o fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o fado

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243 -  O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado visto por fora e por dentro ファドとは何か -理論からパフォーマンスへ、ファドを内と外から探求する- MAURO NEVES Jr. 本稿の目的は、世界で知られる唯一のポルトガル音楽で、民族的ルーツ を持ってはいるが、民族音楽というよりはポピュラー音楽、少なくとも都 市の音楽である「ファド」の「意味」について考察することにある。 考察にあたっては、ファドの歴史に残されている資料や研究者から見る 「ファド」と、実際にファドを歌うファド歌手へのインタビューを比較し、 本当の「ファド」の「意味」を探求する手法をとる。 ここで注意すべき点は、著者が研究者でありながら「ファディスタ」で もあることである。「ファディスタ」とは、ファドを愛しそれを歌うこと を含め、「ファド」とダイレクトな関係を保ちながら生きることを表現す る、ポルトガル語独特の言葉である。この立場を自覚しつつ、研究書や論 文、インタビューにおける「ファド」とは何かを探ってみたい。 I. Introdução Neste artigo pretendemos analisar as várias definições do que viria a ser o Fado 1 , entendido primordialmente como o único gênero musical português conhecido mundialmente e que, embora possua raízes folclóricas, não se constitui propriamente num gênero folclórico, mas num gênero de música urbana de características populares. 1 Bulletin of the Faculty of Foreign Studies, Sophia University, No.4120061 Aqui usamos sempre a palavra Fado com a primeira letra maiúscula de forma a personificá-lo, seguindo uma forma muito comum de fazê-lo em Portugal, principalmente nos meios fadistas.

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Page 1: O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado

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O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado vistopor fora e por dentro

ファドとは何か-理論からパフォーマンスへ、ファドを内と外から探求する-

MAURO NEVES Jr.

本稿の目的は、世界で知られる唯一のポルトガル音楽で、民族的ルーツを持ってはいるが、民族音楽というよりはポピュラー音楽、少なくとも都市の音楽である「ファド」の「意味」について考察することにある。考察にあたっては、ファドの歴史に残されている資料や研究者から見る

「ファド」と、実際にファドを歌うファド歌手へのインタビューを比較し、本当の「ファド」の「意味」を探求する手法をとる。ここで注意すべき点は、著者が研究者でありながら「ファディスタ」で

もあることである。「ファディスタ」とは、ファドを愛しそれを歌うことを含め、「ファド」とダイレクトな関係を保ちながら生きることを表現する、ポルトガル語独特の言葉である。この立場を自覚しつつ、研究書や論文、インタビューにおける「ファド」とは何かを探ってみたい。

I. Introdução

Neste artigo pretendemos analisar as várias definições do que viria

a ser o Fado1, entendido primordialmente como o único gênero musical

português conhecido mundialmente e que, embora possua raízes

folclóricas, não se constitui propriamente num gênero folclórico, mas

num gênero de música urbana de características populares.

1Bulletin of the Faculty of Foreign Studies, Sophia University, No.41(2006)

1 Aqui usamos sempre a palavra Fado com a primeira letra maiúscula de forma apersonificá-lo, seguindo uma forma muito comum de fazê-lo em Portugal, principalmentenos meios fadistas.

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Para atingirmos a “verdadeira” definição do que vem a ser o Fado,

recorremos não só à análise de documentos sobre o mesmo, de valor

histórico, bem como de recentes trabalhos acadêmicos, mas também de

entrevistas a fadistas2, ou seja, as pessoas que mais perto dele

realmente convivem.

Há dois pontos que gostaríamos de ressaltar antes de entrarmos na

análise propriamente dita.

Primeiramente, é preciso dizer que o autor desse artigo entende-se

não só como pesquisador do Fado, mas também como fadista. Fadista,

palavra original da língua portuguesa, entendida aqui como a pessoa

que não só interpreta o Fado, mas que por ele sente-se apaixonada e

tendo com ele uma relação estreita segue pelos percursos que o destino

lhe reserva.

No entanto, não cremos que isso invalide nossa pesquisa enquanto

pesquisa, visto que podemos transcender o lado acadêmico de ver o

Fado apenas de fora, vendo-o também de dentro e, assim, chegarmos a

uma análise vestida de duas faces, sem o ser parcial de nenhuma

forma.

O segundo ponto que queremos ressaltar é que tanto os documentos

históricos, artigos de periódicos especializados e livros sobre o Fado a

que aqui nos referiremos serão analisados em pé de igualdade com o

resultado das entrevistas a que nos propusemos, a biografia da mais

celébre de todos os intérpretes do Fado, Amália Rodrigues3, e a

convivência com o mundo fadista de forma direta.

Isso se deve a em estudos de cultura popular fazer-se necessário

sairmos de nossos “gabinetes” para entrarmos no meio da própria

manifestação cultural que buscamos analisar, considerando a um só

2 MAURO NEVES Jr.

2 A grande maioria dessas entrevistas foram realizadas durante nossa estadia em Lisboapara a coleta de dados e interação ao mundo fadista entre 18 de outubro de 2003 e 25 dejaneiro de 2004. O restante reporta-se ao trabalho de Teresa Castro d’Aire, O Fado,Lisboa, Ed. Temas da Actualidade, 1996.

3 Santos, Vitor Pavão dos, Amália (uma biografia), Lisboa, Contexto, 1987.

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tempo a audiência que a mesma busca atingir e os seus praticantes,

dando-se valor de igualdade enquanto fontes de pesquisa à história oral

desses para, de uma forma mais abrangente, podermos compreender

como se produz essa mesma manifestação cultural.4

Dito isso, passemos, então, à análise propriamente dita.

II. Fado: definições tradicionais e acadêmicas

Nesta parte desse nosso artigo recorremos a algumas das definições

do fenômeno cultural que é o Fado, quer seja do ponto de vista

tradicional apresentado em publicações tanto do passado próximo da

sua evolução histórica, como também recente, bem como do ponto de

vista acadêmico apresentado em publicações mais recentes.

Antes de mais nada, faz-se necessário esclarecer que na maioria

das publicações que se dedicaram a analisar o Fado enquanto fenômeno

cultural uma das grandes discussões sempre veio a ser sobre a sua

origem.

