os contos perdidos de yuransha: a guerra do vale de sihdim

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A partir do ano 2.500 A.C. as Embaixadas da Ordem Harashi foram estabelecidas definitivamente em Yuransha. Entretanto, no Vale do Sihdim, reinos subdesenvolvidos passaram a atrasar o desenvolvimento dessa região próxima ao Egito e à Mesopotâmia, causando problemas que culminariam em um dos acontecimentos mais misteriosos relatados na Bíblia. Esta é a história não conhecida sobre as cidades de Sodoma e Gomorra.

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Page 1: Os Contos Perdidos de Yuransha: A Guerra do Vale de Sihdim
Page 2: Os Contos Perdidos de Yuransha: A Guerra do Vale de Sihdim

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HARASHI OS MESTRES DA LUZ

OS

CONTOS PERDIDOS

DE YURANSHA

Page 3: Os Contos Perdidos de Yuransha: A Guerra do Vale de Sihdim

3

Para Lahid Zavilah, minha avó,

que desde cedo me contou histórias.

Page 4: Os Contos Perdidos de Yuransha: A Guerra do Vale de Sihdim

4

PRIMEIRA DIVISÃO

A GUERRA DO VALE DE SIHDIM

Page 5: Os Contos Perdidos de Yuransha: A Guerra do Vale de Sihdim

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DOCUMENTO SELADOR1

Desde que seus primeiros habitantes despertaram sua consciência, a nossa

Ordem estabeleceu o primeiro contato com o planeta Yuransha, terceiro orbe

do Sistema Monvanyah2, vinculado à Galáxia de Yashena.3

A exploração e acompanhamento do progresso moral e social daqueles

inúmeros povos, incumbida a nós pelos Superiores, nos fez desde cedo

ganhar o respeito, admiração e até a adoração religiosa de muitos daqueles

homens e mulheres que estavam caminhando em sua jornada evolutiva.

Com a unificação das tribos de uma próspera região, ao redor de um

rio chamado Iteruh4, a Ordem Harashi instituiu uma de suas Embaixadas

naquele próspero reino, para manter contato com os sacerdotes locais, uma

vez que faziam parte da sociedade mais avançada deste planeta naqueles

tempos. Embora a Embaixada-Sede estivesse nas chamadas terras do

Iteruh, estávamos presentes em diversas outras tribos e reinos das

redondezas, como os dos Rios Idiglat e Subartum5, os reinos que

circundavam o Rio Sinduh6 e de regiões mais afastadas ao oeste como o

1 A vocês que não estão acostumados com a linguagem e expressões que utilizarei a partir

de agora, peço que tenham paciência em apreciar tais notas explicativas ao final das

páginas. Embora tal recurso não exista em meu planeta, esta ferramenta facilitará

bastante a transcrição das memórias dos personagens envolvidos na história de nossos

mundos. Este Documento Selador diz respeito a um protocolo estabelecido por nossa

Ordem. Após escritos, o conjunto de documentos eram formalmente selados pelos seus

autores, para que assim não fossem mais alterados, e seu conteúdo, mesmo que passível

de erros, não se perdesse, pois, para nós Harashis, todo conhecimento era importante, até

mesmo aqueles equivocados. Posteriormente, os escritos eram registrados nos Arquivos da

Ordem, para então, serem disponibilizados para o livre acesso por parte dos habitantes de

nossa sociedade. Do mesmo modo, tais notas ajudarão a esclarecer-lhes quanto aos

termos da época, uma vez que tal narrativa foi escrita há milhares de ciclos.

2 Nome do Sistema Solar, em Korah, idioma padrão de nosso mundo.

3 Nome pelo qual a Via Láctea é conhecida em nosso mundo.

4 Rio Nilo, no atual Egito.

5 Rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia.

6 Rio Indo, na Índia.

Page 6: Os Contos Perdidos de Yuransha: A Guerra do Vale de Sihdim

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Reino de Shalem7. Mas, ao contrário do Vale do Iteruh, os reinos presentes

em outra região próxima, no chamado Vale de Sihdim, ainda não haviam

entrado em contato conosco, continuando, pois, atrasados no seu

desenvolvimento social, político, e, sobretudo, moral.

A origem do Vale de Sihdim remonta às épocas em que as tribos locais

se aglutinaram ao redor de um grande lago, fazendo surgir no meio daquelas

montanhas pequenas cidades. Mas com o passar das eras, o comércio com

os reinos dos Rios Iteruh, Idiglat e Subartum fez com que diversas famílias

da localidade enriquecessem rapidamente, consolidando, posteriormente,

seu poder político. Da mesma forma, com o passar do tempo, formou-se um

promissor acordo comercial entre as cinco cidades do Vale, unificando-se as

moedas para facilitar o comércio com os reinos próximos.

A chamada Liga de Sihdim era formada pelas cidades de Sohdom,

Amorah, Adamah, Zevohim e Zohar.8 Com o tempo, essas cidades se

tornaram muito ricas e prósperas. Mas suas riquezas não lhes eram o

bastante.

Os clãs da Liga de Sihdim organizaram uma série de campanhas

militares na tentativa de invadir os Reinos do Norte, mas foram esmagados

pelo potente exército unificado do Vale do Iteruh e do Império Sumério.

Como consequência, as cinco cidades passaram a pagar pesados tributos

aos Reinos do Norte, que se fortaleceram ainda mais economicamente.

Com seus povos subjugados, a paz pôde novamente habitar o Vale de

Sihdim, mesmo que a contragosto dos seus habitantes. Após recuperarem a

autonomia econômica de suas cidades, as famílias nobres de Sihdim

novamente se uniram para reaverem seus bens, apropriados pelos Quatro

Reis do Norte. Esse período de trégua foi o tempo necessário para que os

exércitos de Sihdim voltassem a se reorganizar, e graças a essa ganância,

uma nova guerra eclodiu entre esses povos.

O que não esperávamos era que as notícias desse segundo conflito

chegassem não somente aos ouvidos da sede da Ordem, o Santuário do

7 Atual cidade de Jerusalém, em Israel.

8 Sodoma, Gomorra, Admah, Zeboim e Zohar.

Page 7: Os Contos Perdidos de Yuransha: A Guerra do Vale de Sihdim

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planeta Nemashi, como também em Tevohan, lar da irmandade mais

sombria e temida da Galáxia de Yashena: A Ordem Zahran.

Desde o início de nossa tutela em Yuransha, os Magos da Ordem

Zahran acompanharam silenciosamente nossos estudos e descobertas sobre

aquele pequeno orbe. Como algo típico de sua já conhecida natureza egoísta,

os Magos Zahranianos passaram a também ansiar o louvável conhecimento

que aqueles cientistas e sacerdotes do reino do Faraó e dos Reis do Norte

produziam naquela terra árida. Suas técnicas, embora rudimentares,

provaram ser muito úteis para descobrirem e utilizar os minérios e cristais

existentes naquele mundo, algo que era de grande importância para nossa

Ciência. Entretanto, devido às diversas guerras, parte desse conhecimento

foi perdido pelos ataques perpetrados pela Liga de Sihdim.

Bibliotecas inteiras, cientistas valorosos, e descobertas que nem

mesmo nós tínhamos conhecimento foram perdidas pela violência causada

pela ganância pelo ouro daqueles atrasados e decadentes reinos de Sihdim.

Isso acarretou a ira dos Magos em Tevohan, fazendo-lhes colocar em prática

um antigo plano de ocupação de Yuransha, para que eles próprios ditassem

o rumo da caminhada evolutiva deste mundo. Obviamente, seus objetivos

não seriam tão nobres, e para evitar isso, enviamos quatro Embaixadores

para negociar o status de Yuransha com os Magos em um planeta neutro de

nosso sistema.

Já no planeta, essa segunda e não menos devastadora guerra apenas

piorou nossa situação perante Nemashi e Tevohan. Os exércitos de Sihdim

haviam novamente sido derrotados em suas próprias terras, e desta vez, os

Quatro Reis dos Rios Idiglat e Subartum ameaçavam escravizar aqueles

povos para evitar que novamente se levantassem contra eles.

Três Embaixadores dos templos de Urim9 entraram em contato

secretamente com um dos mais importantes chefes dos clãs do Império

Sumério para que fosse ao então Faraó, Zenus-Het – filho do sábio Ameneh-

Hat –, propor um acordo que evitasse assim, uma possível escravidão

daqueles miseráveis povos. O nome deste nobre homem era Avraham.

