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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
OLIVIER HAXKAR JEAN
O processo coletivo e o IRDR ante a litigiosidade repetitiva e de massa
Mestrado em Direito
São Paulo
2020
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
OLIVIER HAXKAR JEAN
O processo coletivo e o IRDR ante a litigiosidade repetitiva e de massa
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de MESTRE em Direito,
na subárea Direitos Difusos e Coletivos, linha de pesquisa
Efetividade dos Direitos de Terceira Dimensão e Tutela da
Coletividade, dos Povos e da Humanidade, sob a orientação
do Prof. Dr. Gilson Delgado Miranda.
São Paulo
2020
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
OLIVIER HAXKAR JEAN
O processo coletivo e o IRDR ante a litigiosidade repetitiva e de massa
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de MESTRE em Direito,
na subárea Direitos Difusos e Coletivos, linha de pesquisa
Efetividade dos Direitos de Terceira Dimensão e Tutela da
Coletividade, dos Povos e da Humanidade, sob a orientação
do Prof. Dr. Gilson Delgado Miranda.
Aprovado em: _____/_____/_____.
Banca Examinadora
Professor Doutor Gilson Delgado Miranda (Orientador)
Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Julgamento:_______________________________________________________________
Assinatura:________________________________________________________________
Professor (a) Doutor (a)______________________________________________________
Instituição: ________________________________________________________________
Julgamento:________________________________________________________________
Assinatura: ________________________________________________________________
Professor (a) Doutor (a)______________________________________________________
Instituição: ________________________________________________________________
Julgamento:________________________________________________________________
Assinatura: ________________________________________________________________
4
RESUMO
A evolução do direito material conduziu a uma nova visão do direito processual, superando a
visão privatista de tutela do direito individual, para também tutelar os direitos
supraindividuais, o que culminou na elaboração de diplomas legais formadores de um
avançado sistema de tutela coletiva. Apesar disso, o processo coletivo não foi suficiente para,
sozinho, abarcar o constante aumento da litigiosidade, em especial demandas repetitivas e de
massa. Buscando enfrentar o crescente aumento do número de processos e a dispersão
jurisprudencial, o legislador, no Código de Processo Civil/2015, trouxe um novo instrumento
processual denominado Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (“IRDR”). A
presente dissertação visa analisar e comparar os principais aspectos dos dois regimes
jurídicos, de modo que se possa extrair desta análise um regime amplo e complementar que,
associado a novas ferramentas de inteligência artificial, seja capaz de proporcionar uma tutela
jurisdicional efetiva, célere e juridicamente segura.
Palavras-chave: Processo coletivo. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas
(“IRDR”). Litigiosidade repetitiva e de massa. Efetividade. Celeridade. Segurança jurídica.
5
ABSTRACT
The evolution of rights has led to a new view of procedural codes, overcoming the privatist
view of the individual right, to also protect group rights, which culminated in the elaboration
of an advanced system of class action and collective protection of those rights. Despite this,
the collective process was not enough to face the constant increase in litigation, in particular
the mass tort cases. Seeking to face the growing increase of the litigation and the
jurisprudence spread, the legislator, in the Code of Civil Procedure of 2015, brought a new
procedural instrument called incident of resolution of repetitive demands (“IRDR”). The
present dissertation aims to analyze and compare the main aspects of the two legal regimes, in
order to extract a new vision of a broad and complementary regime that, associated with new
artificial intelligence tools, can be capable of providing effective, fast and secure judicial
protection.
Keywords: Class action. Incident of resolution of repetitive demands (“IRDR”). Mass tort
cases. Effective. Fast. Secure judicial protection.
6
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 8
2 A EVOLUÇÃO DA TUTELA COLETIVA NO BRASIL 12
2.1 Contribuição doutrinária 12
2.2 Evolução legislativa 15
2.2.1 Lei de Ação Popular 15
2.2.2 Lei de Ação Civil Pública 16
2.3 Ações coletivas na Constituição Federal de 1988 22
2.4 Código de Defesa do Consumidor 23
2.5 Mandado de segurança coletivo 26
3 PRINCIPAIS ASPECTOS DO MODELO BRASILEIRO DE PROCESSO
COLETIVO 29
3.1 Microssistema 29
3.2 Conceito e definição dos direitos transindividuais 32
3.3 Legitimidade 38
3.3.1 Natureza jurídica 40
3.3.2 Legitimados 41
3.3.2.1 Legitimidade segundo a jurisprudência 41
3.3.3 Legitimidade do Ministério Público 41
3.3.4 Legitimidade da Defensoria Pública 48
3.3.5 Legitimidade dos entes de direito público interno 51
3.4 Coisa julgada no processo coletivo 51
3.4.1 Limites objetivos, subjetivos, modo de produção e extensão da coisa julgada no
processo coletivo 53
3.4.2 Transporte in utilibus 57
3.4.3 Suspensão da ação individual 59
3.4.4 Limitação territorial 60
4 O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/2015 E SEUS INSTRUMENTOS DE
ENFRENTAMENTO À LITIGIOSIDADE DE MASSA E REPETITIVA 65
4.1 Os precedentes vinculantes no Código de Processo Civil/2015 65
4.1.1 Legislação brasileira e inovação do Código de Processo Civil/2015 65
4.1.2 Crítica e adequação ao sistema brasileiro 67
4.2 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas 71
4.2.1 Origem e conceito 72
4.2.2 Requisitos de admissibilidade 75
4.2.3 Principais efeitos 79
4.2.3.1 Suspensão dos processos 79
4.2.3.2 Efeitos nos demais processos 82
4.2.3.3 Prazo prescricional 84
4.4 (In) constitucionalidade 84
5 APROXIMAÇÃO ENTRE CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E TUTELA
COLETIVA: DIFICULDADES E DESAFIOS 87
5.1 Entraves legais do processo coletivo brasileiro 87
5.1.1 Coisa julgada na tutela de direito individuais homogêneos 89
5.1.2 Litispendência entre demanda individual e processo coletivo 91
7
5.1.3 Legitimidade ativa 94
5.2 Deficiências dos instrumentos de enfrentamento à litigiosidade de massa e
repetitiva trazidos pelo Código de Processo Civil 99
5.2.1 Formação de coisa julgada 99
5.2.2 Caráter meramente repressivo 102
5.2.3 IRDR somente para questões de direito 103
5.2.4 Ausência de suspensão do prazo prescricional das pretensões individuais 105
5.2.5 Precedentes vinculantes: meio constitucional para a efetiva e qualitativa
redução de processos? 106
5.3 Complementaridade e interdependência entre os modelos de tutela 107
5.3.1 Regime amplo de tutela de direitos coletivos e de tutela coletiva de direitos 107
5.3.2 Subsidiariedade do regime de tutela do Código de Processo Civil frente à
ação coletiva 109
5.3.3 O veto ao artigo 333 do Código de Processo Civil 113
5.4 Outras formas de enfrentamento da litigiosidade repetitiva 118
5.4.1 Custo da litigância 122
5.4.2 Maiores litigantes 127
5.4.3 Litigância de má-fé e fraudulenta 130
5.4.4 Inteligência artificial 132
6 CONCLUSÃO 137
REFERÊNCIAS 147
8
1 INTRODUÇÃO
A evolução do direito conduziu à criação de novas categorias de direitos. Os direitos
humanos de primeira geração pretendiam limitar os poderes do rei, ou seja, preservar os direitos
de liberdade para que não fossem atingidos em sua esfera jurídica. Seu marco histórico foi a
Magna Carta de 1215.
Somente séculos mais tarde passou-se a tratar e a desenvolver direitos que fossem além
dos direitos de liberdade em razão de uma nova realidade econômica e social trazida pela
revolução industrial, que alterou não somente as relações no âmbito das famílias, mas também
as relações entre patrão e empregado. A Segunda Guerra Mundial foi marco fundamental em
razão de graves violações aos direitos humanos ocorridas no seu decorrer, culminando na
criação de organismos internacionais e tratados destinados a assegurar direitos
supraindividuais, conformando a segunda e a terceira gerações de direitos humanos.
Posteriormente, outros fatores como a expansão da internet e das relações comerciais
e sociais “virtuais”, contratos massificados, ampliação do acesso a serviços como telefonia,
serviço bancário, aeroviário, além da disseminação das informações e da facilidade de acesso
ao Poder Judiciário, o incremento da participação das decisões judiciais nas políticas públicas,
notadamente na área da saúde, culminaram em acentuado aumento no ajuizamento de
demandas.
Não se pretende discutir as causas desse fenômeno, mas perceber o impacto que essas
alterações econômicas, sociais e jurídicas trouxeram na tutela processual, tanto coletiva como
individual, a fim de verificar a efetividade dos direitos difusos e coletivos diante do crescente
número de demandas, em grande parte repetitivas, lançadas ao Poder Judiciário.
O processo civil brasileiro, desde o Código de Processo Civil/1973, passou por
alterações visando tutelar com efetividade a modificação na sociedade e nas relações
comerciais. Passou-se de uma visão exclusivamente voltada ao litígio individual para uma visão
cada vez mais preocupada com a tutela coletiva, revelada por meio de alterações legislativas
que visavam fazer frente à nova forma de litigância.
Paralelamente, desenvolveu-se aos poucos no Brasil um regime de tutela coletiva,
inaugurado pela Lei de Ação Popular de 1965 e, posteriormente, bastante ampliado com a
edição da Lei de Ação Civil Pública em 1985 e do Código de Defesa do Consumidor em 1990.
A Constituição Federal de 1988 também foi um marco importante ao prever, dentre
outras inovações, a possibilidade de tutela de direitos difusos e coletivos em sede de ação civil
9
pública, conferindo ampla legitimidade para o Ministério Público na tutela do extenso rol de
direitos sociais previstos no novo texto constitucional.
O Código de Processo Civil também passou por diversas alterações legislativas que
buscaram introduzir uma tutela mais eficaz de direitos transindividuais, dentre as quais
destacam-se, mais recentemente, a repercussão geral em sede de recurso extraordinário e os
recursos repetitivos nos recursos especiais.
O Código de Processo Civil/2015 avançou ainda mais, trazendo institutos como o
Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (“IRDR”), o Incidente de Assunção de
Competência (“IAC”), o amicus curiae em sede de demandas individuais com repercussão
coletiva (a fim de garantir maior legitimidade e representatividade adequada na formação dos
precedentes vinculantes1) e a notificação para instauração de tutela coletiva (artigo 139, X).
Estas inovações conferiram maior interação, aproximação e diálogo entre a tutela
individual clássica e a tutela coletiva, que poderia ser ilustrada por dois círculos secantes, ou
seja, embora existam pontos comuns (e.g. artigo 95 do Código de Defesa do Consumidor e
instrumentos do Código de Processo Civil/2015 como o IRDR), continuam, no modelo atual,
sendo regimes jurídicos diversos2.
O ponto de encontro decorre da constatação de que grande parte das lides, embora
aparentemente individuais, veiculam direito que se revela transindividual, eis que comum a
diversas pessoas, notadamente consumidores, envolvidos na mesma situação, performando
demandas repetitivas.
Outro relevante instrumento no projeto era a possibilidade de converter a ação
individual em ação coletiva, instrumento previsto no artigo 333 do Código de Processo Civil,
mas vetado pela Presidente da República, sob o argumento de que a conversão poderia ocorrer
de maneira pouco criteriosa; além disso, já seriam suficientes os demais instrumentos para
enfrentar a litigiosidade de massa.
Atualmente, portanto, convivem dois regimes bastante diversos de enfrentamento da
litigiosidade de massa e repetitiva: de um lado, o microssistema processual coletivo e, de outro,
os instrumentos do Código de Processo Civil/2015.
1 CAMBI, Eduardo; DAMASCENO, Kleber Ricardo. Amicus curiae e o processo coletivo – uma proposta democrática. In:
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. (coord.). Processo coletivo – do surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014. 2 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Técnicas individuais de repercussão coletiva X técnicas coletivas de repercussão
individual. Por que estão extinguindo a ação civil pública para a defesa de direitos individuais homogêneos? In: DIDIER
JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes (coord.). Repercussões do Novo CPC. v. 8. Processo Coletivo. Salvador:
Juspodivm, 2015, pp. 623- 639; GRINOVER, Ada Pellegrini. A coletivização de ações individuais após o veto. In: CIANCI, Mirna et al. (coord.) Novo Código de Processo Civil – impactos na legislação extravagante e interdisciplinar. v.1. São
Paulo: Saraiva, 2016, pp. 15-23.
10
Nesta pesquisa, buscaremos verificar se há sobreposição entre as tutelas, ou seja, se há
espaço para que atuem de forma complementar ou se uma deve prevalecer sobre a outra. Para
tanto, analisaremos os pontos mais sensíveis do sistema processual (legitimidade ativa, regime
de coisa julgada e litispendência entre processo coletivo e individual) a fim de verificar se
demandam nova leitura, de modo a permitir a existência de um sistema coerente, íntegro e
efetivo de tutela coletiva.
No segundo capítulo, logo após a Introdução, faremos uma breve retrospectiva
histórica do surgimento e evolução da tutela coletiva no Brasil, partindo da lei de ação popular
de 1965 e, posteriormente, ressaltando a influência da doutrina italiana que se refletiu nos
trabalhos acadêmicos brasileiros da época e que logo depois culminaram na edição de dois
avançados diplomas legais: a Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor.
No terceiro capítulo analisaremos os principais aspectos do processo coletivo que o
diferencia do sistema de processo individual clássico do Código de Processo Civil: direito
tutelado, legitimidade restrita e regime especial de coisa julgada. A análise do microssistema
processual coletivo permitirá verificar suas principais características de modo a permitir
compará-lo com os novos instrumentos do Código de Processo Civil a fim de verificar suas
deficiências e vantagens.
No quarto capítulo abordaremos as principais características, objetivos e efeitos dos
novos instrumentos de enfrentamento da litigiosidade repetitiva e de massa trazidos pelo
Código de Processo Civil, de modo a verificar como o legislador pretendeu enfrentar os
problemas de assoberbamento do Poder Judiciário e realizar uma análise comparativa entre o
regime do Código de Processo Civil e o do microssistema de tutela coletiva.
Com efeito, no quinto capítulo dedicaremos um primeiro tópico para verificar os
principais entraves do processo coletivo que demandam revisão para aperfeiçoar o
microssistema de processo coletivo, em especial o regime diferenciado de formação da coisa
julgada na tutela dos direitos individuais homogêneos, a relação entre demanda individual e
processo coletivo, além do regime restritivo de legitimidade ativa.
Da mesma forma, apontaremos as deficiências dos instrumentos de enfrentamento da
litigiosidade de massa e repetitiva trazidos pelo Código de Processo Civil, em especial a
inexistência de formação de coisa julgada, o caráter meramente repressivo, a impossibilidade
de resolução de questões de fato, a ausência de suspensão do prazo prescricional das pretensões
individuais, além do risco decorrente da ampliação do rol de precedentes de efeito vinculante.
No mesmo capítulo, pretendemos demonstrar que a tutela processual coletiva e os
novos instrumentos do Código de Processo Civil, em especial o IRDR, não são conflitantes ou
11
devam prevalecer um sobre o outro, mas interdependentes e complementares, que formam um
regime ainda mais amplo de tutela supraindividual. A ligação entre ambos os sistemas se daria
pelo artigo 333 do Código de Processo Civil, objeto de veto presidencial.
Dedicaremos, por fim, um último tópico para verificar a insuficiência de uma solução
exclusivamente processual para enfrentar a explosão de litígios. Ou seja, demonstrar que os
regimes processuais até então analisados não são suficientes por si só, ainda que superados seus
defeitos, para combater a crescente litigiosidade. É imprescindível rever questões fundamentais
como a excessiva benevolência na concessão de justiça gratuita, a complacência no combate e
enfrentamento da litigância de má-fé e fraudulenta, além da necessidade de tratamento
diferenciado aos grandes litigantes do Poder Judiciário. Abordaremos também os benefícios
trazidos pelo emprego da tecnologia e da inteligência artificial no enfrentamento da
litigiosidade.
12
2 A EVOLUÇÃO DA TUTELA COLETIVA NO BRASIL
2.1 Contribuição doutrinária
Conforme visto de forma introdutória, a Revolução Industrial alterou as balizas
econômicas e sociais da sociedade a partir do século XVIII, passando da produção de um
modelo artesanal, centrado na produção familiar, para um modelo de produção por máquinas,
em larga escala.
A Revolução Industrial foi acompanhada de um período de grande crescimento
econômico e enriquecimento das famílias, o que, associado à maior produção, intensificou as
relações negociais.
Posteriormente, outros fenômenos contribuíram para a explosão das relações
comerciais e sociais. Dentre elas, a invenção do telefone, da internet, da propaganda e o
marketing conduziram à uma sociedade que hoje se revela altamente baseada no consumo, o
que tem sido acentuado com as novas ferramentas digitais de compra e de relacionamento.
Paralelamente surgiram novos direitos. Passou-se a tratar o meio ambiente e a proteção
da fauna e da flora em âmbito mundial, o direito à paz, o direito das minorias, os direitos do
consumidor, da criança e do adolescente, dentre outros. Enfim, todos com uma característica
marcante: a transindividualidade.
Conforme pontuaram Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Sofia Temer,
A nova realidade contemporânea estampa a concentração urbana, a globalização, a
produção e o consumo em escala de massa, a padronização de contratos, a elaboração
desenfreada de normas pelo Estado, acordos e convenções coletivas de trabalho,
discussões relacionadas a funcionários, empregados públicos e aposentados,
discussões relacionadas à constitucionalidade ou legalidade de tributos incidentes
sobre milhares de pessoas jurídicas ou naturais, transportes de massa e meios físicos
ou virtuais que difundem informações em proporções até então inimagináveis. Tem-
se, portanto, um cenário propício para danos em massa, que desafiam a ordem jurídica
ao afetarem grande número de indivíduos3.
Há, assim, uma íntima ligação entre a evolução dos direitos humanos e suas dimensões
e o direito coletivo.
Isso porque, desde o desenvolvimento dos direitos humanos de segunda geração ou
dimensão – direitos de igualdade, de amparo aos idosos – iniciou-se um processo de
3 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; SILVA, Larissa Clare Pochmann da. Ações coletivas e incidente de resolução de demandas repetitivas: algumas considerações sobre a solução coletiva de conflitos. In: ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo
coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 537.
13
reconhecimento da existência de direitos que superam a esfera individual consagrados na
primeira geração ou dimensão.
Se o surgimento dos direitos humanos esteve associado à uma visão de direito de
liberdade do indivíduo frente ao Estado, desde a segunda geração passou-se a reconhecer
direitos que tutelam uma gama de sujeitos reunidos coletivamente.
Todavia, a legislação brasileira até a década de 1970 era orientada exclusivamente
pelas máximas do estado liberal e capitalista, calcados na autonomia da vontade e máxima
proteção da propriedade individual.
O caráter nitidamente individualista do processo civil brasileiro se revela pela simples
leitura de alguns dispositivos, como o artigo 76 do Código Civil de 1916 que previa: “para
propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico, ou moral.
Parágrafo único – o interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente ao autor, ou à
sua família”.
No mesmo sentido o artigo 6º do Código de Processo Civil/1973 estabelecia que
ninguém poderia pleitear em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.
Igualmente, também revelador do processo civil individualista o regime de extensão
subjetiva da coisa julgada previsto no artigo 472 do Código de Processo Civil/1973: “a sentença
faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros”.
Estes dispositivos e a visão que vigoravam inviabilizavam a tutela coletiva de direitos
e a tutela de direitos coletivos, evidenciando-se, assim, a necessidade de reforma.
Isso porque era inviável pretender a proteção de direitos supraindividuais com
fundamento em legislação que restringia a legitimidade ativa e a extensão subjetiva. Seria
inviável que terceiro pudesse manejar e obter tutela judicial sobre um direito que não lhe
pertencia, demandando-se, assim, a evolução da doutrina e da legislação no sentido de permitir
que os direitos difusos fossem representados e tutelados em juízo.
Por esse motivo, Mauro Cappelletti e Bryant Garth apontaram a ação destinada à
defesa dos direitos coletivos como um dos instrumentos de acesso à justiça, configuradores da
terceira onda4.
A contribuição doutrinária brasileira foi essencial para o desenvolvimento da
legislação brasileira. A inspiração, de origem italiana, veio em especial de duas obras coletivas
resultantes de dois Congressos realizados na década de 1970 (Le azioni a tutela di interessi
4 São três as ondas que expressam a evolução do acesso à justiça: (a) assistência judiciária para os pobres; (b) representação dos interesses difusos; (c) efetividade dos mecanismos de acesso à justiça. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso
à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, pp. 67-73.
14
collettivi, atti del convegno di studio, Universitá do Pavia; La tutela degli interessi diffusi nel
diritto comparato, com particolare riguardo ala protezione dell’ambiente e dei consumatori, III
Congresso Nazionale dell’Associazione Italiano di Diritto Comparato, Universitá degli Studi
di Salerno) e da obra Interessi coletivo e processo: la legitimazione ad agire, de 1979, de
Vincenzo Vigoriti5.
A Lei de Ação Popular de 1965 (Lei n. 4.717/1965), no entanto, anterior aos referidos
congressos, foi precursora do tema no Brasil ao prever a tutela do erário público, espectro
posteriormente alargado com a Constituição Federal de 1988, passando a também tutelar outros
valores como o meio ambiente e o patrimônio histórico.
Posteriormente, fruto do aprofundamento dos estudos da doutrina brasileira, o grande
marco foi a edição da Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985), a primeira a positivar as
expressões direito difuso e direito coletivo, ao prever que poderia ser manejada ação civil
pública para a tutela de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo” sem, no entanto,
conceituá-los, mas desde logo prevendo esta especial categoria de direito material, nascida da
superação entre interesse público e interesse privado.
Importante perceber a evolução da doutrina e da legislação. Passou-se de uma visão
exclusivamente voltada ao litígio individual para um entendimento cada vez mais preocupado
com a tutela coletiva, revelado por meio de alterações legislativas que parte da doutrina trata
como “ondas”6 de reformas.
Ou seja, a evolução do direito material impôs ao direito processual um novo desafio
na elaboração de um modelo de tutela destes novos direitos. O processo civil, historicamente
voltado à tutela de direitos individuais, teve de se adaptar à nova realidade, estabelecendo
instrumentos a efetivar o amplo rol de direitos que se abria na legislação nacional e
internacional.
A evolução, porém, foi paulatina. Foram necessárias décadas e intensa produção
acadêmica para a edição de leis hoje consideradas formadoras do microssistema processual
coletivo. Veremos, em ordem cronológica, os principais aspectos das leis que amparam a
produção de direitos coletivos no Brasil.
5 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 73. 6 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017.
15
2.2 Evolução legislativa
2.2.1 Lei de Ação Popular
A ação popular é ferramenta pela qual o cidadão pode participar do controle dos atos
da administração pública, consagrando a democracia participativa de que tratou a Constituição
Federal de 1988, em seu artigo 1º, parágrafo único. A ação popular é
meio constitucional posto à disposição de qualquer cidadão para obter a invalidação
de atos ou contratos administrativos – ou a estes equiparados – ilegais e lesivos do
patrimônio federal, estadual e municipal, ou de suas autarquias, entidades paraestatais
e pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiros públicos7.
A Lei n. 4.717/1965 (art. 1º), editada sob a égide do regime militar, indicava que a
finalidade era a tutela do patrimônio público, ao prever que qualquer cidadão seria parte
legítima para
pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da
União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de
sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de
seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de
serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio
o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do
patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do
Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou
entidades subvencionadas pelos cofres públicos.
A referência constitucional feita no artigo é à Constituição de 1946, sob a qual foi
editada. Todavia, já havia menção à ação popular na Constituição de 1934 (art. 113, item 388),
embora logo retirada pela Constituição outorgada de 1937.
O conceito de patrimônio público foi posteriormente ampliado com a Lei n.
6.513/1977, que inseriu o § 1º ao artigo 1º da Lei de Ação Popular segundo o qual consideram-
se patrimônio público os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou
turístico.
A Constituição Federal de 1988, ao tratar da ação popular, ampliou ainda mais o seu
escopo ao prever que se destina à anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade
de que o Estado participe, ao patrimônio histórico e cultural – o que já constava da lei após
1977 – mas também à moralidade administrativa e ao meio ambiente9.
7 MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações
constitucionais. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 148-149. 8 Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios. 9 BRASIL. Constituição Federal (1988). Art. 5º, LXXIII.
16
Assim, a simples ofensa à moralidade administrativa é causa de pedir suficiente para
o manejo da ação popular, buscando tutela de natureza desconstitutivo-condenatória visando
anular ou declarar nulidade dos atos lesivos praticados, inclusive com condenação em perdas e
danos, embora não se deva presumir a lesão ao erário10.
A ação popular, embora integrante do microssistema processual coletivo, limita-se à
tutela de direitos difusos, mas não dos direitos coletivos ou individuais homogêneos11.
2.2.2 Lei de Ação Civil Pública
A Lei de Ação Popular teve papel importante ao inaugurar, do ponto de vista
legislativo, o tema da tutela coletiva no país.
Posteriormente, avançou-se quando da edição da Política Nacional do Meio
Ambiente (Lei n. 6.938/1981), que trouxe previsão de responsabilidade objetiva por danos
causados ao meio ambiente e a terceiros e legitimidade conferida ao Ministério Público para
propor ação de responsabilidade civil e criminal12.
Não havia ainda menção à uma Lei de Ação Civil Pública, mas a legitimidade ao
órgão ministerial foi pela primeira vez expressa no texto legal.
Com fundamento mencionado na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, a Lei
Orgânica do Ministério Público (Lei Complementar n. 40/1981), editada no mesmo ano, trouxe
como função institucional do Ministério Público promover a ação civil pública, nos termos da
lei em questão (artigo 3º, III).
Estes foram os diplomas legislativos que deram origem à uma ampla série de
congressos e estudos sobre o tema e que culminaram com a edição da Lei de Ação Civil Pública,
em 1985.
Conforme retrospecto histórico elaborado por Ada Pellegrini Grinover13, a Lei de
Ação Civil Pública teve origem num seminário sobre direitos difusos, ocorrido na Universidade
10 “[...] Eventual violação à boa-fé e aos valores éticos esperados nas práticas administrativas não configura, por si só,
elemento suficiente para ensejar a presunção de lesão ao patrimônio público, uma vez que a responsabilidade dos agentes em
face de conduta praticada em detrimento do patrimônio público exige a comprovação e a quantificação do dano, nos termos do art. 14 da Lei n. 4.717/1965. Entendimento contrário implicaria evidente enriquecimento sem causa do ente público, que
usufruiu dos serviços prestados em razão do contrato firmado durante o período de sua vigência”. Precedente citado: REsp
802.378-SP, Primeira Turma, DJ 4-6-2007; REsp 1.447.237-MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 16-12-2014, DJe
9-3-2015. 11 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual de processo coletivo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 125; PIZZOL, Patrícia
Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 100. 12 Lei n. 6.938/1981, art. 14, § 1º. Lei da Política nacional do meio ambiente. 13 GRINOVER, Ada Pellegrini (org.). Legitimação da Defensoria Pública à ação civil pública. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do
surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014.
17
de São Paulo (USP), em 1982. Formou-se, então, uma comissão para elaborar um projeto de
lei, composta por Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe e
Waldemar Mariz de Oliveira Junior, a ser apresentado à Associação Paulista de Magistrados
(Apamagis) e, posteriormente, ao Congresso Nacional, pelo deputado Flávio Bierrenbach
(PMDB/SP).
Paralelamente, o Ministério Público de São Paulo, em projeto liderado por A. M. de
Camargo Ferraz, Edis Milaré e Nelson Nery Junior, que reconhecidamente tomou como ponto
de partida o projeto da comissão Apamagis, cujo objetivo era fortalecer o Ministério Público,
também apresentou o seu projeto de lei, que, por sua vez, foi enviado diretamente ao Ministro
da Justiça Ibrahim Abi-Ackel que o encaminhou ao Congresso Nacional acompanhado de
mensagem do Poder Executivo.
Referido projeto de lei, apesar de ter chegado depois da iniciativa apresentada pelo
Deputado Flávio Bierrenbach, foi aprovado e transformado na Lei n. 7.347/1985.
Interessante notar, porém, conforme registro de Ada Pellegrini Grinover, com base no
trabalho de Rogério Bastos Arantes14, que o projeto inicialmente conferia ao Ministério Público
a titularidade exclusiva da ação coletiva. Depois, por influência de Nelson Nery Junior, admitiu-
se a cotitularidade com as associações, mas retirando a titularidade de outros entes públicos,
que foi depois reintroduzida pelo Ministério da Justiça.
A ação civil pública é espécie do gênero ação coletiva15 e visa à tutela e proteção
dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, embora a lei inicialmente tenha
trazido, em seu artigo 1º, um rol de direitos a serem protegidos, sem mencionar a nomenclatura
difundida com a edição do Código de Defesa do Consumidor.
Em que pese a dúvida inicial sobre a possibilidade de tutela de direitos individuais
homogêneos por meio de ação civil pública, a possibilidade foi reconhecida pela doutrina e
jurisprudência16 após a edição do Código de Defesa do Consumidor, em especial diante dos
seus artigos 83 e 91.
14 ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e Política no Brasil. São Paulo: Sumaré-IDESP-EDUC, 2002, pp. 51-76. 15 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, p. 91. 16 O Ministério Público tem legitimidade para o ajuizamento de ação civil pública com o objetivo de impedir o repasse e de garantir a exclusão ou a abstenção de inclusão em cadastros de inadimplentes de dados referentes a consumidores cujos
débitos estejam em fase de discussão judicial, bem como para requerer a compensação de danos morais e a reparação de
danos materiais decorrentes da inclusão indevida de seus nomes nos referidos cadastros. A Lei n. 7.347/1985, que dispõe
sobre a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação civil pública, é aplicável a quaisquer interesses de
natureza transindividual, conforme definidos no art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, ainda que eles não digam
respeito às relações de consumo. Essa conclusão é extraída da interpretação conjunta do art. 21 da Lei n. 7.347/1985 e dos
arts. 81 e 90 do Código de Defesa do Consumidor, os quais evidenciam a reciprocidade e complementaridade desses
diplomas legislativos, mas principalmente do disposto no art. 129, III, CF, que estabelece como uma das funções institucionais do Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para proteção do patrimônio público e
social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. Mesmo no que se refere aos interesses de natureza
18
A lei inicialmente abarcou apenas os direitos difusos, valendo-se da técnica da
enumeração de forma taxativa das matérias que poderiam ser tuteladas por meio da ação civil
pública.
Havia, contudo, importante dispositivo que permitia a tutela de qualquer outro
interesse difuso, previsto no artigo 1º, IV (antes da modificação operada pelo Código de Defesa
do Consumidor), que permitiria aplicar a lei, por interpretação analógica, a qualquer outra
situação violadora de direito difuso, ainda que não especificamente arrolada, passando-se,
assim, de uma enumeração numerus clausus para uma enumeração numerus apertus.
O dispositivo, porém, foi vetado pelo Presidente da República17, revelando, desde o
nascedouro da lei, a preocupação com o manejo do poderoso instrumento18, que acabou se
confirmando com a Medida Provisória n. 2180-35/2001, que inseriu outra limitação temática
proibindo o manejo de ação civil pública em demandas envolvendo tributos, contribuições
previdenciárias, FGTS ou genericamente outros fundos de natureza institucional cujos
beneficiários podem ser individualmente determinados (artigo 1º, parágrafo único).
individual homogênea, após grande discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da legitimação processual extraordinária do
Ministério Público, firmou-se o entendimento de que, para seu reconhecimento, basta a demonstração da relevância social da
questão. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal pacificou o tema ao estabelecer que, no gênero “interesses coletivos”, ao qual faz referência o art. 129, III, CF, incluem-se os “interesses individuais homogêneos”, cuja tutela, dessa forma, pode ser
pleiteada pelo Ministério Público. O Superior Tribunal de Justiça, na mesma linha, já decidiu que os interesses individuais
homogêneos são considerados relevantes por si mesmos, sendo desnecessária a comprovação dessa relevância. Ademais,
além da grande importância política que possui a solução jurisdicional de conflitos de massa, a CF permite a atribuição de outras funções ao Ministério Público, desde que compatíveis com sua finalidade (art. 129, IX). Em hipóteses como a
discutida, em que se vise tutelar um determinado número de pessoas ligadas por uma circunstância de fato, qual seja, a
inclusão de seu nome em cadastros de inadimplentes, fica clara a natureza individual homogênea do interesse tutelado.
Outrossim, a situação individual de cada consumidor não é considerada no momento da inclusão de seu nome no cadastro, bastando que exista demanda judicial discutindo o débito, o que evidencia a prevalência dos aspectos coletivos e a
homogeneidade dos interesses envolvidos. Assim, não se pode relegar a tutela de todos os direitos a instrumentos processuais
individuais, sob pena de excluir da proteção do Estado e da democracia aqueles cidadãos que sejam mais necessitados, ou
possuam direitos cuja tutela seja economicamente inviável sob a ótica do processo individual. REsp 1.148.179-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 26-2-2013. 17 “O veto incide sobre as expressões constantes dos dispositivos abaixo indicados: Ementa: “como a qualquer outro interesse
difuso”; Art. 1º, IV: “a qualquer outro interesse difuso”; Art. 4º: “ou a qualquer outro interesse difuso; e Art. 5º, II: “ou a
qualquer outro interesse difuso”. As razões de interesse público dizem respeito precipuamente à insegurança jurídica, em detrimento do bem comum, que decorre da amplíssima e imprecisa abrangência da expressão “qualquer outro interesse
difuso”. A amplitude de que se revestem as expressões ora vetados do Projeto mostra-se, no presente momento de nossa
experiência jurídica, inconveniente. É preciso que a questão dos interesses difusos, de inegável relevância social, mereça,
ainda, maior reflexão e análise. Trata-se de instituto cujos pressupostos conceituais derivam de um processo de elaboração doutrinária, a recomendar, com a publicação desta Lei, discussão abrangente em todas as esferas de nossa vida social. É
importante, neste momento, que, em relação à defesa e preservação dos direitos dos consumidores, assim como do
patrimônio ecológico, natural e cultural do País, a tutela jurisdicional dos interesses difusos deixe de ser uma questão
meramente acadêmica para converter-se em realidade jurídico-positiva, de verdadeiro alcance e conteúdo sociais. Eventuais hipóteses rebeldes à previsão do legislador, mas ditadas pela complexidade da vida social, merecerão a oportuna
disciplinação legislativa. Estas as razões de interesse público que me levaram ao veto parcial e que ora submeto à elevada
apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional. Brasília, em 24 de julho de 1985. JOSÉ SARNEY”. Disponível
em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-7347-24-julho-1985-356939-veto-17394-pl.html. Acesso em: 29
mar. 2020. 18 “Parece-nos, porém, que o veto se deu não só em razão das pressões de grupos interessados, como também porque o Poder
Executivo só então despertou para os riscos que iria enfrentar quando seus atos fossem questionados em ações civis públicas
(riscos que mais tarde voltou a procurar elidir com o abuso de medidas provisórias, que tiravam com uma mão o que a LACP e o Código de Defesa do Consumidor tinham dado com outra)”. MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em
juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 142.
19
A limitação temática imposta pela Medida Provisória e por outros diplomas é
corretamente tida por inconstitucional por parte da doutrina.
Hugo Nigro Mazzilli criticou a audácia do chefe do Poder Executivo Federal ao editar
a Medida Provisória n. 2.088-35/2000 que pretendeu intimidar os membros do Ministério
Público ao responsabilizá-los pessoalmente e prevendo a possibilidade de reconvenção em ação
civil pública de improbidade19. Após o ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade
no Supremo Tribunal Federal, a Presidência da República recuou e não reeditou a Medida
Provisória20.
Em relação à limitação temática imposta pela MP 2180-35/2001, embora o Supremo
Tribunal Federal tenha inicialmente, em sede de repercussão geral21, afirmado a
constitucionalidade da limitação, o entendimento parece-nos superado com o julgamento do RE
643.978/DF, também julgado com repercussão geral.
O referido recurso extraordinário foi interposto em face de acórdão oriundo do
Tribunal Regional Federal da 5ª Região no qual decidiu-se que o Ministério Público Federal
detém legitimidade ativa para ajuizar ação civil pública em face da Caixa Econômica Federal
no que diz respeito à unificação das contas fundiárias dos trabalhadores, uma vez que se litiga
sobre o modelo organizacional dispensado ao FGTS, o que qualificaria o direito individual
homogêneo por possuir expressiva envergadura e relevância social.
O acórdão, julgado pelo tribunal pleno com repercussão geral em 09-10-2019, foi
assim ementado:
Ementa: CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. REPERCUSSÃO GERAL
RECONHECIDA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRETENSÃO DESTINADA À
TUTELA DE DIREITOS INDIVIDUAIS DE ELEVADA CONOTAÇÃO SOCIAL.
ADOÇÃO DE REGIME UNIFICADO OU UNIFICAÇÃO DE CONTAS DO
FUNDO DE GARANTIA DO TEMPO DE SERVIÇO (FGTS). MINISTÉRIO
PÚBLICO. PARTE ATIVA LEGÍTIMA. DEFESA DE INTERESSES SOCIAIS
QUALIFICADOS. ARTS. 127 E 129, III, DA CF. REAFIRMAÇÃO DA
JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. 1. No julgamento do RE 631.111 (Rel. Min.
TEORI ZAVASCKI, DJe de 30/10/2014), sob o regime da repercussão geral, o
PLENÁRIO firmou entendimento no sentido de que certos interesses individuais,
quando aferidos em seu conjunto, de modo coletivo e impessoal, têm o condão de
transcender a esfera de interesses estritamente particulares, convolando-se em
verdadeiros interesses da comunidade, emergindo daí a legitimidade do Ministério
19 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 137. 20 Nesta época, antes da Emenda Constitucional n. 32/2001 que deu nova redação ao § 3º do artigo 62 da Constituição Federal de 1988, as medidas provisórias eram reeditadas sucessivamente. 21 Na jurisprudência, porém, há entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, pela
constitucionalidade do dispositivo: “DIREITO CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. APELAÇÃO INTERPOSTA EM
FACE DE SENTENÇA PROFERIDA EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA QUE DISCUTE MATÉRIA TRIBUTÁRIA
(DIREITO DOS CONTRIBUINTES À RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS À TÍTULO DE TAXA DE
ILUMINAÇÃO PÚBLICA SUPOSTAMENTE INCONSTITUCIONAL). ILEGITIMIDADE ATIVA “AD CAUSAM” DO
MINISTÉRIO PÚBLICO PARA, EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA, DEDUZIR PRETENSÃO RELATIVA À MATÉRIA
TRIBUTÁRIA. REAFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. ARE 694294 RG, Rel. Min. Luiz Fux, j. 25-04-2013, Acórdão Eletrônico Repercussão Geral – Mérito DJe-093 Divulg 16-
05-2013 Public 17-05-2013.
20
Público para ajuizar ação civil pública, com amparo no art. 127 da Constituição
Federal, o que não obsta o Poder Judiciário de sindicar e decidir acerca da adequada
legitimação para a causa, inclusive de ofício. 2. No RE 576.155 (Rel. Min. RICARDO
LEWANDOWSKI, DJe de 1º/2/2011), também submetido ao rito da repercussão
geral, o PLENÁRIO cuidou da questão envolvendo a vedação constante do parágrafo
único do art. 1º da Lei 7.347/1985, incluído pela MP 2.180-35/2001, oportunidade em
que se reconheceu a legitimidade do Ministério Público para dispor da ação civil
pública com o fito de anular acordo de natureza tributária firmado entre empresa e o
Distrito Federal, pois evidente a defesa ministerial em prol do patrimônio público. 3.
A demanda intenta o resguardo de direitos individuais homogêneos cuja amplitude
possua expressiva envergadura social, sendo inafastável a legitimidade do Ministério
Público para ajuizar a correspondente ação civil pública. 4. É o que ocorre com as
pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia
do Tempo de Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos
beneficiários podem ser individualmente determinados (parágrafo único do art. 1º da
Lei n. 7.347/1985). 5. Na hipótese, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, pautado
na premissa de que o direito em questão guarda forte conotação social, concluiu que
o Ministério Público Federal detém legitimidade ativa para ajuizar ação civil pública
em face da Caixa Econômica Federal, uma vez que se litiga sobre o modelo
organizacional dispensado ao FGTS, máxime no que se refere à unificação das contas
fundiárias dos trabalhadores. 6. Recurso Extraordinário a que nega provimento. Tese
de repercussão geral proposta: o Ministério Público tem legitimidade para a
propositura de ação civil pública em defesa de direitos sociais relacionados ao FGTS.
RE 643978, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, j. 09-10-2019, Processo
Eletrônico Repercussão Geral – Mérito DJe-232 Divulg 24-10-2019 Public 25-10-
2019.
Assim, parece-nos que a jurisprudência vinculante do Supremo Tribunal Federal
caminha no sentido da inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 1º, ainda que não
declaradamente manifestada, ao se reconhecer a legitimidade do manejo de ação civil pública
em situações que aparentemente se enquadrariam na vedação pretendida quando da edição da
Medida Provisória.
Quanto ao objeto da obrigação veiculada na ação civil pública, em que pese a redação
do artigo 3º, atualmente admite-se, com fundamento no artigo 83 do Código de Defesa do
Consumidor e em precedentes do Superior Tribunal de Justiça, que a pretensão formulada em
juízo seja de pagar quantia, obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa, ainda que esta
última não esteja expressamente prevista no dispositivo legal.
No que diz respeito à tutela jurisdicional pretendida, adotando-se a classificação
pentapartite de Pontes de Miranda, admite-se ação civil pública de natureza declaratória,
constitutiva, condenatória, mandamental ou executiva lato sensu.
Igualmente, não há particularidade quanto ao dano que se busca reparar. Pode ser de
natureza material ou moral. Discute-se, na doutrina e na jurisprudência, a possibilidade de
condenação, em sede de ação civil pública, à indenização pelo dano moral coletivo22.
22 DIREITO PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. CUMULAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DE RECOMPOSIÇÃO DO MEIO AMBIENTE E DE COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO. Na hipótese de Ação Civil Pública
proposta em razão de dano ambiental, é possível que a sentença condenatória imponha ao responsável, cumulativamente, as
21
A ação civil pública pode também buscar a tutela do patrimônio público lesado pela
prática de ato de improbidade administrativa, eis que não há ação específica trazida pela Lei de
Improbidade (Lei n. 8.429/1992); a Lei de Ação Civil Pública foi largamente utilizada nos
últimos anos para esta finalidade. Ela trouxe também relevante instrumento para a tutela
coletiva ao prever o inquérito civil presidido pelo Ministério Público e o poder de requisição
(Lei n.7.347/1985, art. 8º, § 1º).
A Resolução n. 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público assim dispôs
sobre o inquérito civil:
O inquérito civil, de natureza unilateral e facultativa, será instaurado para apurar fato
que possa autorizar a tutela dos interesses ou direitos a cargo do Ministério Público
nos termos da legislação aplicável, servindo como preparação para o exercício das
atribuições inerentes às suas funções institucionais. Parágrafo único. O inquérito civil
não é condição de procedibilidade para o ajuizamento das ações a cargo do Ministério
Público, nem para a realização das demais medidas de sua atribuição própria.
O inquérito civil poderá culminar na propositura de ação civil pública, se reunidos
elementos de convicção suficientes, na celebração de termo de ajustamento de conduta com
eficácia de título executivo extrajudicial (Lei de Ação Civil Pública, art. 5º, § 6º), ou ainda, no
arquivamento do expediente, que deverá ser remetido ao Conselho Superior do Ministério
Público (no caso de Ministério Público Estadual) ou Câmara de Revisão (no caso do Ministério
obrigações de recompor o meio ambiente degradado e de pagar quantia em dinheiro a título de compensação por dano moral
coletivo. Isso porque vigora em nosso sistema jurídico o princípio da reparação integral do dano ambiental, que, ao determinar a responsabilização do agente por todos os efeitos decorrentes da conduta lesiva, permite a cumulação de
obrigações de fazer, de não fazer e de indenizar. Ademais, deve-se destacar que, embora o art. 3º da Lei n. 7.347/1985
disponha que “a ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não
fazer”, é certo que a conjunção “ou” – contida na citada norma, bem como nos arts. 4º, VII, e 14, § 1º, da Lei n. 6.938/1981 – opera com valor aditivo, não introduzindo, portanto, alternativa excludente. Em primeiro lugar, porque vedar a cumulação
desses remédios limitaria, de forma indesejada, a Ação Civil Pública – importante instrumento de persecução da
responsabilidade civil de danos causados ao meio ambiente – inviabilizando, por exemplo, condenações em danos morais
coletivos. Em segundo lugar, porque incumbe ao juiz, diante das normas de Direito Ambiental – recheadas que são de conteúdo ético intergeracional atrelado às presentes e futuras gerações – levar em conta o comando do art. 5º da LINDB,
segundo o qual, ao se aplicar a lei, deve-se atender “aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, cujo
corolário é a constatação de que, em caso de dúvida ou outra anomalia técnico-redacional, a norma ambiental demanda
interpretação e integração de acordo com o princípio hermenêutico in dubio pro natura, haja vista que toda a legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e coletivos há sempre de ser compreendida da maneira que lhes seja
mais proveitosa e melhor possa viabilizar, na perspectiva dos resultados práticos, a prestação jurisdicional e a ratio essendi da
norma. Por fim, a interpretação sistemática das normas e princípios ambientais leva à conclusão de que, se o bem ambiental
lesado for imediata e completamente restaurado, isto é, restabelecido à condição original, não há que se falar, como regra, em indenização. Contudo, a possibilidade técnica, no futuro, de restauração in natura nem sempre se mostra suficiente para
reverter ou recompor integralmente, no âmbito da responsabilidade civil, as várias dimensões do dano ambiental causado; por
isso não exaure os deveres associados aos princípios do poluidor-pagador e da reparação integral do dano. Cumpre ressaltar
que o dano ambiental é multifacetário (ética, temporal, ecológica e patrimonialmente falando, sensível ainda à diversidade do
vasto universo de vítimas, que vão do indivíduo isolado à coletividade, às gerações futuras e aos processos ecológicos em si
mesmos considerados). Em suma, equivoca-se, jurídica e metodologicamente, quem confunde prioridade da recuperação in
natura do bem degradado com impossibilidade de cumulação simultânea dos deveres de repristinação natural (obrigação de
fazer), compensação ambiental e indenização em dinheiro (obrigação de dar), e abstenção de uso e nova lesão (obrigação de não fazer). REsp 1328753/MG, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/05/2013, DJe
03/02/2015.
22
Público Federal) para homologação do arquivamento ou designação de outro membro do
Ministério Público para ajuizamento da ação (Lei de Ação Civil Pública, art. 9º, §§ 2º, 3º e 4º).
2.3 Ações coletivas na Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal de 1988 foi editada após as Leis de Ação Popular e de Ação
Civil Pública, mas configurou importante marco na proteção dos direitos supraindividuais e na
formação do microssistema de ações coletivas.
O termo ‘ação coletiva’ é aqui empregado no sentido oposto ao de ação individual; é
gênero que alberga todas as ações que tenham por objeto a tutela jurisdicional coletiva, de
direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos23.
A Constituição Federal tratou em diversos artigos das ações coletivas, levando o tema
a ser definitivamente constitucionalizado, eis que as referências nas Cartas anteriores eram
bastante tímidas.