No entanto, não nos cabe no âmbito deste artigo nos aprofundarmos

sobre o aspecto da sua origem, mesmo porque apesar das inúmeras

discussões, já ser de quase total e comum acordo ter tido o Fado suas

origens no Brasil como ficou comprovado cientificamente por José

Ramos Tinhorão.5

É interessante, notar, no entanto, que há ainda alguns trabalhos

mais recentes que insistem em contestar essa teoria, ainda que o façam

3O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado visto por fora e por dentro

4 Há vários estudos em cultura pop que dão ênfase a essa necessidade, gostaríamos de citaraqui três deles: Gómez-Sierra, Esther, “Palace of Seeds”: from an experience of localcinemas in post-war Madrid to a suggested approach to film audiences” in: Lázaro-Reboll,Antonio and Andrew Willis (ed.), Spanish popular cinema, Manchester, Manchester Univ.P., 2004; Meihy, José Carlos Sebe Bom, Brasil fora de si: Experiências de brasileiros emNova York, São Paulo, Parábola Editorial, 2004, e; Sheehy, Daniel, Mariachi music inAmerica: Experiencing music, expressing culture, New York, Oxford Univ. P., 2006.

5 Tinhorão, José Ramos, Fado: Dança do Brasil, cantar de Lisboa, o fim de um mito,Lisboa, Ed. Caminho, 1994.

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meramente calcados em especulações de teor preconceituoso ou

conservador, como é o caso tanto do completo trabalho de Eduardo

Sucena6, como da apaixonada história do fado produzida por Paul

Vernon7.

Nossa opinião converge com a exposta por Amaro d’Almeida8 já

mesmo antes do livro de Tinhorão de que não se deveria dar uma única

origem ao Fado, mesmo porque em sendo uma manifestação cultural, o

Fado foi se formando ao longo da sua evolução histórica.

Partamos aqui, então, da definição do Fado dada pelo mesmo

Amaro9 em 1944: “O Fado não é árabe, mas nós, por atavismo, é que

somos de carácter melancólico e fatalista, como êste povo, de que

resulta termos canções tristes como deviam ter sido as melopeias

árabes. O Fado não veio do mar, mas o espírito do marinheiro,

particularmente atingido pela aventura e pela saüdade, criou canções

lamentosas e cheias de monotonia, precursoras do verdadeiro Fado.

Comprovam, no fim do século XVIII, os viajantes estranjeiros, o

lamentar do nosso povo nas canções. Não admira que muitas músicas

do nosso folclore (os cantos de S. João, os mais conhecidos), sofressem

uma adaptação a êste particular modo de sentir. Em 1821 volta do

Brasil a côrte portuguesa. Portugal sofre então a influência de

múltiplas brasileirices, entre elas uma dança em voga, o “Faddo”.

Enxerta-se essa dança nas dolentes canções do povo lisboeta, em

particular no das desditosas castas dos bairros velhos da capital. O

resultante toma o mesmo nome: É o Fado.”

Outro dos aspectos do Fado que gerou polêmicas durante os seus

primeiros anos foi justamente o seu lado marginal, ligado ao porto e à

prostituição, imagem esta veiculada e atacada por várias publicações

4 MAURO NEVES Jr.

6 Sucena, Eduardo, Lisboa, o Fado e os fadistas, 2.ed., Lisboa, Vega, 2002.7 Vernon, Paul, A History of the Portuguese Fado, Hants, Ashgate, 1998.8 Almeida, Amaro d’, “Reflexões sobre a origem do fado”, Separata do Olisipo (Boletim do

Grupo “Amigos de Lisboa”), 25, Lisboa, 1944.9 Ibidem, p.7.

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tanto da época conhecida como I República (de 5 de outubro de 1910 a

28 de maio de 1926), como dos primeiros anos da ditadura instalada

posteriormente no país. Essa imagem sem moral do Fado só iria ter fim

– ainda que não por completo – com a sua completa apropriação pelo

Estado Novo enquanto canção nacional iniciada a partir de 1937, sendo

que foi essa mesma transformação em canção nacional que acabou por

abafar durante longos anos o “Fado vadio”, tido por muitos dos seus

praticantes como o autêntico Fado.

A I República não chegou a criar uma cultura própria, mas foi um

período em que o governo nacional procurou investir na divulgação e na

educação popular, tendo por convicção que o caminho para a

democracia passava pela cultura. Residia aí, então, a sua crítica ao

Fado, tido como gênero musical das camadas incultas.

Também nessa imagem indolente dos praticantes do Fado, ligada à

vida noturna, à promiscuidade e ao alcoolismo, residia o que reprovavam

o movimento operário e o movimento comunista nascentes, embora

tenham-se então produzidos muitos fados de teor socialista e

expressamente ligados às idéias pregadas por esses mesmos

movimentos. Foram justamente esses movimentos operários que

levaram ao nascimento das coletividades bairristas, ainda hoje uma

realidade lisboeta intrínseca e intimamente ligada ao Fado.

É essa mesma imagem sem moral e marginal do Fado que se

comprova nos dois primeiros filmes portugueses a tratarem do Fado: O

Fado (1923) e A Severa (1931). No primeiro essa imagem é não só

reforçada, como também reprovada por completo, mostrando uma

imagem imoral do fadista (tanto na sua versão feminina, como

masculina). Já no segundo essa imagem é mostrada sob a vertente

histórico-mítica, concluindo com a transformação do Fado em canção

símbolo da nação portuguesa, tal qual já começava a intentar o novo

regime político.

Na verdade há uma intrínseca relação entre o Fado e o desenvolvimento

do cinema português, parte da qual já analisamos em outro artigo10, mas à

5O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado visto por fora e por dentro

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qual pretendemos ainda nos dedicarmos em outra oportunidade.

Antes de passarmos às publicações que tratam do Fado durante

esse período propriamente ditas, cabe ainda dizer que foi nesse mesmo

período que vieram a luz os principais periódicos dedicados ao Fado e

voltados, sobretudo, para os seus fãs: A Alma de Portugal: do fado e

para o fado (1924); Canção do Sul (1923-1949); Fado e toiros (1936), e;

Guitarra de Portugal (1922-1957).

