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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Gabriel Ferreira da Fonseca A interpretação jurídica no Estado Regulador: da legislação racional à administração/jurisdição eficiente MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gabriel Ferreira da Fonseca

A interpretação jurídica no Estado Regulador:

da legislação racional à administração/jurisdição eficiente

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gabriel Ferreira da Fonseca

A interpretação jurídica no Estado Regulador:

da legislação racional à administração/jurisdição eficiente

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia do Direito, sob a orientação do Prof. Dr. Celso Fernandes Campilongo.

SÃO PAULO

2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gabriel Ferreira da Fonseca

A interpretação jurídica no Estado Regulador:

da legislação racional à administração/jurisdição eficiente

MESTRADO EM DIREITO

Orientador: Professor Dr. Celso Fernandes Campilongo

Aprovado em:____________________

Banca Examinadora:

______________________________________________

______________________________________________

______________________________________________

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Dedico este trabalho, com carinho, aos meus pais, à

minha família, aos meus amigos e à memória da minha

avó Nair.

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AGRADECIMENTOS

A parte mais difícil de um trabalho acadêmico talvez seja conseguir ser justo nos

agradecimentos. As dúvidas e inquietações relacionadas à “teoria do direito” são antigas e

muitos foram aqueles que de alguma forma contribuíram com estímulos positivos para que

eu desse prosseguimento à minha trajetória em busca de respostas e de novas perguntas.

No início, apenas poderei agradecer à minha família, que sempre apoiou e

incentivou os meus sonhos. Em nome dos meus pais, Ester e João, agradeço a todos os

familiares que sempre estiveram firmes em suas posições de porto seguro e de pilar de

sustentação.

Em seguida, não poderei deixar de agradecer aos amigos. Alguns deles estiveram

mais próximos durante o curso de Mestrado, outros mais distantes, em razão da distância

geográfica entre São Paulo e Salvador. Aos que estiveram em São Paulo, devo agradecer

pelo acolhimento e pelo apoio. Aos que estiveram em Salvador, devo agradecer pela

compreensão e pelo companheirismo apesar da distância.

No plano acadêmico, o principal agradecimento deve ser destinado ao meu

orientador, Professor Celso Fernandes Campilongo, que permitiu que este trabalho fosse

escrito, por um lado, com grande liberdade, mas, por outro lado, com imensa

responsabilidade. Sou muito grato ao Professor pelas sugestões de leitura, pelas

oportunidades de reflexão e pelos convites para participar de atividades de monitoria.

À Professora Clarice von Oertzen de Araújo e ao Professor Luiz Guilherme Arcaro

Conci agradeço imensamente pela cuidadosa leitura e pelas importantes sugestões

transmitidas na banca do Exame de Qualificação deste trabalho.

Por fim, agradeço aos amigos que dedicaram parte do seu tempo para ler este

trabalho e transmitir impressões, críticas e sugestões: Max Bandeira, Gabriel Salles, Lucas

Amato, Natalia Rebello, Paulo Damascena, Carlo Principe, Ponciano de Carvalho, Lucas

Moreira, Frederico Costa e Gladston Correia.

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“1. Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. 2. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.” (João Cabral de Melo Neto. Tecendo a manhã. In: A Educação pela Pedra.)

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RESUMO

A interpretação jurídica não escapou às recentes transformações ocorridas no Estado e no

direito. Ao longo das últimas décadas, esta importante operação comunicativa do sistema

jurídico sofreu metamorfoses que justificaram a realização da pesquisa que resultou no

presente trabalho. Com o objetivo de compreender as profundas mudanças sofridas pela

interpretação jurídica, foram investigadas as peculiaridades dos novos modelos de Estado

Regulador e de direito (“pragmático”, “flexível”, “brando”, “responsivo”, “dúctil”,

“heterárquico”) que se desenvolvem na contemporaneidade, contrastando-as com as

características marcantes dos modelos estatais e jurídicos anteriores. O resultado da

pesquisa, que tomou como principal referência a teoria dos sistemas sociais de Niklas

Luhmann, foi uma descrição acerca da realidade social investigada, que pode ser entendida

como uma autorreflexão do sistema jurídico, convencionalmente chamada de “teoria do

direito”. A opção por este modo teórico-jurídico de observar a realidade investigada

permitiu situar a pesquisa em uma posição diferente daquelas da prática do direito e da

dogmática jurídica, ligadas diretamente à necessidade de decisão, e da sociologia do

direito, desvinculada desta preocupação. Esta posição ambivalente entre os pontos de vista

interno e externo ao sistema jurídico contribuiu para uma investigação heterodoxa acerca

de um recurso retórico útil e tradicional da dogmática jurídica: a hipótese do legislador

racional. Por fim, após abordar os contornos deste ideal tradicional da hermenêutica

jurídica, o trabalho refletiu acerca dos riscos, limites e possibilidade de uma nova figura

retórica, que pode estar se desenvolvendo no interior do sistema jurídico: a hipótese do

administrador/julgador eficiente.

Palavras-chave: Teoria dos sistemas; Estado Regulador; Interpretação jurídica; Legislador

racional; Eficiência.

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ABSTRACT

The field of legal interpretation was not immune to recent changes that took place in the

State and in Law. Along the last decades, this important communicative activity of the

legal system underwent a number of metamorphosis which justified the conduction of the

research of which this work is a product. Aiming to apprehend the profound changes that

took place in the field of legal interpretation, we investigated the singularities of the new

models of Regulatory State and the Law (“pragmatic”, “flexible”, “soft”, “responsive”,

“ductile”, “heterarchical”) currently in development, in contrast with the outstanding

characteristics of the previous models of State and Law. The outcome of the work, which

was based on Niklas Luhmann’s systems theory, was a description of the investigated

social reality, which may be understood as an auto-reflection of legal system,

conventionally named “legal theory”. The option for this theoretical way to observe the

investigated reality allowed to place the inquiry in a different position from those of legal

practice and legal dogmatics, which are directly associated to the need to decide, and from

sociology of law, disassociated from the need to decide. This ambivalent position between

internal and external perspectives of the legal system contributed to a heterodox

investigation on a useful traditional rhetorical resource of the legal dogmatics: the rational

legislator hypothesis. Finally, after having approached the characteristics of this traditional

ideal of the law hermeneutics, this work reflects on the risks, limits and possibility of a

new rhetoric figure, which is possibly being developed in the interior of the legal system:

the efficient administrator/ruler.

Key-words: Systems theory; Regulatory State; Legal interpretation; Rational legislator;

Efficiency.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 9

1.1 A seleção metodológica da teoria dos sistemas sociais ............................................. 15

1.2 A seleção metodológica do Estado Regulador ........................................................... 20

1.3 A seleção metodológica da interpretação jurídica .................................................... 23

2. MODELO DO ESTADO REGULADOR ................................................................... 27

2.1 Limites da política e esgotamento do Estado Intervencionista................................ 28

2.2 Configuração do Estado Regulador ........................................................................... 37

2.3 Globalização econômica e governança global ........................................................... 47

3. NOVO MODELO DE DIREITO ................................................................................. 55

3.1 Desgastes da racionalidade jurídica tradicional ....................................................... 56

3.2 Novos aspectos do direito ............................................................................................ 68

3.3 O caso do direito brasileiro ......................................................................................... 75

4. HIPÓTESE DO ADMINISTRADOR/JULGADOR EFICIENTE ........................... 84

4.1 Interpretação jurídica e legislador racional .............................................................. 86

4.2 Interpretação jurídica e administrador/julgador eficiente ...................................... 95

4.2.1 Eficiência e segurança jurídica ................................................................................... 97

4.2.2 Dogmática jurídica responsiva ................................................................................. 124

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 139

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 142

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1. INTRODUÇÃO

O Estado Regulador é uma realidade do nosso tempo. Ele indica um contexto de

recentes mudanças na política e no direito. A interpretação jurídica, enquanto importante

operação comunicativa do direito, não escapou destas transformações, o que exige

reflexões teórico-jurídicas e sociológicas, cujas bases este trabalho recolherá, sobretudo, da

teoria dos sistemas sociais desenvolvida por Niklas Luhmann e por diversos outros

pesquisadores deste aporte teórico.

As recentes transformações na política e no direito repercutiram drasticamente no

que se entende contemporaneamente por interpretação jurídica. Essas transformações

podem ser objeto de uma reflexão teórica séria, pautada nos instrumentos teóricos

desenvolvidos pela teoria dos sistemas sociais.

Assim, o trabalho apresentará as mudanças ocorridas, nas últimas décadas, na

política e no direito, em geral, e no Estado e na interpretação jurídica, em especial. Embora

ligada ao Núcleo de Pesquisa em Filosofia do Direito, o que requer uma sólida abordagem

teórico-reflexiva, a investigação empreendida também tem compromisso com a prática

jurídica e com a realidade estatal, particularmente no contexto brasileiro. Em lugar de um

academicismo estéril, buscar-se-á o desenvolvimento de um trabalho comprometido com

observações e descrições adequadas à realidade e aos problemas jurídicos brasileiros1.

Os discursos da filosofia e da teoria do direito, segundo a teoria dos sistemas de

Luhmann, ocupam uma posição ambivalente entre a autodescrição (auto-observação) e a

heterodescrição (hetero-observação) do sistema jurídico, razão pela qual podem

caracterizar o direito de um modo não habitual, não prático e mais abstrato, mas sempre

orientado para o próprio direito. Estes discursos não apresentam, portanto, a posição de

1 Embora o presente trabalho esteja situado no campo da chamada teoria do direito e, portanto, tenha uma ambição teórica que tende a transcender as particularidades do direito positivo, da dogmática jurídica e da realidade jurídica do Brasil, o contexto social brasileiro pode ser considerado a principal experiência concreta que lastreia a investigação realizada. Ademais, este trabalho parte do pressuposto de que o instrumental da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann é aplicável à análise da realidade social e do sistema jurídico brasileiro. Ver, para uma discussão acerca das singularidades da modernidade brasileira e da possibilidade de aplicação da teoria dos sistemas à análise do direito brasileiro, VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009.

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independência em face ao seu objeto que possuem as investigações externas ao sistema

jurídico, como aquelas da sociologia do direito2.

Ainda que diversas passagens do presente trabalho se baseiem em descrições

sociológicas do sistema jurídico, a investigação acerca da interpretação jurídica que guia a

pesquisa está mais bem situada na tradição teórico-filosófica do direito3, preocupada, por

um lado, com uma compreensão aprofundada e aberta ao questionamento do fenômeno

jurídico, mas, por outro lado, com as necessidades operacionais dos atores do sistema

jurídico, já que serve de auxílio à “ciência do direito”, que nos últimos 150 anos tem se

configurado como um saber de caráter dogmático4.

2 LUHMANN, Niklas. A Restituição do Décimo Segundo Camelo: Do Sentido de uma Análise Sociológica do Direito. Tradução de Dalmir Lopes Junior. In: ARNAUD, André-Jean; LOPES JUNIOR, Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 53. Embora, no livro “Sistema Jurídico e Dogmática Jurídica”, Luhmann tenha situado a teoria do direito no sistema científico, e não no sistema jurídico, posteriormente, em obras como “O Direito da Sociedade”, o autor passou a considerar a teoria do direito “como forma de reflexão do sistema jurídico e, inclusive, como mecanismo de ‘acoplamento estrutural’ entre sistema científico e sistema jurídico” (GONÇALVES, Guilherme Leite; VILLAS BÔAS FILHO, O. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 150). Por outro lado, ainda que a teoria do direito constitua a “instância de reflexão do sistema jurídico” por excelência, esta teoria, quando comparada com a descrição externa da sociologia jurídica, apresenta “uma capacidade limitada de crítica em face do sistema jurídico” (NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 154). Por isso, autores como Raffaele De Giorgi entendem que a teoria do direito não apenas faria referência à realidade do sistema jurídico, mas seria a própria realidade autorreferencial deste sistema, que “[...] li maschera al sistema e li supera. Il riferimento della teoria del diritto, allora, non è una teoria della conoscenza, cosí come la sua funzione non è quella di produrre un sapere vero sul diritto, cioè di descrivere l’oggetto come un dato esterno appartenente ad una realtà sulla quale si esercita la scienza. Per la teoria dei sistema, la teoria del diritto è essa stessa una struttura della realtà autorreferenziale del diritto che ha la sua funzione nella soluzione dei problema posti dalla forma della differenziazione sociale.” A sociologia, por sua vez, “osserva il sistema dall’esterno, la sua è una forma di etero-osservazione. Essa cioè conserva la distanza che la separa dal sistema perché in questo modo può osservare e descrivere non solo il sistema, ma ache il modo in cui il sistema osserva e descrive se stesso. Ciò permette alla sociologia, come dice Luhmann, di osservare insieme di più e di meno di quanto non possa fare lo stesso sistema giuridico.” (DE GIORGI, Raffaele. Introduzione all’edizione italiana. In: LUHMANN, Niklas. La differenziazione del diritto – Contributi alla sociologia e alla teoria del diritto. Tradução de Raffaele De Giorgi e Michele Silbernagl. Bologna: Società editrice il Mulino, 1990, pp. 24-25). 3 Ver, para uma sociologia da interpretação jurídica, CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, pp. 123-166, e CAMPILONGO, Celso Fernandes. A observação sociológica da interpretação jurídica. In: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e diferenciação social. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 91-98. 4 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 21-24. Não há consenso quanto à possibilidade de a ciência do direito se configurar como um saber de caráter dogmático. Autores como Luhmann entendem que haveria uma clara diferença entre o tratamento do material jurídico realizado pelas teorias dogmáticas do direito e um tratamento científico deste material (LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. 20-21). Ver, para uma discussão acerca da relação da dogmática jurídica com a proibição da denegação de justiça, bem como sobre as controvérsias em torno da expressão “ciência dogmática do direito”, RAMOS, Luiz Felipe Rosa. Por trás

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A teoria do direito é capaz de realizar a mediação entre observação externa e

observação interna, empreendendo uma espécie de “second order cybernetics” (observação

de segunda ordem) do sistema jurídico5, que permite o contato, ao mesmo tempo, com a

teoria dos sistemas sociais e com as teorias concretas da dogmática jurídica6. Se, por um

lado, a posição teórica adotada não abandona a perspectiva interna do sistema jurídico e

considera irrenunciável a centralidade do conceito de norma jurídica, por outro lado,

assume o papel de teoria reflexiva deste sistema e se dirige à abstração, à busca de contatos

interdisciplinares e à comparação dos diferentes ordenamentos jurídicos ou famílias de

ordenamentos jurídicos7.

O sistema jurídico produz os seus próprios limites e a teoria do direito funciona

como uma importante instância de auto-observação e autodescrição deste sistema, isto é,

como um âmbito de observação interno do direito, que deve identificar o direito e

dos casos difíceis: a dogmática jurídica e o paradoxo da decisão indecidível. 2014. 172 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2014. 5 A teoria dos sistemas de Luhmann renuncia ao termo “sujeito” (da teoria do sujeito) e adota a expressão “observação” (da teoria da observação de segunda ordem). Parte-se da premissa de que o mundo está dividido entre sistema e ambiente e de que a localização do observador condiciona aquilo que ele pode ver (e também aquilo que ele não pode ver): “O observador é um sistema, e um sistema pode ter uma capacidade de localização flexível: o sistema pode observar a si mesmo (auto-observação), e também outros sistemas (hetero-observação). [...] A observação de segunda ordem não constitui o emprego de uma lógica formal abstrata, mas a tentativa de observar aquilo que o observador [de primeira ordem] não pode ver [o ponto cego do observador], devido à localização. A observação de segunda ordem deve fixar exatamente o ponto a partir do qual se observa como o outro observa o mundo.” (LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, pp. 163-170). 6 LUHMANN, Niklas. A Restituição do Décimo Segundo Camelo: Do Sentido de uma Análise Sociológica do Direito. Tradução de Dalmir Lopes Junior. In: ARNAUD, André-Jean; LOPES JUNIOR, Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 86-87. 7 Consoante Luhmann, embora a teoria do direito não apresente ainda um perfil claro, “[...] la distinción entre teorías dogmáticas y teoría del derecho, en sentido general, se da por aceptada. Sin embargo, no se abandona la incorporación de la teoría del derecho a la perspectiva interna del sistema. En todo caso, también en la teoría del derecho se considera irrenunciable el concepto de norma como concepto fundamental. En calidad de principio básico esto significa que el concepto se define recurriendo a sí mismo, como autorreferencia en cortocircuito. La norma prescribe lo que debe ser. Así, la distinción directriz norma/hechos se hace absolutamente necesaria, con lo cual el factum – visto desde la norma – puede ser juzgado como conforme o divergente: con esto toma de posición la teoría do derecho se incorpora al sistema jurídico. Se trata todavía de una teoría reflexiva del sistema jurídico orientada hacia la abstracción y hacia la búsqueda de contactos interdisciplinares; además de que se trata de una reflexión guiada por la vieja tesis de que las normas no se derivan de los ‘hechos’ y que tampoco se pueden describir como hechos, sobre todo cuando se trata de hacer justicia al valor específicamente proprio, al sentido normativo, al carácter reivindicatorio de la norma. […] la teoría do derecho es un esfuerzo de reflexión que pretende averiguar con qué tiene que vérselas el derecho a partir de la concepción que tiene de sí mismo.” (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 64-66).

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distingui-lo do seu entorno (ambiente)8. Mas, assim como uma observação/descrição

sociológica do sistema jurídico não poderia ignorar a teoria do direito (instância teórica e

reflexiva deste sistema), uma observação teórico-jurídica não pode abster-se de realizar

hetero-observações/heterodescrições da própria sociedade9.

Por isso, o presente trabalho recorre à complexa descrição da teoria dos sistemas,

que permite situar a investigação proposta, preocupada com a interpretação jurídica, na

linha daqueles esforços de reflexão teórica sobre o sistema jurídico que se convencionou

chamar de teoria do direito. Trata-se de uma orientação teórica mais “abstrata” do que as

pesquisas de caráter jurídico-dogmático, por estar mais distante da decidibilidade de

conflitos concretos, porém mais “concreta” do que aquelas investigações de índole

jurídico-sociológica, por estar mais próxima da necessidade de decisão dos referidos

conflitos10.

8 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 67-70. 9 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 134. Todas as comunicações do sistema jurídico, em razão da função específica (“estabilização de expectativas normativas”) e do código binário próprio (“conforme ao direito/não conforme ao direito”) deste sistema, estão associadas à decidibilidade de conflitos, inclusive as autodescrições, embora estas possam “evitar tomar partido” em relação a situações específicas. (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 572-579). 10 Em verdade, Luhmann manifesta desconfiança em relação à expectativa de que a teoria sociológica em geral e a teoria da sociedade em particular possam ter alguma utilidade ou contribuir com algo relevante para a autodescrição do sistema jurídico (como a que é produzida pela teoria do direito) ou para a prática jurídica (que é orientada para a decisão de conflitos): “El sistema jurídico no puede obtener ningún beneficio de los análisis sociológicos; no puede, por su parte, utilizar los hechos estadísticos como reglas que hay que considerar cuando haya que tomar decisiones. No es necesaria una justificación adicional del hecho de que el sistema jurídico no ‘utilice’ los descubrimientos de la sociología, ni puede esta circunstancia ser motivo de ‘crítica’ – por ejemplo, en el sentido del movimiento de los llamados Critical Studies.” Por outro lado, o referido autor entende que o abismo entre descrição interna e descrição externa parece maior do que realmente teria que ser, possivelmente devido ao fato de a análise empírica convencional da sociologia do direito dar conta de seu objeto apenas parcialmente, isto é, de não descrever “[…] el sistema jurídico como un sistema jurídico […]”: “De cualquier manera, una teoría sociológica más compleja que reflexione acerca de la diferencia como una consecuencia de la diferenciación del sistema podría muy bien hacer comprensible el por qué esto es así y presentar al mismo tiempo conceptos de mediación provenientes de la descripción externa (sociológica).” Segundo Luhmann, novos desenvolvimentos teóricos poderiam ir um pouco mais longe e defender “[…] la idea de que la teoría es un mecanismo de acoplamiento estructural del sistema de la ciencia con las teorías de la reflexión de los sistemas funcionales […]” e, com isso, que “[…] el sistema jurídico podría proporcionar a su propia reflexión los logros conceptuales de la teoría de los sistemas autorreferenciales, en la medida que ésta funcione de manera científicamente normal […]” (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 612-619). Assim, o presente trabalho parte do pressuposto de que a teoria do direito funciona como um mecanismo de “acoplamento estrutural” entre o sistema do direito e o sistema da ciência (sistema do qual faz parte a sociologia do direito), isto é, como um instrumento de caráter geral e permanente que suscita irritações, surpresas e perturbações recíprocas entre estes dois sistemas da

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O presente trabalho pode ser considerado uma prestação reflexiva do sistema

jurídico, que toma para si a tarefa de sistematizar todas as aquisições úteis à decidibilidade

de conflitos, mediante o recurso às experiências de comparação de casos, aos conceitos

dogmáticos, às normas jurídicas e, ainda, às avaliações abertas dos fenômenos sociais. Essa

sistematização pressupõe a referência à unidade do direito, à identidade do sistema jurídico

e aos critérios de adesão ao “direito” ou ao “não-direito”11.

Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, às antigas inquietações teóricas do

autor, dos tempos de graduação em Direito, somaram-se as angústias da advocacia

consultiva na área de direito regulatório, área pouco explorada pelos cursos de graduação

das Faculdades de Direito. Os problemas ligados à interpretação jurídica se potencializam

no contexto do Estado Regulador, mas escassas são as reflexões teóricas voltadas ao tema

no Brasil. Em sua maioria, não apenas as disciplinas e as investigações dogmáticas seguem

desprezando as recentes mudanças do Estado, do direito e da interpretação jurídica, mas

também as reflexões orientadas a uma abordagem mais teórica ou crítico-reflexiva do

fenômeno jurídico tendem a deixar escapar o tema12.

Experimenta-se um desconforto frente ao descompasso entre os discursos jurídicos

predominantes no Brasil e a faticidade das relações sociais que o direito pretende regular e

influir, o que levou J. J. Calmon de Passos a recordar dos versos do poeta Mário Quintana: sociedade (isto é, a abertura cognitiva mútua). No entanto, essa relação entre sistema jurídico e sistema científico não acarreta que o direito ou a ciência percam a sua autonomia (fechamento operacional), já que a noção de acoplamento estrutural tanto vincula quanto separa os sistemas. Não se defende aqui, portanto, uma “sociologização” ou “cientificização” do direito, pois os limites operacionais de cada sistema social são observados e respeitados (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 507-513). Ver, para uma proposta de teoria do direito de inspiração luhmanniana, CARVALHO NETO, Pythagoras Lopes de. Retórica e consistência no direito: fundamentos para uma teoria do direito de inspiração luhmanniana. 2015. 181 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2015. 11 LUHMANN, Niklas. Prefazione. In: LUHMANN, Niklas. La differenziazione del diritto – Contributi alla sociologia e alla teoria del diritto. Tradução de Raffaele De Giorgi e Michele Silbernagl. Bologna: Società editrice il Mulino, 1990, p. 31. 12 No Brasil, como aponta Salomão Filho, “jamais houve tentativa de formulação de uma teoria geral da regulação. A razão para tanto é jurídica e simples. Trata-se de tradicional concepção do Estado como agente de duas funções diametralmente opostas: a ingerência direta na vida econômica e a mera fiscalização dos particulares. [...] Nesse cenário, a preocupação com a regulação, mesmo quando presente, não dava asas a uma manifestação doutrinária ou, mesmo, a uma preocupação prática.” O estudo da “regulação” geralmente tem se limitado a alguns tópicos de obras de direito da concorrência e de direito administrativo ou à abordagem mais ampla de obras de direito econômico (SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos jurídicos). 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 19-20).

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“pobres cartazes por aí afora, que ainda anunciam ALEGRIA - RISOS, depois do circo já

ter ido embora!...”. Os discursos jurídicos, como os cartazes amarelados de um circo que já

se foi, costumam anunciar “o que a vida real não mais nos proporciona”13.

Uma dissertação que pretende abordar um tema atual, como é o caso desta,

encontra-se diante de um grande desafio: tratar de modo adequado não apenas do passado e

do presente, o que por si só já traz enormes dificuldades, mas também de um pouco do

futuro – tarefa ainda mais arriscada. Esta empreitada exigiu algumas opções.

O trabalho se desenvolverá a partir de três seleções metodológicas principais,

responsáveis pela redução de complexidade da investigação: i) a da teoria dos sistemas

sociais; ii) a do Estado Regulador; e iii) a da interpretação jurídica. De saída, outros

referenciais teóricos igualmente adequados ao estudo proposto poderiam ter sido

selecionados: “teoria da argumentação”, “teoria do discurso”, “análise econômica do

direito”. O Estado poderia ser qualificado de outro modo: “Pós-moderno”, “Pós-social”,

“Neoliberal”, “Hiper-moderno”. Outro elemento ligado à teoria do direito poderia ser

objeto de análise: “norma jurídica”, “ordenamento jurídico”, “fontes do direito”, “relação

jurídica”. No entanto, ainda que possam ser consideradas arbitrárias, as opções do trabalho

permitem o seu desenvolvimento: traçam limites, mas também condições de possibilidade

para uma análise adequada de uma realidade social complexa e contingente.

O processo de investigação se desenvolverá a partir de três grandes seleções dentre

muitas outras possíveis, o que, sem dúvida, significa a opção pela autolimitação, pela

redução de complexidade. Trata-se de uma exigência estrutural do objeto de investigação,

um princípio metodológico compatível com a proposta de reflexão voltada para o

complexo sistema social14.

13 PASSOS, J. J. Calmon de. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: Editora JusPodivm, 2012, p. 35. 14 LUHMANN, Niklas. La moral de la sociedad. Tradução de Iván Ortega Rodríguez. Madrid: Editorial Trotta, 2013, pp. 62-67. Ver, para uma discussão acerca do papel da “limitacionalidade” para o conhecimento, LUHMANN, Niklas. La ciencia de la sociedad. Tradução de Silvia Pappe, Brunhilde Erker e Luis Felipe Segura. Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana e ITESO, 1996, pp. 282-286.

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15

Ao longo do desenvolvimento de todo o trabalho, ficará evidente que há fortes

razões para se acreditar que: i) a teoria dos sistemas sociais, desenvolvida por teóricos

como Niklas Luhmann, permite uma descrição adequada e útil da realidade social

investigada, isto é, da sociedade, em geral, e dos subsistemas do direito e da política, em

especial; ii) a regulação econômica, modo típico de intervenção do Estado contemporâneo

no domínio econômico, pode servir como característica distintiva do modelo de Estado

Regulador (em contraposição aos modelos de Estado Liberal e de Estado Intervencionista);

iii) por refletir as transformações do direito no contexto do Estado Regulador, a

interpretação jurídica, operação comunicativa central do sistema jurídico, demanda novas e

aprofundadas investigações.

O trabalho focaliza dois momentos que, a nosso ver, são fundamentais para se

compreender a realidade social investigada. O primeiro diz respeito à questão da

subsistência da figura do “legislador racional” como recurso metodológico útil à

interpretação jurídica. Já o segundo problematiza o surgimento de um novo ideal

possivelmente mais adequado à interpretação jurídica no contexto do Estado Regulador: o

do “administrador/julgador eficiente”. Neste ponto, o trabalho assume uma perspectiva

propositiva.

1.1 A seleção metodológica da teoria dos sistemas sociais

A principal referência teórica deste trabalho é a teoria dos sistemas sociais de

Niklas Luhmann. A sociedade moderna é descrita por esta referência como um sistema de

comunicação, que abarca em seu interior diversos subsistemas (sistemas parciais)

diferenciados funcionalmente. Para este ponto de vista teórico, são vistos como

subsistemas sociais, por exemplo, o direito, a política, a economia, a ciência e a religião.

A teoria dos sistemas sociais permite uma descrição adequada da realidade social.

Ao mesmo tempo em que focaliza seriamente a complexidade e a contingência da

sociedade moderna, que é um grande sistema social, aquela teoria aponta para o

fechamento operacional e para a abertura cognitiva dos diversos subsistemas abarcados

pela sociedade. A teoria dos sistemas sociais é, assim, uma descrição heterodoxa e

complexa da realidade social, em geral, e do direito e da política, em particular.

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16

No Brasil, há uma vasta literatura acadêmica pautada por este referencial teórico,

sobretudo no direito. Pesquisadores como Celso Fernandes Campilongo, Juliana

Neuenschwander Magalhães, Leonel Severo Rocha, Marcelo Neves, Orlando Villas Bôas

Filho, Tércio Sampaio Ferraz Júnior e Willis Santiago Guerra Filho desempenharam um

importante papel na divulgação e no desenvolvimento da teoria dos sistemas no Brasil. A

aplicação à realidade brasileira do instrumental desta teoria tem se mostrado promissora.

No âmbito do presente trabalho, espera-se que a teoria dos sistemas sociais forneça

os instrumentos para uma descrição adequada do sistema da sociedade e, particularmente,

dos subsistemas sociais do direito e da política. A consciência dos limites e possibilidades

da atuação de cada um destes sistemas parciais da sociedade poderá auxiliar na

compreensão dos novos modelos de Estado, direito e interpretação jurídica que se

desenvolvem contemporaneamente.

Em obras como “Teoria Política no Estado de Bem-Estar”, Luhmann desenvolve

uma forte crítica à configuração do Estado Intervencionista. A descrição oferecida por

Luhmann do subsistema político lança luzes sobre os limites da atuação política e a

sobrecarga de tarefas assumida pelo Estado Intervencionista, que levou ao colapso deste

modelo estatal e à reestruturação das suas atribuições. O Estado Regulador se organiza a

partir dos escombros do Estado de Bem-Estar, cujas rachaduras já eram apontadas por

Luhmann no início da década de 1980. Naquela oportunidade, Luhmann constatou que

uma sociedade funcionalmente diferenciada não poderia ser centrada sobre a política, sob

pena de destruição15.

Ademais, apesar de não ter incluído em sua principal obra sobre o subsistema

jurídico (“O Direito da Sociedade”) um capítulo específico sobre a interpretação jurídica, é

inegável a importância conferida por Luhmann àquela operação comunicativa. Para ele,

fica claro que, na atualidade, a interpretação jurídica não é entendida simplesmente como a

revelação do texto interpretado através do recurso a outros símbolos, mas como produção

de novos textos com base em textos antigos. A interpretação jurídica pode ser 15 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Universidad, 2007, p. 44.

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17

compreendida como uma preparação para a argumentação jurídica16, razão pela qual é

importante refletir sobre essas duas operações comunicativas, que são responsáveis pela

autopoiese e sobretudo pela evolução do sistema jurídico.

Embora também apresente o objetivo de fornecer contribuições para o acúmulo

teórico que tem sido produzido no âmbito da teoria dos sistemas sociais, o presente

trabalho não trará um capítulo específico com a finalidade de discutir o marco teórico

aplicado na pesquisa. As contribuições da teoria dos sistemas sociais para o

desenvolvimento da investigação (e desta para a teoria) surgem ao logo de toda a

dissertação, seja de modo explícito, seja de modo implícito.

Para os fins desta breve introdução, entendemos que basta apontar para a

capacidade explicativa que a teoria dos sistemas sociais apresenta em relação às variações

evolutivas da sociedade. Segundo Luhmann, para uma compreensão adequada destas

variações, não se deve recorrer às ações individuais ou à atividade dos intelectuais, senão

ao próprio sistema da sociedade e às suas operações elementares, isto é, à comunicação. A

variação se produz através de uma comunicação que rejeita ou contradiz conteúdos de

comunicação. Trata-se de uma reprodução divergente e dialógica de elementos do sistema.

Assim, a variação depende da memória do sistema, que informa o conhecido, o esperado, o

normal17.

16 Atualmente, segundo Luhmann, “[…] la interpretación se entiende, en primer lugar, como producción de nuevos textos con base en los viejos; como ampliación de los fundamentos del texto, a lo que, posteriormente, el texto de salida servirá únicamente de referencia. En cualquier caso la interpretación es la producción de más texto.” No entanto, no nível de observação de primeira ordem, o entendimento das doutrinas antigas acerca da interpretação, que “[...] partían del hecho de que el texto permanecía idéntico al ser interpretado [...]”, também pode ser operacionalizado. Por outro lado, a interpretação jurídica que pergunta sobre a “[...] racionalidad de la intención que creó el texto (por sobre todo, el legislador) [...]” e a argumentação jurídica já estão em outro plano de observação, que é o de uma observação de segunda ordem. Ademais, consoante Luhmann, o intérprete não busca se “autoiluminar”, mas “[...] utilizar lo interpretado en un contexto de comunicación [...]”, preparar “[...] una argumentación [...]” (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 403-427). 17 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Universidad Iberoamericana, 2006, pp. 360-373. A memória, como esclarece De Giorgi, é uma função do sistema que se orienta para a construção do presente como realidade. Trata-se de uma memória histórica e sem começo. No caso do direito, a validade jurídica é a memória do sistema: “Como memória, a validade permite que o sistema recorde e esqueça ao mesmo tempo.” (DE GIORGI, Raffaele. A memória do direito. In: DE GIORGI, Raffaele. Direito, Tempo e Memória. Tradução de Guilherme Leite Gonçalves. São Paulo: Quartier Latin, 2006, pp. 60-66). A teoria dos sistemas sociais, portanto, apresenta uma noção peculiar de memória, que “[...] não é nada mais que a diferença entre recordar e esquecer, incluir e excluir [...]”. A memória se produz na evolução do sistema: “A memória não é um lugar que contém as experiências passadas

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No entanto, a evolução depende não apenas da memória e da variação, mas também

da seleção. Toda variação é acompanhada de uma seleção, ainda quando se seleciona o

estado atual, e não a inovação. A seleção estabiliza, isto é, leva o sistema de volta ao

estado de “equilíbrio”. A seleção positiva ou negativa eleva o grau de complexidade do

sistema, que deve reagir a ele com re-estabilizações. Os mecanismos de estabilização

servem, ao mesmo tempo, como motores de variações evolutivas. Trata-se de uma

estabilidade dinâmica, que resulta em uma elevada frequência de transformações das

estruturas sociais. Se, por um lado, a evolução começa a ocorrer mais rapidamente à

medida que avança, por outro lado, surgem formas capazes de suportar essa maior

velocidade de transformação. Quanto maior a complexidade alcançada pelo sistema, mais

prováveis se tornam as inovações, os desvios, mas também maiores as possibilidades de

suportar estes desvios18.

As características da sociedade moderna e as semânticas que representam tais

características estão em frequente mudança. Esta sociedade, que se orienta “entre variação

e redundância”, é marcada por uma “contínua auto-instabilização” e oscila “entre a

produção daquilo que é outro e a utilização daquilo que foi.” A memória da sociedade

moderna é ininterruptamente exposta às mudanças e permite “a adaptação da sociedade à

realidade que ela mesma constrói para si.”19

que o sistema praticou consigo, mas um modus operandi que se redetermina continuamente e que, sempre no presente, em cada presente, acompanha as operações do sistema. Um contínuo controle de consistência. A memória permite que o sistema saiba que ele é presente a si mesmo. Na rede de contínuos reenvios simultâneos às transformações de seu estado, a memória permite ao sistema sintetizar aquelas transformações que se revelam capazes de conexão, ou seja, capazes de fazer emergir um novo comportamento. [...] o sistema é, ao mesmo tempo, sua memória e o destinatário das operações de sua memória.” (DE GIORGI, Raffaele. Direito penal e teoria da ação entre hermenêutica e funcionalismo. In: DE GIORGI, Raffaele. Direito, Tempo e Memória. Tradução de Guilherme Leite Gonçalves. São Paulo: Quartier Latin, 2006, pp. 148-150). 18 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Universidad Iberoamericana, 2006, pp. 373-399. 19 DE GIORGI, Raffaele. O direito na sociedade do risco. In: DE GIORGI, Raffaele. Direito, Tempo e Memória. Tradução de Guilherme Leite Gonçalves. São Paulo: Quartier Latin, 2006, pp. 227-231. Luhmann define a “sociedade moderna” como uma “sociedade funcionalmente diferenciada”. O primado da diferenciação funcional se baseia no fechamento operacional e na autonomia autopoiética dos sistemas funcionais, que determinam “sua própria identidade” e que se diferenciam para cumprir suas respectivas funções específicas (relacionadas a determinados problemas da sociedade), com base em códigos binários próprios. Cada sistema funcional da sociedade moderna monopoliza uma função específica e um código binário próprio, que permitem distinguir as operações que pertencem ao respectivo sistema (LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Universidad Iberoamericana, 2006, pp. 589-615).

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19

A teoria dos sistemas sociais permite compreender o desenvolvimento do Estado

Liberal em direção ao Estado Intervencionista, bem como deste no sentido do Estado

Regulador, como um processo evolutivo20. A organização estatal é o instrumento

encontrado pelo sistema político para estabilizar “a sua própria instabilidade”, isto é, para

se imunizar “em relação à variabilidade dos temas”21. O Estado Constitucional, em última

análise, “aparece como o portador do acoplamento estrutural entre os sistemas político e

jurídico” e possibilita “uma notável aceleração da dinâmica própria de cada um desses

sistemas.”22

A interpretação jurídica, por sua vez, pode ser entendida como operação

comunicativa que promove a autopoiese e a evolução do direito, através da promoção de

redundância e variação23. A interpretação jurídica representa uma tensão produtiva entre

fechamento operacional (autorreferência) e abertura cognitiva (heterorreferência) do

direito, isto é, “um intercâmbio seletivo de informações do sistema jurídico com o seu

ambiente”24. As distinções “texto/interpretação”, “texto/contexto” e “sentido literal/sentido

implícito” se “entrecruzam fortemente” e “expõem o direito (fixado por escrito) à

evolução”. Na sociedade moderna, “a legislação começa a dominar a evolução do direito”,

20 NAFARRATE, Javier Torres. Luhmann: la política como sistema. Universidade Iberoamericana; Faculdad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, FCE, 2004, p. 393. 21 DE GIORGI, Raffaele. Estado e direito no fim do século. Tradução de Juliana Neuenschwander Magalhães e Menelick de Carvalho Netto. In: DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco – vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pp. 74-77. 22 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 538-552. Embora “[…] el acoplamiento estructural entre sistema político y sistema jurídico se ha desarrollado como ‘Estado’ […]”, este “[…] no está investido para llenar esta función de acoplamiento estructural bajo cualquier forma. Se necesita una solución altamente artificial que permita observar el derecho desde el punto de vista de la política, y ésta desde el punto de vista del derecho. Este arreglo artificial lo conocemos nosotros con el nombre de ‘Constitución’. […] La prestación que logra es que por una parte aumenta los grados de libertad tanto del sistema político como del sistema jurídico, de tal suerte que en ambos es posible la autopoiesis y la autoorganización y, por otra, que canaliza la irritación mutua de estos sistemas.” (NAFARRATE, Javier Torres. Luhmann: la política como sistema. Universidade Iberoamericana; Faculdad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, FCE, 2004, p. 368). 23 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 161. 24 VESTING, Thomas. Teoria do direito: uma introdução. Tradução de Gercélia B. de O. Mendes. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 252.

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ou seja, os processos evolutivos do direito se tornam possíveis especialmente em razão da

“diferença entre texto e interpretação”25.

