o samba na musica instrumental

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Samba in the instrumental music

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    UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    O SAMBA NA MSICA POPULAR INSTRUMENTAL BRASILEIRA DE 1978 A 1998

    MARCELO SILVA GOMES

    So Paulo 2003

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    MARCELO SILVA GOMES

    O SAMBA NA MSICA POPULAR INSTRUMENTAL BRASILEIRA DE 1978 A 1998

    Dissertao apresentada Universidade Presbiteriana Mackenzie para obteno parcial do ttulo de Mestre em Educao, Artes e Histria da Cultura.

    ORIENTADOR: Dr. ARNALDO DARAYA CONTIER

    So Paulo Junho de 2003

    Dedico este trabalho a minha tia, Maria Aparecida de Moraes.

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    RESUMO

    O presente trabalho uma investigao bibliogrfica e fonogrfica, que prope ferramentas diferenciadas para a anlise das estruturas rtmicas do samba. Constitui-se em um projeto interdisciplinar que envolve as reas de Educao, Artes e Histria da Cultura.

    Educao, na medida em que pretende legitimar a oralidade como processo de ensino-aprendizagem para a transmisso e preservao de certos contedos musicais. Artes, pois todo o trabalho construdo sobre uma expresso artstica fundamental humanidade, a msica.

    Histria da Cultura, entendendo que diferentes culturas produzem diferentes estruturas sonoras. Sociedades complexas, tal qual o Brasil, possuem formas musicais constantemente re-inventadas a partir de elementos de origens diversas.

    Contemplando a linha de pesquisa Histria da Cultura, da Educao e das Artes: abordagens interdisciplinares, o trabalho est dividido em trs captulos. O primeiro visa compreender quais foram os dilogos e atravessamentos que tornaram a msica popular brasileira possvel.

    O segundo captulo prope as ferramentas para que se analise o conjunto especfico de estruturas rtmicas do samba. E o terceiro, utilizando como premissa os captulos anteriores, realiza efetivamente algumas anlises.

    O objetivo o de perceber que os ritmos so um tesouro escondido, ansiando por ser descobertos e valorizados de acordo com seus prprios paradigmas.

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    ABSTRACT

    This research, a bibliographic and phonographic investigation, presents distinct tools to approach the samba rhythmic structures. As an interdisciplinary project it involves areas such as Education, Arts and Culture History.

    The Education, which is concerned about the oral knowledge, as a process of teaching-learning to transmit and preserve some musical contents.

    The Arts, the reason for having all this work built on one of the most fundamental expressions of humanity, music.

    The Culture History, which considers that different cultures produce different sound structures. Complex societies, such as the Brazilian, have musical forms constantly reinvented based on elements from different origins.

    This work is split up into three chapters considering the lines of research Cultures History, Education and Arts: interdisciplinary approaches. The first chapter aims at the understanding of the dialogs and crossovers that made the Brazilian popular music possible.

    The second one presents the tools to analyze the samba specific group of rhythmic structures. And the third uses the previous chapters as spring boards to carry out some analysis.

    The main objective of this work is to realize that rhythms are like a hidden treasure, concerning being discovered and evaluated according to their own paradigms.

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    O SAMBA NA MSICA POPULAR INSTRUMENTAL BRASILEIRA De 1978 a 1998

    Sumrio

    Introduo

    A- tema 1 B- hiptese central 6 C- objetivos 7 D- critrios terico-metolodgicos 9 E- debate sobre a produo cientfica 18 F- corpus 28

    Captulo 1. Samba e Cultura, 29

    1.1. As culturas e a histria 31 1.2. A frica no Brasil 35 1.3. Os processos de trocas e snteses culturais 39 1.3.1. Os conceitos: biombos e mediadores 39 1.3.2. O msico, esse re-inventor 42 1.3.3. Os dilogos musicais 45 1.4. A Casa da Tia Ciata 49 1.5. Ritmo e gesto 53

    Captulo 2. Premissas musicais para a anlise do ritmo 56

    2.1. Simultaneidade e polirritmia 59 2.2. A contrametricidade como regra no emprego da sncopa 60 2.3. O sentido cclico dos ritmos 65 2.4. A no linearidade como forma musical 70 2.5. As conseqncias da oralidade na transmisso dos signos musicais 72 2.6. A concepo de compasso na msica ocidental 75 2.7. Autoria e criao coletiva: temas em debate 76 2.8. A Ginga e a questo da oralidade 78

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    Capitulo 3. Estruturas rtmicas do samba: algumas anlises 83

    3.1. Samba Antigo? 85 3.2. Samba Novo? 89 3.2.1. A linha grave 90 3.2.2. As semicolcheias 91 3.2.3. A time line 93 3.3. A sncopa por ela mesma 95 3.4. O atravessamento pelo Partido Alto 101 3.4.1. Bateria Nota 1000 106 3.4.2. Paulinho da Viola 107 3.4.3. Tom Jobim 108 3.4.4. Terra Brasil 110

    Concluso 113

    Bibliografia 114

    Anexo I: Upa Neguinho 116 Anexo II: Samba Quente 119 Anexo III: Tamborins 137 Anexo IV: Atravessou 139 Anexo V: Gravaes 141 (1629)

    Faixa 1: Capoeira 102 Faixa 2: Miragem do Porto 139 Faixa 3: Samba Quente 143 Faixa 4: Pandeiro 055

    Faixa 5: Tamborins 100 Faixa 6: Partido Alto 104 Faixa 7: Atravessou 354 Faixa 8: Brasil Nativo 348 Faixa 9: Swing Paulista 100

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    Introduo

    A) Tema

    O samba uma expresso artstica fundamental ao Pas, ativa musicalmente em inmeras manifestaes, sendo cultivado nos terreiros, nas escolas de samba, em redutos da bossa nova e pelos praticantes da chamada msica instrumental, que engloba desde o choro at o jazz-samba moderno. Por isso, pode ser considerado no apenas um ritmo, mas uma grande famlia de clulas rtmicas e suas variaes, bem como uma prtica cultural disseminada por vrios grupos da sociedade.

    De maneira paralela a sua produo e divulgao, sempre houve interesse de pesquisadores em discutir e compreender esta arte. Uma face desta discusso tem carter histrico, e busca explicar origens, formas de preservao, desdobramentos sociais, e sua apropriao ideolgica por parte de vrias instncias sociais.

    Para tal tipo de trabalho, antroplogos, socilogos e historiadores tm como principais fontes de pesquisa a documentao sobre o assunto, seus autores, letras dos prprios sambas e gravaes. Entretanto, o que se percebe, na maioria dos casos, que essas pesquisas no abordam o tema por um recorte musical propriamente dito. Apontam mais em direes sociolgicas e antropolgicas do que necessariamente musicolgicas.

    Este trabalho prope uma viso histrica do samba atravs de um recorte tambm tcnico-musical. No que se pretenda recontar a histria do samba, mas sim, abordar certos momentos e acontecimentos recorrentes na bibliografia sobre o tema, no intuito de compreender melhor essas diferentes formas musicais. No s perceber os lugares que esta arte ocupa na sociedade, mas como se d seu trnsito por diferentes instncias scio-culturais.

    Vale dizer: se bem sucedida a empreitada de aliar viso histrica e musical concomitantemente, incrementa-se a compreenso de como determinadas snteses musicais afloraram. A arte ocupa posio privilegiada na sociedade como espelho dessa, e assim processos culturais podem ser mais bem compreendidos.

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    Some-se certa carncia de uma abordagem do samba por um vis musical no usual. Isso porque a maioria das ferramentas de anlise foi criada pela msica chamada erudita, de carter eurocntrico. Portanto provvel, como se quer mostrar aqui, que estes procedimentos sejam at certo ponto inadequados para uma anlise mais efetiva de um tipo de msica que nasceu partindo de outros parmetros.

    Tal caracterstica torna difcil falar de samba sem falar de etnia, ou de msica popular sem falar de msica erudita. Afinal , como falar de viso de arte sem falar de viso de mundo?

    Ao compreender melhor as formas de transmisso e preservao do samba, tambm se fomenta capacidade de compreender historicamente o Pas, pois possvel observar a existncia de uma histria que no est oficialmente registrada.

    Neste sentido, preciso dimensionar a importncia da oralidade como forma de manuteno e preservao de conhecimentos dos negros, que foram considerados por muito tempo como selvagens e primitivos, e suas manifestaes tratadas como demonacas at mesmo por alguns cientistas sociais e musiclogos.

    Propor uma forma de analisar este ritmo deve ser tambm buscar v-lo primeiro como fruto dessa cultura que se relaciona diretamente com o samba. Necessrio ento, conhecer no s caractersticas dessa msica, como tambm o que a diferencia daquela de origem europia.

    preciso, de incio, fazer uma distino entre o e um samba. Uma interpretao que um samba uma cano luso/brasileira que tem o ritmo como um ostinato no acompanhamento. Essa uma possibilidade de interpretao da sntese.

    Existem outras. Em primeiro lugar o samba um ritmo, uma forma musical elaborada, auto-suficiente. Esse ritmo usa1 as canes, veste-se de acordes e melodias, atravessa instncias sociais diferenciadas, e atinge os mais diferentes decodificadores de suas mensagens, chegando a ouvintes inesperados.

    Esta segunda interpretao pode ser descrita como uma ttica, no sentido que De Certeau coloca como mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espao institudo por outros, pois nesses estratagemas de combate existe

    1 Em grau menor, o mesmo processo se encontra no uso que os meios populares fazem das culturas difundidas

    pelas elites produtoras de linguagem (Id. Ibid., p. 95. Grifo meu).

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    uma arte dos golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras de espao opressor (DE CERTEAU, 1990, p. 79).

    E se para muitos historiadores a cano2 samba j foi definida como representante da brasilidade, a msica que sobreviveu no terreiro no chegaria, em sua forma mais original, a ocupar importante espao em nossa msica, como por exemplo, nas rdios, seno se aproximando da linguagem da cultura dominante (Id.Ibid., p.79).

    Conhecer os diferentes processos pelos quais sociedades distintas produzem e preservam suas formas artsticas mostra-se necessrio na medida em que vrios musiclogos, ao se defrontarem com uma manifestao popular na qual a questo rtmica era fundamental, abandonavam o olhar tcnico, para tecer comentrios apenas sensoriais.

    Na viso geral daqueles estudiosos da msica, questes ligadas ao ritmo parecem pertencer ao universo folclrico ou etnomusicolgico, e no, como se quer mostrar aqui, a um assunto musical strito senso, porm com um vis analtico diferenciado.

    Por exemplo, Mario de Andrade, quando est em Recife3 numa festa popular, abandona o olhar analtico presente em seu Pequena Histria da Msica, e descreve no o procedimento tcnico em relao a construo do aspecto rtmico desta manifestao musical em particular, mas seus efeitos:

    To violento o ritmo que era obrigado a me afastar de quando em quando para...(sic) pr em ordem o movimento do sangue e do respiro (ANDRADE, 1944, p.186).