A mais antiga obra a analisar o Fado enquanto fenômeno cultural

foi a História do Fado, de Pinto de Carvalho (Tinop) 11, na qual o Fado é

definido como a canção que “... canta as contingências da sorte voltária,

a negregada sina dos infelizes, as ironias do destino, as dores

lancinantes do amor, as crises dolorosas da ausência ou do

afastamento, os soluços profundos da desesperança, a tristeza dolente

da saudade, os caprichos do coração, os momentos inefáveis em que as

almas dos amantes descem sobre seus lábios, e antes de remontarem ao

céu, detêm o voo num beijo dulcíssimo. Nenhuma das canções

portuguesas retrata, melhor do que o fado, o temperamento aventureiro

e sonhador da nossa raça essencialmente meridional e latina. ... A

melancolia é o fundo do fado como a sombra é o fundo do firmamento

estrelado.” 12 Quanto a sua estrutura musical, o Fado foi assim definido

na mesma obra: “... um período de oito compassos de 2/4, dividido em

dois membros iguais e simétricos de dois desenhos cada um; preferência

do modo menor, embora muitas vezes passe para o maior com a mesma

melodia ou com outra; acompanhamento de arpejo em semicolcheias,

feito unicamente com os acordes da tónica e da dominante, alternados

de dois em dois compassos. O fado é caracterizado ainda pelo

acompanhamento da guitarra portuguesa, que, para esse fim, tem uma

6 MAURO NEVES Jr.

10 Neves Jr., Mauro, “O Cinema português anterior a 1974”, in: Bulletin of the Faculty ofForeign Studies, Sophia University, 33, 1998, pp.169-220.

11 Pinto de Carvalho (Tinop), História do Fado, 4.ed., Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1994. Aedição original é de 1903.

12 Ibidem, p.38.

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afinação especial. Quando os guitarristas tocam o fado, sem ser para

acompanhar os cantos, fantasiam muitas variações sobre a mesma

melodia, e quando tocam simplesmente o acompanhamento chamam-

lhe fado corrido. Fado rigoroso é o que não admite variações.” 13

No ano seguinte aparecia outra obra pioneira na análise do Fado: A

Triste Canção do Sul, de Alberto Pimentel14, onde se define o Fado da

seguinte forma: “Em geral a lettra dos Fados justifica a etymologia,

porque celebra as desgraças de um individuo ou de uma classe, mas ha

casos em que a lettra, por glosar um assumpto alegre ou malicioso,

briga com a toada dolente da guitarra. A musica, o acompanhamento, é

sempre triste, como um ecco da alma do povo, ingenua e soffredora, que,

pela sua rudez, não sabe procurar difficuldades nos effeitos musicaes,

contentando-se com uma toada simples e facil, e que, pela amargura do

seu destino, está sempre disposta a carpir-se, a lastimar-se. A lettra do

Fado revela a facilidade espontanea da metrificação popular, da

redondilha, que é o porta-voz da raça latina da peninsula, e na

vivacidade por vezes maliciosa dos conceitos accentua-se a heroica

resignação com que nós, os meridionaes, graças á inconstancia do nosso

humor, á benignidade do clima e ao azul radioso do ceu, podèmos afogar

as nossas lagrimas no desabafo redemptor de um sorriso amargo...” 15.

Em 1936 Luís Moita16 publicou um veemente ataque ao Fado, onde

depois de expor as várias teses sobre a sua origem de forma bastante

minuciosa e exaustiva, acabava por concordar com a que lhe dava

origem no Brasil. Justamente tendo por base essa origem que o autor

classificava de forma preconceituosa como “dança de negros”, refutava

qualquer hipótese de que o Fado pudesse ser aceito como canção

7O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado visto por fora e por dentro

13 Ibidem, p.39.14 Pimentel, Alberto, A Triste canção do sul: Subsídios para a história do Fado, Ed. Fac-

sim., Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1989.15 Ibidem, pp.24-25.16 Moita, Luís, O fado canção dos vencidos: Oito palestras na Emissora Nacional, Lisboa,

Emissora Nacional, Anuário Comercial, 1936.

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nacional e que a ligação de um instrumento “tão nobre” como a guitarra

portuguesa a este gênero só tinha contribuído para a vulgarização do

instrumento. Concluía que o Fado só resistia porque tinha sido

incorporado de forma extremada tanto pela rádio como pelo teatro de

revista e criticava sobremaneira que o Fado fosse apresentado a

estrangeiros, pois isso só contribuiria para degradar ainda mais a

imagem dos portugueses frente aos outros europeus.

Já no ano seguinte, reflexo da nascente incorporação do Fado pelo

novo regime político, apareceu o livro de A. Vitor Machado17 atacando o

livro de Moita e compondo uma verdadeira idealização do Fado através

de entrevistas com várias personalidades portuguesas do momento que

afirmavam gostar do gênero e ver nele a música nacional por excelência

e da apresentação da carreira de 58 fadistas e de mais 34 novos

fadistas, os quais afastavam-se bastante da imagem sem moral

anteriormente divulgada. A conclusão do livro é quase que um

manifesto em favor do Fado: “Enquanto existir Portugal, o Fado será a

canção acarinhada e preferida pelo povo da nossa tão linda Pátria!” 18.

Passou-se o tempo e as críticas cessaram, sobretudo com a

concretização da profissionalização dos fadistas – iniciada com o

Decreto-Lei no 13564, de 06/05/1927 – e o controle oficial das casas de

fado, em proliferação até meados da década de 60, pela censura do

Estado Novo, levando à transformação do fadista de marginal em

artista e em “porta-estandarte” do Fado enquanto canção nacional.

Esse processo foi ainda mais acelerado com a carreira em ascensão,

inclusive a nível internacional, de Amália Rodrigues, a qual se

converteria por excelência não só na mais famosa representante do

Fado, como também na cantora nacional de Portugal19.

Em 1963 saía uma das abordagens mais irônicas e críticas que já se

8 MAURO NEVES Jr.

17 Machado, A. Vitor, Idolos do fado: Biografias, comentários, antologia, Lisboa, TipografiaGonçalves, 1937.

18 Ibidem, p.266.

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publicaram sobre o Fado intitulada Tudo isto é fado20, onde o autor

demonstrava a sua preferência pelo “Fado vadio” e criticava sobretudo o

restaurante típico, ao mesmo tempo em que exaltava a importância de

Amália como “melhor propagandista” de Portugal no estrangeiro.

Ainda durante os últimos anos da ditadura cabe lembrar a

definição dada ao Fado por Frederico de Freitas21:

“O Fado é uma canção essencialmente silábica, como na generalidade

é a melodia popular portuguesa. O fado canta-se geralmente em verso de

sete sílabas, usando-se também o metro menor e maior de dez ou doze

sílabas, chamado “alexandrino”. Chama-se fado “corrido” ao que harpeja

em semicolcheias os acordes de tónica e dominante, em tom maior ou

menor, improvisando o cantador segundo a sua fantasia. São quadras

glosadas ou soltas, que podem ser cantadas em diálogo com outro

contendor, dizendo-se “à desgarrada”, “a atirar” ou “ao desafio”. Esta

maneira de cantar era já popular e muito anterior ao fado. Ao fado

também se adaptou o estribilho, com o qual abandonou o estilo narrativo

do romance ou da xácara, o que certamente lhe advém das exigências

espectaculares do palco.”