Assim, a teoria dos sistemas sociais valoriza igualmente o texto e a interpretação, a

recordação e o esquecimento, a estabilização e a mudança, o não e o sim, o consenso e o

conflito, enfim, a rejeição e a aceitação das propostas de sentido. Estas alternativas formam

uma unidade paradoxal, que permite as mudanças sociais. O presente trabalho busca

justamente compreender as mudanças do Estado, do direito e da interpretação jurídica e

encontra na teoria dos sistemas sociais um importante ponto de apoio para a descrição do

passado, do presente e das possibilidades de futuro.

1.2 A seleção metodológica do Estado Regulador

A opção por denominar o Estado que desponta no ocaso do Século XX e na aurora

do Século XXI de “Estado Regulador” delineia os caminhos da pesquisa aqui

desenvolvida. Sem deixar de notar a existência de outros atributos típicos do Estado

contemporâneo, elege-se a “regulação econômica” como característica central da análise,

em razão de este atributo ter a capacidade de representar uma das principais

transformações ocorridas no Estado contemporâneo, marcado por privatizações, pluralismo

jurídico, novos modelos de governança e de cooperação entre velhos e novos atores

sociais, globalização, transnacionalização, especialização técnica, ênfase na ideia de

eficiência etc.

O presente trabalho opta por investigar as recentes transformações do Estado de

Direito contemporâneo e, por isso, produz não apenas observações internas do sistema

jurídico (auto-observações), mas também observações direcionadas ao sistema político

(hetero-observações)26. A política e o direito encontram na fórmula “Estado de Direito”

uma expressão para a “relação parasitária” que mantêm entre si, isto é, para a possibilidade

25 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 317-318. 26 Embora apresente a ambição teórica de propiciar contatos interdisciplinares e de manter diálogos com disciplinas como teoria política, teoria do estado e direito constitucional, o presente trabalho tem o objetivo preciso de produzir reflexões no nível mais abstrato de reflexão do interior do sistema jurídico, que é o da teoria do direito.

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21

que possuem de “crescer graças a uma diferença externa”. Por um lado, a política “se

beneficia com o fato de que em outra parte (no direito) se encontra codificada e

administrada a diferença entre o que é conforme ao direito/e o que é discrepante.” Por

outro lado, o direito “se beneficia com o fato de que a paz – a diferença de poderes

claramente estabelecida e o fato de que as decisões se podem impor pela força – está

assegurada em outra parte: no sistema político.”27

A escolha da expressão “Estado Regulador”, que confere destaque à noção de

“regulação econômica”, decorre da constatação de que, a partir dos anos 1980 e 1990, a

maior parte dos Estados contemporâneos passa a amalgamar características que

despontaram inicialmente nos países anglo-saxões, ligadas a uma acentuada mudança na

atuação política. O Estado deixa de apresentar um papel hegemônico na sociedade e,

especialmente, na economia, passando a optar pela ênfase em intervenções mediante a

produção de regulação econômica28.

O poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade ensinava que o ofício “de

rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa

natureza que não presta atenção em nós”. Como um cronista que se dedica a observar e

descrever a surpreendente gradação de cores das folhas de uma amendoeira no outono

(verdes, amareladas, vermelhas, marrons)29, o jurista que escreve sobre as coisas do seu

tempo deve dedicar alguma atenção à sociedade – enquanto grande sistema social, que 27 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 492. 28 O desenvolvimento de um Estado Regulador, segundo La Spina e Majone, está associado ao “[...] abbandono di un modello di Stato quale gestore diretto, dispensatore di beni, ingegnere sociale [...]”, em favor da ideia de um “[...] nuovo stile di intervento pubblico [...]”. Consoante estes autores, “[l]’affermarsi di uno Stato Regulatore, e dunque l’incremento dell’attività regolativa pubblica, potrebero sembrare a prima vista correlati all’espansione delle politiche e degli apparati amministrativi dello Stato sociale, interventista, keynesiano.” Em verdade, a intervenção pública na economia através da “regolazione del mercato” não é uma novidade do Estado Regulador, mas este modelo estatal tende a priorizar o referido modo de intervenção pública, ao invés de enfatizar os outros dois tipos principais de intervenção do Estado Moderno na economia, que são a “redistribuzione del reddito” e a “stabilizzazione macroeconomica”. Assim como a regulação econômica também esteve presente no Estado Intervencionista, estas duas outras formas de política também se manifestam no Estado Regulador, mas apresentam uma importância relativa menor: “Uno Stato regolatore, intuitivamente, è uno Stato che svolge per lo piú un'attività regolativa, che si referirà di norma ad ambiti di attività svolte dai privati, di cui attraverso la regolazione vengono poste condizioni di funzionamento efficiente. Lo Stato regolatore serà altresì responsabile della valutazione dell'efficacia delle proprie misure, nonché della prevenzione di eventuali effetti indesiderabili su altre sfere sociali delle misure medesime.” (LA SPINA, Antonio; MAJONE, Giandomenico. Lo Sato regolatore. Bologna: Il Mulino, 2000, pp. 7-38). 29 ANDRADE, Carlos Drummond de. Fala, Amendoeira. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1979, p. 1073.

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22

abarca em seu interior subsistemas como o direito, a política, a economia, a ciência, a

religião e a arte.

A resposta que a sociedade dará ao jurista pode não ser muito diversa daquela que o

cronista ouviu da amendoeira em seu início de outono: “Anda tudo muito desorganizado, e,

como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação da primavera e

mesmo, se reparares bem [...], uma suspeita de inverno.”30

O Estado Regulador é como um ramo desta amendoeira em seu início de outono:

carrega ainda as marcas de um “Estado Intervencionista” (“Social” ou “de Bem-Estar”), a

antecipação de um “Estado Pós-Intervencionista” e a suspeita de, no fundo, representar

uma espécie de retorno ao “Estado Liberal”, sob a alcunha de “Neoliberal”.

Embora apresente atributos que permitem a sua distinção em face dos modelos de

Estado Liberal e de Estado Intervencionista, o Estado Regulador não rompe totalmente

com determinadas características típicas dos referidos modelos estatais. O Estado

Regulador se apresenta como uma espécie de “síntese superadora”, e não como uma pura e

simples superação das características do Estado Liberal e do Estado Intervencionista.

Todas as observações e descrições, segundo Luhmann, devem encontrar

sustentação em uma distinção. Afinal, para que algo seja designado, ressaltado ou

tematizado precisará antes ser distinguido. Os conceitos, neste sentido, são resultados de

distinções realizadas mediante noções contrárias em contraste31. Deste modo, o presente

trabalho, sob o pretexto de apresentar as principais características do Estado Regulador,

discorrerá também sobre os modelos de Estado que lhe precedem (Estado Liberal e Estado

Intervencionista), propondo, assim, uma distinção a partir da ênfase conferida ou não às

políticas voltadas para a intervenção no domínio econômico por meio da regulação

econômica, conforme se verá no Capítulo 2.

30 ANDRADE, Carlos Drummond de. Fala, Amendoeira. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1979, pp. 1073-1074. 31 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 79-80.

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23

Assim, a descrição aqui empreendida carrega o ônus de tentar “organizar” e

“simplificar” o que se apresenta na sociedade como “desorganizado” e “complexo”, isto é,

de buscar reduzir a complexidade do recorte da realidade social investigado, com o

objetivo de compreendê-lo do melhor modo possível. Uma compreensão adequada do

Estado contemporâneo poderá trazer importantes contribuições para a teoria e para a

prática do direito, inclusive no que tange a uma importante comunicação do sistema do

direito: a interpretação jurídica.

1.3 A seleção metodológica da interpretação jurídica

Em paralelo às transformações ocorridas no modelo estatal, o paradigma do direito

codificado entra em esgotamento. A preocupação hermenêutica, que pressupõe o ideal do

“legislador racional”, cede espaço, gradativamente, para a preocupação da justificação da

decisão jurídica, da aplicação do direito e, em última análise, da argumentação jurídica. Do

primado da lei, passa-se à centralidade da jurisdição e da administração; da ênfase no

“legislador racional”, caminha-se para a busca do “administrador/julgador eficiente”.

Embora na literatura jurídica o tema da “teoria da interpretação” praticamente tenha

sido substituído pelo da “teoria da argumentação jurídica”32, o presente trabalho, de certo

modo, navega na contramão do seu tempo neste ponto. Não negamos aqui a importância da

argumentação jurídica, mas, para atender aos fins a que nos propomos, desviamos o foco

do trabalho para o problema da interpretação jurídica.

Apesar de os tribunais interpretarem de modo argumentativo, esta característica não

acompanha todas as interpretações jurídicas produzidas na sociedade. Legisladores,

agentes de regulação e contratantes, por exemplo, interpretam o direito vigente num

sentido diferente, apenas com a finalidade de “circunscrever os limites do espaço criativo”,

respectivamente, da lei, da regulação e do contrato, e não como fazem os tribunais, com o

objetivo de “demonstrar a racionalidade de sua própria decisão”33.

32 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Prefácio de um Posfácio. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O Direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, p. XI. 33 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 389.

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24

Embora a dogmática jurídica, como “herança do pensamento jurídico” do século

XIX, esteja preponderantemente ligada à aplicação do direito e, portanto, acentue a visão

do juiz na compreensão dos problemas34, a nosso ver, atores sociais como advogados,

contratantes, administradores e legisladores também desempenham importantes funções no

sistema jurídico e, na atualidade, merecem uma maior atenção da dogmática jurídica e da

teoria do direito. Daí a importância de ampliarmos a análise para a operação comunicativa

da interpretação do direito, não nos restringindo apenas ao estudo da argumentação

jurídica.

Ao lado da argumentação jurídica, a interpretação do direito também é uma das

importantes operações do sistema jurídico. Por isso, é necessário desenvolver uma visão

atualizada a respeito dela, o que pressupõe uma abordagem adequada da própria

transformação da racionalidade jurídica vivida nas últimas décadas. Neste contexto, é útil

apresentar as principais mudanças ocorridas nas observações e descrições do sistema

jurídico que têm levado à discussão de um novo modelo de direito (“pragmático”,

“flexível”, “brando”, “responsivo”, “dúctil”, “heterárquico”), o que será levado a cabo no

Capítulo 3.

A interpretação jurídica no paradigma da codificação se valeu do recurso

metodológico à ficção do legislador racional35. No entanto, esse recurso já se mostra

claramente insuficiente, sobretudo diante do atual quadro jurídico-político, em que se

verifica a passagem da centralidade da legislação à centralidade da jurisdição (em sentido

amplo) dos tribunais judiciais, das câmaras arbitrais, das agências administrativas e dos

órgãos da administração direta36.

Embora ainda integrem grande parte dos manuais de introdução ao estudo do

direito, há uma descrença crescente em relação à capacidade de a adoção dos velhos

34 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 79-80. 35 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2010, p. 247. 36 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Prefácio de um Posfácio. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O Direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, pp. XIV-XVI.

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25

métodos ou cânones de interpretação (gramatical, lógica, sistemática, histórica,

sociológica, teleológica etc.) oferecer um caminho seguro para a produção de decisões

consistentes e socialmente adequadas37. Assume-se, ao invés disso, uma perspectiva

“fático-intensiva” do direito, que recorre, por exemplo, a técnicas e análises econômicas,

para solucionar questões jurídicas relacionadas a fatos econômicos. A racionalidade

jurídica se abre, em grande medida, para o ambiente econômico do direito, mas por meio

de um complexo processo de tradução ou reconstrução, mediante critérios operativos

próprios do sistema jurídico38.

Se, de um lado, o direito ainda requer da hermenêutica uma função racionalizadora,

de outro lado, a complexidade desta tarefa se elevou consideravelmente nas últimas

décadas: à figura do legislador racional somou-se o ideal do administrador/julgador

eficiente. Exigências nem sempre convergentes passam a guiar a atividade dos intérpretes

do direito: segurança e eficiência, consistência jurídica e adequação social, autorreferência

e heterorreferência, dogmaticidade e responsividade.

Diante do contexto contemporâneo de transformações dos modelos de Estado e de

direito, o ideal do legislador racional precisa ser revisitado e, por fim, emparelhado com o

ideal do administrador/julgador eficiente. Feito isso, as hipóteses do legislador racional e

do administrador/julgador eficiente devem ser analisadas de forma crítica, para que seja

possível compreender o potencial e o limite de cada um desses instrumentos retóricos que

conferem racionalidade à fundamentação metodológica da interpretação jurídica.

O desenvolvimento de um modelo de Estado Regulador e de um novo modelo de

direito é acompanhado de profundas mudanças na interpretação jurídica. A metamorfose

desta operação social e a constatação da necessidade de reobservá-la e redescrevê-la,

inclusive no plano de observação/descrição de uma dogmática jurídica responsiva, serão

abordadas no Capítulo 4.

37 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, pp. 123-124. 38 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Concorrência: entre o Direito e a Economia. In: MOTTA, Massimo; SALGADO, Lúcia Helena. Política de concorrência: teoria e prática e sua aplicação no Brasil. Tradução de Lúcia Helena Salgado. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015, p. II.

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Quais as implicações das recentes remodelagens do Estado e do direito para a

interpretação jurídica? O recurso ao ideal do legislador racional, neste contexto de recentes

transformações, ainda oferece uma base racional para a fundamentação metodológica da

atividade de interpretação jurídica ou se deve recorrer também a uma nova figura, como a

do administrador/julgador eficiente? Em última análise, estas são as perguntas que guiarão

cada uma das páginas do presente trabalho, servindo de fio condutor da pesquisa pelos

labirintos do Estado, do direito e da teoria dos sistemas sociais.

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2. MODELO DO ESTADO REGULADOR

O Estado contemporâneo pode ser denominado de muitos modos. Uma das

maneiras possíveis de apresentá-lo, sem dúvida, é por meio da expressão “Estado

Regulador”. Trata-se, no âmbito do presente trabalho, de uma opção metodológica, que,

deixando outros aspectos do Estado contemporâneo em segundo plano, permitirá uma

análise mais detida de uma característica importante para a compreensão desta nova

realidade estatal: a ênfase na intervenção estatal no domínio econômico através da

regulação econômica.

Uma análise adequada dos atributos do Estado Regulador exige algumas reflexões

acerca da arquitetura estatal que entra em desgaste nas últimas décadas do século XX e que

pode ser denominada de Estado Intervencionista, Social ou de Bem-Estar. Em seu livro

“Teoria Política no Estado de Bem-Estar”, Luhmann tece críticas à configuração do Estado

Intervencionista. A descrição oferecida por Luhmann do subsistema político, nesta e em

outras obras, ajuda a compreender o colapso do modelo estatal intervencionista e a

reestruturação das suas atribuições. O Estado Regulador se organiza a partir de

reformulações do Estado de Bem-Estar, cujas deficiências já eram apontadas por Luhmann

no início da década de 1980.

Após analisar a descrição oferecida pela teoria dos sistemas sociais dos limites do

sistema político e das deficiências do Estado Intervencionista, o presente Capítulo abordará

as configurações do novo modelo estatal que se desenvolve a partir dos escombros do

Estado Intervencionista. Por fim, o contexto da globalização em que essa nova forma de

Estado se desenvolve será objeto de reflexões, com a finalidade de situar as transformações

ocorridas na política em um complexo movimento de escala mundial.

Assim, muitas das características do Estado Regulador estão diretamente ligadas a

uma recente redefinição das atribuições estatais. O Estado, progressivamente, reduz a sua

atuação direta em domínios como o da economia e passa a assumir como sendo a sua

prioridade uma função mais precisa e limitada de supervisionar e regular estes âmbitos

sociais. Tal mudança está diretamente ligada ao desenvolvimento de um quadro complexo

de governança global, marcada pela presença de atores sociais que dividem os espaços de

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poder com o Estado. Mas antes de abordar as características e o contexto do novo modelo

de Estado, faz-se necessário analisar, a partir de uma proposta luhmanniana de descrição

dos limites da política, o esgotamento do modelo que lhe precedeu: o Estado

Intervencionista.

2.1 Limites da política e esgotamento do Estado Intervencionista

O Estado Regulador pode ser apresentado sumariamente como uma espécie de

“síntese superadora” dos Estados predecessores. Ele se apropria das aquisições evolutivas

do sistema político, mantendo elementos desenvolvidos pelo Estado Liberal e pelo Estado

Intervencionista, mas também apresenta as suas peculiaridades, que permitem uma

distinção em face dos modelos estatais anteriores. Estes atributos distintivos se

desenvolvem, em grande medida, como contrapontos ligados à difusão das críticas ao

intervencionismo estatal.

O Estado Liberal surgiu como contraponto ao Estado absolutista, que centrava no

corpo sagrado do monarca a política, a religião, o direito etc. Por isso, no Estado Liberal,

os direitos burgueses de liberdade passaram a limitar o poder governamental39. Não apenas

a atuação dos cidadãos mas também dos governantes passou a ser limitada pelas regras

jurídicas. A limitação do poder se tornou a marca do Estado Moderno, que, por isso,

passou a ser chamado de “Estado de Direito”40. A imposição do princípio da separação dos

poderes surge neste contexto justamente como resposta à ideia de que o Estado absolutista

teria sido governado mediante o uso arbitrário do poder monárquico41.

39 LUHMANN, Niklas. La religión de la sociedad. Tradução de Luciano Elizaincín. Madrid: Trotta, 2007, pp. 189-190. 40 CHEVALLIER, Jacques. O Estado de Direito. Tradução de Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo e Augusto Neves Dal Pozzo. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 52. O fenômeno histórico do “Estado de Direito”, consoante Ferraz Junior, “[...] está ligado ao aparecimento, no Ocidente, de sistemas funcionais, não voltados à segmentação conforme a lógica da inclusão/exclusão. Até o advento da Revolução Francesa era ainda possível perceber que os indivíduos se distribuíam socialmente conforme categorias estamentais do tipo nobre/burguês, cristão/pagão, varão/mulher etc., o que marcava sua inclusão (pode negociar, pode casar, pode apropriar) ou sua exclusão social (nacional, estrangeiro, plenamente capaz, incapaz etc.).” (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 312-313). 41 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 139. O desenvolvimento do chamado “Estado de Direito”, segundo Nonet e Selznick, está historicamente vinculado ao surgimento de um “regime de direito autônomo”: “Com o aparecimento do direito autônomo, a ordem legal se converte em recurso para domar a

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Esse modelo liberal de Estado, que se situou historicamente no século XIX, era

caracterizado pelas regras da não intervenção e da liberdade das atividades sociais. A

atuação estatal era excepcional e residual, especialmente no campo econômico, deixando

espaço para o livre curso da iniciativa privada42.

O modelo intervencionista de Estado, por sua vez, está situado historicamente no

século XX e assume outra postura em relação à intervenção nas atividades sociais. Este

modelo de Estado representa uma transformação profunda do Estado Liberal, sob a

influência ideológica do socialismo. Embora conservando a sua adesão ao capitalismo, o

Estado Intervencionista toma para si a tarefa de mitigar os conflitos sociais e pacificar a

relação entre capital e trabalho43.

O Estado Intervencionista traz claras mudanças relacionadas à intervenção nos

âmbitos econômico e social. O constitucionalismo social do século XX, capitaneado pela

Constituição Mexicana (1917) e pela Constituição de Weimar (1919), é marcado pelo

caráter diretivo dos textos constitucionais. As constituições deste período positivam

tarefas, políticas e objetivos, exigindo atuações estatais no domínio econômico e social44.

No entanto, o desgaste vivido pelo Estado Intervencionista nas últimas décadas do

século XX levou não apenas políticos mas também cientistas sociais, como Niklas

Luhmann, a refletirem sobre a possibilidade de uma atuação mais modesta do Estado e da

adoção de um conceito mais restrito de política. A teoria dos sistemas sociais desenvolvida

por este sociólogo oferece uma rica descrição da sobrecarga de tarefas do Estado

repressão. Do ponto de vista histórico, pode-se creditar a esse fato a instalação do ‘estado de direito’ ou ‘império da lei’, expressões cujo significado vão além da mera existência do direito, pois dizem respeito a uma aspiração política e jurídica – a criação de ‘um governo das leis e não dos homens’. Nesse sentido, o estado de direito nasce quando as instituições judiciárias adquirem autoridade e independência suficientes para impor limites ao exercício do poder governamental.” (NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 99). 42 CHEVALLIER, Jacques. O Estado de Direito. Tradução de Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo e Augusto Neves Dal Pozzo. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 51. 43 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 9. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, pp. 183-185. 44 BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, pp. 33-37.