9 Ur, na Mesopotâmia.

Page 8: Os Contos Perdidos de Yuransha: A Guerra do Vale de Sihdim

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Por conta de sua riqueza, ele possuía grande influência entre os

comerciantes do Vale de Sihdim e os mercadores da cidade de Urim, sua

terra natal. Seus interesses naquele conflito também eram pessoais, devido à

captura pelos exércitos sumerianos de seu sobrinho sodomita, Loh. Assim,

ele firmou um acordo com o Faraó Zenus-Het, para que o soberano apoiasse

a libertação dos prisioneiros de Sihdim. Este, por sua vez, facilmente aceitou

o acordo, devido à fundamental importância que as cidades do Vale de

Sihdim possuíam na economia local: Se ninguém guerreava, todos lucravam,

incluindo seu reino.

Para garantir o cumprimento deste acordo, dois de nossos Sacerdotes

foram designados para acompanharem a libertação e condução dos exércitos

derrotados de volta à cidade de Sohdom. A narrativa desses acontecimentos

foi registrada pelos dois Embaixadores que acabaram protagonizando um

importante episódio na história de Yuransha. Seus nomes eram Levishan

Hamalah e Molohay Aryhan, e esta é a história dos últimos dias de Sohdom.

Selo Este Registro.

Nemashi, 07 de Nilihvan do Ciclo 25.444 – Era Luminosa da Constelação

Walah Diyahzen – Sumo Sacerdote da Ordem Harashi

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DOCUMENTO 001

A JORNADA PARA O VALE DE SIHDIM

Assim que chegamos ao deserto do Vale de Sihdim, onde se desenrolou a

batalha, notamos um funesto clima de destruição. Alguns corpos eram

amontoados em pilhas, nas quais, logo percebemos entre elas a presença de

jovens garotos e até mesmo crianças.

Não havia água, sombra ou até mesmo piedade. Os prisioneiros que

não foram executados até então, estavam sob a custódia do inflexível

exército formado pelos Quatro Reinos do Norte. Naquele lugar tão desolado

só conseguia pensar em nosso retorno à Embaixada-Sede 10 após o fim de tal

desoladora missão.

No meio daquele caos, notamos uma pequena caravana ao redor

daqueles prisioneiros, a única razão pela qual eles ainda continuavam vivos.

10 Em Yuransha, a Embaixada-Sede da Ordem se encontrava na histórica cidade de

Menefeh, hoje chamada de Mênfis, no Egito Antigo. Mais precisamente, se localizava em

um oásis cercado por um complexo de templos egípcios. Lá, em meio às imensas dunas,

se assentava a imensa construção, que servia de base para nossas operações. O complexo

de templos era ricamente decorado pela arte local, ladeado com suas pinturas tradicionais

e imagens de seres alados, que representavam nossa presença naquelas terras. Porém, em

seu interior, ele era totalmente diferente. O santuário local era dividido em duas etapas, a

parte pública, onde a população e os Sacerdotes tinham livre acesso, e uma grande ala a

qual só era permitida a presença de nós Harashis, e de alguns poucos sacerdotes egípcios

que estavam sendo treinados nas Ciências Harashis, e que apresentavam todas as

condições para algum dia serem levados a Nemashi e ingressarem na Ordem.

Obviamente, como em qualquer templo, também tínhamos nosso lugar mais sagrado,

a Câmara de Contato. Lá, se encontrava duas verdadeiras joias que trouxemos de

Nemashi: O nosso poderoso sistema de comunicação, que tinha ligação direta com a

Ordem e todo o sistema de Ashunyah, e nosso módulo de exploração, usado algumas

vezes quando necessário, em missões oficiais, ou para visitarmos outras Embaixadas ao

redor de Yuransha. Curiosamente, todo o mistério criado ao redor de nossa Ordem, do

templo e de nossos “rituais ocultos”, apenas alimentou uma série de lendas sobre a

Ordem Harashi, tida como uma “Grande Fraternidade dos Deuses”, que cultivava um

conhecimento secreto nas terras egípcias. Posteriormente, aquele modelo de templo e

hierarquia seria seguido por várias religiões organizadas e irmandades de Yuransha.

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Caminhando entre homens cobertos por mantos escuros, os soldados dos

exércitos do norte, até chegarmos a uma figura desgastada pelo tempo,

porém firme em suas palavras e atitudes, que logo nos chamou a atenção.

Avraham era seu nome, e logo ele se mostrou um homem bastante

sensível, ao conquistar a liberdade dos prisioneiros apenas dialogando com

os reis dos Quatro Impérios do Norte que ali se encontravam.

Nosso contato com aquele velho homem foi o mais breve possível, uma

vez que nossa missão já estava designada pela Ordem. Os três Sacerdotes

que o contataram previamente já haviam lhe orientado a confiar seus

parentes e cidadãos dos reinos de Sihdim sob nossa custódia. A partir dali,

nossa tarefa era leva-los para longe daquele macabro cenário de sangue.

Aqueles miseráveis homens deveriam voltar a salvos para suas casas e para

suas famílias. As negociações foram breves, e assim que pudemos, nos

juntamos às caravanas lideradas por Avraham cruzando o desértico vale até

a cidade de Sohdom. Nossa missão estava cumprida, porém, aquilo foi

apenas o início de nossa jornada.

Ao chegarmos à grandiosa cidade – para tal planeta, e padrões da

época –, fomos convidados para nos hospedarmos na casa de Loh por um

tempo. Esse período nos foi proveitoso, pois conhecemos a cultura daquela

sociedade em que nunca estivemos. Loh foi bastante hospitaleiro conosco,

assim como sua família, o que facilitou para que aprendêssemos muito sobre

a vida e os costumes naquela cidade. Ao longo das nossas conversas,

descobrimos que a corrupção, em seus mais diversos modos, havia

dominado o conselho dos reis da Liga de Sihdim.

Eles controlavam o comércio ao seu bel prazer em acordo com os

interesses dos mercadores da região. Ao contrário do reino do Faraó e dos

reinos do Norte, havia um visível e sério problema de desigualdade social

naquelas terras, uma vez que a soberba e a ganância haviam se tornado a lei

daquele lugar. Os mais pobres sofriam os piores abusos inimagináveis,

sendo humilhados pela nobreza local, assim como tinham que mendigar as

migalhas dos mais ricos, fosse em comida, fosse em trabalho, onde eram

praticamente escravizados por seus senhores.

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Descobrimos também que o comércio era restrito a algumas poucas

famílias, sendo que muitos daqueles habitantes produziam exclusivamente

para os nobres, enquanto estes vendiam seus produtos e ficavam com os

lucros para si. A miséria era latente naquela sociedade que se erguia à custa

dos menos favorecidos.

Outra coisa que nos chamou a atenção era a insaciável ganância que

aquelas famílias possuíam. Os reinos vizinhos eram invejados pelos povos do

Vale de Sihdim, que ambicionavam invadi-los e anexá-los em um poderoso

reino unificado. Desde os primeiros tempos daquelas cidades, seus reis

sempre buscaram conquistar as terras faraônicas e sumérias para criarem

um invencível império. Contudo, sempre fracassaram.

Alimentando esse eterno estado beligerante, as cidades da Liga de

Sihdim passaram a atrasar o desenvolvimento daquela região, pois

almejavam o crescimento de sua sociedade somente através da guerra, da

pilhagem, e da violência, ao contrário dos demais reinos, que cresciam em

Ciência e em sabedoria. E foi no seio dessa cultura de ódio, que, durante

uma saída ao mercado local, eu e Molohay descobrimos um complô acerca

de outra guerra que estava por vir.

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DOCUMENTO 002

REVELANDO AS IMUNDICES

Dias depois, acompanhamos Loh em sua ida diária ao mercado de Sohdom

para comprar frutas.

Aquele ritmo frenético da cidade nos chamava a atenção, com toda

sorte de artefatos e mercadorias que eram postas à venda. Enquanto

observávamos uma das barracas erguidas no meio de uma grande praça da

cidade, um dos nobres da localidade veio até nós.