Resumidamente, podem ser destacados os seguintes pontos trazidos pela Constituição
Federal para o tema das ações coletivas: (i) alargamento das hipóteses de cabimento da ação
popular (art. 5º, LXXIII); (ii) status constitucional conferido à ação civil pública e à
legitimidade do Ministério Público (artigo 129, III); (iii) numerus apertus dos direitos
supraindividuais passíveis de tutela por meio de ação civil pública; (iv) previsão de impetração
de mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX); (v) defesa do consumidor como direito
fundamento e princípio geral da atividade econômica.
No que diz respeito ao alargamento do cabimento da ação popular, conforme visto no
tópico referente à ação popular, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, LXXIII, alargou
consideravelmente os direitos tuteláveis.
Se no passado apenas era possível manejar ação popular visando anular ato lesivo ao
patrimônio público, a Constituição Federal de 1988 passou a permitir a tutela de qualquer ato
lesivo à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural,
prevendo ainda a isenção de ônus sucumbenciais, salvo em caso comprovado de má-fé.
Outro ponto de destaque do texto constitucional é a previsão, no art. 129, III, de, no
mesmo dispositivo, conferir status constitucional à ação civil pública, tema inédito nas
constituições brasileiras, bem como à legitimidade do Ministério Público para manejá-la.
23 SHIMURA, Sérgio Seiji. Tutela coletiva e sua efetividade. São Paulo: Método, 2006, pp. 43-44 apud PIZZOL, Patrícia
Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 91.
23
Assim, conferiu-se relevante instrumento ao Ministério Público, protegido pela rigidez
do texto constitucional.
O inciso também é relevante ao prever a legitimidade do Parquet para manejo do
inquérito civil e ação civil pública para outros interesses difusos e coletivos, permitindo-se,
assim, a plena abertura da legitimidade a qualquer interesse difuso ou coletivo, conhecido ou
superveniente, configurando a enumeração do texto constitucional como numerus apertus,
conforme pretendia o legislador ao editar a Lei da Ação Popular, posteriormente atingida pelo
veto nas expressões “outros interesses difusos”.
A Constituição Federal de 1988 inovou ao tratar do mandado de segurança coletivo,
atribuindo legitimidade ao partido político com representação no Congresso Nacional ou à
organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em
funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou
associados.
A inovação foi tão somente na legitimidade ativa, eis que o mandado de segurança
coletivo deverá seguir o procedimento comum do mandado de segurança individual; a
impetração deve ser feita sempre em nome próprio da entidade24.
Elencou-se ainda no rol de direitos e garantias fundamentais a obrigação imposta ao
Estado de promover a defesa dos direitos do consumidor (artigo 5º, XXXII) e a todos que
pretendam exercer atividade econômica, enquanto princípio geral, a defesa do consumidor
(artigo 170, V).
Por fim, importante inovação trazida pela Constituição federal de 1988 foi a previsão
contida no inciso XXI do artigo 5º que previu que “as entidades associativas, quando
expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou
extrajudicialmente”, criando a figura da denominada ação coletiva associativa.
2.4 Código de Defesa do Consumidor
O Código de Defesa do Consumidor, após anos de esforços da doutrina, constou como
de edição obrigatória pelo constituinte ao prever no artigo 48 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias o prazo de 120 dias, contados da promulgação da Constituição,
para que o Congresso Nacional o elaborasse.
24 MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações
constitucionais. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 122.
24
Antes mesmo da Constituição Federal de 1988, no plano internacional, já havia sido
editada a Resolução n. 39/248, de 09/04/1985, da Assembleia Geral da Organização das Nações
Unidas, que estabeleceu diversas normas internacionais para proteger o consumidor, fixando
diretrizes aos países para que aperfeiçoassem ou editassem leis nesse sentido.
O Código de Defesa do Consumidor brasileiro teve como grande influência o Projet
de Code de La Consommation¸ Código de Defesa do Consumidor francês, que consolidava
várias normas protetivas ao consumidor, mas que mantinha concomitantemente o Code Civil
de Napoleão e o Code de Commerce, de maneira semelhante ao ocorrido no Brasil.
Os autores do Código de Defesa do Consumidor buscaram inspiração ainda nas leis
gerais da Espanha (Lei n. 26/1984), de Portugal (Lei n.29/1981), do México (Lei federal de
Protección al Consumidor, de 1976) e de Quebec (Loi sur la Protection du Consommateur, de
1979), e especialmente nas regras do direito norte-americano (Federal Trade Comission Act,
Consumer Product Safety Act, Truth in Lending Act, Fair Credit Reporting Act e Fair Debt
Collection Practices Act)25.
O Código de Defesa do Consumidor inaugurou o microssistema jurídico de tutela
coletiva ao prever a perfeita interação entre as regras do Código de Defesa do Consumidor e da
Lei de Ação Civil Pública. Isso porque o artigo 90 do Código de Defesa do Consumidor prevê
a aplicação das regras contidas na Lei de Ação Civil Pública; e esta, por sua vez, em seu artigo
21, prevê que as regras do Código de Defesa do Consumidor se aplicam às ações civis públicas.
Em razão disso, fala-se em “jurisdição civil coletiva” ou microssistema das ações
coletivas. Cabe lembrar que referido microssistema se aplica a todas as ações coletivas,
independentemente do direito tutelado, e não apenas às demandas envolvendo direito do
consumidor26.
O Código de Defesa do Consumidor foi o primeiro diploma a definir esses novos
direitos supraindividuais.
A lei de ação popular, diploma inaugural do sistema processual coletivo, não definiu
e não empregou a nomenclatura de direitos difusos ou coletivos. Preocupou-se tão somente em
delimitar seu objeto ao afirmar que qualquer cidadão seria parte legítima para pleitear a
anulação ou declaração de nulidade de ato lesivo ao patrimônio público, entendendo-se como
tal “os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico” (Lei n.
4.717/1965, art. 1º, § 1º).
25 ANDRADE, Adriano; MASSON, Cleber; ANDRADE, Landolfo. Interesses difusos e coletivos. 8. ed. São Paulo:
Método, 2018, p. 473. 26 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, p. 156.
25
A Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985) foi a primeira a positivar as expressões
direito difuso e direito coletivo ao prever que poderia ser manejada ação civil pública para a
tutela de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo” sem, no entanto, conceituá-los, mas,
desde logo prevendo esta especial categoria de direito material, nascida da superação entre
interesse público e interesse privado.
Foi apenas com o Código de Defesa do Consumidor que se estabeleceu um conceito
legal de direitos supraindividuais.
O artigo 81 do Código previu que a defesa dos interesses e direitos dos consumidores
e das vítimas poderá ser exercida em juízo individual ou coletivo. Há defesa coletiva quando se
tratar de direito difuso, coletivo ou individual homogêneo.
Segundo a lei, são difusos os interesses ou direitos “transindividuais, de natureza
indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.
Por sua vez, são coletivos os interesses ou direitos “transindividuais, de natureza
indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a
parte contrária por uma relação jurídica base”.
Inovou ao tratar dos direitos individuais homogêneos, categoria até então inexistente
na legislação, e os definiu como aqueles decorrentes de origem comum, ou seja, aqueles que
derivam de uma situação e que justificam o tratamento uniforme, prevendo inclusive a
legitimidade do Ministério Público para a tutela destes direitos.
O Código de Defesa do Consumidor trouxe ainda como importantes novidades: (i)
ampliou o rol dos bens tuteláveis por meio da ação civil pública, com a inserção do inciso IV
no artigo 1º da Lei de Ação Civil Pública (art. 110 do Código de Defesa do Consumidor); (ii)
os artigos 83 e 84 do Código de Defesa do Consumidor ampliaram o objeto da ação civil pública
(Lei de Ação Civil Pública, art. 3º), permitindo a propositura de qualquer ação coletiva, com
qualquer tipo de pedido, inclusive obrigação de dar; (iii) isenção do adiantamento de custas e
condenação nos ônus da sucumbência, salvo em caso de má-fé (arts. 87 do Código de Defesa
do Consumidor e 18 da Lei de Ação Civil Pública); (iv) possibilidade de dispensa do requisito
da pré-constituição da associação civil, na hipótese de manifesto interesse social evidenciado
pela dimensão ou característica do dano ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido (art.
113 do Código de Defesa do Consumidor que modificou o artigo 5º, § 4º, da Lei de Ação Civil
Pública); (v) possibilidade de formação de consórcio entre ramos do Ministério Público e entre
Ministério Público e Ministério Público Federal; (vi) assunção da ação pelo Ministério Público
em caso de desistência infundada por outro legitimado (art. 112 do Código de Defesa do
Consumidor que alterou a Lei de Ação Civil Pública em seu art. 5º, § 3º); (vii) possibilidade de
26
celebração de compromisso de ajustamento de conduta com eficácia de título extrajudicial;
(viii) execução de sentença condenatória realizada pelo Ministério Público caso o legitimado
não a promova no prazo de 60 dias; (ix) possibilidade de condenação dos diretores das
associações, responsáveis pela propositura das ações civis públicas em casos de litigância de
má-fé, ao pagamento de honorários advocatícios e décuplo das custas, sem prejuízo de
responsabilidade por perdas e danos (art. 115 do Código de Defesa do Consumidor); (x) regime
próprio e inédito de formação da coisa julgada27.
2.5 Mandado de segurança coletivo
Mandado de segurança, na clássica definição doutrinária, é o meio constitucional posto
à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou
universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e
certo, lesado ou ameaçado de lesão por ato de autoridade, não amparado por habeas corpus ou
habeas data, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções exercidas28.
Foi apenas com a edição da Constituição Federal de 1988 que passou-se a falar de
mandado de segurança coletivo, eis que prevista no texto a legitimidade do partido político com
representação no Congresso Nacional ou à organização sindical, entidade de classe ou
associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos
interesses de seus membros ou associados, visando à tutela de direito metaindividuais.
Os requisitos para a impetração (ato de autoridade, ilegalidade ou abuso de poder,
lesão ou ameaça de lesão, direito líquido e certo e não cabimento de habeas corpus ou habeas
data) continuam os mesmos, adicionando-se tão somente o requisito específico do direito
tutelado ser obrigatoriamente de natureza transindividual.
A doutrina de longa data diverge quanto aos direitos transindividuais que podem ser
tutelados por meio de mandado de segurança coletivo. Considerando a ausência de
regulamentação legal, duas correntes se formaram: uma no sentido da impossibilidade de tutela
de direitos difusos, limitando-se o mandado de segurança coletivo aos direitos coletivos e
individuais homogêneos, e outra, mais ampliativa, permitindo também a tutela de direitos
difusos.
27 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, pp. 156-166. 28 MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações
constitucionais. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 25-26.
27
A interpretação restritiva fundava-se na distinção existente (e bastante debatida na
doutrina da época) entre direitos subjetivos e interesses supraindividuais, entendendo-se, assim,
que o legislador constitucional, ao empregar a expressão “direito”, afastou a possibilidade de
manejo para direitos difusos, eis que estes seriam meros interesses e não direitos subjetivos
titularizados por seus impetrantes29.
Por outro lado, parcela da doutrina conferia uma interpretação ampliativa ao
dispositivo constitucional, considerando que a menção feita pelo legislador constituinte ao
empregar a expressão “coletivo” referia-se à legitimidade e não à pretensão deduzida, que
deveria ser interpretada de forma ampla, notadamente por se tratar de norma veiculadora de
garantia constitucional30.
No mesmo sentido, antes da edição da nova Lei do Mandado de Segurança, Antonio
Carlos Garcias Martins sustentou:
Somos inclinados a reconhecer que a ação de mandado de segurança coletivo,
efetivamente, não deve restringir-se aos interesses coletivos estrito senso e individuais
homogêneos. Sua atuação é ampla, inclusive, no tocante aos interesses difusos, até
porque estes interesses, que nada mais são que fatos valorados e tuteláveis pelo direito
posto, de certo modo são fluídicos até um dado momento, pois podem ser afetados
por circunstâncias que os levam a receber a qualificação de coletivo, por afetar uma
coletividade31.
A Lei n. 12.016/2009 disciplinou o cabimento não apenas do mandado de segurança
individual, compilando a legislação até então existente e incorporando as súmulas dos tribunais
superiores a respeito da matéria, mas também inovou ao tratar do mandado de segurança
coletivo.
No que diz respeito aos direitos tuteláveis por meio do mandado de segurança coletivo
elencou os direitos coletivos, assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisível, de
que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma
relação jurídica básica32, e os individuais homogêneos, os decorrentes de origem comum e da
atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do
impetrante33.
29 No mesmo sentido, José Miguel Garcia Media e Fábio Caldas de Araújo afirmam: “a vedação da utilização do mandado de
segurança para a tutela de interesses difusos parte do pressuposto de que é incabível assegurar um direito subjetivo líquido e
certo para um grupo indeterminado de pessoas”. MEDIAN, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas. Mandado de
segurança individual e coletivo: comentários à Lei 12.016/2009. São Paulo: RT, 2009, p. 208. 30 FERRARESI, Eurico. Ação popular, ação civil pública e mandado de segurança coletivo. Rio de Janeiro: Forense,
2009, pp. 242-243. 31 MARTINS, Antonio Carlos Garcias. Mandado de segurança coletivo. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 70. 32 Lei n. 12.016/2009, art. 21, I. 33 Lei n. 12.016/2009, art. 21, II.
28
A previsão expressa da lei ao disciplinar o cabimento apenas para essas duas categorias
de direitos transindividuais, silenciando quanto aos direitos difusos, no entanto, não foi
suficiente para afastar a dúvida doutrinária sobre o tema.
Em que pese a opção legislativa, parte da doutrina continua sustentando a possibilidade
de impetração de mandado de segurança coletivo para a tutela de direitos difusos, pois pensar
o contrário seria diminuir a importância conferida pelo legislador constituinte à impetração
coletiva. Não há justificativa, por exemplo, para negar a possibilidade de utilização de mandado
de segurança coletivo para combater ato administrativo que provoque danos ambientais34.
Isso porque, conforme afirmado quanto à corrente ampliativa, a legislação
infraconstitucional não pode limitar a garantia constitucional; a expressão “coletivo”
empregada no artigo 5º, LXX, da Constituição Federal de 1988 foi utilizada em sentido amplo,
como sinônimo de direitos transindividuais.
Segundo Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery,
caso haja ameaça ou lesão a direito líquido e certo, individual, difuso ou coletivo, por
ato ilegal ou abusivo de autoridade, cabe MS para a proteção dos direitos previstos na
LACP, pois o MS, no caso, é espécie de ACP. Obra localizada perto de zona de
proteção ambiental, iniciada sem a prévia e necessária realização do estudo de impacto
ambiental exigido pela CF 225 § 1º, IV, pode ser paralisada por meio de MS ou outra
ACO, ainda que autorizada pelo poder público35.
No que diz respeito à coisa julgada, o artigo 22 da Lei do Mandado de Segurança
regulamentou a eficácia subjetiva da mesma forma que o artigo 103 do Código de Defesa do
Consumidor. Todavia, a lei é omissa quanto ao modelo de produção da coisa julgada material.
Segundo a doutrina dominante, deve ser aplicado o regime condicionado, ou seja, conforme o
direito transindividual tutelado.
A repercussão da decisão judicial coletiva na esfera individual será sempre in utilibus
para a doutrina majoritária. Assim, no prazo decadencial, pode o indivíduo ajuizar seu mandado
de segurança individual. Há, porém, posição no sentido da vinculação pro et contra da decisão
coletiva sobre a esfera jurídica individual.
34 ALVIM, Eduardo Arruda. Mandado de segurança. 2. ed. Rio de Janeiro: GZ, 2010, pp. 380-381. 35 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade Nery. Constituição Federal comentada e legislação
constitucional. São Paulo: RT, 2017. Comentário 10 ao art. 1º da Lei de Ação Civil Pública.
29
3 PRINCIPAIS ASPECTOS DO MODELO BRASILEIRO DE PROCESSO
COLETIVO
Conforme afirmamos na Introdução, buscamos nesta pesquisa analisar o sistema
processual de tutela coletiva, o sistema de enfrentamento da litigiosidade de massa e repetitiva
trazida pelo Código de Processo Civil/2015, apontando as falhas em cada um dos sistemas,
para, então, concluir pela necessidade de aperfeiçoar os sistemas, a fim de se oferecer uma tutela
ampla e efetiva deste tipo de demanda.
Para tanto, estabelecido o histórico da evolução legislativa da tutela processual
coletiva, necessário analisar os principais aspectos processuais do tema, justamente sobre os
quais recairão posteriormente, em capítulo próprio, nossas principais críticas.
Assim, optou-se por um recorte dos temas processuais atinentes ao processo coletivo
(legitimidade e coisa julgada), não apenas por se tratar dos temas de maior interesse da doutrina
nas últimas décadas, mas principalmente para o objetivo desta pesquisa e considerando a
extensão dos demais temas processuais (especialmente liquidação e coisa julgada).
3.1 Microssistema
Entende-se por microssistema de tutela coletiva o conjunto formado pelas diversas
normas jurídicas, previstas em leis esparsas, de cunho processual ou material, formadores de
um arcabouço de proteção e tutela dos direitos transindividuais.
Referidos diplomas legais se comunicam, permitindo que em caso de lacuna haja
colmatação por meio de regra prevista em outro diploma legal protetivo dos direitos coletivos
lato sensu, operando-se o que se convencionou chamar de “diálogo das fontes”.
A Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor são os dois diplomas
legais fundantes do modelo brasileiro de microssistema legislativo de tutela coletiva, pois há
previsão expressa de intercomunicação entre os referidos diplomas, conforme regem o artigo
90 (Código de Defesa do Consumidor) e o artigo 21 (Lei de Ação Civil Pública). O
microssistema, no entanto, não se exaure nos mencionados diplomas; é integrado pelas demais
leis de tutela de direitos transindividuais, como a Lei da Ação Popular, a Lei do Mandado de
Segurança e a Lei de Improbidade Administrativa, dentre outras.
Assim, em caso de lacuna, ou se houver norma, e sendo mais estrita a norma na sua
aplicação, o aplicador deve buscar no conjunto normativo do microssistema decorrente das
30
regras do Código de Defesa do Consumidor e da Lei de Ação Civil Pública a norma que
privilegie a interpretação sistemática da tutela coletiva36.
Todavia, a doutrina tradicionalmente tem feito uma distinção entre, de um lado, os
direitos difusos e coletivos e, de outro, os direitos individuais homogêneos.
Isso porque tratar-se-iam de duas categorias distintas. Os direitos difusos e coletivos
seriam os naturalmente coletivos37 (lato sensu), por se tratar de direitos transindividuais, que
não podem ser tutelados de forma individual, e os individuais homogêneos seriam os
acidentalmente coletivos, ou seja, aqueles marcadamente individuais, mas que podem ser
tutelados coletivamente.
Em razão disso, haveria dois regimes, dois microssistemas diferentes a depender do
direito transindividual tutelado: um regime em caso de tutela de direito difuso ou coletivo e
outro para a tutela de direitos individuais homogêneos.
É justamente o que ocorreu no Superior Tribunal de Justiça quando da análise da
aplicação, por meio do diálogo das fontes entre as normas do microssistema coletivo, da
remessa necessária prevista no artigo 19 da Lei da Ação Popular para as ações coletivas
fundadas na Lei de Ação Civil Pública.
No REsp 1.374.23238, constou do voto da Ministra Nancy Andrighi que as “ações
coletivas que versam direitos individuais homogêneos integram subsistema processual com um
conjunto de regras, modos e instrumento próprios, por tutelarem situação jurídica heterogênea
em relação aos direitos transindividuais”.
Assim, segundo a Ministra, “a coletivização dos direitos individuais homogêneos tem
um sentido meramente instrumental, com a finalidade de permitir uma tutela mais efetiva em
36 DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil – processo coletivo. v. IV. 12.
ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 125. 37 Denominam-se direitos coletivos lato sensu os direitos coletivos entendidos como gênero, dos quais são espécies: os
direitos difusos, os direitos coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos. “Em conhecida sistematização doutrinária, haveria direitos/interesses essencialmente coletivos (difusos e coletivos em sentido estrito) e os direitos
acidentalmente coletivos (individuais homogêneos)”. MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Tutela jurisdicional dos interesses
coletivos ou difusos”. Temas de Direito Processual Civil, 1984. In: DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes.
Curso de direito processual civil – processo coletivo. v. IV. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 68. 38 PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. PLANOS DE SAÚDE. REAJUSTES DO
“PROGRAMA DE READEQUAÇÃO”. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU ERRO MATERIAL. AUSÊNCIA. REMESSA
NECESSÁRIA. AÇÃO COLETIVA. DIREITO INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. NÃO CABIMENTO. 1. Ação ajuizada
em 16-07-2007. Recurso especial interposto em 27-03-2012 e atribuído a este gabinete em 25-08-2016. 2. O não acolhimento das teses contidas no recurso não implica obscuridade, contradição ou omissão, pois ao julgador cabe apreciar a questão
conforme o que ele entender relevante à lide. 3. O fundamento da remessa ou reexame necessário consiste em uma precaução
com litígios que envolvam bens jurídicos relevantes, de forma a impor o duplo grau de jurisdição independentemente da
vontade das partes. 4. Ações coletivas que versam direitos individuais homogêneos integram subsistema processual com um
conjunto de regras, modos e instrumento próprios, por tutelarem situação jurídica heterogênea em relação aos direitos
transindividuais. 5. Limites à aplicação analógica do instituto da remessa necessária, pois a coletivização dos direitos
individuais homogêneos tem um sentido meramente instrumental, com a finalidade de permitir uma tutela mais efetiva em
juízo, não se deve admitir, portanto, o cabimento da remessa necessária, tal como prevista no art. 19 da Lei n. 4.717/1965. 6. Recurso especial conhecido e provido. REsp 1374232/ES, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 26-09-2017, DJe
02-10-2017.
31
juízo, não se deve admitir, portanto, o cabimento da remessa necessária, tal como prevista no
art. 19 da Lei n. 4.717/65”.
Por isso, no caso concreto, por se tratar de direitos individuais homogêneos, afastou-
se a aplicação analógica da remessa necessária prevista no artigo 19 da Lei da Ação Popular.
Por sua vez, confirmando o entendimento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça,
no AgInt no REsp 1690987/MG39, por se tratar de direitos difusos, reafirmou-se a aplicação da
remessa necessária.
A conclusão do colegiado, nos dois casos, foi, portanto, no sentido de limitar a
aplicação do instituto da remessa necessária, previsto na Lei de Ação Popular (art. 19), às
demandas coletivas que versem sobre direitos difusos e coletivos, o que desde logo causa
espécie ao se considerar que a Lei de Ação Popular, a Lei de Ação Civil Pública e o Código de
Defesa do Consumidor formam um microssistema legislativo de proteção aos direitos coletivos
lato sensu.
Ademais, a caracterização como interesses individuais homogêneos pressupõe
interesses coordenados na obtenção do mesmo bem, que geralmente envolve elevado número
de titulares, e que muitas vezes possuem relevância tão elevada que justifica inclusive o manejo
da ação por parte do Ministério Público, tudo a sugerir que a tutela de direitos individuais
homogêneos é, por sua própria natureza, de interesse da coletividade.
Nesse sentido, Fernando da Fonseca Gajardoni sustenta:
[...] Ora, a tutela dos direitos e interesses individuais homogêneos não se restringe à
tutela de direitos, apenas, das vítimas/indivíduos, como quer fazer acreditar essa visão
individualista do fenômeno40.
As ações com esse objeto, diante da pluralidade de pessoas interessadas no seu
deslinde, servem para o próprio controle e aplicação do direito objetivo. O
restabelecimento da ordem jurídica, diante da violação dos direitos/interesses de uma
gama de indivíduos (violação homogênea), tanto quanto do interesse desses próprios
indivíduos ou sucessores, é de interesse de toda a coletividade, frustrada (ainda que
do ponto de vista moral) pelo desrespeito indiscriminado da lei e da ordem jurídica
posta41.
39 AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. DIREITOS DIFUSOS DOS CONSUMIDORES. REMESSA NECESSÁRIA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 19 DA LEI N. 4.717/1965.
POSSIBILIDADE. AGRAVO DESPROVIDO. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, é aplicável o reexame
necessário nas hipóteses de ação civil pública, independentemente da presença de pessoa de direito público no polo passivo,
porém não se aplica aos litígios que versem exclusivamente sobre direitos individuais homogêneos. 1.1. Por conseguinte, levando-se em consideração que a hipótese dos autos cuida de direitos difusos de consumidores, torna-se imperioso o
reconhecimento da possibilidade de aplicação analógica do art. 19 da Lei n. 4.717/1965, devendo os autos retornarem à
origem para que se analisem as questões que foram julgadas improcedentes pelo Magistrado de primeiro grau e não foram
objeto de recurso voluntário pelas partes. 2. Agravo interno desprovido. AgInt no REsp 1690987/MG, Rel. Min. Marco
Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 21-08-2018, DJe 30-08-2018. 40 Interessante referência feita pelo autor a Antonio Gidi ao afirmar que parte da doutrina é incapaz de perceber que o titular
dos direitos individuais homogêneos, propriamente falando, não são as vítimas, mas sim o conjunto delas indivisivelmente
considerado. GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 43. 41 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. O processo coletivo refém do individualismo. In: (coord.) DIDIER, Fredie. Processo
coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, pp. 138-139.
32
No mesmo sentido, Alcides Munhoz da Cunha, citado por Eduardo Talamini,
argumenta:
os interesses individuais homogêneos não se situam propriamente como um tertium
genus de interesses meta-individuais, a par dos interesses difusos e coletivos. Parecem
se situar isto sim como uma peculiar modalidade de interesses difusos ou coletivos,
como se procurará demonstrar. [...] Todavia, a despeito deste nomen in iuris, pode-se
afirmar que são interesses meta-individuais, enquanto pressupõe interesses
coordenados e justapostos que sigam a obtenção de um mesmo bem, de uma mesma
utilidade indivisível. [...] A divisibilidade se opera apenas no momento da liquidação
(quantificação) dos danos pessoalmente sofridos e da execução. [...] Enquanto se
buscar condenação genérica, entretanto, estar-se-á buscando um bem indivisível para
uma multiplicidade de vítimas com interesses convergentes na obtenção desta
condenação. Se forem indeterminados os sujeitos, poder-se-á dizer que se está diante
de interesses difusos sob a modalidade de interesses individuais homogêneos42.
Assim, ao contrário do que se costuma afirmar, a individualidade neste tipo de tutela
é meramente acidental e se revela tão somente na fase de execução (ou liquidação) do julgado,
o que pode sequer existir caso se reconheça a possibilidade de condenação específica com
determinação da forma de cumprimento, ainda que em sede de direitos individuais homogêneos
e a despeito do previsto no artigo 95 do Código de Defesa do Consumidor.
Portanto, não se pode admitir que existam duas categorias de regras distintas para a
tutela de direitos coletivos, colocando os direitos individuais homogêneos como “subcategoria”
na tutela coletiva e com regras processuais não taxativas tão diversas e importantes como é o
caso da remessa necessária que, se não aplicada quando obrigatória, implicará a ausência de
trânsito em julgado da decisão.
3.2 Conceito e definição dos direitos transindividuais
Conforme já afirmamos nesta pesquisa, foi o Código de Defesa do Consumidor o
primeiro diploma legal a pretender definir o conceito de direitos difusos e coletivos, inovando
ainda ao definir uma terceira categoria até então não tratada em lei: os direitos individuais
homogêneos.
Segundo a lei, são difusos os interesses ou direitos “transindividuais, de natureza
indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.
Por sua vez, são coletivos os interesses ou direitos “transindividuais, de natureza
indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a
parte contrária por uma relação jurídica base”.
42 TALAMINI, Eduardo. In: (coord.). DIDIER, Fredie. Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016 apud CUNHA, Alcides
Munhoz da. A evolução das ações coletivas no Brasil. Revista de Processo, v. 77, 1995, n. 9, pp. 233-234.
33
Por fim, são individuais homogêneos os “decorrentes de origem comum”.
Relevante questão debatida na doutrina foi o emprego da expressão interesses.
Conforme vimos ao tratar da possibilidade de impetração de mandado de segurança
coletivo para a tutela de direitos difusos, não é por acaso a opção feita pelo legislador ao
empregar as expressões interesses ou direitos.
A opção se deu por influência doutrinária e por receio de limitação do espectro da
tutela coletiva em razão de interpretação ligada a uma visão individualista do processo.
Isso porque um direito pressupõe uma relação entre duas pessoas acerca de
determinado objeto (bem) ou prestação, formando-se, assim, uma relação jurídica. Não há
direito que vincule uma pessoa a um objeto ou que não possua sujeito.
Assim, para afastar a possibilidade de interpretação restritiva, exigindo-se, para a tutela
de determinada lesão coletiva, a prévia identificação do indivíduo lesado, preferiu-se uma
conceituação ampla, tratando aqueles valiosos direitos, até então não amparados por legislação
protetiva, como interesses ou direitos.
Conforme pontua Kazuo Watanabe:
a necessidade de estar o direito subjetivo sempre referido a um titular determinado ou
ao menos determinável impediu por muito tempo que os ‘interesses’ pertinentes, a um
tempo, a toda uma coletividade e a cada um dos membros dessa mesma coletividade
[...] pudessem ser havidos como juridicamente passíveis de proteção. Era a estreiteza
da concepção tradicional do direito subjetivo, marcada profundamente pelo
liberalismo individualista, que obstava essa tutela jurídica. Com o tempo, a distinção
doutrinária entre interesses simples e interesses legítimos permitiu um pequeno
avanço, com a outorga de proteção da tutela jurídica a estes últimos. Hoje, com a
concepção mais larga do direito subjetivo, abrangente também do que outrora se tinha
como mero interesse na ótica individualista então predominante, ampliou-se o
espectro da tutela jurídica e jurisdicional43.
Analisando o conceito legal, a doutrina tradicionalmente tem feito uma distinção entre,
de um lado, os direitos difusos e coletivos e, de outro, os direitos individuais homogêneos,
separando-os em naturalmente coletivos e acidentalmente coletivos, respectivamente.
É com fundamento nesta distinção que foi cunhada, segundo Teori Albino Zavascki, a
célebre expressão de que em se tratando de direitos coletivos haveria tutela de direitos coletivos
e tratando-se de direitos individuais homogêneos haveria tutela coletiva de direitos, tudo a
indicar a natureza diversa dos direitos tutelados.
A origem comum, porém, não é suficiente para caracterizar o direito como individual
homogêneo para fins de tutela coletiva.
43 WATANABE, Kazuo; GRINOVER, Ada Pellegrini; NERY JUNIOR, Nelson et al. Código brasileiro de Defesa do
Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, pp. 882-883.
34
Com efeito, há situações em que, embora oriundos do mesmo fato, os danos causados
aos grupos de indivíduos possuem natureza diversa, ensejando pretensões não homogêneas
entre seus titulares.
O interessante exemplo trazido pela doutrina44 envolve um avião que transporta mais
de 100 pessoas e causa um acidente ao aterrissar, destruindo diversas casas existentes no local,
causando a morte de 50 moradores e de 50 passageiros. Nesse caso, não se verifica a necessária
homogeneidade entre os lesados (grupo que apenas teve prejuízos materiais em suas casas,
grupo de moradores e passageiros que perderam a vida).
Em razão disso, melhor considerar necessária a: (a) prevalência das questões comuns
sobres as questões individuais (prevalência); e (b) a superioridade da tutela coletiva sobre a
individual em termos de justiça e eficácia da decisão (superioridade); assim como previsto na
Rule 23 (b) (3) das Federal Rules do direito norte-americano quanto às class actions for
damages45.
É certo que, no plano abstrato, não é fácil distinguir entre direitos difusos, coletivos e
individuais homogêneos.
Nelson Nery Junior, percebendo a dificuldade de identificação in abstracto apresentou
interessante consideração — hoje largamente acolhida na doutrina e na jurisprudência — no
sentido de que somente seria possível a identificação segundo a pretensão formulada em juízo46.
Ou seja, é a partir do pedido formulado pelo legitimado que se pode identificar, com segurança,
se o direito tutelado é individual homogêneo, coletivo ou difuso.
Nesta ordem de ideias, somente se poderá verificar qual direito está efetivamente
sendo tutelado no momento da formulação da pretensão em juízo. O critério estático do conceito
legal acaba sendo insuficiente, reclamando a adoção de um conceito “dinâmico”.
E, conforme afirmamos, a distinção tem importantes reflexos processuais.
No aspecto da legitimidade, definir se o direito tutelado é difuso/coletivo ou individual
homogêneo importa em grande reflexo, pois no caso do Ministério Público ou da Defensoria,
por exemplo, podem não estar preenchidas as situações que justificam a atuação, o que
acarretaria a carência da ação proposta.
44 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016 apud
ARARUNA, Eduardo Varandas; PINHO, Eduardo Kelson Fernandes de. A conceituação dos interesses individuais
homogêneos à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Anteprojeto do Código de Processo Coletivo. In: Revista do
Ministério Público do Trabalho. v. 15, n. 32. Brasília: LTr., out. 2006, p. 95. 45 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016 apud
ARARUNA, Eduardo Varandas; PINHO, Eduardo Kelson Fernandes de. A conceituação dos interesses individuais
homogêneos à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Anteprojeto do Código de Processo Coletivo. In: Revista do
Ministério Público do Trabalho. v. 15, n. 32. Brasília: LTr., out. 2006, p. 188. 46 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. Coleção Estudos de Direito de
Processo Enrico Tullio Liebman, v. 21. São Paulo: RT, 2004, p. 159.
35
No que tange à coisa julgada, há também importante distinção, pois, segundo os artigos
103 e 104 do Código de Defesa do Consumidor, em se tratando de direito coletivo lato sensu a
coisa julgada será formada secundum eventum probationis, ou seja, não se formando coisa
julgada se o pedido for julgado improcedente por ausência de provas, diferenciando-se ainda
os limites subjetivos em se tratando de direito difuso (efeitos erga omnes) ou coletivo (efeito
ultra partes).
Em se tratando de direitos individuais homogêneos haverá formação da coisa julgada
somente em benefício das vítimas e seus sucessores, ou seja, em caso de procedência do pedido.
A extensão subjetiva, por consequência, será erga omnes.
Outro reflexo processual importante advém da previsão do artigo 95 do Código de
Defesa do Consumidor segundo o qual, em se tratando de direitos individuais homogêneos, “em
caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu
pelos danos causados”.
Considerando a relevância da distinção, parece-nos, no atual estágio do processo
coletivo, desaconselhável a manutenção dos conceitos trazidos pelo Código de Defesa do
Consumidor, pois somente se poderá verificar qual direito está efetivamente sendo tutelado no
momento da formulação da pretensão em juízo. O critério estático do conceito legal acaba sendo
insuficiente, reclamando a adoção de um conceito “dinâmico”.
E ao se considerar que nem sempre a pretensão pode ser de imediato formulada, sendo
normalmente necessária a adoção de expedientes preliminares para confirmar os danos e o ato
ilícito praticado, o que em geral se dá no bojo de um inquérito civil, verifica-se que a correta
identificação do direito tutelado pode, por vezes, demorar anos para ocorrer.
É justamente em razão disso que a doutrina tem buscado uma nova distinção da
clássica definição trazida pelo Código de Defesa do Consumidor. Diante disso, tem sido
bastante mencionada e difundida a classificação cunhada por Edilson Vitorelli, que classificou
os direitos transindividuais segundo a extensão ou o impacto do dano causado.
O autor pretende reformular os conceitos de direitos coletivos, propondo três
categorias: danos de difusão global, irradiada e local. Para isso, propõe duas premissas teóricas:
a primeira relacionada ao objeto conceituado; a segunda, relativa aos conceitos de
conflituosidade e complexidade47, tão importantes na conceituação.
O primeiro aspecto de atenção do autor refere-se ao equívoco de se considerar o direito
coletivo lato sensu como necessariamente indivisível. A doutrina tradicional adotou um
47 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 73.
36
conceito sociológico de sociedade como estrutura, “que existe independentemente dos
indivíduos que a compõe e, por isso, com um interesse que poderia ser investigado não com
base nos fatos, mas com base em abstrações”48. Criticando tal opção, o autor considera
irrelevante saber a quem pertence determinado bem ou direito no plano abstrato, sem que ocorra
qualquer violação a este bem ou direito.
Assim, discutir a titularidade dos direitos enquanto permanecem íntegros é desprovido
de utilidade, pois a titularidade dos direitos transindividuais somente pode ser definida a partir
da sua violação ou ameaça de violação, ou seja, do litígio coletivo49.
Para o autor, o “dogma da indivisibilidade visualizou os direitos transindividuais em
situação de integridade, o que inviabilizou a percepção de que a intensidade com a qual os
indivíduos são atingidos por sua lesão é empiricamente variável”50.
A segunda premissa teórica diz respeito aos conceitos de complexidade e
conflituosidade, essenciais para a definição do tipo de dano. A complexidade diz respeito às
diversas formas de tutela de um direito lesado ou ameaçado de lesão. Isso decorre da conclusão
de que determinada lesão pode ser tutelada de diversas formas, as quais não são
necessariamente equivalentes em termos fáticos, mas o são em termos jurídicos. O autor
menciona o exemplo da despoluição de um rio, concluindo ser elevada a complexidade, pois há
diversas formas de realizar a despoluição, sem que possa desde logo apontar a mais correta.
Dessa forma, quanto “mais variados forem os aspectos da lesão e as possibilidades de
tutela, maior será o grau de complexidade do litígio”51.
O segundo elemento essencial para a classificação do dano de difusão global, irradiada
ou local é a conflituosidade, que consiste na uniformidade entre as posições dos atingidos pelo
dano. Quanto mais variada for a forma pela qual os indivíduos foram atingidos pela lesão ou
quanto maior for o impacto sofrido, maior será a conflituosidade entre eles52, ou seja, maior
será a divergência entre eles com relação ao dano e a forma de sua reparação.
O autor, ressalta, entretanto, que os dois elementos não são codependentes, podendo
existir conflitos ambientais complexos, mas com baixa conflituosidade.
Com base nestas premissas, o autor define os direitos ou litígios transindividuais em
globais, locais e irradiados. Os litígios transindividuais globais ocorrem quando a lesão ou
48 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 72. 49 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 73. 50 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 74. 51 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 74. 52 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 75.
37
ameaça de lesão não atinge de modo particular a qualquer indivíduo; é baixo o grau de
conflituosidade, eis que é baixo o interesse pessoal no conflito.
São características deste tipo de direito ou litígio: (i) não há titularidade abstratamente
definida, pois não atinge diretamente qualquer interesse individual; (ii) os atingidos não
possuem interesse pessoal no conflito; (iii) os membros do grupo são atingidos de forma
uniforme; (iv) baixo grau de conflituosidade; (v) o litígio é menos complexo53.
Os direitos ou litígios transindividuais locais ocorrem no contexto de violações que
atinjam, de modo específico, pessoas que integram uma sociedade altamente coesa, unida por
laços identitários de solidariedade social, de modo que este grupo é o titular do direito coletivo
lesado54. As características são: (i) lesão que atinge determinado grupo que compartilha mesma
pespectiva social ou identidade própria; (ii) titularidade de direito material bem definida; (iii)
conflituosidade de grau médio; (iv) o litígio não é abstratamente complexo55.
Por fim, os direitos ou litígios transindividuais irradiados se configuram quando lesão
ou ameaça de lesão atinge diversas pessoas que não compõem uma comunidade, não
compartilham a mesma perspectiva social, de modo que a lesão os atinge de maneira desigual
e variável, elevando o grau de conflituosidade.
Tem, assim, por características: (i) atinge pessoas de diversos segmentos que não
possuem identidade própria comum; (ii) titularidade do direito material não é bem definida; (iii)
alto grau de conflituosidade e de complexidade56.
Com esta nova definição, perde relevância a distinção entre direitos difusos e coletivos,
pois qualquer deles poderá ser enquadrado nas novas categorias, a depender do perfil da lesão
e do tipo de sociedade à qual o direito lesado puder ser atribuído57.
Do mesmo modo, o autor sustenta a necessidade de uma nova interpretação quanto à
categoria dos direitos individuais homogêneos, notadamente por não vislumbrar diferença
sensível entre estes e os direitos transindividuais:
A linha de pensamento aqui exposta, embora não se filie rigorosamente ao
pensamento minoritário, comunga de sua visão no sentido de que as diferenças entre
os direitos transindividuais e individuais homogêneos não são tão marcantes quanto
parecem. É certo que, no fundo, os direitos individuas homogêneos pertencem a
pessoas identificáveis, com maior ou menor dificuldade. Todavia, isso é insuficiente
para diferenciá-los dos direitos transindividuais, eis que a sociedade que titulariza essa
modalidade de direitos, em qualquer das três acepções aqui propostas, também é
composta de pessoas, mais ou menos individualizáveis. Logo, quando se reconceitua
53 BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 101. 54 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 95. 55 BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 102. 56 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 103. 57 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 95.
38
a titularidade dos direitos transindividuais, deixa de existir essa característica
diferenciadora58.
O autor sustenta, então, eliminar a categoria dos direitos individuais homogêneos59,
devendo tais direitos também seguirem as mesmas categorias propostas para os direitos
transindividuais, quais sejam litígios de difusão global, local ou irradiada60.
3.3 Legitimidade
Em sede de tutela coletiva, adotou-se, a partir do final do século XX, com a edição da
Lei de Ação Popular, da Lei de Ação Civil Pública e, mais recentemente, com o Código de
Defesa do Consumidor, formadores do microssistema de tutela coletiva, um modelo inédito,
misto de sistemas europeu e americano, pois, dentre as principais diferenças entre os modelos
mencionados verifica-se a existência de um rol de legitimados, diferenciação entre direitos
individuais homogêneos, coletivos e difusos, além das disposições específicas quanto aos
efeitos da coisa julgada a depender do direito tutelado.
A Constituição Federal de 1988 também foi importante marco ao prever, dentre outras
inovações, a possibilidade de tutela de direitos difusos e coletivos em sede de ação civil pública,
trazendo ampla legitimidade ao Ministério Público na tutela do extenso rol de direitos sociais
previstos no novo texto constitucional (artigo 129 da Carta).
O Ministério Público possui, em razão disso, papel central na tutela dos direitos
coletivos, ostentando uma ampla legitimidade e participando de todos os processos coletivos
na condição de fiscal da lei.
As associações civis, cuja legitimidade constou desde a edição da Lei de Ação Civil
Pública, tiveram igual papel de destaque na tutela coletiva, promovendo demandas importantes
como a destinada a ressarcir os consumidores dos prejuízos causados pelos planos econômicos
do final da década de 1980 e início da década de 1990.
Não obstante, há outros órgãos legitimados à propositura de processos coletivos que
passaram, ao longo dos anos, a assumir importante papel na tutela coletiva, como as pessoas
jurídicas de direito público interno (União, Estados e Municípios) e a Defensoria Pública.
Inicialmente, na lição de Teori Albino Zavascki, não se deve confundir defesa de
direitos coletivos com defesa coletiva de direitos. Isso porque
direitos coletivos são direitos subjetivamente transindividuais (= sem titular
individualmente determinado) e materialmente indivisíveis. Os direitos coletivos
58 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 96. 59 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 101. 60 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 104.
39
comportam sua acepção no singular, inclusive para fins de tutela jurisdicional. Ou
seja: embora indivisível, é possível conceber-se uma única unidade da espécie de
direito coletivo. O que é múltipla (e indeterminada) é a sua titularidade, e daí sua
transindividualidade. ‘Direito coletivo’ é designação genérica para as duas
modalidades de direitos transindividuais: o difuso e o coletivo stricto sensu 61.
Por sua vez, os direitos individuais homogêneos são
simplesmente, direitos subjetivos individuais. A qualificação de homogêneos não
altera nem pode desvirtuar essa sua natureza. É qualificativo utilizado para identificar
um conjunto de direitos subjetivos individuais ligados entre si por uma relação de
afinidade, de semelhança, de homogeneidade, o que permite a defesa coletiva de todos
eles62.
Diante do crescente incremento das situações geradoras de lesões transindividuais e
da evolução da legislação (ou dos precedentes, no caso de países eminentemente de common
law), que passou a prever cada vez mais direitos de terceira geração, os países passaram a adotar
modelos diferenciados de tutela jurisdicional para enfrentar esta nova categoria de demanda.
Basicamente, existem três modelos de legitimidade para a tutela coletiva: o modelo
privado ou particular, o modelo público e o modelo misto. É comum também a existência de
mais de um modelo no mesmo sistema.
No caso do modelo privado, confere-se aos particulares ou às associações civis a
legitimidade para o manejo de ações coletivas, sem qualquer participação de órgão público. É
o adotado nos Estados Unidos para as class actions que tutela os casos de massa (mass tort
cases), que mais se assemelha aos direitos individuais homogêneos do direito brasileiro.
Neste tipo de modelo, a exemplo do ocorrido no direito americano, há geralmente uma
fase específica de certification, ou seja, uma fase para se apurar se aquele autor possui
representatividade adequada e pode tutelar o direito vindicado.
No modelo público, atribui-se a órgãos públicos (como o Ministério Público) a
legitimidade para manejar ações coletivas. Neste modelo, há geralmente uma legitimidade
presumida, decorrente da natureza pública e da legitimação conferida por lei.
Já o modelo misto é uma combinação dos dois modelos anteriores, conferindo-se
legitimidade ao particular e a entidades públicas que atuam de forma concorrente na proteção
dos direitos transindividuais.
A Lei de Ação Civil Pública, em seu projeto inicial, pretendia adotar um modelo
público e concentrado no Ministério Público, mas o projeto aprovado e convertido em lei adotou
61 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017, p. 39. 62 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017, p. 40.
40
um modelo misto, conferindo legitimidade a entes públicos (e não apenas ao Ministério
Público) e a associações civis.
3.3.1 Natureza jurídica
A doutrina há muito discute a natureza jurídica da legitimidade conferida pela lei aos
órgãos públicos ou privados, legitimados ao manejo da ação coletiva em prol da defesa dos
direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Embora pareça questão desprovida de interesse prático, há sensíveis diferenças
processuais no enquadramento da legitimidade enquanto ordinária, extraordinária, sui generis
ou legitimação especial para a condução do processo.
Defendendo a natureza ordinária da legitimação, Kazuo Watanabe, em artigo
publicado em 1984, ou seja, antes da Lei de Ação Civil Pública, criticava o sistema jurídico ao
afirmar que ele estava
preso ao princípio tradicional da obrigatória coincidência entre os sujeitos da relação
jurídico-material controvertida e os sujeitos do processo, e por isso somente admite,
em princípio, o ingresso em Juízo de pessoas jurídicas quando se trate de direitos ou
obrigações de que eles mesmos sejam titulares, mostrando escassa inclinação a abrir-
lhes tal possibilidade na defesa dos interesses dos respectivos participantes63.
Em seguida, conclui: “é possível interpretar-se o art. 6º do Código de Processo Civil
com maior abertura e largueza, extraindo de seu texto a legitimação ordinária das associações
e outros corpos intermediários, que sejam criados para a defesa de interesses difusos”.