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Intervencionista, que levou à redefinição do papel estatal e, consequentemente, ao

surgimento do modelo de Estado Regulador.

Partindo do pressuposto de que os subsistemas do sistema global da sociedade,

como o direito, a economia e a política, são autônomos e diferenciados funcionalmente,

bem como de que a sociedade é um sistema sem centro ou vértice, Luhmann defende que

não se deve atribuir à política uma responsabilidade global pela sociedade – tampouco ao

direito, à economia ou a qualquer dos demais subsistemas sociais45.

O direito e o dinheiro, segundo Luhmann, apresentariam claros sintomas de

utilização excessiva no Estado Intervencionista. Esta sobrecarga conduziria a problemas

como: excesso de leis, hiperjuridicação, problemas financeiros e expansão dos orçamentos

públicos46. O Estado Intervencionista seria muito caro e promoveria tendências

inflacionárias. Diante dos elevados gastos que requer, este Estado imporia questões

relativas ao motivo de se gastar tanto dinheiro com algumas tarefas, mas não com outras

igualmente (ou até mais) legítimas. O Estado Intervencionista tende também a propiciar

uma grande quantidade de regulamentação, o que traria problemas de conhecimento e de

aplicação das normas jurídicas, bem como questionamentos relativos aos limites do que

seria possível realizar por meios jurídicos47.

O Estado capitalista, conforme Campilongo, sempre interveio na vida social, mas, a

partir do século XX, essa intervenção atingiu patamares inimagináveis: o Estado passou a

atuar diretamente em campos antes reservados à esfera privada, como a educação, o

planejamento familiar e a iniciativa econômica. Perdeu-se, em grande medida, o sentido

das clássicas dicotomias público e privado, Estado e indivíduo. O Estado passou a marcar

45 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Universidad, 2007, pp. 43-44. 46 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Universidad, 2007, pp. 153-154. 47 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Universidad, 2007, pp. 106-107. A tendência à “juridicização”, consoante Luhmann, estaria ligada à “exportação do poder político para contextos interacionais alheios à política”. Esse fenômeno, a seu ver, demonstraria “nítidos sintomas de saturação” (LUHMANN, Niklas. Poder. Tradução de Martine Creusot de Rezende Martins. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 78).

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presença na ordem econômica e tornou-se o “supremo regulador do processo de

reprodução e acumulação capitalista”48.

O desenvolvimento do Estado Intervencionista, segundo a perspectiva

luhmanniana, tenderia a uma inclusão crescente de temas e interesses como próprios da

política49. Este Estado levaria a uma juridificação de muitos âmbitos da vida, sem atenção

aos limites do que seria possível realizar por meios jurídicos50. No entanto, as

possibilidades de intervenção da política seriam limitadas, não apenas por motivo de

incapacidade, mas, também, em razão dos legítimos motivos do Estado Constitucional e da

liberdade burguesa51.

A teoria política tem reiteradamente concebido o Estado ou a política como o

centro de controle de tudo que se relaciona com o âmbito político. Recorre-se

frequentemente, para tanto, ao conceito grego, platônico ou aristotélico, de política. Mas,

conforme Luhmann, não seria possível conferir ao sistema político posição de centralidade

em uma sociedade funcionalmente diferenciada sem destruí-la52.

Uma concepção restritiva da política, como a defendida por Luhmann, apenas vê

neste subsistema social uma função dentre muitas outras e consegue tornar possível que se

determine com maior precisão em que aspectos a economia, a educação, a ciência, a vida

familiar etc. dependem dele. Os problemas que não podem ser resolvidos pelos

instrumentos políticos devem ser solucionados pelos meios de outros subsistemas sociais53.

48 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Representação política e ordem jurídica: os dilemas da democracia liberal. 1987. 147 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 1987, pp. 18-21. 49 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Universidad, 2007, p. 65. 50 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Universidad, 2007, pp. 106-107. 51 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Universidad, 2007, p. 148. 52 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Universidad, 2007, p. 44. 53 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Universidad, 2007, pp. 156-157.

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A técnica moderna de comunicação política baseada na “difusão de boas intenções”

é descrita com ironia por Luhmann, que afirma que seria bom recordar aos políticos que

apenas os deuses são capazes de transformar a realidade através de palavras54. O discurso

político tende a supervalorizar o potencial da política de fornecimento de prestações aos

demais subsistemas sociais. Por isso é necessário observar com cautela as observações e

descrições produzidas pelo sistema político acerca de si próprio. A teoria dos sistemas

oferece uma observação de segunda ordem que permite que os paradoxos da comunicação

política sejam trazidos à tona, através de uma descrição verossímil deste sistema.

A concepção restrita de política extraída da teoria dos sistemas de Luhmann pode

ser adequadamente compreendida através da análise da função específica deste subsistema

e das prestações que tem capacidade de fornecer aos demais subsistemas sociais.

A teoria dos sistemas, segundo Luhmann, não traz a pretensão de encontrar a

“essência” da política, que autores têm apontado como sendo a “justiça”, a “paz”, o “bem

comum” etc., mas, sim, de lançar luzes sobre a função específica da política. Pressupõe-se,

assim, uma teoria da diferenciação estrutural da sociedade em subsistemas (sistemas

parciais), que se orientam por funções específicas. Foi na sociologia política desenvolvida

por Talcott Parsons que Luhmann encontrou uma teoria do sistema político com a

pretensão de clarificar a função da política55.

A partir da teoria dos sistemas sociais de Luhmann, a função específica da política

– isto é, a relação que este subsistema mantém com o sistema global da sociedade – pode

ser descrita como o emprego da capacidade de impor decisões coletivamente vinculantes.

Esta função pressupõe que se disponha do poder político e, em última instância, da força

física. Mas a habitual discussão sobre o Estado de Bem-Estar, segundo Luhmann, teria

perdido de vista este pressuposto indispensável que é capacidade de imposição efetiva56. A

função específica do sistema político não está relacionada com toda a complexidade social,

54 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Universidad Iberoamericana, 2006, p. 301. 55 LUHMANN, Niklas. Sociología política. Tradução de Iván Ortega Rodríguez. Madrid: Editorial Trotta, 2014, pp. 36-38. 56 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Universidad, 2007, pp. 93-94.

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mas apenas com aqueles problemas sociais “abertos”, que podem ser solucionados com

decisões vinculantes57.

Já as prestações políticas – ou seja, as relações do subsistema político com os

outros subsistemas sociais – manifestam-se quando os subsistemas sociais requerem

decisões coletivamente vinculantes. As prestações apenas são possíveis se os meios do

sistema emissor, como o efeito vinculante no caso do sistema político, podem ser

adaptados à estrutura do sistema receptor. Quando se ignora estes limites operativos são

criadas burocracias nos limites entre os sistemas. A burocratização é a consequência direta

das crescentes prestações políticas em âmbitos em que não seria possível a obtenção de

resultados recorrendo-se exclusivamente (ou de modo primário) à produção de decisões

vinculantes58.

A expansão do Estado Intervencionista no âmbito das prestações políticas, segundo

Luhmann, refletiria, em grande medida, não apenas uma superestimação daquilo que pode

ser alcançado com os meios da política, mas também uma falta de aproveitamento deste

potencial59. Verifica-se no Estado Intervencionista, consoante Faria, uma progressiva

inefetividade política, administrativa, normativa, operacional e organizacional. Há, neste

Estado, uma desenfreada produção legislativa, um aumento desordenado e desarticulado do

número de matérias, atividades e comportamentos regulados por textos legais60.

O problema do Estado Intervencionista não reside na proteção estatal de direitos, na

consecução de fins de bem-estar e no apoio do interesse dos cidadãos, mas na falta de

compreensão dos limites da atuação do subsistema social da política, que não deveria ser

sobreposto aos subsistemas sociais do direito, da economia, da educação etc. Consoante

Luhmann, alguns países em desenvolvimento se moveriam sobre o caminho da politização

da “totalidade da vida pública”. Com isto, haveria o enorme perigo de que a politização

57 LUHMANN, Niklas. Sociología política. Tradução de Iván Ortega Rodríguez. Madrid: Editorial Trotta, 2014, p. 38. 58 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Universidad, 2007, pp. 94-96. 59 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Universidad, 2007, p. 98. 60 FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 117.

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redundasse na cristalização de “instituições não-diferenciadas” e mesmo em “obstáculo

para o avanço”61.

O desenvolvimento do Estado Constitucional até o Estado de Bem-Estar, com as

dificuldades encontradas para a sua realização, pode ser interpretado como um problema

de evolução, que se realizou mediante o desequilíbrio do sistema político com relação ao

seu entorno. Em casos limites, o sistema da política chegou a ser entendido como

responsável pelo equilíbrio de tudo que resulta dos “golpes do destino”, sobretudo as

sequelas produzidas em outros sistemas e que se externalizam. A autoestimulação do

Estado de Bem-Estar produzia efeitos patentes nos sistemas da economia e do direito,

como a dificuldade de controle do dinheiro e de formulação jurídica dos programas que

perseguem fins. Com essa sobrecarga, crescia o ceticismo em relação às elites políticas e a

compreensão do esgotamento das possibilidades de Estado de Bem-Estar. No entanto, a

constatação da necessidade de recortes no Estado de Bem-Estar não deve necessariamente

levar a uma avalanche de exclusões. O caráter “social” do Estado que busca medidas

políticas que evitem ou diminuam as exclusões não precisa ser perdido62.

No Brasil, o modelo intervencionista, que se desenvolveu a partir da década de

1930, assumiu um caráter marcadamente centralizado e autoritário: “O modelo de

organização da economia centralizada no Estado refletiu, na época, um pensamento

autoritário que, ao fazer a crítica ao pensamento liberal, não rompeu com as relações de

poder e dominação até então vigentes.” Esse modelo estatal está ligado a regimes

autoritários (1930-1945 e 1964-1985), que centralizaram o poder na figura do Presidente

da República e da burocracia ministerial63.

A implementação de direitos sociais no Brasil, que, de modo geral, ocorreu em

períodos autoritários, não foi acompanhada da proteção de direitos civis e políticos: “Ao

conceder direitos sociais, o Estado garantia o apoio dos trabalhadores. Evitava que a

61 LUHMANN, Niklas. Los derechos fundamentales como institución (aportación a la sociología política). Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Universidad Iberoamericana, 2010, pp. 197-198. 62 NAFARRATE, Javier Torres. Luhmann: la política como sistema. Universidade Iberoamericana; Faculdad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, FCE, 2004, pp. 389- 397. 63 MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O novo Estado Regulador no Brasil: eficiência e legitimidade. São Paulo: Singular, 2006, pp. 109-138.

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percepção do paradoxo da escassez, evidenciado com a industrialização, colocasse em

risco a continuidade das ditaduras”64.

O último período burocrático-autoritário da história brasileira (1964-1985),

consoante Faria, foi marcado pela convergência de três crises: “[...] no plano

socioeconômico, uma crise de hegemonia dos setores dominantes; no plano político, uma

crise de legitimação do regime representativo; e, no plano jurídico-institucional, uma crise

da própria matriz organizacional do Estado [...]”. A origem comum destas crises estaria

ligada ao modelo de desenvolvimento econômico adotado pelo regime militar brasileiro,

que, embora tenha conduzido a elevadas taxas de crescimento entre 1968 e 1973, começou

a apresentar as suas brechas e a sua tendência à ineficácia após este período inicial65.

O modelo intervencionista gerou o crescimento da dívida pública brasileira. O

Estado Desenvolvimentista, que se iniciou durante o período do governo de Getúlio Vargas

e que resistiu até a década de 1980, entrou em uma espécie de esgotamento. Os prejuízos

orçamentários levaram à redução da capacidade estatal de executar satisfatoriamente as

tarefas assumidas pelo Estado Intervencionista66.

64 CORREIA, José Gladston Viana. Sociologia dos direitos sociais: escassez, justiça e legitimidade. São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 38-39. 65 FARIA, José Eduardo. Direito e economia na democratização brasileira. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 42-53. A economia mundial até 1973 viveu as chamadas “Décadas de Ouro”, marcadas pelo crescimento econômico em uma “taxa explosiva”. Mas as décadas seguintes entraram para a história como as “Décadas de Crise”. Na “Era de Ouro”, vigorava uma construção política caracterizada pela “[...] incomum combinação ‘keynesiana’ de crescimento econômico numa economia capitalista baseada no consumo de massa de uma força de trabalho plenamente empregada e cada vez mais bem paga e protegida.” Os elevados gastos públicos com a seguridade social (manutenção de renda, assistência e educação), que marcaram a política da maior parte dos “países ocidentais”, conduziram a graves problemas nas “Décadas de Crise” (HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 253-281). A noção de desenvolvimento (que não se confunde com a ideia de crescimento), consoante Ferraz Junior, deve ser entendida como a “[...] inserção de uma sociedade num projeto de crescimento econômico e transformação estrutural [...]”, que “[...] é mais bem servido pelo Estado de Direito que por qualquer forma de autoritarismo.” O surgimento do “Estado de Direito” está ligado à “[...] passagem de uma sociedade segmentada, estamental, para uma sociedade funcional, politicamente organizada pela submissão do poder ao direito [...]”, razão pela qual seria incompatível com o autoritarismo típico do regime militar vivido no Brasil: “Os autoritarismos perpetuam sociedades segmentárias, estamentais, pois politizam todos os conflitos, do que se livram os regimes pelo uso da violência contra os inconformados. O desenvolvimento como passagem de uma sociedade estamental para uma sociedade funcional exige despolitização dos conflitos, isto é, exige que a dimensão política dos conflitos econômicos, sociais, religiosos etc. seja tratada numa sede própria, a da representação política, de consensos precários e discussões permanentes.” (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 309-314). 66 PINTO, Joelma Sílvia Santos. A Regulação do Estado no Campo Econômico: Breve Introdução ao Direito da Concorrência. In: MOREIRA, Egon Bockmann; MATTOS, Paulo Todescan Lessa (Coord.). Direito

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Ao longo da década de 1990, o Estado brasileiro viveu uma redefinição do seu

papel, especialmente no que diz respeito à regulação econômica. Neste período, foram

criadas as agências reguladoras independentes, teve início o processo de privatização de

empresas estatais e foram intensificadas as concessões de serviços públicos aos agentes

privados. Esta reforma estatal foi marcada por um quadro normativo que se espelhou nas

experiências europeias e norte-americanas, especialmente os processos de privatização na

Europa e as políticas de desregulação e re-regulação da economia nos Estados Unidos, que,

a partir da década de 1980, surgiram como “respostas dos países desenvolvidos à crise do

Estado, a partir do final da década de 1970 e ao longo da década de 1980, e à globalização

econômica, principalmente ao longo da década de 1990.”67

O debate que gira em torno do recuo do Estado Intervencionista é comumente

marcado por posições polarizadas e pela forte carga ideológica dos argumentos68. Não faz

parte dos objetivos do presente trabalho a realização de uma observação de primeira ordem

Concorrencial e Regulação Econômica. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010, p. 262. O Estado brasileiro, consoante Barroso, “[...] chegou ao fim do século XX grande, pesado, ineficiente, com bolsões endêmicos de pobreza e de corrupção. Esse foi o Estado que resultou de 25 anos de regime militar. Um Estado da direita, do atraso social, da concentração de renda. Um Estado que tomava dinheiro emprestado lá fora para emprestar aqui dentro, a juros baixos, para a burguesia industrial e financeira brasileira.” (BARROSO, Luís Roberto. Apontamentos sobre as agências reguladoras. In: FIGUEIREDO, Marcelo. Direito e regulação no Brasil e nos EUA. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 89). 67 Ver, para uma análise da reforma do Estado brasileiro ao longo da década de 1990, MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O novo Estado Regulador no Brasil: eficiência e legitimidade. São Paulo: Singular, 2006, pp. 138-150. 68 O Estado Intervencionista está ligado, em grande medida, aos chamados “direitos sociais”, que, consoante Campilongo, prestar-se-iam “à demagogia política e à fantasmagoria jurídica”: “À direita são criticados por elevar custos e reduzir eficiências ou, então, reconhecidos por desarmar e institucionalizar a conflituosidade social. À esquerda são valorizados pelos aspectos redistributivistas e igualitaristas atrelados à sua visão de justiça, ou questionados por sua baixa efetividade nos países em desenvolvimento.” A semântica dos direitos sociais se forma, portanto, a partir dessas tensões (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Prefácio. In: CORREIA, José Gladston Viana. Sociologia dos direitos sociais: escassez, justiça e legitimidade. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 11). Os debates em torno do desgaste do Estado Intervencionista e da configuração de um Estado Regulador não escapam a esta esquematização ideológica (e, muitas vezes, demagógica), justamente por serem guiados, na maioria das vezes, pela racionalidade da própria política, cujo código binário pode ser identificado com a distinção “governo/oposição” e a função específica pode ser representada pela ideia de “produção de decisões coletivamente vinculantes”. O centro do sistema político, que é ocupado pela organização estatal, pressupõe processos periféricos. A periferia da política é o espaço de maior liberdade deste sistema, já que nela, ao contrário do que acontece no centro (Estado), as comunicações (opiniões, pressões, jogadas políticas etc.) não precisam se precipitar em decisões coletivamente vinculantes (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 397-398). A semântica política é construída a partir dessas polarizações e tensões. Uma observação de segunda ordem não precisa se vincular à distinção “governo/oposição” e, por isso, pode refletir de outro modo sobre o Estado, inclusive apontando os paradoxos da comunicação política.

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no interior do sistema político, isto é, a produção de comunicação política, mas, sim, a

produção de uma observação de segunda ordem, externa àquele sistema.

Independentemente do erro ou acerto do diagnóstico das falhas do Estado Intervencionista,

não se pode negar, a partir de uma observação externa, que as décadas de 1970, 1980 e

1990 foram marcadas pelo forte debate em torno do desgaste deste modelo de Estado,

abrindo espaço para o desenvolvimento de uma nova configuração estatal, em que a

preocupação com os limites da atuação política está fortemente presente: o Estado

Regulador.

2.2 Configuração do Estado Regulador

São muitos os atributos ou caracteres que podem ser apontados numa tentativa de

se estabelecer uma distinção entre o Estado contemporâneo e os seus predecessores –

Estado Liberal e Estado Intervencionista. No entanto, pode-se defender que uma das

principais diferenças entre o Estado contemporâneo e estes modelos de Estado se encontra

na priorização de um conjunto de características que o presente trabalho busca organizar ao

redor da noção de “regulação”.

A palavra “regulador”, cujas origens remontam ao século XVIII, foi cunhada

inicialmente pelas ciências da engenharia. A expressão foi forjada para explicar o

comportamento desejável de sistemas mecânicos (moinhos, relógios etc.). No século XIX,

o termo “regulação” desponta no campo da fisiologia e da biologia, generalizando-se como

modelo explicativo do sistema vivo. Apenas no século XX, com a propagação das teorias

cibernéticas, o conceito de “regulação” irá ser adotado no âmbito das ciências humanas e

sociais. Este conceito, contemporaneamente, serve de representação e apoio à reflexão para

os estudos dos sistemas complexos, em especial dos sistemas sociais69.

A aplicação do conceito de “regulação” ao estudo do funcionamento das sociedades

tem rendido frutos às ciências sociais. A noção de “regulação social” tem sido adotada em

análises de processos sociais extraídos da história e da etiologia, como modelo explicativo

69 LE MOIGNE, Jean-Louis. Regulação. In: ARNAUD, André-Jean et al. (dir.). Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. Tradução de Patrice Charles e F. X. Willlaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 682-683.