    Para o presente trabalho, interessante notar como Andrade, enquanto no mostra nenhuma pretenso analtica, admite sofrer efeitos dinamognicos e sinestsicos do ritmo. O que considerado pelos setores eruditos como a forma mais elementar do samba enquanto ritmo, vem sendo preservado, transmitido e difundido atravs de outros conceitos culturais ou prticas artsticas dos excludos sociais, num primeiro momento, e num segundo, por artistas de outras camadas sociais. Nessas prticas

    2 Cano aqui deve ser entendido como uma forma musical de caractersticas tonais, quadratura estrfica e com

    um texto potico vinculado a essa estrutura. 3 Andrade no precisa a data em que, segundo ele, presenciou, no Carnaval do Recife, ao Maracatu da Nao

    Leo Coroado.

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    as heranas africanas, transmitidas oralmente, desempenham um papel fundamental.

    Apesar das controvrsias, h um ponto inegvel a respeito das heranas africanas embutidas nessa forma musical [o samba]: os ciclos rtmicos (MUKUNA, 2000, p. 27).

    A cultura negra, da qual se herdou esses princpios musicais essencialmente rtmicos, passou por situaes histricas que, de um lado dificultaram sobremaneira a continuidade de suas prticas, mas de outro acabaram por fortalecer algumas destas formas musicais especficas. Denominados Res Vocale4, numa primeira impresso, as possibilidades de preservao da cultura original desses transplantados 5 parecem nulas.

    Entretanto, ainda que transportados em condies subumanas, sem a possibilidade de trazer consigo quaisquer representaes materiais de sua cultura alm de seu prprio corpo, o que no se podia prever era que este conhecimento estava como que traduzido e preservado atravs de ritmos que portavam em sua memria coletiva.

    Assim, aquela herana no precisou nada mais do que estar presente no universo musical daqueles pretos feito escravos6, para se perpetuar e ocupar hoje espao importante na msica brasileira. Num ambiente to adverso quanto o cativeiro, instrumentos de percusso, talvez os mais rudimentares e de mais simples construo, foram basicamente os nicos aos quais esses escravos tiveram acesso ou puderam construir.

    Entretanto, a conjuno entre uma herana rica em figuras rtmicas, instrumentos simples e uma transmisso oral eficaz foi suficiente para que, durante o longo perodo da escravido, esse patrimnio cultural se mantivesse vivo e ativo.

    Num segundo momento, a prpria abolio, e a conseguinte movimentao destes escravos libertos para os centros urbanos, foi responsvel por criar um espao nico para a realizao do que entendido hoje como msica popular. Esta, por sua vez, nasceu num ambiente onde foi possvel que, atravs de um processo

    4 Res Vocale, a Coisa que Fala.

    5 Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro, 1995, Companhia das Letras.

    6 A professora Petronilha Gonalves e Silva, primeira negra a ocupar uma vaga no Conselho Nacional de

    Educao (CNE), afirma que at hoje a forma que se ministra o contedo da histria racista, na medida em que esta histria comea na frica, e no na chegado dos escravos em solo brasileiro. Folha de So Paulo, 23/03/2002, caderno Cotidiano, p. C8. Assim, o prprio Jose Ramos Tinhoro em seu Os Sons dos Negros no Brasil (1988, p. 17), escreve: a importao de escravos africanos, quando o correto seria a importao de africanos, feito escravos.

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    de trocas e dilogos culturais, dinmicas de sntese fossem levadas a cabo de maneira intensa e sistemtica, gerando uma forma musical constituda por elementos de origens culturais e sociais diferentes.

    De um lado, a classe mdia (mesmo que baixa). De outro, os descendentes de escravos. Com os primeiros, a formao profissional que capacitava a ler partituras, o saber musical do tipo europeu, e a conseqente vinculao estilstica polca. J os segundos perpetuariam na musica a ausncia de qualificao profissional de seus ancestrais; eles seriam salvos, no entanto, pela paradoxal capacidade de criar um gnero que, sendo novo, seria ao mesmo tempo o ltimo estgio do batuque angolano (SANDRONI, 2001, p.139).

    No se pode considerar os elementos musicais de maneira separada do lugar que ocupam em culturas distintas, nem tampouco que tais elementos musicais so, at hoje, transmitidos de uma maneira prpria. A citao visa endossar a diversidade das origens musicais, mas da a afirmar que isso desemboca no batuque angolano supor a ausncia de intensos dilogos e atravessamentos culturais que se deram em solo nacional.

    O samba, naquela poca [final dos anos 30], no era visto como propriedade de um grupo tnico ou uma classe social, mas comeava a atuar como uma espcie de denominador comum musical entre vrios grupos, o que facilitou sua ascenso ao status de msica nacional (VIANNA, 1995, p. 120).

    Como se pode notar, a discusso aparece sempre levando em conta de um lado histria, etnia e consagrao social, e de outro, snteses ou denominadores musicais comuns. Se o ponto de vista de Vianna fosse musical, notaria que o samba ritmo pde ento ascender a esse status, na medida em que dialogou com canes. Consegue estar onde ningum espera. astcia (De Certeau, 1990, p. 101).

    De fato, a oralidade o meio de transporte por excelncia desse tipo de conhecimento. Interessante que a possibilidade de gravar um acontecimento musical , enquanto registro, imparcial. Portanto, para que se mostrem os atravessamentos que as estruturas rtmicas do samba so capazes de realizar, encontra-se inserido nesse trabalho um anexo sonoro, um compact disc que consta de nove faixas.

    Assim, as datas compreendidas entre primeiro e o ltimo registro desse anexo so exatamente a periodizao desse trabalho: desde um samba de Paulinho

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    de Viola de 1973 at um tema7 instrumental do grupo paulistano Terra Brasil, gravado 1998. Quer se verificar assim a hiptese central: ser que o samba, em diferentes roupagens, em diversos matizes, mantm sua estrutura rtmica intacta? Para tal tarefa as gravaes so inequvocas.

    O primeiro captulo trata de alguns acontecimentos marcantes na histria do samba. O trabalho compara a viso que certos autores tm sobre esses marcos, adicionando um vis analtico musical. A tentativa de visualizar como algumas dessas snteses se deram, bem como certas expresses artsticas puderam ser preservadas e transmitidas no escopo da oralidade.

    No segundo captulo, certas premissas musicais sero apresentadas sem as quais acredita-se que uma anlise do samba perderia muito de sua valia. E se possvel aceitar o fato de que a origem desse remonta a uma cultura distinta, sua anlise no pode ser empreendida com as ferramentas usualmente empregadas pela musica erudita.

    E no terceiro captulo, desenvolve-se efetivamente uma anlise musical, aliando ferramentas j consagradas no estudo da msica ocidental s proposies levantadas no captulo 2. Espera-se vislumbrar suas tticas traando seu caminho. Esse se inicia no samba rtmico, batucada, passa pelo samba de raiz, cano. Flerta com Tom Jobim e chega at msica popular instrumental atual.

    Nesse percurso, espera-se incrementar a viso atual do samba. Legitimar a oralidade como forma de transmisso adequada para certos tipos de conhecimentos e formas musicais. E ainda, propor novas ferramentas de anlise que permitam uma melhor compreenso do ritmo na msica popular brasileira.

    B) Hiptese central As estruturas rtmicas do samba atravessam intactas seus vrios matizes.

    c)Objetivos

    C.1. A relevncia em nvel institucional desta pesquisa tem seu foco na busca da legitimao da transmisso oral para as questes do ritmo.

    7 Denominao dos msicos de Jazz para as estruturas musicais sobre as quais improvisam.

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    Se aceitas as premissas no que se refere ao carter de sntese que marca a prpria msica popular, e depois de apontados em termos tcnico-musicais s limitaes as quais o ensino formal oficial tem diante desta tarefa, o que se quer demonstrar que a oralidade a maneira mais eficaz de se empreender um processo de ensino-aprendizagem para este tipo de conhecimento.

    C.2. Chamar ateno para o fato de que a herana cultural africana no s rica, como tambm mais detectvel e marcante no contexto brasileiro do que se supe usualmente. A excluso, at hoje notvel, da parcela negra da sociedade no impede que, musicalmente, a presena de suas manifestaes seja acentuada.

    Se for possvel no momento aceitar que a msica popular tem realmente um carter sinttico, pois rene, entre outros, elementos da cultura portuguesa e africana, pode-se propor formas de compreender melhor musicalmente a contribuio africana ao samba.

    No parece que o aspecto eurocntrico que a integra necessite ser enfatizado, pois seus processos j so aceitos, legitimados, e at tratados como mito, no sentido empregado por Barthes (1957), devido a todo um universo ideolgico que se construiu consagrando a msica erudita como grande arte ou arte culta. Essa construo inclui no s o prprio objeto musical, como tambm suas salas de concerto, seus autores e interpretes e seus processos oficiais de ensino.

    J no caso do samba enquanto ritmo, dada certa natureza marginal a que sempre se encontraram submetidas s comunidades que o praticam, nota-se que sempre houve uma presso excludente em relao as suas expresses culturais. Perseguies e atrocidades marcaram todo o processo de continuidade da existncia dessa forma de arte.

    C.3. Demonstrar que a persistncia das estruturas rtmicas uma resistncia da cultura. Isso no quer dizer que se fazia essa msica para resistir. O que se percebe, analisando com um pouco mais de acuidade, que a etnia negra portava essa riqueza de forma to intensa que, no obstante toda coao e represso a que foi submetida, encontrou caminhos para continuar realizando sua msica.

    Os delegados da poca (dcada de 20), beleguins que compravam patentes da Guarda Nacional, faziam questo de acabar com o que chamavam os folguedos da malta. As perseguies no tinham quartel. Os sambistas, cercados em suas prprias residncias pela policia, eram levados para o distrito e tinham seus violes confiscados. Na festa da Penha, os pandeiros

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    eram arrebatados pelos policiais (Donga, entrevista a Sodr, in SODR, 1998, p. 72).

    C.4. Compreender melhor o conceito de dilogos, de bricolagens musicais. Graas continuidade e presena da cultura negra, esses processos se intensificaram de tal forma, em especial aps a abolio e a conseqente migrao em direo aos centros urbanos, que o samba saiu de sua esfera funcional e religiosa, para se fazer presente em todas as camadas sociais.

    A compresso usual desse fato que a elite se apropria de expresses populares em seu prprio favor. A proposta aqui de, por um momento, inverter o ponto de vista. Se as estruturas rtmicas do samba produzem efeitos naqueles que as ouvem, fato que esses se propagam por toda a sociedade.

    Entretanto, se por um lado o tempo legitimou esta msica, por outro no se encontraram ainda formas cientficas de incluir e compreender de que maneira faz-se tecnicamente sua transmisso e preservao. No universo da oralidade, ele se preserva enquanto conjunto de clulas rtmicas e, ao mesmo tempo, dialoga com diferentes formas musicais. Atravs disso, esse ritmo pode transitar por esferas que ningum imaginaria.