Por sua vez, defendendo a legitimação extraordinária, José Carlos Barbosa Moreira:
particularmente interessante é a possibilidade que se abre às entidades associativas de
agir em juízo, em nome próprio, embora na defesa de direitos e de interesses que não
pertençam a elas, às próprias entidades, e sim aos filiados. Ao dizer isso, estou
tomando posição sobre a natureza dessa figura jurídica: a mim parece que não se trata
de uma hipótese de representação, ao contrário do que sugere o teor literal do
dispositivo, logo adiante, quando usa o verbo “representar”. Penso que aqui houve um
cochilo técnico; o legislador constituinte não é especialista em direito processual de
sorte que não é de espantar que, aqui e acolá, nos defrontemos com alguma
imperfeição, com alguma impropriedade desse ponto de vista. Mas o meu pensamento
é do que se trata, na verdade, de legitimação extraordinária, que poderá dar lugar, isto
sim, a um fenômeno de substituição processual, e não a um fenômeno de
representação; porque, se se tratasse de um fenômeno de representação, quem estaria,
na verdade, agindo em juízo seriam os filiados individualmente considerados, embora
63 WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos interesses difusos: a legitimação para agir. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do
surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 65.
41
por meio de representante, e o fenômeno nada teria de curioso, ou de merecedor de
maior atenção64.
Assim, para estes autores, o legitimado previsto na Lei de Ação Civil Pública, ao
ajuizar ação coletiva, estaria tutelando em nome próprio direito alheio, direito que não
pertenceria àquele que ajuizou a demanda. A crítica reside no fato de que a associação, ao
ajuizar determinada demanda, defende direito que também lhe é próprio (dos seus membros).
A terceira corrente vê na legitimidade para a tutela coletiva uma espécie sui generis de
legitimidade ou, na expressão de Nelson Nery Junior, legitimidade autônoma para conduzir o
processo, ou seja, legitimação decorrente de lei para a tutela de direitos supraindividuais,
própria do sistema processual coletivo em razão da relevância do direito tutelado, conferindo
autonomia ao processo coletivo, de modo a desvinculá-lo da visão privatista e individualista do
processo civil tradicional.
Contudo, alguns autores adeptos da terceira corrente excluem o conceito de
legitimação autônoma para a condução do processo quando se trata de tutela de direitos
individuais homogêneos. Nesse caso, pretendem a legitimação extraordinária.
Por fim, e neste aspecto há maior consenso na doutrina, a legitimidade é do tipo
concorrente e disjuntiva, vale dizer: qualquer um dos legitimados pode manejar a ação
individualmente, independentemente da participação e concordância dos demais.
Embora a discussão possua certa relevância prática em termos processuais, verifica-se
que é na jurisprudência que se travam os maiores embates no aspecto da legitimidade; é
constante que tal aspecto da tutela coletiva seja objeto de análise pelos tribunais superiores.
3.3.2 Legitimados
3.3.2.1 Legitimidade segundo a jurisprudência
É inegável que a legitimidade para a ação coletiva é tema recorrente nos tribunais, nos
quais destacam-se duas grandes discussões: a (i)legitimidade do Ministério Público para a tutela
de direitos individuais homogêneos e a legitimidade da Defensoria Pública para a ação coletiva
e especialmente para a tutela de direitos individuais homogêneos.
3.3.3 Legitimidade do Ministério Público
64 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988. RePro 61/190. São Paulo: RT., jan.-
mar. 1991.
42
A Constituição Federal de 1988 reservou importante papel ao Ministério Público,
concedendo-lhe garantias institucionais — equiparadas às da magistratura (art. 128, 5º §, I) —
a fim de poder exercer as funções conferidas em prol da tutela do patrimônio público, social,
meio ambiente e segurança, dentre outros.
No que diz respeito à tutela coletiva, previu a Constituição Federal de 1988 que são
funções institucionais do Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública,
para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos
e coletivos” (art. 129, III), ressaltando que “a legitimação do Ministério Público para as ações
civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto
nesta Constituição e na lei” (art. 129, §1º).
Deflui do texto constitucional, portanto, a ampla legitimidade do Ministério Público
para a tutela de direitos difusos e coletivos. De fato, o legislador constitucional cuidou de
enunciar expressamente tão somente dois direitos difusos (patrimônio público e social e meio
ambiente), preferindo adotar verdadeira cláusula aberta no que diz respeito à legitimidade
ministerial ao estabelecer a competência para tutelar qualquer outro interesse difuso e coletivo.
Não bastasse, a fim de afastar qualquer dúvida sobre a natureza concorrente e
disjuntiva da legitimidade — que deflui da relevância do direito tutelado e da própria
inafastabilidade do acesso à justiça, direito fundamental previsto no artigo 5º, XXXV, da
Constituição Federal de 1988 — o § 1º do art. 129 cuidou de deixar expressa e aberta a
legitimação para outras pessoas, segundo previsão da própria Constituição e da legislação
extravagante.
Todavia, questão tormentosa é a legitimidade do Ministério Público para a tutela de
direitos individuais homogêneos. Uma interpretação literal do art. 129, III conduziria à rápida
conclusão de que não haveria legitimidade, pois o texto constitucional tratou tão somente de
outros direitos difusos e coletivos, a indicar que pretendeu afastar a legitimação para os casos
de direitos individuais homogêneos, notadamente porque a lei não contém palavras inúteis.
E nesse sentido foram proferidas decisões reconhecendo a ilegitimidade do órgão
ministerial para defender direitos individuais homogêneos65.
65 Por todos: “Ação civil pública. Ilegitimidade ativa do Ministério Público. Direitos individuais homogêneos. 1. A ação civil
pública, pela sua própria natureza, não se presta a proteger direitos individuais disponíveis. 2. Direitos individuais afetados a
determinados estamentos sociais não estão elencados como alcançados pelos efeitos da ação civil pública. 3. A homenagem
que o Ministério Público sempre presta à Carta Magna não lhe autoriza a exceder as suas atribuições no tocante ao seu direito
de provocar, como sujeito ativo ou substituto processual, a atividade jurisdicional. 4. É parte ilegítima o Ministério Público
para a propositura de ação civil pública quando não se visa proteger interesses difusos ou coletivos. Com estes não devem ser confundidos os que, tipicamente, possuem características individuais de um grupo de determinado setor social. 4. Apelação
improvida. Sentença mantida”. BRASIL. Tribunal Regional Federal 5, 2ª Turma, j. 23-05-1995, Ap. Civ. 05076860-5.
43
Contudo, doutrina e jurisprudência passaram a perceber que nem todos os direitos
individuais homogêneos eram iguais, pois embora restritos a determinado grupo perfeitamente
identificado do esteio social, alguns possuíam características que o superavam e passavam a
ostentar dimensão social.
Outrossim, o art. 129, IX da Constituição Federal de 1988 dispõe que é função
institucional do Ministério Público “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que
compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria
jurídica de entidades públicas”; o caput do art. 127 dispõe: “o Ministério Público é instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
A conjugação e interpretação sistemática dos artigos 129, III e IX, e 127 — que prevê
a competência do Ministério Público na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis
— passou a fundamentar uma nova visão sobre a legitimidade do Parquet, reconhecendo a
possibilidade de tutela dos direitos individuais homogêneos quando houvesse interesse social
no direito invocado ou se se tratasse de direito indisponível.
Assim, pouco a pouco, a evolução dos estudos conduziu a um novo entendimento
jurisprudencial sobre o tema, abrindo-se ainda mais a via da tutela coletiva, tendo os Tribunais
Superiores, já em 1996, reconhecido, e.g., a legitimidade do Ministério Público na defesa de
trabalhadores sujeitos a condições insalubres66, ou ainda, no tocante ao reajuste de mensalidades
escolares67.
Esta poderia ser considerada a primeira “onda” jurisprudencial, que passou a abrir a
porta para a tutela coletiva de direitos individuais homogêneos pelo Ministério Público, mas a
jurisprudência seguiu evoluindo na interpretação do sistema processual coletivo enquanto
relevante instrumento de efetivação dos direitos fundamentais de terceira geração.
Com efeito, a jurisprudência passou, em um segundo momento, a autorizar o
ajuizamento de ação coletiva por parte do Ministério Público, em se tratando de direito
individual indisponível ou com interesse social (tais como aqueles relativos à infância,
adolescência e aos idosos, à saúde e à vida), ainda que em benefício de uma única pessoa68.
66 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, REsp 58.682, j. 08-10-1996, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 16-12-
1996. 67 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RE 163.231/SP, Pleno, j. 26-02-1997, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 29-06-2001. 68 AgRg no REsp 1368769/SP, Rel. Min. Humberto Martins. Segunda Turma, j. 06-08-2013, DJE 14-08-2013; EREsp 488427/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Seção, j. 10-09-2008, DJE 29-09-2008; EREsp 695665/RS, Rel. Min.
Eliana Calmon, Primeira Seção, j. 23-04-2008, DJE 12-05-2008.
44
Assim, conferiu-se legitimidade ao Ministério Público para o ajuizamento de demanda
visando, e.g., a concessão de vaga em creche ou escola ou ainda o fornecimento de determinado
medicamento69, mesmo que em favor de uma única criança70.
Estas situações, porém, ante a evolução dos estudos doutrinários e jurisprudenciais,
parecem inseridas em uma zona de certeza positiva, ou seja, atualmente é questão bastante
sedimentada a possibilidade de manejo de ação coletiva para a tutela de direitos indisponíveis
ligados à saúde e à educação de crianças e idosos, por exemplo.
Todavia, há na jurisprudência recente dos Tribunais superiores casos situados em zona
cinzenta. Dois deles, por exemplo, são recentes cujos entendimentos foram objeto de súmulas
do Superior Tribunal de Justiça: o seguro obrigatório e a tutela dos consumidores.
Caberia ao Ministério Público promover ação coletiva para pleitear indenização
decorrente dos Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestres
(DPVAT) em benefício do segurado?
O DPVAT é um seguro obrigatório contra danos pessoais causados por veículos
automotores de via terrestre, ou por sua carga, a pessoas, transportadas ou não. Em caso de
acidente, discutiu-se se o Ministério Público poderia pleitear a indenização em favor do
segurado (obrigatório).
O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o tema em 2008, em julgamento proferido
pela Segunda Seção, assim entendeu:
há de se considerar que, não obstante a Carta Magna estabelecer que ao Ministério
Público compete a defesa dos direitos individuais indisponíveis, essa regra tem
ganhado contornos mais brandos na interpretação doutrinária e jurisprudencial,
principalmente após o advento do Código de Defesa do Consumidor. Isso se verifica
nas hipóteses em que os interesses lesados tenham natureza divisível e individual, mas
caráter de indivisibilidade e indisponibilidade, por tocarem a relevantes interesses
sociais, de forma que, se lesados, repercutam negativamente na ordem social. [...] O
fato de a contratação do seguro ser obrigatória e atingir a população de modo geral
não lhe confere tal relevância social a ponto de torná-la defensável via ação coletiva
proposta pelo Ministério Público. Do contrário, poder-se-ia absurdamente considerar
que todo interesse que diga respeito à uma parcela da sociedade possa ser classificado
como basilar; isso nivelaria tais valores numa superfície indesejável, banalizando os
que são radicados como força informadora social. [...] O seguro em questão, embora
tenha como obrigatória sua contratação, formaliza acordo que vincula apenas a
empresa de seguro e o contratado, concebendo uma relação de natureza
eminentemente particular, tanto que, na ocorrência de sinistro, o beneficiário pode
deixar de requerer a cobertura ou dela dispor como bem entender. [...] inexiste
legitimidade ativa ad causam do Ministério Público em razão de que estavam sendo
defendidos interesses individuais homogêneos disponíveis71.
69 AgRg no REsp 1443783/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, j.18-06-2014, DJE 06-08-2014. 70 O que, de início, foi rechaçado pelo Superior Tribunal de Justiça: “[...] Não tem o Ministério Público legitimidade para
propor ação civil pública, objetivando resguardar interesses individuais, no caso de um menor carente. Precedentes. [...]”.
REsp 610.438/SP, Rel. Min. Franciulli Netto, Rel. p/ Acórdão Min. Castro Meira, Segunda Turma, j. 15-12-2005, DJ 30-03-2006, p. 195. 71 REsp 858056 GO, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Segunda Seção, j. 11-06-2008, DJe 04-08-2008.
45
Em razão da reiteração do entendimento firmado no precedente, que não vislumbrava
na questão relevância social ou indisponibilidade do direito tutelado, o Superior Tribunal de
Justiça, em 2010, editou a Súmula 470 com a seguinte redação: “O Ministério Público não tem
legitimidade para pleitear, em ação civil pública, a indenização decorrente do DPVAT em
benefício do segurado” (Súmula 470, Segunda Seção, j. 24-11-2010, DJe 06-12-2010).
Porém, a súmula foi cancelada em 2015 em razão de ter sido superada pelo
entendimento do Supremo Tribunal Federal firmado em 2014 em julgamento com repercussão
geral72.
72 CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL COLETIVA. DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS
(DIFUSOS E COLETIVOS) E DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DISTINÇÕES. LEGITIMAÇÃO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO. ARTS. 127 E 129, III, DA CF. LESÃO A DIREITOS INDIVIDUAIS DE DIMENSÃO
AMPLIADA. COMPROMETIMENTO DE INTERESSES SOCIAIS QUALIFICADOS. SEGURO DPVAT. AFIRMAÇÃO DA LEGITIMIDADE ATIVA. 1. Os direitos difusos e coletivos são transindividuais, indivisíveis e sem titular determinado,
sendo, por isso mesmo, tutelados em juízo invariavelmente em regime de substituição processual, por iniciativa dos órgãos e
entidades indicados pelo sistema normativo, entre os quais o Ministério Público, que tem, nessa legitimação ativa, uma de
suas relevantes funções institucionais (CF art. 129, III). 2. Já os direitos individuais homogêneos pertencem à categoria dos direitos subjetivos, são divisíveis, tem titular determinado ou determinável e em geral são de natureza disponível. Sua tutela
jurisdicional pode se dar (a) por iniciativa do próprio titular, em regime processual comum, ou (b) pelo procedimento especial
da ação civil coletiva, em regime de substituição processual, por iniciativa de qualquer dos órgãos ou entidades para tanto
legitimados pelo sistema normativo. 3. Segundo o procedimento estabelecido nos artigos 91 a 100 da Lei n. 8.078/1990, aplicável subsidiariamente aos direitos individuais homogêneos de um modo geral, a tutela coletiva desses direitos se dá em
duas distintas fases: uma, a da ação coletiva propriamente dita, destinada a obter sentença genérica a respeito dos elementos
que compõem o núcleo de homogeneidade dos direitos tutelados (an debeatur, quid debeatur e quis debeat); e outra, caso
procedente o pedido na primeira fase, a da ação de cumprimento da sentença genérica, destinada (a) a complementar a atividade cognitiva mediante juízo específico sobre as situações individuais de cada um dos lesados (= a margem de
heterogeneidade dos direitos homogêneos, que compreende o cui debeatur e o quantum debeatur), bem como (b) a efetivar
os correspondentes atos executórios. 4. O art. 127 da Constituição Federal atribui ao Ministério Público, entre outras, a
incumbência de defender “interesses sociais”. Não se pode estabelecer sinonímia entre interesses sociais e interesses de entidades públicas, já que em relação a estes há vedação expressa de patrocínio pelos agentes ministeriais (CF, art. 129, IX).
Também não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse coletivo de particulares, ainda que decorrentes
de lesão coletiva de direitos homogêneos. Direitos individuais disponíveis, ainda que homogêneos, estão, em princípio,
excluídos do âmbito da tutela pelo Ministério Público (CF, art. 127). 5. No entanto, há certos interesses individuais que, quando visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm a força de transcender a esfera de interesses
puramente particulares, passando a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses
da comunidade. Nessa perspectiva, a lesão desses interesses individuais acaba não apenas atingindo a esfera jurídica dos
titulares do direito individualmente considerados, mas também comprometendo bens, institutos ou valores jurídicos superiores, cuja preservação é cara a uma comunidade maior de pessoas. Em casos tais, a tutela jurisdicional desses direitos
se reveste de interesse social qualificado, o que legitima a propositura da ação pelo Ministério Público com base no art. 127
da Constituição Federal. Mesmo nessa hipótese, todavia, a legitimação ativa do Ministério Público se limita à ação civil
coletiva destinada a obter sentença genérica sobre o núcleo de homogeneidade dos direitos individuais homogêneos. 6. Cumpre ao Ministério Público, no exercício de suas funções institucionais, identificar situações em que a ofensa a direitos
individuais homogêneos compromete também interesses sociais qualificados, sem prejuízo do posterior controle jurisdicional
a respeito. Cabe ao Poder Judiciário, com efeito, a palavra final sobre a adequada legitimação para a causa, sendo que, por se
tratar de matéria de ordem pública, dela pode o juiz conhecer até mesmo de ofício (CPC, art. 267, VI e § 3º, e art. 301, VIII e § 4º). 7. Considerada a natureza e a finalidade do seguro obrigatório DPVAT – Danos Pessoais Causados por Veículos
Automotores de Via Terrestre (Lei n. 6.194/74, alterada pela Lei n. 8.441/92, Lei n. 11.482/07 e Lei n. 11.945/09) – há
interesse social qualificado na tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos dos seus titulares, alegadamente lesados de
forma semelhante pela Seguradora no pagamento das correspondentes indenizações. A hipótese guarda semelhança com
outros direitos individuais homogêneos em relação aos quais – e não obstante sua natureza de direitos divisíveis, disponíveis
e com titular determinado ou determinável – o Supremo Tribunal Federal considerou que sua tutela se revestia de interesse
social qualificado, autorizando, por isso mesmo, a iniciativa do Ministério Público de, com base no art. 127 da Constituição,
defendê-los em juízo mediante ação coletiva. RE 163.231/S P, AI 637.853 AgR/SP, AI 606.235 AgR/DF, RE 475.010 AgR/RS, RE 328.910 AgR/S P e RE 514.023 AgR/RJ. 8. Recurso extraordinário a que se dá provimento. RE 631.111/GO,
Rel. Min. Teori Zavascki, j. 07-08-2014. Repercussão Geral.
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O Ministro relator sustentou, em seu voto vencedor, que o seguro, ante a sua
obrigatoriedade e relevância na proteção às vítimas de acidentes automobilísticos — risco
aceito na sociedade moderna — tinha interesse social e, portanto, justificaria a tutela pelo
Ministério Público.
Conforme observado pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki,
o seguro DPVAT não é um seguro qualquer. É seguro obrigatório por força de lei e
sua finalidade é proteger as vítimas de um recorrente e nefasto evento da nossa
realidade moderna, os acidentes automobilísticos, que tantos males, sociais e
econômicos, trazem às pessoas envolvidas, à sociedade e ao Estado, especialmente
aos órgãos de seguridade social. Por isso mesmo, a própria lei impõe como obrigatório
[...].
Outro entendimento jurisprudencial recente e polêmico envolvendo a legitimidade do
Ministério Público para a tutela de direitos individuais homogêneos revela-se no enunciado
sumular 610 do Superior Tribunal de Justiça: “o Ministério Público tem legitimidade ativa para
atuar na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores, ainda
que decorrentes da prestação de serviço público”73.
Tratamos o tema como polêmico, pois, à primeira vista, direitos do consumidor
sugerem um caráter disponível. E de fato o são.
Não obstante, a disponibilidade do direito individual homogêneo não é o único critério
a justificar a legitimidade do Ministério, pois também haverá o preenchimento da referida
condição da ação quando o direito veiculado revelar relevância social, ainda que disponível.
É este o entendimento jurisprudencial em relação à tutela dos direitos individuais
homogêneos relacionados aos direitos do consumidor. Segundo o Ministro Teori Zavascki,
então Ministro do Superior Tribunal de Justiça,
a proteção coletiva dos consumidores constitui não apenas interesse individual do
próprio lesado, mas interesse da sociedade como um todo. Realmente, é a própria
Constituição que estabelece que a defesa dos consumidores é princípio fundamental
da atividade econômica (CF, art. 170, V), razão pela qual deve ser promovida,
inclusive pelo Estado, em forma obrigatória (CF, art. 5º, XXXII). Não se trata,
obviamente, da proteção individual, pessoal, particular, deste ou daquele consumidor
lesado, mas da proteção coletiva, considerada em sua dimensão comunitária e
impessoal. Compreendida a cláusula constitucional dos interesses sociais (art. 127)
nessa dimensão, não será difícil concluir que nela pode ser inserida a legitimação do
Ministério Público para a defesa de ‘direitos individuais homogêneos’ dos
consumidores, o que dá base de legitimidade ao art. 82, I da Lei n. 8.078/90 [...]74.
73 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. Aprovada em: 07-02-2018, DJe 14-02-2018. 74 REsp 417.804/PR, DJ 16-05-2005.
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Dessa forma, segundo o entendimento firmado, os direitos do consumidor possuem
relevância social presumida que deflui do texto constitucional (art. 170, V, e art. 5º XXXII), de
maneira que o Ministério Público será parte legítima ainda que se trate de direito disponível75.
Da análise dos precedentes que ensejaram a aprovação da súmula, verifica-se que se
tratam de processos que objetivaram a condenação de concessionária de serviço de telefonia a
reparar todos os telefones de uso público, além de inserir informações claras e precisas sobre
como utilizá-los e os códigos de seleção das prestadoras76; ação ajuizada com o objetivo de
limitar os descontos de mútuo em conta corrente, aplicando, analogicamente, o entendimento
para empréstimos consignados em folha de pagamento77; proibição de concessionária
interromper o serviço de fornecimento de energia elétrica por dívida pretérita, a título de
recuperação de consumo78; demanda relacionada à fiscalização de comercialização de
combustível automotor fora dos padrões da ANP, isto é, adulterado79, dentre outras.
A defesa dos direitos supraindividuais relacionados ao direito do consumidor é tema
bastante caro ao Superior Tribunal de Justiça, pois, consolidada a legitimidade do Ministério
Público, em recente julgamento80, passou a admitir a tutela destes relevantes direitos em sede
de ação coletiva ajuizada por pessoa jurídica de direito público interno (Município).
No julgamento do REsp 1.509.586/SC, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu
provimento ao recurso especial para afastar a conclusão do tribunal de origem — que havia
reconhecido a ilegitimidade do Município de Brusque/SC — de que não poderia o Município
ajuizar ação coletiva para buscar impedir a instituição financeira de cobrar tarifas pela
renovação de cadastro dos servidores municipais.
Segundo o voto da Ministra Nancy Andrighi,
[...] embora tenha sido mencionada como causa de pedir e pedido a cobrança da tarifa
de “renovação de cadastro” de servidores municipais, é certo que o direito vindicado
possui dimensão que extrapola a esfera de interesses puramente particulares dos
citados servidores, o que é suficiente para o reconhecimento da legitimidade do ente
político para essa primeira fase da tutela coletiva de interesses individuais
homogêneos [...].
Percebe-se, portanto, que a interpretação do Superior Tribunal de Justiça no tema da
legitimidade do Ministério Público — e de outros legitimados — tem sido bastante ampliativa,
reconhecendo interesse social ou indisponibilidade do direito em uma ampla gama de
75 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. REsp 1254428/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 02-06-2016. 76 AgRg nos EDcl no REsp 1508524/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, j. 10-03-2016, DJe 16-03-
2016. 77 EDcl no AgRg no AREsp 34.403/RJ, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, j. 06-06-2013, DJe 17-09-2013. 78 AgRg no AREsp 300.270/MG, Rel. Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, j.17-09-2015, DJe 24-09-2015. 79 AgRg no REsp 1518698/SE, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 25-08-2015, DJe 16-11-2015. 80 REsp 1509586/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 15-05-2018, DJe 18-05-2018.
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demandas. Resta perquirir se tal interpretação é – ou deve ser – a mesma no que diz respeito à
legitimidade da Defensoria Pública.
3.3.4 Legitimidade da Defensoria Pública
A Defensoria Pública, no modelo e importância atual, nasceu com a Constituição
Federal de 1988. Até então, a defesa dos necessitados era feita por subdivisões dos órgãos de
Defesa do Executivo (no Estado de São Paulo, pela Procuradoria de Assistência Judiciária,
composta por Procuradores do Estado dedicados a tal função).
Em seu artigo 134, a Constituição Federal de 1988 dispôs:
a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático,
fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa,
em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de
forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta
Constituição Federal.
Por sua vez, a legitimidade para o manejo de ação coletiva só veio formalmente com
a Lei n. 11.448/2007 que inseriu a Defensoria Pública no rol de legitimados da Lei de Ação
Civil Pública.
Não obstante, antes mesmo da edição da lei, já havia entendimento no âmbito do
Superior Tribunal de Justiça reconhecendo legitimidade ao considerar a Defensoria como órgão
estatal81.
Após sua edição, a Lei n. 11.448/2007, que conferiu expressa legitimidade à
Defensoria Pública, foi objeto de ação direta de inconstitucionalidade por associação do
Ministério Público, sob a alegação de que haveria sobreposição de atuação com o Ministério
Público. No entanto, o Supremo Tribunal Federal assim entendeu:
é constitucional a Lei n. 11.448/2007, que alterou a Lei n. 7.347/85, prevendo a
Defensoria Pública como um dos legitimados para propor ação civil pública. A
Defensoria Pública tem legitimidade para a propositura de ação civil pública em
ordem a promover a tutela judicial de direitos difusos e coletivos de que sejam
titulares, em tese, as pessoas necessitadas82.
81 AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE. DEFENSORIA PÚBLICA. INTERESSE. CONSUMIDORES. A Turma, por maioria, entendeu que a Defensoria Pública tem legitimidade para propor ação civil pública na defesa do interesse de
consumidores. Na espécie, o Nudecon, órgão vinculado à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, por ser órgão
especializado que compõe a administração pública direta do Estado, perfaz a condição expressa no art. 82, III, do Código de
Defesa do Consumidor. [...] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma, REsp 555.111-RJ, Rel. Min. Castro
Filho, j. 5-9-2006. E ainda: “É imperioso reiterar, conforme precedentes do Superior Tribunal de Justiça, que a legitimatio ad
causam da Defensoria Pública para intentar ação civil pública na defesa de interesses transindividuais de hipossuficientes é
reconhecida antes mesmo do advento da Lei n. 11.448/2007, dada a relevância social (e jurídica) do direito que se pretende
tutelar e do próprio fim do ordenamento jurídico brasileiro: assegurar a dignidade da pessoa humana, entendida como núcleo central dos direitos fundamentais”. REsp 1.106.515/MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 2-2-2011. 82 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. ADI 3943/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 7-5-2015 (Info 784).
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Prevaleceu, portanto, a interpretação mais ampla do rol de legitimados, o que garante
maior participação social no processo, conferindo uma realidade mais pluralista e aberta ao
acesso à justiça, no que tange aos direitos difusos.
Quanto aos direitos coletivos e individuais homogêneos, porém, a legitimação é mais
restrita, pois exige-se que no grupo tutelado haja algum “necessitado”, o que seria
imprescindível para justificar a intervenção segundo a Constituição Federal de 1988.
Logo, discute-se qual sentido deve ser dado à expressão “necessitados” prevista no
texto constitucional, se deve ser limitada aos hipossuficientes econômicos ou se bastaria a
hipossuficiência jurídica a justificar a intervenção da Defensoria.
Para parte da doutrina83 e da jurisprudência, o artigo 134 da Constituição Federal de
1988, ao mencionar a defesa dos “necessitados”, faz referência expressa ao art. 5 º, LXXIV: “o
Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de
recursos”, de modo que o conceito de necessitados estaria restrito àqueles que comprovarem
insuficiência econômica.
Este entendimento embasou o voto do Ministro Luis Felipe Salomão ao reconhecer a
ilegitimidade da Defensoria Pública para a tutela de determinado grupo contratante de plano de
saúde de razoável custo mensal, por entender que não haveria benefício, ainda que indireto, a
pessoas economicamente necessitadas84.
Posteriormente, no âmbito do mesmo recurso especial, a Defensoria Pública interpôs
embargos de divergência em razão de acórdãos oriundos da primeira seção (1ª e 2ª Turmas)85,
que concluíram pela interpretação mais ampla do conceito de necessitados.
Ao apreciar os embargos de divergência, a Corte Especial do Superior Tribunal de
Justiça, em acórdão da lavra da Ministra Laurita Vaz, entendeu que a Defensoria Pública tem
legitimidade para propor ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos de
consumidores idosos que tiveram plano de saúde reajustado em razão da mudança de faixa
etária, ainda que os titulares não sejam carentes de recursos econômicos.
Prevaleceu, portanto, o entendimento de que a expressão ‘necessitados’ prevista no
art. 134 da Constituição Federal de 1988, que qualifica e orienta a atuação da Defensoria
83 WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALVIM, Teresa Arruda; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova
sistemática processual civil. São Paulo: RT, 2007, pp. 312-313; MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos
em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 334; ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017, p.
69. 84 REsp 1192577/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 15-05-2014, DJe 15-08-2014. 85 REsp 1.264.116/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 18-10-2011, DJe 13-04-2012 e REsp 912.849/RS,
Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, j. 26-02-2008, DJe 28-04-2008.
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Pública, deve ser entendida, no campo da Ação Civil Pública, em sentido amplo. Assim, a
Defensoria pode atuar tanto em favor dos carentes de recursos financeiros como também em
prol do necessitado organizacional (que são os ‘hipervulneráveis’)86.
Importante notar que entre o julgamento na 4ª Turma e o julgamento na Corte Especial
ocorreu o julgamento da ADI 3.943/DF, em 07/05/2015, dando ensejo a que o Ministro Luis
Felipe Salomão, relator do acórdão embargado, mudasse seu entendimento e votasse com a
Ministra relatora pela reforma do acórdão.
Isso porque, conforme ressaltou o Ministro, o Supremo Tribunal Federal apenas
postergou a limitação da legitimidade adequada das pessoas ‘necessitadas’ para momento
futuro, qual seja, o da liquidação ou execução da sentença.
Assim, entendeu o Ministro Luis Felipe Salomão:
o que se depreende dessa decisão, realmente deve ser conferida à expressão
‘necessitados’ (CF, art. 134) uma interpretação ampla no campo da ação civil pública
para fins de atuação inicial da Defensoria Pública, de modo a incluir, para além do
necessitado econômico (em sentido estrito), o necessitado organizacional, o indivíduo
ou grupo em situação especial de vulnerabilidade existencial, isto é, os
‘hipervulneráveis’, tal como denomina o Min. Herman Benjamin, até porque é função
institucional da Defensoria Pública ‘exercer a defesa dos interesses individuais e
coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades
especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos
sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado’ (LC n. 80/1994, art. 4°,
XI), ampliando ao máximo o campo da dignidade humana87.
Portanto, para a atuação inicial, ou seja, na fase de conhecimento, basta vislumbrar a
possibilidade de que a atuação da Defensoria Pública possa beneficiar indivíduos pertencentes
à classe dos hipossuficientes, ainda que com isso sejam beneficiados pessoas abastadas. No
entanto, no momento da liquidação ou execução do julgado, quando se individualizam os
pedidos, somente haverá legitimidade da Defensoria Pública em favor daqueles que não
possuírem recursos financeiros88.
A conclusão adotada parece consentânea com o mais amplo acesso à justiça, de modo
a efetivar as três ondas de acesso à justiça. Vislumbrando-se a possibilidade de benefício a
grupo necessitado, seria possível reconhecer a legitimidade da Defensoria Pública para o
manejo da ação coletiva visando tutelar direitos coletivos ou individuais homogêneos,
relegando para a fase executiva a comprovação dos beneficiários hipossuficientes e
86 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. EREsp 1.192.577-RS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 21-10-2015. 87 Voto vista do Min. Luis Felipe Salomão no EREsp 1.192.577/RS. Grifo nosso. 88 No mesmo sentido: REsp 1449416/SC, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 15-03-2016, DJe 29-03-
2016.
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prestigiando a efetiva cessação da conduta lesiva ou reparação do dano em detrimento do óbice
processual.
3.3.5 Legitimidade dos entes de direito público interno
O artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor contempla também como ente
legitimado à propositura de ação civil pública a União, os Estados e os Municípios. Embora a
legitimidade da União e dos Estados não tenha causado grande divergência, a possibilidade de
o Município ser autor de ação coletiva tem gerado certa divergência.
Justamente por isso, o tema foi objeto de análise no Superior Tribunal de Justiça, em
recente julgamento89, no qual passou-se a admitir a tutela de direitos do consumidor em sede
de ação coletiva ajuizada por pessoa jurídica de direito público interno (Município).
No julgamento do REsp 1.509.586/SC, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu
provimento ao recurso especial para afastar a conclusão do tribunal de origem — que havia
reconhecido a ilegitimidade do Município de Brusque/SC — de que não poderia o Município
ajuizar ação coletiva para buscar impedir a instituição financeira de cobrar tarifas pela
renovação de cadastro dos servidores municipais.
Segundo o voto da Ministra Nancy Andrighi, embora
[...] tenha sido mencionada como causa de pedir e pedido a cobrança da tarifa de
“renovação de cadastro” de servidores municipais, é certo que o direito vindicado
possui dimensão que extrapola a esfera de interesses puramente particulares dos
citados servidores, o que é suficiente para o reconhecimento da legitimidade do ente
político para essa primeira fase da tutela coletiva de interesses individuais
homogêneos [...].
3.4 Coisa julgada no processo coletivo
Coisa julgada é a qualidade de indiscutibilidade, imutabilidade, do conteúdo de uma
determinada decisão judicial. Recai sobre o dispositivo da decisão, tornando indiscutível a
norma jurídica individualizada e estável a norma jurídica individualizada. A coisa julgada é
fenômeno associado à atividade jurisdicional e é tão importante para o sistema que é um direito
fundamental90; a lei deve observar a coisa julgada.
89 REsp 1509586/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 15-05-2018, DJe 18-05-2018. 90 BRASIL. Constituição Federal (1988), Art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e
a coisa julgada.
52
Na clássica lição de Enrico Tullio Liebman, a coisa julgada não é um efeito da sentença
ou a sua eficácia, mas uma qualidade que se agrega à parte dispositiva da sentença.
A imutabilidade pode se restringir ao processo em que foi proferido ou estender seus
efeitos para além dele. Daí a distinção entre coisa julgada material e formal. Esta ocorre quando
a decisão é imutável dentro do processo no qual foi proferida, eis que não suscetível de nova
análise em recurso próprio; é um fenômeno endoprocessual. A coisa julgada material, por sua
vez, estende seus efeitos para qualquer outro processo, além do qual foi produzida; é, portanto,
um fenômeno extraprocessual.
É lugar comum na tradicional doutrina de direito processual civil afirmar que a
sentença faz coisa julgada entre as partes às quais é dada, ou seja, somente beneficiaria ou
prejudicaria aqueles que ingressaram no processo como partes, não podendo atingir a esfera
jurídica de terceira pessoa que não participou da relação processual.
Nesse sentido, o Código de Processo Civil de 1973 previa, em seu artigo 472:
a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem
prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido
citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença
produz coisa julgada em relação a terceiros.
O fundamento desta limitação consistia na teoria italiana de Enrico Tullio Liebman,
forte influenciadora do processo civil brasileiro nas décadas de 1970 a 1990:
Liebman, na famosa teoria que distingue eficácia natural da sentença e autoridade da
coisa julgada, sustentou que a eficácia natural da sentença, como ato de potestade do
Estado, atinge a todos; mas que a autoridade da coisa julgada só alcança as partes. Os
terceiros juridicamente prejudicados poderão opor-se à autoridade da coisa julgada. A
teoria exerceu ampla acolhida no Brasil e vem hoje consagrada, embora numa dicção
imperfeita, no Código de Processo Civil vigente. [...] A imperfeição, salientada por
Barbosa Moreira, consiste na circunstância de que os efeitos da sentença são
reconhecidamente capazes de atingir a esfera jurídica dos terceiros. Mas o que o
Código quer dizer é que a coisa julgada (e não a sentença) fica restrita às partes, não
beneficiando nem prejudicando terceiros, e assim tem sido interpretada a norma
legal91.
Todavia, o dispositivo não estava inteiramente consonante com parte da doutrina.
Entendia-se que o princípio da limitação da sentença às partes significa que os terceiros não
podem ser por ela prejudicados, mas que podem, sim, ser beneficiados por ela.
91 GRINOVER, Ada Pellegrini. Eficácia e autoridade da sentença. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento à atualidade.
São Paulo: RT, 2014, p. 436.
53
É por isso que o Código de Processo Civil/2015, em seu artigo 506, ajustou a redação
para excluir a proibição de beneficiar terceiros não participantes da relação processual,
passando a prever: “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não
prejudicando terceiros”.
Contudo, a previsão do processo civil tradicional não se adequava às necessidades do
processo coletivo porque destoava de toda a lógica do sistema previsto para a tutela coletiva.
Inviável um sistema de tutela coletiva no qual a sentença não pudesse beneficiar
terceiros, não partes do processo, mas lesados pelo direito reconhecidamente violado. A
previsão de formação de coisa julgada exigia, portanto, novos contornos para a tutela processual
coletiva.
Assim, foi preciso conciliar a limitação subjetiva da coisa julgada do processo civil
individual tradicional com a necessária máxima efetividade do processo coletivo,
racionalização da prestação jurisdicional, tendo em vista a indivisibilidade do objeto e dos
direitos coletivos à luz da isonomia no tratamento.
Esse processo, capitaneado pela doutrina, conduziu à previsão constante do artigo 103
do Código de Defesa do Consumidor 92.
3.4.1 Limites objetivos, subjetivos, modo de produção e extensão da coisa julgada no
processo coletivo
A coisa julgada está sujeita a limites objetivos e subjetivos. Entende-se por limite
objetivo o que pode ser considerado como abrangido pelo manto da coisa julgada. Limite
subjetivo, por sua vez, refere-se às pessoas afetadas ou sujeitas ao decidido com efeito
definitivo.
Os limites objetivos da coisa julgada coletiva são iguais aos do processo individual,
previstos nos arts. 502 a 508 do Código de Processo Civil/2015. Ou seja, em regra, somente a
92 Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada: I – erga omnes, exceto se o pedido for
julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com
idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81; II – ultra partes, mas
limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81; III – erga omnes, apenas no caso de
procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art.
81. § 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos
integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. § 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência
do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a
título individual. § 3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n. 7.347, de 24 de
julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na
forma prevista neste Código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99. § 4º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal
condenatória.
54
parte dispositiva da decisão é atingida pela imutabilidade da coisa julgada, afastando-se a coisa
julgada sobre os motivos, ainda que importantes para fundamentar a decisão.
O legislador inovou no Código de Processo Civil/2015 ao prever a possibilidade de
formação de coisa julgada para a questão prejudicial, desde que preenchidos determinados
requisitos93.
O dispositivo pode ser aplicado ao processo coletivo. Um exemplo interessante é o da
demanda ajuizada buscando restituir valores cobrados indevidamente de diversos
consumidores, cuja questão prejudicial é a nulidade de determinada cláusula contratual. É
perfeitamente possível que a questão seja alcançada pela proteção da coisa julgada94.
Por outro lado, quanto aos limites subjetivos, o tratamento é diverso. A inovação
trazida pelo artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor foi bastante substancial ao afastar
o tradicional efeito inter partes previsto no artigo 506 do Código de Processo Civil/2015 para,
agora, trazer previsões distintas de extensão subjetiva ultra partes ou erga omnes, a depender
do direito tutelado na ação coletiva.
Há autores, porém, que não diferenciam esse fenômeno dos efeitos erga omnes. Para
Antonio Gidi, não deveria haver distinção entre erga omnes e ultra partes, mas existir uma
expressão que dissesse valer a decisão para todos os interessados – seria a expressão ultra partes
e não erga omnes, pois não atingiria todos os seres humanos, apenas aqueles enquadrados
naquela situação jurídica, naquela categoria.
A extensão subjetiva erga omnes e ultra partes tem como fundamento a
indivisibilidade do objeto, na medida em que ele não pode ser fracionado em relação aos
interessados, indeterminados no caso dos interesses difusos e limitados ao grupo, categoria ou
classe em se tratando de direitos coletivos, não se limitando aos associados ou filiados.
Quando envolver a tutela de direitos difusos, conforme previsto no artigo 103, I, do
Código de Defesa do Consumidor, a coisa julgada formada no processo movido por um dos
legitimados se estenderá a todos, salvo quando julgada improcedente por falta de provas.
Em se tratando de direito coletivo em sentido estrito (artigo 81, parágrafo único, II, do
Código de Defesa do Consumidor), a sentença do processo coletivo se estenderá de maneira
ultra partes, ou seja, superando o legitimado que ajuizou a demanda e atingindo todo o grupo,
93 § 1º O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se:
I – dessa resolução depender o julgamento do mérito; II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se
aplicando no caso de revelia; III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão
principal. 94 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, pp. 412-413.
55
categoria ou classe de pessoas que estejam ligadas entre si ou à parte contrária por uma relação
jurídica base.
Por fim, tratando-se de direitos individuais homogêneos, a coisa julgada também será
erga omnes, ou seja, as pessoas lesadas pelo evento reconhecidamente danoso por sentença
transitada em julgado em processo coletivo poderão promover liquidação ou execução do
julgado diretamente, sem necessidade de ajuizar nova demanda.
A diferença para o regime de extensão subjetiva envolvendo direitos difusos reside na
previsão do art. 103, § 2º, que prevê a não formação de coisa julgada (e consequentemente não
extensão subjetiva do julgado desfavorável) em caso de improcedência da demanda, permitindo
que a parte lesada possa manejar seu processo individual, salvo se houver se habilitado como
litisconsorte ou assistente litisconsorcial, possibilidade em que a sentença desfavorável lhe
atingirá.
O regime diferenciado se justifica pelo fato de os direitos coletivos lato sensu somente
poderem ser tutelados por meio de ação coletiva, ao passo que os direitos individuais
homogêneos, apenas acidentalmente coletivos, podem ser tutelados por meio de ações
individuais, de modo que a tutela coletiva não poderia ser prejudicial.
Quanto ao modo de produção da coisa julgada, no processo coletivo também há
peculiaridades. Enquanto no processo individual a coisa julgada é pro et contra, no processo
coletivo há quem diga que existem hipóteses onde a coisa julgada é formada secundum eventum
litis (segundo o resultado da lide), ou seja, a coisa julgada somente se formaria no caso de
procedência do pedido.
De fato, em se tratando de direitos propriamente coletivos (direitos difusos e coletivos
stricto sensu), a coisa julgada somente se formará secundum eventum probationis, ou seja, só
há coisa julgada quando ocorre o esgotamento das provas, tendo em vista que a insuficiência
de provas permite o ajuizamento de nova ação coletiva.
Na realidade, o que é secundum eventum litis não é a formação da coisa julgada, mas
sua extensão para a esfera jurídica individual dos interessados. Vale dizer, somente no caso de
procedência a coisa julgada atinge os direitos individuais dos sujeitos.
Discute-se a necessidade de indicação, por parte do magistrado sentenciante, de que a
demanda está sendo julgada improcedente por ausência de provas.
Para parcela relevante da doutrina95, a nova propositura da ação coletiva por falta de
provas não depende de expressa manifestação judicial neste sentido na primitiva ação, eis que
95 Em sentido contrário: NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor apud PIZZOL, Patrícia Miranda.
Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 418.
56
bastaria verificar do conteúdo da decisão que a improcedência decorreu da ausência de lastro
probatório. Ou seja, não há necessidade (embora seja o mais conveniente) que o juiz assim
sentencie na primeira demanda: “julgo improcedente por falta de provas”.
Para Antonio Gidi, “sempre que qualquer legitimado propuser a mesma ação coletiva
com novo material probatório, demonstrará, ipso facto que a ação coletiva anterior havia sido
julgada por instrução insuficiente”96. Importante ainda conceituar o que seriam provas novas a
justificar a propositura de outra ação coletiva.
Diversamente do conceito empregado para ajuizar ação rescisória, para a doutrina
basta que as provas, ainda que já existentes, não tenham sido consideradas na formação do
convencimento do magistrado97. Assim, é considerada nova a prova, mesmo que preexistente
ou contemporânea à ação coletiva, desde que não tenha sido nesta considerada. O que importa
é se foi ou não apresentada durante o trâmite procedimental da ação coletiva. Será considerada
nova para a pretensão formulada, ainda que temporalmente não seja recente98.
Em se tratando de direitos individuais homogêneos, porém, se o pedido for julgado
improcedente, com fundamento em ausência de provas ou não, haverá coisa julgada. Não se
permitirá nova ação coletiva, apenas ação individual99, desde que não tenham se habilitado
como litisconsortes ou assistentes litisconsorciais100.
Cabe ressaltar que nesta hipótese (direitos individuais homogêneos), não será possível
ajuizar nova ação coletiva, ainda que por outro legitimado em outro Estado da Federação101.
96 GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas apud PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva:
processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 419. 97 Segundo Fabrício Bastos, “o conceito de novas provas, portanto, deve ser aquela que, ainda que já existente, não foi
considerada para fins de formação do convencimento, bem como aquela que não existia à época”. BASTOS, Fabrício. Curso
de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 379. 98 Daniel Amorim: “Parcela majoritária da doutrina entende que não se deve confundir nova prova com prova superveniente, surgida após o término da ação coletiva. Por este entendimento, seria nova a prova, mesmo que preexistente ou
contemporânea à ação coletiva, desde que não tenha sido nesta considerada. Assim, o que interessa não é se a prova existia
ou não à época da demanda coletiva, mas se foi ou não apresentada durante o seu trâmite procedimental; será nova porque,
no tocante à pretensão do autor, é uma novidade, mesmo que, em termos temporais, não seja algo recente”. Fabrício Bastos também defende a possibilidade de ajuizamento de nova ação, ainda que a anterior tenha sido improcedente (inclusive com
produção de prova pericial) se houver uma nova tecnologia, nova perícia, novo convênio internacional, que permita a
produção, o acesso a conhecimento que até então era impossível, com base na teoria do risco do desenvolvimento
tecnológico. No mesmo sentido parece a previsão do Projeto de Código Modelo para Ibero-América que prevê, em seu artigo 33 §1º, a possibilidade de ajuizamento de nova ação, com base em provas novas, no prazo de dois anos a partir da descoberta
de prova nova, superveniente ao processo coletivo e capaz, por si só, de alterar o resultado do julgamento. 99 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, pp. 419-420. 100 Código de Defesa do Consumidor. “Art. 94. Proposta a ação, será publicado edital no órgão oficial, a fim de que os
interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de
comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor. Art. 103, § 2° Na hipótese prevista no inciso III
(individuais homogêneos), em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo
como litisconsortes (nos individuais homogêneos, se intervir como litisconsorte perde a tutela individual) poderão propor
ação de indenização a título individual”. 101 DIREITO PROCESSUAL CIVIL. IMPROCEDÊNCIA DE DEMANDA COLETIVA PROPOSTA EM DEFESA DE
DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS E IMPOSSIBILIDADE DE NOVO AJUIZAMENTO DE AÇÃO COLETIVA POR OUTRO LEGITIMADO. Após o trânsito em julgado de decisão que julga improcedente ação coletiva proposta em
defesa de direitos individuais homogêneos, independentemente do motivo que tenha fundamentado a rejeição do pedido, não
57
Porém, na doutrina, há posicionamento em sentido contrário. Para Fredie Didier Junior
e Hermes Zaneti Junior, diante da redação lacunosa do artigo 103, III, do Código de Defesa do
Consumidor, o resultado ‘improcedência por insuficiência de provas’ não poderá acarretar coisa
julgada material, mas somente formal, com base nos seguintes argumentos: a) o Código de
Defesa do Consumidor não regulamento a coisa julgada material nas hipóteses de tutela de
direitos individuais homogêneos, pois somente refere-se à extensão subjetiva do resultado
positivo da demanda coletiva; b) em virtude desta omissão, dever-se-á aplicar o microssistema
da tutela coletiva e, portanto, usar o regime jurídico da imutabilidade no plano objetivo dos
direitos difusos e coletivos em sentido estrito; c) a interpretação literal do dispositivo em
comento não pode gerar a conclusão de que somente nas demandas essencialmente coletivas
aplicar-se-á o regime secundum eventum probationis.