Veio a Revolução dos Cravos a 25/04/1974 e o fim do longo regime

ditatorial ao qual por circunstâncias várias o Fado vira-se

intrinsecamente relacionado. Sendo assim, o Fado passou a ser visto,

em grande parte, como a música do antigo regime, o que resultou num

profundo desinteresse por ele e a uma quase que perseguição de

Amália22.

Mas essa situação não representou o desaparecimento total do

Fado, mesmo porque não só ele se adaptou passando a existirem fados

9O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado visto por fora e por dentro

19 Ver, por exemplo, em: Neves, Mauro, “Amália Rodrigues, 60 anos de carreira artística: aAmália atriz” in: Anais do Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros, 30, 1997, pp.1-13 eSantos, Op. cit.

20 Silva, Carlos, Tudo isto é fado, Lisboa, Ed. do Autor, 1963.21 Freitas, Frederico de, O Fado, canção de Lisboa: suas origens e sua evolução, Lisboa,

Sociedade de Língua Portuguesa, 1973, p.233.22 Ver, por exemplo, em: Santos, Op. cit., pp.182-184.

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de intervenção política23, como também continuaram as suas atividades

muitas das casas de Fado – embora não tenha aberto nenhuma nova

entre os anos 70 e 90 – e continuou também a existir a Grande Noite do

Fado, profundamente ligada à continuação das atividades fadistas nas

coletividades bairristas.

Os anos 80 e 90 trouxeram uma nova geração de fadistas e a

Exposição Internacional realizada em Lisboa em 1998 veio reavivar

ainda mais o interesse pelo Fado enquanto manifestação cultural

intrinsecamente portuguesa.

Em 1994 duas publicações de fundo acadêmico voltadas para o

Fado vieram a luz trazendo novas definições para o gênero.

A primeira delas, organizada pelo Museu Nacional de Etnologia24,

analisa vários aspectos do Fado enquanto fenômeno cultural, quer seja

a Grande Noite do Fado, quer sejam as casas de Fado, traçando mesmo

um modelo de percurso para o típico fadista e classificando o fado em:

fado castiço (Menor, Corrido, Mouraria); fado tradicional (fados cuja

música foi composta no início do século XX e que tal como o castiço têm

um esquema harmônico e uma melodia fixos); fado-canção (dividido em

dois sub-tipos: o ligado à incorporação do Fado ao teatro de revista

entre os anos 20 e 50, e o dos fados compostos por Alain Oulman para

Amália nos anos 60 e 70 com poesia mais erudita e complexa).

Já Rúben Carvalho25 definiu o Fado da seguinte forma:

“Apesar de todos os riscos, pensamos que pouca polémica levantará

afirmar-se que a definição deste género que é, afinal, o fado tal como

contemporaneamente o conhecemos se deve essencialmente a quatro

figuras: Armandinho, na guitarra, Martinho da Assunção na viola,

10 MAURO NEVES Jr.

23 Ver, por exemplo, em: Neves Jr., Mauro, “Ary dos Santos: Poeta da Revolução, Poeta doFado”, in: Bulletin of The Faculty of Foreign Studies, Sophia University, 40, 2005, pp.99-121.

24 Museu Nacional de Etnologia, Fado: Vozes e sombras, Lisboa, Museu Nacional deEtnologia, 1994.

25 Carvalho, Rúben, As músicas do fado, Porto, Campo das Letras, 1994, p.96.

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253-  -

Amália Rodrigues e Alfredo Marceneiro na vocalização e num

importante conjunto de elementos icónicos do espetáculo.”

E ainda26:

“Assim, o que acima de tudo define os fados clássicos, mesmo

quando comportam uma linha melódica clara (o que, significativamente,

quase não acontece com os matriciais Menor e Corrido) é constituírem

uma base harmónica sobre a qual o cantor pode estilar, pode improvisar

como quiser, seja em oramentos, seja nos tempos.”

Em 1997 foi realizado um show no Teatro Nacional de São João no

Porto titulado Raízes rurais, paixões urbanas: fado, jazz, músicas

tradicionais, show este que procurava estabelecer a ligação entre o

Fado e o jazz enquanto gêneros musicais.

No programa que acompanhou a realização deste show define-se

assim o Fado27:

“O acompanhamento é proporcionado pelos instrumentos padrões

do fado. A guitarra, ..., executa o contraponto melódico e o suporte

harmónico da melodia principal. A viola acústica e a viola baixo

fornecem a base rítimica e harmónica. ... Os “fados castiços” são

considerados pelos intérpretes do fado os fados mais antigos e incluem

três fados anónimos, muitas vezes referidos como “raízes do fado” (Fado

Corrido, Fado Mouraria e Fado Menor), e cerca de cem fados atribuídos

a compositores dos séculos XIX e XX. Os três fados anónimos têm um

padrão de acompanhamento fixo que consiste num motivo melódico

repetido, um padrão rítimico e um esquema harmónico fixos.

Utilizando estes padrões como base, a melodia é improvisada ou

comporta várias letras numa das estruturas poéticas mais comuns. O

padrão de acompanhamento, o esquema harmónico e a métrica regular

são os elementos identificadores destes fados e são fixos. Todos os

11O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado visto por fora e por dentro

26 Ibidem, p.95.27 Teatro Nacional de São João, Raízes rurais, paixões urbanas: Fado, jazz, músicas

tradicionais, Porto, Teatro Nacional de São João, 1997, p.5.

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outros elementos podem variar. ... Outros fados tradicionais têm uma

melodia fixa, um esquema harmónico fixo e, em alguns casos, um

padrão de acompanhamento fixo. Vários textos podem ser adaptados a

essa estrutura musical básica. Estes fados normalmente têm duas

designações: uma indica o nome do compositor, ou da pessoa a quem o

fado foi inicialmente dedicado, e que é utilizada pelos executantes para

identificar a melodia, e uma segunda designação que representa o título

do poema cantado. Deste modo o mesmo “fado musical” pode ter vários

títulos poéticos. ... O “fado-canção” é caracterizado por uma estrutura

poética e musical em que alternam estrofes e refrão. A estrutura

harmónica é, muitas vezes, mais complexa que a utilizada nos “fados

castiços”. A melodia é fixa, mas o acompanhamento é desenvolvido

segundo o gosto dos instrumentistas, desde que o padrão harmónico de

base seja respeitado. ...”