- Vocês estrangeiros não sabem que é perigoso andarem a sós pelas

ruas da cidade? – Creio que nossos alvos trajes, característicos do reino do

Faraó, tenham nos denunciado. – Acabamos de voltar de uma guerra! Vocês

não são tão bem vindos aqui nos tempos atuais.

O semblante daquele alto homem demonstrava um misto de desprezo

e arrogância, nos incitando para que reagíssemos. Porém, continuamos em

silêncio, inertes em nossa tradicional serenidade. Era o mais sábio a se fazer

naquele momento tão adverso.

Sem que esperássemos, Loh veio nos defender, pois sabia que aquele

senhor queria nos ultrajar no meio do mercado, senão pior.

- Tenha mais respeito pelos Embaixadores. Eles são enviados do meu

tio, Avraham. Foi graças a eles que nossos exércitos foram libertados. –

Disse o nobre homem.

- Pelo que sei, seu tio é da cidade de Urim, do reino que entrou em

guerra conosco. E pelo que conheço de seus interesses, ele apenas o

protegeu, pois temia que as riquezas da família fossem confiscadas e

partilhadas entre os reinos vizinhos.

- Meu tio é um homem íntegro. Acima de tudo ele preza pela paz entre

nossos reinos.

Sentindo que aquela discussão não teria futuro, senão a vil discórdia,

resolvi intervir para evitar o pior.

- Loh, vamos. Não vale a pena se desgastar com essas pessoas. Pelo

visto os teus princípios são muito superiores aos praticados nesta cidade. –

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Disse-lhe, pondo minha mão sobre seu ombro, para que aquela discussão

logo se encerrasse.

- Senhor Embaixador, estais por acaso dizendo que nossa cidade não

caminha ao lado do que é justo? – O homem nativo interveio, desejando que

eu caísse na sua armadilha na frente do povo, que a aquela altura já nos

cercava para assistir ao embate entre famílias.

Como se as palavras estivessem apenas esperando para serem

proferidas, prontamente lhe respondi.

- E o que você considera como sendo justo? A justiça não está gravada

nos portões e muros dessa cidade, mas na consciência de cada pessoa ao

nosso redor. O mesmo pode se dizer da injustiça. Eu não preciso apontar o

dedo dizendo o que fizeram, pois vocês podem muito bem dizer que eu estou

mentindo. Mas tudo aquilo que cada um de vocês fizeram não pode ser

escondido de vocês mesmos. Vocês não precisam de juízes ou de reis,

somente de suas consciências para lhes sussurrarem a herança que

deixaram para si mesmos.

Enquanto proferia aquelas poucas palavras, vi o rosto do velho homem

corar com uma violência descontrolada.

- Isto é uma blasfêmia! – Ele gritava, tanto com sua boca e com o seu

colérico olhar que me direcionava.

- E ainda digo mais. – Continuei. – Nenhuma cidade é tão imunda que

não tenha pessoas que a façam brilhar diante dos demais reinos. Da mesma

forma, aqueles que são corrompidos por seus próprios vícios são os

verdadeiros responsáveis pela decadência de seu reino. No fim das contas só

resta saber se há mais pessoas que cultivam dentro de si a justiça ao invés

da injustiça. Se vocês desejam encontrar essa justiça que tanto buscam,

antes de tudo julguem a si mesmos ao invés dos outros.

- Ele é um blasfemo! Um invasor de nossa cidade que só deseja semear

a discórdia entre nós! – O homem estava perdendo o controle, se sentindo

humilhado diante de todos os presentes.

- Senhor, é melhor irmos. Eles podem se voltar contra nós. – Loh me

apressava para sairmos dali, pois temia a reação do povo.

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- Não se preocupe. Ninguém nos fará mal, pois todos estão

constrangidos pelas minhas palavras. – Disse-lhe, observando a multidão ao

nosso redor que conversava freneticamente. Eles estavam espantados com o

que havia dito.

Eu sabia que naquele momento, cada um deles estava relembrando de

seus erros, cada injustiça que haviam cometido. E o semblante de muitos

transparecia o arrependimento pelas coisas que haviam feito no passado,

assim como outros, o rancor pela memória de seu próprio passado.

Enquanto aquele homem continuava a nos acusar, rapidamente

saímos do mercado retornando à casa de Loh.

Passamos o resto do dia em sua residência conversando sobre os

acontecimentos na praça. Ao cair da noite um grupo de homens veio até nós.

Eram os líderes das famílias mais íntegras da cidade, e que discordavam das

práticas que corrompiam os habitantes de Sohdom.

Eles estavam ali para alertar a Loh sobre uma nova campanha militar

que os reis de Sihdim estavam planejando. Ao contrário do que pensávamos,

a derrota na última batalha não acalmou os ânimos daqueles povos. E o fato

de um nobre da cidade de Urim ter libertado os cativos dos Exércitos do

Norte significou uma humilhação ainda maior para aquela sociedade tão

orgulhosa e corrompida.

Já do outro lado, aqueles homens não estavam suportando mais

aquela rotina de conflitos, que ceifava a vida dos seus familiares. Toda

família em Sohdom havia perdido algum parente nas guerras, e aqueles

homens temiam que numa próxima derrota, os reinos inimigos acabassem

por convertê-los em escravos.

Nós ouvimos suas preocupações e compartilhamos do mesmo

sentimento de decepção para com o futuro daquelas cidades. Não

enxergávamos a esperança de que um dia aqueles reinos pudessem enfim

coexistir em paz. A guerra, a corrupção e a violência estavam no sangue

daqueles povos, e nada poderia ser feito para mudar aqueles homens.

Somente eles próprios poderiam tirar aquele ódio dos seus corações. Mas

infelizmente, sabíamos que aquilo jamais aconteceria.

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O sentimento daqueles chefes de família era de que não faziam mais

parte daquela cidade. Não faziam mais parte daquela terra, pois, por meio

dela, estavam perdendo o que lhes era mais precioso: Seus entes queridos.

Mas, no meio daquela conversa fomos drasticamente interrompidos,

por eles, mas por um chamado distante. Sentimos uma conhecida voz

sussurrar em nossas Mentes. Eram os Sacerdotes de Nemashi, e as notícias

não eram boas: Um aviso de que os Magos haviam ameaçado atacar as

cidades pela destruição de raras bibliotecas de cidades dos reinos do Norte

durante seus conflitos com a Liga de Sihdim. Embora o motivo fosse banal,

para eles tinha um valor extremamente precioso, pois, assim como nós

também estudavam aquele planeta. Porém, para os Zahranianos, o

conhecimento está acima da própria vida, e aquele crime cometido pelos

exércitos de Sihdim significava uma perda de conhecimento e tecnologia

conquistada com muito esforço, tanto por nós como por eles, algo

imperdoável para as crenças Zahranianas.

Com aquele chamado, tivemos que voltar às pressas para a

Embaixada. Combinamos com Loh que dentro de poucos dias voltaríamos à

cidade para ajuda-los.

Mal sabiam eles que corriam um grande perigo, não por uma guerra

que se aproximava, mas por algo bem pior. No dia seguinte fomos levados

para fora da cidade por Loh e combinamos o local do nosso reencontro. Após

nos despedimos, nos dirigimos ao deserto para imediatamente saltamos11 até

a Embaixada e assim não chamarmos a atenção dos moradores locais.

11 Para melhor compreenderem a linguagem utilizada nestes antigos relatos dos Sacerdotes

de nossa Ordem, em especial, a respeito de nossa técnica de “salto entre os espaços”,

sugiro que leiam “A Guerra do Princípio”, o Livro 1 da série “Harashi – Os Mestres da Luz”,

e primeiro volume da série traduzida e transcrita por mim, a partir das memórias de

personalidades de nossos mundos, que viveram o “meu passado” e o “seu presente”.

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DOCUMENTO 003

O DESTINO DA LIGA DE SIHDIM

Chegando à Embaixada da Ordem, logo fomos convocados para uma reunião

nos templos de Menefeh.

Como já esperado, os torpes sacerdotes do Faraó decidiram que seria

realizada uma cerimônia por mais uma vez, nós, os “deuses”, estarem se

comunicando com os Superiores de outros mundos. Mas logo dispensamos

as tradicionais cerimônias.

O clima entre nossos homens não estava bem. Pedimos a compreensão

de nossos amigos religiosos, e logo nos trancamos na Câmara de Contato, a

sala proibida do templo.