    C.5. Objetivo deste tambm creditar ao prprio msico popular a peculiaridade de ser agente mediador cultural por excelncia na questo especfica das snteses to significativas para a msica popular. Na bibliografia sobre o tema, este ator social sempre aparece em segundo plano em detrimento de grandes cantores, ou de uma herana folclrica. Ao contrrio disso, deseja-se ressaltar a importncia desses msicos nesses processos. Suas escutas continham simultaneamente tradies at certo ponto conflitantes e oriundas de diferentes culturas. Essas s poderiam ento se tornar partes constituintes de um mesmo todo, na medida em que esses artesos tinham acesso a escutas diferenciadas. Aliado a isso, o contato com as diversas formas de transmisso desses contedos.

    D)Critrios tericos metodolgicos

    A oralidade a forma mais recorrente de transmisso de conhecimentos. Ela permeia todos os nveis de contato humano, seja na famlia, da sociedade ou da academia.

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    Desde a leitura da criana at a do cientista, ela precedida e possibilitada pela comunicao oral, inumervel autoridadeque os textos no citam quase nunca (DE CERTEAU, 1994, p. 263).

    No que se refere msica popular, sabe-se que existe uma infinidade de msicos que so julgados por sua proficincia, e no pelo fato de que tenham ou no uma educao musical formal, letrada ou escolstica. No caso dos ritmos em questo, isso se acentua ainda mais, pois este tipo de conhecimento nasceu na cultura africana, onde o corpo de saberes foi, por muito tempo, todo baseado nessa oralidade.

    Em certas camadas sociais, por exemplo, notam-se caractersticas de um comportamento que reproduz relaes tribais. Devido a seus traos informais, podem musicalizar desde cedo, de maneira intensa, crianas. Esse tipo de trao fortalece a idia da intensidade e da precocidade com a qual a oralidade pode agir como ferramenta de transmisso de uma dada prtica cultural.

    Assim a professora Ceclia Conde8, ao pesquisar em determinados morros do Rio de Janeiro9, nota que no exame do comportamento pedaggico das pessoas e grupos na transmisso de dados -conceitos ou tcnicas- referentes a manifestaes da cultura popular, chama a ateno integrao natural entre adultos e crianas (CONDE, 1985/85, p. 43).

    No so poucos os autores que compreendem e aceitam a oralidade como riqueza humana de suma importncia.

    Agora se reconhece que a linguagem oral um instrumento e uma riqueza fundamental da mente; a escrita, embora importante, sempre secundria (OLSON, 1997, p. 25).

    Desses, Michael De Certeau um dos que pesquisou de forma sistemtica as formas de utilizao que a cultura popular faz daquilo que lhe imposto pela cultura dominante. Numa reflexo das relaes entre arte e cincia, d sustentao a colocaes feitas aqui:

    Trata-se de um saber no sabido. H, nas prticas, um estatuto anlogo quele que se atribui s fbulas ou mitos, como dizeres de conhecimentos que no se conhecem a si mesmos. Tanto num caso como no outro, trata-se de um saber sobre os quais os sujeitos no refletem. Dele do

    8 Artigo publicado na revista do Conservatrio Brasileiro de Msica.

    9 Ver bibliografia.

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    testemunho sem poderem apropriar-se dele. So afinal os locatrios e no os proprietrios do seu prprio saber-fazer (DE CERTEAU, 1994, p.143).

    Ora, o ritmo trafega exatamente nessas condies. Nascido, desenvolvido e estabelecido na oralidade e na prtica. E, no h, por parte de certas esferas sociais, e dos msicos criados dentro dessas, uma reflexo sobre o que se sabe. um saber fazer coletivo, transmitido por caminhos sociais de contato direto, que engloba as relaes de pai para filho, de adulto para criana, de mestre para discpulo, enfim, de todas as formas de relao social possveis numa comunidade.

    Referindo-se s elites, De Certeau conceitua estratgia: uma vitria do lugar sobre o tempo, um gesto cartesiano de circunscrever um prprio num mundo enfeitiado pelos poderes invisveis do Outro (Id. Ibid., p.99).

    J na observao dos usos que os meios populares fazem das culturas difundidas pelas elites produtoras de linguagem, ressalta: os conhecimentos e as simblicas impostos so o objeto de manipulaes pelos praticantes que no seus fabricantes (Id. Ibid., p. 95). Assim, vai chamar de ttica a ao calculada que determinada pela ausncia de um prprio.

    Ela (a ttica) no tem por tanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversrio num espao distinto, visvel e objetivvel. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ocasies e delas depende, sem base para estocar benefcios, aumentar a propriedade e prever sadas. (Id. Ibid., p.100).

    Em outras palavras, enquanto empresas, exrcitos ou instituies podem, atravs de um prprio, criar estratgia para gerir as relaes com uma exterioridade, a prtica usa tticas que apontam para uma hbil utilizao do tempo e dos jogos que introduz nas fundaes de um poder

    Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vo abrindo na vigilncia do poder proprietrio. Ai vai caar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ningum espera. astcia. (Id. Ibid., p. 101).

    No captulo um, uma temtica recorrente a Casa da Tia Ciata. Mencionada de maneira constante pela bibliografia sobre o gnero, a Casa vista como um microcosmo das relaes sociais, culturais e artsticas do incio do sculo passado. De Certeau, referindo-se ao trabalho de Bordieu, afirma:

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    Este fragmento de sociedade e de anlise primeiramente a casa que , sabe-se bem, a referncia de toda metfora. Seria necessrio dizer: uma casa (Id. Ibid., p. 119).

    Nesse contexto, a Casa da Tia Ciata tem inmeras caractersticas que a tornam modelo rico para as relaes de escambos e sincretismos culturais que so analisadas aqui. Os inmeros dilogos e atravessamentos podem ser metaforicamente visualizados atravs de um modelo que alm de j constitudo, foi tambm desenvolvido por vrios autores. O que se acrescenta aqui so questes musicais mais especficas, que se valem do modelo ao mesmo tempo em que o incrementa.

    Entretanto, essa analogia no se baseia na importncia que essa Casa especificamente possa ter tido em detrimento a outras. Sabe-se que havia muitas Tias no Rio de Janeiro. O modelo interessa na medida em que pode ser analolgo as relaes scio culturais da poca. Assim, sala, cozinha e terreiro so reflexo dos lugares sociais onde aconteciam expresses culturais diferenciadas.

    A proposta que dois conceitos sejam empregados de forma concomitante para que o modelo se torne mais apurado. Primeiro, o conceito de biombos, barreiras scio-culturais entre seus cmodos, que ora impedem o contato entre condutas artsticas de origens to diversas, ora se permitem ser transpassados por astcias. Inmeras tticas utilizadas pelos que no contam com privilgios sociais que os permitam trafegar livremente pela Casa.

    Em segundo, a figura dos chamados mediadores culturais, sujeitos que, por razes diversas, tinham o passaporte que lhes possibilitavam circular por esses cmodos. Entretanto, o que chama a ateno que esse papel atribudo em geral a personalidades que, se situando na sala, podiam atravessar os biombos e assim cumprir este papel mediador.

    Musicalmente falando, no que se refere ao ritmo, o que interessa a forma que esses vazamentos se do no sentido contrrio. O centro da questo como foi possvel que as matrizes culturais geradas no terreiro, tratadas como selvagens e primitivas, tivessem influncia to pungente nos processos musicais posteriores. Como podem estruturas rtmicas to similares ser observadas num samba somente percussivo e num grupo de msica instrumental atual.

  • 12

    Se essa bagagem musical era, a princpio, to avessa s normas cultas daquele perodo, como foi possvel que se preservasse e, nesta bricolagem, chegasse a esferas artsticas to diferenciadas?

    Para tais discusses faz-se necessria uma anlise mais cuidadosa da concepo e interpretao dos elementos que compem o samba. Importante tambm verificar o grau de proximidade entre o ritmo em seus trajes cano e compar-lo com execues do ritmo tal como tocado ainda hoje, em contextos onde se encontra executado de maneira mais primordial, somente batucada.

    No que sua forma batucada deva ser considerada pura. Afinal, o samba quase nunca aparece assim. Onde ha samba, h canto, e muitas vezes dana. Mas as estruturas rtmicas so um denominador comum. Seja no seu formato percussivo, seja num disco de Tom Jobim, pode-se aferir a presena dessas mesmas clulas, ou de sua gama de variaes.

    Nosso objeto de estudo ento ser tratado paralelamente de duas formas distintas: Primeiro, um trabalho de especificao tcnica do ritmo em seu estado livre, ou seja, em gravaes realizadas por comunidades que ainda mantm tal forma musical em seu carter percussivo e informal, no sentido de no atado a uma forma cano.

    Segundo, a comparao desse samba com sua presena no que se vai denominar aqui de msica popular atual. Nesse caso, ser uma abordagem do ritmo inserido em vrios formatos, ou seja, aliado a formas harmnicas e estruturais diversas. O que se quer mostrar que existe uma proximidade muito grande entre o ritmo no seu estado puro e na sua presena em diferentes manifestaes musicais.

    A periodizao desse trabalho se refere especificamente a esse ponto. So analisadas e transcritas no captulo 3 gravaes que visam montar um quadro dessa travessia. Numa discusso sobre samba antigo, samba novo e Partido Alto, elegeu-se trabalhos registrados no perodo de 1978 a 1998.

    Pode-se assim vislumbrar um quadro panptico que ajude a compreender como se d hoje, no universo da msica popular instrumental, realizada por msicos preparados e sabe-se que esta capacitao remonta at os chores do incio do sculo (MORAES, 2000, p. 249) - a presena e a transmisso dessa sofisticada forma de arte musical.

    E, para que se possa analisar e transmitir uma expresso musical originada numa cultura diferente, necessrio que se pergunte at que ponto existe e se pode

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    notar a presena dessa cultura no momento atual. Tomando como universo a msica instrumental paulistana hoje, pode-se avaliar a capacidade desta comunidade musical de compreender e manter em seus procedimentos os processos orais nos quais se do a criao, a preservao, e a prpria significao do ritmo.

    Para que se faa isso com rigor, faz-se necessrio enfrentar no s algumas adaptaes nas maneiras de utilizar determinadas ferramentas analticas, como tambm, devido ao carter interdisciplinar que se pretende aqui, trabalhar com autores fundamentados em diferentes escopos do conhecimento.

    Em certas questes, praticamente inexistem estas ferramentas, pelo menos at onde o levantamento bibliogrfico desta pesquisa se acercou. Assim o trabalho se realiza atravs de algumas releituras de abordagens j utilizadas, mas no necessariamente j elevadas ao status de metodologia.

    Ao se fazer um cruzamento entre o recorte histrico, tnico e sociolgico da questo negra com uma perspectiva analtica musical strito senso, quer se compreender o valor e a importncia do componente africano da msica popular. Por enquanto, sabe-se que, transmitido oralmente, talvez seja o elemento que fundamenta e caracteriza a prpria noo de msica popular brasileira.