Segundo o Projeto de Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-America, em
seu artigo 33, mesmo para os direitos individuais homogêneos, a coisa julgada opera erga
omnes, no plano coletivo, em caso de acolhimento ou rejeição da demanda, de modo que
nenhum outro legitimado poderá repetir a demanda coletiva. Não prejudica, porém, as
demandas individuais (art. 33, § 2º).
3.4.2 Transporte in utilibus
Conforme afirmado no tópico anterior, só haverá formação de coisa julgada em se
tratando de ação coletiva que tutela direitos difusos e coletivos, extensível aos indivíduos
lesados, quando a sentença lhes for favorável. Nesta situação, estes particulares farão o
transporte in utilibus da sentença coletiva favorável para o processo individual (liquidação ou
execução).
Em outras palavras, a coisa julgada coletiva, em todos os interesses transindividuais,
nunca prejudica as pretensões individuais, só beneficia. Desse modo, sempre restará ao
indivíduo ingressar com ação individual (princípio da máxima eficácia: a coisa julgada só é
transportada se for in utilibus, ou seja, se for útil). A repercussão da coisa julgada no plano
individual ocorre secudum eventum litis, ou seja, somente quando a ação for procedente
(Código de Defesa do Consumidor, art. 103, §§ 3º e 4º).
é possível a propositura de nova demanda com o mesmo objeto por outro legitimado coletivo, ainda que em outro Estado da
federação. [...] REsp 1.302.596-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 9-12-2015, DJe 1-2-2016. Informativo 575.
58
O fenômeno se explica pela ampliação ope legis do objeto do processo, para incluir na
coisa julgada a decisão sobre a causa de pedir, reafirmando o princípio do máximo benefício da
tutela coletiva.
A extensão dos limites da coisa julgada faculta a outrem utilizar (in utilibus) da
condenação genérica oriunda da demanda coletiva para pugnar a satisfação ou
reparação de seu direito individual, evitando a proliferação de ações condenatórias
individuais e homenageando o princípio da economia processual e da efetividade do
processo. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, REsp 648.054/RS, Rel. Min. Luiz
Fux, Primeira Turma, DJU 14-11-2005.
Assim, mesmo não tendo havido discussão ou formulação de pedido individual
homogêneo, os indivíduos lesados podem se beneficiar da sentença coletiva que tenha
reconhecido a existência de determinado dano ou lesão. Basta ao indivíduo manejar a
competente ação de liquidação, na qual deverão comprovar o dano, o nexo de causalidade e o
montante do prejuízo102.
Não se discute mais o an debeatur, ou seja, a existência da dívida e da
responsabilidade, mas tão somente o quantum debeatur, a quantificação do prejuízo.
Abaixo, transcrevemos exemplo trazido por Ada Pellegrini Grinover de aplicação do
instituto do transporte in utilibus:
Se, por exemplo, a ação civil pública que tenda à obrigação de retirar do mercado um
produto nocivo à saúde pública for julgada procedente, reconhecendo a sentença os
danos, reais ou potenciais, pelo fato do produto, poderão as vítimas, sem necessidade
de novo processo de conhecimento, alcançar a reparação dos prejuízos pessoalmente
sofridos, mediante liquidação e execução da sentença coletiva103.
Há, por fim, a previsão de transporte in utilibus do quanto decidido na sentença penal
condenatória, conforme previsto no art. 103, § 4º do Código de Defesa do Consumidor. A
previsão é relevante, pois em se tratando de processo penal, a condenação só tem efeitos sobre
o condenado. No entanto, pelo transporte in utilibus pode atingir terceiros, como, por exemplo,
no caso de condenação por crime ambiental ou contra o sistema financeiro nacional.
Ainda que não previsto expressamente, a execução civil de sentença penal
condenatória também poderia ter por fundamento o artigo 63 do Código de Processo Penal104 e
o artigo 515, VI, do Código de Processo Civil /2015105 que permitem o ajuizamento de ação de
102 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, p. 433. 103 WATANABE, Kazuo; GRINOVER, Ada Pellegrini; NERY JUNIOR, Nelson et al. Código brasileiro de Defesa do
Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 1021. 104 Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. 105 Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título: [...]
59
liquidação e execução de sentença penal condenatória, eliminando a discussão sobre a
existência do fato ou sobre a autoria, conforme previsto no artigo 935 do Código Civil106.
3.4.3 Suspensão da ação individual
De acordo com o artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor 107, para o autor da
ação individual já proposta aproveitar o transporte in utilibus da coisa julgada coletiva deverá
requerer a suspensão da sua ação individual em 30 dias a contar da ciência do ajuizamento da
ação coletiva. Se não pedir a suspensão, segundo o dispositivo legal, não será beneficiado pela
decisão coletiva.
Compete ao réu108 informar a existência da ação coletiva no processo individual, pois
caso não o faça, ainda que o autor perca a demanda individual poderá se beneficiar da
procedência da coletiva.
Requerida a suspensão, o processo individual deve ficar suspenso até julgamento da
ação coletiva. Discute-se na jurisprudência se o pedido de suspensão da ação individual é
faculdade da parte ou se o magistrado pode determiná-la de ofício.
Embora o dispositivo pareça claro em definir como uma faculdade da parte, o Superior
Tribunal de Justiça decidiu, sob o regime dos recursos repetitivos, que “ajuizada ação coletiva
atinente à macro lide geradora de processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais,
no aguardo do julgamento da ação coletiva”109.
O fundamento utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça é o regime dos recursos
repetitivos, que se aplicaria analogicamente ao regime de suspensão da lide individual ante o
ajuizamento da ação coletiva.
Portanto, embora não requerida a suspensão pelo particular, o juiz poderá de ofício
determiná-la. Uma vez julgada improcedente a coletiva, a ação individual suspensa retoma seu
curso. Procedente a coletiva, a individual pode ser extinta (por falta de interesse) ou ainda ser
VI – a sentença penal condenatória transitada em julgado; 106 Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. 107 Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para
as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo
anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar
da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva. 108 Presume-se que tenha ciência dos processos ajuizados contra si. No entanto, considerando finalmente a implantação de um
banco de ações coletivas no Estado de São Paulo (Comunicado Conjunto n. 528/2019 da Presidência e Corregedoria Geral de
Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), parece-nos que, com implantação e regular funcionamento do mencionado banco, competirá ao autor indicar ter realizado a pesquisa, apontando os resultados obtidos. 109 REsp 1110549/RS, Rel. Min. Sidnei Beneti, Segunda Seção, j. 28-10-2009.
60
convertida em liquidação, passando-se tão somente à discussão sobre o nexo de causalidade e
quantificação do dano.
Outra questão debatida na doutrina e na jurisprudência envolvendo o tema diz respeito
à situação em que a ação individual, na qual não foi noticiada a existência de processo coletivo,
foi julgada improcedente com trânsito em julgado; todavia, posteriormente, prolatou-se
sentença em processo coletivo favorável ao indivíduo lesado, que se encaixa na situação
tutelada pela sentença coletiva.
Há na doutrina duas posições sobre a possibilidade de aproveitamento dessa segunda
sentença coletiva procedente. Para Ada Pellegrini Grinover, não seria possível aproveitá-la,
pois a coisa julgada individual é específica e, por isso, deve prevalecer sobre a decisão coletiva,
que é genérica.
Por outro lado, para Hugo Nigro Mazzilli, seria possível aproveitar a segunda sentença,
coletiva, relativizando-se a anterior proferida no processo individual, sob o fundamento do
princípio da isonomia e por ser a segunda sentença mais abrangente que a outra; além disso,
não é possível admitir coisa julgada em detrimento de direitos fundamentais110:
Cabe lembrar a advertência de Mauro Cappelletti, no sentido de que, em matéria de
conflitos transindividuais, os tradicionais limites subjetivos e objetivos da coisa
julgada ‘caem como um castelo de cartas’. Não que devam ser simplesmente
desconsideradas todas as leis processuais em vigor; não é disso que se trata. Mas sim,
é necessário aplicar, com cuidados redobrados, normas que foram concebidas antes
para solucionar meros conflitos individuais que lides coletivas, em épocas nas quais
até então ainda não se tinha sequer cogitado de processos coletivos, de suas
peculiaridades e implicações111.
Há ainda na doutrina quem diferencie o momento de ajuizamento da ação coletiva em
relação ao processo individual. Para Patrícia Miranda Pizzol, se a ação coletiva foi ajuizada
após o processo individual sem que tal fato tenha sido informado na demanda individual, poderá
o indivíduo ajuizar – ainda que seu processo seja julgado improcedente com trânsito em julgado
– diretamente ação de liquidação/execução com base na ação coletiva favorável112.
Todavia, ressalva a autora que se a ação individual tiver sido julgada improcedente
antes da propositura da ação coletiva, então não será possível ao indivíduo se aproveitar da
coisa julgada do processo coletivo113.
3.4.4 Limitação territorial
110 MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 646-647. 111 MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 648. 112 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, pp. 424-425. 111 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, p. 425.
61
Conforme já apontamos, o processo coletivo sempre foi motivo de preocupação para
os detentores do poder (não apenas político, mas também econômico), que viam nele uma
poderosa ferramenta de ingerência nas decisões governamentais, de tutela do meio ambiente,
do consumidor, conferindo poderes relevantes aos agentes públicos (notadamente juízes e
membros do Ministério Público).
Em razão disso, foi editada a Lei n. 9.494/1997 que, dentre inúmeros dispositivos
limitativos da atuação judicial em face da Fazenda Pública, alterou a redação conferida ao artigo
16 da Lei de Ação Civil Pública, que passou a ter o seguinte texto:
Art. 16 – A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência
territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por
insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra
ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.
Discute-se, há muito, na doutrina a constitucionalidade do dispositivo. Para uma
primeira corrente, o dispositivo é constitucional e adequado, pois a jurisdição se limita ao
território em que é exercida, não podendo a decisão de um juiz estadual valer em outro114.
Segundo Hely Lopes Meirelles,
não apenas a regra do art. 16 da Lei n. 7.347/1985 está correta de um ponto de vista
sistêmico, de harmonia do sistema processual como um todo, e das distribuições
constitucionais de competência entre os vários magistrados do país, como não cabe
ao intérprete buscar uma justificativa elaborada para concluir que o legislador editou
norma inútil115.
No mesmo sentido, Eduardo Arruda Alvim sustenta a constitucionalidade do
dispositivo e a plena eficácia da limitação para todos os tipos de ação civil pública,
independentemente do direito tutelado116.
No Supremo Tribunal Federal, em decisão de 17-7-1997 (DJ 07-08-1997), o Ministro
Marco Aurélio julgou prejudicada a ADIn n. 1.576, que questionava a constitucionalidade da
Medida Provisória n. 1.570/97, cujo art. 3º alterou o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, sob
o argumento de que, de fato, a eficácia erga omnes estaria adstrita à competência territorial do
juiz prolator.
114 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 217. 115 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 217, nota 63. 116 ALVIM, Eduardo Arruda. Apontamentos sobre o processo das ações coletivas. In: (coord.) MAZZEI, Rodrigo;
NOLASCO, Rita Dias. Processo civil coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, pp. 56-58.
62
Por outro lado, parte da doutrina entende ser aplicável apenas a depender do direito
tutelado. Segundo Teori Zavascki, a interpretação literal do artigo 16 da Lei de Ação Civil
Pública leva à conclusão incompatível com o instituto da coisa julgada, pois não seria possível
cindir territorialmente a qualidade da sentença ou da relação jurídica nela certificada117.
Todavia, o objetivo da alteração legislativa veiculada pela Lei n. 9.494/1997, segundo
o autor, era limitar a eficácia subjetiva da sentença e, consequentemente, limitar o rol dos
substituídos no processo, o que somente seria possível no caso de direitos individuais
homogêneos, eis que, neste caso, tratam-se de direitos individuais e divisíveis. É possível a
cisão da tutela jurisdicional em função do domicílio dos respectivos titulares, por serem
individualizados118.
Portanto, para o autor, o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, ao mencionar a eficácia
territorial da coisa julgada, aplica-se somente às sentenças proferidas em ações coletivas para
tutela de direitos individuais homogêneos, mas não às sentenças que tratam dos direitos difusos
e coletivos stricto sensu, eis que, neste caso, os titulares não estão individualizados.
Por fim, para uma terceira corrente doutrinária, o artigo 16 da Lei de Ação Civil
Pública é manifestamente ineficaz e inconstitucional.
Nelson Nery Junior assim sustenta a inconstitucionalidade:
A norma, na redação dada pela Lei n. 9.494/97, é inconstitucional e ineficaz.
Inconstitucional por ferir os princípios do direito de ação (CF, 5º, XXXV), da
razoabilidade e da proporcionalidade e porque o Presidente da República a editou, por
meio de medida provisória, sem que houvesse autorização constitucional para tanto,
pois não havia urgência [...], nem relevância, requisitos exigidos pela CF, 62, caput119.
Os autores prosseguem apontando a confusão do legislador entre coisa julgada e
competência, o que resultou na inutilidade da alteração do artigo 16 da Lei de Ação Civil
Pública. Nesse sentido, conforme exemplos amplamente conhecidos trazidos pelos autores,
quem é divorciado em São Paulo também é divorciado em Manaus; se um produto vendido em
todo território nacional é lesivo à saúde ou à segurança do consumidor em São Paulo, também
é lesivo a um consumidor em Manaus120, de modo que é inaplicável o dispositivo.
Sobre o tema, Hugo Nigro Mazzilli afirma:
sobre estar tecnicamente incorreta, a alteração legislativa trazida ao art. 16 da LACP
pela Lei n. 9.494/97 é ainda inócua, pois o Código de Defesa do Consumidor não foi
117 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017, p. 73. 118 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017, p. 73. 119 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade Nery. Constituição Federal comentada e legislação
constitucional. São Paulo: RT, 2006, p. 515. 120 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade Nery. Constituição Federal comentada e legislação
constitucional. São Paulo: RT, 2006, p. 515.
63
modificado nesse particular, e a disciplina dos arts. 93 e 103 é de aplicação integrada
e subsidiária nas ações civis públicas de que cuida a Lei n. 7.347/1985 (art. 21
desta)121.
A divisão doutrinária se refletiu na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Inicialmente, a Corte Especial adotou o entendimento de dar eficácia ao art. 16 da Lei de Ação
Civil Pública, sendo o EREsp n. 293.407/SP (Rel. Min. João Otávio de Noronha, Corte
Especial, DJ 01-08-2006) o primeiro a versar especificamente sobre a questão. Conforme a
ementa do julgamento:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AUSÊNCIA DE DISSENSO ENTRE OS
ARESTOS CONFRONTADOS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SENTENÇA. EFEITOS
ERGA OMNES. ABRANGÊNCIA RESTRITA AOS LIMITES DA COMPETÊNCIA
TERRITORIAL DO ÓRGÃO PROLATOR. 1. Não há falar em dissídio
jurisprudencial quando os arestos em confronto, na questão em foco, decidem na
mesma linha de entendimento. 2. Nos termos do art. 16 da Lei n. 7.347/85, alterado
pela Lei n. 9.494/97, a sentença civil fará coisa julgada erga omnes nos limites da
competência territorial do órgão prolator. 3. Embargos de divergência não-
conhecidos.
O entendimento foi perfilhado ao longo dos anos seguintes: REsp 399.357/SP, Rel.
Min. Fernando Gonçalves, 2ª Seção, j. 5-10-2009; AgRg no REsp 573.868/RS, Rel. Min. João
Otávio de Noronha, 4ª Turma, j. 15-10-2009, DJe 26-10-2009.
O entendimento da Corte Especial foi revisto no julgamento do recurso especial
repetitivo (representativo de controvérsia) 1.24.887/PR, Corte Especial, Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, j. 19-10-2011, com expressa menção à mudança de entendimento no âmbito do
Tribunal Superior:
[...] A antiga jurisprudência do STJ, segundo a qual “a eficácia erga omnes
circunscreve-se aos limites da jurisdição do tribunal competente para julgar o recurso
ordinário” (REsp 293.407⁄SP, Quarta Turma, confirmado nos EREsp. n. 293.407⁄SP,
Corte Especial), em hora mais que ansiada pela sociedade e pela comunidade jurídica,
deve ser revista para atender ao real e legítimo propósito das ações coletivas, que é
viabilizar um comando judicial célere e uniforme em atenção à extensão do interesse
metaindividual objetivado na lide [...] Nessa linha, o alcance da sentença proferida em
ação civil pública deve levar em consideração o que dispõe o Código de Defesa do
Consumidor acerca da extensão do dano e da qualidade dos interesses metaindividuais
postos em juízo. O norte, portanto, deve ser o que dispõem os arts. 93 e 103 do Código
de Defesa do Consumidor. [...] Portanto, se o dano é de escala local, regional ou
nacional, o juízo competente para proferir sentença, certamente, sob pena de ser
inócuo o provimento, lançará mão de comando capaz de recompor ou indenizar os
danos local, regional ou nacionalmente, levados em consideração, para tanto, os
beneficiários do comando, independentemente de limitação territorial.
121 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 307.
64
Após o julgamento do aludido EREsp, o entendimento foi sendo mantido e se
consolidou, como se infere dos seguintes arestos: EDcl no AgInt no AREsp 965.951/PR, Rel.
Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 25-04-2017, DJe 08-05-2017; AgInt no REsp
1586486/MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 27-06-2017.
Portanto, atualmente, o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento consolidado no
sentido de negar eficácia ao art. 16 da Lei de Ação Civil Pública e afastar a limitação territorial
nele prevista, prevalecendo o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor quanto ao regime
jurídico da coisa julgada coletiva. O precedente paradigmático é o recurso especial repetitivo
(representativo de controvérsia) n. 1.243.887/PR, rel. Min. Luís Felipe Salomão,
posteriormente ratificado no julgamento do EREsp n. 1134957/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, Corte
Especial, j. 24-10-2016.
No julgamento dos Embargos de Divergência no REsp n. 1.134.957/SP, realizado em
24-10-2016 e publicado em 30-11-2016, decidiu-se que é indevido limitar a eficácia das
decisões proferidas em ações civis públicas coletivas ao território da competência do órgão
judicante. A Ministra relatora afirmou (fl. 20 do acórdão) que “o entendimento firmado pela
Corte Especial contempla todos os gêneros das ações coletivas”, ou seja, a vedação dessa
limitação estende-se aos direitos coletivos indistintamente (direito coletivo em sentido estrito,
difuso ou individual homogêneo).
65
4 O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/2015 E SEUS INSTRUMENTOS DE
ENFRENTAMENTO À LITIGIOSIDADE DE MASSA E REPETITIVA
4.1 Os precedentes vinculantes no Código de Processo Civil /2015
Conforme já abordamos, a evolução dos direitos supraindividuais conduziu a um
processo de massificação das relações sociais e, consequentemente, dos processos judiciais.
Aliado a isso, o modelo jurídico pós-positivista, no qual a norma jurídica passou a
ser integrada por valores morais e cláusulas abertas, confere maior abertura ao intérprete e
aplicador, gerando mais dispersão jurisprudencial, eis que a abertura semântica permitiu que
diversas interpretações fossem retiradas do mesmo texto legal.
Preocupado com tal dispersão jurisprudencial, supostas violadoras da segurança
jurídica e igualdade, e visando ainda enfrentar a litigiosidade repetitiva e de massa, o legislador
brasileiro pretendeu criar um regime inédito de precedentes no sistema civil law ao criar
instrumentos como o incidente de demanda repetitiva e o incidente de assunção de competência,
cujos entendimentos devem ser aplicados pelos demais órgãos do Poder Judiciário, conforme
rege o artigo 927 do Código de Processo Civil.
4. 1.1 Legislação brasileira e inovação do Código de Processo Civil /2015
Embora pareça à primeira vista, a preocupação em relação à dispersão jurisprudencial
e aos precedentes não é tema inédito no direito brasileiro, mas objeto de preocupação desde
meados do século XIX122.
A Constituição Federal de 1891, que por influência de Rui Barbosa adotou o judicial
review, previu em seu artigo 59, § 2º: “nos casos em que houver de aplicar leis dos Estados, a
Justiça Federal consultará a jurisprudência dos Tribunais locais, e vice-versa, as Justiças dos
Estados consultarão a jurisprudência dos Tribunais Federais, quando houverem de interpretar
leis da União”123.
122 “Quando com as mesmas leis variam as decisões e casos idênticos, aggrava-se o mal a ponto de ser melhor viver sem lei
alguma. Estamos nestas circumstancias desanimadoras. Interpreta-se a lei como cada um quer; não há limite para a liberdade
de julgar, e desta liberdade, tão ampla póde abusar, sem receio algum, desde o juiz de paz até o ministro da justiça, e este,
talvez, com mais algum receio” (sic). CASTRO, José Antônio de Magalhães. Decadência da magistratura brasileira; suas
causas e meios de restabelecê-la. Rio de Janeiro: Typographia de N.L. Vianna e filhos, 1862 apud VIANA, Aurelio; NUNES,
Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 182. 123 Redação original, posteriormente alterada pela Emenda Constitucional n. 3 de 1926. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em: 29 mar. 2020.
66
No mesmo sentido, o Decreto n. 23.055/1933 determinou a obrigação de os órgãos
judiciais inferiores interpretarem as leis de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal124.
Posteriormente, criou-se o instituto da súmula da jurisprudência dominante no âmbito
do Supremo Tribunal Federal, por meio de emenda ao regimento interno datada de 1963125.
Além destes, há inúmeros outros exemplos mais recentes nas ondas de reformas do
Código de Processo Civil/1973, além da própria Emenda Constitucional n. 45/2004 que criou
a súmula vinculante.
De fato, o processo civil brasileiro, desde o Código de 1973, passou por alterações
visando tutelar com efetividade a referida modificação na sociedade e nas relações comerciais.
Passou-se de uma visão exclusivamente voltada ao litígio individual para uma visão
cada vez mais preocupada com a tutela coletiva, revelada por meio de alterações legislativas
que parte da doutrina tratou como “ondas”126 de reformas. No entanto, a despeito destas
reformas, a dispersão jurisprudencial continuava e o volume de recursos aos tribunais
superiores crescia continuamente.
Foi neste cenário e visando garantir maior segurança jurídica, isonomia, razoável
duração do processo127 e desestímulo à litigância que o legislador brasileiro buscou implantar
um sistema de precedentes no Código de Processo Civil/2015.
A pretensão, parece-nos, foi realmente implantar um sistema, ou seja, verdadeiramente
um conjunto de elementos e ideias entre as quais se pode encontrar uma relação, eis que o
Código é todo permeado pela influência dos precedentes nos diversos momentos do iter
processual128.
Essa inovação decorre de um fenômeno já analisado pela doutrina no sentido de uma
aproximação, de uma convergência, entre os sistemas de civil law e common law.
124 VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 184. 125 LEAL, Victor Nunes. Passado e futuro da súmula do STF. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro.
Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43387/42051. Acesso em: 26 mar. 2020. 126 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017. 127 “A importância dada pelo CPC às técnicas de uniformização da jurisprudência (recursos repetitivos, incidente de
resolução de demandas repetitivas, assunção de competência) também encontra fundamento na Constituição Federal,
especialmente nos princípios da duração razoável do processo e da isonomia, tendo em vista seus objetivos: promover a segurança jurídica e isonomia, agilizar a prestação jurisdicional e racionalizar o trabalho do Judiciário”. PIZZOL, Patrícia
Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 534. 128 Exemplos: o artigo 311, II, permite a concessão de tutela provisória de evidência, se as alegações de fato puderem ser
comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos ou repetitivos ou em súmula
vinculante; o artigo 332 possibilita o julgamento liminar de improcedência; pela possibilidade de obstar o processamento de
recurso caso a tese seja contrária ao precedente (art. 1.030, I, CPC); em caso de admissibilidade, pode o relator decidir
monocraticamente (art. 1.011, I c/c art. 932, IV e V); dispensa-se a remessa necessária (art. 496, § 4º); dispensa-se a caução
para levantamento de dinheiro e valores e a prática de atos que importem transferência de posse ou propriedade no cumprimento provisório de sentença (art. 520, IV c/c art. 521, IV); permite-se o manejo de ação rescisória se a decisão
contrariar súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos.
67
Apesar disso, Ronaldo Cramer conclui: “nosso sistema jamais deixará de ser de direito
legislado, mas será conjugado com um sistema de precedentes, que, por sua vez, criará as
normas tão somente a partir das leis”129.
O passo dado pelo Código de Processo Civil/2015 é, sem dúvida, muito maior.
Pretendeu-se, dada a redação do artigo 927 do diploma, atribuir-se eficácia vinculante
a um extenso rol de decisões tomadas pelos tribunais130.
Há, na doutrina, cinco correntes sobre a eficácia vinculante do rol de precedentes
trazido pelo artigo 927 do Código de Processo Civil, variando cada uma delas quanto à extensão
da eficácia vinculante. Há os que consideram a vinculação por meio de lei ordinária
inconstitucional, como Nelson Nery Junior e Rosa Maria Nery131, até aqueles que estendem o
efeito vinculante a toda e qualquer decisão emanada das Cortes Supremas (Supremo Tribunal
Federal e Superior Tribunal de Justiça), como Luiz Guilherme Marinoni, Sergio Arenhart e
Daniel Mitidiero132.
Para o fim pretendido nesse trabalho, admitiremos como premissa a (pretensa)
existência de um regime de vinculação que vai além do já previsto para as súmulas vinculantes
(art. 103-A da Constituição Federal de 1988) e para as decisões proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal no controle concentrado de constitucionalidade (art. 102, §2º, da Constituição
Federal de 1988).
Em razão disso, o modelo de precedentes traçado pelo Código de Processo Civil/2015
demanda uma correta interpretação sob pena de revelar indevida afronta ao modelo
constitucional de processo previsto na Constituição Federal.
4.1.2 Crítica e adequação ao sistema brasileiro
O pós-positivismo caracterizou-se pelo abandono do modelo que desenhava as
regras como obrigatórias e os princípios como meras diretrizes informativas e integrativas. Com
isso, os princípios, sobretudo aqueles previstos no texto constitucional, passam a ser alçados ao
129 CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais. Teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 33. 130 Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de
constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou
de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados
das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria
infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. 131 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT,
2015, pp. 1835-1846. 132 VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, pp.
214-216.
68
topo do ordenamento, passando a orientar a elaboração, interpretação e aplicação de todo o
direito.
Assim, deixou-se de reconhecer a lei escrita e rígida como única solução para os
conflitos, para conceber-se um modelo integrado por valores morais e cláusulas abertas, que
permitiriam uma interpretação mais ampla e que não conduzisse à aplicação de leis desprovidas
de qualquer fundamento humano ou moral, como ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial.
Conforme previsto, a evolução causou grandes reflexos na teoria do direito e da
hermenêutica, mas também no papel do Poder Judiciário. Em um modelo positivista clássico,
como o francês, a atividade interpretativa dos juízes era arduamente combatida, e isso já antes
da Revolução Francesa. Nesse modelo, os “julgamentos devem ser sempre silogísticos e
mecânicos, dando lugar a simples declarações fiéis dos textos precisos das leis que lhes servem
de base”133.
Esta forma de controle da interpretação judicial tempos depois deu origem à
conhecida Escola da Exegese, que preconiza justamente ser o juiz tão somente a boca da lei,
não lhe cabendo interpretá-la. No entanto, com a evolução da ciência do direito e diante das
barbáries ocorridas na Segunda Guerra Mundial, a norma jurídica passou a encampar valores
morais e a conter cláusulas abertas, fenômeno que teve importantes reflexos não apenas na
Constituição Federal de 1988, mas também na legislação ordinária.
O Código Civil de 2002 parece-nos relevante exemplo ao positivar, por exemplo, a
função social da propriedade e a boa-fé objetiva, cláusulas abertas que conferem ao aplicador
uma margem de interpretação bastante ampla.
Não bastasse, é inerente ao uso da linguagem, ante o seu caráter equívoco e
plurívoco, a impossibilidade de “fechamento” do sistema com base apenas no texto legal.
Assim, é clara a constatação de que
os textos são equívocos porque ambíguos, complexos, implicativos, defectivos e por
vezes se apresentam em termos exemplificativos ou taxativos. As normas são vagas
porque não é possível antever exatamente quais são os fatos que recaem nos seus
respectivos âmbitos de incidência134.
A introdução de conceitos vagos e indeterminados135, a integração de princípios
com alta carga de abstração e o caráter equívoco da linguagem são os ingredientes perfeitos
133 MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 3.ed. São Paulo: RT, 2018, p. 49. 134 MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 3.ed. São Paulo: RT, 2018, p. 61. 135 Ronaldo Cramer, após mencionar o fenômeno da perda da centralidade dos Códigos nos países de tradição de civil law,
citando Marinoni, conclui: “com os conceitos indeterminados, o Judiciário passou a desempenhar uma função efetivamente
criativa do direito, sendo certo que as decisões judiciais se tornaram relevantes para identificar a norma jurídica derivada desse tipo de texto legal”. CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais. Teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p.
31.
69
para uma maior indeterminação do direito e consequente maior liberdade para o intérprete,
desenvolvendo-se, assim, diversas teorias ligadas à argumentação jurídica e à interpretação das
normas jurídicas, destinadas a verificar a adequação e a correção da interpretação levada a efeito
pelo aplicador.
O positivismo jurídico buscava sua cientificidade no direito e no ordenamento
jurídico, acreditando em sua completude e capacidade de resolver todos os problemas de
aplicação e interpretação.
O pós-positivismo, por sua vez, busca sua cientificidade nas técnicas de
interpretação, argumentação e aplicação do direito, visando conferir certo grau de racionalidade
e de previsibilidade na atividade interpretativa dos aplicadores do direito.
Apesar disso, segundo o modelo preconizado no Brasil, as decisões tomadas no rol
previsto no artigo 927 do Código de Processo Civil devem ser aplicadas de forma obrigatória
pelos juízes e demais tribunais, como se fossem normas jurídicas prontas e acabadas.
Primeiro porque não se pode importar modelos estrangeiros para um país sem qualquer
tradição jurídica, econômica e social de common law como se por meio de um direito mágico
se pudesse alterar a tradição jurídica construída ao longo dos anos. Mudança como essa deve
ser gradual. O Código de Processo Civil, legislação ordinária, não tem a vocação ou capacidade
para promover uma ruptura sistêmica tão importante no ordenamento136.
Ademais, o modelo é sui generis, pois está dissociado do modelo adotado no próprio
common law, eis que lá a formação do precedente se dá a posteriori. É o juiz do caso concreto
em julgamento que, analisando casos anteriores, vai extrair a ratio decidendi137 e estabelecer
ou não a formação do precedente. É, assim, no “diálogo comparatístico entre os casos
(precedente e sucessivo) que se pode falar, verdadeiramente, em precedente”138.
No modelo de precedentes brasileiro é o contrário. Buscam-se estabelecer normas para
decidir, de forma vinculante e obrigatória, os casos futuros, com a nítida pretensão de “impedir
a ulterior interpretação de um texto por advogados, juízes e tribunais sucessivos, algo que
despreza as indicações alcançadas no âmbito da filosofia da linguagem e especialmente da
hermenêutica”139.
136 VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 219,
nota 124. 137 “Aliás, o problema da elaboração ou descoberta da ratio decidendi ganha contornos ainda mais complexos ao se recordar
que no direito estrangeiro existem inúmeras técnicas apresentadas como idôneas para extraí-la. Isso significa, de modo muito
singelo, que a própria definição da ratio decidendi faz parte de um processo bastante complexo e, portanto, não é nenhum
exagero pensar em consideráveis divergências entre tribunais e Cortes Supremas sobre aquilo que se possa considerar a ratio
do caso”. VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018,
p. 258. 138 VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 257. 139 VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 259.
70
A tentativa tem a mesma pretensão do positivismo: aplicação obrigatória de um texto,
sem margem para qualquer interpretação.
Na verdade, pretende-se equiparar a tese julgada no precedente, identificável
geralmente entre aspas ou sob algum número, à norma jurídica, ou seja, ao texto normativo já
objeto de interpretação pelo intérprete. Todavia, é bastante claro que para “identificação,
compreensão e aplicação do precedente é indispensável levar em consideração as razões fático-
jurídicas que presidiram a sua formação”140.
A pretensão de equiparar a decisão com efeito vinculante à norma jurídica é dissociada
das teorias de interpretação jurídica, pois norma é a interpretação conferida a um texto. Não há
norma antes da interpretação ou independentemente dela, pois interpretar é produzir uma norma
e ela é produto do intérprete141.
Segundo Georges Abboud, “a atribuição de efeito vinculante a determinados
pronunciamentos (decisões/súmulas) não retira a obrigatoriedade de se interpretar esses textos
na ocasião da incidência do efeito vinculante que eles possuem”142.
Ademais, conforme pontuou Alexandre Bahia:
Hoje, em pleno século XXI, no âmbito teórico, querem instituir não mais um juiz
‘boca da lei’, mas um juiz boca da jurisprudência, na medida em que deveria obedecer
teologicamente aos conteúdos de decisões ou súmulas dos tribunais superiores. Em
plano técnico, a instituição de mecanismo de vinculação decisória (súmula e decisões
vinculantes) tende à centralização da Jurisdição nos tribunais superiores, mediante a
imposição vertical de dado entendimento judicial, de sorte que ‘nenhum outro juízo
poderá mais ser rebelde’143.
A concentração de poder nas Cortes Supremas é outra consequência da aplicação
indiscriminada do modelo de vinculação decisória pretendida pelo legislador, pois confere aos
tribunais superiores a prerrogativa de selecionar os casos que querem julgar, de modo que
passam a escolher as matérias e casos que consideram efetivamente importantes144.
Assim, é grande o risco de se conferir um poder exacerbado às Cortes Supremas,
dotando-as do poder de criar normas jurídicas abstratas, de evidente caráter legiferante145, com
aplicação vinculante e obrigatória aos demais órgãos do Poder Judiciário.
140 MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 3. ed. São Paulo: RT, 2017, p. 85. 141 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 65. 142 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 679. 143 BAHIA, Alexandre apud PINHEIRO, Guilherme César. A vinculação decisória no Estado Democrático de Direito. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 53. 144 VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 233. 145 Interessante observar a profusão dos precedentes: apenas no Superior Tribunal de Justiça há 1.036 temas de recursos
repetitivos cadastrados. Disponível em: http://www.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?&l=10&i=1031. Acesso em: 29 mar. 2020. Além disso, há centenas de IRDRs nas cortes locais, recursos extraordinários julgados com
repercussão geral, as mais de mil súmulas dos Tribunais Superiores e outras centenas dos tribunais estaduais.
71
Sob o argumento de evitar a dispersão jurisprudencial e racionalizar a atividade
jurisdicional, criou-se o instrumento de fechamento do sistema aberto trazido pelo pós-
positivismo, mas fechamento ocorrido não por meio da lei, que sempre pode ser sindicada pelo
Poder Judiciário (artigo 5º, XXXV, Constituição Federal de 1988), mas por meio de precedente
vinculante formado por Cortes Superiores, insuscetível de interpretação e de automática e
obrigatória aplicação146.
Portanto, os precedentes vinculantes preconizados pelo Código de Processo Civil
devem ser tidos como texto, exigindo sempre a devida interpretação pelo aplicador, verificando
se a ratio decidendi que orientou a prolação do precedente se encontra presente no caso em
julgamento.
4.2 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR)
A explosão da litigiosidade, causada, como vimos, não só pela evolução das relações
comerciais e sociais, mas também pela concessão benevolente e pouco criteriosa de assistência
judiciária gratuita culminou em situação de verdadeiro caos processual: a explosão no número
de processos e o aumento na taxa de congestionamento no Poder Judiciário.
Percebeu-se também, em paralelo, que era relevante o número de demandas idênticas,
ajuizadas individualmente por cada lesado, em detrimento do manejo processo coletivo.
Contudo, verificou-se também que, embora idênticas, as demandas acabavam por
receber decisões diversas, a depender do Tribunal, Câmara, Comarca ou Vara na qual fora
ajuizada.
Soma-se a tudo isso a timidez e pouca efetividade da tutela processual coletiva e a
insuficiente visão privatista e individualista do processo civil tradicional e obtém-se terreno
fértil para alterações legislativas.
No mesmo sentido, a constatação da doutrina:
146 Sobre o tema, Ricardo Dip arremata: “[...] a intensa polarização de julgados levou, no Brasil, à instituição de mecanismos
aptos a ‘regular os princípios’ – ou seja, a, de fato, converter judicialmente a indeterminação dos princípios em textos
regulatórios. Isso se opera, segundo a Constituição brasileira, mediante o efeito vinculativo e contra todos das decisões definitivas de mérito, proferidas pela Suprema Corte Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de
constitucionalidade, como também por meio da edição de súmulas dessa Corte com eficácia vinculante. O resultado prático
parecerá – por seu suposto geral e abstrato – a implantação de um plenário reino de regras, apenas que, em vez de vindas do
Parlamento, ditadas, para empregar a expressão de Édouard Lambert, por um gouvernement de juges. De fato, se a palavra
judicial de co-determinação do direito não se limita à situação do caso singular, mas tem uma inevitável vocação genérica,
está-se diante de um governo de juízes: emerge aí o que Gérard Timsit designou ‘poder ventríloquo’, um poder que tende a
falar por sua boca em lugar da lei... um poder vencido pela “tentação de ser ele próprio a lei, em vez de dizê-la”. DIP,
Ricardo. Os direitos humanos do neoconstitucionalismo: direito natural da pós-modernidade? Revista Aquinate, n. 17 (2012), pp. 13-27. Disponível em: http://www.aquinate.com.br/wp-content/uploads/2016/11/C.Aq.17.Art.Dip.pp.13-27.pdf.
Acesso em: 26 mar. 2020.
72
o processo civil clássico, de bases essencialmente individuais, demonstrou-se incapaz
de contingenciar essa explosão de demandas isomórficas. Por outro lado, as ações
coletivas, embora constituam importante evolução para a tutela de direitos coletivos,
não se mostraram, por si só, ainda, na prática e dentro da realidade brasileira,
suficientes em conferir à litigiosidade repetitiva exaustiva tutela, especialmente em
razão do sistema brasileiro de extensão dos efeitos da coisa julgada secundum eventum
litis, da possibilidade de ajuizamento concomitante de ações individuais e da restrita
legitimação ativa147.
Não é nova, porém, a constatação da insuficiência do sistema processual para o
enfrentamento da litigiosidade de massa; há inúmeros outros exemplos para a coletivização dos
litígios individuais massificados:
(a) Improcedência liminar (art. 285-A do CPC/73);
(b) Súmula impeditiva de recursos (art. 518, §1º, do CPC/73);
(c) Súmula vinculante (art. 103-A da CF/1988 e Lei n. 11.417/2006);
(d) A repercussão geral no recurso extraordinário (art. 102, §3º da CF/1988 e art.
543-B do CPC/73);
(e) Os recursos repetitivos no âmbito do STJ (art. 543-C do CPC/73);
(f) O pedido de uniformização da interpretação da lei federal no âmbito dos
Juizados Especiais Cíveis federais (art. 14 da Lei n. 10.259/2001);
(g) O pedido de uniformização da interpretação de lei nos Juizados Especiais da
Fazenda Pública no âmbito dos Estado, do Distrito Federal, dos Territórios e dos
Municípios (arts. 18 e 19 da Lei n. 12.153/2009); e
(h) A suspensão de liminares para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança
e à economia públicas (art. 15, §5º, da Lei n. 12.016/2009)148.
Não obstante todos os esforços e alguns resultados positivos, sobretudo com os
recursos repetitivos, estas alterações não foram suficientes para estancar a sangria provocada
pela massa de processos individuais e repetidos ajuizados ano a ano.
É diante desse cenário que o Código de Processo Civil pretendeu avançar e inovar
ainda mais ao criar um regime inédito de precedentes e dois incidentes até então inexistentes:
o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, apontado como a verdadeira ‘coqueluche’
do novo Código, e o Incidente de Assunção de Competência.
O objetivo desta pesquisa não é detalhar o estudo das origens, do procedimento e as
minúcias do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e do Incidente de Assunção de
Competência, mas apenas traçar suas linhas gerais, a fim de identificar sua finalidade, de que
forma se inserem no ordenamento processual, suas principais deficiências e, principalmente,
verificar como se encaixam no sistema de enfrentamento da litigiosidade de massa.
4.2.1 Origem e conceito
147 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil. In: ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 582. 148 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016.
73
Notadamente após a Constituição Federal de 1988, o Poder Judiciário brasileiro passou
a sofrer com a multiplicação em escala geométrica dos processos ajuizados, causados, dentre
outros fatores: (i) pelo aumento da consciência jurídica dos cidadãos; (ii) pela ampliação dos
meios de comunicação de massa, estimulando a reivindicação de direitos; (iii) o
desenvolvimento desenfreado de novas tecnologias e da oferta de novos produtos; (iv) a crise
do Estado social e o consequente aumento da ingerência do Poder Judiciário em políticas
públicas149.
Contudo, as ações coletivas não foram suficientes para resolver com eficiência o
elevado volume de demandas de maneira que os conflitos de massa acabaram sendo resolvidos
individualmente, nos autos das milhares de demandas propostas. Isso ocorreu em parte em razão
de deficiências existentes no sistema de processo coletivo, como quantidade insuficiente de
entidades associativas, restrição temática prevista no parágrafo único do artigo 1º da Lei de
Ação Civil Pública, regime da coisa julgada secundum eventum litis e tentativa de limitação
territorial, dentre outros150.
É nesse contexto que o legislador brasileiro buscou uma nova forma de tutelar as
demandas de massa.
Segundo a exposição de motivos do Código de Processo Civil/2015, o IRDR tem por
finalidade evitar a dispersão excessiva da jurisprudência, atenuar o assoberbamento de trabalho
no Poder Judiciário e promover o andamento mais célere dos processos. Em outras palavras,
promover segurança, confiança legítima, igualdade, coerência na ordem jurídica, garantindo a
duração razoável do processo151.
Embora a exposição de motivos do Código de Processo Civil 152 tenha mencionado
somente a inspiração alemã do incidente, o IRDR é instituto com inspiração no procedimento-
modelo alemão (musterverfahren) e no Group litigation order (GLO) do direito inglês. Em
comum a ambos os institutos é a convivência com outros instrumentos de tutela coletiva.
149 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 117. 150 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no
Projeto de novo Código de Processo Civil. Repro, n. 193, p. 256. RT, 2011 apud CAVALCANTI, Marcos de Araújo.
Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, pp. 115-116. 151 Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/512422/001041135.pdf. Acesso em: 19 nov. 2018. 152 “[...] Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, o já referido incidente de Resolução de
Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta”. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/512422/001041135.pdf. Acesso em: 19 nov. 2018.
74
No direito alemão, o musterverfahren, a despeito da tradição pouco coletivista do
processo civil alemão, mais voltado à resolução de processos individuais e bilaterais153, há a
figura das ações de associações (verbandsklage) que permitem às associações, previamente
certificadas pela administração pública, defenderem direitos coletivos de determinada categoria
ou grupo homogêneo de pessoas identificáveis, sobretudo para a tutela de direitos da
concorrência, do consumidor e do meio ambiente154.
Da mesma forma, no direito inglês, o GLO convive, no enfrentamento dos litígios
coletivos, com as representative actions (processos por representação), previstas na Rule 19:6
do Código de Processo Civil inglês, verdadeira ação coletiva, com forte influência das class
actions do direito norte-americano155.
Outro ponto em comum entre ambos, em síntese e desconsideradas certas
peculiaridades de cada instituto estrangeiro156, é a previsão de instauração de um incidente de
julgamento perante um Tribunal ou Corte que analisará a questão comum a processos
individuais de natureza repetitiva, aplicando-se o resultado do julgamento (ou do entendimento
firmado) aos demais processos.
O IRDR é suscitado perante o tribunal onde se encontra o processo paradigma
pendente e tem por objetivo fixar uma tese jurídica a ser aplicada aos casos concretos a serem
abrangidos pela eficácia vinculante da decisão tomada157.
Segundo Marcos de Araújo Cavalcanti, o IRDR não tem natureza jurídica de ação ou
recurso, mas de incidente processual coletivo, eis que preenchidas as principais características
de um incidente processual: (i) acessoriedade (depende da existência de processos em
andamento); (ii) acidentalidade (representa um desvio no curso dos processos repetitivos, pois
serão suspensos até decisão final no IRDR); (iii) incidentalidade (incide sobre os processos em
andamentos e sobre os futuros); (iv) procedimento incidental e especial158.
Em razão disso, o autor conclui como principais características e consequências da
natureza jurídica de incidente processual: que a decisão tomada tem natureza de decisão
interlocutória (sujeita à preclusão e não coisa julgada); a instauração do IRDR não interrompe
153 “[...] A cultura jurídica alemã dificilmente simpatiza com a ideia de progresso social via ações coletivas e de massa. O
direito processual civil alemão tem preferência natural pela resolução de processos bilaterais, que digam respeito somente a duas partes”. CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p.
49. 154 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 50. 155 CONSOLO, Claudio; RIZZARDO, Dora. Due modio di mettere le azioni colettive alla prova: Inghilterra e Germani. In:
Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. v. 60, n. 3. Milano: Giuffrè, set. 2006 apud CAVALCANTI, Marcos de
Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 86. 156 Sobre o tema: CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT,
2016, capítulo 1. 157 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 179. 158 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 180.
75
a prescrição das pretensões individuais; o requerimento não demanda observância dos
requisitos próprios de uma petição inicial; não há citação, mas intimação; não haverá
condenação em honorários e não é cabível ação rescisória159.
4.2.2 Requisitos de admissibilidade
Optamos neste tópico por abordar os principais requisitos de admissibilidade do
instituto, guardando, todavia, para o capítulo próprio temas que poderiam ser aqui estudados,
notadamente no que diz respeito ao caráter repressivo do instituto, cabimento apenas para
questões de direito, ausência de suspensão do prazo prescricional da pretensão individual, etc.
Quanto aos requisitos estabelecidos para a instauração do incidente, o Código de
Processo Civil/2015, em seu artigo 976, estabeleceu dois deles para autorizar a instauração do
incidente: (a) efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão
unicamente de direito e (b) risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
Há ainda um requisito negativo de admissibilidade, previsto no artigo 976, § 4º do
Código de Processo Civil, consistente na inexistência de recurso afetado, no âmbito dos
tribunais superiores, para definição da tese objeto do IRDR pretendido160.
Abordaremos especificamente o caráter repressivo do IRDR em capítulo próprio. No
entanto, importante estatuir desde logo que o artigo 976 do Código de Processo Civil não exige
efetiva ofensa à isonomia e à segurança jurídica, ou seja, não é requisito a prévia existência de
decisões conflitantes em processos repetitivos que versem sobre questões unicamente de
direito161. Basta o risco aos referidos valores sem a exigência de efetiva violação162.