Aquela reunião rotineira tinha um aspecto duplo, e inesperado. Nossa

intensão inicialmente era repassar nossos relatórios sobre a nossa conversa

com os chefes de família e a crise que estava se instalando nas cidades do

Vale de Sihdim. Mas a Ordem pôs uma pauta a mais naquele dia. Sabíamos

que os Zahranianos não estavam satisfeitos com o atraso provocado pelas

cinco cidades de Sihdim, mas o que ocorrera nos últimos dias ultrapassou

todo o limite do bom senso, bem como de nossas leis.

A Ordem havia enviado um destacamento para negociar com os Magos

em Ho’otah, planeta neutro, localizado na Zona Periférica de Ashunyah,

nosso sistema, que servia unicamente de Mosteiro de apoio da Ordem

Akehran,12 cuja sede ficava no planeta Moronah. Um de seus monges

serviria de intermediário para realizar esta Aliança de Conciliação, que

embora fosse necessária, não estava nem um pouco nas intensões dos

Magos. Subestimamos a tão rápida cortesia dos Zahrarianos em aceitar

aquela reunião. Porém, aquilo era uma zombaria ao nosso poder

diplomático. Pior, era uma armadilha bem planejada. Eles, sem um mínimo

de compaixão, assassinaram nossos quatro Embaixadores e o monge

akehraniano mediador. Ho’otah, como planeta próximo à fronteira da Zona

12 Ordem mística de monges contempladores. O Akehranismo era a religião mais popular de

nosso sistema e de outros vizinhos.

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Periférica, ficava em uma região fora de nossa jurisdição. Uma vez ocupado,

o planeta serviria de base de lançamento dos cruzadores Zahranianos que

viajariam até Yuransha.

Como os Akehranianos são contra todo tipo de violência, não

resistiram à investida Zahraniana, sendo igualmente mortos no Mosteiro de

Ho’otah. Isso criou uma profunda crise entre nós e a sede da Ordem

Akehran, em Moronah. Como eles, por suas crenças, proíbem qualquer

represália, passaram a exigir que a Ordem Harashi tomasse providências

junto à Constelação.13 Obviamente, somente nos restava a opção de capturar

os Magos responsáveis pela chacina e submetê-los às Leis da Aliança,14 mas

o propósito dos Zahranianos era justamente dar este recado: Que não

desejavam negociar. E aquela reunião tinha o propósito dar o ultimato de

que o planeta seria ocupado e Yuransha seria invadida. A consequência

última era que, por conta daquela involução na região, as cidades de Sihdim

também seriam destruídas como aviso aos outros povos.

Em outras palavras, a Ordem de Zahran declarou guerra em um

território além de nossa jurisdição, algo que, segundo nossas Leis, nos

obrigaria a uma indesejável intervenção para evitar o pior.15 Nessa reunião,

13 Organização política que administrava a maioria dos planetas do sistema Ashunyah. Sua

sede ficava em Nemashi, onde as decisões eram tomadas pelos Embaixadores dos

planetas membros em conjunto com a Ordem Harashi.

14 Série de princípios pacifistas que eram considerados como leis universais pelos planetas

membros da Constelação.

15 Algumas das Leis da Aliança estabeleciam que os incontáveis planetas e sistemas

mapeados e registrados pela Constelação, mas que não faziam parte dela deveriam ser

livres para conduzirem sua própria política, proibindo-se qualquer tipo de interferência, a

não ser para se evitar um drástico atraso no curso evolutivo desses mundos ou do

próprio Universo Local de Navadoh. Dentre os planetas e sistemas abrangidos por este

acordo, se encontrava Yuransha, há muito tempo registrado em nossos órgãos de

monitoramento cósmico.

Qualquer intervenção não autorizada obrigatoriamente levaria a uma operação de

nossas forças militares, as quais unicamente eram usadas para proteger as fronteiras da

Constelação e os planetas vulneráveis, dentro e fora de nossos sistemas. Obviamente,

pela grandiosidade de nosso Universo e complexidade desse modelo de administração,

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os Sumos Sacerdotes argumentaram pontos que não podíamos questionar,

embora eu e Molohay ainda buscássemos uma saída pacífica para aquilo.

- O fato é que não podemos mover os cruzadores da Constelação a

tempo de evitarmos a chegada dos Zahranianos. Muito menos teríamos tempo

de convencer os habitantes de Sihdim a desistirem da guerra e saírem de

suas cidades. A limitação de suas Mentes é tanta que preferem garantir seus

lucros pela guerra a própria sobrevivência. – Disse uma das Sumas

Sacerdotisas, que nos elucidou ponto a ponto daquela inesperada manobra

Zahraniana.

- Sim, Likamah, nós temos consciência disso. – Molohay tomou a

palavra desde cedo, apresentando nosso ponto de vista sobre a situação em

Yuransha. – Mesmo assim, gostaria de liderar a urgente missão de

evacuação da cidade de Sohdom, proposta pelo Sacerdote Levishan. Os

únicos locais seguros para estas famílias que estão do nosso lado são as

terras fronteiriças entre os reinos do Faraó e os Quatro Reinos do Norte.

Segundo nossos relatórios, esta região ficaria segura da destruição, e

Avraham poderia ajudá-los a se estabelecerem nessas terras.

- Mesmo assim ainda temos o problema da vulnerabilidade de outros

reinos. Temos Embaixadas em Menefeh, Shalem, Hastinpuram e Urim. Estas

regiões estariam protegidas pelos nossos módulos de defesa nas Embaixadas,

mas quanto ao resto do planeta não sabemos. Essa invasão pode ser

centrada ou dividida entre os territórios. Não estamos preparados para um

ataque tão inesperado. – Um dos Sacerdotes interviu.

- Eu compreendo. Nossa presença em Menefeh também torna esta

cidade vulnerável no caso de algum ataque Zahraniano à Embaixada. –

Disse, voltando-me para meu companheiro.

- Quanto tempo nós temos? – Perguntou Molohay.

dificilmente conseguiríamos monitorar todos estes orbes, mesmo com a louvável divisão

de setores do nosso Universo Local. O resultado disso não seria outro, senão as operações

da Ordem Zahran, que nos assombravam pela sua discrição, tanto em sua execução

como em seus sombrios objetivos.

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- Apenas algumas horas. Neste momento os Zahranianos já devem estar

prontos para partirem. – A imagem do holograma agitou-se, assim como eu e

meu companheiro internamente. Era muito pouco tempo para evitarmos o

que seria uma catástrofe.

Com o passar da reunião o que mais preocupou os Sumos Sacerdotes

em Nemashi foi o fato de que as cidades da Liga queriam promover uma

nova guerra. Este ciclo de violência jamais cessaria, e aquilo só tendia a

aumentar, até que seus reinos se dizimassem por completo. E isto não

estava tão longe de acontecer. Uma invasão Zahraniana estava prestes a

cobrir a órbita do planeta, porém, estes reis e príncipes só conseguiam

enxergar os movimentos dos seus exércitos em campos de batalha. Pelo

Mayam’Horun,16 quão atrasados eles ainda eram...

Com o desenrolar da reunião, nossa missão tomou um novo rumo.

Nossa missão agora era retornar à Sohdom e avisar àquelas famílias

sobre a decisão de Nemashi. A partir daquele momento o tempo estava

correndo contra eles. Não sabíamos se teríamos como resistir aos

Zahranianos, pois dependíamos das nossas tropas. Que elas não chegassem

tarde demais, senão o futuro de Yuransha estaria comprometido.

16 Do Korah, “O Princípio de Tudo”. Título que damos ao Criador dos Universos.

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DOCUMENTO 004

AQUELES QUE VIERAM DOS CÉUS

No fim daquela tarde, saltamos a certa distância de Sohdom. Ao chegarmos

aos portões da cidade, Loh nos esperava ansiosamente, sentado à beira de

uma grande rocha.

- Meus senhores, sejam bem-vindos de volta. A viagem deve ter sido

cansativa para vocês. Vamos para minha casa. Os líderes das famílias já

estão à nossa espera. – Loh se aproximou de nós com um ar de ansiedade.

Parecia não estar muito à vontade ao nos conduzir por dentro da cidade.

Logo que cruzamos os portões, percebemos que algo estava errado.

As ruas estavam desertas. O comércio não estava lá como de costume.