Em 2001 a Câmara Municipal de Lisboa lançou o Roteiro de Fado

de Lisboa28, um guia das casas de fado existentes na cidade, onde o

Fado foi definido como a canção própria dos bairros de Lisboa, quer seja

do ponto de vista profissional ou amador. Esta obra de caráter turístico

continua, no entanto, a ser o guia mais completo do mundo fadista e de

onde se pode ter a experiência do Fado sob os seus mais diversos

aspectos.

No mais recente trabalho acadêmico sobre o Fado a que tivemos

acesso até o presente momento, Manuel Halpern29 parte da identificação

do Fado com a própria identidade portuguesa: “... Para já temos a nossa

identidade, visível até quando a renegamos. Herdamos três palavras

que arrastamos na alma: saudade, sebastianismo e fado.” 30 A partir daí

procura-se a definição de Fado, partindo-se da palavra latina Fatum,

12 MAURO NEVES Jr.

28 Câmara Municipal de Lisboa, Roteiro de Fado de Lisboa, Lisboa, Câmara Municipal,2001.

29 Halpern, Manuel, O Futuro da saudade: O Novo Fado e os novos fadistas, Lisboa, Pub.Dom Quixote, 2004.

30 Ibidem, p.25.

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passando-se pela sua utilização por Camões, para chegar à seguinte

conclusão: “O fado é tradicionalmente uma música triste. E, de facto,

muitos são os fados que se acercam de uma temática taciturna,

nostálgica e fatalista. ... Contudo também há fados alegres. Como os

cantados ao desafio, as desgarradas. Em sessões de improviso, os

cantadores entram em despique, adquirindo por vezes um carácter

jocoso. ... E o humor, irónico ou satírico, e mesmo a crítica social,

chegam a ser veiculados no fado.” 31 Procura ainda definir os temas do

Fado tomando por base os trabalhos de Alberto Pimentel32 e Maria

Luísa Guerra33, acrescentando-se a eles o que o autor chama de fado-

ensaio, onde o fadista se auto-analisa enquanto fadista.

O autor analisa ainda outros aspectos intrínsecos à definição do

Fado, tais como o fato de ser “... um estilo musical exclusivamente

português – mesmo nos raríssimos casos em que é interpretado por

estrangeiros há uma imitação ou busca de identidade portuguesa” 34, ou

a sua acepção de canção nacional: “Claro que Portugal não é só fado e

de norte a sul do país há uma rica etnologia musical, desde o folclore

minhoto ao cante alentejano, passando pelo corridinho algarvio.

Contudo, o fado é o único género que adquiriu uma dimensão nacional,

é uma canção de todo o país.” 35

Quanto ao seu aspecto musical, Halpern compara o Fado ao blues

norte-americano, já que ambos são estilos balizados, embora o Fado

tenha uma divisão mais específica, já que possua os chamados fados-

tipo a que nos referimos como castiços e tradicionais, mas também o

fado-canção “... que tende a fugir às linhas melódicas tradicionais e por

isso desagrada aos puristas.” 36 E ainda: “Musicalmente encontram-se

13O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado visto por fora e por dentro

31 Ibidem, pp.27-28.32 Pimentel, Op. cit.33 Guerra, Maria Luísa, Fado – Alma de um Povo, Lisboa, INCM, 2003.34 Halpern, Op. cit., p.29.35 Ibidem.36 Ibidem, p.31.

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256-  -

pontos de contacto entre o fado e outras músicas do mundo, do flamenco

ao tango, passando pela música grega, magrebina e até a ópera. ...

Porém, o fado desenrola-se num universo muito peculiar que faz dele

um estilo musical próprio, perfeitamente distinto de qualquer outro.” 37

Consideramos a obra de Halpern a mais completa já publicada até

hoje sobre o Fado, visto que além de defini-lo, reconstitui a sua história

e traça uma análise sob duas vertentes – o lado acadêmico e o lado

fadista – da nova geração de fadistas em atividade atualmente, sendo

também o único trabalho voltado para o Fado a incluir um capítulo

dedicado a estrangeiros que se dedicam a esse gênero musical, com

destaque para Hideko Tsukida.38

Tomamos então, justamente por isso, esse trabalho como a nossa

ponte para a próxima seção desse nosso artigo sobre o Fado enquanto

fenômeno cultural.

III. Fado, na voz de quem o vive e canta

Nesta parte desse nosso artigo abandonamos o lado acadêmico

propriamente dito para nos inserirmos no mundo de quem vive como

fadista, de quem tem uma relação íntima com o Fado enquanto

manifestação e vivência.

Antes de mais nada, faz-se necessário esclarecer que aqui baseamo-

nos tanto em entrevistas dadas por fadistas a vários jornais

portugueses39, bem como a entrevistas por nós mesmos realizadas,

entrevistas coletadas por Teresa Castro d’Aire40 e Manuel Halpern41 e,

quanto a Amália, em sua biografia elaborada por Vítor Pavão dos

Santos42.

14 MAURO NEVES Jr.

37 Ibidem.38 Para maiores detalhes sobre esta que é a principal fadista japonesa, aconselhamos visitar

a sua página na internet: http//www.asahi-net.or.jp/~wc3k-smz/FADO/menu.html39 Com destaque para o Expresso, o Público e o Diário de Notícias.40 Ver nota 2.41 Halpern, Op. cit.

Page 15: O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado

257-  -

Teresa Castro d’Aire entrevistou treze fadistas, sendo que a

primeira pergunta para quase todos eles foi a seguinte: “Quando é que o

Fado nasceu, e como é que nasceu?”. Trata-se de buscar entre os que

vivem para, com e do Fado a sua versão para a origem do Fado, origem

esta, que como já referimos anteriormente, ainda encontra-se envolta

em polêmica. Esta mesma polêmica pode ser verificada nas respostas

obtidas por Aire a que nos reportaremos aqui.

Nuno da Câmara Pereira assim respondeu: “O Fado não nasceu. O

Fado brota das pessoas, ele vai surgindo à medida que as

circunstâncias do dia a dia, e até as circunstâncias históricas, vão

ditando que isso aconteça. Assim como a nossa língua veio do latim, o

Fado veio de Portugal com todas as suas nuances; por exemplo, no

tempo da conquista de Lisboa aos mouros recebeu nuances que os

árabes cá nos deixaram, recebeu influência dos judeus e, mais tarde,

até dos africanos, quando fazíamos escravos e comercializávamos

negros para o mundo inteiro. ...” 43

Em muito pode se dizer estar essa definição do Fado próxima da

dada por Amália44: “... Para mim o fado é muito mais antigo do que

essas teorias que dizem que veio do Brasil. O que eu acho é que as

pessoas se queixavam e daí nasceu o fado. Nisso, concordo com o José

Régio. É nesta história que eu acredito. Escolhi esta, que me agrada,

que me parece a mais certa. O fado é saber que não se pode lutar

contra aquilo que temos. É aquilo que não podemos mudar. É

perguntar porquê e não saber porquê. É não deixar de perguntar e, ao

mesmo tempo, saber que não tem resposta.”