    A separao tcnica, quase didtica, usualmente utilizada para que se empreenda essa anlise se inicia pela diviso do contedo sonoro da msica popular em melodia, harmonia e ritmo. Tomando como exemplo um trecho de partitura usual para os praticantes desse tipo de msica (exemplo 1), nota-se que existe uma melodia escrita nos moldes usuais da escrita musical ocidental. Claves, acidentes, frmula de compasso, enfim, todo o aparato usual necessrio para que se leia10 as alturas e duraes das notas que constituem uma dada melodia, bem como a cifragem, que representa os acordes do acompanhamento.

    Saber-se que a conformao rtmica da melodia, no caso do samba, est estritamente ligada ao prprio ritmo. Ao utilizar o padro ocidental de notao, percebe-se certo grau de complexidade na forma de escrever o ritmo da melodia, e isso pode ser atribudo a uma discrepncia entre origens musicais. Se o ritmo preserva algumas caractersticas africanas, e a escrita foi criada na Europa, e de se supor que existam certas dificuldades nessa transposio de linguagens.

    10 Apenas a ttulo de esclarecimento, o termo utilizado exatamente leitura musical.

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    Usando o conceito de cometricidade e contrametricidade11, nota-se que o ritmo meldico aparece na partitura como sendo contramtrico, ou seja, deslocado e irregular. Exemplo 1

    Paradoxalmente, essas divises de difcil leitura para um msico de formao acadmica, so executadas com naturalidade por aqueles que tm sua vivncia musical dentro de uma comunidade que cultive, via oralidade, este rico e variado corpo de figuras rtmicas. Uma frase musical que tenha uma codificao rtmica complexa (exemplo 2, ver compassos 5 e 6) em partitura, ser comunicada oralmente a algum que conhea essa linguagem com facilidade.

    Mas o que interessante no caso brasileiro que o sistema rtmico clssico europeu, do qual faz parte, no pas, a msica escrita, inclusive a msica popular escrita, veio a ser questionado em seu contato com prticas musicais afro-brasileiras (SANDRONI, 2001, p. 26).

    A questo no se o sistema foi questionado, j que em termos de escrita o que est disponvel. A pergunta se existem outros mtodos de transmisso teis e eficazes para esse tipo de msica. Afinal, pode ser que ritmo da melodia de uma cano samba seja to afro-brasileiro, e neste sentido, com uma constituio

    11 O conceito ser aprofundado. Por hora, basta colocar que comtrico quando o ritmo tende a concordar com a

    pulsao ou realiza divises simples, e a idia de contrametricidade se baseia no fato de que a grande maioria das colocaes rtmicas no samba tende a contrariar a pulsao, a estar num constante processo de sincopao. O reconhecido msico norte americano Winton Marsalis, falando da sincopa no jazz, coloca que sincopar sempre realizar os acentos em lugares que surpreendam o ouvinte.

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    rtmica to diversa do universo europeu de concerto12, que a escrita que caracteriza o ltimo seja inadequado ao primeiro.

    Com relao a harmonia da pea, para montar os acordes do acompanhamento, a msica popular se vale da cifragem (ver letras sobre a partitura no exemplo1). O msico (ou msicos) responsvel pela execuo do texto harmnico, dentro de uma determinada esfera de possibilidades, poder realizar desde um acompanhamento simples, at uma conduo harmnica primorosa. Devido as suas caractersticas, esta competncia se configura como uma habilidade mais europia, j que se refere organizao das alturas musicais.

    No caso do samba, o que se nota que o estudo das relaes entre os acordes, e entre eles e a melodia, momentaneamente desconsiderando o ritmo, que tal estudo pode se realizar com as mesmas ferramentas utilizadas pela msica europia. Ou seja, a abordagem analtica das relaes entre alturas musicais, usando-se a harmonia tradicional ou funcional, a mesma que se usaria para analisar Beethoven, por exemplo.

    As diferenas que porventura vm tona referem-se muito mais ao tipo de tratamento composicional que se emprega a um dado universo temtico, de acordo com a origem e formao do autor, do que a diferenas do ponto de partida meldico ou harmnico em si.

    No captulo 2, que se refere s premissas musicais, so feitas consideraes sobre esses ritmos em estado mais rstico (adjetivo eurocentrista?), s percussivo. Incluem-se tambm as limitaes engendradas a partir do momento em que se insere dentro de uma cano samba. A execuo, no nvel rtmico, ter um conjunto de similitudes capaz de, ao abstrair-se de uma cano samba sua harmonia e melodia e trazer tona sua constituio rtmica, fornecer ao ouvinte a sensao clara de que estamos diante de uma herana musical contramtrica, deveras rigorosa na utilizao ou no de determinadas figuras rtmicas, e provavelmente no europia.

    No h interesse aqui em tratar com profundidade de questes organolgicas, exceto em dois pontos: o das limitaes s quais o negro estava submetido em relao ao acesso a determinados instrumentos, que basicamente se limitavam aos

    12 Entende-se por repertrio de concerto a literatura musical consagrada, composta por aqueles considerados

    grandes autores eruditos, desde a renascena at os modernos. No se pretende aqui tratar da chamada musica erudita contempornea, pois esta inclui novos procedimentos que no dizem respeito ao tema tratado.

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    de percusso, e de uma distino um pouco mais acurada das funes bsicas de alguns desses em execues puramente percussivas do ritmo aqui abordado.

    Tambm de maneira interessante para o que se pretende colocar aqui, ao se observar uma partitura de msica popular para o baterista ou percussionista, no se ver nada diferente do que uma partitura praticamente em branco, quando muito com apenas as marcaes da forma geral do arranjo da pea. Eventualmente, no caso ter sido escrita para um baterista ou percussionista mais preparado, e que portanto, seja letrado em msica, nota-se alguns pontos onde uma determinada figurao rtmica ser feita por todo o grupo13, aparecendo escrito na partitura para que ele tambm a execute.

    A observao, a partir da, sobre a questo da rtmica do acompanhamento harmnico, mostra um ponto chave para o qual se quer chamar ateno. Jos Maria Neves, ao analisar o lbum manuscrito Modinhas do Brasil, descoberto pelo musiclogo francs Gerard Behague na Biblioteca da Ajuda em 1968, indica que cada vez que h notao essencialmente rtmica no acompanhamento, com ausncia de arpejos, aparece cifragem.

    Ora, novamente a idia de cifra indica que existe algo a ser decodificado. No que se refere a este cdigo na msica popular, o que deve ser trazido luz a montagem do acorde, a harmonia de uma dada cano. Esse , pelo menos, o entendimento habitual.

    Mas da observao de J. M. Neves possvel inferir muito mais do que apenas isto: o que aparece como conhecimento cifrado tambm a maneira como se deve executar o ritmo da harmonia14. E da mesma forma com que o msico de melhor formao harmnica ser capaz de montar um melhor acompanhamento, o de maior conhecimento rtmico participar da pea, neste aspecto, com muito mais eficcia, usando seu conhecimento e experincia nesta rea.

    Pelo fato de ser um conhecimento tcito de um msico popular de determinado pas, perdeu-se a capacidade de compreenso que isto efetivamente um conhecimento, uma bagagem cultural. Portanto, pode-se trabalhar em diferentes

    13 Neste procedimento em arranjo, num dado fim de frase ou trecho da pea, todo o grupo realiza em unssono

    uma dada figura rtmica. Isto, em linguagem de arranjo, chama-se conveno. 14

    A discusso aqui no a do ritmo harmnico no sentido empregado pela msica erudita. Refere-se sim a forma que os acordes so executados dentro das figuraes de um ritmo popular, as clulas rtmicas do acompanhamento.

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    nveis de qualidade tanto na harmonizao como na rea rtmica. A questo : o que fazer para que se entenda e valorize tal competncia ?

    Para que se inicie a compreenso do que seriam essas diferentes caractersticas e competncias rtmicas, e tambm se possa posteriormente criticar, vai se utilizar aqui os conceitos adotados por Sandroni (2000) de cometricidade e contrametricidade mencionados anteriormente.

    No primeiro se v, como no caso geral da msica europia, uma tendncia de relao direta entre a pulsao e figuras que, em geral, reforam as subdivises regulares e matemticas do prprio pulso. Este tambm o ponto de partida do estudo da rtmica, chamado de diviso musical. Construda numa norma de notao que fruto dessa determinada cultura, se mostra adequada a ser escrita, lida e at mesmo composta nestes parmetros.

    Com relao a contrametricidade, parece inevitvel que j se est partindo de um sistema como referncia, para depois afirm-lo como o oposto. De certo modo, no se conta com outra perspectiva, pois o prprio paradigma de se empreender uma anlise fruto de uma viso ocidental de mundo. Esse universo rtmico foi constitudo sem levar em considerao a escrita. Parece inusitado considera-lo contra o metro, se ele nem mesmo o considerava.

    O que se busca, ento, com o intuito de atenuar esse olhar, engendrar neste ponto a viso que Muniz Sodr tem do ritmo, para que se amplie o quadro de referncias, adicionando, assim, uma perspectiva respeitadora do lugar que o ritmo ocupa na tradio afro-brasileira. No se trata de fazer apologia da contribuio negra. Entretanto no se pode ver o assunto com uma tica que se supe isenta, mas est embotada pelas teias institucionais.

    O privilgio detido pela problemtica da represso no terreno das pesquisas no surpreende: as instituies cientficas pertencem ao sistema que estudam; examinando-o, elas se conformam ao gnero bem conhecido da histria da famlia (uma ideologia crtica nada ao seu funcionamento, pois a crtica cria uma aparncia de distancia no seio da pertena) (De Certeau, 1995, p. 105).

    Os exemplos musicais escritos e gravados so ferramentas que auxiliam na compreenso deste ponto. Comparaes detalhadas do ritmo em seu estado percussivo e sem autor com sua presena em composies consideradas do gnero, mas em contextos j europeizados por seus usos formais e harmnicos so de grande valia. O intuito e mostrar a extensa gama de similitudes em nvel rtmico destas formas musicais.

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    E a nfase exatamente no anexo das gravaes (anexo V). Em vrios momentos, ao ler determinado trecho, vai se propor a audio de uma das faixas do CD que acompanha esse trabalho. Vivas na oralidade, as estruturas rtmicas se preservam nas gravaes, que no as tornam divises musicais matemticas. J as partituras servem como exemplos analticos e visuais, mas no que tange ao ritmo, so apenas caricatas.

    E)Debate sobre a produo historiogrfica Os dilogos e atravessamentos, que geram conjuntos de combinaes entre

    elementos musicais distintos, so processos de trampolinagem, de inexpugnveis caminhos de apropriao e expropriao da cultura dominante pela dominada. Veja o conceito:

    Palavra que um jogo de palavras associa acrobacia do saltimbanco e a sua arte de saltar no trampolim, e como trapaaria, astcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos contratos sociais (DE CERTEAU, 1990, p.79).