Um fúnebre silêncio tomava conta daquelas vias a não ser por um leve

sussurro que ouvimos enquanto caminhávamos pelo rústico chão de terra

batida à caminho da casa de Loh.

O som de melodias que ecoavam pelo vazio daquele local.

- De onde vem esta música? – Molohay perguntou, já imaginando a

resposta.

- A cidade está festejando. – Loh respondeu.

- Festejando o que? – Ele insistiu.

- A campanha que Sohdom fará contra os Quatro Reinos do Norte. Os

reis da Liga de Sihdim decretaram que os habitantes poderão comemorar

esses dias, porque depois partiremos para a guerra.

- Não haverá uma próxima guerra. – Molohay respondeu, sucinto.

- Como assim meus senhores?

- Quando chegarmos à sua casa lhe explicaremos. – Eu intervi,

querendo que chegássemos logo à residência de Loh.

Durante o trajeto observávamos as inúmeras casas da cidade

iluminadas por várias candeias.

Em boa parte delas as pessoas estavam dançando e se encharcando de

vinho e outras especiarias locais. Aquele clima de alegria era uma ironia das

celebrações, uma vez que boa parte daquelas pessoas pereceria na batalha.

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Mas dessa vez seria diferente. Em breve as cidades do Vale de Sihdim

entrariam definitivamente para a história daquele planeta.

Ao chegarmos à acolhedora residência, observamos que ao redor, as

ruas se encontravam tomadas de pessoas, juntamente os festejos haviam

contagiado toda a cidade. O que mais me chamava atenção era que aqueles

homens recatados, que antes se orgulhavam de sua nobreza juntamente

com sua reputação e títulos, mais aparentavam serem animais em uma

selva sem nenhuma lei. Pareciam fora de si, inebriados com o temporário

poder que possuíam dentro de uma sociedade que beirava a total

degradação. Alegravam-se com o prazer promovido pelas bebidas que

alteravam suas consciências e que naquele momento lhes roubava a mais

preciosa razão.

Ao entrarmos na residência de Loh, deixando para trás aquele

primitivismo bestial, avistamos os mesmos homens que estavam presentes

na nossa última visita. Assim que chegamos, eles logo se sentaram ao nosso

redor, ansiosos para ouvirem o que tínhamos para lhes falar. Mas, antes que

eu lhes dirigisse a palavra, notamos uma crescente onda de murmúrio

cercar a casa em que estávamos. Eram os mesmos homens que estavam na

rua quando chegamos. Não tardou para que eles começassem a jogar pedras

na porta, para chamar nossa atenção. Da mesma forma, imediatamente

passaram a zombar de todos nós.

- Loh, por que você nos priva dessa festa em sua casa? Vem para fora

juntar-se a nós! – Um dos homens começou a chamar por Loh para que

também participasse daquela tosca comemoração. Alguns deles mal se

mantinham de pé, atestando a que nível de desleixo haviam chegado,

alguns, se escorando nas paredes das casas ali presentes, outros,

derramando aquelas garrafas em cima de si, como se o único banho que

tivessem tomado o dia todo tivesse sido daquelas bebidas que escorregavam

de suas bocas, manchando suas alvas vestimentas.

- Hoje beberemos o mais doce dos vinhos porque amanhã iremos

chorar pelo amargo sangue dos nossos filhos! – Outro homem, visivelmente

embriagado, gritava no meio da rua para nós.

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- Trazes também os vossos convidados para que eles também se

juntem a nós. Queremos conhecê-los! – No meio da multidão outro homem

gritou. Sentindo-se constrangido por aqueles homens, Loh saiu de sua casa,

visando tomar satisfação com eles.

- Vocês estão loucos? Tenham mais respeito pelos Embaixadores. Eles

estão aqui para nos ajudar. Prefiro entregar-lhes minhas filhas a deixar que

façam mal a eles. – Loh encarou um dos homens, demonstrando sua ira

para com aquele grupo de baderneiros.

- Cala-te! Estes estrangeiros mal chegaram à cidade e já querem se

tornar juízes do nosso povo! Eles merecem a morte por tamanha ousadia.

Mas pior do que eles, só você, que os trouxe para macularem Sohdom... Seu

traidor! – O homem que gritava com Loh o empurrou, fazendo-o cambalear

para dentro da residência. Como uma onda que engolia tudo pela frente,

aqueles homens invadiram a casa querendo agredir Loh. Como eu já estava

prevendo aquela situação, prontamente fiquei vigiando, na lateral da porta.

E quando aquela turba adentrou, Molohay rapidamente puxou Loh para os

fundos da sala, abrindo caminho para mim.

Com um único movimento da minha mão, fiz surgir uma poderosa

chama que inundou a casa, atingindo aqueles homens em cheio. Eles

ficaram atordoados com aquela confusão que eu havia criado em suas

Mentes animalescas. Sem saber para onde fugirem, corriam pela rua,

temporariamente cegos, procurando algum objeto para se sustentarem.

Quando me virei, já acalmada a confusão, os presentes dentro da casa

haviam caído de joelhos diante de nós, tamanho o assombro que tomava

conta delas.

- Quem... Quem são vocês? – Um dos homens ali presente nos

perguntou, mal conseguindo falar. Eu fechei a porta atrás de mim sem toca-

la com a mão, para maior pavor daqueles que estavam na sala. Estávamos

tão inquietos quanto eles.

- Somos mensageiros de outro mundo. Estamos aqui para ajudá-los. –

Molohay interviu, antecipando-se a mim.

- Nós viemos até vocês para alertá-los. Amanhã, Sohdom, assim como

todas as cidades do Vale de Sihdim serão destruídas. – Enquanto me

Page 23: Os Contos Perdidos de Yuransha: A Guerra do Vale de Sihdim

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escutavam, eu observava seus semblantes de dúvida. De arrependimento.

De pavor.

- Mas por que meus senhores? Nada de mal fizemos... – Loh nos

perguntava eufórico, visivelmente assombrado com aquela fatídica notícia.

- Vocês nada fizeram, mas boa parte dos habitantes dessa cidade sim.

As cidades do Vale de Sihdim se tornaram um obstáculo para o

desenvolvimento dos reinos que os circundam. A corrupção se enraizou no

coração dos seus governantes, e sabemos que ela jamais terá fim. Desde o

início de suas civilizações seus reis construíram este império através da

guerra, da ganância e da violência. E isto provocou a ira de Seres que

deveriam zelar por este mundo junto conosco. Para eles, é preciso deter seus

reinos antes que acabem com o progresso do seu próprio planeta.

- Eles quem, meu senhor? Quem são estes que estão irados conosco? –

Perguntou um dos homens ali presentes.

- Aqueles que estão em outros mundos. Aqueles que vêm dos céus,

assim como nós. – Respondi-lhe, apontando para cima. Um sonoro coro de

admiração tomou conta da sala.

- Os deuses que sempre nos visitaram? – Loh perguntou.

- Assim como vocês? – Também perguntou uma mulher, no fundo.

- Não! – Exclamei, para assombro dos presentes. – Eles não são

deuses. Muito menos nós também somos. Se vocês desejam tanto saber,

somos mensageiros dos únicos que verdadeiramente estão acima de tudo, os

Seres Superiores. Porém, estes que vos ameaçam, não estão próximos nem

aos Seus pés, quanto mais de suas Vontades. Mas acreditem, com ou sem a

permissão dos verdadeiros Senhores deste mundo, estes seres sombrios

podem transformar essa cidade em um mar de fogo mais rápido do que o

piscar de seus olhos. – Respondi, com toda a minha sinceridade,

aumentando o pavor daqueles homens e mulheres.

- Outros, assim como nós, também visitaram as demais cidades,

orientando seus habitantes justos a deixarem-nas o mais rápido possível. –

Molohay prosseguiu com nossa missão.

- Mas não temos para onde ir. – Um dos homens nos questionou.

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- Vocês irão para as fronteiras dos Reinos do Norte, lá serão acolhidos

por Avraham. – Molohay lhe respondeu.

- E quando devemos partir? – Loh me perguntou, ainda em choque.