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para o equilíbrio e reequilíbrio social, mas também em estudos voltados à compreensão da

sociedade industrial-moderna. Neste campo, a “regulação social” é associada, por muitos

teóricos, às noções de “equilíbrio econômico” e “regulação econômica”. O próprio direito

passa a ser compreendido como um “regulador social” privilegiado. Enfim, a expressão

“regulação social” passa a auxiliar na explicação do funcionamento e da reprodução de

sistemas sociais complexos – como o direito, a economia e a política –, com suas tensões,

rupturas, contradições, equilíbrios e reequilíbrios70.

A expressão “regulação econômica”, por sua vez, está ligada ao padrão de

intervenção estatal no mercado que se refere a impostos, subsídios e controles legislativos

e administrativos sobre taxas, ingressos no mercado e outras facetas da atividade

econômica. Dentre as teorias que têm sido desenvolvidas com o objetivo de explicar o

funcionamento da regulação estatal da economia, podem ser apontadas como principais, de

modo sintético: i) a teoria do interesse público, que sustenta que a regulação seria criada

em resposta a uma demanda pública por correção de práticas de mercado ineficientes ou

não equitativas; ii) a teoria da captura, que afirma que a regulação seria uma resposta às

demandas de grupos de interesse competindo pela maximização dos seus próprios

interesses (privados); e iii) a teoria econômica da regulação, que defende que a regulação

pode ser entendida como um produto cuja alocação é regida pelas leis da oferta e procura,

no sentido de que as pessoas e os grupos procuram promover, de modo racional, os seus

próprios interesses71. Essas teorias privilegiam aspectos diversos da noção de “regulação

econômica”, mas todas contribuem para a compreensão deste complexo fenômeno social.

Em verdade, há uma espécie de complementaridade entre as perspectivas dessas teorias,

que, em conjunto, permitem traçar um quadro mais realista da ideia de “regulação

econômica”, que, na prática, atende ao interesse público, mas também, em grande medida,

aos interesses privados72.

70 COMMAILE, Jacques. Regulação Social. In: ARNAUD, André-Jean et al. (dir.). Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. Tradução de Patrice Charles e F. X. Willlaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 684-686. 71 POSNER, Richard A. Teorias da Regulação Econômica. Tradução de Mariana Mota Prado. In: MATTOS, Paulo Todescan L. (coord.). Regulação econômica e democracia: o debate norte-americano. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. 49-60. 72 O interesse público, consoante Ávila, é indissociável do interesse privado: “Interesse privado e interesse público estão de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins. [...] Se eles – o interesse público e o privado – são conceitualmente inseparáveis, a prevalência de um sobre outro fica prejudicada, bem como a contradição

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Assim, no âmbito do Estado, a “regulação” tem sido compreendida como uma

“atividade estatal de organização e disciplina da atividade econômica privada”,

desempenhada com o objetivo de “manter o desenvolvimento da economia fundada na

iniciativa privada de investimento e produção”. A regulação da economia pelo Estado

surge e cresce com o Estado Moderno e a consolidação do modo de produção capitalista. A

atividade reguladora da economia pelo Estado volta-se, neste contexto, não apenas para o

problema da concentração econômica e das práticas de abuso do poder de mercado, mas

também para a disciplina do exercício pelo setor privado das atividades econômicas

consideradas de interesse público ou coletivo. A tarefa de produzir “regulação econômica”

passa a ser endereçada aos entes administrativos denominados de “autoridades reguladoras

independentes” ou “agências reguladoras”, a quem é incumbido o papel de, com autonomia

e de modo conjuntural, disciplinar normativamente a produção econômica73.

A noção de regulação econômica ajuda a compreender a nova racionalidade

jurídica que se desenvolve a partir da constatação das insuficiências da racionalidade

jurídica formal, conforme será abordado de modo mais detido no Capítulo 3 deste trabalho.

O novo modelo de direito, após as profundas mudanças promovidas no contexto do Estado

Intervencionista, convive com as peculiaridades do Estado Regulador, que passa a intervir

no âmbito econômico principalmente através da regulação econômica.

O debate em torno da definição de um “direito da regulação econômica” se

encontra diante de inúmeras dificuldades, dentre as quais a própria delimitação do

significado da expressão, que apresenta um manifesto caráter polissêmico, podendo-se

identificar a “regulação”: i) com o próprio direito, com o sentido excessivamente amplo de

uma “organização do exercício do poder público por seu titular”; ii) como o limite imposto

entre ambos. A verificação de que a administração deve orientar-se sob o influxo de interesses públicos não significa, nem poderia significar, que se estabeleça uma relação de prevalência entre os interesses públicos e privados. Interesse público como finalidade fundamental da atividade estatal e supremacia do interesse público sobre o particular não denotam o mesmo significado. O interesse público e os interesses privados não estão principalmente em conflito, como pressupõe uma relação de prevalência.” (ÁVILA, Humberto. Repensando o “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 11, set./out./nov., 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 06 jan. 2016, pp. 13-14). 73 DERANI, Cristiane. Regulação. In: ARNAUD, André-Jean; JUNQUEIRA, Eliane Botelho (org.). Dicionário da Globalização: Direito, Ciência Política. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p. 385.

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ao exercício de poder, com o sentido ainda amplo de “re-equilíbrio das relações de força”

ou de “política de equilíbrio de poderes”, inclusive dentro de empresas; iii) pelos setores

sobre os quais ela se exerce, que “devem ser construídos e mantidos num equilíbrio entre o

princípio da concorrência e outros princípios”, com o sentido mais estreito que busca um

vínculo jurídico entre a regulação e alguns setores particulares, como os de energia,

transportes, medicamentos, telecomunicações etc., frequentemente confiados a uma

autoridade setorial de regulação. Em verdade, o direito da regulação econômica, que

encontra o seu pano de fundo na economia de mercado e na globalização econômica,

entrelaça os três sentidos de regulação descritos, que não são excludentes, mas, sim,

complementares74.

Na atualidade, a noção de “regulação” é muito utilizada “para sintetizar certos

aspectos novos que o direito teria adquirido nas sociedades contemporâneas: o surgimento

de um ‘direito de regulação’ manifestando a passagem de um direito abstrato, geral e

desencarnado a um direito concreto e enraizado na realidade”. A concretização desta ideia

de regulação “implica o recurso a novos modos de exercício do poder”, razão pela qual

pressupõe uma ligação estreita com a noção de governança. Esta representa “um novo

estilo de ação pública, fixando-se não mais sobre a unilateralidade e a coerção (como no

modelo jurídico clássico), mas sobre a cooperação e sobre a adesão”. Encontra-se nos

fundamentos da governança “a preocupação da eficácia da ação pública”, mas ela não é

alheia ao mundo jurídico: não apenas a governança tende “a se juridicizar, por intermédio

da procedimentalização e da contratualização, mas ainda ela influi sobre a concepção do

direito, favorecendo a promoção de um direito negociado e maleável, nas antípodas do

direito de comando tradicional”75.

Há três traços principais que caracterizam a noção de governança, em contraposição

à ideia tradicional de governo: inclusão, efetividade e interatividade. O primeiro traço

distintivo da governança é o de que se trata de uma modalidade de governo aberta,

inclusiva e acolhedora. Há uma franca ampliação na participação dos atores públicos e,

74 FRISON-ROCHE, Marie-Anne. Definição do Direito da Regulação Econômica. Tradução de Thales Morais da Costa. In: Revista de Direito Público da Economia - RDPE. Belo Horizonte, ano 3, n. 9, pp. 207-217, jan./mar. 2005, pp. 208-216. 75 CHEVALLIER, Jacques. A Governança e o Direito. Tradução de Thales Morais da Costa. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 3, n.12, p. 129-146, out/dez. 2005, pp. 130-146.

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sobretudo, privados: organizações internacionais, cortes, associações de profissionais,

movimentos sociais, empresas, ONGs etc. O segundo atributo comumente associado à

ideia de governança é aquele relacionado à sua capacidade de atingir objetivos e produzir

efeitos. O momento normativo e o executivo se unem: o efeito prático, o resultado da

aplicação, passa a ser o foco central, e não mais a lei. Por fim, a governança é caracterizada

pelo seu aspecto interativo e dialógico. A negociação se torna o principal programa da

governança, que abre espaço para que os destinatários das escolhas públicas também

participem das decisões76.

Assim, o Estado Regulador é marcado por mudanças estruturais significativas em

relação ao Estado Intervencionista. As diversas e heterogêneas estratégicas básicas que

caracterizam esta mudança na governança, como a privatização, a liberalização, a reforma

dos programas de bem-estar e a desregulação (no sentido de reforma dos métodos

tradicionais de regulação), coincidem na limitação do papel do Estado Intervencionista,

especialmente no que diz respeito ao seu poder de tributar e de gastar, e na mudança do seu

padrão normativo, isto é, do seu papel regulador. A intervenção pública na economia passa

a ocorrer mais através da regulação de mercados do que mediante a administração

discricionária de variáveis macroeconômicas (estabilização macroeconômica) e a

redistribuição de renda. Estes dois últimos tipos de intervenção estatal eram prioritários, no

final do período de reconstrução das economias nacionais após a Segunda Guerra Mundial,

na maior parte dos governos da Europa ocidental. No entanto, a partir da década de 1970,

as despesas públicas discricionárias e as políticas de bem-estar passam a ser “vistas como

parte do problema do desempenho econômico insatisfatório”. O novo modelo tende para

um Estado mais enxuto e eficiente, com a introdução de “diferentes instrumentos de

política presumivelmente mais eficazes” através de uma “regulação menos rígida ou

restritiva”77.

A maior parte das diferenças estruturais entre o Estado Intervencionista e o Estado

Regulador está ligada às políticas adotadas. O Estado Regulador aposta mais em políticas

76 FERRARESE, Maria Rosaria. La governance tra política e diritto. Bologna: Il Mulino, 2010, pp. 56-74. 77 MAJONE, Giandomenico. Do Estado Positivo ao Estado Regulador: Causas e conseqüências da mudança no modo de governança. In: MATTOS, Paulo Todescan L. Regulação econômica e democracia: o debate europeu. São Paulo: Editora Singular, 2006, pp. 54-57.

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regulatórias, que não são determinadas por dotações orçamentárias e receitas tributárias do

governo, já que não envolvem dispêndio direto de recursos públicos. Enquanto a

redistribuição de renda e a gestão macroeconômica exigem centralização na formulação de

políticas e na administração, a regulação econômica requer um processo de decisão que é

mais bem executado por organizações flexíveis, especializadas e autônomas: as agências

reguladoras. Em determinadas áreas, em que o conhecimento específico, a continuidade e a

credibilidade política são determinantes para uma maior eficácia, as agências reguladoras

apresentam vantagens significativas em relação às instituições típicas do modelo

burocrático tradicional78.

Ao lado do surgimento de novos atores sociais, como as agências reguladoras e

seus especialistas, há uma redistribuição de poderes entre os velhos atores, que torna o

Poder Judiciário protagonista do jogo administrativo, através, por exemplo, do exame

judicial das decisões das agências. Ademais, novos grupos pluralistas passam a agir

intensamente no Estado Regulador, concentrando-se em questões como o meio ambiente, a

defesa do consumidor, os direitos civis e as questões de gênero. Estes “grupos não-

econômicos” têm gerado importantes impactos na regulação. Trata-se de uma atuação que

já era conhecida através dos “grupos de interesses empresariais”, que também

desempenham um papel importante na formulação destas políticas79.

O Estado Regulador é marcado pela presença de características como: o pluralismo,

a difusão do poder e a delegação de tarefas a instituições não-majoritárias. Embora paire

78 MAJONE, Giandomenico. Do Estado Positivo ao Estado Regulador: Causas e conseqüências da mudança no modo de governança. In: MATTOS, Paulo Todescan L. Regulação econômica e democracia: o debate europeu. São Paulo: Editora Singular, 2006, pp. 64-69. Como já pontuado anteriormente neste trabalho, não se pode afirmar que o Estado Intervencionista tenha deixado de apostar em políticas regulatórias ou que o Estado Regulador não adote políticas relacionadas à redistribuição de renda e à gestão macroeconômica, mas apenas que a prioridade relativa destas políticas foi maior no Estado Intervencionista, enquanto a ênfase relativa nas políticas regulatórias tem se mostrado mais forte no Estado Regulador (LA SPINA, Antonio; MAJONE, Giandomenico. Lo Sato regolatore. Bologna: Il Mulino, 2000, pp. 7-38). No Brasil, por exemplo, não se pode deixar de observar que, antes mesmo da criação das agências reguladoras, já havia alguns órgãos estatais que eram responsáveis pelo desempenho de funções regulatórias, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e o Banco Central (BACEN). A novidade trazida pela reforma regulatória da década de 1990 não foi a adoção da regulação econômica, mas sim a sua intensificação, por meio da criação de agências reguladoras independentes, responsáveis pela regulação de setores específicos da economia, como os de energia elétrica, telecomunicações, transportes e saúde. 79 MAJONE, Giandomenico. Do Estado Positivo ao Estado Regulador: Causas e conseqüências da mudança no modo de governança. In: MATTOS, Paulo Todescan L. Regulação econômica e democracia: o debate europeu. São Paulo: Editora Singular, 2006, pp. 71-75.

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no ar a desconfiança quanto à sua legitimidade democrática, consoante Majone,

instituições como as agências reguladoras apresentariam legitimidade procedimental, já

que devem obedecer a regras formais, democraticamente elaboradas, e decidir de modo

fundamentado, o que permite a abertura ao exame judicial e à participação pública. Estas

instituições também apresentariam legitimidade do ponto de vista substantivo, pois devem

gerar e manter a expectativa de que são adequadas para as funções que lhes são confiadas,

isto é, de que apresentam não apenas conhecimentos específicos, capacidade de proteger

interesses difusos, profissionalismo e habilidade de solucionar problemas, mas também

objetivos e limites definidos80.

Na Europa, a passagem do Estado Intervencionista ao Estado Regulador, marcada

pelo crescimento da importância da regulação de mercados, pode ser entendida a partir da

análise de três importantes processos complementares: i) a privatização, que representa

uma mudança no modo de controle dos serviços públicos e dos setores que afetam o

interesse público, os quais, embora “deixados em mãos privadas”, são mantidos sob a

regência de “normas elaboradas e aplicadas por agências especializadas”; ii) a

europeização da formulação de políticas públicas, que traduz uma “crescente

interdependência das políticas domésticas e supranacionais dentro da Comunidade

80 MAJONE, Giandomenico. Do Estado Positivo ao Estado Regulador: Causas e conseqüências da mudança no modo de governança. In: MATTOS, Paulo Todescan L. Regulação econômica e democracia: o debate europeu. São Paulo: Editora Singular, 2006, pp. 76-78. No âmbito da teoria dos sistemas de Luhmann, a noção de “legitimidade” representa a “fórmula de contingência” do sistema político (NAFARRATE, Javier Torres. Luhmann: la política como sistema. Universidade Iberoamericana; Faculdad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, FCE, 2004, pp. 168-171). A ideia de fórmula de contingência para a teoria dos sistemas de Luhmann será retomada no Capítulo 4 deste trabalho, especialmente quando abordarmos a noção de “justiça”, que representa a fórmula de contingência do sistema jurídico. Em relação ao conceito de legitimidade das decisões, Luhmann entende que se trata da “[...] precondición general de una organización compleja de la decisión [...]”, que quer dizer “[...] que la toma incuestionada de decisiones vinculantes del sistema político queda asegurada con independencia de las estructuras de motivación concretas y personales.” Por isso, “[r]esulta claro que la legitimidad no puede consistir solamente en una mezcla apropiada de coerción e consenso […]. Un proceso como el descrito, de generalización de la toma de decisiones (un proceso en el que dicha toma de decisiones se hace además evidente), solo puede llevarse a efecto con apoyo social. Sin el acuerdo con otros, el individuo no podría distanciarse tanto de sus motivos personales. La legitimidad presupone la institucionalización.” (LUHMANN, Niklas. Sociología política. Tradução de Iván Ortega Rodríguez. Madrid: Editorial Trotta, 2014, pp. 86-94). Em outra formulação do mesmo conceito, Luhmann enquadrou a legitimidade “[...] como uma disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância. [...] A legitimação pelo procedimento e pela igualdade das probabilidades de obter decisões satisfatórias substitui os antigos fundamentos jusnaturalistas ou os métodos variáveis de estabelecimento do consenso. Os procedimentos encontram como que um reconhecimento generalizado, que é independente do valor do mérito de satisfazer a decisão isolada, e este reconhecimento arrasta consigo a aceitação e consideração de decisões obrigatórias.” (LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, pp. 29-35).

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Européia/União Européia (CE/EU)”, bem como uma “tendência geral no sentido da

harmonização dos enfoques reguladores e uma estreita cooperação entre reguladores

nacionais e suas contrapartes em nível europeu”; e iii) o crescimento de formas indiretas ou

terceirizadas do Governo, que significa a mudança do governo direto para o indireto,

caracterizado, dentre outros fatores, pela atuação de agências e organizações, que operam

com certa autonomia, mas que são controladas “por meio de arranjos contratuais e de

regras e regulamentos”81.

Em síntese, o surgimento do Estado Regulador é fortemente ligado ao processo de

“diminuição das atividades estatais, por meio de privatizações e concessões do Estado a

sujeitos privados”. Esta mudança tem sido associada à chamada “crise do Estado”, que se

manifesta através da “perda de unidade do maior poder público no contexto interno e perda

da soberania em relação ao exterior”82. Surge, assim, uma redefinição das funções do

Estado, que repousa no princípio fundamental da subsidiariedade, segundo o qual:

[...] a intervenção do Estado somente é legítima em caso de insuficiência ou de falha dos mecanismos de autorregulação social (supletividade), sendo entendido que convém naquela situação privilegiar os dispositivos mais próximos dos problemas a resolver (proximidade) e de apelar à colaboração dos atores sociais (parceria) [...]83.

Quando o Estado se retira da economia, por meio da privatização, consoante Irti,

não há um esvaziamento da política, mas, ao contrário, a plenitude desta, isto é, “daquele

querer humano que escolheu um determinado regime de propriedade e de negócios”. No

entanto, a vontade humana que institui esta estrutura econômica também pode demoli-la:

“Qualquer solução será uma solução política”, e não resultado de uma lei natural84. Em

termos sistêmicos, trata-se de comunicação política. O sistema político “democrático”

81 MAJONE, Giandomenico. Do Estado Positivo ao Estado Regulador: Causas e conseqüências da mudança no modo de governança. In: MATTOS, Paulo Todescan L. Regulação econômica e democracia: o debate europeu. São Paulo: Editora Singular, 2006, pp. 57-63. 82 CASSESE, Sabino. A crise do Estado. Tradução de Ilse Paschoal Moreira e Fernanda Landucci Ortale. Campinas: Saberes Editora, 2010, pp. 13-14. 83 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 59-60. 84 IRTI, Natalino. A ordem jurídica do mercado. Tradução de Alfredo Copetti Neto e André Karam Trindade. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 145, Janeiro, pp. 44-49, 2007, p. 47.

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concretiza “os pressupostos de incremento da complexidade e do seu controle seletivo pela

tematização política das pretensões do ambiente.”85

A partir dos anos 1980, praticamente todos os países passam a testemunhar o

surgimento de administrações independentes, que pareciam, até então, ser um atributo

apenas dos países anglo-saxões (Estados Unidos, Grã-Bretanha e Canadá), e a “função de

regulação tende progressivamente a se autonomizar dentro do Estado”. Embora haja uma

enorme diversidade quanto à denominação, à competência, à organização e aos poderes

dessas administrações, há uma função comum que justifica a emancipação em face do

restante do aparelho administrativo do Estado: “a regulação da economia de mercado e a

proteção dos direitos dos cidadãos”86.

