizao dos valores at agora supremos". incompleto, quando,a despeito de suprimir Deus, mantm o mundo supra-sensvel; os antigos valores podem

    HYPNO~ANO 4 / NO 5 2" SEM. 1999 So PAulo / p. 1 ~ ~. 14 ~

  • 142

    A MORrE dt DEUS E A TRANSVAloRAO dos vAloRES

    humanidade ainda falta o alvo, tambm no lhe falta ainda - ela prpria?"( 25-26)

    Incapaz de suportar a prpria finitude, o homem concebeu a metafsica;incapaz de tolerar a viso do sofrimento imposta pela morte, construiu ocristianismo. Na tentativa de negar este mundo em que nos achamos, ametafsica procurou forjar a existncia de outro; durante sculos, fez delea sede e a origem dos valores. Perniciosa, ela postulou um mundo verda-deiro, essencial, imutvel, eterno. Desprezando o que ocorre aqui e ago-ra, a religio crist arquitetou a vida depois da morte para redimir aexistncia; assim, fabricou o reino de Deus para legitimar avaliaes hu-manas. Nefasta, ela levou o homem a desejar ser de outro modo, quererestar em outra parte. Para tentar justificar a existncia, foi desses meiosque o homem se valeu: inventou o pensar metafsico e fabulou a religiocrist. Mas o preo que teve de pagar foi a negao do mundo, a conde-nao da vida. Ao camuflar a dor, hostilizou a vida; ao escamotear osofrimento, tratou o mundo como um erro a refutar.

    Se a derrocada do dualismo metafsico acarreta a sensao de que"nada tem sentido", preciso ento fazer ver que a concepo metafsicano a nica interpretao do mundo. Se a runa do cristianismo trazcomo conseqncia o sentimento de que "tudo em vo", trata-se agorade mostrar que a religio crist s mais uma interpretao da existncia."Deus est morto! Deus permanece morto! E fomos ns que o matamos!Como nos consolaremos, ns, os assassinos de todos os assassinos? O queo mundo possua de mais sagrado e de mais poderoso perdeu seu sanguesob nossas lminas, - quem lavar esse sangue de nossas mos? Com quegua poderemos purificar-nos? Que expiraes, que jogos sagrados tere-mos de inventar? A grandeza desse ato no demasiado grande para ns?

    ser substitudos por outros, mas estes continuam a ser colocados no mesmo lugar queocupavam os anteriores. acabado, quando chega a eliminar o mundo supra-sensvel, olugar mesmo dos valores, pondo-os de outra maneira e invertendo o seu valor. No enten-der de Heidegger, ao afirmar que "Deus est morto", Nietzsche d nome ao destino devinte sculos da Histria Ocidental. Apreendendo-a como o advir e o desdobrar-se donilismo, acaba por interpret-Ia metafisicamente. Ao anunciar a morte de Deus, querdizer que o mundo supra-sensvel no tem poder eficiente e considera assim a sua pr-pria filosofia um movimento antirnetafsico, antiplatnico. Apesar disso - o que Heideggerquer mostrar -, permanece ligado essncia daquilo a que se ope. Embora dele nosdistanciemos, quando procura reinscrever o pensamento nietzschiano na histria milenarda metafsica, com ele concordamos quanto maneira de caracterizar o niilismo incom-pleto e o niilismo acabado.

    HYPNO~ANO 4 / N 5 - 2" SEM. 1999 - So PALio / p. I J J - I 4 J

  • 14}

    SCARIETT MARTON

    No temos de nos converter em deuses, para parecermos dignos desseato? Nunca houve ato mais grandioso, - e quem nascer depois de ns farparte, por causa desse ato mesmo, de uma histria superior a tudo o quefoi a histria at agora" (A Caia Cincia # 125).

    por isso que Nietzsche concebe sua obra como a tentativa deretomar as rdeas do destino da humanidade 37. Scrates representou ummarco na viso grega do mundo, substituindo o homem trgico pelo teri-co; e Cristo, um marco no pensamento ocidental, substituindo o pagopelo novo homem. Mas, com ele, a negao deste mundo em que vive-mos aqui e agora "se fez carne e gnio". Inimigo implacvel do cristianis-mo, Nietzsche nele encontrar um adversrio que julga sua altura. Containverter o sentido que ele procurou dar existncia humana; esperasubvert-lo. Pretendendo substituir o homem pelo alm-do-homem, querpr-se como marco na histria do ser humano. E, para inaugurar esta novaera, tem de realizar a transvalorao de todos os valores, to apregoadapor Zaratustra".

    No , pois, com um trabalho tcnico, uma rea especfica do conhe-cimento ou um domnio do saber, por mais amplo que seja, que a filosofiase confunde. Ela tarefa, misso, destino. E a tarefa que Nietzsche reivin-dica para si mesmo, sua misso e seu destino, consiste em atribuir existncia humana um novo sentido, em fazer coincidir sentido e efeti-vidade. "Minha frmula para a grandeza no homem amor fatr, decla-ra; "no querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trs,nem em toda eternidade. No meramente suportar o necessrio, e menosainda dssimul-lo - todo idealismo mendacidade diante do necessrio -,mas am-Ia ..." CEcceHomo, Por que sou to esperto, 10) Nem confor-mismo, nem resignao, nem submisso passiva: amor, nem lei, nemcausa, nem fim: fatum. Assentir sem restries a todo acontecer, admitirsem reservas tudo o que ocorre, anuir a cada instante tal como ele , afirmar a vida no que ela tem de mais alegre e exuberante mas tambmde mais terrvel e doloroso. Converter o impedimento em meio, o obst-culo em estmulo, a adversidade em bno, aceitar amorosamente oque advm; dizer-sim vida.

    37. Cf. carta a Peter Gast de 30/10/1888.38. No por acaso que na carta a Ernst Schmeitzner de 13/02/1883 Nietzsche se refere aAssim falava Zaratustra como "um quinto 'Evangelho'''.

    HYPNOLANO 4 / NO 5 2 SEM. 1999 So PAulo/p. I n14~