- Desde agora. Nós os acompanharemos para deixarem a cidade em

segurança. Vão para as suas casas e arrumem suas coisas. O tempo está

correndo e nada podemos fazer para evitar isso. – Eu e Molohay saímos com

aqueles homens escoltando-os até suas residências. Com o chegar da noite,

vimos a degradação que tomava conta de Sohdom. Espalhados pelas ruas,

inúmeros homens e mulheres se escoravam pelas paredes, embriagados por

aquela festa repugnante. Nem sabiam eles que àquela hora no dia seguinte

não restaria mais ninguém dentro daquela cidade.

Passamos a noite ajudando as famílias a se organizarem para a fuga.

Aquele êxodo aos poucos começou a tomar forma. Mas apesar de todos os

avisos, a família de Loh ainda relutava para não deixar Sohdom.

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DOCUMENTO 005

O ÚLTIMO PÔR DO SOL DE SOHDOM

Quando o dia amanheceu, Sohdom estava deserta, como que de ressaca da

festa do dia anterior.

Enquanto voltávamos para as muralhas, após acompanharmos as

últimas famílias para fora da cidade, notamos algo estranho sobre nós.

Gradualmente, as nuvens escureceram, formando uma densa camada

escura sobre nossas cabeças. Parecia o prenúncio de uma tempestade, mas

sabíamos do que se tratava.

Por alguns segundos, a consciência do que estava acontecendo nos

paralisou no meio daquele deserto. Contemplávamos algo que não devíamos.

- Eles estão aqui. – Disse convicto, me dirigindo a Molohay.

- Mas por que não atacam? – Perguntou-se, admirando aquela sombra

invisível sobre o céu.

- Acredite, eles já estão se preparando. Foram mais rápidos e

silenciosos do que esperava.

- Onde está Nemashi?

- Espero que a caminho. – Disse, me sentindo invadir por aquela

sensação de impotência. De fato, nada podíamos fazer contra aquele

monstro que inundava os céus de Sohdom. Mas logo voltei minha atenção

para nossa missão.

– Precisamos salvar uma última família, mesmo que não consigamos

salvar a nós mesmos. Essa é a nossa missão... – Disse, olhando nos fundos

dos olhos trêmulos de Molohay.

Pela primeira vez em minha vida vi seu semblante transparecer o

medo. E o medo pairava sobre nossas cabeças. Não havia tempo, e naquele

mar de dúvidas sobre quanto ainda nos restaria, rapidamente retornamos à

casa da família de Loh, uma vez que a sua era a última que ficara. Ao

adentrarmos em sua residência, notamos que nada havia sido preparado

para a fuga.

- Por que não nos obedeceram? Não sabem que temos pouco tempo

para deixarmos a cidade? – Eu não estava nem um pouco satisfeito com

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26

aquilo, afinal tínhamos nos esforçado para salvar os parentes de Avraham,

mas eles sequer tinham separado seus bens.

- Eu fui humilhado pelos meus genros. Eles disseram que era loucura

minha. Que eu deveria aproveitar os últimos momentos da festa. – Loh me

encarou com uma profunda decepção.

- Sei que sua família é justa, mas seus genros não são. Eles não

compreendem a seriedade de nossa missão e nem estão preocupados em se

salvar. Para eles existem coisas mais importantes do que suas próprias

vidas. Tolos...

- Eu sei, meu senhor. Eu sei... – Sentindo-se abandonado pela sua

própria família, Loh começou a chorar copiosamente.

- Não temos mais tempo para lamentações, Loh. Arrume as tuas coisas

e saia dessa cidade com tua família agora. A destruição de Sohdom é

inevitável. Somente quando passarem pela cidade de Zohar vocês estarão

seguros.

Convencido por mim, Loh apressou sua família para que deixassem o

local. No final da manhã nós partimos com ele, sua mulher, e suas duas

filhas para fora dos muros de Sohdom. Enquanto nos afastávamos da cidade

dávamos orientações de como deveriam proceder.

- Quando chegarem a cidade de Zohar, não parem em lugar algum.

Não fiquem na cidade, pois ela também será destruída. Ao final do dia vocês

alcançarão as montanhas. Atravessem-nas, e só assim estarão protegidos da

destruição que assolará os seus reinos. – Minhas instruções eram claras,

pois sabíamos o que iria acontecer.

- Temo que as montanhas não sejam fortes o suficiente para deter essa

destruição que vocês anunciam. – Loh transparecia sua preocupação.

- Você acha que se estivéssemos mentindo, faríamos tudo que vocês

presenciaram? Vocês merecem ser salvos, pois têm muito que oferecer a este

mundo. Já os que ficaram para trás, em nada se esforçaram para tornar

seus reinos melhores. – Loh concordou comigo. – Agora vá! Siga seu caminho

porque agora não podemos fazer mais nada por vocês. – Após nos

despedimos de Loh e sua família, eu e Molohay voltamos nossas costas para

tomarmos o caminho de volta à cidade.

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- Para onde estão indo? – Loh perguntou, apreensivo.

- Vamos voltar para o lugar de onde viemos. – Enquanto eu apontava

para o céu, Loh compreendia o real sentido da nossa visita.

Nós éramos os enviados que vigiavam aquele mundo. Nós zelávamos

por todos eles. Tínhamos a missão de cuidar daqueles povos que apenas

engatinhavam rumo à evolução espiritual. Ainda aconteceriam muitas

outras coisas após aquele último encontro. Mas por enquanto, nosso

trabalho havia de fato terminado.

Às pressas, projetamos nosso próximo instante dentro do Santuário,

retornando para nossa sede em Nemashi, onde iríamos nos reunir com

outros membros da Ordem em uma Sessão Extraordinária do Quórum dos

Doze. Nem imaginávamos aquela cena em nossas câmaras, mas a paz de

nossas meditações e estudos deu lugar a um caos sem precedentes.

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DOCUMENTO 006

OS SACERDOTES DOS TEMPLOS DE TEVOHAN

Impossível! Rastreiem os quadrantes novamente!

O grito do Sacerdote Shilamaloh ecoou pela sala do Quórum. Apenas

três dos doze Sumos Sacerdotes estavam presentes, recebendo dali mesmo

as informações que vinham das bases dos Sentinelas dos Quadrantes, os

órgãos responsáveis pelo monitoramento de nossas fronteiras na Galáxia de

Yashena, que controlavam o tráfego de cruzadores e módulos de navegação.

Pelo visto as naves Zahranianas haviam conseguido burlar nossos

potentes scanners. Como, não sabíamos, mas o que agora importava era que

eles já se encontravam em Yuransha, e nós, estávamos atrasados.

- Estão atrasados! – Gritou Shilamaloh, enxergando meu pensamento,

em seguida, levando a mão à cabeça. A serenidade do nosso velho amigo

velho havia se dissipado. E compreendíamos o porquê.

- De fato estamos. Mas conseguimos salvar a família de Loh junto com

algumas outras. – Disse-lhe, tentando acalmar o Sacerdote.

- Não interessa! Já sabemos da permanência dos nobres de Sihdim.

Não é culpa de vocês, mas não consigo conceber tamanha idiotice. Eles

escolheram a própria morte e de suas famílias!

- Podemos tentar voltar... – Antes que Molohay pudesse intervir, uma

voz surgiu detrás dele.

- Não podem! Vocês querem morrer também? – A Suma Sacerdotisa

Likamah se precipitou sobre nós, igualmente nervosa. – Acabei de receber

uma mensagem do quadrante do Sistema de Zolinah. A Sacerdotisa Pavahi

acabou de me repassar uma mensagem oficial enviada a nós.

- Dos Zahranianos? – Eu e Molohay nos juntamos em um coro

inevitável.

- E de quem mais seria? – Disse a Sacerdotisa, impaciente. – Pelo

Princípio de Tudo, transmitam logo essa gravação. – O Sacerdote avançou

sobre a grande mesa branca que circundava o centro da sala, abrindo o

canal de comunicação com o Sentinela do sistema Zolinah.