    O lugar que essas diferentes expresses musicais ocupam em culturas diversas, faz com que seus processos de manuteno, adaptao e transmisso se dem realmente em mundos diferentes. Nesse sentido, a msica ocupa uma posio privilegiada de arte com um alto grau de permeabilidade dada sua polissemia, ento permite resultados impares, alguns dos quais so discutidos.

    Nveis de discusso paralelos sero propostos: caso esta se d ora num parmetro mais tcnico em relao ao texto musical, ora transite numa esfera que se relaciona s questes da significao de uma expresso artstica dentro de determinada cultura. Ou ainda, que a discusso entre em um espectro ideolgico.

    Hermano Vianna afirma em seu O Mistrio do Samba (1995) que a sntese do samba foi o coroamento de uma tradio secular de contatos entre vrios grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras (VIANNA, 1995, p. 34). Necessrio certo discernimento nessa colocao, pois aqueles que realizaram esta sntese (partindo-se novamente do pressuposto de que o estilo uma sntese) foram os prprios msicos, e estes no tinham participao direta no processo de criao e consagrao de ideologias. Se os resultados destes trabalhos foram utilizados para tais fins, isso no mais uma questo musical.

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    Na observao dos contatos entre elite brasileira e msica popular, a ateno de Vianna se volta aos processos de oficializao do samba como retrato de uma cultura mestia. Musicalmente vislumbra-se, atravs da Casa da Tia Ciata15, que as snteses da msica popular se do na cozinha, e no na sala. Sua maior visibilidade interessa mais a questes mercadolgicas do que propriamente a criao artstica.

    Ou seja, aqueles que participaram deste processo scio cultural quase artesanal de criao de um estilo musical, fruto de snteses e dilogos entre diferentes culturas, no necessariamente tm qualquer relao com os aparatos ideolgicos que ora visavam coibir, ora alar o samba posio de msica representativa do pas.

    preciso considerar que era imprescindvel, para a realizao deste fenmeno, que uma das escutas do msico popular estivesse ligada ao terreiro. Embora de difcil aceitao pela sociedade da poca, dada a proximidade ao ritual religioso popular 16 de carter afro-brasileiro, escut-lo era imprescindvel para que as solues rtmicas fizessem parte dos inmeros formatos sob os quais o samba se d hoje.

    Nesse aspecto, a tendncia bibliogrfica de no se privilegiar o msico popular, nem seu contato com manifestaes de origem tnica. O terreiro era o lugar onde se realizava, preservava e desenvolvia o ritmo em seu estado mais primordial. Para que essa miscigenao com a cano tonal e com a letra 17 fosse possvel, o msico era quem atravessava os biombos.

    Adotando aqui o conceito de mediadores culturais (id. Ibid., p. 41) numa perspectiva musical, e no mercadolgica ou ideolgica, os msicos devem ser situados no biombo cozinha/terreiro, e no no biombo sala/cozinha.

    Mas a sncopa brasileira teve maior influncia institucional no samba, possivelmente devido a maior proximidade dessa forma musical com os terreiros - nome dado s comunidades litrgico-culturais que agrupam os descendentes de africanos no Brasil (SODR, 1998, p.26).

    Quando Vianna se refere s questes relativas aos processos de urbanizao, embora isto ajude a traar um panorama da dinmica desses biombos e contatos, novamente surge uma impessoalidade que furta das mos dos msicos sua funo scio-artstico-cultural. Num parntese, afirma que muitas famlias

    15 Vide captulo 1

    16 Terminologia proposta por Wisnik.

    17 No sentido moderno de autoria, j que no samba antigo havia o canto, mas esse muito mais improvisado.

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    baianas se mudaram da Bahia para o Rio de Janeiro aps a abolio, trazendo em sua bagagem o candombl e vrios ritmos do samba, que aqui foram transformados no samba carioca. Quem os transformou, Pereira Passos, as Tias Baianas, ou os prprios msicos que estavam ali, tcnicos em sua area, e oportunamente diante de manifestaes musicais to distintas?

    A qualidade de seu trabalho se manter desapegado num tema que conjuga tantas paixes, as questes relativas a pureza do samba. Este olhar antropolgico de Vianna ajuda a neutralizar uma discusso to incua quanto essa. Sabe-se que no existe pureza, nem gnese. Uma rede complexa de trocas, intercmbios, dilogos e atravessamentos acontecem continuamente no mbito da msica, como tambm da cultura em geral, no permite que se afirme nenhuma manifestao como pura.

    Entretanto, existe algo que no pode ser chamado de puro, talvez possa ser visto como preciso. Ainda hoje, ao se escutar um grupo de msica instrumental moderna, transformando tudo que se refere a alturas em apenas ritmo (por exemplo, o som do piano em atabaque, e assim se ouvisse s os ataques, e no os acordes), o resultado um batuque, um samba com um rigor surpreendente na presena de figuras rtmicas muito bem caracterizadas.

    Nota-se at algumas daquelas que Mukuna (2000) entende como trazidas da frica. E, mais importante ainda do que a exatido ou no destas figuras, o vigor da presena das cinco caractersticas bsicas que o estilo herdou e consagrou e so aprofundadas no captulo 2: ciclicidade, contrametricidade, simultaneidade, acentuao e ginga .

    J Sandroni, como msico, pode abraar simultaneamente diferentes abordagens do tema. Quando coloca que a batida do violo no um simples fundo neutro sobre o qual a cano viria passear com indiferena (2001, p.14), parte de uma suspeita legtima. Tambm algumas das premissas musicais com as quais abre seu livro esto de acordo algumas das ferramentas terico-metodolgicas que se utilizam no captulo dois e trs. importante mencionar alguns parmetros adotados em comum, bem como as necessrias ressalvas.

    Um conceito importante que se adotar aqui, em comum com Sandroni, ser o de contrametricidade. Entretanto, tal idia s pode ser concebida caso se aceite que h uma metricidade vigente. E, musicalmente falando, no existe uma

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    metricidade padro, para que se defina a outra pela negao. Notar-se que, em linguagens musicais diversas, existem mtricas mais ou menos constantes ou usuais. O prprio autor nos lembra que:

    Na frica Negra, ao contrrio, elas (as figuras musicais contramtricas, que estaro detalhadas no captulo 3) pertencem ao senso comum musical, freqentando inclusive o repertrio rtmico das crianas (Id. Ibid., p.25).

    Parece tambm que, na tentativa de enumerar os gneros musicais, muitos autores despedem energia ao tentar defin-los, com a preocupao de serem precisos. No entanto Sandroni acerta quando coloca: nos informavam basicamente que se tratava de msica sincopada18, tipicamente brasileira e propcia aos requebrados mestios (Id. Ibid., p. 31). Ou seja, ao invs de se preocupar em nomear uma infinidade de categorias rtmicas, tais como maxixe, cateret, habanera, etc, o autor centra-se no que musicalmente deve-se destacar: trata-se de msica com caractersticas contramtricas.

    Ligado inusitada forma pela qual os africanos trouxeram sua bagagem cultural, Sandroni, referindo-se escolha do prprio ttulo de sua obra que foi buscar em Noel Rosa, Feitio Decente 19 acha uma frase primorosa, na qual coloca que A doce vingana dos negros libertos produzir uma msica que escraviza quem a escuta: decente, porm feitio (Id. Ibid., p.171).

    Novamente isso corrobora a idia do poder que esta trama rtmica exerce sobre seus ouvintes. E como colocado acima, enquanto ritmo do terreiro, esse no chegaria jamais a ser decente. Assim, joga com canes, passaporte para que este feitio continue sendo ministrado, ou seja, tornado aceitvel e, assim, pronto para os atravessamentos subseqentes.

    Sem trafegar por assuntos de ordem teolgica ou mgica, no deixa de ser interessante colocar a pergunta de como uma msica que nasce e/ou sobrevive no terreiro, dialoga com canes, as influencia e chega at a sala.

    Se isto soa forado, pode-se observar que, ainda que existam inmeros sambas e seus diversos autores, h sempre um elo forte entre todos eles, o fato de que todos contm o samba (sem autor) em seus principais fatores constituintes. Quando Sandroni coloca que os cantores que no so letrados em msica dividem de maneira mais contramtrica20, percebe-se a natureza sincopada da

    18 O conceito de sincopa empregado aqui est colocado no capitulo 2 e aprofundado no 3.

    19 Pequeno trecho da composio de Vadico e Noel Rosa intitulada Feitio da Vila.

    20 Vide depoimento de Francisco Alves in Sandroni, 2001, p.212/213.

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    melodia, caracterstica clara do samba, bem como a oralidade como forma eficaz de aprendizagem.

    O ritmo (ou ritmos), como veremos no captulo adiante, absolutamente similar, seja num batuque ou na subdiviso rtmica do acompanhamento harmnico no disco de Tom Jobim. Tudo isso ratifica a idia de que as estruturas rtmicas do samba chegam por inmeras vias escuta do brasileiro. Vale dizer que essas similitudes fazem com que aquele que pensa estar ouvindo uma cano, est, de fato, escutando o samba do terreiro, ainda que supostamente como pano de fundo.

    No sentido geral de seu trabalho, v-se apenas um equvoco, exatamente no que ele coloca como hiptese central, o fato de que o samba mudou seu paradigma de uma figurao rtmica menos sincopada (exemplos no captulo 3), para uma mais contramtrica, nas primeiras dcadas do sculo passado.

    Ora, o fato que a legitimao social ou comercial deste gnero no tem relao com o fato de que ele o que sempre foi. Colocado de outra forma; ainda que o samba, com estas caractersticas mais contramtricas no tivesse alcanado a posio que ocupa no cenrio nacional, ou seja, se no tivesse encontrado e passaporte para transpor certos biombos sociais, ele ainda continuaria existindo dentro de nossa cultura.

    Mesmo que sua existncia fosse de pouca relevncia cultural no sentido de seu alcance, ainda estaria l. No interessa, desconsiderando questes de mercado, se houve uma mudana no que aceito como sendo ou no o legtimo samba. O que ele chama de samba antigo continua vivo e sendo executado por inmeros msicos em diversos trabalhos, alguns desse explicitados em gravaes que seguem anexas a esse trabalho.

    Talvez para Vianna, como antroplogo, seja importante o que se consagrou ou no como o legtimo samba. Mas para o msico Sandroni, que nos lembra que o mais importante no a nomenclatura , e sim caractersticas contramtricas, no deve importar o uso que se fez do samba. Essa homogeneizao no interessa ao msico, que deve sim, notar a presena da diversidade, em termos de possibilidades rtmicas hoje.

    Parece patente que no houve uma gnese na Estcio. Essas figuras rtmicas no foram inventadas ali, como possvel perceber na leitura de Mukuna (2000). Eles vinham trafegando pelos anais da histria, assim com ainda hoje fazem.

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    Assim, no se pode confundir difuso ou homogeneizao, com criao ou ainda com o nascimento destas figuras rtmicas.