Os países em desenvolvimento, como o Brasil, também assistiram, ao longo dos

anos 1980 e 1990, “à eliminação da hegemonia exercida pelo Estado sobre a economia e a

sociedade”87. Os países em desenvolvimento foram conduzidos, através de pressões de

instituições financeiras internacionais, a ingressar no movimento geral de privatizações de

empresas. Estes Estados, em grande medida, abriram mão do papel de operadores

econômicos, para intervir sobre a economia através da função reguladora, isto é, passaram

de atores a árbitros do processo econômico: a sua tarefa agora “consiste em supervisionar o

jogo econômico, estabelecendo certas regras e intervindo de maneira permanente para

amortecer as tensões, compor os conflitos, assegurar a manutenção de um equilíbrio do

conjunto”88.

No entanto, o novo papel desempenhado pelo Estado na economia não se reduz à

regulação econômica. Também faz parte da nova arquitetura estatal a intervenção ativa no

jogo econômico, levando em consideração o contexto de globalização. O Estado Regulador 85 A política, consoante De Giorgi, “[...] está obrigada a operar nas condições de uma dupla contingência: a que provém das irritações do ambiente e a que deriva da mutabilidade da opinião pública.” DE GIORGI, Raffaele. Democracia, parlamento e opinião pública. Tradução de Juliana Neuenschwander Magalhães e Menelick de Carvalho Netto. In: DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco – vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pp. 41-43. 86 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 100-101. 87 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 31. 88 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 71-73.

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é também um Estado Estrategista, e não mais um Estado Dirigista, pois, ao invés de

ordenar o desenvolvimento econômico, o Estado passa a construir estratégias, com o

objetivo de obter os melhores resultados possíveis, tomando em conta as influências

externas. Embora o Estado, gradativamente, abandone a missão de ser o motor do

desenvolvimento econômico, não abre mão de toda a sua capacidade de ação: o Estado

passa a aportar apoio, através de políticas econômicas seletivas, a certos setores ou

atividades estratégicas, como inovação e desenvolvimento tecnológico89.

Ademais, não se pode deixar de notar que o Estado contemporâneo é marcado não

apenas pela excitação de uma perspectiva de “liberdade sem freios”, mas também pela

“nostalgia de um Estado de Bem-Estar”, que freia a energia individual para proteger a

coletividade90. Se o Estado Regulador, por um lado, representa uma superação do Estado

Liberal e do Estado Intervencionista, por outro lado, não deixa de ser uma espécie de

síntese, que convive com certos aspectos das fases anteriores.

No Estado contemporâneo, consoante Faria, ainda há a permanência de duas linhas

de intervenção normativa na economia e na sociedade: um “piso social” e um “teto

econômico”. Uma linha seria de caráter basicamente social: “Estratégias ou políticas de

‘focalização’”, que “são medidas compensatórias pontuais e transitórias, sob a forma de

programas ‘focalizados’ de assistência social aos setores pobres e excluídos”. A outra

linha, por sua vez, apresentaria um enfoque mais econômico e se traduziria em:

[...] normas de direito societário, falimentar, econômico, administrativo, concorrencial, antitruste e penal econômico, envolvendo, seja por meio de autarquias, seja por meio de agências reguladoras, o estímulo ao livre jogo de mercado, a regulação da concorrência, a definição das formas e níveis aceitáveis de concentração empresarial, o combate ao abuso do poder econômico, o controle das condutas anticoncorrenciais e a proteção dos cidadãos contra o poder de monopólio91.

89 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 73-77. 90 ARNAUD, André-Jean. Governar sem fronteiras – entre globalização e pós-globalização. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 22. 91 FARIA, José Eduardo. O Estado e o Direito Depois da Crise. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 73-75. No Brasil, um importante exemplo de política de focalização pode ser encontrado no Programa Bolsa Família, que foi criado em outubro de 2003, no âmbito da estratégia do governo federal denominada “Fome Zero”, mediante a edição da Medida Provisória nº 132, de 20 de outubro de 2003, posteriormente convertida na Lei nº 10.836, de 09 de janeiro de 2004. Em verdade, o referido programa unificou a gestão e a implementação de outros programas federais direcionados à transferência de renda para as famílias mais pobres do Brasil

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As mudanças nas instituições políticas e nas estruturas jurídicas, ocorridas entre o

final do século XX e o início do século XXI, não eliminaram esses dois limites à atuação

dos agentes econômicos, sociais e políticos – o “piso social” e o “teto econômico” –, cuja

distância tende a ser retrátil, isto é, “pode ser ampliada ou reduzida conforme os problemas

de instabilidade sistêmica da economia e da sociedade”92.

Assim, diversos são os atributos característicos do Estado Regulador, que,

organizados ao redor da noção de “regulação econômica”, permitem uma distinção

adequada em relação ao Estado Liberal e ao Estado Intervencionista: privatização,

pluralismo, governança, cooperação, eficiência, subsidiariedade, estratégia, focalização etc.

A regulação econômica surge como a característica em torno da qual os demais atributos

podem ser organizados, pois desponta como principal tipo de intervenção pública na

economia do Estado contemporâneo, preocupado não apenas com as falhas de mercado,

mas também com as falhas de governo.

2.3 Globalização econômica e governança global

Uma compreensão adequada do Estado Regulador exige a análise do contexto de

globalização em que este Estado se insere. O fenômeno da globalização acarretou o

desenvolvimento de uma governança global, em relação à qual o Estado assumiu apenas

um dos níveis de atuação, ao lado dos níveis local, regional e transnacional. Essa faceta do

Estado contemporâneo lança luzes não apenas sobre as recentes transformações ocorridas

na política, mas também sobre mudanças operadas, nas últimas décadas, no direito e na

interpretação jurídica.

(“programas de complementação de renda”): Programa Bolsa Escola, Programa Bolsa Alimentação, Auxílio Gás, Programa Nacional de Acesso à Alimentação (“Cartão Alimentação”). Em 2005, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil também foi integrado ao Programa Bolsa Família. Outro exemplo de estratégia de focalização é o Benefício de Prestação Continuada, estabelecido na Lei Orgânica de Assistência Social (Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993). Esta política não é destinada à complementação de renda, mas à substituição da renda de pessoas com deficiência e idosos com 65 anos ou mais que comprovem não possuir os meios para prover o próprio sustento e que não possam ser mantidos por sua própria família (SOARES, Sergei; RIBAS, Rafael Perez; SOARES, Fábio Veras. Focalização e cobertura do Programa Bolsa-Família: qual o significado dos 11 milhões de famílias? Brasília: IPEA, 2009, pp. 7-8). 92 FARIA, José Eduardo. O Estado e o Direito Depois da Crise. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 75-76.

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Nas últimas décadas, as relações industriais adquiriram uma dimensão

transnacional. Esta transnacionalização está associada ao fortalecimento de uma economia

regional e à integração política dos Estados, que levaram à criação e à consolidação de

regras e instituições supranacionais. O fenômeno está ligado ainda à internacionalização da

produção e ao crescimento da importância das corporações multinacionais. Assim, as

relações industriais passam a ser redesenhadas e a adquirir mais complexidade,

adicionando-se novos níveis, agentes e instituições em seu mapa e criando-se novas

relações e interdependências horizontais e verticais entre atores públicos e privados,

nacionais e transnacionais93.

A expressão “transnacional”, que está ligada à produção de normas pelas empresas

“em prol da eficiência do mercado” e que sugere um enorme desafio aos âmbitos de

produções normativas nacionais e internacionais, passa a ser largamente utilizada nos

estudos relativos ao processo de globalização. O termo está diretamente associado ao

surgimento de um direito “paralelo” ligado ao caráter transnacional assumido pelo

comércio. Conforma-se uma espécie de “lex mercatoria dos tempos atuais”, cujos

fundamentos das regras são extraídos da cultura empresarial, comercial e financeira, das

condutas habituais, das práticas negociais e dos conflitos potenciais. Essa nova cultura

jurídica tem como uma das suas principais características as novas formas de resolução de

conflitos e a adoção de regras próprias, podendo-se, até mesmo, dispensar os direitos

nacionais e internacionais normalmente aplicáveis94.

Já a expressão “globalização” representa o acelerado e profundo processo de

internacionalização vivido pelos atores sociais nas últimas décadas. A partir dos anos 1990,

93 KEUNE, Maarten; MARGINSON, Paulo. Transnational Industrial Relations as Multi-Level Governance: Interdependencies in European Social Dialogue. British Journal of Industrial Relations , v. 51, n. 3, pp. 473-497, 2013, pp. 473-474. Segundo Hobsbawm, embora “[...] a economia mundial na Era de Ouro [...]” tenha continuado “[...] sendo mais internacional que transnacional [...]”, “[...] começou a surgir, sobretudo a partir da década de 1960, uma economia cada vez mais transnacional, ou seja, um sistema de atividades econômicas para as quais os territórios e fronteiras de Estados não constituem o esquema operatório básico, mas apenas fatores complicadores. No caso extremo, passa a existir uma ‘economia mundial’ que na verdade não tem base ou fronteiras determináveis, e que estabelece, ou antes impõe, limites ao que mesmo as economias de Estado muito grandes e poderosos podem fazer. Em dado momento do início da década de 1970, uma economia transnacional assim tornou-se uma força global efetiva.” (HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 271-272). 94 ARNAUD, André-Jean. Governar sem fronteiras – entre globalização e pós-globalização. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, pp. 31-33.

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“o termo globalização traduz a existência de uma nova dinâmica que, escapando muito

largamente ao controle dos Estados, atinge todos os países e toca a todos os níveis de

organização social”95. A globalização, consoante Cassese, consiste em um processo de

desenvolvimento:

[...] de redes de produção internacionais, dispersão de unidades produtivas em diferentes países, fragmentação e flexibilidade do processo de produção, interpenetração de mercados, instantaneidade dos fluxos financeiros e informativos, modificação dos tipos de riqueza e trabalho e padronização universal dos meios de negociação. Os ‘soberanos’ da globalização são as grandes multinacionais96.

A economia mundial, que entra na “Era da Globalização”, caracteriza-se pela

reunião de três elementos principais: i) um mercado unificado; ii) empresas globalizadas; e

iii) mecanismos de regulação que buscam dominar os fluxos econômicos em escala

mundial97.

Essa economia globalizada é caracterizada por uma forte pressão internacional para

que todos os Estados sigam os padrões de inspiração neoliberal: “Livre mercado

internacional, mercado privatizado, desregulação, desengajamento do Estado”. Esses são

os critérios adotados pela Organização Mundial do Comércio, pelo Banco Mundial e pelo

Fundo Monetário Internacional para avaliar os resultados econômicos dos Estados98.

A globalização é um fenômeno complexo e que apresenta riscos evidentes. Ela

representa “o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista”. Consoante

Santos, para a maior parte da humanidade a globalização seria perversa e marcada por uma

dupla tirania: a do dinheiro e a da informação99. Graças ao dinheiro e à informação o

mundo se tornaria fluido e as fronteiras se tornariam porosas para eles. A política passaria

a ser realizada no mercado, sendo as empresas globais os principais atores sociais. Com

95 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 32-33. 96 CASSESE, Sabino. A crise do Estado. Tradução de Ilse Paschoal Moreira e Fernanda Landucci Ortale. Campinas: Saberes Editora, 2010, pp. 25-26. 97 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 33-35. 98 ARNAUD, André-Jean. Governar sem fronteiras – entre globalização e pós-globalização. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 36. 99 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 24. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2015, pp. 23-45.

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isso, segundo Santos, estar-se-ia diante de uma “não política”, de uma “decretação de

morte da Política”100.

Os avanços tecnológicos levaram à constatação da porosidade das fronteiras e da

erosão da autoridade dos governos. Uma espécie de “direito internacional paralelo do

comércio” se desenvolve para tentar contornar as proteções estatais e internacionais, que

limitariam o livre comércio almejado pelas empresas multinacionais. O fenômeno da

globalização remete a uma evidente “transgressão das fronteiras políticas, econômicas e

financeiras” e a uma clara “reorganização das fronteiras culturais”101.

Uma das principais implicações do fenômeno da globalização é a assimetria entre

economia e Estado: “[...] de um lado temos nações sem riqueza, de outro, riqueza sem

nações”. Mas os poderes públicos procuraram controlar estes desequilíbrios através de

quatro estratégias básicas:

A primeira é a cooperação entre autoridades de diferentes nações, disposta por leis nacionais. Em seguida, há a cooperação, disposta por acordos bilaterais, entre autoridades de diferentes nações. A terceira forma é a cessão de tarefas estatais a organismos supranacionais, constituídos com base em acordos multilaterais. Por fim, há os organismos supranacionais que absorvem funções estatais, submetendo os organismos estatais às próprias decisões102.

Desenvolve-se um quadro complexo de governança global, isto é, um grupo de

instrumentos políticos com a finalidade de manter a globalização sob controle. A chamada

governança global “apresenta-se como um conjunto de organizações gerais e setoriais e de

acordos”. Por ser formada por cooperação, ela enfrenta as dificuldades relacionadas à

produção de decisões conjuntas e em colaboração. Esta governança não é marcada pela

presença de uma supremacia, de um soberano, de uma estrutura definida ou de uma ordem

hierárquica. Nela se misturam componentes e conexões internacionais, nacionais e

setoriais103.

100 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 24. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2015, pp. 66-67. 101 ARNAUD, André-Jean. Governar sem fronteiras – entre globalização e pós-globalização. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, pp. 16-21. 102 CASSESE, Sabino. A crise do Estado. Tradução de Ilse Paschoal Moreira e Fernanda Landucci Ortale. Campinas: Saberes Editora, 2010, p. 41. 103 CASSESE, Sabino. A crise do Estado. Tradução de Ilse Paschoal Moreira e Fernanda Landucci Ortale. Campinas: Saberes Editora, 2010, pp. 24-30.

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Uma governança multinível começa a se desenvolver, com duas dimensões: uma

vertical e outra horizontal. Verticalmente, esta governança está relacionada ao aumento de

interdependência entre os mecanismos de governança em diferentes níveis. Do ponto de

vista horizontal, liga-se à interdependência entre os atores públicos e privados104. A União

Europeia é o principal exemplo de adoção deste processo que vem sendo chamado de

“multi-level governance” e que tem sido marcada pela negociação de políticas por

instituições transnacionais, nacionais, regionais e locais105.

O surgimento de uma nova governança e a emergência de redes de regulação

internacional são processos ligados à fragmentação, ao esvaziamento, à desagregação e à

descentralização do Estado, que decorrem da devolução ou da delegação de funções

específicas aos reguladores especializados e do desenvolvimento de novos tipos de

relações público-privadas. Muitas das atividades das redes de regulação internacional são

realizadas por especialistas técnicos, podendo esta delegação ser considerada uma resposta

ao problema de se conseguir governar comunidades cada vez mais complexas. Confere-se

grande autonomia aos especialistas para que tomem decisões dentro do quadro político

definido pelo governo106.

A transferência de funções públicas específicas a reguladores “não-majoritários”

(“não-eleitos”) traz consigo a discussão sobre o problema da sua legitimidade. A

legitimidade destas instituições e destes agentes “não-eleitos” frequentemente é apontada

como sendo encontrada na necessidade de se isolar algumas áreas de tomadas de decisão

das influências dos interesses privados e das considerações de curto prazo que dominam as

políticas eleitorais (“majoritárias”)107. O conhecimento técnico e científico desses novos

atores também tem sido considerado um dos principais motivos para a referida delegação

104 KEUNE, Maarten; MARGINSON, Paulo. Transnational Industrial Relations as Multi-Level Governance: Interdependencies in European Social Dialogue. British Journal of Industrial Relations , v. 51, n. 3, pp. 473-497, Set. 2013, p. 476. 105 LOPEZ-VISO, Mónica; ALVAREZ, Antón Lois Fernández. Multi-level governance and social cohesion in the European Union: the assessment of local agents, a study case inside Galicia. Rev. bras. polít. int., Brasília , v. 57, n. 2, p. 196-213, Dec. 2014, p. 199. 106 PICCIOTTO, Sol. Law and legitimacy in multi-level governance. Centre for Globalisation & Regionalisation, University of Warwick, Maio 2007, pp. 2-4. 107 PICCIOTTO, Sol. Law and legitimacy in multi-level governance. Centre for Globalisation & Regionalisation, University of Warwick, Maio 2007, pp. 2-4.

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de espaços decisórios, o que, para alguns, representaria o caráter “tecnocrático” dessa nova

governança global108.

A crise econômica, que se propagou no mundo de modo mais crítico a partir da

quebra de um dos principais bancos norte-americanos, no final de 2008, marcou o fim

definitivo na frágil crença em uma “globalização feliz”. Esta crise econômica, originada de

uma crise financeira, mostrou que a globalização do comércio comporta não apenas as

evidentes injustiças e desigualdades já conhecidas – notadamente em prejuízo dos países

mais pobres –, mas também um “risco sistêmico, ao propiciar a propagação dos

desequilíbrios econômicos de um país a outro com uma rapidez extrema”109.

Esta crise, consoante Chevallier, não apenas marcou o fim do mito de uma

“globalização feliz”, mas também reforçou a importância da intervenção do Estado na

economia – ainda que pontual e provisória – e da consolidação de uma ordem

108 PICCIOTTO, Sol. Law, lawyers and legitimacy in the construction of global corporate capitalism. Centro de Estudos Sociais (CES), Universidade de Coimbra, 2010. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/eventos/pdfs/Picciotto_Law_&_Construction_of_Corporate_Capitalism.pdf>. Acesso em: 07 jan. 2016, pp. 17-20. Ao analisar a relação entre globalização e democracia, por meio do recurso à teoria dos sistemas, Campilongo afirma que a globalização suscita problemas mais importantes do que “a questão valorativa da legitimidade”, como aqueles relacionados ao “fechamento operativo do sistema político”: “No plano global, o código binário da política – governo/oposição – tem aplicabilidade mitigada. Quem é governo no mundo globalizado? Quais os espaços para a oposição? Oposição e governo são situações contingentes? Os polos podem ser invertidos? No plano mundial essa discussão perde sentido. O paradoxo constitutivo do sistema político moderno (que tem seu vértice formado pelo dual governo/oposição) não tem, no cenário global, a relevância adquirida no plano nacional. É o código que viabiliza as escolhas e impede que um partido esteja, ao mesmo tempo, no governo e na oposição. Entretanto, nada disso ecoa nas organizações que fazem a política global. Por isso, uma noção fundamental para a dissolução do paradoxo nos Estados nacionais – a soberania – é posta na berlinda com a globalização. Ainda não existem, no sistema mundial, estruturas estabilizadas que permitam a soberania mundial, mas sim consenso forçado. Não há oposição, mas capitulação ou resistência. Não há cronologia nem variabilidade de opções, mas cartilhas unilaterais. E, onde não há incerteza nem indeterminação, não pode haver democracia.” Ademais, ao contrário do que ocorre no plano interno, em que há o funcionamento de “Constituições jurídico-políticas”, “[...] no plano global, inexistem, até o momento, mecanismos que viabilizem a interdependência com autonomia entre os sistemas jurídico e político.” Contudo, segundo o referido autor, “[n]ão existe nada de incompatível entre a diferenciação funcional dos sistemas e a globalização. Ao contrário, a globalização continuará a exigir, cada vez mais, um sistema político relativamente autônomo e Estados nacionais. Requererá, igualmente, um sistema jurídico operativamente fechado e tribunais. Daí a enorme variabilidade a que estão expostos os dois sistemas no atual momento de adaptação institucional à nova ordem.” (CAMPILONGO, Celso. Globalização e democracia. In: CAMPILONGO, Celso. O direito na sociedade complexa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 120-126). 109 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 279-280.

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transnacional. Intensificou-se, de um lado, o papel “regulador” e “estrategista” do Estado,

e, de outro lado, a ideia de que são necessárias respostas globais para problemas globais110.