Em sentido contrário, sustentam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery,
citados por Marcos de Araújo Cavalcanti:
ao mencionar, como requisito para a instauração do incidente, risco de ofensa à
isonomia e à segurança jurídica, já pressupõe a existência de controvérsia; do
contrário, se a questão é sempre decidida de modo uniforme, ainda que tenha potencial
para a multiplicação de ações, não há razão para a instauração do incidente, pois não
há o que prevenir. Haveria inútil movimentação do aparelho judiciário, apenas. Por
isso o dispositivo comentado tenha exigido que os requisitos para a instauração do
incidente estivessem simultaneamente presentes163.
159 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016. 160 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 209. 161 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 213. 162 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 564. 163 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 214.
76
Segundo esse entendimento, sem divergência decisória não há risco aos princípios da
isonomia e da segurança jurídica, de modo que faltaria interesse no manejo do incidente
processual coletivo164.
Discute-se na doutrina se é necessário existir processos pendentes de julgamento no
âmbito do Tribunal competente para apreciação do IRDR ou se, ao contrário, basta que a
repetição dos processos se dê em primeiro grau.
O projeto de novo Código de Processo Civil aprovado pela Câmara, em seu art. 988,
§ 2º, continha previsão expressa no sentido de exigir a pendência de causa no Tribunal como
pressuposto para a instauração do IRDR. Contudo, o dispositivo foi retirado no Senado e não
constou do texto aprovado, a sugerir a desnecessidade da existência de processos pendentes no
tribunal, embora se alegue que a exigência decorreria da necessidade de maior amadurecimento
e debate da questão para se estabelecer o precedente vinculante.
A questão é bastante dividida na doutrina165. Parece-nos, todavia, que uma
interpretação do instituto em cotejo com os objetivos de promover segurança, confiança
legítima, igualdade, coerência na ordem jurídica, garantindo a duração razoável do processo,
revela-se incompatível com a exigência de se aguardar que as causas cheguem ao tribunal
respectivo.
Isso porque, por vezes, a questão em debate pode levar longos anos em primeiro grau
em razão da complexidade fática ou probatória, a exigir a produção de perícias, oitiva de
testemunhas, etc. Embora o IRDR não se destine a resolver questões fáticas (em tópico próprio
esta limitação será analisada), a resolução da questão de direito envolvida pode significar a
desnecessidade de toda a longa produção probatória.
Tomemos como exemplos os casos notórios de desastre ambiental envolvendo as
barragens de Mariana e Brumadinho. Exigir que os processos (individuais ou coletivos)
cheguem ao tribunal significa que o IRDR somente poderá ser manejado após anos e após o
ajuizamento de diversas demandas com custosa produção probatória.
Contudo, seria possível vislumbrar o manejo de IRDR logo após a ocorrência da
catástrofe ambiental a fim de se definir, por exemplo, a espécie de responsabilidade civil a ser
aplicada. A depender da definição jurídica tomada pelo tribunal competente, o longo trâmite
164 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 215. 165 Patrícia Miranda Pizzol aponta que Antonio do Passo Cabral, Alexandre Freitas Câmara e Marcos Araújo Cavalcanti
entendem ser indispensável a exigência de processo em trâmite no tribunal. Por outro lado, Cassio Scarpinella Bueno, Luiz
Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero, Aluisio Gonçalves e Sofia Temer sustentam ser dispensável.
PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019,
p. 565. O Fórum permanente de processualistas civis emitiu o enunciado 344: “a instauração do incidente pressupõe a existência de
processo pendente no respectivo tribunal”.
77
processual pode ser abreviado. Se o tribunal decidir que a responsabilidade é do tipo integral,
ou seja, independe da prova de culpa e situações de caso fortuito e força maior não excluírem
a responsabilidade, pouca ou quase nenhuma instrução probatória será necessária para fixar a
responsabilidade civil, abreviando o iter processual.
O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1.631.846/DF166, por sua terceira
Turma, embora tenha prevalecido para a solução do recurso apreciado o voto da Ministra Nancy
Andrighi que não conhecia do Recurso Especial por estar ausente hipótese de cabimento,
discutiu a necessidade de recurso em trâmite no tribunal como requisito de admissibilidade do
IRDR.
O voto da Ministra Nancy Andrighi, relatora do acórdão, limitou-se a analisar o não
conhecimento do recurso especial em razão de o acórdão do tribunal local que rejeita a
instauração de IRDR não se tratar de causa decidida apta a ensejar o cabimento de Recurso
especial, conforme exigência constitucional que deflui do artigo 105, III, da Constituição
federal de 1988.
Os votos dos demais integrantes da Terceira turma, porém, também analisaram os
requisitos de cabimento do incidente. E quanto à imprescindibilidade de recurso em trâmite no
tribunal (de Justiça ou Regional federal) a questão terminou empatada. Para os Ministros Moura
Ribeiro e Marco Aurélio Belizze, não é requisito a existência de recurso pendente no tribunal
para instauração do IRDR. Por outro lado, para os Ministros Villas Boas Cueva e Paulo de
166 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS - IRDR.
ACÓRDÃO DE TRIBUNAL DE 2º GRAU QUE INADMITE A INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE. RECORRIBILIDADE AO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DESCABIMENTO. AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL.
POSSIBILIDADE DE NOVO REQUERIMENTO DE INSTAURAÇÃO DO IRDR QUANDO SATISFEITO O
REQUISITO AUSENTE POR OCASIÃO DO PRIMEIRO PEDIDO, SEM PRECLUSÃO.
RECORRIBILIDADE AO STJ OU AO STF PREVISTA, ADEMAIS, SOMENTE PARA O ACÓRDÃO QUE JULGAR O MÉRITO DO INCIDENTE, MAS NÃO PARA O ACÓRDÃO QUE INADMITE O INCIDENTE. DE CAUSA DECIDIDA.
REQUISITO CONSTITUCIONAL DE ADMISSIBILIDADE DOS RECURSOS EXCEPCIONAIS. AUSÊNCIA.
QUESTÃO LITIGIOSA DECIDIDA EM CARÁTER NÃO DEFINITIVO.
1- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) preliminarmente, se é cabível recurso especial do acórdão que inadmite a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas - IRDR; (ii) se porventura superada a preliminar, se a
instauração do IRDR tem como pressuposto obrigatório a existência de um processo ou de um recurso no Tribunal.
2- Não é cabível recurso especial em face do acórdão que inadmite a instauração do IRDR por falta de interesse recursal do
requerente, pois, apontada a ausência de determinado pressuposto, será possível a instauração de um novo IRDR após o preenchimento do requisito inicialmente faltante, sem que tenha ocorrido preclusão, conforme expressamente autoriza o art.
976, §3º, do CPC/15.
3- De outro lado, o descabimento do recurso especial na hipótese decorre ainda do fato de que o novo CPC previu a
recorribilidade excepcional ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal apenas contra o acórdão que resolver o mérito do Incidente, conforme se depreende do art. 987, caput, do CPC/15, mas não do acórdão que admite ou que
inadmite a instauração do IRDR.
4- O acórdão que inadmite a instauração do IRDR não preenche o pressuposto constitucional da causa decidida apto a
viabilizar o conhecimento de quaisquer recursos excepcionais, uma vez que ausente, na hipótese, o caráter de definitividade
no exame da questão litigiosa, especialmente quando o próprio legislador previu expressamente a inexistência de preclusão e
a possibilidade de o requerimento de instauração do IRDR ser novamente realizado quando satisfeitos os pressupostos
inexistentes ao tempo do primeiro pedido.
5- Recurso especial não conhecido. (REsp 1631846/DF, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI,
TERCEIRA TURMA, julgado em 05/11/2019, DJe 22/11/2019)
78
Tarso Sanseverino a existência de recurso em trâmite no tribunal local é requisito
indispensável167.
A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça também analisou, ainda que em obter
dictum a questão da necessidade de processo pendente no tribunal. No agravo interno na petição
11.838/MS168, a Corte Especial definiu questão que era bastante discutida na doutrina e
assentou, por maioria, a possibilidade de instauração de IRDR no Superior Tribunal de Justiça
nos casos de competência recursal ordinária e competência originária.
No voto do Ministro João Otávio de Noronha169, relator do acórdão e cujo voto foi
acompanhado pela maioria, constou a necessidade de demanda em curso no tribunal para
instauração do IRDR. E embora tal conclusão não tenha constado expressamente da ementa do
acórdão, foi fundamental para a conclusão do julgado, pois no caso em concreto entendeu-se
pela inviabilidade da instauração do IRDR no Superior Tribunal de Justiça em razão da
reclamação, que preencheria o requisito do processo em curso no tribunal, não ter superado o
juízo de admissibilidade.
Em que pesem os mencionados precedentes jurisprudenciais, a interpretação segundo
a qual não é requisito para instauração do incidente que as causas estejam em trâmite no tribunal
parece-nos mais consentânea com a adequada tutela das causas repetitivas, garantindo-se
celeridade e efetividade à reparação das lesões causadas.
Ademais, atenua-se o caráter apenas repressivo do IRDR, que será tratado em tópico
específico, evitando-se, ao menos, interpretação mais restritiva da pronta aplicabilidade do
incidente.
167 Íntegra do acórdão disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1811010&num_registro=201602633544&data=20191122&formato=PDF Acesso em: 20 jun. 2020. 168 AGRAVO INTERNO EM PETIÇÃO. RECLAMAÇÃO. INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS
REPETITIVAS (IRDR). INSTITUTO AFETO À COMPETÊNCIA JURISDICIONAL DE TRIBUNAIS DE SEGUNDA
INSTÂNCIA (ESTADUAIS OU REGIONAIS FEDERAIS). INSTAURAÇÃO DIRETA NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. POSSIBILIDADE RESTRITA. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS (ART. 976 DO
CPC). JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE NÃO ULTRAPASSADO. NÃO CABIMENTO DA INSTAURAÇÃO DO
INSTITUTO.
1. O novo Código de Processo Civil instituiu microssistema para o julgamento de demandas repetitivas - nele incluído o IRDR, instituto, em regra, afeto à competência dos tribunais estaduais ou regionais federal -, a fim de assegurar o tratamento
isonômico das questões comuns e, assim, conferir maior estabilidade à jurisprudência e efetividade e celeridade à prestação
jurisdicional.
2. A instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas diretamente no Superior Tribunal de Justiça é cabível apenas nos casos de competência recursal ordinária e de competência originária e desde que preenchidos os requisitos do art.
976 do CPC.
3. Quando a reclamação não ultrapassa o juízo de admissibilidade, não cabe a instauração do incidente de demandas
repetitivas no Superior Tribunal de Justiça.
4. Agravo interno desprovido
(AgInt na Pet 11.838/MS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA,
CORTE ESPECIAL, julgado em 07/08/2019, DJe 10/09/2019) 169 Íntegra disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1604133&num_registro=201603
303056&data=20190910&formato=PDF Acesso em: 21 jun. 2020.
79
Outro requisito de destaque é a exigência de que a questão seja unicamente de direito,
o que também será objeto de crítica em tópico próprio no próximo capítulo, eis que a opção
legislativa dissociou-se do modelo do musterverfahren.
Para a instauração e julgamento do incidente os tribunais readequaram seus regimentos
internos a fim de prever o órgão competente para o processamento do incidente. No Tribunal
de Justiça de São Paulo, atribuiu-se a competência às Turmas Especiais de cada Seção do
Tribunal (Direito Privado, Público e Criminal) a competência para julgamento, conforme inciso
I do artigo 32, ou ao Órgão Especial em matérias de sua competência, conforme artigo 13, I, m,
conforme regime interno do Tribunal170.
Até junho de 2020 já haviam sido julgados trinta e sete IRDR no âmbito do Tribunal
paulista. O site do Tribunal informa ainda se houve determinação de suspensão de processos e
quantos foram atingidos pela determinação, bem como informa os incidentes que foram
considerados inadmitidos e incabíveis e aqueles que se encontram pendentes de julgamento171.
4.2.3 Principais efeitos
4.2.3.1 Suspensão dos processos
Distribuído o incidente, o órgão competente do tribunal fará o juízo de admissibilidade
e, em caso de admissão, o relator adotará as medidas elencadas no artigo 982 do Código de
Processo Civil: (i) suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam
no Estado ou na região, conforme o caso; (ii) poderá requisitar informações a órgãos em cujo
juízo tramita processo no qual se discute o objeto do incidente, que as prestarão no prazo de 15
(quinze) dias; (iii) intimará o Ministério Público para, querendo, manifestar-se no prazo de 15
(quinze) dias.
A suspensão dos processos implica uma correta e adequada questão posta em
julgamento, permitindo-se a aplicação por analogia da regra prevista no artigo 1.036 do Código
de Processo Civil relativa aos recursos repetitivos no sentido de exigir a indicação precisa da
questão a ser apreciada no incidente172.
170 Disponível em:
http://www.tjsp.jus.br/Download/Portal/Biblioteca/Biblioteca/Legislacao/RegimentoInternoTJSP.pdf?d=1594164756315
Acesso em: 21 jun 2020. 171 Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/Download/Portal/Nugep/Irdr/IrdrsInadmitidos.pdf?d=1594165618117 Acesso em:
21 jun 2020. 172 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, p. 571.
80
O artigo 980 prevê o prazo de um ano para o julgamento do incidente, findo o qual
cessa a suspensão dos processos, salvo específica decisão contrária do relator.
No projeto do Código de Processo Civil/2015 havia expressa previsão, no artigo 990,
§ 4º, da possibilidade de o interessado requerer o prosseguimento do seu processo
demonstrando a distinção do seu caso ou, ao revés, requerer a suspensão/afetação se entendesse
que a situação de seu processo é a mesma posta em análise no IRDR.
O dispositivo, porém, não constou do projeto aprovado e foi retirado ao longo da
tramitação legislativa.
No entanto, é possível sustentar tal possibilidade por aplicação analógica da regra
contida no artigo 1.037, § 8º do Código de Processo Civil, segundo o qual as partes afetadas
pela suspensão de seus processos devem ser intimadas para terem a possibilidade de requerer o
prosseguimento do seu processo apontando a distinção do seu caso (§ 9º do artigo
mencionado)173.
No mesmo sentido o Enunciado 348 do Fórum Permanente de Processualistas Civis:
os interessados serão intimados da suspensão de seus processos individuais, podendo
requerer o prosseguimento ao juiz ou tribunal onde tramitarem, demonstrando a
distinção entre a questão a ser decidida e aquela a ser julgada no incidente de resolução
de demandas repetitivas, ou nos recursos repetitivos.
Da decisão que apreciar o requerimento de distinção formulado pela parte afetada pela
suspensão ocasionada pela instauração do IRDR caberá agravo de instrumento ou agravo
interno (artigo 1.037, §13, I e II do Código de Processo Civil/2015), a depender do órgão
jurisdicional no qual estiver tramitando o processo.
O artigo 982 do Código de Processo Civil parece bastante claro ao prever que o relator
suspenderá os processos com a mesma questão jurídica do incidente admitido, sugerindo que a
suspensão é obrigatória174 e inarredável, sobretudo se não for acolhido o pedido de distinção
formulado pela parte interessada.
Todavia, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery sustentam que não se
pode opor as vantagens do incidente sobre o particular de forma obrigatória, pois é característica
dos direitos fundamentais a oponibilidade ao Estado, como forma de limitá-lo.
Nesse sentido, afirmam:
173 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, pp. 285-
287. 174 No mesmo sentido o enunciado 23 da ENFAM: “É obrigatória a determinação de suspensão dos processos pendentes individuais e coletivos, em trâmite nos Estados ou regiões, nos termos do §1º do art. 1.036 do CPC/2015, bem como nos
termos do art. 1.037 do mesmo Código”.
81
Evidentemente que se a parte quiser que seu processo prossiga, tem o direito de assim
o exigir, de acordo com a CF, 5º, XXXV, porquanto fere a garantia constitucional do
direito de ação a determinação compulsória da paralisação do processo, em virtude da
instauração do IRDR. As garantias fundamentais da CF, 5º têm, ontologicamente e
em sua essência, a oponibilidade contra o Estado e o direito da coletividade175.
O regime de suspensão obrigatória preconizado pelo Código de Processo Civil/2015 é
diverso do previsto no artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor, no qual a parte poderá
requerer a suspensão de seu processo individual caso pretenda se valer da decisão proferida na
ação coletiva. A suspensão, porém, não é obrigatória (o que será alvo de críticas em capítulo
próprio).
O regime do IRDR não prevê qualquer forma de exclusão do litigante individual que
não queira ver seu processo suspenso em razão da instauração do incidente; não há qualquer
forma de opt out.
Sobre este aspecto, oportuna a crítica de Marcos de Araújo Cavalcanti:
Essa forma de vinculação absoluta fere o direito fundamental de ação (art. 5º, XXXV,
da CF/1988). Não há como o NCPC impedir o direito de a parte prosseguir com sua
demanda isoladamente, ou seja, fora do regime jurídico do IRDR. O sistema
processual deve sempre assegurar ao litigante o direito de opção. Essa possibilidade
de escolha decorre do direito fundamental de ação, de sorte que o legislador não pode
criar uma forma de vinculação absoluta pro et contra sem estabelecer mecanismos
processuais que assegurem seu pleno exercício 176.
Em razão do Código de Processo Civil não ter previsto a possibilidade de exclusão do
litigante individual do julgamento do IRDR (opt out), o autor propõe utilizar a regra do
microssistema processual coletivo (art. 104 do Código de Defesa do Consumidor) para suprir a
lacuna do Código de Processo Civil, permitindo que, em 30 dias, a parte interessada formule
requerimento para exclusão do julgamento do IRDR177.
Por fim, também é possível vislumbrar a suspensão apenas parcial em caso de
cumulação de pedidos. Desse modo, se houver independência entre os pedidos ou causa de
pedir e desde que eles não interfiram na produção de outras provas, é possível que a suspensão
atinja somente parte do objeto do processo do litigante individual e de eventuais atos
conexos178.
175 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT,
2015, p. 1968. 176 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, pp. 388-
389. 177 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 390. 178 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de resolução de demandas repetitivas: sistematização, análise e
interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 186.
82
4.2.3.2 Efeitos nos demais processos
O IRDR é, como visto, incidente voltado à fixação de determinada tese jurídica para
aplicação em todos os outros processos repetitivos que tratem da mesma questão de direito no
âmbito do respectivo tribunal, o que inclui as causas processadas perante os Juizados Especiais.
Em razão disso, o Código estabeleceu procedimento específico para o julgamento do
incidente, tendo em vista a importância e a repercussão do julgamento em inúmeros outros
processos. Previu-se, no artigo 983 do Código de Processo Civil, a possibilidade de oitiva de
pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, os amicii curiae, permitindo-se a
juntada de documentos ou realização de diligências, inclusive a designação, a critério do relator,
de audiência pública para debater a questão controvertida.
Trata-se de uma previsão salutar que permite maior participação da sociedade no
processo, eis que o requerente nem sempre possui representatividade adequada suficiente para
representar sozinho todos os possíveis afetados pela decisão do tribunal, o que poderia
configurar, se não prevista a possibilidade de participação de outros interessados,
inconstitucionalidade.
A respeito do tema, pontua Aluisio Gonçalves de Castro Mendes:
Por certo, no sistema brasileiro de precedentes, maiores garantias, pelo menos em tese,
foram introduzidas no ordenamento processual, como visto em capítulos anteriores.
Em especial, no que diz respeito ao Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas,
podem ser ressaltadas as seguintes: a) há a necessidade de ampla comunicação, para
que se permita, de maneira geral, pela sociedade e pelos interessados, a fiscalização,
o acompanhamento e a participação no IRDR; b) as partes dos processos suspensos
devem ser intimadas, em razão da necessária aplicação do art. 1.037, § 8º, para que
possam acompanhar, intervir e recorrer no procedimento do IRDR; c) a presença
necessária do Ministério Público, que possui a função institucional de proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos; d) a competência do colegiado do tribunal para a apreciação da
admissibilidade e do mérito do incidente; e) o procedimento especial estabelecido,
com o contraditório alargado, nos termos do art. 984 do CPC; f) a possibilidade de
participação e de interposição de recursos no Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas, por parte do amicus curiae179.
Segundo Marcos de Araújo Cavalcanti,
Na linha da atual tendência legislativa, o art. 983, do NCPC presume a relevância da
matéria e a repercussão social das questões deduzidas no IRDR, permitindo a
intervenção de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com
representatividade adequada, na qualidade de amicus curiae. [...] O objetivo é que o
amicus curiae contribua com a decisão a ser proferida pelo tribunal, mediante ampla
179 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de resolução de demandas repetitivas: sistematização, análise e
interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 241.
83
participação democrática no incidente processual. O relator pode, inclusive, designar
data para, em audiência pública, ouvir a palavra do amicus curie (sic)180.
Considerando a natureza jurídica de incidente processual, a doutrina sustenta que a
decisão proferida no julgamento do IRDR possui natureza de decisão interlocutória, sujeita à
preclusão, mas não ao regime da coisa julgada181, muito embora possua efeitos erga omnes em
razão do efeito vinculante a todos os demais processos que tratam da mesma questão, em razão
do regime previsto no artigo 927 do Código de Processo Civil.
Conforme expressa previsão do artigo 985, I, do Código de Processo Civil, a decisão
do IRDR será aplicada a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica
questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles
que tramitem nos juizados especiais.
Embora o tema seja objeto de capítulo próprio do presente trabalho, importante desde
logo notar a referência feita no dispositivo aos processos coletivos, também sujeitos ao quanto
decidido no IRDR, permitindo-se perquirir se em caráter de complementaridade ou de
subserviência e inferioridade.
Segundo o dispositivo mencionado, a decisão fica restrita ao âmbito territorial do
tribunal prolator da decisão (Estado ou Região federal). Todavia, como a decisão tomada está
sujeita à interposição de recurso especial e/ou extraordinário (artigo 987 do Código de Processo
Civil), nestes casos, a decisão tomada pelo Tribunal Superior terá eficácia e validade em todo
o território nacional (Código de Processo Civil, art. 987, § 2º).
Segundo a literalidade do sistema de precedentes do Código de Processo Civil, a
decisão tomada no IRDR é vinculante e, caso não seja observada, a parte poderá manejar
reclamação perante o Tribunal que apreciou o incidente e teve sua decisão descumprida (Código
de Processo Civil, art. 988, IV). A questão, porém, não está isenta de críticas por parte da
doutrina, conforme já abordamos.
Segundo o disposto no art. 985, II, do Código de Processo Civil, a decisão tomada no
IRDR se aplica também aos casos futuros, o que difere do modelo alemão do musterverfahren,
no qual a decisão somente afeta os processos ajuizados até o julgamento do incidente182.Outro
importante dispositivo é o artigo 984, § 2º, segundo o qual no julgamento do IRDR deverão ser
analisados todos os fundamentos concernentes à tese jurídica discutida, favoráveis ou
contrários. Isso porque o objetivo é fixar a tese, ressaltando a função nomofilática do incidente,
180 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 257. 181 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, pp. 197-198. 182 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 77.
84
de proteção do sistema judicial e normativo. Há, assim, uma segmentação do julgamento, pois
primeiro ocorre um julgamento objetivo, uma decisão abstrata, que fixa a tese do IRDR; depois
um julgamento subjetivo, da lide posta no processo pendente no tribunal183.
4.2.3.3 Prazo prescricional
Conforme veremos em capítulo próprio, em qualquer sistema de enfrentamento da
litigiosidade de massa e repetitiva defende-se a existência de um regime de suspensão ou
interrupção do prazo prescricional; do contrário, os indivíduos deverão promover suas ações
individuais a fim de evitar a prescrição, o que iria de encontro à missão de racionalizar o
trabalho do Poder Judiciário e reduzir os processos.
No que diz respeito ao IRDR, o projeto aprovado pela Câmara dos Deputados previa
expressamente: “admitido o incidente, suspender-se-á a prescrição das pretensões nos casos em
que se repete a questão de direito”.
Todavia, o dispositivo foi retirado durante a tramitação no Senado Federal, sem constar
do texto aprovado e promulgado; assim, não é possível cogitar atualmente de suspensão ou
interrupção do prazo prescricional.
Conforme sustentado por Marcos de Araújo Cavalcanti, sequer é possível recorrer aos
artigos 240, §1º, do Código de Processo Civil e 202, I, do Código Civil, os quais entende
aplicáveis ao regime do processo coletivo, eis que dizem respeito à interrupção prescricional
decorrente de despacho que determina a citação em ação processual, ao passo que o IRDR não
possui natureza jurídica de ação, mas de incidente processual184.
Por isso, segundo o autor, “com relação ao IRDR, não há como se sustentar a
interrupção ou a suspensão do prazo prescricional das pretensões individuais não ajuizadas sem
lei expressa que a determine”185.
4.4 (In) constitucionalidade
A doutrina aponta uma série de vícios de constitucionalidade no instituto que, se não
invalidam completamente o seu emprego, demandam no mínimo uma correta interpretação
conforme a Constituição. As principais inconstitucionalidades mencionadas pela doutrina
repousam na violação à independência funcional; violação ao contraditório em razão da falta
de controle da representatividade; violação ao direito de ação em razão da inexistência de direito
183 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 228. 184 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 284. 185 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016.
85
de autoexclusão; violação à competência dos juizados especiais; impossibilidade de
interposição de recursos excepcionais (extraordinário e/ou especial) em face de julgamento de
fixação de tese jurídica.
Conforme já exposto, os precedentes formados, inclusive a questão decidida no IRDR,
deve ser tida como qualquer outro texto normativo, sujeito à interpretação. O tribunal, ao julgar
o incidente, está editando um texto normativo de caráter geral e abstrato186. No entanto, tal
atividade tipicamente legislativa, ainda que de forma excepcional, somente pode se realizar com
autorização constitucional. Foi o que ocorreu com as súmulas vinculantes, objeto da Emenda
Constitucional n. 45/2004, o que não se concretizou para o IRDR e demais precedentes
vinculantes trazidos pelo Código de Processo Civil no rol do artigo 927.
Do mesmo modo, é inconstitucional a inexistência de verificação da representatividade
adequada do litigante do processo do qual instaurou-se o IRDR. Isto porque tal verificação é
obrigatória e deflui do devido processo legal, de modo a minimizar a possibilidade de conluio
entre as partes, assegurar uma adequada defesa dos direitos coletivos envolvidos, garantindo
que todos os argumentos em defesa dos membros do grupo sejam expostos na Corte187.
A verificação da representatividade adequada do autor principal do incidente é também
prevista no ordenamento alemão no âmbito do musterverfahren, que inspirou o legislador
brasileiro para criar o IRDR188. Esse controle no sistema brasileiro é especialmente importante
em razão da formação de coisa julgada para os processos suspensos vinculados ao tema julgado,
cuja incidência vinculante ocorre independentemente do resultado do julgamento do IRDR.
É justamente em razão da inexistência de controle de representatividade adequada
associada à formação de coisa julgada a todos que tenham processos suspensos que a doutrina
sustenta a inconstitucionalidade do incidente, em razão de violação à cláusula do devido
processo legal e do princípio do contraditório189; é insuficiente a figura do amicus curiae.
É também em razão da inexistência de controle da representatividade do autor
principal que a doutrina sustenta a inconstitucionalidade do incidente ao não prever, ao menos,
a possibilidade de exclusão (opt out) da parte interessada, prosseguindo em sua demanda
individual.
Sobre o tema, Marcos de Araújo Cavalcanti observa:
A forma de opção pela participação no julgamento coletivo pode ser presumida
(sistema de opt out: como acontece com a class action for damages e com o
Musterverfahren) ou expressa (sistema de opt-in: como ocorre com as GLO do direito
186 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 366. 187 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 373. 188 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 379. 189 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 382.
86
inglês). O que não se pode aceitar é simplesmente o NCPC não adotar qualquer desses
sistemas, silenciando a respeito do assunto e impedindo, de forma absoluta, a
possibilidade de os litigantes prosseguirem com suas demandas isoladamente190.
Por fim, outro aspecto diz respeito à possibilidade de interposição de recurso especial
ou extraordinário da decisão do IRDR, ou seja, do julgamento abstrato da tese, o que seria
inconstitucional. Isto porque os artigos da Constituição Federal que tratam das hipóteses de
interposição (artigos 102, III, e 105, III) exigem a existência de causa decidida em única ou
última instância pelos tribunais de segundo grau, o que não ocorreria no IRDR, no qual não há
julgamento de lide. Não há causa decidida, pois há apenas fixação de tese abstrata a ser aplicada
em casos concretos futuros191.
190 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 389. 191 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 396.
87
5 APROXIMAÇÃO ENTRE CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E TUTELA
COLETIVA: DIFICULDADES E DESAFIOS
5.1 Entraves legais do processo coletivo brasileiro
Conforme expusemos na introdução ao presente trabalho, a evolução da sociedade e
das relações sociais, sobretudo em razão do processo de urbanização, industrialização e
globalização, culminou em importantes alterações também nas relações jurídicas. O fenômeno
conduziu também à uma ampliação das categorias de direitos, cada vez mais marcados pela
supraindividualidade. Todavia, percebe-se, por isso, que em termos de história da humanidade
e do direito, a concepção de direitos sob o ponto de vista supraindividual e o tema da
litigiosidade de massa são bastante recentes, ou seja, estão em pleno desenvolvimento.
Com efeito, a doutrina tem recentemente apontado três tipos de litigiosidade:
a) a individual ou de “varejo”: sobre a qual o estudo e a dogmática foram
tradicionalmente desenvolvidos, envolvendo alegações de lesões e ameaças a direitos isoladas;
b) a litigiosidade coletiva: envolvendo direitos coletivos, difusos e individuais
homogêneos, nos quais se utilizam procedimentos coletivos representativos, normalmente
patrocinados por legitimados extraordinários;
c) em massa ou de alta intensidade: embasadas prioritariamente em direitos individuais
homogêneos que dão margem à propositura de ações individuais repetitivas ou seriais, que
possuem como base pretensões isomórficas, com especificidades, mas que apresentam questões
(jurídicas e/ou fáticas) comuns para a resolução da causa192.
O Código de Processo Civil/2015 pretendeu enfrentar, além da tradicional litigiosidade
individual ou de varejo, o problema da litigiosidade em massa ou de alta intensidade,
aproximando-se do regime do processo coletivo e formando um microssistema de litigiosidade
coletiva193.
Ao fazê-lo, passou a tutelar direitos individuais homogêneos e direitos coletivos,
costumeiramente discutidos nas lides de massa, que só eram tutelados de forma coletiva no
âmbito do processo coletivo.
É certo, porém, que permanece fora do escopo do Código de Processo Civil a tutela
dos direitos difusos, eis que, por sua natureza, é incompatível com a demanda individual.
192 ALMEIDA, Gustavo Milaré. O incidente de resolução de demandas repetitivas e o trato da litigiosidade coletiva apud
BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flavio Quinaud; THEODORO JUNIOR, Humberto; NUNES, Dierle. Novo
CPC – fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015, pp. 283-284. 193 Enunciado n. 346 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): “A lei 13.015, de 21 de julho de 2014, compõe
o microssistema de solução de casos repetitivos”.
88
Percebe-se desde logo, portanto, uma sobreposição entre o sistema processual coletivo
e o regime de precedentes do Código de Processo Civil no que diz respeito, em especial, aos
direitos individuais homogêneos.
No que diz respeito ao microssistema processual coletivo clássico, o Brasil adotou um
modelo próprio no qual coube à lei definir três categorias de direitos (difusos, coletivos e
individuais homogêneos) e o rol de legitimados, estabelecendo consequências processuais
próprias para cada direito tutelado (coisa julgada, litispendência, liquidação e execução).
No entanto, algumas décadas após a edição destes importantes marcos legais (Lei de
Ação Popular, Ação Civil Pública e Código de Defesa do Consumidor, dentre outros),
verificou-se a insuficiência da tutela coletiva no enfrentamento da litigiosidade de massa, eis
que os processos com causas homogêneas continuavam a crescer194.
A situação não é exclusiva do Brasil. Há outros países, como Inglaterra e Alemanha,
em que as ações coletivas não vêm diminuindo ou desmotivando o ajuizamento de ações
repetitivas195. Pelo contrário, a complexidade das relações modernas fez aumentar o número de
demandas repetitivas.
É nesse contexto que nasceram as ondas de reforma do processo civil, iniciadas na
década de 1990, e que culminaram com a implantação, pelo Código de Processo Civil/2015, de
um regime inédito de precedentes e de enfrentamento da litigiosidade repetitiva, em especial de
dois instrumentos de destaque: o Incidente de Demandas Repetitivas (“IRDR”) e o Incidente
de Assunção de Competência (“IAC”).
O que se pretende neste capítulo é verificar os entraves do sistema processual coletivo
que culminaram na sua insuficiência para tutelar os litígios de massa e repetitivos.
Para tanto, centraremos a análise em três aspectos que parecem demandar urgente
revisão no âmbito do processo coletivo brasileiro: (i) o regime de coisa julgada em processos
envolvendo tutela de direitos individuais homogêneos; (ii) a relação entre demanda individual
e processo coletivo, em especial o artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor e (iii) o
modelo de legitimidade adotado no Brasil para a tutela coletiva.
194 Segundo Ada Pellegrini Grinover, “as estatísticas mostram que, apesar da plena operatividade do minissistema das ações
coletivas e dos esforços dos que a elas são legitimados (principalmente Ministério e Defensoria Pública e, em menor medida,
as associações), os processos coletivos ainda são subutilizados no Brasil, havendo grande preponderância de ações
individuais em relação às ações coletivas”. GRINOVER, Ada Pellegrini. O Projeto de novo CPC e sua influência no
minissistema de processos coletivos: a coletivização dos processos individuais. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini;
BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento
à atualidade. São Paulo: RT, 2014, pp. 1431-1432. 195 CUNHA, Leonardo Carneiro da. O regime processual das causas repetitivas. In: Revista de Processo n. 179, São Paulo:
RT, jan. 2010, p. 142.
89
5.1.1 Coisa julgada na tutela de direito individuais homogêneos
Do ponto de vista do aspecto formal de acesso à justiça, as ações coletivas são
instrumento mais poderoso que o IRDR, pois permitem que as lesões de pequeno valor, que
não despertam o interesse do particular lesado a ponto de procurar o Poder Judiciário, sejam
tuteladas, contribuindo para uma tutela mais justa e efetiva dos direitos transindividuais.
Do ponto de vista material, as ações coletivas visam atender, assim como o IRDR, à
necessária certeza, previsibilidade, confiabilidade e coerência nas decisões, privilegiando os
princípios da segurança jurídica e da isonomia.
No entanto, se, de um lado, o caráter apenas repressivo e a ausência de coisa julgada
erga omnes e pro futuro enfraquecem o IRDR, de outro, nas ações coletivas para a tutela de
direito individuais homogêneos, a regra prevista no artigo 103, III e § 2º do Código de Defesa
do Consumidor também impõe importante entrave ao seu manejo.
Segundo esta previsão, “[...] em caso de improcedência do pedido, os interessados que
não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a
título individual” (art. 103, § 2º, Código de Defesa do Consumidor). Desse modo, salvo na rara
hipótese em que o interessado tenha se habilitado como litisconsorte na ação coletiva, a
improcedência do pedido na ação coletiva não impede o posterior ajuizamento de seu processo
individual.
Nesse contexto, a ação coletiva acaba frustrando seu propósito de criar um ambiente
de segurança jurídica e isonomia, permitindo que ocorram, como reiteradamente tem
acontecido, situações em que o mesmo direito foi negado a um e concedido ao outro. Ou ainda:
na demanda individual o pedido foi julgado improcedente, mas o particular vale-se da decisão
concessiva da ação coletiva para fundamentar seu pedido executório, ou vice-versa, situação
que fomenta o ambiente de insegurança jurídica e desigualdade.
Tal situação, porém, não escapa às críticas da doutrina.
Segundo Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, ao estabelecer, de modo limitado,
como legitimados apenas os órgãos públicos e as associações, a representatividade adequada
foi presumida.
Por conseguinte, torna-se desproporcional e despropositada a diferenciação dos efeitos
secundum eventum litis, pois não considera, tal qual nos incisos I e II do art. 103, motivo
significativo, como a falta ou insuficiência de provas, para afastar a extensão.
90
O processo coletivo torna-se, assim, instrumento unilateral, na medida em que só
encontrará utilidade em benefício de uma das partes196.
No mesmo sentido, Eduardo Talamini:
no modelo brasileiro, a absoluta ausência de repercussão negativa do resultado do
processo coletivo sobre as pretensões e ações individuais, se por um lado preserva as
garantias de acesso à justiça, contraditório e devido processo legal em favor de cada
legitimado individual, por outro, pouco contribui para a economia processual e a
estabilização de uma resposta jurisdicional uniforme para casos iguais. Essa segunda
função, nomofilática, é crucial para a isonomia, a segurança jurídica e a certeza do
direito. Além disso, o processo coletivo acaba produzindo proteção jurisdicional
pouco estável — de menor qualidade, portanto — para o réu vitorioso. A ausência de
coisa julgada ultra partes faz com que, mesmo tendo sua razão reconhecida em um
primeiro processo coletivo, ele não esteja livre de sucessivas e reiteradas novas
demandas coletivas. A garantia de tutela jurisdicional não lhe é plenamente
outorgada197.
No mesmo sentido, ressaltando a quebra da isonomia e igualdade, José Ignácio Botelho
de Mesquita, citado por Rodolfo de Camargo Mancuso:
supondo consiga o réu superar as desvantagens que lhe são impostas no processo,
logre o réu obter um julgamento de improcedência da ação, de nada lhe valerá a
sentença, ainda que confirmada pelas mais altas Cortes de Justiça do País. Pelo que
dispõe o Código (do Consumidor), qualquer um que se apresente como vítima poderá
submetê-lo a discutir novamente toda a questão, impondo-lhe novamente o mesmo
dispêndio de recursos e atividades já gastos no processo anterior, e tendo que repetir
tudo isto em quantos processos lhe sejam movidos. Ou seja, a sentença que o condenar
tornar-se-á imutável e indiscutível, em benefício de todos os que se pretenderam
vítimas; mas a sentença que o absolver não lhe servirá para nada, podendo voltar a ser
discutido por quem quer que seja198.
Outro aspecto do processo coletivo que merece, após a edição do novo sistema de
enfrentamento dos processos repetitivos trazido pelo Código de Processo Civil, atenção e
eventual alteração é a previsão do Código de Defesa do Consumidor no que diz respeito à
relação entre demanda individual e demanda coletiva.
196 MENDES, Aluisio Gonçalves Castro. A coisa julgada e os processos coletivos no direito vigente e no projeto da nova lei
da ação civil pública (PL n. 5.139/2009). In: Em defesa de um novo sistema de processos coletivos. Estudos em
homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 72-73. 197 TALAMINI, Eduardo. A dimensão coletiva dos direitos individuais homogêneos: ações coletivas e os mecanismos
previstos no Código de Processo Civil. In: (coord.). DIDIER, Fredie. Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 129. 198 MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Na ação do consumidor, pode ser inútil a defesa do fornecedor. Revista da
Associação dos Advogados de São Paulo, n. 33, p. 81, 1990 apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A concomitância de ações coletivas, entre si, e em face das ações individuais. In: Processo coletivo: do surgimento à atualidade. São Paulo: RT,
2014, p. 154.
91
5.1.2 Litispendência entre demanda individual e processo coletivo
De acordo com o art. 104 do Código de Defesa do Consumidor 199, para o autor da
ação individual já proposta aproveitar o transporte in utilibus da coisa julgada coletiva deverá
requerer a suspensão da sua ação individual em trinta dias a contar da ciência do ajuizamento
da ação coletiva.
Segundo o dispositivo legal, se não pedir a suspensão, não será beneficiado pela
decisão coletiva.
Embora a redação do dispositivo sugira que a suspensão dos processos é facultativa, o
Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de recurso repetitivo, decidiu que “ajuizada a ação
coletiva atinente à macro lide geradora de processos multitudinários, suspendem-se,
obrigatoriamente, as ações individuais, no aguardo do julgamento das ações coletivas, o que
não impede o ajuizamento de outras individuais”200.
Todavia, em que pese a decisão do Superior Tribunal de Justiça, a opção do legislador
brasileiro, ao disciplinar a relação entre processos coletivos e individuais da forma como
previsto no artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor, foi no sentido de inexistir
suspensão e litispendência. Opção, por assim dizer, sui generis.
Isso porque a experiência do direito comparado revela a utilização de dois sistemas de
vinculação dos indivíduos ao processo coletivo: o de inclusão (opt-in), no qual os interessados
deverão requerer o seu ingresso até determinado momento; e o de exclusão (opt-out), mediante
o qual devem os membros ausentes solicitar o desacoplamento do litígio coletivo, dentro do
prazo fixado pelo juiz201.
Como se vê, o art. 104 não adotou nenhum dos dois métodos.
Defendendo a opção feita pelo legislador no artigo 104 do Código de Defesa do
Consumidor, Ada Pellegrini Grinover sustenta:
no juízo de valor que antecedeu à escolha do legislador brasileiro, verificou-se que a
extensão da coisa julgada a terceiros, que não foram pessoalmente parte do
contraditório, ofereceria riscos demasiados, não arredados pela técnica do opt out,
calando fundo nas relações intersubjetivas, quando se tratasse de prejudicar direitos
individuais; e suscitando, ainda, problemas de inconstitucionalidade, por infringência
ao contraditório efetivo e real202.
199 Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para
as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo
anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar
da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva. 200 BRASIL. REsp 1687847/RJ. Min. Moura Ribeiro, DJ 01-09-2017. 201 MENDES, Aluisio Gonçalves Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de demandas no direito
comparado e nacional [livro eletrônico]. 4. ed. São Paulo: RT, 2019, pp. 273-274. 202 GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação popular portuguesa: uma análise comparativa. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do
surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 376.
92
A técnica do opt out e de extensão da coisa julgada, segundo a autora,
certamente não se adaptaria à realidade existente no Brasil, país de dimensões
continentais, deparando com enormes problemas de informação completa e correta,
de falta de conscientização de parcela ingente da população, de desconhecimento
sobre os canais de acesso à Justiça, de grande distanciamento entre o povo e os
Tribunais, tudo a desaconselhar a extensão da coisa julgada, quando desfavorável a
sentença, a quem não integrou a relação processual e só foi artificialmente
‘representado’ pelo portador em juízo dos interesses coletivos203.
Parece-nos, todavia, passadas quase três décadas da edição do Código e ante os
resultados alcançados pela tutela coletiva, que o sistema de exclusão parece mais eficiente, no
sentido de garantir o tratamento coletivo para as questões comuns, produzindo, assim, efetiva
economia processual, acesso à Justiça e fortalecimento das ações coletivas204.
É certo, contudo, que é preciso estabelecer parâmetros seguros para a aplicação do
regime de opt out, com a fixação de prazos para o exercício da opção e desde que seja garantida
ampla e efetiva divulgação do ajuizamento da ação coletiva.
Caso contrário, continuaremos contemplando a realidade dos últimos anos,
que fala por si só: embora tenham sido ajuizadas ações coletivas, nenhuma delas foi
capaz de conter a verdadeira sangria de ações individuais que foram ajuizadas diante
de questões como a dos expurgos inflacionários relacionados com cadernetas de
poupança e do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS); dos inúmeros
conflitos envolvendo aposentados. [...] O correto equacionamento da questão da
litispendência e da coisa julgada, com o estabelecimento de um efetivo sistema de
exclusão, acompanhado do controle da representatividade adequada, parece ser
medida essencial para que a tutela coletiva alcance os seus objetivos205.
Nesse sentido, o projeto de Lei n. 5.139/2009, nova Lei de Ação Civil Pública, previa,
em seu artigo 13:
estando em termos a petição inicial, o juiz ordenará a citação do réu e, em se tratando
de interesses ou direitos individuais homogêneos, a intimação do Ministério Público
e da Defensoria Pública, bem como a comunicação dos interessados, titulares dos
respectivos interesses ou direitos objeto da ação coletiva, para que possam exercer,
até a publicação da sentença, o seu direito de exclusão em relação ao processo
coletivo, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social.
Parágrafo único. A comunicação dos membros do grupo, prevista no caput, poderá
ser feita pelo correio, inclusive eletrônico, por oficial de justiça ou por inserção em
outro meio de comunicação ou informação, como contracheque, conta, fatura, extrato
bancário e outros, sem obrigatoriedade de identificação nominal dos destinatários, que
poderão ser caracterizados enquanto titulares dos mencionados interesses ou direitos,
203 GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação popular portuguesa: uma análise comparativa. In: (org.) GRINOVER, Ada
Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do
surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 375. 204 MENDES, Aluisio Gonçalves Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de demandas no direito
comparado e nacional [livro eletrônico]. 4. ed. São Paulo: RT, 2019, p. 274. 205 MENDES, Aluisio Gonçalves Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de demandas no direito
comparado e nacional [livro eletrônico]. 4. ed. São Paulo: RT, 2019, pp. 274-275.
93
fazendo-se referência à ação, às partes, ao pedido e à causa de pedir, observado o
critério da modicidade do custo.
Previa ainda o projeto, em seu artigo 37, § 2º: “cabe ao réu, na ação individual,
informar sobre a existência de demanda coletiva que verse sobre idêntico bem jurídico, sob
pena de, não o fazendo, o autor individual beneficiar-se da coisa julgada coletiva mesmo no
caso de o pedido da ação individual ser improcedente”.
Impõe-se, portanto, ao réu das demandas individuais informar nos autos, permitindo-
se o exercício do opt out.
A doutrina menciona também outras opções intermediárias de aplicação do regime de
opt out utilizadas por Dinamarca, Israel, Noruega e Suécia206. Elas visam contemplar as
situações em que a tutela coletiva se revelaria necessária em razão do ínfimo valor econômico,
nas quais praticamente inexistiria interesse dos membros do grupo em ingressar no processo e,
menos, ainda de propor ações individuais.
Nesses casos, vale a regra de inclusão automática de todos os lesados, sem necessidade
de opt in ou de opt out, aplicáveis para estas pretensões “não ajuizáveis” na prática, como o
pedido de condenação de um banco a restituir uma módica tarifa cobrada de forma abusiva207.
Há também países que utilizam o regime do opt in, como Alemanha, França Itália,
Suécia e Colômbia. Segundo este regime, devidamente notificados, devem os membros da
coletividade decidir sobre seu ingresso voluntário na demanda coletiva.
Em caso de manifestação de interesse, passam a assumir a condição de membros da
classe, sendo, assim, colhidos pela coisa julgada, favorável ou desfavorável ao grupo. O
membro que não manifestar sua vontade de inclusão no processo coletivo no prazo
determinado, ao contrário, será excluído do âmbito de abrangência daquela coisa julgada, não
podendo ser prejudicado ou beneficiado por ela208.
Em suma, há ao menos três modelos previstos em outros ordenamentos no que diz
respeito à relação entre demanda coletiva e demanda individual: (i) o regime de opt out, em que
todos estão abrangidos pelo processo coletivo e sujeitos à coisa julgada, salvo se, notificados,
fizerem opção de exclusão; (ii) o regime de opt in, em que o processo coletivo, em regra, não
abrange e não beneficia os particulares com interesses individuais, salvo se manifestarem o
206 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de civil law
e common law: uma análise de direito comparado. São Paulo: RT, 2011, p. 240. 207 RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeirão. Notas sobre a coisa julgada nas ações coletivas. In: (org.) GRINOVER, Ada
Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do
surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 982. 208 RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeirão. Notas sobre a coisa julgada nas ações coletivas. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do
surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, pp. 982-983.