    O rdio e as necessidades de fixao da idia de autoria por motivos econmicos cristalizaram algumas das possveis figuraes do samba como sendo o samba. Alm disso, um dos argumentos principais que utiliza se baseia na idia de que a time line do samba moderno mais contramtrica que o samba antigo Essa discusso feita de maneira detalhada no captulo 3. E, com se pode notar ali, no se pode afirmar isso.

    Em relao a Mukuna, como j citado, sempre til reforar a idia de que existe uma inegvel contribuio da cultura africana msica popular, os ciclos rtmicos (MUKUNA, 2000, p. 27). Como se observar no captulo dois, existe uma certa fragilidade, ao menos no que tange ao olhar do msico, em se resumir um ritmo a apenas uma linha rtmica. Entretanto, para efeito de discusso, momentaneamente vamos partir dessa idia.

    J que seu trabalho Contribuio Bantu na Msica Popular Brasileira (2000) - tenta exatamente verificar a relao entre aquelas figuras na frica, e a vinda delas para o Brasil, a primeira necessidade seria a de delimitar um espao geogrfico no continente negro para que se pudesse ento, num segundo momento, compar-las com as presentes aqui.

    Suas observaes relatam que, durante esse transplante cultural, preservou-se tanto a estrutura organolgica de alguns instrumentos, como tambm a ciclicidade de padres rtmicos. Isso, por si s, independentemente da exatido (ou traduo) dessas figuras, j confirma a influncia de uma abordagem musical que se d por paradigmas diversos do que se compreende por arte elaborada em termos eurocntricos. Pode-se ento, atravs de Mukuna, reafirmar novamente cinco pilares fundamentais da msica afro-brasileira: a ciclicidade, contrametricidade, simultaneidade, acentuao e ginga.

    Outro ponto importante a se notar, no s no que se refere aos ritmos, como tambm s festas onde esses eram executados, que, na literatura em geral d-se excessiva nfase a uma idia de lascvia e sexualidade exacerbada que envolvia tais eventos. Essa leitura ocidental, que via como dionisaca o esprito dessas manifestaes, tem carter preconceituoso.

    Inusitadamente, existe um aspecto interessante nesse pr-julgamento, pois ao menos se nota que a realizao dessas festas, onde o ritmo sempre estava

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    presente, realmente tinha o poder de incomodar aqueles que no compreendiam o que se passava. Se Mario de Andrade teve de se afastar para pr em ordem o respiro, o efeito entre portugueses e viajantes que relataram essas cerimnias devia ser contundente.

    Mas a leitura de Mukuna pode nos esclarecer alguns pormenores desta questo. Assim, ele lembra que muitas destas cerimnias, na frica, tinham uma funo inicitica em termos de educao sexual e em outros casos, de preparao para o casamento (Id. Ibid., p.92). Isso muda certas apressadas perspectivas que se supem analticas, quando so apenas fruto de ideologia preconceituosa ou mesmo de interesses econmicos. Conflito moral para o grupo social dominante catlico e capitalista, que de um lado via sexo como degradao e de outro, fomentava a procriao em cativeiro, enquanto essa lhe pudesse gerar dividendos.

    Talvez o ponto mais difcil de lidar, j que no proposta deste estudo um aprofundamento no qual circule a idia religiosidade, exatamente a busca do autor em traar o que chama de obliterao (sacrifcio) dos valores tnicos (Id. Ibid., p.29). Nesse contexto, as questes se referem ao lugar cerimonial que essas clulas rtmicas ocupavam na frica em contrapartida a seu papel no Brasil hoje.

    Em sua viso, houve uma migrao do sagrado em direo ao profano. Ou seja, estas figuras tinham um carter invocacional dentro de um contexto operatrio funcional da tradio africana, e hoje, segundo Mukuna, ocupariam o espao profano, de uma msica popular com dotes vulgarizados.

    Para que se aborde com mais propriedade essa discusso, duas colocaes parecem pertinentes. Juliana Elbein dos Santos 21, em sua tese de doutorado, coloca que o isolamento em que se davam no Brasil as cerimnias de origem africana, tende a ser justificado sempre pela perseguio, por parte das autoridades, que esses rituais sofriam. Santos ento nos lembra que muitas vezes o que se dava era o contrrio, no se aceitava a presena de brancos.

    Isso redimensiona a idia de que essa fosse uma cultura constituda apenas com base na resistncia. Em muitos casos, no eram oprimidos tentando salvar suas tradies, e sim figuras importantes dentro da hierarquia africana que simplesmente no estavam interessadas em compartilhar suas vidas religiosas com a cultura dominante.

    21 Tese de Doutorado em Etnologia na Universidade de Sorbonne: Os Nag e a Morte, Editora Vozes, 1977.

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    Deve-se levar em conta ainda dois outros fatores: primeiro, a presena e continuidade significativa de uma expresso religiosa afro-brasileira, nas quais inclusive at hoje muitas figuras musicais (toques) so interditas, ou seja, no podem nem sequer ser executadas num contexto profano.

    Segundo, curioso tambm saber que, muito embora exista um acordo em torno da idia de que a palavra samba se origine em "semba, que quer dizer umbigada, uma forma de dana africana que pode ter originado essa dana/msica, Cmara Cascudo nos lembra que samba tambm um verbo Congus que significa, entre outras coisas, rezar (CASCUDO, 1999, p.137).

    O fato de no parecer cientfico no momento engendrar uma discusso acerca do que seria uma figura musical de carter invocacional, no impede que se coloque a questo: se essas figuras tinham algum poder de invocao, por que esse se perderia no movimento de levar uma figura rtmica de um contexto a outro?

    Recolocando: aos olhos (ouvidos) de um auditor, se aceito o fato de que um padro rtmico cclico produz algum efeito em seus ouvintes, no parece claro por que ele perderia sua fora ao ser aplicado em outro contexto, agora mais profano.

    Nesta direo, a discusso ganha uma tonalidade quase inusitada: o samba trampolina, joga com a cano para se tornar um ou outro samba. Com essa mscara de credibilidade, pode adentrar no universo da cultura oficial, ser gravado e reproduzido no rdio. Com isso, essas figuras e ciclos de fora invocadora passam a ser ouvidas e, supostamente, exercer seus efeitos nos quatro cantos do pas?

    Dentro desse vis, Muniz Sodr um autor que pode auxiliar na re-significao dessa temtica. Alm de sua vida acadmica, Sodr ocupa uma posio na prpria hierarquia religiosa afro-brasileira (Oba Xang nil Op Afonj), o que faz com que desloque seu ponto de vista para mais prximo do que se pretende aqui, no sentido de que no se trata apenas de um intelectual que fala de fora, mas algum com autoridade para falar tambm desde dentro da cultura negra.

    Apesar de suas caractersticas mestias (misto de influncias africanas e europias), essa msica fermentava-se realmente no seio da populao negra, especialmente depois da Abolio, quando os negros passaram a buscar novos modos de comunicao adaptveis a um quadro urbano hostil (SODR, 1998, p. 13).

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    Ao se referir casa da Tia Ciata, que ser discutida no captulo um, prope um modelo que utilizado por inmeros autores, incluindo os j discutidos, e ainda Wisnik, Roberto Moura e Tinhoro.

    A economia semitica da casa, isto , suas disposies e tticas de funcionamento, faziam dela um campo dinmico de re-elaborao de elementos da tradio cultural africana, gerador de significaes capazes de dar forma a um novo modelo de penetrao urbana para os contingentes negros. (Id. Ibid., p. 15).

    Embora considerado um baluarte da cultura de resistncia, o que vai interessar aqui sua contribuio para uma viso diferenciada das questes rtmicas dentro da cultura negra. Para o ritmo prope ento:

    O ritmo restitui a dinmica do acontecimento mtico, reconfirmando os aspectos de criao e harmonia do tempo (Id. Ibid., p. 19).

    Ainda que no se pretenda discutir aqui questes cosmolgicas seria interessante lembrar, com Mukuna, do poder invocatrio das figuras e ciclos. E recolocar algumas questes: Extrado do contexto, perderiam estas figuras sua potncia, seu poder, seus efeitos?

    Como todo ritmo j uma sntese (de tempos), o ritmo negro uma sntese de snteses (sonoras), que atesta a integrao do elemento humano na temporalidade mtica.(Id. Ibid., p. 21).

    Mesmo no utilizando o conceito de contrametricidade, Sodr caracteriza esses deslocamentos, essa nfase no tempo mais fraco, como um processo de utilizao ostensiva de sncopas, o que apenas uma maneira diferente de colocar a mesma questo. Assim, no captulo 2, pode-se notar que a prpria noo de tempo forte questionada.

    Melhor interpretar ento a origem do samba no transplante, no sentido empregado por Darcy Ribeiro (1995), de toda uma cultura musical que, mesmo contendo suas prprias heterogeneidades, tem, como nos mostra Mukuna, traos gerais em comum com a regio da frica de onde se originou o maior contingente de negros trazidos ao Brasil, o Reino do Congo (2000, p. 38).

    deste sistema de que fala a sncopa do samba. A insistncia da sncopa, sua natureza iterativa constituem o ndice de uma diferena entre dois modos de significar musicalmente o tempo, entre a constncia da diviso rtmica africana e a necessria mobilidade para acolher as variadas influncias brancas. Entre o tempo fraco e o forte, irrompe a mobilizao do corpo, mas tambm o apelo a uma volta impossvel, ao que de essencial se perdeu com a dispora negra (SODR, p. 67).

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    Por esses caminhos e indicaes que se pretende empreender uma anlise musical detalhada das estruturas rtmicas do samba , e, ao mesmo tempo, fortalecer a conscincia de que no possvel compreender essa herana musical sem que se reveja o papel que ocupa (ou ocupava) na cultura que a geriu.

    Assim o samba emprega essas sofisticadas tticas, atravs da oralidade, e se re-significa. Avesso a normatizaes, categorizaes e verbalizaes, a vai caar. Fugidio em suas maneiras de jogar, perpassa, em seus mil disfarces, todos os mbitos e camadas da sociedade. E em todas as suas formas, das mais primordiais as mais sofisticadas, consegue estar onde ningum espera. astcia.

    F) Corpus O cerne do ncleo documental desse trabalho o anexo de gravaes. Existe

    uma demanda geral de partituras em trabalhos ligados a msica. Talvez isso d aparentemente mais credibilidade acadmica. Mas a nica forma de demonstrar inmeros aspectos aqui salientados via audio.

    Se a partitura categoriza e cristaliza, a gravao, ao registrar a manifestao sonora no eixo do tempo de maneira isenta, deixa-se transpassar pela ginga. Mostras seus detalhes mais sutis atravs dos interstcios que as possibilidades da execuo deixam entrever.

    Entretanto, para efeitos ilustrativos e analticos, tanto de carter visual quanto musical, algumas partituras aparecem anexadas. Citadas durante o texto, tm sua utilidade como fonte de consulta.