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Um grande holograma surgiu com a imagem da nossa Embaixada de

Zolinah, com outra Sacerdotisa ao centro da sala em que se encontrava que

saudou os Sacerdotes de Nemashi. Abrindo a transmissão do arquivo de

áudio captado pela Embaixada, aquela voz áspera logo ecoou pelo domo do

Quórum, aguçando nossos sentidos. Era Te’eran Pryhmus, o orgulhoso e

ousado Arquimago Zahraniano, irmão gêmeo do não menos temido

Da’anishal Pryhmus, o Juiz Supremo da Ordem Zahran.17

- (...) Não percam seu precioso tempo, pois ele acabou para Yuransha. O

tiro da misericórdia será dado, e vocês nada poderão fazer mais por este

planeta. Tirem suas Embaixadas daqui, senão elas também serão destruídas,

junto com seus diplomatas. Que os deuses de Yuransha os protejam, porque

vocês falharam em sua missão. Saibam, Harashis, o único poder real que

existe neste Universo é o conhecimento e a vontade de obtê-lo. E esse poder

existe somente dentro de nós. Nós somos os únicos Sacerdotes que podem

revelar o verdadeiro conhecimento aos mundos e trazer a evolução que vocês

não foram capazes de levar a este planeta miserável. E agora todos pagarão

por esta involução que perpetuam pelas eras. Nós somos os verdadeiros

Sacerdotes dos Templos de Tevohan... Nós somos os Magos Zahranianos!

- Malditos! Isso é muita ousadia. – Disse Molohay.

- Não temos tempo... Precisamos embarcar agora! – Gritei com o Sumo

Sacerdote Shilamaloh.

17 Da’anishal e Te’eran Pryhmus eram filhos de Olavehan e Pandrah Pryhmus, grandes

Embaixadores do planeta Kala’ab. A antiga tradição diplomática desse planeta fez com

que os gêmeos crescessem em um ambiente e família que respirava o conhecimento.

Desde cedo educados nas melhores escolas de diplomacia desse mundo, eles logo

desenvolveram uma eficiente capacidade persuasiva. Posteriormente, seduzidos pelas

promessas de poder da Ordem Zahraniana, ambos se impuseram a missão de buscarem

o conhecimento a todo custo, de modo que corromperam não só a si mesmo, como

levaram seus pais para a Ordem Zahran. Posterioremnte, em meio a disputas internas,

Da’anishal acabou matando o antigo Juiz da Ordem, Laifah Behgan e assumiu o posto,

elegendo Te’eran como seu braço direito. Desde então, ele passou a ser o novo e temido

Juiz Supremo da Ordem Zahran.

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- Alguns cruzadores já estão de partida neste momento. Vocês foram

escalados para o Lex-S3D. Nossas tropas os esperam nele. A jurisdição

dessa missão está designada para a Embaixada em Menefeh. O Quórum já

registrou a missão, vão! E que o Princípio de Tudo os proteja...

Imediatamente, o painel central da Sala do Quórum abriu o velho

canal de comunicação com o Santuário inteiro, fazendo a voz do Sacerdote

Shilamaloh ecoar pelos hangares de nossos recintos sagrados. Mas antes

disso, já havíamos saltado entre os espaços, surgindo no mesmo instante

nos hangares subterrâneos que guardavam nossos cruzadores.

- Em nome do Quórum dos Doze, esta é uma mensagem direta de nossa

Sessão Extraordinária. Atenção aos esquadrões e capitães dos cruzadores e

módulos restantes: Neste momento vocês tem a permissão para partirem

imediatamente para Yuransha. Repito: Esquadrões e capitães dos cruzadores

e módulos restantes, vocês tem a permissão para partirem para Yuransha...

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DOCUMENTO 007

A LUZ QUE RESPLANDECE NAS TREVAS

O sol já estava se pondo quando Loh e sua família alcançaram o sopé da

montanha. Olhando ao longo do Vale que tinham acabado de atravessar, a

cidade de Zohar parecia um grão de areia no meio daquele descampado.

Eles continuavam a subir a montanha, cuja base já começava a ficar

distante. Um relâmpago rasgou o céu, iluminando toda a cidade de Zohar e

seus arredores, e chamando a atenção de Loh e sua família.

- Não parem! Estamos quase chegando às cavernas! – Loh gritava no

meio da montanha enquanto um forte vento começava a soprar.

O som do trovão ecoou quebrando o fúnebre silêncio do Vale. Não

sabiam eles, mas o repentino relâmpago fora ocasionado pelas manobras

daquela máquina assombrosa, que naquele momento se posicionava bem ao

centro do Vale de Sihdim.

- Não parem! Os mensageiros ordenaram que não olhássemos para

trás. Temos que continuar caminhando! – As filhas de Loh já alcançavam

seu pai, mas a sua mulher havia parado abruptamente.

Ela estava aterrorizada com aquela cena. Não sabia o que iria

acontecer. Mas seu certeiro pressentimento lhe dizia que aquilo os marcaria

para sempre.

Bem acima do deserto, além das nuvens que cobriam o Vale de

Sihdim, um grande espectro cobria os céus de Sohdom. Em minha Mente,

bem como dos outros Sacerdotes, não podíamos ver o que estava

acontecendo naquele monstro sombrio, mas sabíamos que a contagem já

havia se iniciado, e os caracteres numéricos daquela poderosa arma corriam

para seu término mortal.

* * *

Longe dali, eu me revezava com Molohay no controle do cruzador,

realizando os obrigatórios protocolos de checagem dos controles e dos

sistemas elétricos para o tão esperado “salto”. Qualquer falha e

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destruiríamos não somente a nós como a um esquadrão de cinquenta

Sacerdotes que se dispunham nos painéis de armas nos módulos de

ataques, prontos para entrarem em ação quando chegássemos ao nosso

destino.

Já havíamos deixado Nemashi há algum tempo, e já nos

encontrávamos na zona das rotas de navegação, bem longe de nosso mundo.

O primeiro “salto” a esta zona já havia sido feita. Agora nos preparávamos

para o segundo e decisivo “salto”: A órbita de Yuransha.

Informados os cálculos do motor, pedi a confirmação dos dados da

distância a ser percorrida ao comando, para que informasse a Molohay.

Estava muito ocupado checando o isolamento magnético do cruzador.

Molohay estava por demais concentrado nos cálculos de angulação dos

quadrantes de direção, e nada falara desde que chegamos ao cruzador. Mas

sua ansiedade era tão grande quanto a minha, senão ainda maior.

- Não estamos sendo rápidos o suficiente.

- Estou tentando. Não posso ligar os potenciômetros do motor de salto

sem fechar o circuito! – Gritei, tentando extravasar meu estresse.

- Se nossos sistemas fossem mais rápidos, talvez já estivéssemos lá.

- Se o Quórum fosse menos irresponsável, já estaríamos posicionados

esperando os Zahranianos.

- Você sabe que não podemos interferir em outras regiões que não

estabelecemos nossas Embaixadas, mesmo que do próprio planeta. Não são

regras do Quórum, são regras dos próprios Superiores...

- Danem-se os princípios! Danem-se as leis! São vidas que estão

prestes a serem destruídas. Vidas, Molohay!

- Calma Levishan... – Disse Molohay, segurando em meu ombro. – Me

escute, precisamos abrir a comunicação novamente, parece que estão nos

chaman...

- Espere... – Disse-lhe, interrompendo a checagem, enquanto um aviso

sonoro ecoava pela cabine, entretanto, em minha cabeça, outra coisa

retumbava sinistramente. Aquela visão que fui capaz de subitamente acessar

não fora intencionada por mim, mas pelos próprios Zahranianos que

projetaram-nas em nossas Mentes.

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- Pelo Princípio... – Molohay concordou comigo, boquiaberto, enquanto

visualizávamos os últimos números zerarem a contagem regressiva. Aquela

cena inesperada travou todos os nossos movimentos ali, bem como congelou

meus pensamentos. A única coisa que consegui assimilar naquele momento

fora a voz intercortada de Molohay que lhe escapava como uma súplica.

- Supremo Centro dos Universos, protegei-lhes... – Embora nunca

mais tivesse praticado suas antigas crenças Akehranianas, naquele

momento, a mais íntima inspiração de Molohay se externou pela sua boca.

E como um vento que leva as folhas de uma árvore, aqueles dígitos

desapareceram diante de nós.

Havia chegado a hora. E ela fora rápida demais.

* * *

Do outro lado do Vale, Loh e suas filhas continuavam a escalar a

montanha enquanto que sua mulher havia estancado no meio daquela

paisagem. Agora algo mais chamava sua atenção, no fundo do vale, para

além da cidade de Zohar, uma coluna de luz brotava do céu. Foi apenas um

instante, mas aquela luminosidade cresceu de uma forma inenarrável.