Já Rodrigo respondeu que “... A última coisa que ouvi, há pouco

tempo, foi que o Fado veio do Brasil, por isso está a ver, eu não sei

quais são as origens do Fado, acho que é uma coisa que ninguém pode

15O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado visto por fora e por dentro

42 Santos, Op. cit.43 Pereira, Nuno da Câmara, in: Aire, Teresa Castro d’, O Fado, Lisboa, E. Temas da

Actualidade, 1996, p.1.44 Santos, Op. cit., p.197.

Page 16: O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado

258-  -

saber ao certo. ...” 45 De certa forma concordaram com essa opinião ainda

os entrevistados Frederico Vinagre, Odete Mendes e Carlos do Carmo.

Da origem no Brasil para o Fado discordaram veementemente Lino

Ramos, Maria da Fé, João Braga, Jorge Fernando e Manuel Martins.

Entre as várias outras perguntas e respostas registradas por Aire

gostaríamos ainda de citar algumas que refletem o quanto os fadistas

identificam-se com o estarem dentro do Fado.

Ao serem perguntados “Acha que o Fado em cassete, ou em CD, ou

cantado na televisão, ou com microfone, para auditórios de milhares de

pessoas, continua a ser Fado?”, Jorge Fernando afirmou não haver

diferença alguma e que o caso mais forte para comprová-lo seria

Amália, a qual poderia cantar o Fado em qualquer lugar e para

qualquer público, dependendo apenas do clima que o próprio Fado

criasse junto a este. Frederico Vinagre respondeu simplesmente: “... O

Fado está dentro das pessoas.” 46 O mais enfático de todos sobre esse

aspecto ligado à evolução do Fado enquanto gênero musical foi Rodrigo:

“Eu acho que o Fado em cassete pode continuar a ser Fado, o Fado só

perde o sentido quando é cantado para massas, e mesmo assim há

quem consiga criar a corrente, mesmo com milhares de pessoas a ouvir.

Não é bem a mesma coisa, porque o Fado é realmente uma expressão

intimista...” 47

pergunta “É preciso ser português para gostar de Fado?”, apenas

Lino Ramos e Ada de Castro – entre os treze entrevistados –

responderam que sim, o restante pensa que o Fado é universal, citando

muito Amália como prova disso, devido sobretudo ao seu sucesso no

estrangeiro e ao fato dos vários estrangeiros – principalmente japoneses

e franceses – que vêm às casas de Fado e que o apreciam, muitas vezes

sem mesmo entender uma palavra sequer do que se está cantando.

A

16 MAURO NEVES Jr.

45 Rodrigo, in: Aire, Op. cit, p.13.46 Vinagre, Frederico, in: Aire, Op. cit., p.32.47 Rodrigo, in: Aire, Op. cit., p.32.

Page 17: O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado

259-  -

Fizemos algumas dessas mesmas perguntas a cinco fadistas em

diferentes ocasiões, a saber, António Rocha48, Camané, Maria Benta,

Mísia e Ana Moura.

Sobre a origem do Fado, tanto António Rocha como Camané e Ana

Moura aproximaram-se de Nuno da Câmara Pereira, afirmando que o

Fado vai surgindo pouco a pouco e dentro de cada um durante a sua

vivência como fadista e que o Fado formou-se em Lisboa, não

importando muito onde ele tenha aparecido inicialmente como música.

Já Maria Benta acredita que o Fado nasceu em Lisboa resultado da

mistura das diferentes raças que vagavam e vagam pela cidade. Mísia

apenas afirmou que o Fado não nasceu, ele vai se formando pouco a

pouco e continua em eterna transformação.

Todos os cinco concordaram quanto ao lado universal do Fado e

também quanto a poder ele ser interpretado em qualquer local,

dependendo para isso apenas do total envolvimento com o público, quer

seja ele português ou não.

A estes cinco fadistas e ainda a dois outros – Maria da Fé e Ana

Maria – perguntamos ainda o que era ser fadista.

Camané foi um dos mais enfáticos: “Sou fadista, não sou cantor de

fado. Aliás se não fosse fadista, nunca seria cantor. O Fado está no

sangue de quem o canta e, mais cedo ou mais tarde, acaba por dominá-

lo.”

Esta afirmação de Camané condiz com várias outras suas em

diferentes entrevistas, tais como às realizadas por João Miguel

17O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado visto por fora e por dentro

48 Queríamos nessa oportunidade expressar a nossa enorme gratidão ao fadista e mestreAntónio Rocha, não só por nos ter guiado como fadista e nos ajudado a compreendermelhor o que vem a ser interpretar o Fado, mas também por toda a sua gentileza e toda asua alegria em compartilhar conosco todo o seu conhecimento sobre o Fado, ele que vem aser uma das pessoas a possuir mais conhecimentos sobre o tema e a ter uma vivêncialigada ao Fado a qual talvez se equipare apenas à de Amália Rodrigues ou de AlfredoMarceneiro. Queremos ainda agradecer-lhe pelas horas dispensadas em ensinar-nos ainterpretar o Fado em nossas aulas dentro do programa oferecido pela Casa do Fado e daGuitarra Portuguesa, entre novembro de 2003 e janeiro de 2004.

Page 18: O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado

260-  -

Tavares49 onde afirma: “O fado sempre foi uma entrega de mensagens,

de sentimentos. O importante é a mensagem que tu queres oferecer às

pessoas. Naturalmente que estás a cantar porque tens voz. Mas eu

costumo dizer que só sou cantor porque sou fadista. A minha maneira

de estar no fado sempre foi essa e a minha interpretação sempre esteve

de acordo com o que estou a cantar.”, e ainda “O mais difícil para um

fadista é precisamente cantar um fado tradicional. A música é muito

simples, pelo que é preciso criar uma forma de entregar as palavras,

porque nada é óbvio. Transformar isso numa canção é um trabalho

muito difícil. Criar um estilo, uma personalidade, leva muitos anos.” 50

E também em entrevista a Miguel Francisco Cadete51 onde diz: “É

preciso ser-se fadista a cantar. O fado vive muito da palavra: se não for

um fadista a cantar não é fado. Há muitas pessoas que cantam o fado,

mas soa lamechas. Um fadista tem uma forma muito séria de lidar com

as palavras nos fados tradicionais.” É ainda o que sente em entrevista

sua a Filipe Santos Costa52 onde diz: “O fado é um dom, é uma herança,

é um estado de espírito, e uma forma muito portuguesa de estar na

música. Eu optei por defender essa tradição até o fim.”