    Anexo I. A primeira partitura um trecho do arranjo de Rui Carvalho para a msica Upa Neguinho, de Edu Lobo e G. Guarnieri.

    Anexo II. A segunda partitura a transcrio de uma faixa do CD Batucada Fantstica, intitulada Samba Quente. Faixa 3 do anexo V.

    Anexo III. A terceira partitura, a transcrio da faixa Tamborins do mesmo CD, tambm faixa 5 do anexo V.

    Anexo IV. A quarta partitura da msica Atravessou, de Paulinho da Viola. Faixa 7 do anexo V

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    Anexo V. O anexo cinco um compact disc que contm 9 faixas. Algumas delas so acompanhadas da partitura completa, e outras de apenas trechos que se encontram no decorrer do texto. Essa diferenciao baseia-se na necessidade ou no de dados para a ilustrao, conforme o caso. No final desse trabalho encontra-se uma ficha tcnica detalhada de cada uma das faixas desse anexo.

    Em segundo, necessrio empreender uma busca no intuito de determinar de quais etnias se herdou cada um desses elementos. Qual cultura, e mais tarde, qual camada social, se destaca no cultivo e desenvolvimento do samba? uma jornada um tanto complexa. Pode-se atribuir um trao musical a uma etnia? Pode-se separar esses traos num tipo de msica?

    Em terceiro lugar, uma vez sendo a influncia portuguesa e por extenso, europia supostamente a mais vasta, tudo o que se refere a uma abordagem analtica de um dado contedo musical, est por demais comprometida com os paradigmas dessas culturas. Vale dizer: o contexto onde se pratica a anlise no isento. Suas regras e valores tm tambm pertinncia social, cultural, e at mesmo tnica.

    Uma sociedade seria composta de certas prticas exorbitadas, organizadoras de suas instituies normativas, e de outras prticas, sem-nmero, que ficaram como menores, sempre no entanto presentes, embora no organizadoras de um discurso e conservando as primcias ou restos de hipteses (institucionais, cientficas), diferentes para esta sociedade ou para outras (DE CERTEAU, 1994, p.115).

    Numa determinada abordagem, o ritmo o elemento que mais se destaca no samba. Primeiro, as estruturas rtmicas so o denominador comum, o que muda so as roupagens harmnicas, meldicas e formais. Existe tambm a suspeita de que essas estruturas tenham origens africanas. Caso essas perguntas tenham respostas afirmativas, est justificado que se busque uma forma diferenciada de anlise.

    sempre tarefa inexata compreender a expresso artstica sem examin-la atravs de seus prprios parmetros. No caberia, por exemplo, determinar a qualidade de uma batucada por sua riqueza harmnica. Em contrapartida, o fato de uma grande obra da msica de concerto ter uma srie de caractersticas complexas, no significa necessariamente que exista nela sofisticao rtmica, ao menos nos moldes abordados aqui.

    Por isso, se faz necessrio pontuar alguns tpicos dos dilogos musicais, culturais e seus atravessamentos.

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    Captulo 1

    O Samba na Cultura

    O Brasil possui uma conformao scio-cultural impar. Nascido do encontro de diferentes culturas, suas expresses artsticas so o fruto dessa singularidade to plural. ndios, negros e portugueses, os agentes principais, se amalgamaram de tal forma que muito de nossas manifestaes culturais tm um carter hbrido, sincrtico, sinttico.

    Cabe lembrar mais uma vez aqui do que feita a msica brasileira. Embora chegada no povo a uma expresso original e tnica, ela provm de fontes estranhas: a amerndia em porcentagem pequena; a africana em porcentagem bem maior; a portuguesa em porcentagem vasta (ANDRADE, 1962, p.25).

    Sabe-se que a posio de colonizadores dos portugueses fez com que seus valores, em vrias reas, ocupassem papel central na constituio da chamada cultura brasileira. Um exemplo disso a prpria lngua oficial do pas. Entretanto, quando o assunto msica popular, essa posio de maior influncia lusa pode e deve ser revista.

    A msica uma expresso privilegiada para ser veculo que trafega entre esferas scio culturais diversas. Existem mil maneiras de se combinar melodia, harmonia e ritmo. Alm disso, cada um desses elementos pode ter traos atribudos a diferentes culturas e etnias.

    Em algumas dessas manifestaes musicais no se pode afirmar, como fez Mario de Andrade, que a influncia portuguesa maior do que a africana. Esse o caso do samba, em suas inmeras formas e de caractersticas hbridas. Para discutir esse assunto, existem trs problemas fundamentais.

    Em primeiro lugar, se o objeto escolhido um samba, cabe buscar discernir o que mais o caracteriza. So seus contornos meldicos e/ou harmnicos, ou sua estrutura rtmica? Ou seja, possvel definir numa msica que congrega influncias to diferentes, qual desses elementos constituintes o que se sobressai?

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    1.1 - As culturas e a histria

    Como se do as inter-relaes entre os aspectos histricos, em especial a contribuio dos negros, e a presena e formao dos ritmos?

    Para avaliar essas questes, pretende-se trabalhar primeiro com uma concepo de histria. Sem a pretenso de recont-la, o que se quer mostrar so algumas das mazelas as quais o negro foi submetido. Ao observar o quo restrito era seu espao de ao, pode-se compreender melhor por que o ritmo acabou se tornando um dos principais legados da frica msica brasileira.

    Caados em sua terra natal, aprisionados, transportados em pssimas condies, vendidos e forados a trabalhar, no puderam portar junto a si nada. A nica coisa que trouxeram foram seus corpos. Com eles, seus ritmos e gestos.

    Pretende-se traar este quadro de forma no necessariamente linear, fotografando assim flashes histricos concomitantes de aceitao e apropriao, negao e perseguio, astcias e trampolinagens. Mais um agravante nessa tarefa, com relao a opressores e oprimidos: so sempre os opressores que contam a histria.

    Como antdoto armadilha de repetir aqui esse erro necessrio trabalhar com autores que transitem por esta histria com um olhar diferenciado, mais de dentro. Existe uma bibliografia escrita por pensadores que podem versar sobre a cultura africana e a afro-brasileira com propriedade.

    Assim o africano Kazadi Wa Mukuna, contribui para que se tenha uma idia do lugar do ritmo na cultura africana. Ao se abordar formas de expresso de uma dada comunidade, preciso situ-la em seu prprio contexto, at onde isso for possvel.

    Outro autor, Muniz Sodr, a referncia para que se vislumbre o paradeiro da cultura africana no Brasil, para que se perceba assim o lugar do ritmo na cultura afro brasileira. A cultura estabelecida no consegue dar conta dos mil interstcios por onde caminha o excludo, o diferente, o heterogneo, nem do uso que os oprimidos fazem da cultura de elite. At mesmo quando o discurso uma ideologia crtica, isso apenas cria uma aparente distncia, mas no mago do prprio sistema.

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    Mas essa elucidao do aparelho por si mesmo tem como inconveniente no ver as prticas que lhe so heterogneas e que reprime ou acredita reprimir (DE CERTEAU, 1994, p. 104).

    Uma interpolao entre diferentes tipos de cientistas sociais se faz necessria na medida em que mesmo os historiadores brasileiros mais clssicos partem de um olhar de fora, ainda que alguns deles aspirem o contrrio. Tentar compreender o mundo assim similar ao erro de analisar o material sonoro afro-brasileiro com uma bagagem europia, letrada. Isso seria contradizer a natureza da pesquisa em questo.

    A tentativa de compreenso das similitudes e diferenas entre transmisso oral e cultura letrada uma das bases desse trabalho. No devem ser vistas como formas antagnicas, mas como processos de preservao de conhecimentos com caractersticas e conseqncias histricas e musicais muito diferentes.

    Lembrando novamente que a detentora dos meios de anlise exatamente a cultura letrada, note-se que existem vrios equvocos nas incurses analticas a formas musicais que provm de origens estranhas as suas.

    No verdade que o estudo da msica europia no se configura como um estudo etnomusicolgico? O que justifica ento um estudo musical ter uma abordagem tnica, que no pertena cultura onde foi concebido? Por que o estudo da msica germnica, por exemplo, no visto como tnico? O exemplo parece apropriado na medida em que uma das maiores mazelas da humanidade, o anti-semitismo e suas conseqncias, baseou-se exatamente em pressupostos tnicos.

    Ao mesmo tempo, h certo reducionismo quando se intenta analisar a cultura das etnias ou camadas excludas. Vide, por exemplo, o que se supe como caractersticas colaterais das manifestaes rtmicas dos negros no pas. As descries das manifestaes musicais negras envolvem adjetivos pejorativos. Esse mais um biombo, um mito, erguido com a funo de distanciar tais expresses musicais do decoro necessrio as formas cultas de arte.

    Num processo tardio, apenas h alguns anos comeou-se a levar a srio, em nvel acadmico, pesquisas sobre a msica popular brasileira no que se refere especificamente ao ritmo, a maior contribuio da cultura africana. Embora existam bons trabalhos, esses, em sua maioria, no trazem informaes tcnicas sobre msica.

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    Especialmente no que foi escrito sobre o samba, sublinha-se sobremaneira informaes sobre personalidades e seus encontros, letras, autores e cantores. No entanto, o fenmeno rtmico musical colocado em ltimo plano. pretenso desse trabalho inverter tal abordagem, pois na viso aqui colocada o ritmo o samba. Canes, letras, autores, e personalidades so componentes muitas vezes mais histricos, poticos ou mercadolgicos do que musicais.

    Como representante dessa primeira e mais usual viso, o recm publicado trabalho de Hermano Vianna, intitulado O Mistrio do Samba (1995) usa como ponto de partida o encontro entre Gilberto Freyre e Prudente de Moraes Neto com Pixinguinha e Donga, entre outros. Esse tipo de bibliografia, embora cite gravaes, no privilegia o enfoque do que , de onde veio, e como se preservou o que nos interessa aqui: uma proposta de se analisar, com ferramentas diferenciadas, o samba enquanto conjunto de estruturas rtmicas.

    Inmeros autores consideram que o primeiro samba gravado (Pelo telefone, Donga, 1917) marca o nascimento do gnero. Todavia, isso pode causar algumas confuses. A data do primeiro registro nada tem a ver com o incio dessa forma musical.

    Independente de qual possa ser a data exata em que essa forma de expresso popular tenha sido criada, podemos seguramente afirmar que o samba j estava em voga por volta de 15 de novembro de 1878 (...) (MUKUNA, 2000, p. 98).

    O fato que no existe nem momento exato nem gnese, e sim inmeros processos que, ritmicamente falando, so com certeza anteriores data proposta por Mukuna. Da a expresso j estava em voga.

    Do outro lado, toda vez que nos defrontamos com livros dirigidos a msicos, a tendncia que se enfatize nossa cultura musical letrada, ou seja, europia. Um samba tem uma construo harmnica e meldica22 , baseado na tradio tonal, e uma esfera rtmica baseada nas heranas africanas.