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desejo de serem incluídos e de participarem da demanda coletiva; e (iii) o regime intermediário,
no qual para lesões de baixo valor econômico não haveria necessidade de se proceder à inclusão
ou exclusão, considerando o pouco interesse dos lesados. No entanto, é necessária a demanda
coletiva a fim de tutelar o direito de todos, que não o fariam individualmente.
Não obstante, o legislador optou pelo regime sui generis descrito no artigo 104 do
Código de Defesa do Consumidor, sem se alinhar aos modelos tradicionais previstos em outros
países.
Outro tema que tem sido objeto de atenção da doutrina e da jurisprudência no que diz
respeito à tutela coletiva é a legitimidade ativa.
5.1.3 Legitimidade ativa
Embora seja lugar comum tratar do tema da legitimidade para a ação coletiva, poucos
autores se interessaram por discorrer sobre o tema da legitimidade individual, pois, em geral,
defende-se o acerto do legislador ao estabelecer um regime limitado de legitimados.
Embora a doutrina tenha buscado inspiração no modelo americano de tutela coletiva,
no que diz respeito ao modelo de legitimidade afastou-se daquele modelo, em vigor desde 1938,
e que prevê a legitimidade individual, em determinados casos, com bons resultados práticos.
A class action, embora estabelecida em país com tradição de common law, tem
previsão em lei nas Federal Rules of Civil Procedure, de 1938, posteriormente reformadas em
1966. Como qualquer demanda judicial, sujeita-se ao preenchimento do requisito da
justiciability, que se assemelha às condições da ação no sistema brasileiro, bem como outros
específicos a depender do tipo de ação coletiva a ser manejada, considerando a existência de
três categorias de class actions, duas obrigatórias (mandatory) e uma não obrigatória (not
mandatory)209.
Ada Pellegrini Grinover prossegue associando as ações do tipo obrigatória
(mandatory) às ações coletivas em defesa de interesses difusos ou coletivos.
Já a class action for damages que visa tutelar os mass tort cases, que é do tipo não
obrigatória (not mandatory), se assemelha à nossa ação coletiva em defesa de direitos
individuais homogêneos.
Para o manejo de qualquer delas, porém, um ou mais membros de uma classe podem
processar ou ser processados como partes, representando todos, somente se reunidos certos pré-
209 GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento
à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p.173.
95
requisitos denominados threshold requirements: (i) a classe é tão numerosa que a reunião de
todos os membros é impraticável; (ii) há questões de direito ou de fato comuns à classe; (iii) as
demandas ou exceções das partes representativas são típicas das demandas ou exceções da
classe e (iv) as partes representativas protegerão justa e adequadamente os interesses da classe.
Para o manejo deste tipo de ação exige-se ainda o preenchimento de outros dois
importantes requisitos: (i) a prevalência das questões de direito e de fato comuns sobre as
questões de direito ou de fato individuais; (ii) a superioridade da tutela coletiva sobre a
individual, em termos de justiça e eficácia da sentença210.
Preenchidos os requisitos, o que se verifica em uma fase específica do procedimento
denominada certification211, qualquer pessoa lesada pode manejar a ação coletiva a fim de
tutelar o direito (que no Brasil classificaríamos, segundo a definição legal, como individual
homogêneo).
Outrossim, interessante a conclusão de Ada Pellegrini Grinover no sentido de que os
requisitos da prevalência das questões de direito e de fato comuns e a superioridade da tutela
coletiva sobre a individual são requisitos que, ainda que implicitamente, também estão
presentes no sistema processual brasileiro, associando-os à necessária homogeneidade dos
direitos individuais e à falta de interesse de agir para o manejo da ação coletiva212,
respectivamente.
A class action for damages não é, porém, o único instrumento processual do direito
norte-americano que confere legitimidade ao particular para a tutela coletiva. Há outro
importante instrumento denominado citizen suit, uma modalidade de ação com previsão
normalmente associada a questões ambientais e administrativas, na qual se confere legitimidade
210 GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini;
BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento
à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 174. 211 Na sequência há uma fase para acordos, seguida de uma fase de júri para colheita das provas. Em seguida, o juiz de primeira instância confirma ou rejeita a decisão do júri. Confirmada a decisão do júri, o processo segue para sentença final do
mérito e, posteriormente, passa-se à liquidação dos danos, culminando em uma sentença final de liquidação. GRINOVER,
Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio
Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 175. 212 “[...] Parece possível estabelecer uma correlação entre o requisito da prevalência dos aspectos comuns e o da
superioridade (ou eficácia) da tutela por ações de classe. Quanto mais os aspectos individuais prevalecerem sobre os comuns,
tanto mais a tutela coletiva será inferior à individual, em termos de eficácia da decisão. Na linguagem do Código de Defesa
do Consumidor, quanto mais heterogêneos os direitos individuais, tanto menos útil a sentença genérica do art. 95 e
inadequada a via da ação civil pública reparatória de danos individuais. Assim, no nosso sistema jurídico, à impossibilidade
jurídica do pedido (supra, n. 6) acrescentar-se-á frequentemente a falta de interesse de agir (interesse-utilidade e interesse-
adequação)”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do
surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 183.
96
ao cidadão para exigir em juízo o cumprimento de determinadas disposições legais previstas no
statute213, figura bastante similar à ação popular brasileira.
No direito brasileiro há ainda as ações pseudoindividuais, assim nominadas por Kazuo
Watanabe; são ações individuais, mas de alcance coletivo. Ou seja, embora movidas por um
único indivíduo, no exercício de um direito do qual também é titular, o acolhimento da
pretensão acaba beneficiando e atingindo a coletividade.
O exemplo clássico trazido pela doutrina é o da ação individual de um morador de
determinado bairro que tem por objetivo fazer cessar a poluição (ambiental ou sonora) de usina
ali instalada214. O exemplo pode ser estendido para outras situações envolvendo direito de
vizinhança, nas quais o acolhimento da pretensão individual atinge os demais moradores
(direito coletivo), sem a participação e o consentimento destes outros titulares do direito
lesado215.
Colhe-se, portanto, tanto na legislação brasileira como na legislação americana
situações em que se confere legitimidade ao particular para a tutela de direitos supraindividuais,
ampliando-se assim a legitimidade. Tal interpretação e previsão, porém, deve vir acompanhada
do preenchimento da representatividade adequada, a fim de permitir o controle por parte do
magistrado, passando-se, então, de um modelo de legitimidade ope legis para um modelo ope
judicis.
Conforme ressaltado, a legitimação individual para a tutela de ação coletiva na defesa
de interesses supraindividuais é tendência nas legislações estrangeiras e nos códigos modelos e
anteprojetos legislativos, tal como o projeto de Código de Processos Coletivos para Ibero-
América, elaborado pelo instituto Ibero-Americano de Direito Processual.
O artigo 3º, I e § 4º do Código em questão prevê a legitimidade ativa de qualquer
pessoa física para a defesa dos interesses metaindividuais, desde que cumpra o requisito da
representatividade adequada.
Não é por outro motivo que se entende:
restrições à legitimidade para propositura de certas ações, como as coletivas, devem
ser evitadas e no caso de serem imprescindíveis postas com cautela, por serem, a
213 SALLES, Carlos Alberto. Class actions: algumas premissas para comparação. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini;
BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento
à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 250. 214 WATANABE, Kazuo. Relação entre demanda coletiva e demandas individuais. Revista de Processo, n. 139/28, pp. 28-
29. 215 No caso de poluição ambiental produzida por uma usina, parece de certo modo fácil concluir que os interesses dos demais
moradores são convergentes, mas no caso de interdição de um estabelecimento (bar, casa noturna, restaurante) poderão existir situações nas quais os interesses dos demais moradores, também titulares do direito, sejam divergentes, ensejando uma
maior complexidade no acolhimento da pretensão formulada na ação pseudoindividual.
97
princípio, incompatíveis com a Constituição e os instrumentos internacionais
protetores de direitos humanos. O Estado, as pessoas jurídicas, órgãos e instituições
públicas, bem como entidades associativas devem abster-se de criar obstáculos à
autonomia das pessoas216.
E concluem os autores:
um sistema jurídico misto, admissível da legitimidade ativa de entes coletivos,
privados e públicos, e de indivíduos parece mais adequado e congruente com a
Constituição e os instrumentos internacionais asseguradores do acesso à Justiça. A
concorrência de partes legítimas é salutar e supre deficiência de todos os legitimados
decorrentes de excesso de atribuição, ineficiência técnica e de pessoal, negligência,
fraude e desinteresse217.
Admitir a legitimidade individual para a tutela coletiva implica, porém, a necessidade
de se estabelecer outro pressuposto processual específico para o processo coletivo: a
representatividade adequada.
Inicialmente, parece-nos mais adequada a menção à representatividade em detrimento
da expressão “representação” que, segundo pensamos, é mais ligada à ideia de representação
processual, de verificação de requisitos formais como instrumento de mandato. A expressão
“representatividade”, por sua vez, melhor indica o instituto ao qual pretendemos fazer
referência: verificar se determinado legitimado representa adequadamente, no aspecto técnico,
econômico, de credibilidade, entre outros, os demais lesados.
Para isso, haveria uma fase específica no processo coletivo, algo bastante semelhante
ao ocorrido nas class action for damages do direito norte-americano, que possui uma fase
específica de certification a fim de se verificar a representatividade adequada da parte autora,
que inclui a capacidade e a credibilidade do advogado.
Segundo Leonardo Gonçalves Juzinskas, abordando o projeto de processo coletivo de
Antonio Gidi,
a chamada certificação é decisão derivada da atribuição de poderes para que o juiz se
pronuncie, vinculando as partes e o processo, sobre a existência dos requisitos
exigidos para a ação coletiva, dentre elas a subsunção da situação fática narrada a uma
das hipóteses de cabimento previstas na lei para a ação coletiva. É versada no artigo
9 do projeto “Gidi”. Através dessa decisão, o juiz assegura a natureza coletiva à ação
proposta, possuindo ela índole constitutiva, à semelhança do direito americano.
Também nessa decisão são definidos os contornos do grupo representado218.
216 FONSECA, Bruno Gomes Borges da; LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Acesso à justiça e ações pseudoindividuais. In:
(org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI,
Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 788. 217 FONSECA, Bruno Gomes Borges da; LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Acesso à justiça e ações pseudoindividuais. In:
(org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI,
Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 789. 218 JUZINSKAS, Leonardo Gonçalves. Poderes do juiz no processo coletivo: diálogos entre o CPC e o Projeto “Gidi”. In:
(coord.) ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 380.
98
Essa decisão abrangeria inclusive a verificação da representatividade adequada do
autor da ação, ainda que particular individualmente lesado, para defender o interesse de toda a
categoria ou coletividade lesada.
Passar-se-ia, portanto, de um modelo de legitimidade ope legis para um modelo de
legitimidade ope judicis, no qual caberia ao magistrado verificar em cada caso concreto.
Essa decisão e verificação não seria algo inédito no processo coletivo. Essa
verificação, ainda que sob outro aspecto, já ocorre no caso das associações, quando há
necessidade de se comprovar a denominada “pertinência temática” para o manejo da ação
coletiva.
Embora não se deva confundir a pertinência temática, a ser demonstrada pela
associação civil, com a representatividade adequada, a ser demonstrada por qualquer pessoa —
física ou não — que pretenda manejar a ação coletiva, é certo que um controle ope judicis de
legitimidade já existe no ordenamento brasileiro, conforme a Lei n. 7.347/1985, art. 5º, V, b.
Interessante notar que a lei confere poder ainda mais amplo ao magistrado, dentro
desse controle ope judicis da legitimidade, ao permitir que o requisito do tempo mínimo de
constituição da associação seja relevado “quando haja manifesto interesse social evidenciado
pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido”
(art. 5º, § 4º).
A jurisprudência também caminha no sentido de admitir a legitimidade ope judicis,
conforme se extrai do julgamento do RE 631.111/GO219, no qual se analisou a legitimidade do
219 CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL COLETIVA. DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS
(DIFUSOS E COLETIVOS) E DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DISTINÇÕES. LEGITIMAÇÃO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO. ARTS. 127 E 129, III, DA CF. LESÃO A DIREITOS INDIVIDUAIS DE DIMENSÃO
AMPLIADA. COMPROMETIMENTO DE INTERESSES SOCIAIS QUALIFICADOS. SEGURO DPVAT. AFIRMAÇÃO DA LEGITIMIDADE ATIVA. 1. Os direitos difusos e coletivos são transindividuais, indivisíveis e sem titular determinado,
sendo, por isso mesmo, tutelados em juízo invariavelmente em regime de substituição processual, por iniciativa dos órgãos e
entidades indicados pelo sistema normativo, entre os quais o Ministério Público, que tem, nessa legitimação ativa, uma de
suas relevantes funções institucionais (CF art. 129, III). 2. Já os direitos individuais homogêneos pertencem à categoria dos direitos subjetivos, são divisíveis, tem titular determinado ou determinável e em geral são de natureza disponível. Sua tutela
jurisdicional pode se dar (a) por iniciativa do próprio titular, em regime processual comum, ou (b) pelo procedimento especial
da ação civil coletiva, em regime de substituição processual, por iniciativa de qualquer dos órgãos ou entidades para tanto
legitimados pelo sistema normativo. 3. Segundo o procedimento estabelecido nos artigos 91 a 100 da Lei n. 8.078/1990, aplicável subsidiariamente aos direitos individuais homogêneos de um modo geral, a tutela coletiva desses direitos se dá em
duas distintas fases: uma, a da ação coletiva propriamente dita, destinada a obter sentença genérica a respeito dos elementos
que compõem o núcleo de homogeneidade dos direitos tutelados (an debeatur, quid debeatur e quis debeatur); e outra, caso
procedente o pedido na primeira fase, a da ação de cumprimento da sentença genérica, destinada (a) a complementar a atividade cognitiva mediante juízo específico sobre as situações individuais de cada um dos lesados (= a margem de
heterogeneidade dos direitos homogêneos, que compreende o cui debeatur e o quantum debeatur), bem como (b) a efetivar
os correspondentes atos executórios. 4. O art. 127 da Constituição Federal atribui ao Ministério Público, entre outras, a
incumbência de defender “interesses sociais”. Não se pode estabelecer sinonímia entre interesses sociais e interesses de
entidades públicas, já que em relação a estes há vedação expressa de patrocínio pelos agentes ministeriais (CF, art. 129, IX).
Também não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse coletivo de particulares, ainda que decorrentes
de lesão coletiva de direitos homogêneos. Direitos individuais disponíveis, ainda que homogêneos, estão, em princípio,
excluídos do âmbito da tutela pelo Ministério Público (CF, art. 127). 5. No entanto, há certos interesses individuais que, quando visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm a força de transcender a esfera de interesses
puramente particulares, passando a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses
99
Ministério Público para o manejo de ação na qual se discute a indenização decorrente do
DPVAT, ao afirmar o relator: “cabe ao Judiciário, com efeito, a palavra final sobre a adequada
legitimação para a causa, sendo que, por se tratar de matéria de ordem pública, dela pode o juiz
conhecer até mesmo de ofício (Código de Processo Civil, art. 267, VI e § 3º, e art. 301, VIII e
§ 4º)”.
Embora a legislação infraconstitucional brasileira tenha optado por um modelo misto
(entes privados e públicos) e cuja legitimidade decorre da lei (legitimidade ope legis), a moldura
posta pela Constituição autoriza uma nova visão sobre o tema, permitindo-se que o particular
individualmente lesado possa manejar ação coletiva para a tutela de todo o grupo ou
coletividade, sem agir por intermédio de uma associação civil, liberando o processo coletivo de
entraves inexistentes no sistema de precedentes posto pelo Código de Processo Civil/2015.
Dessa forma, o sistema evoluiria para um modelo de legitimidade ope judicis, no qual
a legitimidade seria avaliada em cada caso concreto, permitindo-se ao particular demonstrar
que pode ser o representante adequado daquele grupo, segundo aspectos técnicos, de capacidade
financeira (para suportar as custas do processo e perícias), de credibilidade (da parte e de seu
advogado), entre outros aspectos pertinentes ao caso concreto.
5.2 Deficiências dos instrumentos de enfrentamento à litigiosidade de massa e
repetitiva trazidos pelo Código de Processo Civil
5.2.1 Formação de coisa julgada
Conforme afirmado, o IRDR tem por inspiração o modelo alemão de julgamento de
casos repetitivos, denominado musterverfahren, cuja aplicação na legislação alemã se dá de
da comunidade. Nessa perspectiva, a lesão desses interesses individuais acaba não apenas atingindo a esfera jurídica dos
titulares do direito individualmente considerados, mas também comprometendo bens, institutos ou valores jurídicos
superiores, cuja preservação é cara a uma comunidade maior de pessoas. Em casos tais, a tutela jurisdicional desses direitos se reveste de interesse social qualificado, o que legitima a propositura da ação pelo Ministério Público com base no art. 127
da Constituição Federal. Mesmo nessa hipótese, todavia, a legitimação ativa do Ministério Público se limita à ação civil
coletiva destinada a obter sentença genérica sobre o núcleo de homogeneidade dos direitos individuais homogêneos. 6.
Cumpre ao Ministério Público, no exercício de suas funções institucionais, identificar situações em que a ofensa a direitos individuais homogêneos compromete também interesses sociais qualificados, sem prejuízo do posterior controle jurisdicional
a respeito. Cabe ao Poder Judiciário, com efeito, a palavra final sobre a adequada legitimação para a causa, sendo que, por se
tratar de matéria de ordem pública, dela pode o juiz conhecer até mesmo de ofício (CPC, art. 267, VI e § 3º, e art. 301, VIII e
§ 4º). 7. Considerada a natureza e a finalidade do seguro obrigatório DPVAT – Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (Lei n. 6.194/74, alterada pelas Leis n. 8.441/92, Lei n. 11.482/07 e Lei n. 11.945/09) –, há
interesse social qualificado na tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos dos seus titulares, alegadamente lesados de
forma semelhante pela Seguradora no pagamento das correspondentes indenizações. A hipótese guarda semelhança com
outros direitos individuais homogêneos em relação aos quais – e não obstante sua natureza de direitos divisíveis, disponíveis
e com titular determinado ou determinável –, o Supremo Tribunal Federal considerou que sua tutela se revestia de interesse
social qualificado, autorizando, por isso mesmo, a iniciativa do Ministério Público de, com base no art. 127 da Constituição,
defendê-los em juízo mediante ação coletiva. RE 163.231/SP, AI 637.853 AgR/SP, AI 606.235 AgR/DF, RE 475.010
AgR/RS, RE 328.910, AgR/SP e RE 514.023 AgR/RJ). 8. Recurso extraordinário a que se dá provimento. RE 631.111/GO, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 07-08-2014. Repercussão Geral.
100
maneira diversa e segundo regramentos próprios para três tipos de litígios: (i) para julgamento
de questões administrativas, no âmbito da Justiça administrativa; (ii) nos conflitos envolvendo
o mercado de capitais (Kap Mug); (iii) nas causas envolvendo previdência e assistencial220.
Tomando-se como exemplo o musterverfahren existente para julgamento de demandas
envolvendo o mercado de capitais, espécie de procedimento-modelo mais citado pela doutrina,
percebem-se algumas diferenças entre o modelo adotado pelo legislador brasileiro e o modelo
existente na Alemanha.
Uma diferença fundamental entre os institutos, bastante relevante para o propósito do
presente trabalho, diz respeito ao regime da coisa julgada.
No procedimento-modelo alemão relacionado às controvérsias no mercado de capitais
(KapMug) a coisa julgada será formada pro et contra em relação às partes-principais do
incidente coletivo e também aos litigantes individuais, intervenientes ou não, que tiveram suas
demandas repetitivas suspensas no juízo de origem221.
A coisa julgada, todavia, só atinge os processos que tenham sido suspensos durante a
tramitação do incidente, não projetando efeitos sobre os processos individuais futuros, ou seja,
aqueles propostos após o julgamento do incidente coletivo222.
A única forma de não ser alcançado pela decisão de mérito proferida nos autos do
procedimento coletivo é por meio do pedido de desistência do processo individual ajuizado223.
Outra possibilidade é se as partes interessadas formularem objeção à formação da coisa julgada
sob alegação de que o autor principal conduziu o incidente coletivo de forma deficiente,
impedindo-as de utilizarem todos os meios para defesa de seus interesses ou quando as
alegações não forem, intencionalmente ou por negligência grave, utilizadas pelo autor
principal224.
Por sua vez, no regime inglês da GLO, adotou-se o sistema do opt in, ou seja, haverá
formação de coisa julgada pro et contra, mas somente para os interessados que expressamente
aderiram ao GLO. Um cadastro coletivo reúne todas as informações dos casos objeto de
220 Ao contrário do que afirma parte dos trabalhos doutrinários, o procedimento-modelo alemão não se limita aos investidores em mercado de capitais, mas é também adotado no âmbito da justiça administrativa e da Justiça Previdenciária e Social.
Confira-se a respeito: CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT,
2016, pp. 61-63; MENDES, Aluisio Gonçalves Castro. Incidente de Resolução de Demandas repetitivas. Rio de Janeiro:
Forense, 2017, pp. 35-36. 221 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 78. 222 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 77. 223 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 69. 224 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 79. Trata-se de regramento também utilizado pelas class actions for damages a fim de permitir afastar a formação de coisa julgada sob
alegação de que não houve representatividade adequada da parte que substituiu as demais em juízo.
101
procedimento coletivo225. Se ultrapassado o prazo para adesão (cut-off date), não haverá
prejuízo ao indivíduo, que poderá ajuizar seu processo individual.
Percebe-se, portanto, que o IRDR aproximou-se do modelo alemão, ao sujeitar todos
os processos individuais suspensos ao julgamento da tese fixada no incidente,
independentemente de qualquer formalização.
Todavia, não há previsão de que se possa afastar a aplicação do entendimento firmado,
sob alegação de deficiência na condução e representação do incidente instaurado.
Ademais, se por um lado o IRDR apresentar como vantagem em relação à tutela
coletiva a formação de coisa julgada pro et contra sobre todas as causas repetitivas226, a
ausência de coisa julgada erga omnes e pro futuro é um dos problemas centrais do novo instituto
do Código de Processo Civil.
Isso porque o julgamento do IRDR tão somente fixará a tese jurídica a ser aplicada aos
processos suspensos e futuros, mas não há formação de coisa julgada erga omnes e pro futuro,
exigindo-se sempre ajuizamento ou prosseguimento dos processos individuais, ainda que com
aplicação de todas as consequências processuais do julgamento vinculante227.
Esta situação, de forma reflexa, incentiva o ajuizamento de demandas individuais,
sobretudo porque não há previsão legal de suspensão do prazo prescricional das pretensões
individuais enquanto pendente de análise o incidente.
O IRDR, assim, desconsidera os custos sociais e econômicos envolvidos. Pretender
que a solução para a litigância repetitiva passe tão somente pelo estabelecimento de uma tese
jurídica a ser obrigatoriamente aplicada aos inúmeros processos futuros – que deverão ser
ajuizados para verem o direito reconhecido – sucumbe a qualquer análise econômica do direito
que se faça.
Nessa linha, afirma Erik Navarro Wolkart, ao tratar do número de demandas no Poder
Judiciário brasileiro, custos sociais, econômicos e externalidades positivas e negativas de cada
processo judicial:
Uma alternativa seria buscar alguma forma de molecularização desses conflitos,
agregando-os em ações civis públicas, ao menos quando se tratar de direitos coletivos
ou individuais homogêneos, como costuma ser o caso de demandas consumeristas.
Nesses casos, proposta a tutela coletiva, ou molecularizadas as demandas individuais
por outro mecanismo, não há mais qualquer razão ou interesse de agir que justifique
225 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 91. 226 De fato, em se tratando de direitos individuais homogêneos, no âmbito do processo coletivo, a sentença de improcedência
não produz coisa julgada, permitindo-se que os lesados promovam suas ações individuais, o que fomenta a situação de
insegurança jurídica e desigualdade, conforme será melhor analisado no próximo tópico. 227 Possibilidade de improcedência liminar (art. 332, III); tutela provisória de evidência (art. 311, II); inexistência de reexame necessário (art. 496, § 4º); possibilidade de apreciação monocrática pelo Relator nos Tribunais; possibilidade de interposição
de Reclamação; impossibilidade de subida de recursos excepcionais.
102
os custos sociais de uma nova demanda individual com tramitação autônoma. [...] Os
ganhos econômicos de escala são evidentes, reforçados ainda pela segurança jurídica
e pela promoção da igualdade, externalidades positivas que decorrem de uma decisão
homogênea para situações idênticas, evitando inclusive rediscussões futuras228.
Não há, portanto, como escapar da conclusão de que é indiscutível a superioridade, em
termos de efetividade, da ação coletiva e da coisa julgada erga omnes formada no processo
coletivo229.
5.2.2 Caráter meramente repressivo
O anteprojeto do Código de Processo Civil/2015, de autoria do Senador José Sarney,
previa em seu artigo 895:
é admissível o incidente de demandas repetitivas sempre que identificada controvérsia
com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica
questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de
coexistência de decisões conflitantes230.
Destaca-se o mencionado artigo em razão da presença do vocábulo potencial, que
permitiria a instauração do incidente desde logo ao se verificar que determinada controvérsia
jurídica tinha potencial de causar grave insegurança jurídica. Seria permitido, assim, a pronta
solução da questão, antes mesmo que o Poder Judiciário recebesse milhares de processos sobre
o tema, revelando uma função preventiva da litigiosidade de massa e repetitiva.
O texto aprovado, porém, exige que a repetição de processos seja efetiva. Assim, não
basta verificar desde logo a potencialidade de determinada demanda causar insegurança
jurídica, exige-se que de fato cause, revelando o caráter repressivo do instituto.
Parte da doutrina defende a opção legislativa em razão do necessário amadurecimento
e discussão da controvérsia para robustecer e qualificar a decisão tomada no incidente, evitando
que questões não consideradas no incidente causem a sua modificação ou superação, o que
operaria em prejuízo à própria efetividade e objetivo do instituto de trazer segurança jurídica231.
228 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, pp. 321-322. 229 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, p. 615. 230Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4550297&ts=1567530892297&disposition=inline.
Acesso em: 29 mar. 2020. 231 CAMBI, Eduardo; FOGAÇA, Mateus Vargas. Incidente de resolução de demandas repetitivas no Novo Código de
Processo Civil. Revista de Processo, v. 243, 2015. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boleti
m/bibli_bol_2006/RPro_n.243.13.PDF. Acesso em: 26 mar. 2020.
103
Em sentido contrário, em defesa do caráter preventivo do IRDR se manifestaram
Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Roberto de Aragão Ribeiro Rodrigues ao analisarem o
projeto em trâmite no parlamento:
Outra constatação acerca deste primeiro artigo que disciplina o incidente refere-se ao
seu caráter preventivo. Com efeito, a expressão ‘controvérsia com potencial de gerar
relevante multiplicação de processos’ deixa evidente tal característica. E é altamente
desejável que assim o seja, tendo em vista que um dos seus objetivos é justamente o
de evitar a coexistência de decisões conflitantes, provocadora da insegurança jurídica
que tanto descontenta nossa sociedade. No que diz respeito ao momento de sua
instauração, há quem sustente que o ideal seria que o incidente fosse suscitado
somente quando já houvesse algumas sentenças antagônicas a respeito do assunto.
Para esta parcela da doutrina, o incidente deveria ter apenas caráter repressivo e
respeitar um maior amadurecimento da questão no âmbito do processamento das
demandas repetitivas no primeiro grau. Com efeito, uma vez acolhida tal proposta,
restaria comprometido o caráter nitidamente preventivo que a comissão de juristas
designada para elaborá-la procurou atribuir ao procedimento modelo232.
Retomemos o exemplo utilizado ao tratar dos requisitos para instauração do IRDR,
mas que aqui também se encaixa à crítica ao modelo repressivo adotado pelo legislador. Nos
casos notórios de desastre ambiental envolvendo as barragens de Mariana e Brumadinho,
exigir-se-ia o ajuizamento de milhares de processos para somente depois cogitar-se a
possibilidade de instauração do incidente.
Admitindo-se o caráter preventivo, seria possível vislumbrar o manejo de IRDR logo
após a ocorrência da catástrofe ambiental a fim de se definir, por exemplo, a espécie de
responsabilidade civil a ser aplicada ao caso além da extensão da indenização devida (danos
morais, lucros cessantes, danos morais coletivos, etc.). A depender da definição jurídica tomada
pelo tribunal competente, o longo trâmite processual pode ser abreviado. Se o Tribunal decidir
que a responsabilidade é do tipo integral – ou seja, independe da prova de culpa e situações de
caso fortuito e força maior não excluem a responsabilidade – parece-nos que pouca ou quase
nenhuma instrução probatória será necessária para fixar a responsabilidade civil, abreviando o
iter processual.
5.2.3 IRDR somente para questões de direito
Uma vez mais verifica-se importante alteração ocorrida no curso do trâmite legislativo
do projeto de Código de Processo Civil/2015. Seu anteprojeto, de autoria do Senador José
Sarney, previa, tal como a lei promulgada, o IRDR tão somente para questões unicamente de
direito.
232 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Reflexões sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no Projeto de novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, n. 211, pp.
195-196.
104
Todavia, conforme apontado por Marcos de Araújo Cavalcanti, durante a tramitação
legislativa chegou-se a prever o cabimento do IRDR também para a resolução de questão fática
controvertida, o que aproximaria o novo instituto do musterverfahren do direito alemão e da
GLO (Group litigation order) do direito inglês233.
Em que pese a opção legislativa, o autor prossegue defendendo a vantagem da
utilização do IRDR para dirimir questões predominantemente fáticas, desde que decorram de
origem comum e sejam homogêneas, ou seja, prevaleçam os aspectos comuns sobre os
individuais.
Nesses casos, a decisão proferida no IRDR seria, a exemplo do ocorrido nas ações
coletivas que tutelam direitos individuais homogêneos, genérica, reconhecendo apenas o dever
de indenizar os prejuízos causados, permitido que as vítimas demonstrem, nos autos de seus
processos individuais repetitivos, o dano e sua quantificação234.
Assim, a vinculação da decisão tomada no IRDR instaurado sobre determinada questão
fática, comum e homogênea, não seria ampla e absoluta, mas restrita aos processos que
discutam a mesma questão235.
Para comprovar a eficácia desta opção, Marcos de Araújo Cavalcanti valeu-se também
de exemplo de dano ambiental, mencionando a hipótese de dano em rio ocasionado por empresa
multinacional, o que teria causado prejuízos às famílias ribeirinhas. Nessa situação, seria viável
e recomendável instaurar-se IRDR para definir a questão fática comum e homogênea referente
à existência do dever de o autor da conduta lesiva indenizar as vítimas pelos prejuízos causados.
Fixada a obrigação, as vítimas demonstrariam apenas a existência do dano individual, o nexo
de causalidade e a quantificação do dano236.
Defendendo a vantagem do modelo que permite apreciar a questão de fato por meio
de IRDR, assim se manifestaram Graziela Argenta e Marcelo da Rocha Rosado:
a limitação do objeto do IRDR às questões ‘unicamente de direito’ foi infeliz,
sobretudo pela dificuldade, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, na definição
de questão de fato ou questão de direito. Aqui deveria o código ter optado pela
admissão das pretensões isomórficas (questões de direito que possuem elementos de
fato ou de direito comuns), tal como comumente adotado no direito comparado. Isso
porque o texto não se confunde com a norma, e esta é o resultado da interpretação (os
fatos contribuem para a reconstrução do ordenamento jurídico, quando da
interpretação operativa)237.
233 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 220. 234 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 220. 235 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 221. 236 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 221. 237 ARGENTA, Graziela; ROSADO, Marcelo da Rocha. Do processo coletivo das ações coletivas ao processo coletivo dos casos repetitivos: modelos de tutela coletiva no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Eletrônica de Direito Processual.
Rio de Janeiro, ano 11, v. 18, n. 1 apud BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 32.
105
5.2.4 Ausência de suspensão do prazo prescricional das pretensões individuais
Conforme abordado no presente trabalho, o projeto aprovado pela Câmara dos
Deputados previa: “admitido o incidente, suspender-se-á a prescrição das pretensões nos casos
em que se repete a questão de direito”.
Todavia, o dispositivo foi retirado durante a tramitação no Senado Federal; não
constou do texto aprovado e promulgado, por isso, não é possível cogitar atualmente a
suspensão ou interrupção do prazo prescricional no âmbito de instauração de IRDR.
A situação acaba, de forma reflexa, incentivando o ajuizamento de demandas
individuais, sobretudo porque não há previsão legal de suspensão do prazo prescricional das
pretensões individuais enquanto pendente de análise o incidente.
Ou seja, imaginemos determinada lesão de massa cujo prazo prescricional para reparar
o dano ou afastar a conduta ilícita esteja próximo de se esgotar.
Considerando que a admissão do IRDR gera a necessidade de se proceder à “mais
ampla e específica divulgação e publicidade” (art. 979 do Código de Processo Civil), aqueles
atingidos, e eventualmente (em caso de procedência) beneficiados pelo acolhimento do pedido,
que sequer tinham conhecimento do direito violado deverão, se quiserem evitar ver sua
pretensão fulminada pela prescrição, ajuizar sua demanda individual, estimulando a
litigiosidade.
Isso ocorre porque a previsão de suspensão do prazo prescricional das pretensões
individuais enquanto pendente o IRDR, prevista no art. 900, § 5º do substitutivo da Câmara dos
Deputados, foi retirada do texto final, sob a alegação de que seria relativa a direito material e
de que o Código de Processo Civil não seria o diploma adequado para esta previsão.
A previsão permitiria aos interessados aguardar o julgamento final do IRDR e somente
ajuizar sua demanda individual se a tese fixada lhe fosse favorável, evitando-se gastos inúteis
e a utilização desnecessária da máquina judiciária238.
Como foi retirada, embora a ampla publicidade do processamento do IRDR seja
bastante salutar para garantir o acesso ao Poder Judiciário e a tutela efetiva dos direitos lesados,
verifica-se que, como atualmente positivado, a ausência de coisa julgada pro futuro e erga
omnes e a ausência de causa suspensiva da prescrição poderá incentivar o ajuizamento de ações
individuais.
Por outro lado, no regime das ações coletivas, entende-se que, com fundamento nos
artigos 240, § 1º, do Código de Processo Civil e 202, I, do Código Civil, ocorre a interrupção
238 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 170.
106
da prescrição para as demandas individuais relativas ao evento que ensejou a propositura da
ação coletiva. Revela-se, portanto, mais uma vantagem da ação coletiva em relação aos
mecanismos de padronização das decisões judiciais previstos no Código de Processo Civil 239.
5.2.5 Precedentes vinculantes: meio constitucional para a efetiva e qualitativa redução
de processos?
Embora já tenhamos tratado do modelo de precedentes previsto pelo Código de
Processo Civil, além da necessária adequação e interpretação do instituto segundo a tradição
jurídica brasileira, outro aspecto do tema merece ser abordado: a redução dos processos.
A implantação do inédito modelo de precedentes pelo legislador brasileiro teve como
origem a explosão da litigiosidade de massa e repetitiva, além da ineficiência do atual modelo
de processo coletivo para fazer frente a este novo tipo de demanda processual.
Diante desse cenário, implantou-se um sistema conferindo eficácia vinculante às
decisões tomadas em determinados instrumentos, notadamente o IRDR, dentre outros previstos
no rol trazido pelo artigo 927 do Código de Processo Civil.
Interessante, porém, o estudo elaborado por Georges Abboud no sentido de inexistir
relação entre quantidade de processos e efeito vinculante das decisões. Para tanto, o autor parte
de duas constatações: a primeira, no sentido de que a simples qualidade de eficácia vinculante
não retira a necessidade de interpretação; e a segunda, baseada na análise de dados oriundos da
Alemanha, de Portugal e do Brasil240, que indicaram não ter havido redução do número de
processos após a implementação de regimes de vinculação decisória.
Em primeiro lugar, na mesma linha do que já sustentamos, Georges Abboud afirma
ser equivocada a pretensão de que a simples edição de decisões com efeito vinculante permitiria
a resolução de diversos casos idênticos procedendo-se a um simples raciocínio dedutivo,
desprovido de qualquer atividade interpretativa241.
Embora se acredite que a ampliação do rol de decisões com efeito vinculante redunde
na diminuição de processos e na valorização da segurança jurídica, eis que permitiria que se
decidisse de maneira automática e isonômica diversos outros processos242, não se pode abrir
mão da atividade interpretativa, sob pena da aplicação de decisões com efeito vinculante pelos
239 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, p. 617. 240 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, pp. 691-698. 241 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 678. 242 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 681.
107
juízos inferiores ocorrer de forma mecânica e silogística, como se fosse possível ao Poder
Judiciário decidir por atacado243.
A segunda constatação trazida pelo autor, e que confirma a primeira, é no sentido da
inexistência de redução do número de processos em países que adotam a técnica de eficácia
vinculante a um rol de decisões tomadas pelos tribunais.
Ao analisar o número de processos ajuizados em curso no âmbito das Cortes
constitucionais da Alemanha, de Portugal e do Brasil, o autor conclui que não houve diminuição
em razão da adoção do modelo de eficácia vinculante:
Isso porque o efeito vinculante, enquanto medida isolada, não é capaz de alterar todo
o sistema judicial brasileiro, reduzindo drasticamente o número de processos que nele
ingressam a cada ano, até porque, com o aumento da população e da conscientização
sobre seus direitos e deveres, o número de controvérsias judiciais tende a aumentar
anualmente. O efeito vinculante, portanto, teria que vencer esse aumento natural e
ainda contribuir eficazmente para a redução gradativa dos demais processos. Sem
dizer que, com base em Dworkin, desde já concluímos pela impossibilidade de se
encontrar uma fórmula apriorística que garanta aos juízes alcançarem a mesma
solução jurídica diante de diferentes e complexos processos. [...] Na realidade, muito
pouco contribuirá, para nossa democracia, a redução de processos sem que
concomitantemente também ocorra gradativa melhoria qualitativa nas decisões
judiciais a ser refletida em motivações judiciais mais alentadas, que examinem o
contexto fático-jurídico da lide, e não se limitem a fundamentar com base em súmulas
ou decisões dos Tribunais Superiores – como se esses precedentes já trouxessem a
norma pronta e acabada a ser aplicada no caso concreto244.
Portanto, ao menos por ora, não há sequer comprovação de que a adoção de um amplo
regime de vinculação decisória gere a pretendida redução do número de processos, embora
possa redundar em um maior controle da atividade interpretativa dos juízes e um menor grau
qualitativo das decisões judiciais; seu resultado é negativo à justa e efetiva reparação do direito
lesado.
5.3 Complementaridade e interdependência entre os modelos de tutela
5. 3.1 Regime amplo de tutela de direitos coletivos e de tutela coletiva de direitos
Com a edição do Código de Processo Civil/2015, o enfrentamento da litigiosidade de
massa e repetitiva passou a ser composto por dois modelos diversos: (i) o modelo das ações
coletivas; e (ii) o modelo de julgamento/resolução das questões repetitivas245.
No mesmo sentido, dispõe o Enunciado 345 do Fórum Permanente de Processualistas
Civis:
243 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 680. 244 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, pp. 699-700. 245 BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 31.
108
o incidente de resolução de demandas repetitivas e o julgamento dos recursos
extraordinários e especiais repetitivos formam um microssistema de solução de casos
repetitivos, cujas normas de regência se complementam reciprocamente e devem ser
interpretadas conjuntamente.
No mesmo sentido o Enunciado n. 346: “A Lei n. 13.015, de 21 de julho de 2014,
compõe o microssistema de solução de casos repetitivos”.
O IRDR surgiu da necessidade de fazer frente à preocupante multiplicação de
demandas seriadas ou repetitivas, que passavam a ser julgadas artesanalmente, de forma
pulverizada pelo Poder Judiciário.
Foi nesse quadro, e considerando a ineficiência revelada pelo modelo brasileiro de
tutela coletiva, que o legislador previu um sistema, um modelo de julgamento de questões
repetitivas, tendo como coqueluche o IRDR.
O incidente é voltado à resolução dos direitos individuais homogêneos246, aqueles que
mais geram demandas em série e justamente no qual os maiores entraves da tutela processual
coletiva se revelam: (i) regime de coisa julgada secundum eventum litis que não impede
ajuizamento de novas ações por parte do particular lesado; (ii) inexistência de obrigação legal
de suspensão dos processos individuais e informação deficitária sobre a existência de ação
coletiva em andamento; (iii) rol restrito de legitimados, de modo que o indivíduo lesado, para
acessar o processo coletivo, requer a colaboração e participação de um ente público ou privado,
preferindo, por isso, o ajuizamento da ação individual.
No mesmo sentido, afirma Bruno Dantas:
O escopo do IRDR é a tutela isonômica e efetiva dos direitos individuais homogêneos
e seu advento traduz o reconhecimento do legislador de que a chamada ‘litigiosidade
de massa’ atingiu patamares insuportáveis em razão da insuficiência do modelo até
então adotado, centrado basicamente na dicotomia tutela individual x tutela coletiva.
Essa realidade fez com que surgisse um movimento de formulação de técnicas de
tutela pluri-individual, para auxiliar na proteção dos direitos individuais
homogêneos247.
246 Marcos de Araújo Cavalcanti, porém, não exclui a possibilidade, em tese, de configuração de IRDR em determinado caso
envolvendo direito coletivo: “Todavia, não é qualquer repetitividade de demandas coletivas que enseja a instauração do
IRDR. Em regra, a repetição de processos coletivos que versem sobre direitos difusos ou coletivos stricto sensu não
autorizará a instauração do IRDR. Nesses casos, não haverá, em tese, risco à isonomia e à segurança jurídica. Na verdade, ocorrerá litispendência ou conexão entre essas demandas coletivas, de modo que os processos coletivos devem ser reunidos
para julgamento simultâneo. [...] Portanto, sendo hipótese de demanda coletiva que versa sobre direitos difusos ou coletivos
stricto sensu, a natureza do direito material envolvido faz com que o ajuizamento repetitivo de processos configure,
normalmente, litispendência ou conexão entre demandas. Não se exclui, entretanto, a possibilidade desses processos
formarem com outras demandas (coletivas e/ou individuais) uma repetitividade de questões unicamente de direito. [...]
Contudo, a repetição de processos coletivos que, com mais facilidade, fará ensejo à suscitação do IRDR será aquela
relacionada aos direitos individuais homogêneos”. CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de
demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, pp. 218-219. 247 ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordinário e a nova função dos tribunais
superiores no direito brasileiro. 4. ed. São Paulo: RT, 2017, pp. 539-540.
109
Ressaltando a complementaridade dos instrumentos, Karol Araújo Durço afirma:
Resta evidente, portanto, que os mecanismos de julgamento coletivo não representam
obstáculos nem mesmo concorrência ao processo coletivo. Na verdade, cuidam-se de
instrumentos complementares dentro da nova sistemática processual brasileira, sendo
todos mecanismos voltados para a melhor forma de proteção dos direitos materiais
envolvidos. Ademais, a mencionada complementaridade resta evidenciada em
especial quando se tratam de direitos individuais homogêneos ou mesmo direitos de
classe, em relação aos quais a experiência prática do processo brasileiro tem
demonstrado forte tendência de pulverização de demandas e, muitas vezes, a
discussão de casos eminentemente de direito248.
Percebe-se, assim, que a tutela dos direitos individuais homogêneos é o ponto de
contato entre o regime da tutela processual coletiva, das ações coletivas, e do modelo de
resolução de questões repetitivas, capitaneado pelo IRDR.
Nessa ordem de ideias, o incidente afasta a análise de sua constitucionalidade e
admitindo-se uma correta aplicação e interpretação por parte dos Tribunais superiores, pode se
revelar um importante instrumento no enfrentamento da litigiosidade de massa e repetitiva,
complementando e valorizando o modelo de ações coletivas, que passariam a poder centrar seus
esforços na tutela dos direitos naturalmente coletivos.
Não se quer com isso retirar do escopo da ação coletiva a tutela de direitos individuais
homogêneos, mas fazer a grande massa destes direitos, se repetitivos, sejam tutelados pelo
IRDR, deixando para a ação coletiva aqueles que tenham especial relevância social e os direitos
difusos e coletivos, tão importantes no atual modelo constitucional.
Esta interpretação conciliatória e de viés complementar dos institutos, porém,
pressupõe uma nova visão sobre a relação entre os mencionados modelos, afastando-se a
prevalência do IRDR e resgatando-se o caráter preferencial da ação coletiva, notadamente ante
suas vantagens.
5.3.2 Subsidiariedade do regime de tutela do Código de Processo Civil frente à ação
coletiva
Como visto, os institutos inspiradores do IRDR convivem, cada qual em seu regime
jurídico, com outros instrumentos de tutela coletiva.
No caso da GLO do direito inglês, há um aspecto bastante relevante para análise e
aplicação do IRDR no Brasil: o seu caráter subsidiário frente ao processo coletivo.
248 DURÇO, Karol Araújo. As soluções para demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil e suas implicações para
o processo coletivo. In: (coord.) DIDIER, Fredie. Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 533.
110
Com efeito, ao apreciar o pedido de instauração da GLO, a Corte inglesa deve, de
acordo com o caso concreto, verificar se não é mais eficiente determinar que os processos sejam
reunidos em litisconsórcio (consolidated litigation ou ordinary joinder of co-claimants) ou
aplicar as regras das ações coletivas (representativa actions), revelando, portanto, a
subsidiariedade do instituto e a preferência pela utilização das regras da ação coletiva249.
Todavia, no atual modelo brasileiro parece-nos que, embora de maneira não expressa
e/ou pretendida pelo legislador, o regime de julgamento de processos repetitivos trazido pelo
Código de Processo Civil tem potencial para colocar o processo coletivo em segundo plano.
Basta verificar que o IRDR tem o condão de suspender o andamento dos processos
coletivos que tratem da questão repetitiva admitida para julgamento, conforme previsto
expressamente no artigo 982, I, do Código de Processo Civil.
Em complemento, o artigo 985, I, do mesmo diploma, determina a aplicação da tese
jurídica decidida no IRDR a todos os processos, inclusive os coletivos, que, aliás, já estariam
suspensos desde a admissão do incidente.
No mesmo sentido, Marcos de Araújo Cavalcanti conclui que as ações coletivas
também ficam sujeitas ao regime jurídico do IRDR, de forma que: (a) as questões de direito
discutidas podem ser, igualmente, examinadas coletivamente no âmbito do IRDR; (b) os
processos coletivos repetitivos serão sobrestados até a fixação da tese jurídica pelo tribunal; (c)
a tese jurídica será aplicada vinculativamente às ações coletivas futuras250.
Esta lógica de supremacia do IRDR sobre as ações coletivas precisa ser invertida, pois
a tutela processual coletiva se revela uma técnica processual superior, de modo que deve ser
preferida em relação aos incidentes processuais coletivos no enfrentamento dos litígios de
massa251.
De fato, são inúmeras as vantagens da tutela processual coletiva em relação ao regime
de julgamento de processos repetitivos trazido pelo Código de Processo Civil, notadamente nos
seguintes aspectos: legitimidade, competência, coisa julgada, liquidação/execução da sentença
proferida no processo coletivo, fluid recovery e possibilidade de solução consensual do conflito.