E o que se seguiu somente poderia ter uma definição.

O inferno.

A luminosidade rasgou o céu muito mais forte que qualquer

relâmpago. Loh e suas filhas estavam apavorados, mas continuavam

seguindo seu caminho sem olhar para trás. Entretanto sua mulher que

estava de frente para aquela cena, teve seus olhos brutalmente atingidos por

aquele intenso clarão, ficando cega no mesmo instante.

Embora tenha jurado não olhar para trás, Loh descumpriu as nossas

ordens virando-se para sua mulher que gritava em desespero. O que ele viu

não afetou seu corpo, mas mexeu com seu íntimo para sempre.

Emergindo do chão como uma tempestade de areia, um forte vento

varria a cidade de Zohar ao fundo, destruindo-a por completo. Mas a vista

daquela montanha revelava a Loh uma visão que nem acompanhando do

nosso módulo nós poderíamos imaginar.

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Uma imensa bola de fogo e enxofre brotou do interior da terra

consumindo as cidades do Vale de Sihdim. Neste momento Loh imaginou

que seus parentes estavam perecendo naquele lago de fogo. Mas logo

acreditou que tudo aquilo acontecera tão rápido que não lhes causara a

menor dor.

Ele estava certo. A destruição das cidades assim como de seus

habitantes foi quase que instantânea. Todos eles praticamente evaporaram

no momento em que aquelas labaredas se espalharam pela terra. Não havia

sobrado ninguém. As cidades ardiam nas chamas. Todos estavam mortos.

Enquanto isso, na montanha, Loh voltou-se para a única pessoa que

estava atrás dele. Sua esposa havia perdido a visão com o contato direto com

a luz que rasgara os céus. Ela estava caída na montanha tateando a terra

sem saber para onde ir, enquanto gritava por sua família.

Vendo a mãe agonizando, as filhas de Loh se desesperaram, e logo

tentaram descer a montanha, mas seu pai as impediu. Decido a ajudar sua

mulher, sozinho, o velho homem iniciou sua descida naquele íngreme e

traiçoeiro terreno.

Aquela ousadia era ainda mais arriscada, devido à explosão

subatômica que transformou imensos blocos de pedra em verdadeiros

meteoritos que eram arremessados cada vez mais próximos da montanha.

Enquanto Loh chegava ao encontro de sua mulher, um enorme bloco

de arenito em chamas voou em sua direção. Ele apenas esperou o impacto.

Mas para sua surpresa, o bloco apenas levantou uma imensa onda de

poeira, apagando-se nas areias da montanha.

Quando a coluna de fumaça baixou, Loh notou que ele havia atingido

em cheio sua esposa, para completo desespero de suas filhas.

Elas tentaram ir de encontro à sua mãe que agora estava esmagada

sob a imensa rocha, mas seu próprio medo as impediu, forçando-as a subir

o resto da montanha com seu pai até encontrarem uma caverna onde se

abrigaram.

* * *

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Levishan? – Molohay me chamou, acordando-me daquele transe

aterrorizante. As intercortadas lembranças que consegui captar da Mente de

Loh e de suas filhas foram tremendas, e mesmo com todo o meu

treinamento, não impedi de me abalar por aquilo tudo. Deixei que a

frustração tomasse conta de mim, junto com um intenso sentimento de

culpa.

- Nós falhamos Molohay, nós falhamos... – Disse-lhe, sentindo uma

grande confusão se instalando em minha cabeça.

- O comando está anunciando...

- O que? Que agora milhares de Mentes estão em silêncio? Que

acabamos de permitir a matança dos habitantes de cinco cidades inteiras?! –

Gritei, agarrando seu traje de piloto. Mas em seu olhar, também pude ver a

decepção estampada em sua vívida íris. Seu sentimento era o mesmo que o

meu: Revolta, mas ainda assim brotava um estranho misto de esperança.

- Eu sei Hamalah, eu também vi. Mas não podemos voltar mais atrás,

a única coisa que agora temos pela frente é uma guerra. – Disse meu

companheiro, tentando me consolar. Novamente, percebendo minha

distração – Não temos mais tempo Hamalah! O salto foi estimado em

1.891.105.414.164.176 angemômetrons, a partir de nosso atual ponto na

Zona Central de Ashunyah.18 – Aqueles dados apenas me fizeram retornar à

realidade e a serenamente acionar o controle de voz da cabine.

- Nemashi, aqui é o Capitão Hamalah. Motores prontos para acionar o

salto e rotas confirmadas. Os dados chegaram à Ponte? – Perguntei,

seguindo nosso protocolo de navegação.

- Sim. Revisados e confirmados. Salto autorizado, Capitão. – O

comando do Santuário havia nos liberado.

Sem muita animação, liberei os computadores do cruzador, que por

sua vez, acionaram os motores, e o resto que se se sucedeu foi consequência

das Leis Naturais de nosso Universo. Em um piscar de olhos, nosso cruzador

havia desaparecido do ponto em que estávamos – como tantos outros –, para

18 Transformando os angemômetrons em unidades de medição de Yuransha, nós saltamos

4.202.456.475.920.391 quilômetros, ou 444 anos-luz.

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surgir acima da atmosfera de Yuransha. Em breve estaríamos diante dos

temidos Pulsares, os pequenos, mas mortais cruzadores Zahranianos.

Uma nova guerra havia se iniciado.

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DOCUMENTO FINAL

Este relato detalhado da destruição das cidades do Vale de Sihdim foi fruto

da visão que tive acesso, por meio da temporária ligação que estabeleci entre

a minha Mente e a de Loh.

Muita coisa aconteceu nesse pequeno espaço de tempo, e dados

específicos sobre o destino das cidades, só puderam ser registrados

posteriormente ao conflito iniciado. As primeiras a serem destruídas foram

Sohdom e Amorah, sendo a última delas Zohar. Como consequência das

fortes explosões, qualquer vestígio dessas cidades foi apagado da topografia,

desaparecendo em meio às rochas. Em compensação, a história dessa

hecatombe permaneceu viva na memória de suas testemunhas, sendo

repassadas de tempos em tempos pela tradição oral.

Mesmo em meio ao conflito, não deixei de monitorar Loh e suas filhas,

garantindo que estariam em segurança. Mais tarde descobrimos que devido

à morte de sua mãe, as filhas de Loh tiveram relações com seu pai para que

garantissem sua descendência. Como fruto dessas relações, nasceram

Mohab e Ben-Hami, estes, que deram continuidade à genealogia de Loh.

Pouco tempo depois, descendentes do patriarca Avraham compilaram

essas narrativas de uma forma bastante rudimentar,19 ocultando diversos

episódios ocorridos, incluindo esta batalha, que foi registrada em livros

específicos dos Quatro Reinos do Norte, bem como dos povos do Rio Sindhu.

Mas para nós, isso jamais será esquecido, pois o que no início era uma

simples missão de escolta dos exércitos cativos de Sihdim tornou-se uma

verdadeira jornada protagonizada por mim e o Sacerdote Molohay.

A guerra foi embora tão rápida como veio, tão instável como a

atmosfera política daquele planeta. Talvez um dia eu conte detalhes desse

conflito, mas a única coisa que posso dizer é que conseguimos baixas

mínimas, devido a uma intervenção praticamente milagrosa de nosso corpo

diplomático com um inovador e surpreendente acordo com os quase sempre

inflexíveis Zahranianos.

19 Esses fatos foram parcialmente registrados no Livro do Gênesis, capítulos 18 e 19.

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Outra vez nos saímos vitoriosos, conseguimos expulsar os Magos do

planeta, mesmo que por um tempo. Mas os verdadeiros conquistadores

foram os yuranshianos, alcançando uma paz que trouxe um verdadeiro

florescer no desenvolvimento daquele orbe.

Esta história atualmente se encontra devidamente registrada em

nossos Arquivos. Mas não sabemos se num futuro distante seremos

retratados como heróis ou negligentes, mas hoje sabemos que de alguma

forma cumprimos com a nossa missão. Mesmo que seja por um breve

momento, mais uma vez a paz voltou a habitar entre os povos de Yuransha.

Esperamos que os homens sejam capazes de mantê-la, não pela

espada, mas pelas suas consciências.

Senão, mais uma vez voltaremos a interferir em seu mundo, assim

como fizemos tantas outras vezes em seu passado.