Por essa sua posição tão bem definida dentro do mundo fadista e da

sua qualidade vocal, não é de se espantar que Camané tenha ficado

conhecido como “A nova Amália, afinal, é um homem. Dá pelo nome de

Camané.” 53

O próprio Camané define-se assim na sua página na internet54:

“Tudo o que eu sou mostro quando canto. Se oscilo ou sou gingão, nada

disso é acaso. É que o fado percorre-me, caminha dentro do meu

sangue, passa-me pelo coração e desagua na minha garganta.” Está aí

18 MAURO NEVES Jr.

49 Camané, em entrevista a João Miguel Tavares in: Diário de Notícias, Música, 29/01/2000,p.10.

50 Ibidem.51 Camané, em entrevista a Miguel Francisco Cadete in: Bom Dia Lisboa, 16/11/2001.52 Camané, em entrevista a Filipe Santos Costa in: Focus, 28/02/2000.53 Lisboa, João in: Expresso, 05/12/2001.54 www.camane.em.com

Page 19: O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado

261-  -

um verdadeiro ser fadista da cabeça aos pés.

Essas duas últimas afirmações de Camané conectam-se

perfeitamente ao que nos ensinou António Rocha: “O Fado é puro

sentimento e vivência. Ser fadista é mais do que cantar o Fado, viver o

Fado, transmitir os sentimentos que há dentro de si para os que o estão

a ouvir.” E ainda “Ser fadista é tratar as palavras de forma séria e

pura, palavra a palavra, para que se transmitam os sentimentos que

essas contêm.”

As afirmações de Camané sobre o estar-se no Fado concordam

também com as que expressou Amália55: “... Mas o que interessa é sentir

o fado. Porque o fado não se canta, acontece. É um acontecimento. E

isto é que me faz medo, porque nunca sei o que me vai acontecer. O

fado sente-se, não se compreende, nem se explica.”

Maria Benta, Ana Moura, Ana Maria e Maria da Fé – fadistas de

diferentes origens e diferentes gerações – concordaram todas em que

ser fadista não é apenas cantar o Fado, mas sim viver-se como fadista e

comungar na concepção de o ser.

A única dos entrevistados que afirmou não ser fadista foi Mísia,

segundo a qual ela prefere ser vista mais como uma intérprete de fados

do que como uma fadista, visto que não se prende nem pretende

prender-se ao Fado tradicional.

Talvez resida nessa sua forma de ver e estar-se no Fado a oposição

de que ela é alvo dentro dos meios fadistas em Lisboa, aí incluídos

António Rocha e Maria da Fé que afirmaram positivamente não ver

Mísia como uma fadista.

No entanto, a mesma Mísia em outra entrevista afirma que

“Ninguém é fadista durante um fado inteiro. Nós somos fadistas em

momentos miraculados.” 56 Seria essa uma nova forma de se ser fadista?

Considerando-se que Mísia é uma das suas intérpretes de maior

19O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado visto por fora e por dentro

55 Santos, Op. cit., p.55.56 Mísia, em entrevista a João Miguel Tavares in: Diário de Notícias, 15/12/2001.

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262-  -

qualidade musical na atualidade, talvez fosse melhor crer-se que sim.

E o que seria para esses sete fadistas o Fado?

Camané já o disse em várias entrevistas, algumas das acima

citadas e ainda: “Há uma coisa muito importante, o fado precisa de ter

gente nova a cantar, o fado renova-se permanentemente e por aí. A

forma de estar na vida é diferente e isso reflete-se no fado. O fado

conta a vida, os factos da vida de há 30 anos atrás eram uma coisa, hoje

são outros mas os sentimentos são os mesmos: a tristeza existe como há

30 anos, as razões da tristeza é que são diferentes.” 57 E ainda: “O fado é

tudo o que acontece quando se ri ou chora.” 58, ou, “O fado tem espaço

para tudo, possui uma liberdade enorme sem que o sentido das

palavras se perca. É essencial compreender o que se diz e senti-lo. As

coisas saem-me como se estivesse a falar mas, ao mesmo tempo, estou a

cantar, a transformar o que digo numa canção. s vezes, tenho

consciência de que essa austeridade pode funcionar contra mim, muitas

pessoas querem é circo. Mas o fado não pode ser uma exibição de

virtuosismo vocal.” 59

António Rocha sempre quando eu lhe perguntava sobre isso era

bastante enfático: “Fado é tudo que se sente, vem de dentro para fora e

pronto!”.

Ana Maria afirmou que para ela o Fado era a forma de interpretar

Lisboa e viver com ela.

Ana Moura e Maria Benta foram muito próximas na sua resposta,

afirmando que o Fado era tudo que passava pela sua vida e que

acabava criando raízes que as levavam a interpretá-lo.

Ana Moura já tinha mesmo afirmado sua forma de ver o Fado em

uma entrevista anterior ao nosso contato com ela: “Sou uma miúda de

23 anos, tenho a obrigação de trazer qualquer coisa de novo ao fado.” 60

A

20 MAURO NEVES Jr.

57 Camané, em entrevista a Nuno Ferreira in: Pública, 14/02/2000.58 Ibidem.59 Camané, em entrevista a João Lisboa in: Expresso, 21/01/2000.

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263-  -

E mais: “Tem que existir um novo fado, porque as experiências que eu

vivi, as coisas que eu tenho para contar, nada têm a ver com as de há

50 anos atrás.” 61

Maria da Fé afirmou ser para ela o Fado: “Uma expressão de se

estar na vida. O caminho que Deus me deu para seguir.” Pura reflexão

do sentido máximo da palavra Fado em si mesma, ou seja, destino.

Mísia foi categórica quanto à característica universal do Fado

enquanto sentimento e reflexão de tudo que o sentimento de ausência e

ao mesmo tempo presença representa. Aliás ela já o havia dito em

entrevista a Daniel Ribeiro62: “O fado canta sentimentos universais, é a

nossa leitura desses sentimentos. Evidentemente, nós temos certos

estigmas, aquele oceano enorme à frente que nos remete para a nossa

pequenez, que nos faz ter uma lucidez e um imaginário especiais. Por

isso é que temos grandes escritores.”