Veremos cada um dos pontos com mais detalhes, valendo-nos da análise feita por
Patrícia Miranda Pizzol.
Quanto à legitimidade, a ação coletiva seria mais democrática, pois os legitimados para
a ação coletiva são entes públicos e privados destinados à defesa dos direitos transindividuais,
249 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 89. 250 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 217. 251 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 399.
111
melhor representando a sociedade e muitas vezes com mais condições materiais de fazer frente
aos grandes litigantes252.
Quanto à competência, as ações coletivas são julgadas em primeiro grau, pelo juízo do
local do dano ou na capital do Estado, o que garante um debate mais abrangente das questões
envolvendo a coletividade. A regra própria de competência das ações coletivas, prevista no
Código de Defesa do Consumidor, permite que uma única demanda coletiva tenha alcance
nacional, ao passo que a decisão do IRDR, em regra, não terá eficácia nacional, salvo se
interposto recurso extraordinário ou especial253.
No que diz respeito à coisa julgada, mais uma vantagem das ações coletivas frente ao
regime de enfrentamento da litigiosidade repetitiva previsto pelo Código de Processo Civil,
pois, em caso de julgamento favorável no IRDR, os interessados deverão ajuizar processo de
conhecimento para ver reconhecido seu direito, o que gera, por via reflexa, aumento da
litigiosidade, embora o rito processual seja facilitado pela vinculação pretendida pelo
legislador.
Segundo Patrícia Miranda Pizzol, mesmo abreviando o rito processual,
há a possibilidade de que a tese não seja aplicada pelo julgador (principalmente se
levarmos em consideração a inconstitucionalidade da vinculação), ou de que não seja
aplicada liminarmente, ou que seja aplicada de modo errado; há também a
possibilidade de interposição de recurso contra a sentença, que, no processo individual
tem, em regra, efeito suspensivo (na ação coletiva, a regra é a ausência de efeito
suspensivo)254.
No caso da ação coletiva, porém, a procedência opera coisa julgada erga omnes,
bastando que os beneficiados pela decisão ajuízem ação de liquidação e/ou execução, até
mesmo em cumprimento provisório.
A liquidação/execução pode ser dispensada, caso se entenda possível flexibilizar a
regra prevista no artigo 95 do Código de Defesa do Consumidor255, fixando-se desde logo
condenação específica e forma de reparação do dano causado.
252 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, pp. 608-610. 253 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 613. 254 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,
2019, p. 614. 255 “A regra – inspirada na visão privatista de que os direitos e interesses individuais homogêneos são estritamente
individuais – considera que a situação pessoal de cada vítima e sucessor não pode ser individualizada no processo coletivo,
onde, apenas, se discute a tese jurídica comum (direitos e interesses de origem comum. [...] A disposição, de todo lógica em
uma primeira análise, não resiste a uma visão coletiva do fenômeno. A pulverização das demandas na fase executiva ‘é
desvantajosa para o exercício jurisdicional, obstando a maximização de uma série de aspectos inerentes à eficiência e à efetividade do processo)’”. GAJARDONI, Fernando da Fonseca. O processo coletivo refém do individualismo. In: (coord.)
DIDIER, Fredie. Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 142.
112
Fernando da Fonseca Gajardoni entende possível que, por exemplo, em ação civil
pública visando cobrar e restituir tarifa de energia elétrica ilegal, o magistrado preveja na
sentença que a restituição poderá ser feita diretamente nas faturas subsequentes, evitando a
execução individual da sentença e eventual desinteresse em razão do pequeno valor. O autor
sustenta, igualmente, a possibilidade de execução invertida (em que o condenado se
responsabiliza para calcular o valor devido e satisfazê-lo, com pagamento individualizado ou
depósito nos autos da ação coletiva), com fundamento no art. 536, § 1º do Código de Processo
Civil 256, que permite a tutela específica da obrigação257.
Nesta situação, sequer seria necessário ajuizar liquidação/execução do julgado
coletivo. É uma vantagem do processo coletivo, eis que no regime de julgamento repetitivo do
Código de Processo Civil será sempre necessário ajuizar ação individual para se obter o
reconhecimento do direito lesado, sem possibilidade de reparação direta por meio do IRDR ou
de outro instrumento previsto no rol do artigo 927 do Código de Processo Civil.
A vantagem do processo coletivo se revela ainda mais evidente no caso das lesões de
pequena monta (small claims), ante o desinteresse da parte lesada em percorrer o longo caminho
do processo de conhecimento caso o direito tenha sido reconhecido na forma de um dos
instrumentos de enfrentamento da litigância repetitiva previsto no Código de Processo Civil.
Segundo Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Larissa Claire Pochmann da Silva:
Os danos resultantes de lesões de massa são, frequentemente, de pequena monta se
considerados separadamente, o que torna o ajuizamento de ações individuais
desestimulante e, na prática, quase inexistente, demonstrando, assim, a fragilidade do
acesso à justiça [...]. As ações coletivas, se bem estruturadas, são, portanto, um efeito
instrumento para o acesso à justiça, permitindo a busca de reparação de danos de
pequenas montas. Por outro lado, o incidente de resolução de demandas repetitivas
teve seu advento na perspectiva de trazer racionalização e eficiência diante dos
conflitos de massa, evitando que haja ofensa à isonomia, à prestação jurisdicional em
um tempo razoável e à segurança jurídica nos julgamentos de questões comuns de
direito, material ou processual, só funcionando quando as demandas já estão em
tramitação no Poder Judiciário. Se a lesão for ínfima, não haverá incentivo, ao autor
da ação para buscar sua reparação no Poder Judiciário258.
Esta vantagem se confirma ainda com a possibilidade de realização do fluid recovery,
previsto no artigo 100 do Código de Defesa do Consumidor, quando, havendo sentença
256 Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá,
de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente,
determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente. § 1º Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá
determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento
de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial. 257 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. O processo coletivo refém do individualismo. In: (coord.) DIDIER, Fredie.
Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, pp. 143-144. 258 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; SILVA, Larissa Clare Pochmann da. Ações coletivas e incidente de resolução de demandas repetitivas: algumas considerações sobre a solução coletiva de conflitos. In: ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo
coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, pp. 545-546.
113
favorável e não se habilitando um número de interessados compatível com a gravidade do dano,
qualquer dos legitimados poderá promover a execução/liquidação em favor do fundo de direitos
difusos.
Enfim, há inúmeras vantagens na utilização do modelo de processo coletivo frente ao
regime proposto pelo Código de Processo Civil (em especial o IRDR). Assim, embora se
reconheça a complementaridade e interdependência entre ambos os modelos para um adequado
enfrentamento dessa nova forma de litigiosidade, é de se reconhecer também a superioridade
da ação coletiva.
E este é um ponto fundamental na apreciação em conjunto do IRDR com o processo
coletivo no Brasil. Assim, parece possível sustentar, inspirando-se no modelo inglês e
considerando as vantagens próprias da tutela processual coletiva, que, para a instauração de
qualquer IRDR, é requisito implícito do ordenamento brasileiro o seu caráter subsidiário; ele
somente poderá ser manejado quando inviável ou injustificável, no caso concreto, a ação
coletiva.
Nesse sentido, defende Marcos de Araújo Cavalcanti:
Por todas as razões antes expostas, o presente trabalho defende a aplicação subsidiária
do IRDR. O magistrado, ao verificar que as ações coletivas podem adequadamente
resolver os litígios de massa, deve dar prioridade a essa técnica processual. Sugere-
se, então, na linha das GLO do direito inglês, que o IRDR somente seja aplicado,
subsidiariamente, quando restar demonstrado que técnica processual das ações
coletivas não é a mais apropriada para a resolução dos conflitos. Verificada, na
hipótese levada ao tribunal, essa aptidão das ações coletivas, o processamento do
IRDR deve ser indeferido, por falta de interesse de agir. Contudo, como dito alhures,
é preciso reconhecer a necessidade de aperfeiçoamento do sistema processual coletivo
brasileiro. A partir daí a tutela coletiva dos direitos de massa por meio das ações
coletivas poderá ser realmente mais bem utilizada, colocando a técnica do IRDR em
plano secundário259.
Assim, segundo tal interpretação, não comprovada a impossibilidade ou
inconveniência do processo coletivo no caso concreto, faltaria interesse de agir para o
processamento do incidente, na modalidade adequação, eis que haveria outra forma mais
efetiva de tutela do direito lesado.
5.3.3 O veto ao artigo 333 do Código de Processo Civil
Embora a doutrina venha há muitos anos defendendo a edição de um Código de
Processo Coletivo, o legislador brasileiro pouca atenção deu ao tema. O Código Brasileiro de
Processo Coletivo não avançou, sequer a nova Lei de Ação Civil Pública (Projeto de Lei n.
259 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 410.
114
5.139/2009), referendada pela doutrina, teve melhor sorte; foi arquivada ainda na Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
Por outro lado, o Projeto de Lei do Senado n. 66/2010, de autoria do Senador José
Sarney, gerou grande interesse e preocupação nos parlamentares, o que culminou na edição do
Código de Processo Civil/2015.
A despeito das críticas postas pela doutrina, o novo Código não destinou sequer um
capítulo sobre o processo coletivo, pretendendo resolver o problema da litigiosidade de massa
e repetitiva tão somente pelo emprego de seus novos instrumentos, em especial o IRDR.
O projeto do Código de Processo Civil/2015 aprovado, contudo, previu duas formas
de contato e interação com a tutela processual coletiva: (i) o artigo 333, que prevê a conversão
da ação individual em ação coletiva; (ii) o artigo 139, X, que prevê a intimação dos legitimados
coletivos para o ajuizamento de demanda coletiva.
O artigo 333 do Código de Processo Civil contava com a seguinte redação:
Art. 333. Atendidos os pressupostos da relevância social e da dificuldade de formação
do litisconsórcio, o juiz, a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria
Pública, ouvido o autor, poderá converter em coletiva a ação individual que veicule
pedido que:
I – tenha alcance coletivo, em razão da tutela de bem jurídico difuso ou coletivo, assim
entendidos aqueles definidos pelo art. 81, parágrafo único, incisos I e II, da Lei n.
8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e cuja ofensa
afete, a um só tempo, as esferas jurídicas do indivíduo e da coletividade;
II – tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a uma mesma relação
jurídica plurilateral, cuja solução, por sua natureza ou disposição de lei, deva ser
necessariamente uniforme, assegurando-se tratamento isonômico para todos os
membros do grupo.
§1º Além do Ministério Público e da Defensoria Pública, podem requerer a conversão
os legitimados referidos no art. 5º da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, e no art. 82
da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).
§2º A conversão não pode implicar a formação de processo coletivo para a tutela de
direitos individuais homogêneos.
§3º Não se admite a conversão, ainda, se:
I – já iniciada, no processo individual, a audiência de instrução e julgamento; ou
II – houver processo coletivo pendente com o mesmo objeto; ou
III – o juízo não tiver competência para o processo coletivo que seria formado.
§4º Determinada a conversão, o juiz intimará o autor do requerimento para que, no
prazo fixado, adite ou emende a petição inicial, para adaptá-la à tutela coletiva.
§5º Havendo aditamento ou emenda da petição inicial, o juiz determinará a intimação
do réu para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias.
§6º O autor originário da ação individual atuará na condição de litisconsorte unitário
do legitimado para condução do processo coletivo.
§7º O autor originário não é responsável por nenhuma despesa processual decorrente
da conversão do processo individual em coletivo.
§8º Após a conversão, observar-se-ão as regras do processo coletivo.
§9º A conversão poderá ocorrer mesmo que o autor tenha cumulado pedido de
natureza estritamente individual, hipótese em que o processamento desse pedido dar-
se-á em autos apartados.
§10. O Ministério Público deverá ser ouvido sobre o requerimento previsto no caput,
salvo quando ele próprio o houver formulado.
115
O dispositivo remete às ações que possuem eficácia que superam o direito da parte
autora, notadamente ante a dificuldade de se verificar de imediato a diferenciação do direito
envolvido, se exclusivamente individual, se individual homogêneo, ou ainda se coletivo (lato
sensu), bem como a extensão do provimento jurisdicional a ser obtido.
O inciso I do artigo corresponde às ações individuais com efeitos coletivos, ou seja,
aquelas ações ajuizadas como individuais, mas cuja decisão atingirá a todos, toda a coletividade,
ainda que indiretamente260. Exemplo recorrente da doutrina é o relacionado ao direito de
vizinhança, como na situação em que determinado indivíduo é vizinho de um estabelecimento
comercial do tipo bar que causa intensa poluição sonora naquela localidade261.
O indivíduo lesado em seu direito de vizinhança move ação inibitória em face do local
com fundamento no Código Civil (artigos 1.277 a 1.281), buscando fazer cessar a poluição
sonora advinda do uso nocivo da propriedade. Neste caso, embora individual o direito
envolvido e o processo manejado, a decisão tomada terá efeitos coletivos, pois a cessação dos
ruídos também beneficiará os demais vizinhos do estabelecimento. Portanto, é possível, e
eventualmente recomendável, a conversão em ação coletiva.
O inciso II, por sua vez, corresponde às ações pseudoindividuais, ou seja, ações
embasadas em relação, de fato ou de direito, que é indivisível, de modo que deva receber uma
tutela jurisdicional unitária. Isso porque o pedido, embora baseado em interesse subjetivo,
deveria ter sido formulado coletivamente262. A doutrina traz como exemplo a ação de anulação
de assembleia movida por um acionista. Como a assembleia somente pode ser válida ou inválida
para todos, não cabe cisão do direito material envolvido263.
A técnica da conversão prevista no artigo analisado é reservada aos direitos difusos e
coletivos e não se aplica aos direitos individuais homogêneos (§ 2º); além disso, tem aplicação,
neste caso, o segundo instrumento (artigo 139, X, do Código de Processo Civil).
Parte da doutrina entende ser inconstitucional o artigo 333, pois concederia poder
autoritário ao juiz para realizar a conversão de uma ação individual em coletiva, violando o
260 BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 121. 261 “Os exemplos são variados: Um cadeirante que ingressa com ação judicial para obrigar a Municipalidade a oferecer, num
determinado trajeto, veículo com as especificidades necessárias ao seu transporte; um morador que, incomodado com o transtorno que uma feira livre lhe causa, ingressa com ação judicial para proibir sua realização; um sujeito que, inconformado
com uma propaganda enganosa, que fere sua inteligência e boa-fé, ingressa com ação judicial para retirá-la dos meios de
comunicação; um sujeito que, entendendo que determinada intervenção em monumentos mantidos em praças públicas viola o
seu direito a apreciar o patrimônio histórico e cultural, ingressa com ação para proibir tal conduta; um ouvinte de rádio que
ingressa com ação para tirar a ‘Voz do Brasil’ da programação com o argumento de que tem o direito de ouvir músicas e
informações no tempo em que dura o programa oficial”. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual do processo coletivo.
3. ed. Salvador: Juspodivm, 2016 apud BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 44. 262 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual do processo coletivo. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2016 apud BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018. 263 BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 49.
116
princípio da inércia jurisdicional, além de gerar obstáculo indevido ao prosseguimento da
demanda individual264.
No mesmo sentido, afirmam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:
Seria necessária a expressa concordância do autor individual, pois a ação – o direito
de ação – é dele. Caso o autor discordasse, não haveria conversão. O autor não poderia
ser obrigado a litigar da forma como querem MP ou Defensoria Pública, se o direito
de ação é dele. A natureza potestativa do direito de ação (CF, 5º, XXXV) dá a ele,
autor, o direito de obter a providência jurisdicional adequada, razão pela qual poderia
discordar do direito de conversão. Feita à força, contra a vontade do autor, terá sido
ferida a garantia constitucional do direito de ação265.
Por outro lado, há quem entenda que o dispositivo seria benéfico e constitucional, pois
não haveria qualquer frustação de acesso ao Poder Judiciário, eis que o autor da demanda
individual poderia continuar na ação coletiva na condição de litisconsorte unitário do autor da
ação coletiva. Eventual pedido individual prosseguiria em autos apartados, na forma descrita
pelo § 9º266.
Segundo Dalton Santos Morais, também não haveria violação à regra do opt out, pois
após a conversão da ação individual em coletiva bastaria o autor, que não é responsável por
qualquer despesa processual em razão da conversão (§ 7º), desistir de continuar na ação coletiva
como litisconsorte unitário, podendo, assim, ajuizar nova ação individual para ver garantido seu
direito de ter definida sua situação em ação individual independentemente da ação coletiva267.
O autor prossegue rebatendo as críticas trazidas por José Rogério Cruz e Tucci:
A argumentação de que o incidente de conversão da ação individual em coletiva
violaria o princípio da inércia da jurisdição, concederia ao juiz poder discricionário e
autoritário, bem como traria transtorno ao autor individual devido à possível
suspensão de sua demanda individual, é, com todo o respeito, desconectada das bases
do nosso direito, do próprio texto do art. 333 do NCPC projetado e até mesmo do
incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no NCPC sancionado pela
Presidente da República. Ora, qual seria a violação ao princípio da inércia
jurisdicional e qual o poder autoritário concedido ao juiz pelo art. 333 do NCPC
projetado, se o então dispositivo determinava como requisitos para a instauração do
incidente que deveria ocorrer (i) o atendimento do pressuposto da relevância social,
(ii) a existência de requerimento expresso do MP ou da DP e (iii) a oitiva prévia do
autor da ação individual?268
264 TUCCI, José Rogério Cruz e. Um veto providencial ao novo Código de Processo Civil. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2015-mar-17/paradoxo-corte-veto-providencial-cpc. Acesso em: 26 mar. 2020. 265 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT,
2015, p. 189. 266 MORAIS, Dalton Santos. A perda da oportunidade de coletivização do processo contra o poder público no novo Código
de Processo Civil. In: ZANETI JUNIOR, Hermes (coord.). Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 418. 267 MORAIS, Dalton Santos. A perda da oportunidade de coletivização do processo contra o poder público no novo Código
de Processo Civil. In: ZANETI JUNIOR, Hermes (coord.). Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, pp. 418-419. 268 MORAIS, Dalton Santos. A perda da oportunidade de coletivização do processo contra o poder público no novo Código
de Processo Civil. In: ZANETI JUNIOR, Hermes (coord.). Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 419.
117
O dispositivo, no entanto, foi objeto de veto presidencial sob a fundamentação abaixo:
da forma como foi redigido, o dispositivo poderia levar à conversão de ação individual
em ação coletiva de maneira pouco criteriosa, inclusive em detrimento do interesse
das partes. O tema exige disciplina própria para garantir a plena eficácia do instituto.
Além disso, o novo Código já contempla mecanismos para tratar demandas
repetitivas. No sentido do veto manifestou-se também a Ordem dos Advogados do
Brasil – OAB269.
O veto, portanto, sustentou, na linha das críticas de parte da doutrina, que o dispositivo
poderia representar ofensa ao direito das partes de demandar. Outro argumento foi o
entendimento de que não haveria necessidade de coletivização da lide, pois o Código de
Processo Civil já disporia de mecanismos suficientes para enfrentar demandas repetitivas.
Também não é de se descartar, considerando que as próprias razões de veto
mencionam a intervenção da OAB, os interesses dos advogados na manutenção do sistema com
maior número possível de processos individuais em detrimento dos coletivos, em razão dos
honorários advocatícios.
Sobre o tema, Ada Pellegrini Grinover afirma:
Entendem-se as razões, exclusivamente corporativas, da OAB. As ações coletivas
beneficiam a justiça e a coletividade, como foi visto acima, mas não aos advogados.
Como poderiam eles ajuizar milhares ou milhões de demandas individuais – como
acontece na judicialização da saúde, por exemplo – visando a um objetivo comum,
qual seja o pedido de aprovação de um medicamento mais benéfico pela Anvisa e sua
distribuição pelo SUS? Uma única ação coletiva resolveria o problema, privando os
advogados de seus honorários por milhares de causas esfaceladas. Mas pode-se
admitir que é possível o interesse público com o interesse dos advogados. Talvez tenha
faltado, no dispositivo, ressalvar a recompensa monetária para o advogado que moveu
a ação individual convertida em coletiva270.
Outro dispositivo de interação entre o processo coletivo e o Código de Processo Civil
é o artigo 139, X:
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código,
incumbindo-lhe: [...] X – quando se deparar com diversas demandas individuais
repetitivas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do
possível, outros legitimados a que se referem o art. 5º da Lei n. 7.347, de 24 de julho
de 1985, e o art. 82 da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, para, se for o caso,
promover a propositura da ação coletiva respectiva.
O dispositivo prevê que o magistrado, ao se deparar com demandas repetitivas que
possam ser objeto de ação coletiva, deve oficiar aos legitimados para a propositura de Ação
269 Diário Oficial da União. 17 mar. 2015, p. 52. Disponível em:
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=17/03/2015&jornal=1&pagina=52&totalArquivos=128.
Acesso em: 11 abr. 2020. 270 GRINOVER, Ada Pellegrini. A coletivização de ações individuais após o veto. In: CIANCI, Mirna et al. (coord.) Novo
Código de Processo Civil – impactos na legislação extravagante e interdisciplinar. v.1. São Paulo: Saraiva, 2016, pp. 15-23.
118
Civil Pública, a fim de se obter um julgamento uniforme com eficácia erga omnes, efeito
inexistente no IRDR.
A técnica prevista no dispositivo legal é destinada aos direitos individuais
homogêneos, ao passo que o trazido pelo artigo 333 estava destinado aos direitos difusos e
coletivos; são, portanto, instrumentos distintos e complementares271.
5.4 Outras formas de enfrentamento da litigiosidade repetitiva
Ao longo deste trabalho defendemos a necessidade de aperfeiçoamento da tutela
processual coletiva para que, superadas suas deficiências e entraves, possa, junto com o regime
de enfrentamento da tutela repetitiva previsto no Código de Processo Civil, formar um
macrossistema de enfrentamento deste tipo de litigiosidade.
Conforme abordamos no capítulo anterior, os regimes seriam complementares, embora
se reconheça a superioridade da tutela processual coletiva, que se revela instrumento mais
adequado para a resolução das demandas em série, por envolver formação de coisa julgada, por
permitir a imediata liquidação/execução, possibilidade de tutela das small claims, possibilidade
de solução consensual, inclusive extrajudicial, entre outras vantagens enumeradas no capítulo
anterior.
No entanto, esta conclusão não escapa de outra ainda mais certa: tal conjugação de
esforços entre os dois diferentes meios de tutela não é suficiente para resolver de forma
definitiva, duradora e eficaz a excessiva litigiosidade em voga no Brasil. É preciso muito mais.
Para tanto, pensamos ser indispensável uma reformulação de importantes aspectos do
processo civil, notadamente a gratuidade de justiça, a litigância de má-fé e predatória, além da
urgente introdução das novas ferramentas tecnológicas disponíveis.
Não será suficiente contratar milhares de servidores públicos, centenas de magistrados,
criar varas e tribunais se o problema não for enfrentado na causa e não apenas na consequência.
As reformas mencionadas pecaram justamente neste aspecto. Não têm a pretensão de
fazer cessar ou controlar a litigiosidade repetitiva, ou ao menos fazer com que não chegue com
tanta incidência ao Poder Judiciário, mas apenas de reduzir e racionalizar o enfrentamento e
reduzir o estoque de processos.
Para compreendermos melhor, pensemos na seguinte metáfora: o Poder Judiciário
atualmente é um quarto cheio de papéis, constantemente alimentado por mais e mais papéis. Os
processos são retirados manualmente por vários trabalhadores incumbidos desta tarefa. Há uma
271 GRINOVER, Ada Pellegrini. A coletivização de ações individuais após o veto. In: CIANCI, Mirna et al. (coord.) Novo
Código de Processo Civil – impactos na legislação extravagante e interdisciplinar. v.1. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 23.
119
antiga máquina, razoavelmente eficiente, capaz de retirar a maior parte dos processos de uma
única vez. No entanto, é uma máquina antiga, pesada, difícil de locomover, que está vazando
óleo e clamando por manutenção. Em razão disso, dificilmente é utilizada, embora, quando
funcione adequadamente, seja bastante eficaz na retirada de um grande volume de papéis. Esta
máquina é a ação coletiva.
Em razão dessa pouca ou insuficiente utilização, uma nova máquina foi comprada,
mais leve, ágil e eficiente em “moer” os papéis existentes na sala. Apesar disso, só pode ser
utilizada quando a sala já estiver muito cheia; parte dos papéis picados é jogada de volta para
dentro da sala, reduzindo sua eficácia. Esta máquina é o IRDR.
Não se discute, porém, a razão da sala estar cada vez mais cheia de papéis. Pretende-
se tão só combater a situação atacando a consequência, sem buscar formas de resolver a causa
dessa entrada massiva de papéis na sala. Pretendemos, então, apontar algumas importantes
causas que geram essa situação.
Embora não seja da tradição do estudo do direito no Brasil, é urgente recorrer aos
dados para que se possa ter uma dimensão da gravidade da situação brasileira quanto à
excessiva litigiosidade aqui existente, pois a situação é caótica, levando alguns autores a
denominá-la tragédia da justiça272.
Em 2019, segundo o relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça,
estavam em tramitação, no final de 2018, 78,7 milhões de processos nas diversas instâncias do
Poder Judiciário aguardando solução definitiva. O número era de 74 milhões ao final de 2015.
No entanto, no relatório de 2019 registrou-se que os anos de 2017 e 2018 foram os primeiros a
interromper uma série histórica de constante crescimento no número de processos, que vinha
desde 2009. Houve redução no estoque de processos neste biênio em -1,4%273.
A redução, todavia, pode ter como causa não a melhor efetividade no enfrentamento
da litigiosidade coletiva e nas soluções extrajudiciais dos conflitos, mas a entrada em vigor da
reforma trabalhista (Lei n. 13.467/2017), que reduziu 656 mil processos, considerando a
manutenção da produtividade e a diminuição na entrada de processos.
A reforma trabalhista como causa de redução do estoque geral de processos no Poder
Judiciário se confirma ao verificarmos que o estoque nas Justiças Estadual e Federal se manteve
constante no biênio mencionado, ainda que no geral do Poder Judiciário o saldo tenha sido
positivo, pois ingressaram 28,1 milhões de processos e foram baixados 31,9 milhões.
272 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019. 273 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020.
120
O relatório também indica uma redução dos casos novos em -1,9% e um aumento dos
casos solucionados em 3,8%, revelando o aumento da produtividade dos juízes, o que também
foi percebido no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo – houve um aumento de mais de
20% na produtividade dos magistrados de primeiro grau274 e um aumento geral acumulado de
produtividade do Poder Judiciário de 36,8% em 10 anos275.
O relatório destaca ainda que o “tempo de giro do acervo”, ou seja, a quantidade de
tempo necessária para zerar o estoque atual de processo é de 3,2 vezes na Justiça Estadual e 2,4
vezes na Justiça Federal. Isso significa que mesmo sem o ingresso de novas demandas, seriam
necessários 2 anos e 6 meses de trabalho para zerar o estoque de processos atuais.
Outro índice bastante utilizado é a taxa de congestionamento, que indicou leve
melhora no comparativo entre 2015 (relatório CNJ de 2016) e o ano de 2018 (relatório 2019),
implicando uma redução da taxa bruta de congestionamento de 72,2% para 71,2% em 2019.
A figura 47 do relatório também parece confirmar uma tendência verificada nos anos
anteriores de leve redução de novos casos e aumento dos processos baixados. Na esfera
estadual, desde 2015, as curvas se inverteram, passando o número de processos baixados a ser
superior ao número de processos novos, o que se confirmou nos anos seguintes, chegando, ao
final de 2018, com 22,3 milhões processos baixados e 19,6 milhões de processos novos276, o
que representa 69,8% dos casos novos ingressados no Poder Judiciário277.
Apesar disso, o número de feitos em tramitação permanece elevado, em 63 milhões,
embora tenha se mantido estável nos últimos três anos, representando 80% dos casos pendentes
da justiça brasileira278.
Outro aspecto sempre abordado pelo relatório produzido pelo CNJ é o gargalo da
execução, pois constitui grande parte dos casos em trâmite e é a etapa de maior morosidade.
Dos 79 milhões de processos pendentes de baixa no final de 2018, mais da metade (54,2%)
eram processos em fase de execução, em uma tendência de alta. Dos processos de execução em
trâmite, aproximadamente 73% são de execução fiscal279; o executivo fiscal possui taxa de
274 Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/02/03/ae35bb62-curtas.ghtml. Acesso em: 29 mar. 2020. 275 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 80. 276 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 82. 277 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 84. 278 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020. 279 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 126.
121
congestionamento de 90%, ou seja, a cada 100 execuções fiscais distribuídas em 2018, apenas
10 foram baixadas280.
O gargalo da execução é tão importante que em muitos tribunais supera 60% do acervo
de processos, chegando a 71,2% do estoque total no Tribunal de Justiça de São Paulo281, o
número mais elevado dentre todos os tribunais.
O tempo de tramitação dos processos também é objeto de análise do relatório do
Conselho Nacional de Justiça. No relatório de 2019 verificou-se a confirmação da tendência de
alta do tempo médio de duração dos processos entre a distribuição até a sentença. Em 2015, na
média geral do Poder Judiciário, o processo demandava 1 ano e 6 meses até ser sentenciado.
Em 2018, o número subiu para 2 anos e 2 meses. Por outro lado, o relatório aponta como aspecto
positivo a redução no tempo do processo pendente, que diminuiu de 5 anos e 6 meses, em 2015,
para 4 anos e 10 meses, em 2018282.
Outro dado importante que ilustra a grande demanda processual existente no Brasil é
trazido por Erik Navarro Wolkart ao comparar o número de processos por habitante no Brasil
e em países da Europa:
País Casos novos Casos
resolvidos
Casos
pendentes
Duração em
dias no 1º
grau
Processos por
habitante
Alemanha 241.000 1.400.000 744.500 192 1/109
Espanha 2.150.000 2.180.000 1.140.000 242 1/41
França 2.280.000 2.260.000 1.800.000 304 1/37
Itália 4.000.000 4.370.000 4.500.000 376 1/13,5
Brasil 28.900.000 28.500.000 72.000.000 - 1/2,8
Fonte: WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a
psicologia podem vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 90.
O autor, após se debruçar sobre este e outros números do Poder Judiciário brasileiro,
concluiu pela existência de uma situação grave a qual denominou tragédia da justiça. Em sua
obra, pretendeu apontar os diversos problemas causadores desta situação e as soluções para
enfrentá-los, com base na criação de regras que internalizem as consequências negativas do uso
da atividade jurisdicional, diminuindo o ajuizamento de novas ações e estimulando resoluções
280 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 131. 281 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 129. 282 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 151.
122
alternativas do conflito para, então, ser possível resolver os processos pendentes mais
rapidamente.
A criação dessas regras passa pelo enfrentamento do alto volume de litigância
concentrado em litigantes habituais, custo do processo (gratuidade processual), punição da má
conduta processual e emprego da tecnologia ao processo.
5.4.1 Custo da litigância
Para uma análise ampla das causas da litigância de massa é preciso abordar o custo da
litigância. Não haverá efetiva redução de processos enquanto for tão fácil e barato litigar.
A existência do Poder Judiciário somente se justifica se os custos sociais da atividade
jurisdicional superarem os custos da inexistência de um regime estatal para a solução dos
conflitos. É assim que deve ser encarado o princípio da inafastabilidade da jurisdição283.
Quando o sistema não funciona adequadamente, como sugere o quadro atual brasileiro,
os custos sociais se revelam excessivos e fazem com que (i) o sistema se torne lento e
ineficiente, como uma avenida congestionada por veículos que não saem do lugar; (ii) como o
sistema é subsidiado por tributos, é a sociedade quem suporta os custos, tanto os financeiros
como os decorrentes da percepção de que a “justiça não funciona”, fazendo com que as leis
sejam descumpridas e aumentando os danos e os custos sociais284.
Erik Navarro Wolkart, valendo-se dos conceitos econômicos de externalidades
positivas e negativas, defende que a justiça, enquanto bem comum, gera custos para a sociedade,
sendo esta a principal externalidade negativa. Por outro lado, a existência e utilização da justiça
tem como externalidade positiva diminuir a prática de atos ilícitos, em razão de seu efeito
dissuasório, além da possibilidade de formar precedentes obrigatórios ou vinculantes285 – são
estas as duas principais externalidades positivas286.
A existência e a prevalência das externalidades negativas sobre as positivas levam à
distinção entre processos socialmente desejáveis e indesejáveis e decorre da constatação de que
os benefícios individuais daquele que ajuíza ação e busca o Poder Judiciário não possui relação
283 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 308. 284 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 311. 285 Segundo o autor, “os precedentes, após formados, aumentam a produtividade do Poder Judiciário. Com o tempo, eles têm
de ser atualizados pelo distinguishing para que possam continuar gerando frutos. Eles são, para a justiça, aquilo que máquinas
são para a indústria, ou seja, bens de capital”. 286 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 318.
123
direta com os benefícios sociais (externalidades positivas) advindos de sua utilização. Assim,
apenas por coincidência ocorre de um processo ser social e individualmente desejável. É
possível, portanto, que milhares de ações socialmente indesejáveis sejam propostas por serem
individualmente benéficas para seus autores, ao passo que ações socialmente desejáveis deixam
de ser propostas, pois seus legitimados não encontram incentivos suficientes287.
A utilização exagerada da máquina judiciária, porém, potencializa as externalidades
negativas, gerando a coletivização exagerada dos custos sociais288, afastando os processos
socialmente desejáveis e atraindo as ações indesejáveis289.
A solução, no caso de processos socialmente indesejados, são (i) elevar as custas
judiciais, para incentivar as partes a buscarem um acordo extrajudicial; (ii) disponibilizar a
tecnologia que favoreça e barateie os custos da transação desse tipo de acordo290.
Para os processos socialmente desejáveis que não são ajuizados, a solução é criar
algum subsídio estatal, capaz de gerar os incentivos individuais necessários ao ajuizamento da
ação291.
A legislação brasileira, porém, não faz qualquer distinção. A justiça é gratuita ou quase
gratuita para todos, de modo que as custas não exercem papel fundamental de evitar o
ajuizamento de ações socialmente indesejáveis292.
Portanto, por qualquer ângulo, o custo para o acesso ao Poder Judiciário é fundamental
para se estabelecer um adequado modelo para enfrentar a litigiosidade de massa. Hoje, no
Brasil, o acesso ao Poder Judiciário é praticamente gratuito. Há ainda a extrema benevolência
do acesso à assistência judiciária. Mesmo quando há recolhimento de custas, o valor suporta
somente 11,61% de todas as despesas judiciais293, de maneira que as externalidades negativas
são coletivizadas e as externalidade positivas, em grande parte, usufruídas tão somente pelo
autor da demanda.
287 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 315. 288 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 311. 289 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 318. 290 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 319. 291 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 319. 292 “É importante repisar nosso parâmetro de análise normativa: o bem-estar social. Como vimos, existem demandas
socialmente desejadas e demandas socialmente indesejadas. Para as primeiras, o subsídio estatal é mais do que justificado.
Para as segundas, tal subsídio significa apenas malversação de recursos que poderiam gerar frutos socialmente preciosos se
investidos em outras prementes necessidades sociais, como saúde e educação.” WOLKART, Erik Navarro. Análise
econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT,
2019, p. 337. 293 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 318.
124
Erik Navarro Wolkart pretende o estabelecimento de um modelo cooperativo, fundado
no artigo 6º do Código de Processo Civil, no qual partes, advogados e juízes busquem a
resolução do conflito de maneira prioritariamente consensual e extrajudicial, deixando o Poder
Judiciário como verdadeira ultima ratio.
O autor, no entanto, aponta diversos empecilhos e desincentivos à prática cooperativa.
No que diz respeito às custas, um dos entraves é a existência de um teto de custas, que traz
como consequência o fato de que uma mínima chance de vitória faz a demanda valer a pena,
pois a partir de determinado valor o processo judicial para o autor é praticamente gratuito,
transferindo todas as externalidades negativas oriundas do ajuizamento da demanda para a
coletividade294, o que realmente não mais se justifica ante a possibilidade de concessão de
justiça gratuita parcial (artigo 98, § 5º, Código de Processo Civil), permitindo que sejam pagas
custas até a capacidade econômica da parte, sem fixar um limite (em geral baixo) de presunção
absoluta.
Esta previsão incentiva o ajuizamento de demandas, na medida em que reduz o risco
do autor da ação, fazendo com que a análise de custo versus benefício da demanda penda de
forma determinante para o ajuizamento do processo em detrimento de qualquer outra solução
extraprocessual ou consensual.
Outro aspecto relevante que contribui para reduzir a intenção cooperativa do advogado
se revela na existência de um sistema de dupla remuneração, composto por honorários
contratuais e sucumbenciais. Isso permite que o advogado cobre honorários contratuais que
cubram seus custos administrativos, de modo a retirar os riscos de sua atividade e fazer com
que existam incentivos para aconselhar o ajuizamento de ações ainda que a chance de vitória
seja muito reduzida295.
Outrossim, a existência de isenções em favor de todos os entes públicos litigantes
aumenta excessivamente a externalidade negativa decorrente do ajuizamento de demandas
desnecessárias, o que é confirmado ao se verificar que o poder público é o grande litigante do
Poder Judiciário, conforme veremos em tópico próprio.
Ademais, é preciso enfrentar o problema gerado pelo conceito de gratuidade de justiça
e acesso ao Poder Judiciário. A pretexto de gerar um amplo acesso à justiça, criou-se um regime
de farto incentivo ao demandismo, amparado por um processo sem custo e sem risco, no qual
294 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 328. 295 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 332.
125
a parte só tem a ganhar, guardando para si todos os eventuais bônus do processo e transferindo
para a sociedade todos os ônus.
Nesse sentido a preocupação Andre Vasconcelos Roque, Luiz Dellore, Zulmar Duarte
de Oliveira Jr. e Marcelo Pacheco Machado:
O problema é que a solução adotada pelo legislador ao longo do tempo se mostrou
propensa a estimular o demandismo – ou seja, o ingresso de ações judiciais em que o
autor tem ciência de que não tem razão ou de que poderia resolver o problema em
sede extrajudicial, mas prefere se dirigir ao Poder Judiciário simplesmente porque não
custa nada e tem a possibilidade de até mesmo receber alguma compensação por isso
(por exemplo, indenizações por danos morais, que também estão presentes na maior
parte das demandas perante os Juizados em que se pleiteia dano material). Ainda que
faltem estatísticas para aferir exatamente quais casos poderiam se enquadrar nesta
categoria, trata-se de realidade que não pode ser ignorada, já que estimulada por uma
posição processual sem maiores riscos ou responsabilidades.
Além disso, sob a perspectiva financeiro-orçamentária do Estado, esse sistema de
custeio tende a ser injusto com quem nunca faz uso ou faz pouquíssimo uso da Justiça,
na medida em que obriga todos os cidadãos a, indiretamente, custearem as despesas
com a manutenção dos serviços judiciários296.
O avanço da litigância levou tribunais a criarem centros de inteligência, destinados a
estudar formas de enfrentar a crescente litigiosidade. O Centro Nacional de Inteligência da
Justiça federal é referência no estudo do tema, com relevantes notas técnicas sobre o tema. Em
maio de 2019, por meio da Nota técnica 22/2019297, o tema passou a ser objeto de análise do
mencionado centro nacional.
A justificativa apresentada pelo Centro de inteligência considerou que
Para além da garantia do direito de acesso ao Poder Judiciário, a concessão em grande
quantidade do benefício da gratuidade da justiça produz importantes efeitos sobre a
litigiosidade de massa, e vem configurando, em muitos casos, espécie de convite ao
ajuizamento de demandas sem qualquer necessidade de análise de custo-benefício ao
requerente, que percebe, assim como os advogados, que tentar a sorte na Justiça, ainda
que com demandas temerárias, pode ser um bom negócio, já que os riscos da eventual
litigância infundada são baixos.
Trata-se de riscos cujos ônus são transferidos ao Poder Judiciário e, em última análise,
à própria sociedade, seja em razão dos custos que decorrem da dispensa de pagamento
de despesas processuais, seja em razão da proliferação de ações judiciais, sendo
importante identificar possíveis efeitos concretos que vêm decorrendo da aplicação da
norma, muitas vezes imperceptíveis e não desejados pela lei garantidora do direito à
gratuidade298.
296 ROQUE, Andre Vasconcelos; DELLORE, Luiz; ZULMAR, Duarte de Oliveira Jr.; MACHADO, Marcelo Pacheco.
Acesso à Justiça x demandismo: Repensando a gratuidade nos Juizados. Disponível em: Especiaishttps://www.migalhas.com.br/coluna/tendencias-do-processo-civil/305449/acesso-a-justica-x-demandismo-
repensando-a-gratuidade-nos-juizados-especiais Acesso em: 22 jun. 2020. 297 Ementa: “Gratuidade Judiciária. Critérios de concessão no âmbito da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Impactos orçamentários e sobre a prestação dos serviços judiciários. Proposição de medidas para o aperfeiçoamento da
gestão do instituto. Alternativas de interpretação. Possível afetação do tema para formação de precedente. Custas judiciais. Criação do Fundo Especial da Justiça Federal.” Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2019/06-junho/cin-avalia-
os-impactos-da-concessao-da-gratuidade-judiciaria-no-ambito-da-justica-federal Acesso em 20 jun. 2020. 298 Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2019/06-junho/cin-avalia-os-impactos-da-concessao-da-gratuidade-
judiciaria-no-ambito-da-justica-federal Acesso em 20 jun. 2020, pp. 2-3.
126
No mesmo sentido a constatação de Luiz Fux e Bruno Bodart,
A par da sistemática padrão, existe ainda a possibilidade de concessão da gratuidade
de justiça, caso em que fica suspensa a exigibilidade das despesas processuais e dos
honorários sucumbenciais da parte vencida que for beneficiária da justiça gratuita (art.
98, §3º, CPC/2015). Quando as partes são agraciadas a gratuidade de justiça, que, em
alguns Tribunais no Brasil, ocorre em 87% (oitenta e sete por cento) dos casos
(segundo o relatório Justiça em Número 2018 do CNJ), o modelo de custos de
litigância segue basicamente a regra americana, com cada parte arcando com suas
próprias despesas (como os honorários contratuais do advogado, se a parte não for
representada pela Defensoria Pública, e os custos extrapatrimoniais, v.g. a ansiedade
e a angústia) e o Estado custeando o restante. A peculiaridade, no caso da gratuidade,
é que a maior parcela dos custos de litigância é transferida para o Estado, de modo
que as partes assumem despesas individuais reduzidas em caso de uma ação judicial.
No âmbito dos Juizados Especiais cíveis e fazendários, há isenção de custas para as
partes em primeiro grau de jurisdição, hipótese em que também se aplica a regra
americana. Gico Jr. e Arake, fazendo menção a estudo empírico segundo o qual as
ações em que a gratuidade de justiça não foi concedida tiveram sucesso com
frequência 116% maior que aquelas em que ocorreu a concessão do benefício,
concluem: a gratuidade de justiça não tem apenas viabilizado casos em que as
condições financeiras do litigante tornariam proibitivas o ajuizamento de uma ação,
mas também funcionado como fator de estímulo a ações frívolas299.
É preciso estabelecer restrições à gratuidade da Justiça, o que passa pela percepção de
que o Poder Judiciário não é a única e mais adequada porta de acesso à justiça, já que atualmente
o conceito de jurisdição é cada vez mais desatrelado do aparelho estatal300.
O demandismo e comportamento não cooperativo das partes advém do elevado
número de bacharéis (são 100 mil novos por ano) e advogados (mais de um milhão, maior
relação por habitante do mundo)301 e encontra terreno fértil no atual estágio da legislação
brasileira do entendimento dos tribunais superiores. No que diz respeito à gratuidade da justiça,
pode assim ser resumido: (i) a mera declaração de insuficiência de recursos, sem qualquer tipo
de prova, é suficiente para requerer o benefício; (ii) a declaração pode ser feita pelo advogado;
(iii) o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que a declaração falsa de pobreza não
configura crime; (iv) o juiz não tem incentivos para procurar nos autos elementos que infirmem
a declaração; (v) a aplicação da multa prevista no artigo 100 do Código de Processo Civil
depende de má-fé; (vi) a imprecisão do conceito de insuficiência de recursos dificulta a prova
de má-fé302.
Diante disso, o autor propõe: (i) a multa prevista no artigo 100, parágrafo único, do
Código de Processo Civil deve ser direcionada à parte contrária e não ao Estado, de modo a
299 FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo civil & análise econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 45 (e-book). 300 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, pp. 446-447. 301 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 463. 302 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 459.
127
gerar incentivos à demonstração da má-fé do requerente; (ii) como qualquer outro caso de
falsidade ideológica a declaração falsa de pobreza deve ser considerada crime; (iii) deve ser
invertida a presunção de pobreza do artigo 99, § 3º, Código de Processo Civil, exigindo-se a
necessidade de prova da insuficiência de recursos, mantendo-se a presunção apenas quando as
circunstâncias da causa indicarem claramente a carência financeira303.
5.4.2 Maiores litigantes
A demanda processual do Poder Judiciário é oriunda, em larga maioria, de processos
ajuizados pelo Poder Público, bancos e instituições financeiras, empresas de telefonia ou
concessionárias de serviço público, número que chegou a representar 90% dos processos no
relatório do Conselho Nacional de Justiça do ano de 2013304.
No âmbito da justiça estadual, a situação não é diferente. Em estudo realizado pelo
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo referente aos 200 maiores litigantes, verificou-se
que na lista havia 156 Municípios, ou seja, 78% dos 200 maiores demandantes de janeiro de
2016 a junho de 2018. Estes Municípios foram responsáveis por 63% do total de processos.
Os bancos e instituições financeiras somaram 22 aparições no rol dos 200 maiores
litigantes, ou seja, representam 11% dos maiores demandantes e 21% do total de processos.
O levantamento feito pela Associação dos Magistrados Brasileiros apontou que 14,8%
do volume total de processos em trâmite no Poder Judiciário de São Paulo foram ajuizados
pelos 100 maiores litigantes305.
Apesar da constatação recorrente em diversos levantamentos realizados no sentido de
que a presença destes litigantes habituais dificulta a prestação jurisdicional, elevando
consideravelmente a coletivização das externalidades negativas da função jurisdicional, nada
foi feito pelo legislador. Pretendeu-se criar novas formas de resolver os processos, em especial
com a implementação do IRDR e um sistema de precedentes vinculantes, mas nenhuma medida
foi tomada para enfrentar os litigantes habituais.
A situação cria a figura dos free riders, ou seja, pessoas ou entidades que passam a
utilizar o bem comum de modo excessivo, levando a um esgotamento dos recursos306.
303 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 464. 304 ABELHA, Marcelo. Manual de direito processual civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016 apud WOLKART, Erik
Navarro. Análise econômica do processo civil: Como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da
justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 40, nota 7. 305 Disponível em: https://www.amb.com.br/wp-content/uploads/2018/05/Pesquisa-AMB-10.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020. 306 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 524.
128
Considerando que quase 90% do custo da justiça é subsidiado, entes cuja atividade econômica
envolve extensa base de clientes elegem o Poder Judiciário como via prioritária para a
resoluções dos conflitos, em prejuízo a toda população, eis que não pagam nem um centavo a
mais do que o litigante eventual307.