Essas mudanças no panorama econômico e político geraram reflexos no sistema

jurídico. O direito contemporâneo convive com “temas, questões e marcos das políticas

públicas” que “cada vez mais tendem a ser ditados por mercados globalizados”. O sistema

jurídico hodiernamente se caracteriza:

[...] pela geração de conflitos e discussões complexas em matéria de hermenêutica, exigindo dos operadores e intérpretes conhecimentos especializados não apenas do direito positivo mas, igualmente, de macro e microeconomia, engenharia financeira, contabilidade e compliance, ciências atuariais, tecnologia de informações e análise de riscos de crédito, de mercado, de liquidez, regulador, ambiental, tecnológico, de reputação e sistêmico111.

A globalização econômica, segundo Neves, representaria uma expansão

hipertrófica do código da economia (“ter/não-ter”) em prejuízo da autonomia dos sistemas

do direito e da política, que encontrariam dificuldades de impor suas decisões às relações e

organizações econômicas transnacionais. A hipertrofia do código da economia seria danosa

aos códigos do direito (“lícito/ilícito” ou “conforme ao direito/não conforme ao direito”) e

da política (“poder/não-poder” ou “governo/oposição”) 112. No entanto, a nosso ver, a

globalização, enquanto variação evolutiva da sociedade, que gera um momentâneo

desequilíbrio entre os subsistemas sociais, é acompanhada de seleções reestabilizadoras,

como, por exemplo, o desenvolvimento de um quadro de governança global e de redes de

regulação internacional. A sociedade funcionalmente diferenciada está suficientemente

habilitada para lidar com as inovações e suportar as mudanças e as pressões

intersistêmicas113.

110 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 279-280. 111 FARIA, José Eduardo. O Estado e o Direito Depois da Crise. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 72. 112 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. Tradução do autor. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, pp. 218-219. 113 A “sociedade global”, consoante Campilongo, pode ser pensada como um “sistema de complexidade espantosamente crescente”. Embora a “globalização” torne “[...] cada vez mais evidentes as intensas interdependências entre os subsistemas [...]”, não se pode deixar de notar que “[...] a sociedade diferenciada funcionalmente sempre reagiu propiciando estruturas que estabilizassem mecanismos de controle dessas interdependências [...]” (como as aquisições evolutivas do “contrato” e da “Constituição”): “Apesar da extraordinária força que as relações de mercado e a economia internacional ganharam com a globalização, nada indica que o Estado, as leis, a ciência ou, em linguagem técnica, os subsistemas funcionalmente

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A compreensão do fenômeno da globalização econômica ajuda a entender a

reestruturação do papel estatal nas últimas décadas. A análise das características da

economia globalizada também contribui para a compreensão do esgotamento da

racionalidade jurídica tradicional, da emergência de um novo modelo de direito e da

necessidade de se repensar a interpretação jurídica. Não apenas a produção do direito, mas

também a própria “razão jurídica”, passa a ser influenciada por este contexto de

desorientação territorial e simbólica “guiada” pelas rápidas transformações nos âmbitos

econômico e político.

diferenciados da política, do direito, da ciência etc. estejam tornando-se indiferenciados ou completamente submetidos a um único vértice, supostamente o sistema econômico.” (CAMPILONGO, Celso. Globalização e democracia. In: CAMPILONGO, Celso. O direito na sociedade complexa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 115).

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3. NOVO MODELO DE DIREITO

Ao lado da reestruturação da arquitetura do Estado, vivencia-se

contemporaneamente o desenvolvimento de um novo modelo de direito (“pragmático”,

“flexível”, “brando”, “responsivo”, “dúctil”, “heterárquico”). No decorrer do século XX, a

racionalidade jurídica passou por profundas transformações, que foram impulsionadas por

discursos voltados para a preocupação com os aspectos não formais do direito. Ao longo

das últimas décadas deste século e do início do século XXI, essas mudanças na

racionalidade jurídica têm se acentuado.

A evolução dos acontecimentos políticos foi acompanhada pelos cientistas

políticos, mas, segundo Arnaud, “os juristas, agarrando-se ao emblema-mãe da segurança,

continuaram a pensar que eles poderiam, pela via da interpretação, enfrentar as

transformações maiores”, sem perceber que “o mundo lhes escapava”. A globalização do

comércio, por exemplo, representa uma profunda e permanente transgressão dos espaços

econômicos, políticos e jurídicos114. A produção do direito e a racionalidade jurídica não

poderiam escapar dos influxos dessas radicais transformações da sociedade.

A teoria dos sistemas sociais descreve o direito como “uma espécie de processo de

domesticação dos conflitos”, isto é, como um “sistema de imunidade” da sociedade, que

antecipa os possíveis conflitos e declara como direito as expectativas advindas desta

antecipação115. O direito imuniza a sociedade do risco de uma constante reprodução de

conflitos, mas a sua origem e a sua renovação dependem justamente da busca de soluções

para os conflitos, inclusive para aqueles conflitos que são provocados pelo próprio direito,

como aqueles que resultam da atividade de regulação estatal116.

114 ARNAUD, André-Jean. Governar sem fronteiras – entre globalização e pós-globalização. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 27. 115 LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, pp. 337-338. 116 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 642-645.

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O sistema jurídico generaliza e estabiliza expectativas de conduta, por meio da

regulação de conflitos, isto é, da organização de um sistema de decisão de conflitos117. A

função do direito, segundo Luhmann, é a generalização congruente das expectativas

comportamentais normativas, que existe em qualquer sociedade humana. Mas, ao longo do

desenvolvimento social – isto é, à medida que a complexidade social aumenta –, o grau de

diferenciação estrutural do direito modifica-se. O grau de diferenciação dos mecanismos

do direito é evolutivamente variável, sendo o seu motor a crescente complexidade social118.

Assim, uma sociedade cada vez mais complexa como a moderna é também uma

sociedade com um número crescente de conflitos e, consequentemente, com uma elevada

demanda por antecipações de conflitos, por produções de respostas jurídicas. Uma

sociedade que se renova exige um direito que também se renove. Por isso, a racionalidade

jurídica passa por profundas transformações nas últimas décadas.

O presente Capítulo enfrentará o desgaste da racionalidade jurídica tradicional,

típica do modelo liberal de Estado de Direito, cujas bases começam a se dissolver com o

advento do modelo jurídico-estatal intervencionista. Em seguida, serão investigadas as

principais características do modelo de direito que emerge na contemporaneidade. Por fim,

o caso do direito brasileiro será objeto de estudo, com a finalidade de se observar em que

medida as transformações ocorridas no direito têm impacto em países economicamente

periféricos como o Brasil.

3.1 Desgastes da racionalidade jurídica tradicional

O caráter formal da racionalidade jurídica é uma nota característica do direito que

se desenvolve na modernidade. O direito da sociedade moderna é reconhecido pelos seus

aspectos “formais”, isto é, como um direito “positivo”, “estatal” e “coativo”. No entanto,

ao longo do século XX, as descrições do direito ganham novos contornos, que se

apresentam como sinais de desgaste desta racionalidade jurídica tradicional.

117 LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 45. 118 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 119-122.

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No século XIX, a matéria do direito antigo é “reelaborada, codificada e colocada na

forma de leis”. A produção de legislação se torna uma rotina do Estado e uma resposta à

demanda pela praticidade da aplicação e pela racionalidade do direito119. O direito

moderno se torna sinônimo de “direito positivo”, isto é, de direito “válido enquanto

decisão”. Ao menos este é o modo como o direito da sociedade moderna irá se

autodescrever, afastando a ideia de uma “natureza imutável” e enfatizando a sua própria

mutabilidade120.

Na modernidade, o direito deixa de ter a sua vigência baseada “na implementação

sagrada ou na tradição”, para ser tido como “direito positivo construído e modificável a

qualquer momento”: “O que se supunha ser constante, ser ordem no mundo, passa a ser

reconhecido como escolha, opção, e tem que ser assumido como tal, independentemente da

manutenção ou modificação das normas em cada caso”. A legislação deixa de ter um

“status jurídico” precário, para se tornar uma rotina estatal121.

Uma das importantes características do Estado Moderno é o monopólio estatal da

produção jurídica: “o direito positivo (o direito posto e aprovado pelo Estado) é tido como

o único e verdadeiro direito”. O Estado produz o direito diretamente, mediante a

elaboração de leis, e indiretamente, por meio do reconhecimento das normas de origem

costumeira. Ao contrário do aspecto pluralista do direito medieval (produzido por diversos

agrupamentos sociais, que dispunham de ordenamentos jurídicos próprios), o direito

moderno assume o caráter monista, já que o poder de criação do direito é concentrado em

um único âmbito da sociedade: o Estado122.

Em sua clássica obra “Economia e Sociedade”, Max Weber descreveu as

qualidades formais do direito moderno como sendo resultado de um desenvolvimento em

119 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 230. 120 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 93-97. 121 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, pp. 228- 238. 122 BOBBIO, Norberto. O Positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Clarlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006, pp. 26-29.

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etapas que, partindo da revelação carismática, mágica e irracional do direito por “profetas

jurídicos”, caminharia em direção ao “progresso da sublimação lógica e do rigor dedutivo

do direito e da técnica racional do procedimento jurídico”123.

Além de Weber, Hans Kelsen foi outro importante teórico da primeira metade do

século XX que defendeu uma perspectiva formal de racionalidade jurídica. No Prefácio à

primeira edição da sua Teoria Pura do Direito, Kelsen aponta para a sua tentativa de

desenvolver uma “teoria jurídica pura”, isto é, de:

[...] elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão124.

A nota distintiva do direito, segundo Kelsen, estaria no momento da coação: “as

ordens sociais a que chamamos Direito são ordens coativas da conduta humana. [...] Quer

isto dizer que elas dão a um determinado indivíduo poder ou competência para aplicar a

um outro indivíduo um ato coativo como sanção.”125 Assim, o conhecimento jurídico seria

dirigido para “uma ordem normativa da conduta humana”126 e caberia à ciência jurídica o

papel de interpretá-la de modo a estabelecer as suas “possíveis significações” (a sua

“determinação cognoscitiva”), sem “tomar qualquer decisão entre as possibilidades por si

mesma reveladas”. Esta tomada de decisão seria uma “criação jurídica”, que deveria ser

deixada às autoridades competentes para aplicar o direito, à política do direito127.

Kelsen, assim como Weber, era fiel à “distinção entre a esfera do conhecimento e a

esfera da ação”. A tarefa da Teoria Pura do Direito, ou de qualquer teoria do direito que

pretendesse carregar a nota da cientificidade, seria a de “estudar o direito em sua estrutura

123 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. Tradução de Regis Barbosa e Keren Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009, p. 143. 124 KELSEN, Hans. Prefácio à primeira edição. In: KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. XI. 125 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, pp. 36-37. 126 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 5. 127 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, pp. 393-396.

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formal”128. A pureza metodológica da teoria kelseniana era baseada na ideia de rejeição de

juízos de valor nas ciências sociais, que foi a posição vivamente defendida por Weber no

início do século XX129.

Ademais, a descrição weberiana da formação do Estado moderno como sendo

caracterizada por um processo de racionalização formal que culminou no poder legal-

racional (regulado em todos os níveis por leis, por normas gerais e abstratas), segundo

Bobbio, seria fielmente representada pela teoria estrutural de Kelsen. Weber e Kelsen

destacaram o mesmo processo de formação do Estado moderno: “É fato que, quando

Kelsen descreve a progressiva juridificação do Estado moderno, a ponto de reduzir o

Estado a Direito, destaca o mesmo processo que Weber capta na formação do poder legal

que acompanha o desenvolvimento do Estado no período histórico.”130

O esgotamento do paradigma da legislação e da codificação representa, em alguma

medida, uma espécie de retorno às origens deste desenvolvimento, já que a confiança na

lógica, na dedução e na racionalidade técnica do procedimento jurídico é, em parte,

substituída pela confiança na eficiência de administradores e julgadores. Estes atores

sociais assumem uma atuação conscientemente criativa diante do direito vigente, o que,

consoante Weber, seria uma atitude exclusiva dos profetas. Transformar um juiz

burocrático, dos países com direito codificado, em um “profeta jurídico” resultaria na

diminuição da “precisão jurídica do trabalho, tal como se manifesta nas explicações das

sentenças, quando arrazoados sociológicos e econômicos, ou éticos, ocupam o lugar dos

conceitos jurídicos”131.

128 BOBBIO, Norberto. Max Weber e Hans Kelsen. In: BOBBIO, Norberto. Direito e poder. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Editora UNESP, 2008, pp. 220-223. 129 LOSANO, Mario G. Introdução. In: KELSEN, Hans. O problema da justiça. Tradução de João Baptista Machado. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, pp. X-XII. 130 BOBBIO, Norberto. Max Weber e Hans Kelsen. In: BOBBIO, Norberto. Direito e poder. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Editora UNESP, 2008, pp. 238-239. 131 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. Tradução de Regis Barbosa e Keren Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009, pp. 152-153. A preocupação weberiana é justificável e se manifestará também em autores da segunda metade do século XX, como Luhmann. Em obras da década de 1970, como “Sistema Jurídico e Dogmática Jurídica”, Luhmann demonstrou preocupação em relação às pretensões de “[...] orientación sociológica de la jurisprudencia y de la práctica jurídica [...]”, que, a seu ver, transcenderiam “[...] lo que sería sostenible si se tomasen en consideración los límites de la disciplina [sociológica], esto es, sus límites teóricos y metodológicos.” Ao menos até aquele momento, seria “[…] imposible ver cómo se podrían relacionar cuestiones jurídicas, con la precisión necesaria para la decisión, con teorías sociológicas o con métodos de investigación social

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O desgaste da racionalidade jurídica formal parece estar associado a uma espécie de

subversão de uma das ideias que serviriam de base para a dominação de caráter legal-

racional e que poderia ser assim sintetizada:

[...] que todo direito é, segundo sua essência, um cosmos de regras abstratas, normalmente estatuídas com determinadas intenções; que a judicatura é a aplicação dessas regras ao caso particular e que a administração é o cuidado racional de interesses previstos pelas ordens de associação, dentro dos limites das normas jurídicas e segundo princípios indicáveis de forma geral [...]132.

Este modelo estatista, racional e formal de direito ainda influencia a mentalidade

jurídica. Mas o descompasso desta concepção de direito em relação à realidade atual

mostra-se cada vez mais evidente. O direito, segundo a concepção weberiana, seria

simplesmente aquilo que o legislador político decide que é direito, de acordo com os

procedimentos legalmente institucionalizados. As exigências de justiça material seriam

responsáveis pela destruição da racionalidade formal do direito. E, como aponta Habermas,

foi justamente o que ocorreu: a racionalidade jurídica formal entrou em colapso diante do

surgimento de um direito “reflexivo”, “negociado”, “consensual”, “regulador”,

“moralizado”, “desformalizado”, “brando”133.

A “secura filosófica” da Teoria Pura do Direito, por exemplo, foi objeto de crítica

dos vários matizes teóricos do que pode ser chamado de Culturalismo Jurídico. Teóricos

como Carlos Cossio e Antônio Luís Machado Neto, representantes da Escola Egológica do

Direito, apontaram para a norma jurídica como “o momento formal e necessário da

experiência jurídica”, mas que não esgotaria essa experiência, que seria cultural e

empírica.” (LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. 13-14). Já nas obras da década de 1990, como “O Direito da Sociedade”, Luhmann manifestou a sua desconfiança, por exemplo, em relação às ambições da chamada “análise econômica do direito”, que, a seu ver, ofereceria uma proposta simples e racional de “cálculo de utilidade”, mas não conseguiria solucionar um problema crucial: “[...] la imposibilidad del cálculo del futuro.” (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 75-76). Uma discussão associada a estas preocupações será retomada no Capítulo 4 deste trabalho, quando abordarmos a hipótese do administrador/julgador eficiente. As preocupações weberianas e luhmannianas podem ser direcionadas à análise desta hipótese, com o objetivo de se dimensionar os seus limites, riscos e possibilidades. 132 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 1. Tradução de Regis Barbosa e Keren Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2012, p. 142. 133 HABERMAS, Jürgen. Direito e Moral . Tradução de Sandra Lippert. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, pp. 13-41.

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valorativa. O conhecimento jurídico não seria orientado para as normas, mas para a

“conduta humana em interferência intersubjetiva”, isto é, o direito seria um objeto cultural

egológico134. Inspirados em Wilhelm Dilthey, estes pensadores defenderam que a

compreensão jurídica se daria por meio da interpretação de condutas através de normas.

Partindo do pressuposto de que “o direito é conduta compartida”, a Teoria Egológica do

Direito defendeu que o sentido jurídico de uma conduta seria “composto pelo agente, pelo

legislador, pela comunidade e pelo intérprete”. Este último seria responsável pela

valoração “conceitualmente emocional” da conduta, que seria uma valoração baseada nas

normas jurídicas135.

No Brasil, além das contribuições teóricas de Machado Neto, o Culturalismo

Jurídico contou com o desenvolvimento de Miguel Reale, que afirmava ser o Culturalismo

“a corrente de filosofia brasileira mais extensa e original”136. Os significados da palavra

“Direito”, segundo Reale, seriam delineados segundo “três elementos fundamentais”:

valor, norma e fato. Estes seriam os elementos presentes em qualquer experiência jurídica

e que justificariam o desenvolvimento de uma Teoria Tridimensional do Direito137. O

trabalho do intérprete representaria uma atividade construtiva de natureza axiológica: “a

sistemática jurídica, além de ser lógico-formal, como se sustentava antes, é também

axiológica ou valorativa.” Ademais, além de cotejar enunciados lógicos e axiológicos, a

hermenêutica jurídica deveria realizar “contínuas aferições no plano dos fatos”138.

Na mesma linha de reviravolta na concepção de cientificidade do direito, a segunda

metade do século XX presenciou o surgimento da obra “Tópica e Jurisprudência”, de

Theodor Viehweg. A origem daquilo que hoje se chama de Teoria da Argumentação

134 MACHADO NETO, Antônio Luís. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 49-55. 135 MACHADO NETO, Antônio Luís. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 221-224. O direito, consoante Cossio, “[...] es la conducta humana en su interferencia intersubjetiva [...]”. Por se tratar de conduta humana, o direito “[…] es objeto cultural egológico y la interpretación, por lo tanto, implica un conocimiento por comprensión. [...] No se interpreta la ley; aquí se trata de interpretar la conducta humana por medio de o mediante la ley. Esto es lo que está realmente en juego cuando se habla de la interpretación de la ley.” (COSSIO, Carlos. El derecho en el derecho judicial. 3. ed. Buenos Aires: Editorial Abeledo-Perrot, 1967, pp. 136-137). 136 REALE, Miguel. Prefácio. In: REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000, p. XIII. 137 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 1991, pp. 509-511. 138 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 287.

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Jurídica está situada em uma série de obras da década de 1950 (dentre as quais se encontra

a de Viehweg), que compartilhavam “a rejeição da lógica formal como instrumento para

analisar os raciocínios jurídicos”139. Segundo Viehweg, a “tópica” seria “uma techne do

pensamento que se orienta para o problema”, “uma técnica do pensamento problemático”.

O acento é posto no problema, e não no sistema, o que “impede o tranquilo raciocínio

lógico para trás e para diante, quer dizer, a redução e a dedução.”140.