E o que dizer-se de um fadista tão distinto como Paulo Bragança –

o mais atacado de todos os intérpretes do Fado pelos fadistas

tradicionais – conhecido como “o fadista punk” 63, o qual se defende

dizendo que “O fado, para Portugal, é como um altar sagrado coberto de

pó. E se alguém se atreve a limpar o pó é abatido. Como se não se

pudesse mexer. Mas eu limpo o pó, eu pinto, eu vasculho para

descobrir o verdadeiro fado.” 64 Nós, no entanto, concordamos com

António Rocha que classificou Paulo Bragança de um intérprete

equivocado do Fado e não um fadista.

Outra fadista, essa sim fadista na sua essência, tal qual Mísia sem

considerar-se como tal, que se destaca por estar fora do Fado enquanto

tradição é Cristina Branco, a qual chegou mesmo a dizer que: “A paixão

que sinto nunca foi pelo fado. O que procuro é a voz da Amália, a forma

21O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado visto por fora e por dentro

60 Ana Moura, em entrevista a João Miguel Tavares in: Diário de Notícias, 05/04/2003.61 Ibidem.62 Mísia, em entrevista a Daniel Ribeiro in: Expresso, 17/10/199863 Halpern, Op. cit., p.137.64 Bragança, Paulo in: Halpern, Op. cit., p.137.

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264-  -

como ela contava histórias.” 65 e ainda, “Canto o fado, mas não sou

fadista. Deixei de o ser porque as pessoas não me consideravam como

tal, por nunca ter vivido em Lisboa, por ter estado longe das

tradicionais casas de fado.” 66 Para nós, no entanto, Cristina Branco é

uma das melhores intérpretes do Fado na atualidade e, tal como

acontece com Mísia, pode estar a meramente representar uma nova

concepção de ser fadista, algo mais próximo desse mundo que se diz

globalizado.

Há ainda que se destacar entre os novos fadistas aqueles vindos do

Alentejo: Ana Sofia Varela, a qual afirmou “Sempre cantei à alentejana

e quando descobri o fado, a minha voz encaixava-se perfeitamente.” 67;

António Zambujo, no qual pode se sentir que “... o fado tem em comum

com o cante uma certa melancolia, o arrastar da voz e por vezes o

desespero...” 68; Gonçalo Salgueiro, fadista de formação lírica e uma das

vozes mais bonitas e aprimoradas de sua geração, e; Margarida

Guerreiro, onde se sentem fortemente a influência do cante alentejano e

um lado marialvista bastante ausente do Fado atual.

E há ainda outros vários nomes da nova geração nos quais é

possível sentir-se tanto a imagem tradicional do fadista – a de viver

para e do Fado – como é o caso dos irmãos de Camané, Helder

Moutinho e Pedro Moutinho; do sentimental e de voz aveludada João

Pedro; de Ricardo Ribeiro, “... Todo ele é fado. A sua história, a sua

cultura, a sua forma como canta enquanto fala, Talvez seja o último

autêntico dos fadistas populares. Talvez o mais fadista da sua geração.

...” 69, e; da grande revelação como fadista que é Joana Amendoeira, a

qual esclareceu interessar-se pelos Fados tradicionais “... por tentar

criar um estilo próprio dentro desses fados, que já foram cantados

22 MAURO NEVES Jr.

65 Branco, Cristina, em entrevista a João Paulo Vieira in: Visão, 11/07/2002.66 Branco, Cristina, em entrevista ao Correio da Manhã, 20/05/2001.67 Varela, Ana Sofia, em entrevista ao Público, 06/10/2002.68 Halpern, Op. cit., p.231.69 Halpern, Op. cit., p.250.

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265-  -

tantas vezes por tão grandes fadistas. Poder dar ao fado antigo um

novo fado é mágico – com uma nova voz, com uma nova interpretação,

com um novo olhar sobre a vida.” 70, mas também uma nova forma de se

ver como fadista como é o caso tanto da médica Kátia Guerreiro; de

Patrícia Rodrigues, oriunda dos Açores; de Diamantina – que veio da

música popular, vulgo pimba, para o Fado – e de Sílvia Filipe, egressa

de uma girls-band.

IV. Conclusão

Chegando ao fim desse nosso artigo, só nos resta regressar à

pergunta inicial: mas o que é, então, o Fado?

Na primeira seção, o Fado foi bem definido, o cremos, tanto do

ponto de vista da sua letra, quanto da sua estrutura musical, e já não

há nada mais para acrescentar sob esses dois pontos de vista.

Na segunda seção, vasculhamos o que viria a ser o Fado para quem

dele e com ele vive.

Aqui, gostaríamos de concluir afirmando que o Fado é sentimento,

muito mais que só a tristeza, a saudade ou o desespero, imagens que

em geral lhe são acopladas. O Fado é o sentimento qualquer que ele o

seja transformado em canção, com as peculiaridades lusitanas e da

língua portuguesa, mas não só restrito à nacionalidade portuguesa, já

que toda canção por si só já vem a ser universal.

Glosando Camané e acrescentando-lhe um pouco de Amália

Rodrigues e de António Rocha: O Fado é tudo que se mostra quando um

fadista – quer este o seja na sua imagem tradicional, quer na sua

amplidão mostrada pela nova geração e pelos seus intérpretes de outras

nacionalidades, como somos nós mesmos – canta, mas não apenas com

a voz, com os olhos, com a postura e com tudo o mais que se representa

23O Fado o que é?: da teoria para a prática, ou, o Fado visto por fora e por dentro

70 Amendoeira, Joana, em entrevista a João Miguel Tavares in: Diário de Notícias,12/07/2003.

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interpretar um Fado. O Fado vem do coração de quem o interpreta,

corre pelas veias de quem o ama e sente como a melhor forma de

preencher-se e de espargir sentimentos, desaguando na voz e no

respeito que se demonstra para com as palavras ao fazê-lo. O Fado cria

uma corrente entre fadista e público, corrente esta que nada mais é que

o sentimento de integração, de compartilhar esse mesmo sentimento,

sem necessariamente ter que se passar pelos sofrimentos expressos na

letra que se está a interpretar.

No entanto, faz-se necessário reconhecer que como todo e qualquer

outro gênero musical, o Fado vai se adaptando ao seu tempo, principalmente

porque “A canção de Lisboa procura dar resposta às inquietudes dos

nossos tempos. Novos desafios se colocam ao fado.” 71

Assim sendo, o Fado enquanto sentimento e reflexo das

inquietudes humanas, sobretudo as do povo de Lisboa, persiste,

transformando-se, internacionalizando-se e mostrando-se cada vez mais

como a melhor das formas de expressar-se um sentimento tão nosso, tão

lusófono, como é a saudade.

24 MAURO NEVES Jr.

71 Halpern, Op. cit., p.278.