Como solução, bastaria estabelecer um patamar de ações ajuizadas. Superado este
número, a parte passa a ser considerada litigante habitual, adentrando um regime diferenciado
de custas processuais, pagando um valor superior aos demais, que pode variar em função de
faixas de litigância, com custas percentualmente maiores em caso de níveis mais elevados308.
Este seria o primeiro passo para combater o proveito obtido pelos grandes litigantes
na insistente judicialização de todos os problemas e percalços envolvendo a relação negocial,
ainda que se trate de questões simples. É o que se convencionou denominar ilícito lucrativo.
Nesse sentido, de se destacar o projeto de lei de autoria do Deputado Elias Vaz309,
atualmente ainda não numerado, que altera o Código de Processo Civil para estabelecer critérios
para que se considere uma pessoa jurídica ou um grupo econômico como grande litigante
quando a quantidade de processos em que estiver envolvido superar o percentual fixado pelo
Conselho Nacional de Justiça.
Neste caso, enquadrado como grande litigante, a pessoa jurídica ficará sujeita, em caso
de sentença condenatória desfavorável, à aplicação de uma penalidade de 20% sobre o montante
líquido da condenação, valor que reverterá ao Tribunal de Justiça que processou a demanda e
será destinado ao aperfeiçoamento da estrutura e do quadro funcional.
O projeto prevê também, visando privilegiar a cooperação e a solução consensual, a
isenção da penalidade em caso de acordo proposto na audiência de conciliação ou até o final do
prazo para contestação.
Outrossim, prevê a incidência de penalidade também em caso de rejeição do recurso
interposto em segunda instância e/ou em tribunal superior.
Por fim, fica expressa a natureza cumulativa da penalidade com o valor indenizatório
devido à parte lesada e com os honorários sucumbenciais.
Além do mencionado projeto de lei, que sequer está oficialmente em tramitação,
nenhuma medida concreta vem sendo tomada. O Código de Processo Civil/2015 não trouxe
nenhum dispositivo específico destinado aos litigantes habituais da Justiça brasileira. O único
307 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 525. 308 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 526. 309 Disponível em: https://www.rotajuridica.com.br/projeto-estabelece-multa-para-grandes-empresas-que-sobrecarregam-o-
judiciario/. Acesso em: 29 mar. 2020.
129
remédio proposto é o sistema de precedentes, que não diferencia aquele que reiteradamente tira
proveito econômico da discussão e postergação da solução da controvérsia, daqueles que apenas
de forma eventual tiveram um problema jurídico submetido ao Poder Judiciário.
As execuções fiscais que assolam o Poder Judiciário até hoje continuam submetidas
ao regime de execução fiscal previsto na Lei n. 6.830/1980. Vale lembrar que o relatório Justiça
em Números, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2018, aponta que existiam em
2017 cerca de 80 milhões de processos de execução fiscal pendentes de baixa no país –
representavam 74% desse estoque, correspondendo a aproximadamente 31,4 milhões de
processos, ou 39% dos casos pendentes. Vale lembrar que o executivo fiscal possui taxa de
congestionamento de 90%, ou seja, a cada 100 execuções fiscais distribuídas em 2018, apenas
10 foram baixadas310.
Há propostas legislativas em trâmite no sentido de desjudicializar a cobrança do
crédito tributário, ou seja, prever que a execução fiscal tramite prioritariamente em âmbito
extrajudicial. Somente de forma excepcional, caso alguma relevante questão não seja resolvida
nesta seara, então o Poder Judiciário será acionado.
Nesse sentido, o Projeto de Lei n. 4.257/2019 do Senador Antônio Anastasia altera a
Lei das Execuções Fiscais (Lei n. 6.830/1980) para possibilitar o uso da negociação fora do
campo judicial como alternativa para solucionar conflitos sobre débitos inscritos em dívida
ativa, prevendo o uso da arbitragem, caso a execução esteja garantida por depósito em dinheiro,
fiança bancária ou seguro garantia.
O projeto também regulamenta a execução fiscal administrativa para cobrança de
dívidas relacionadas a impostos como IPTU e IPVA, contribuições de melhoria e taxas,
permitindo que a Fazenda Pública formalize administrativamente a execução da dívida
mediante notificação do executado e, não satisfeito o crédito tributário, possa requerer
diretamente ao Cartório de Registro de Imóveis ou ao Departamento de Trânsito a averbação
da penhora.
Outro incentivo à litigância do Poder Público é o atual modelo de dupla remuneração
sem risco dos advogados públicos, que consiste na percepção de alto salário fixo associado a
um regime de remuneração variável oriunda de honorários sucumbenciais. No âmbito federal,
a situação adveio da edição da Lei n. 13.327/2016. No Estado de São Paulo, a verba está prevista
310 CNJ. Justiça em números – 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 131.
130
na Lei Complementar n. 93/1974, o que gerou o pagamento de 1,7 bilhão de reais aos
Procuradores do Estado entre os anos de 2011 e 2016311.
O advogado público, portanto, valendo-se de toda a estrutura estatal, sem ter nenhum
custo, possui todos os benefícios da litigância, sem qualquer risco em caso de derrota. Assim,
a remuneração variável se revela uma externalidade positiva da litigância que será inteiramente
absorvida pelo advogado público, ao passo que eventual externalidade negativa oriunda de
derrota na demanda ajuizada é internalizada integralmente pelo ente público312. Dessa forma, o
valor esperado pelo ajuizamento de uma ação temerária ou na defesa intransigente de direito
improvável será sempre positivo, ainda que mínima a chance de vitória313, incentivando assim
a litigância e o demandismo no âmbito dos entes públicos.
A solução proposta por Erik Navarro Wolkart é bastante simples: alterar o § 19 do
artigo 85 do Código de Processo Civil para que a remuneração variável incida sobre a diferença
entre honorários recebidos e honorários pagos pelo ente público representado em determinado
período314, o que traria maior equilíbrio e facilitaria o comportamento cooperativo.
5.4.3 Litigância de má-fé e fraudulenta
Outro aspecto do processo civil que precisa ser repensado visando a obtenção de um
verdadeiro comportamento cooperativo dos atores processuais, ou seja, comportamento apto a
proporcionar o proferimento de decisões justas, efetivas e em tempo razoável315, passa pela
efetiva e adequada punição da litigância de má-fé e do abuso do direito de litigar, condutas que
aumentam os custos sociais do processo.
Atualmente, os benefícios gerados pela litigância de má-fé são superiores à punição
esperada para essas condutas316, pois a parte e seu advogado podem, por exemplo, contraditar
fatos que sabem serem verdadeiros gerando ao autor um ônus probatório, dilatando o tempo do
processo e aumentando a chance de erro judicial317. É o que costumeiramente ocorre com as
311 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-22/fux-nega-honorarios-acima-teto-procuradores-sp. Acesso em: 29
mar. 2020. 312 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 475. 313 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 475. 314 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 483. 315 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, pp. 544-545. 316 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 552. 317 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 549.
131
centenas de milhares de demandas alegando inexistência de relação jurídica e cobrança
indevida.
Em grande parte, estas alegações se revelam falsas, mas geram ao réu um ônus
probatório do qual nem sempre consegue se desvencilhar adequadamente, gerando inúmeros
erros judiciais, potencializando o demandismo em razão da internalização, pelo autor e seu
advogado, das externalidades positivas do processo e coletivizando as externalidades negativas,
eis que quase sempre litigam amparados pela justiça gratuita.
Outrossim, a multa por ato atentatório à Justiça, prevista nos artigos 77, § 2º, e 774,
parágrafo único, do Código de Processo Civil, se revela ineficaz, pois é destinada ao Estado, de
modo que sua cobrança é feita por execução fiscal. Todavia, lei federal e leis estaduais
estipulam patamar mínimo em que se permite o não ajuizamento da execução fiscal.
No Estado de São Paulo, por exemplo, conforme a Lei n. 16.498/2017, dispensa-se o
ajuizamento de execuções fiscais que não superem o valor de 1.200 Unidades Fiscais do Estado
de São Paulo (UFESPs). Em 2020, o valor representa R$ 33.132,00318.
Isso significa que grande parte das multas por ato atentatório à dignidade da justiça
simplesmente sequer serão cobradas judicialmente, o que reduz sensivelmente o caráter
dissuasório da reprimenda.
Não bastasse, a penalidade é imposta à parte e não ao advogado, tendo em vista a
existência de regra protetiva no § 6º do mesmo artigo 77 do Código de Processo Civil: “Aos
advogados públicos ou privados e aos membros da Defensoria Pública e do Ministério Público
não se aplica o disposto nos §§ 2º a 5º, devendo eventual responsabilidade disciplinar ser
apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz oficiará”.
Isso representa um grande desincentivo ao comportamento cooperativo do advogado,
eis que ao litigar de má-fé o causídico aumenta suas chances de obter êxito na demanda sem
correr qualquer risco, pois eventuais punições não serão suportadas por ele319.
No mesmo sentido, apontando as diferenças entre o modelo brasileiro e o americano
de sanção processual, pontuam Luiz Fux e Bruno Bodart que
Uma diferença essencial entre os sistemas brasileiro e dos Estados Unidos é que o
primeiro não admite a imposição da sanção por ato atentatório à dignidade da justiça
diretamente, pelo juiz ou tribunal, aos “advogados públicos ou privados e aos
membros da Defensoria Pública e do Ministério Público”, cuja responsabilidade
disciplinar deve ser apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria (art. 77,
§6º, do CPC/2015). Em acréscimo, a multa por litigância de má-fé somente pode ser
imposta ao “autor, réu ou interveniente”, mas não aos respectivos advogados (artigos
318 Cada UFESP corresponde a R$ 27,61. Em 2020, ver: https://portal.fazenda.sp.gov.br/Paginas/Indices.aspx. Acesso em: 29
mar. 2020. 319 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 565.
132
79 a 81 do CPC/2015). Ao contrário, nos EUA, a Corte pode impor uma sanção
apropriada a qualquer advogado, escritório de advocacia ou parte que violar a regra
[de boa-fé e diligência] ou for responsável pela sua violação. A limitação do sistema
brasileiro manieta a eficácia do sistema sancionatório, pois geralmente a parte apenas
segue a recomendação de seu advogado no que diz respeito às decisões relativas ao
processo320.
Há, contudo, movimento jurisprudencial no sentido de permitir a condenação do
advogado em situações de manifesta advocacia predatória:
“No que tange a condenação do patrono do autor à pena de litigância de má-fé, em
consulta ao site deste Tribunal de Justiça, verifico que há mais de mil ações ajuizadas
pelo Dr. Cyrilo Luciano Gomes, sempre com o mesmo objeto de ver declarada a
inexigibilidade do débito de dívida oriunda de negativação indevida cumulada com
pedido de indenização por danos morais. É função do Magistrado fiscalizar os atos
praticados por todos aqueles que integram a relação processual, notadamente o
advogado, personagem essencial à justiça, nos termos do art. 77 do Código de
Processo Civil. No caso concreto há severos indícios de que o patrono do autor usa a
máquina judiciária para a prática de advocacia predatória e uso abusivo do Poder
Judiciário, com a distribuição de várias ações com idêntico teor, tais condutas devem
ser combatidas. Por isso, a manutenção da condenação do patrono do autor ao
pagamento de multa pela litigância de má-fé arbitrada em 1% do valor da causa é a
medida que se impõe, bem como a expedição de ofício ao Tribunal de Ética da Ordem
dos Advogados do Brasil Seção São Paulo. Pelo meu voto, nego provimento ao
recurso” (TJSP; Rel. Des. LUCILA TOLEDO; j.30/05/2019; apelação nº 1084039-
45.2016.8.26.0100).
“Com relação à extensão da reprimenda para o advogado, é verdade que, em tese, a
conduta processual do patrono da parte é regulada pelos artigos 77 e 32 do Estatuto
da Advocacia (Lei 8.906/94), de maneira que, numa primeira análise, os danos
causados pelo advogado, por dolo ou culpa grave, haveriam de ser apurados apenas
em ação própria”. Entretanto, “(...) a singela condenação da parte, no caso, não se
mostra suficiente. A conduta irregular imputada ao patrono igualmente se torna
manifesta, certo que a expedição de ofício para órgão de classe não impede imposição
de sanção processual. (...) Não há necessidade de prova do prejuízo para estabelecer
a sanção vide, a propósito, o que dispõe o artigo 81, § 3º, do CPC" (TJSP; Rel. Des.
VICENTINI BARROSO; j.16/08/2018; apelação nº 1004687-10.2017.8.26.0292)321.
É, portanto, imprescindível uma efetiva e severa punição para os casos de uso abusivo
da máquina judiciária decorrente de demandas frívolas e atuação predatória por parte de
advogados que buscam se locupletar indevidamente com demandas infundadas, prejudicando a
análise de demandas socialmente desejáveis.
5.4.4 Inteligência artificial
A tecnologia, em constante evolução, tem trazido importantes avanços para a
humanidade em diversas áreas. No direito já há notícia de seu uso, com ferramentas que
320 FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo civil & análise econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 96 (e-book). 321 Ainda no mesmo sentido: TJSP; Rel. Des. SOARES LEVADA; j.26/08/2019; apelação 1000312-32.2019.8.26.0506; TJSP; Rel. Des. SÁ DUARTE; j.26/09/2019; apelação 1074271-27.2018.8.26.0100; TJSP; Rel. Des. KIOITSI CHICUTA;
j.15/08/2017; apelação 1015078-18.2014.8.26.0037.
133
permitem a elaboração de contratos, sistemas e aplicativos destinados a gerenciar processos,
dentre outros.
Erik Navarro Wolkart, citando Richard Susskind, enumera treze tecnologias
disponíveis para aplicação no direito: automação documental, conexão constante via internet,
mercados legais eletrônicos (medidores online de reputação, comparativos de preços e leilões
de serviços), ensino online, consultoria legal online, plataformas jurídicas abertas, comunidades
online colaborativas fechadas, automatização de trabalhos repetitivos e de projetos, embedded
legal knowledge, resolução online de conflitos (Online Dispute Resolutions – ODR), análise
automatizada de documentos, previsão de resultados de processos e respostas automáticas a
dúvidas em linguagem natural322.
No Poder Judiciário, porém, ainda é tímida a utilização da inteligência artificial. Os
avanços tecnológicos empregados, notadamente o processo eletrônico, permitem apenas que se
façam digitalmente as mesmas tarefas que antes eram feitas fisicamente. Importante perceber
que isto tem um efeito inicial negativo, pois, ao facilitar o ajuizamento de processos e a prática
de atos processuais, há um natural incentivo à litigância advinda da facilidade do amplo acesso
ao Poder Judiciário323.
Em um segundo momento, porém, o desenvolvimento de instrumentos de inteligência
artificial proporcionará sensível contribuição para o enfrentamento da litigiosidade de massa e
repetitiva, notadamente porque a marcha processual é dividida em diversas atividades menores,
facilmente automatizáveis.
Ainda que de forma incipiente, já há notícia da utilização de inteligência artificial na
prática de atos processuais nas Varas de Execução Fiscal da Comarca de Guarulhos em São
Paulo, permitindo-se a realização de diversos atos processuais de forma automatizada, como
cadastro e digitalização de documentos, de petições intermediárias, alocação de processos,
carregamento de processos na fila do fluxo de trabalho, análise de pedido de citação por edital
e conferência de texto324. No caso da Comarca de Guarulhos, a medida resultou na redução de
200 mil execuções fiscais, o que motivou a ampliação do projeto para outras unidades do
Tribunal de Justiça de São Paulo.
322 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 723. 323 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 725. 324 Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=58232. Acesso em: 29 mar. 2020; Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/307184/agora-e-que-sao-eles-robos-automatizam-movimentacoes-processuais-em-sp.
Acesso em: 29 mar. 2020.
134
O Tribunal de Justiça de São Paulo segue avançando na implantação de ferramentas
de inteligência artificial e recentemente lançou o sistema “LEIA – precedentes” que consiste no
emprego de inteligência artificial para a seleção automática de processos que podem estar
sujeito à precedentes de tribunais superiores, o que permite a rápida identificação do processo
e do tema a ele vinculado, acelerando a tramitação processual e a prestação jurisdicional325.
Outro importante instrumento advindo da tecnologia e da inteligência artificial são as
plataformas digitais de autocomposição ou online alternative dispute resolution – OADR, que
permitem a resolução automática e extrajudicial do conflito, sem intervenção humana.
O exemplo de sucesso mencionado pela doutrina é o sistema de resolução de conflitos
do ebay, desenvolvido por Colin Rule, e que permite resolver mais de 60 milhões de conflitos
por ano com uma taxa de acordo de 90%, sem qualquer intervenção humana326.
O sistema funciona sugerindo às partes envolvidas formas de resolução do conflito.
Por gerir milhões de conflitos, o sistema passa a absorver todos os dados das disputas (big
data327), a perceber e, consequentemente, aprender (machine learning) as formas como os
conflitos foram solucionados.
Outro aspecto essencial para o sucesso do modelo de resolução de disputa do ebay é a
efetividade advinda da utilização do desconto diretamente no cartão de crédito do usuário328.
Com base no sistema idealizado para o ebay, Colin Rule desenvolveu um sistema
denominado Modria (modular online dispute resolution implementation assistance), que pode
ser alugado por qualquer empresa ou corte judicial329.
A adoção deste sistema por cortes judiciais ou a implementação obrigatória no âmbito
das grandes empresas litigantes implicaria sensível redução no número de demandas,
permitindo que o Poder Judiciário seja reservado para conflitos que realmente demandem sua
intervenção, o que implicaria em maior celeridade e efetividade da atividade jurisdicional e
racionalização dos recursos públicos. Neste modelo, o Poder Judiciário seria a ultima ratio para
a resolução do conflito.
325 Disponível em: https://www.sajdigital.com/lab-da-justica/leia-precedentes-inteligencia-artificial/ Acesso em 21 jun. 2020. 326 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 728. 327 “Note-se que, quando a tecnologia entra no cenário, o alto volume de disputas deixa de ser uma tragédia e passa a ser um
ativo do sistema. É que o subproduto dessas disputas é a imensa quantidade de informação que treinará o algoritmo para
buscar os melhores padrões de solução para o problema”. WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil:
como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 730. 328 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 729. 329 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 730.
135
A imposição obrigatória da ODR como condição para acesso ao Poder Judiciário
poderia inclusive redundar na alteração da estrutura das condições da ação ou dos pressupostos
processuais330.
Outrossim, a tecnologia também pode ser empregada não apenas do ponto de vista
prático para reduzir o estoque de processos e reduzir a litigância, mas também para ampliar o
acesso à justiça (e não ao Poder Judiciário) sob dois enfoques distintos: ao permitir um melhor
esclarecimento ao cidadão e ao proporcionar uma melhor aplicação da lei.
A tecnologia pode proporcionar melhor esclarecimento ao cidadão na medida em que
serviços eletrônicos, fundados em algoritmos sofisticados, podem fornecer consultoria legal
online com base em um questionário simples, orientando o cidadão sobre seu direito e como
resolver o seu problema, evitando que o conflito se transforme em processo e ao mesmo tempo
educando o cidadão sobre seus direitos. Alguns sites permitem inclusive a elaboração de
contratos ou oferecem a solução de problemas sucessórios mais simples331.
Além disso, outro enfoque bastante interessante do uso da tecnologia é proporcionar
melhor aplicação da lei, prevenindo o surgimento do conflito ou da lesão332, o que ocorre com
uso dos denominados embedded legal knowledge, associado aos smart contracts e à internet
das coisas.
Com a utilização do embedded legal knowledge pretende-se que os produtos sejam
fabricados e utilizados visando evitar o descumprimento da lei. O exemplo dado por Richard
Susskind, citado por Erik Navarro Wolkart, é o do automóvel que, ao detectar que o condutor
ingeriu bebida alcoólica, não dá partida, evitando a lesão e o descumprimento da lei333.
O embedded legal knowledge pode ainda ser potencializado quando conjugado à
internet das coisas e aos smart contracts. A internet das coisas nada mais é do que a premissa
de que todos os nossos equipamentos e ferramentas do dia a dia estejam permanentemente
conectados à internet334. Os smart contracts, por sua vez, adotando como ponto de partida a
internet das coisas, é um meio alternativo para formar relações jurídicas. O contrato em papel
é substituído por um acordo formalizado em código computacional gravado em tecnologia
330 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 739. 331 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, pp. 742-744. 332 SUSSKIND, Richard. Tomorrow lawyers: an introduction to your future. London: Oxford University, 2017, p. 93 –
posição 1245-3257 (e-book). 333 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 745. 334 GREENGARD, Samuel. The internet of things. Cambridge, London: The MIT Press essential Knowledge Series, 2015,
posição 64-130 (e-book).
136
blockchain. Tem por características principais a impossibilidade de fraude em razão do uso do
blockchain e, principalmente, a capacidade de autoexecução do algoritmo e do acordo335.
Assim, formalizado o smart contract permite-se programar o algoritmo para que,
verificada determinada condição, como o pagamento em data específica, o contrato seja
automaticamente executado, impedindo, por exemplo, a parte em mora de usufruir do bem,
como no caso do veículo adquirido por financiamento, que simplesmente não ligará enquanto
não purgada a mora ou ainda do apartamento locado que não destravará a fechadura eletrônica
caso o locatário esteja em mora no pagamento do aluguel. Evita-se, assim, o descumprimento
da lei e a necessidade de tutela executiva prestada pelo Poder Judiciário336.
Por fim, outras interações entre a inteligência artificial e o direito podem impactar
positivamente o Poder Judiciário, o enfrentamento da litigiosidade de massa e o combate à
litigância de má-fé.
Atualmente existem sistemas que recolhem informações (big data) e as processam
através de machine learning, ou seja, classificando-as e agrupando-as de modo a permitir
conclusões como, por exemplo, antecipar a possibilidade de sucesso de determinado processo,
ensejando que o processo sequer seja ajuizado ou aumentando as chances de acordo. No Brasil,
esta análise é denominada jurimetria337.
A mesma técnica pode ser utilizada para identificar a litigância predatória ou de má-
fé de advogados e grandes litigantes, permitindo-se inclusive o cruzamento de informações e a
elaboração de relatórios sobre o comportamento desviado e contrário ao comportamento
cooperativo exigido no processo338. Esta pode ser uma importante ferramenta para o
enfrentamento dos grandes litigantes e da litigância fraudulenta.
Há ainda uma outra aplicação da inteligência artificial no direito, mencionada por
Richard Susskind, decorrente da affective computing, ou seja, a capacidade de sistemas de
inteligência artificial identificarem emoções a partir de expressões faciais dos usuários339.,
funcionando quase como detectores de mentiras e permitindo coibir condutas de má-fé no
processo
335 FINCH, Victor. Smart contracts: the essentual quick & easy blueprint to understand smart contracts and be ahead
of competition. Get your smart edge now! Auva Press, 2017, pp. 3-7 (e-book).. 336 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, pp. 746-747. 337 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 749. 338 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem
vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 750. 339 SUSSKIND, Richard. Tomorrow lawyers: an introduction to your future. London: Oxford University, 2017, p. 186,
posição 2324-3257 (e-book).
137
6 CONCLUSÃO
A evolução do direito, das relações sociais, econômicas e a globalização alterou a forma
de interação entre os seres humanos, trazendo não somente novas formas de contratos, mas
também novos direitos. Com isso, massificaram-se as interações entre as pessoas o que,
associado a um amplo e quase irrestrito acesso ao Poder Judiciário, culminou em um elevado
aumento da litigiosidade individual e coletiva.
O Código de Processo Civil de 1973 tinha por escopo a resolução do litígio individual,
particular. Ele não previa instrumentos para enfrentar relações massificadas e repetitivas ou
para tutelar direitos supraindividuais. Havia regra proibitiva da tutela de direito alheio (artigo
6º) e o regime limitado de extensão subjetiva da coisa julgada (artigo 472).
Em razão disso, a doutrina, influenciada pelos autores italianos e seus congressos,
clamava pela superação da visão privatista e individualista do Código de Processo Civil e a
elaboração de leis que visassem a tutela dos direitos supraindividuais, até então apenas previstos
na Lei de Ação Popular (Lei n. 4.717/1965) que conferia legitimidade a qualquer particular para
buscar a anulação de ato lesivo ao patrimônio público. Seu rol foi posteriormente alargado em
1977 para também abranger atos lesivos a bens e direitos de valor econômico, artístico, histórico
ou turístico e, em 1988, com a Constituição Federal que incluiu a moralidade administrativa e
o meio ambiente.
Posteriormente, em 1985, foi editada a Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985),
primeiro diploma legislativo a positivar as expressões direito difuso e direito coletivo, já
bastante mencionadas pela doutrina, prevendo ainda o manejo de uma ação civil pública para a
tutela de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”. Estes direitos não foram conceituados
no diploma legislativo, mas representaram o reconhecimento pelo legislador desta especial
categoria de direito material, nascida da superação entre interesse público e interesse privado.
Desde a edição deste diploma, porém, já era clara a preocupação dos governantes
com ação coletiva, reveladas pelo veto à expressão “qualquer outro interesse difuso” contida
no artigo 1º, IV, em sua redação original, e pela posterior edição de medidas provisórias com a
nítida pretensão de limitar o uso do novo instrumento processual como no caso da limitação
temática (artigo 1º, parágrafo único) ou a limitação territorial (Lei n. 9.494/1997, artigo 16).
Estas limitações, no entanto, foram posteriormente relativizadas pela jurisprudência
que passou a desconsiderar a pretendida limitação territorial do artigo 16 da Lei de Ação Civil
Pública e pelo recente entendimento do Supremo Tribunal Federal permitindo a tutela de direito
relativo ao FGTS por meio de ação civil pública (RE 643.978, Pleno, 09-10-2019).
138
A Constituição Federal de 1988 também foi um importante marco para a tutela
processual coletiva ao alargar as hipóteses de cabimento da ação popular, além de conferir
status constitucional à ação civil pública e à legitimidade do Ministério Público, prever rol
aberto de direitos supraindividuais passíveis de tutela por meio de ação civil pública, permitir
a impetração de mandado de segurança coletivo (artigo 5º, LXX) e elevar a defesa do
consumidor à fundamento e princípio geral da atividade econômica.
Em razão de determinação constitucional contida no artigo 48 do ADCT e de
orientações contidas na Resolução n. 39/248, de 1985 da ONU, editou-se um Código de Defesa
do Consumidor, em 1990, com forte influência do Código de Defesa do Consumidor francês.
O Código de Defesa do Consumidor inaugurou o conceito de microssistema
jurídico ao prever a perfeita interação entre as regras do Código de Defesa do Consumidor e da
Lei de Ação Civil Pública, considerando a remissão recíproca contida nos artigos 90 do Código
de Defesa do Consumidor e 21 da Lei. Definiu, ainda, cada categoria de direito supraindividual,
inclusive os direitos individuais homogêneos, além de diversas inovações para a tutela coletiva,
como a isenção do pagamento de custas e honorários sucumbenciais, salvo em caso de má-fé,
possibilidade de celebração de compromisso de ajustamento de conduta com eficácia de título
extrajudicial, legitimidade do Ministério Público para executar sentença condenatória em caso
de inércia de outros legitimados e regime especial de formação de coisa julgada, dentre outras.
Assim, o microssistema de tutela coletiva é resultado da evolução dos trabalhos
doutrinários que conduziram à superação até então existente entre direito individual e direito
coletivo, permitindo que a categoria também fosse tutelada por um amplo rol de diplomas legais
como a Lei de Ação Civil Pública, a Lei da Ação Popular, o Código de Defesa do Consumidor,
a Constituição Federal de 1988 e a Lei do Mandado de Segurança Coletivo.
Do microssistema de tutela coletiva defluem três características essenciais do
processo coletivo que permitiram superar a visão privatista do processo: o conceito e a definição
de novas categorias de direitos, um rol de legitimados restrito e diferenciado e um regime
especial de coisa julgada.
Quanto à definição destas novas categorias de direitos, coube ao Código de Defesa
do Consumidor definir cada um deles (artigo 81). Visando afastar qualquer interpretação ligada
à uma visão privatista do direito, optou-se pela inclusão da expressão “interesses”, de modo a
restringir a possibilidade de interpretação restritiva em razão da necessidade de um direito estar
sempre vinculado a titular determinado ou determinável.
Com a nova categoria dos direitos individuais homogêneos trazida pelo Código de
Defesa do Consumidor, a doutrina passou a separar os direitos supraindividuais em duas
139
categorias: de um lado, os direitos difusos e coletivos, naturalmente coletivos, cujas regras
visam à tutela de direitos coletivos; e, de outro, os direitos individuais homogêneos, direitos
acidentalmente coletivos, cujas regras, processuais e materiais, visam à tutela coletiva de
direitos.
Essa diferenciação tem importantes reflexos processuais. Quanto à legitimidade, a
definição da categoria de direito supraindividual poderá afastar a legitimidade para atuação da
Defensoria Pública ou do Ministério Público. Quanto à coisa julgada, a formação e a extensão
subjetiva se dá de maneira distinta a depender da categoria de direito envolvido. A distinção
também afeta a fase de liquidação e execução do julgado, pois, segundo o artigo 95 do Código
de Defesa do Consumidor, em se tratando de direitos individuais homogêneos, a condenação
será genérica, tão somente fixando a responsabilidade pela reparação dos danos. É também com
fundamento na distinção entre mencionadas categorias de direitos que o atual entendimento do
Superior Tribunal de Justiça é no sentido de limitar a aplicação analógica do artigo 19 da Lei
da Ação Popular às ações coletivas ajuizadas em defesa de direitos individuais homogêneos.
Todavia, somente será possível verificar o direito efetivamente tutelado no momento
da formulação da pretensão em juízo, de maneira que é inviável a adoção de um critério
“estático” previsto em lei dissociado dos danos causados, das pessoas envolvidas e da pretensão
reparatória que destas situações pode ser formulada. Isto ocorre, especialmente, porque
normalmente é necessário adotar expedientes preliminares para confirmar os danos do ato ilícito
praticado, o que em geral ocorre no âmbito de um inquérito civil.
Em razão desta dificuldade e dos distintos efeitos das normas materiais e processuais
a depender da categoria de direito supraindividual envolvido, a doutrina tem sustentado uma
nova classificação para os direitos coletivos lato sensu. Neste trabalho trouxemos a doutrina de
Edilson Vitorelli, que classificou os direitos transindividuais segundo a extensão ou impacto do
dano causado, em razão do equívoco de se considerar o direito coletivo lato sensu como
necessariamente indivisível; além disso, entende que não há utilidade em discutir a titularidade
destes direitos enquanto não houver violação.
O autor, portanto, adota como critério para definir e distinguir estes direitos a
conflituosidade e a complexidade envolvidas quando verificada sua violação. A complexidade
diz respeito às diversas formas de tutela de um direito lesado ou ameaçado de lesão. Já a
conflituosidade consiste na uniformidade entre as posições dos atingidos pelo dano. Quanto
mais variada for a forma como os indivíduos foram atingidos pela lesão ou quanto maior for o
impacto sofrido, maior será a conflituosidade entre eles.
140
Com base nestas premissas, o autor define os direitos ou litígios transindividuais em
globais, locais e irradiados. Os litígios transindividuais globais ocorrem quando a lesão ou
ameaça de lesão não atinge particularmente a um indivíduo. É baixo o grau de conflituosidade,
eis que é baixo o interesse pessoal no conflito. Os direitos ou litígios transindividuais locais
ocorrem no contexto de violações que atinjam, especificamente, pessoas que integram uma
sociedade altamente coesa, unida por laços identitários de solidariedade social. Por fim, os
direitos ou litígios de transindividuais irradiados se configuram quando lesão ou ameaça de
lesão atinge diversas pessoas que não compõem uma comunidade, não compartilham a mesma
perspectiva social, de modo que a lesão os atinge de maneira desigual e variável, elevando o
grau de conflituosidade.
O segundo elemento diferenciador do processo coletivo é a legitimidade restrita e
especial prevista em rol taxativo na lei. O legislador brasileiro optou por um modelo inédito,
misto de sistemas europeu e americano, composto por entes públicos e associações civis,
resguardando papel de destaque ao Ministério Público, que participa obrigatoriamente de todos
os processos, ainda que na condição de fiscal da ordem jurídica.
A legitimidade foi tema de bastante destaque nos trabalhos doutrinários nas últimas
décadas. Da mesma forma, é grande a incidência do tema nos tribunais, em especial no que diz
respeito à extensão da legitimidade conferida ao Ministério Público e à Defensoria na tutela de
direitos individuais homogêneos. Atualmente, prevalece a orientação no sentido de se conferir
legitimidade ao Ministério Público sempre que houver interesse social no direito invocado (o
que se verifica até mesmo em se tratando de direitos do consumidor, conforme Súmula 610 do
Superior Tribunal de Justiça) ou quando se tratar de direito indisponível, ainda que em benefício
de uma única pessoa. Já a Defensoria Pública, segundo entendimento do Supremo Tribunal
Federal, tem legitimidade para agir em favor de direitos individuais homogêneos mesmo que
os titulares não sejam carentes de recursos financeiros, interpretando-se a expressão
“necessitados” constante do texto constitucional em sentido amplo, de modo a abranger os
carentes de recursos financeiros e os necessitados do ponto de vista organizacional ou
“hipervulneráveis”, como em certos casos envolvendo lides de consumo.
Também no sentido ampliativo da legitimidade, o Superior Tribunal de Justiça admitiu
a legitimidade de um Munícipio para manejar ação coletiva para buscar impedir instituição
financeira de cobrar tarifas pela renovação do cadastro de servidores municipais (REsp
1.509.586/SC).
Verifica-se, portanto, que a tendência da jurisprudência é ampliar as hipóteses de
legitimidade, conferindo interpretação ampliativa às situações que justificam a atuação de cada
141
legitimado, o que garante maior participação social no processo, oferecendo uma realidade mais
pluralista e aberta ao acesso à justiça. Diante disso, há na doutrina propostas no sentido de
alargar ainda mais o rol de legitimados, permitindo que qualquer pessoa interessada possa
manejar a ação coletiva, como ocorreu nas class actions for damages do direito norte-
americano.
Nesse caso, haveria uma fase específica ao longo do iter processual denominada
certificação, ou seja, de verificação de que o autor da demanda possui representatividade
adequada para agir em nome dos demais lesados. Passar-se-ia, portanto, de um modelo de
legitimidade ope legis para um modelo de legitimidade ope judicis, no qual caberia ao
magistrado verificar em cada caso concreto a legitimidade do autor da ação, permitindo a
superação de um dos temas que mais impedem a expansão da efetividade da tutela coletiva.
O terceiro aspecto diferenciador do processo coletivo é a coisa julgada, que também
demandou revisão ante a limitação do processo individual, exigindo-se a superação da extensão
subjetiva limitada às partes do processo. O Código de Defesa do Consumidor passou a prever
a extensão ultra partes, para os direitos coletivos, e erga omnes, para os direitos individuais
homogêneos e difusos. O processo coletivo também demandou a evolução do modo de
produção da coisa julgada, passando de um modelo pro et contra do processo individual, para
um modelo secundum eventum litis, no qual só ocorre a formação de coisa julgada se procedente
o pedido, e secundum eventum probationis, no qual só há coisa julgada quando houver
esgotamento das provas, permitindo-se nova demanda caso a improcedência decorra de
insuficiência probatória.
Para parcela da doutrina, porém, um dos entraves do processo coletivo é justamente o
modelo adotado para formar a coisa julgada no que diz respeito aos direitos individuais
homogêneos. Segundo o Código de Defesa do Consumidor, a improcedência de ação civil
coletiva que vise tutelar direitos individuais homogêneos não faz coisa julgada, permitindo que
milhares de processos individuais rediscutam o tema.
Assim, a ação coletiva acaba frustrando seu propósito de criar um ambiente de
segurança jurídica e isonomia, permitindo que ocorram decisões contraditórias, além de não
evitar a propagação de demandas.
Outro aspecto do processo coletivo que também pode justificar a subutilização dos
instrumentos de tutela coletiva é a relação entre as demandas coletivas e as individuais
decorrente da regra do artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor segundo a qual o
aproveitamento in utilibus da coisa julgada depende da suspensão da ação individual no prazo
de 30 dias a contar da ciência do ajuizamento da ação coletiva. No sistema brasileiro, portanto,
142
não há suspensão automática (embora haja precedente do Superior Tribunal de Justiça neste
sentido) ou litispendência entre as demandas.
A opção, porém, está dissociada de outros sistemas. Isso porque nos demais países há
dois modelos distintos: o de inclusão (opt-in), no qual os interessados deverão requerer o seu
ingresso até determinado momento; e o de exclusão (opt-out), mediante o qual devem os
membros ausentes solicitar o desacoplamento do litígio coletivo, no prazo fixado pelo juiz. Ao
não optar por nenhum deles o legislador acabou por desprestigiar a tutela coletiva, pois
novamente não tem o condão de garantir uma solução justa, isonômica e que reduza a
multiplicação de processos, eis que permite a convivência da tutela individual com a coletiva.
E foi justamente em razão da baixa efetividade e subutilização da tutela coletiva que o
legislador brasileiro, no Código de Processo Civil/2015, trouxe como grande novidade um
sistema de precedentes vinculantes destinado a permitir o tratamento em massa das demandas
repetitivas. O regime pretendido pelo legislador, porém, demanda interpretação conforme a
Constituição sob pena de ser tido por inconstitucional, pois a interpretação segundo a qual os
precedentes devem ser seguidos e aplicados de maneira silogística é evidentemente
inconstitucional. Não apenas por ferir a independência funcional da magistratura, mas também
por desvirtuar as mais comezinhas regras da atual hermenêutica, no sentido de que só existe
norma após a interpretação realizada pelo intérprete de determinado texto legislativo.
Essa intepretação levaria aos mesmos resultados do positivismo, eis que reduziria a
atividade jurisdicional a um mero aplicador de precedentes. No entanto, neste caso, a situação
seria ainda mais grave, pois o precedente, ao contrário da lei, já foi objeto de apreciação pelo
Poder Judiciário.
Dos novos instrumentos trazidos pelo Código de Processo Civil, o IRDR é, sem
dúvida, o de maior atenção da doutrina e de utilização nos primeiros anos após a edição do
Código. O IRDR, instituto com inspiração no procedimento-modelo alemão (musterverfahren)
e no Group litigation order (GLO) do direito inglês, tem por finalidade evitar a dispersão
excessiva da jurisprudência, atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, e
promover o andamento mais célere dos processos. Para atingir esse objetivo, instaura-se o
IRDR perante o tribunal onde se encontra o processo paradigma pendente e, julgado o incidente
pelo órgão do Tribunal, fixa-se a tese jurídica a ser aplicada aos casos concretos pendentes de
julgamento.
São requisitos para a instauração do incidente, previstos no artigo 976 do Código de
Processo Civil: (a) efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma
questão unicamente de direito e (b) risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. Com a
143
instauração do incidente, suspende-se o andamento dos processos abrangidos pela tese jurídica
a ser firmada.
O IRDR, todavia, possui características que o impedem de ser a única solução para
enfrentar a litigância de massa e repetitiva. Isso porque o julgamento do IRDR tão somente
fixará a tese jurídica a ser aplicada aos processos suspensos e futuros, mas não há formação de
coisa julgada erga omnes e pro futuro. Exige-se sempre o ajuizamento ou prosseguimento dos
processos individuais, ainda que com aplicação de todas as consequências processuais do
julgamento vinculante. Em outras palavras, não há solução definitiva da litigiosidade daquela
determinada tese jurídica.
Outro aspecto do modelo de IRDR que pode ser tido como negativo é seu caráter tão
somente repressivo e não preventivo, ao exigir a existência de efetiva repetição de processos,
afastando-se do projeto inicial que previa a utilização do incidente com a mera potencialidade
de causar relevante multiplicação de processos. No modelo atual, portanto, ainda que desde
logo se vislumbre a futura multiplicação de processos, como, por exemplo, em caso de desastre
ambiental, o incidente não poderá ser manejado, falhando no objetivo de reduzir o ajuizamento
de demandas.
O IRDR também não se revela o único instrumento adequado à tutela de demandas
repetitivas quando se verifica que o legislador limitou sua aplicação apenas às questões de
direito, não permitindo a resolução de questões fáticas. A opção é criticada pela doutrina, pois
inviabiliza que determinadas situações fáticas geradoras de diversos processos individuais
possam ser solucionadas de forma isonômica pelo tribunal, como, por exemplo, situações de
desastres aéreos.
Há ainda uma quarta característica que inviabiliza eleger o IRDR como solução única
para o aumento da litigiosidade. Consiste na ausência de previsão legal de suspensão do prazo
prescricional das demandas individuais enquanto pendente de julgamento o IRDR, conforme
previsto no projeto original. A opção legislativa poderá ensejar o aumento da litigiosidade, pois
os particulares lesados, informados do ajuizamento do IRDR em razão da obrigatória e salutar
publicidade de seu processamento, serão incentivados a ajuizar suas demandas individuais, sob
pena de, em caso de procedência da tese, verem sua pretensão fulminada pela prescrição.
Dessa forma, tanto o processo coletivo estabelecido pelo microssistema coletivo
formado pela Lei de Ação Civil Pública, Lei da Ação Popular e Código de Defesa do
Consumidor, como os novos instrumentos trazidos pelo Código de Processo Civil são
insuficientes por si sós, isoladamente, para enfrentar a crescente litigiosidade. Assim, melhor
considerar que o enfrentamento da litigiosidade de massa e repetitiva passou a ser composto
144
por dois modelos diversos, mas complementares: (i) o modelo das ações coletivas; e (ii) o
modelo de julgamento/resolução das questões repetitivas.
Os regimes são, portanto, complementares e interdependentes, sem perder de vista a
superioridade do processo coletivo, que deflui de algumas vantagens verificadas na
legitimidade (é mais democrática, pois há entes públicos representando a sociedade), na
competência (uma única ação coletiva pode ter efeito nacional, o que não ocorre no IRDR), na
coisa julgada (no processo coletivo o indivíduo lesado pode executar diretamente a sentença,
sem necessidade de novo processo), na liquidação/execução da sentença proferida no processo
coletivo, fluid recovery e na possibilidade de solução consensual do conflito.
Assim, embora se reconheça a complementaridade e interdependência entre ambos os
modelos para um adequado enfrentamento dessa nova forma de litigiosidade, é de se reconhecer
também a superioridade da ação coletiva. Assim, para a instauração de qualquer IRDR, passaria
a ser requisito implícito do ordenamento brasileiro o seu caráter subsidiário, somente podendo
ser manejado quando inviável ou injustificável, no caso concreto, o manejo da ação coletiva.
No entanto, a conjugação de esforços entre os dois diferentes meios de tutela não é
suficiente para resolver de forma definitiva, duradora e eficaz a excessiva litigiosidade em voga
no Brasil. A fim de enfrentar a litigiosidade, é preciso enfrentar suas causas, e não apenas suas
consequências, verificadas essencialmente pelo aumento de número de processos e aumento
das taxas de congestionamento, conforme indicam os últimos relatórios do Conselho Nacional
de Justiça já trazidos nessa pesquisa.
É necessário rever outras importantes causas do aumento da litigiosidade, notadamente
o custo da litigância no Brasil, pois não haverá efetiva redução de processos enquanto for tão
fácil e barato litigar. Além disso, há a extrema benevolência do acesso à assistência judiciária.
Mesmo quando há recolhimento de custas, o valor em questão suporta somente 11,61% de todas
as despesas judiciais, de maneira que há um subsídio estatal de quase 90% para os casos em
que há cobrança. Nesse cenário, as externalidades negativas advindas da judicialização são
coletivizadas e as externalidades positivas, em grande parte, usufruídas tão somente pelo autor
da demanda, que se beneficia da litigância a custo módico ou gratuito.
Da mesma forma, a existência de isenções em favor de todos os entes públicos
litigantes aumenta excessivamente os custos sociais decorrentes do ajuizamento de demandas
desnecessárias, o que é confirmado quando se verifica que o poder público é o grande litigante
do Poder Judiciário, em especial das execuções fiscais, cuja taxa de congestionamento chegou
a 90% em 2018.
145
É preciso, então, adotar mudanças legislativas que visem aumentar sensivelmente o
valor das custas judiciais ou impor penalidades em caso de sucumbência, notadamente para os
litigantes habituais do Poder Judiciário, que tiram proveito econômico da elevada e recorrente
taxa de judicialização de suas relações negociais, os denominados free riders, levando a um
esgotamento dos recursos públicos e a uma prestação jurisdicional de menor qualidade para
todos, ante o assoberbamento dos tribunais.
É preciso ainda extinguir o teto de custas; elas devem incidir sobre o total do proveito
econômico pretendido, sem prejuízo de eventual concessão de gratuidade de justiça para a
parcela que superar a capacidade econômica da parte.
As mudanças passam igualmente pela revisão da concessão da justiça gratuita, o que
demanda a inversão da presunção de pobreza constante do artigo 99, § 3º, Código de Processo
Civil, exigindo-se a necessidade de prova da insuficiência de recursos, mantendo-se a presunção
apenas quando as circunstâncias da causa indicarem claramente a carência financeira e
enquadrar a falsa declaração de pobreza como falsidade ideológica.
Da mesma forma, é preciso combater com rigor a litigância de má-fé e fraudulenta.
A atual punição é praticamente inexistente, pois por ser destinada ao Estado está sujeita ao
patamar mínimo para ajuizamento de execução fiscal. Na prática, ainda que haja imposição da
penalidade, ela provavelmente não será objeto de execução forçada. Não bastasse, a penalidade
é imposta à parte e não ao advogado causador do ato lesivo, o que acaba gerando um incentivo
às práticas fraudulentas por parte dos advogados, visto que, com isso, aumentam sensivelmente
as chances de êxito na demanda e, consequentemente, de percepção de honorários
sucumbenciais.
Por fim, outra medida essencial ao enfrentamento da litigiosidade de massa e repetitiva
é a tecnologia advinda de novas ferramentas de inteligência artificial. Um importante
instrumento são as plataformas digitais de autocomposição ou online alternative dispute
resolution (OADR), que permitem a resolução automática e extrajudicial do conflito, sem
intervenção humana, como no caso do sistema ebay, que permite a resolução de mais de 60
milhões de conflitos por ano com uma taxa de acordo de 90%, sem qualquer intervenção
humana.
A adoção deste sistema por cortes judiciais ou pelas empresas litigantes habituais
implicaria sensível redução no número de demandas, permitindo que o Poder Judiciário seja
reservado para conflitos que realmente demandem sua intervenção, passando a resolução online
da disputa ao patamar de condição da ação ou pressuposto processual de eventual posterior
146
demanda processual caso o conflito se enquadre no pequeno percentual de não resolução
extrajudicial.
A tecnologia também pode auxiliar na prevenção de demandas e reduzir o
descumprimento das leis. Com a utilização do embedded legal knowledge pretende-se que os
produtos sejam fabricados e utilizados visando evitar o descumprimento da lei, como por
exemplo, o automóvel que detecta o fato de o condutor ter ingerido bebida alcoólica e não dar
partida. Ou, ainda, do veículo alienado fiduciariamente por meio de um smart contract não abrir
as portas em caso de inadimplência.
Há também sistemas avançados que recolhem informações (big data) e permitem
antecipar e identificar litigância predatória ou de má-fé de advogados e grandes litigantes,
podendo, no futuro, ser importante ferramenta no enfrentamento da litigância repetitiva e
fraudulenta.
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