    Isso aceito desde o incio do sculo, a comear por Mario de Andrade. E realmente pode ser observado musicalmente, dada a natureza desses elementos. Entretanto, discusses mais tcnicas sobre a questo da herana africana sempre estiveram relegados, assim como de seus prprios herdeiros, ao segundo plano.

    22 O ritmo de melodia um reflexo do gnero da pea. Aqui me refiro as relaes de alturas da melodia.

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    Quem foi o principal interlocutor nesses dilogos? Possivelmente o msico popular. Como desempenhava tais papis? No precisava de teorias modernistas como queria Mario de Andrade com suas bulas composicionais. Porque o saudvel descompromisso da msica popular faz com que o msico seja um antropfago de suas prprias escutas.

    Se desde o primeiro portugus que chegou a terra do sol poente j havia escutas europias e africanas, por que nunca se levou a srio tratar de maneira analtica a segunda ? Um pas mestio, uma cultura mestia, e uma abordagem analtica unilateral.

    Sabe-se que tratar a mestiagem como soluo para o pas foi um conceito forjado sob a tica de conclio, de brado a nossa democracia racial, muitas vezes apenas para amansar os excludos. Mas isso no quer dizer que, musicalmente falando, no se possa chamar o samba de mestio, ou ao menos de expresso que sempre dialogou e ainda o faz, com estruturas musicais diversificadas.

    Alis, a artes em geral, e a msica em particular, tm uma capacidade impar de sintetizar influncias, de estabelecer dilogos, de engendrar atravessamentos. Entretanto, no universo acadmico, muitas vezes se exclui a possibilidade de tratar com seriedade o ritmo enquanto fenmeno musical.

    Uma outra forma de excluso vem da idia de folclore, por se tratar do estudo do outro. Na frica, culturas so assunto de antroplogos, que durante muito tempo viram tais civilizaes como primitivas. Hoje se sabe que isso um equvoco. Por que, ao se tornarem os principais excludos na sociedade brasileira, suas contribuies culturais se tornam estudos de folclore ou tnicos?

    Importante atribuir a aqueles que resistiram durante sculos a religies impostas, perseguies, atrocidades, enfim, toda a sorte de dificuldades, a preservao de algo que simplesmente no podiam parar de carregar consigo: seus ritmos, um dos cernes de suas expresses culturais.

    Assim, no que tange a msica, o trabalho se concentra no ritmo. E, no que se refere a abordagem, a nfase recai apenas num aspecto essencial para que haja rigor: analisar uma expresso atravs de seu prprio vis, o que significa propor novas ferramentas de compreenso de um fenmeno musical construdo originalmente em outro mbito cultural.

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    1.2. A frica no Brasil

    Dante Moreira Leite, na concluso de seu O Carter Nacional Brasileiro, enftico ao colocar que o passado atua no presente e pode ser uma fora determinante da ao, mas que isto s ocorre quando foras do passado continuam no presente (1976, p. 75). Explica que no possvel delinear o carter de um povo ao menos que se defina a camada social e os tons regionais.

    Ao aplicar essa leitura ao foco dessa pesquisa, pode-se formular algumas questes, a comear por: ser que a situao dos negros hoje to diferente da vivenciada nos ltimos quinhentos anos? No foram todos eles submetidos a muitas situaes comuns, o desterro, o transplante, a opresso, o jugo e, talvez mais potente, a presso psicolgica, uma das ferramentas fundamentais de controle para aqueles que tinham de manter sua posio de opresso e domnio.

    No se pode, entretanto, emprestando de Leite alguns conceitos, tentar descrever o que seria cultura africana devido, no mnimo, a vastido de culturas que coabitam aquele continente. necessrio traar delimitaes. Geograficamente, a costa atlntica sub-saariana, o que Mukuna (2000) denomina o Reino do Congo.

    Importante tambm verificar o grau de intensidade das relaes entre o Brasil e a frica. Luiz da Cmara Cascudo afirma que, em meados do sculo XIX, o volume de comrcio Brasil/Angola era trs a quatro vezes superior ao comrcio com a metrpole (CASCUDO, 1999, p. 96).

    Nessa linha, segundo Alencastro, considera-se muito o comrcio Portugal-Brasil e Portugal-frica, menosprezando-se, assim, a intensidade e volume de relaes comerciais diretas Brasil-frica, em especial, Angola/Salvador e Angola/Rio de Janeiro (Alencastro, 2000). Vale dizer que houve uma relao mais intensa do que se supe usualmente. E, claro, isso tem inmeras significaes culturais.

    O problema que se nos coloca, em primeiro lugar, o de compreender como tantos traos culturais africanos puderam resistir ao rolo compressor do regime servil (BASTIDE, 1967, p. 95).

    ento possvel tecer consideraes entre o que se entende como cultura brasileira e seu vis de mundo europeizado (latino), confrontando isso com o quanto

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    se introduziu de traos da cultura negra em nosso pas, mais especificamente na regio Sudeste?

    Num processo civilizatrio tem-se at certo ponto uma viso clara das influncias mtuas entre dominadores e dominados. Mirando-se nas relaes portugueses/indgenas, se verdade que o povo mais evoludo tecnicamente influencia sobremaneira a cultura mais primitiva, tambm verdade que o povo que se v invadido o melhor conhecedor do local e suas caractersticas, conhecimento muitas vezes indispensvel colonizao.

    Ou seja, ainda que complexo e discutvel, existem muitos estudos que trabalham no sentido de compreender relaes entre dominador e o dominado. Em geral, reflexo direto de uma relao invasor/invadido. Entretanto, a anlise desses processos se torna obscura, no sentido do considervel aumento de variveis, quando transplantamos uma etnia, privando-a num s golpe de sua cultura original e do local onde esta se dava.

    A escravido acarretou a transplantao de africanos de suas tribos, terras, tradies, etc, para um novo mundo com um conjunto totalmente diferente de estilos de vida, regido por uma nova rede de relaes (MUKUNA, 2000, p.222).

    Some-se a isso vrios tipos de aval ideolgico, como o determinismo biolgico, usado para justificar este comrcio. Se o negro era tratado como mercadoria, res vocale, imagine-se com que ateno era tratada sua cultura.

    No incio das navegaes, havia justificativas econmicas e teolgicas, e o fortalecimento do positivismo veio a piorar a situao, j que havia argumentos supostamente objetivos que aliceravam todo o tipo de atrocidades, por ao ou omisso.

    Conseqentemente, o clero professa no Brasil a doutrina difundida pela bula Romanus Pontifex (1455). Tolerava-se a escravido na medida em ela facilitava a catequese. Arrancados das brenhas do paganismo, os negros teriam suas almas salvas no ambiente da metrpole e dos enclaves ultramarinos (ALENCASTRO, 2000, p.159).

    Com a pretenso de observar esse quadro de maneira um pouco mais panptica, uma das questes que se pretende enfocar aqui vem tona: que artifcios, nestas condies to adversas, esta cultura usou para sua auto-

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    preservao, se que isto aconteceu, e qual a medida da presena desta cultura hoje, se que isto pode ser medido?

    Embora se configure como tarefa arriscada, pode-se comear contrapondo algumas diferenas bsicas entre a cultura europia e africana, abordando tal tarefa atravs de conceitos um tanto genricos, que entretanto se configuram como uma chance de visualizao deste traos.

    O primeiro marco significativo do contraste entre a cultura europia e a africana o fato de uma ser letrada e a outra oral. Pode-se argumentar que muitos dos portugueses que vieram ao pas no eram letrados, muito pelo contrrio, havia um grande contingente de degredados. Some-se a isso o nmero de pessoas no bem posicionadas socialmente, seno no estaria embarcando numa viagem que, ao menos ao incio das navegaes, era considerada uma verdadeira loucura.

    Mas o fato que a maneira pela qual se construiu a cultura europia, desde a Grcia socrtica, esteve intimamente ligada aos preceitos de uma cultura que tinha nos mapas, e na escrita alfabtica, smbolos-ferramentas de seu desenvolvimento, de sua viso de mundo. Sendo assim, se escolhido como critrio de desenvolvimento humano o desenvolvimento tecnolgico e cientfico, as culturas africanas estariam atrasadas.

    Talvez seja exatamente esse o primeiro paradigma, que perdura at hoje, que relaciona de maneira quase direta complexidade, sofisticao, capacidade analtica, com as letras. Para Olson, no passa de um equivoco identificar os meios de comunicao usados com o conhecimento por eles comunicado (1994, p. 29).

    Recentemente se iniciou o reconhecimento de que no fato, ao menos sob este aspecto, supor a superioridade de uma cultura em detrimento de outra.

    Pois, hoje em dia, ningum acha que 'primitivos'- se que existe algum que ainda use este termo - so pragmatistas simplrios que andam tateando em busca do conforto em meio a uma nvoa de superties (GEERTZ, 2000, p.113).

    Uma cultura era sedentria h milhares de anos, e a transplantada era em grande parte nmade. Ora, fcil de se entender que, assim que o conhecimento dos princpios da agricultura alcanado, uma cultura tende a fixar-se numa determinada rea. Com o desenvolvimento dessa, constroem-se vilas, monumentos,

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    aquedutos, etc, portanto a produo cultural se torna cada vez mais materializada, mais slida, mais ligada a um espao fixo.

    J numa organizao que no necessariamente se fixa num determinado ponto do globo, imprescindvel uma cultura porttil como garantia de sua prpria sobrevivncia. Esta ento passa a ser acumulada e transmitida usando como veculos contos, danas, rituais, e de especial interesse para esse trabalho, a msica.

    A tradio oral depende da rima e do ritmo23, bem como dos feitos impressionantes de deuses e heris, para poder ser lembrada e servir como fundamento de uma cultura (OLSON, 1994, p.53).

    Existe mais um aspecto que, embora dificultasse a comunicao verbal, fomentou a comunicao musical. Uma das estratgias usuais dos mercadores negreiros para manter um grupo sob jugo era exatamente o de selecionar, para venda, escravos que no falassem a mesma lngua. Na verdade, j havia essa preocupao desde o embarque em terras africanas.

    Ou seja, os negros foram privados at da possibilidade de se comunicar usando a prpria lngua, que porta em seu bojo alm da possibilidade de comunicao, vrios aspectos de seus modus vivendi/operandi.

    No havia aparentemente nada que permitisse a preservao dessa cultura. Nem terra, nem lngua, nem relaes familiares, nem hierarquia24, j que no fazia a menor diferena ao traficante se uma pea era um prncipe ou um sdito. Em suma, numa viso precipitada, no existia aparentemente nada que pudesse ser um lastro, uma vinculao scio-cultural entre aqueles que foram feitos escravos.

    Porm, observando-se a presena e a abrangncia de determinadas estruturas rtmicas e suas possveis origens africanas (Mukuna), aventa-se a seguinte possibilidade: um dos veculos responsveis pela manuteno, preservao e transmisso da cultura africana no Brasil foi a msica, em especial os ritmos. Ainda que se colocasse que fazem parte disso o sincretismo religioso, a