Além da Tópica de Viehweg, o período Pós Segunda Guerra Mundial viu surgir a

Nova Retórica, de Chaïm Perelman. Segundo Perelman, a lógica formal seria incapaz de

resolver o problema da escolha e da decisão, que requer o fornecimento de “razões da

escolha para obter a adesão à solução proposta”. Assim, a Nova Retórica seria “o estudo

das técnicas discursivas que visam a provocar ou a intensificar a adesão de certo auditório

às teses apresentadas.”141 Após o processo de Nuremberg, a maior parte dos teóricos do

direito teria adotado uma orientação antipositivista, que abriria espaço para soluções não

apenas conformes à legislação, mas também equitativas, razoáveis e aceitáveis, social e

moralmente, pelas partes e pelo público esclarecido. Essa nova fase da “ideologia

judiciária” acresceria “a importância do direito pretoriano, fazendo do juiz o auxiliar e o

complemento indispensável do legislador: inevitavelmente, ela aproxima a concepção

continental do direito da concepção anglo-saxã, regida pela tradição da common law.” Com

isso, o recurso às técnicas argumentativas tornar-se-ia indispensável, já que, para que as

decisões se tornem aceitáveis, faz-se necessário motivá-las, mostrando “de que modo a

melhor interpretação da lei se concilia com a melhor solução dos casos particulares”142.

Ainda neste período e também seguindo a toada do contraponto à lógica formal e

dedutiva, mas sem buscar inspiração na retomada da tradição tópica ou retórica, surge a

Lógica Informal, de Stephen Edelston Toulmin143. A questão central levantada por

139 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 45. 140 VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979, pp. 33-44. 141 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica : nova retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 141-181. 142 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica : nova retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 183-186. 143 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 93.

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Toulmin em sua obra “Os Usos do Argumento” é a de “saber até que ponto a lógica pode

esperar ser uma ciência formal e, ainda assim, conservar a possibilidade de ser aplicada na

avaliação crítica de argumentos que efetivamente usamos ou que podem ser usados por

nós.”144 Os lógicos elegeram o silogismo “analítico” ou “dedutivo” como paradigma para

as demais classes de argumentos, por considerá-lo “um tipo de argumento formalmente

válido, inequívoco, analítico”. Mas, conforme Toulmin, os critérios analíticos são

“irrelevantes quando estamos lidando com argumentos substanciais”: os argumentos não

precisam “estar à altura de padrões analíticos”, mas têm que “alcançar a espécie de poder

de convicção ou caráter bem fundado”.145

Este breve panorama mostra como, ao longo do século XX, surgiram teorias que

apontaram para a insuficiência da racionalidade jurídica tradicional. Perspectivas teóricas

bastante diferentes entre si, como a Teoria Egológica do Direito e a Teoria Tridimensional

do Direito, convergiram na direção da preocupação teórico-jurídica não apenas com a

dimensão normativa e formal do direito, mas também com os aspectos fáticos e valorativos

da experiência jurídica. Por outro lado, surgiram vertentes teóricas, também bastante

dispares entre si, que dirigiram suas reflexões para o problema do raciocínio e da

argumentação jurídica, concluindo, por caminhos diferentes, que a lógica formal não daria

conta da prática jurídica.

No que diz respeito aos procedimentos hermenêuticos, que serão aprofundados no

Capítulo seguinte deste trabalho, caminhou-se, segundo a terminologia proposta por Ferraz

Junior, de uma “interpretação de bloqueio” da intromissão do Estado (hermenêutica

tradicional) para uma “argumentação de legitimação” de aspirações sociais à luz da

Constituição. Introduziu-se “na hermenêutica constitucional uma consideração de ordem

axiológica”: “o procedimento argumentativo de captação do sentido do conteúdo das

normas torna-se realização valorativa conforme procedimentos próprios da análise da

ponderação de valores.” Esta captação de sentido passa a ser compreendida como “um

problema de conformação política dos fatos, isto é, de sua transformação conforme um

144 TOULMIN, Stephen Edelston. Os usos do argumento. Tradução de Reinaldo Guarany. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 1-14. 145 TOULMIN, Stephen Edelston. Os usos do argumento. Tradução de Reinaldo Guarany. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 209-359.

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projeto ideológico”, e não mais como “um problema de correta subsunção do fato à norma

– com sua carga lógica, histórica, sistemática, teleológica e valorativa”146.

A compreensão desta mudança de postura hermenêutica, que resulta de profundas

transformações no modo de pensar e viver o Estado e o direito, é importante para os fins do

presente trabalho, pois a base comum sob a qual a antiga ideia de interpretação jurídica

como subsunção do fato à norma se desenvolveu “é aquilo que a doutrina alemã, no século

XIX, elaborou como a figura do legislador racional que contagia por razões de segurança

o juiz como um terceiro imparcial, objetivo, neutro etc.”147

Nas últimas décadas do século XX, surgiram concepções ambiciosas acerca do

Estado de Direito, como a de Ronald Dworkin, que insiste que existem direitos morais e

políticos, bem como que estes direitos devem ser reconhecidos no direito positivo.

Segundo Dworkin, uma “concepção centrada nos direitos”, em oposição a uma “concepção

centrada no texto legal”, insiste que os textos jurídicos não são a fonte exclusiva dos

direitos, já que os cidadãos possuem “direitos morais de fundo” e que muitos casos devem

ser decididos “com base em fundamentos políticos”.148

Outro influente autor das últimas décadas do século XX é Robert Alexy. Este autor

sustenta a tese de que um conceito de direito adequado apenas surge do entrelaçamento da

“dimensão real ou fática” (do “direito como ele é”) e da “dimensão ideal ou discursiva da

correção” (do “direito como ele deve ser”), isto é, da “união entre direito e moral”. O

direito, segundo Alexy, “promove uma pretensão de correção”, que inclui “uma pretensão

de fundamentabilidade”. Este conceito de direito confere destaque não apenas à questão da

decretação do direito “de acordo com a ordem e a eficácia social”, mas também ao

problema da “correção quanto ao conteúdo” do direito. O enlace dessas duas dimensões

seria levado a cabo pela “teoria do discurso do estado constitucional democrático”149.

146 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Argumentação jurídica. Barueri, SP: Manole, 2014, pp. 47-49. 147 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Argumentação jurídica. Barueri, SP: Manole, 2014, pp. 17-20. 148 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 3-17. 149 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, pp. 9-20.

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Todas essas mudanças no modo de entender e de praticar o direito contribuem para

a constatação da existência de uma espécie de desgaste do modelo de direito tradicional.

Este desgaste, consoante Chevallier, também pode ser interpretado como um subproduto

das transformações nas condições de utilização da técnica jurídica em razão do surgimento

do Estado Intervencionista. O uso excessivo do direito como instrumento de realização de

políticas públicas e de alcance de objetivos econômicos e sociais teria destruído as

fundações sobre as quais o direito moderno se edificou. Com isso, “[o] direito perdeu os

atributos de sistematicidade, generalidade e estabilidade, que caracterizavam o direito

moderno”. A “proliferação anárquica de regras” intensificou a indeterminação dos

contornos da ordem jurídica, comprometendo a sua coesão e modificando a sua estrutura:

surge uma “nova desordem” caracterizada pela existência de entrelaçamentos de

hierarquias, indeterminação de objetos jurídicos e concorrência de competências. A lógica

dedutiva, que partiria do mais abstrato ao mais concreto, na típica metáfora da ordem

jurídica piramidal, parece cada vez menos determinante para a produção do direito. As

regras se tornam, cada vez mais, pontuais e particularistas, afastando o caráter da

generalidade: as leis passam a se identificar mais com textos especiais de conteúdo

intensamente técnico e detalhista150.

A globalização do comércio provoca uma transgressão permanente dos espaços

econômicos, políticos e jurídicos. A “regulamentação” é substituída pela “regulação”, em

atendimento às demandas que exigem elevada tecnicidade e prescrições mais adaptáveis do

que a rigidez e o formalismo das tradicionais produções legislativa e regulamentar151.

A globalização do direito levou ao surgimento de múltiplos e descentralizados

âmbitos de tomadas de decisão e produção jurídica, independentes do direito dos Estados-

Nação e até mesmo distantes das regras de direito internacional público: “Law or non-law

– that is the question!”. Padronizações técnicas, produções de regras profissionais, direitos

humanos, regulações intraorganizacionais, contratualizações, arbitragens etc. são formas

privadas de produção jurídica que não recolhem a sua validade da atuação formal do

150 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 120-122. 151 ARNAUD, André-Jean. Governar sem fronteiras – entre globalização e pós-globalização. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, pp. 27-28.

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Estado-Nação, mas de uma estranha e paradoxal atuação de autovalidação. A visão

tradicional do direito veria nessas formas de pluralismo jurídico apenas “não-direito”, isto

é, meras normas profissionais, regras sociais, costumes, usos, obrigações contratuais,

acordos organizacionais, mas não direito152.

Diante da recente emergência do chamado “direito global”, uma posição teórica

centenária como a de Eugen Ehrlich, recebida com crítica e desconfiança pela tradição

jurídica ligada à Europa Continental ao longo do século XX153, passa a ser considerada

empírica e normativamente correta. O direito transnacional que se origina nas transações

econômicas (“Lex mercatoria”) é um claro exemplo de direito global sem Estado. Mas não

apenas o setor econômico tem desenvolvido um direito global alheio ao Estado, como

também os setores da sociedade ligados aos direitos humanos, ecológicos, desportivos etc.

A noção de “direito vivo”, pensada por Ehrlich para explicar práticas locais de pequenas

comunidades rurais, pode ser adotada em um sentido diferente, com o objetivo de permitir

a compreensão do direito global, a partir de uma perspectiva teórica ligada ao pluralismo

jurídico154.

152 TEUBNER, Gunther. Foreword: Legal Regimes of Global Non-state Actors. In: TEUBNER, Gunther (Ed.). Global Law Without a State. Aldershot: Dartsmouth, 1997, p. xiii. 153 As críticas dirigidas à posição teórica de Ehrlich, segundo Campilongo, podem ser sintetizadas nas seguintes acusações: “a) de perder de vista a dimensão normativa do direito; b) de entender o ‘direito vivo’ como simples resultado das mutáveis exigências da produção e do consumo; c) de procurar na ‘fisiologia do direito’, isto é, na regularidade social (e não no ilícito e na sanção), a essência do direito (o que lhe valeu o rótulo de autor reacionário); d) de representar um retorno às metafísicas jusnaturalistas; e) de ‘psicologizar’ a ciência jurídica, aderindo à ideia de que só o ‘reconhecimento’ do grupo – espontâneo, sem regulação externa – caracteriza o direito.” No entanto, consoante Campilongo, “[n]ada disso tira de Ehrlich o mérito de ter intuído, com aproximadamente um século de antecedência, aquilo que, a partir dos anos 1980, passou a ser chamado de crise regulatória do Estado.” Aliás, quase todas as críticas dirigidas a Ehrlich “[...] podem ser redirecionadas aos atuais defensores do pluralismo jurídico.” (CAMPILONGO, Celso. Teoria do direito e globalização econômica. In: CAMPILONGO, Celso. O direito na sociedade complexa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 138-139). 154 TEUBNER, Gunther. ‘Global Bukowina’: Legal Pluralism in the Word Society. In: TEUBNER, Gunther (Ed.). Global Law Without a State. Aldershot: Dartsmouth, 1997, pp. 3-7. Em sua obra “Fundamentos da Sociologia do Direito”, Eugen Ehrlich defende que a ciência do direito, até então, apenas teria tratado de forma profunda da “prescrição jurídica” (isto é, das redações de determinações jurídicas em leis ou códigos), negligenciando ou tratando superficialmente outros fenômenos da vida jurídica. Embora as pessoas se orientem pelas regras de agir decorrentes “[...] dos hábitos, das relações de dominação e jurídicas, dos contratos, dos estatutos, das declarações de última vontade concretos [...]” e a grande maioria das decisões judiciárias constate e leve isso em consideração, a ciência jurídica e o ensino do direito tenderiam a não considerar devidamente essa parcela do direito não criada pelo Estado (EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Tradução de René Ernani Gertz. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986, pp. 362-384). Ademais, Ehrlich sustenta que a concepção tradicional de que o direito seria uma “ordem coatora estatal” não seria correta, uma vez que “[n]ão é inerente ao conceito de direito que ele se origine no Estado, nem que forneça a base para as decisões dos tribunais ou outras instâncias governamentais ou ainda

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O abalo das fundações do “direito moderno”, conforme Chevallier, também seria

identificado pela constatação da insuficiência da “unção estatal e da sacralidade

democrática” para comprovar a racionalidade do direito. Esta racionalidade deixa de ser

presumida e passa a ser analisada pelo “crivo da eficiência, que se torna condição e

garantia de sua legitimidade”155.

O surgimento dos novos modos de produção do direito evidencia o esgotamento da

racionalidade jurídica tradicional, mas, segundo Chevallier, também é o fator que permite a

manutenção da crença na própria racionalidade do direito. A produção normativa passa a

fazer parte de um “cálculo objetivo”, através do recurso a especialistas, instrumentos de

análise e coletas de dados. O acento agora é colocado sobre a exigência de eficiência, razão

pela qual se requer preparação técnica e métodos de avaliação (para a medição dos efeitos

e dos impactos sociais das regras, tanto anterior à elaboração, quanto posterior à entrada

em vigor). Mensura-se a eficiência das políticas públicas e a efetividade da legislação.

Uma racionalidade voltada para os resultados efetivos, típica de um direito plural, flexível,

reflexivo e negociado, aos poucos, assume o lugar da antiga racionalidade formal156.

O formalismo ainda é, em grande medida, a filosofia do direito oficial dos juristas,

dos leigos, dos positivistas e dos jusnaturalistas. Mas ganham força as correntes filosóficas

voltadas para uma perspectiva pragmática do direito, segundo a qual, diante da

impossibilidade de se chegar a interpretações corretas do ponto de vista lógico, a

interpretação jurídica deveria ser entendida como uma decisão que necessita levar em

consideração as consequências das decisões alternativas. As implicações práticas desta

proposta teórica passariam, por exemplo, pelo socorro à análise econômica nas áreas em

que fossem necessárias alocações eficientes de recursos e à análise estatística nas situações

em que esta fosse recomendável para a avaliação adequada dos fatos157.

fundamente a coação jurídica subseqüente [...]” (EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Tradução de René Ernani Gertz. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986, pp. 24-25). 155 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 122. 156 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 175-182. 157 POSNER, Richard. Problemas de filosofia do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 608-617.

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O novo modelo de direito enfatiza menos a racionalidade voltada para as formas do

direito e mais a racionalidade orientada para os fins e para a eficiência do direito. Essa

mudança de perspectiva passa a exigir, cada vez mais, diálogos das áreas de conhecimento

do direito com outras áreas de conhecimento e eleva a complexidade da atividade dos

operadores direito e daqueles atores sociais que lidam com a produção normativa. Os

atributos deste novo modelo de direito ainda estão em fase de consolidação, mas, com

todos os riscos inerentes à empreitada, já é possível traçar um quadro provisório ao menos

dos seus contornos mais gerais.

3.2 Novos aspectos do direito

O esgotamento da racionalidade jurídica formal ensejou uma reformulação do

modelo tradicional de direito. O novo modelo de direito que se desenvolve traz

características muito diferentes daquelas do modelo liberal. Embora as transformações no

direito contemporâneo ainda estejam em curso, já há mudanças significativas no modo de

entender e produzir o direito, que justificam a proposta de investigação deste trabalho,

preocupada com os reflexos da metamorfose do direito na interpretação jurídica.

Ainda que não se entendam as recentes transformações do direito como uma

ruptura total com o modelo da racionalidade jurídica formal, não se pode deixar de notar

que há indícios do surgimento de uma nova racionalidade jurídica. O novo modelo de

direito tende a ser caracterizado como “pragmático”, “flexível”, “brando”, “responsivo”,

“dúctil”, “heterárquico” etc. Ademais, descreve-se a passagem de um “modelo piramidal”

de direito a um modelo de “direito em rede”158.

A partir do final da década de 1970, os ataques à regulamentação herdada do

Estado Intervencionista tornaram-se frequentes. Mas as políticas de desregulamentação

tiveram impacto limitado em face à expansão do direito. Em verdade, a “juridicização”

crescente de diversos domínios da vida social, caracterizada pela inflação normativa,

158 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 124-125.

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passou a conviver com uma transformação do conteúdo do direito, que se

hipersubjetivizou159.

A concepção “monista” e “monológica” do direito, que via no Estado o único

gerador da normatividade jurídica, é substituída por uma perspectiva “pluralista” e

“dialógica”, já que a regulação jurídica passa por diversos atores e por diversos espaços,

sem a coordenação do princípio da hierarquia e sem repousar na transitividade. A

dinâmica da globalização requer um direito “global” e “extraestatal”, construído, em

grande medida, pela iniciativa dos operadores econômicos, pelos usos do comércio

internacional, pelo recurso à arbitragem para a composição de lides, pelas padronizações

técnicas, pelas cartas éticas das empresas (“autorregulação”), pelos códigos de conduta

emitidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE – e

pela Organização Internacional do Trabalho – OIT – (“corregulação”). A associação entre

o direito supraestatal e o direito extraestatal produz uma espécie de “colapso do direito

estatal”. Outros modos de regulação e outras ordens jurídicas suprem e suplantam o direito

estatal, que também passa a ser substituído através da delegação de competências

regulatórias. Além de um direito extraestatal e de um direito supraestatal, desenvolve-se

um direito infraestatal, a partir da produção de regulação jurídica de origem privada ou de

autoridades estatais locais e independentes160.

A emergência de fontes múltiplas de produção jurídica e a substituição de uma

lógica vertical por uma lógica horizontal não implicam o fim do princípio da ordem e a

instauração do completo caos. Embora diferentes níveis de regulação (local, estatal e

global) coexistam, o pluralismo emergente é ordenado, sobretudo por meio de

“mecanismos difusos de ajustamento”, como a consolidação de “princípios comuns”, a

pressão de instituições financeiras pela “good governance”, a expansão do modelo de

direito anglo-saxão e do fenômeno da “hibridação”, a concorrência dos sistemas jurídicos e

a imposição e difusão das “soluções mais eficazes para enfrentar os problemas”161.

159 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 125-144. 160 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 144-154. 161 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 154-160.

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O novo modelo de direito é “pragmático”162, pois é direcionado à preocupação com

a eficácia e, consequentemente, com a substituição da rigidez e da estabilidade da

concepção tradicional da normatividade pela flexibilidade, adaptabilidade e ductilidade. O

direito pragmático é marcado pela expansão do procedimento contratual, “fundado sobre o

diálogo e a procura do consenso”, e da cultura de negociação, baseada na consulta dos

grupos de interesse e na participação dos cidadãos. Este direito não recorre mais apenas

aos comandos jurídicos tradicionais, marcados pela coercitividade e pela unilateralidade,

mas também a técnicas mais brandas (“soft law”), que apenas indicam objetivos, diretivas,

recomendações, requerendo a adesão dos destinatários. O direito brando é inevitavelmente

impreciso, pois recorre a termos vagos e a princípios ou “standards”. Trata-se de um direito

flexível e, por isso mesmo, incerto163.

O “soft law” ou “direito brando” é entendido como uma forma de direito que,

embora implique algumas obrigações e compromissos, não é acompanhada do elemento

sancionador. Ademais, este direito orienta-se pela busca de efeitos práticos e pela

suposição da capacidade de produção de resultados. O direito passa a ser pensado

primeiramente como função, resultado, efetividade, capacidade de assegurar determinadas

prestações, e não como estrutura, formulação normativa, articulação coerente de normas

em um tecido unitário164.

162 A partir de uma perspectiva semiótica da interpretação jurídica, consoante Neves, é possível observar no Estado Democrático de Direito atual “uma tendência no sentido de enfatizar cada vez mais a dimensão pragmática, após a ênfase dada às dimensões sintática e semântica.” (NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. Tradução do autor. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 196). 163 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 160-170. Diante deste quadro, surgem propostas teóricas que associam o direito à imagem da “ductilidade”. A coexistência de valores e princípios (pluralismo) e o compromisso (em oposição à imposição pela força) seriam as características típicas da chamada “ductilidade constitucional”. A partir de perspectivas teóricas como estas, a dogmática constitucional poderia ser associada à ideia de uma “dogmática jurídica líquida ou fluida”: La dogmatica constitucional debe ser como el líquido donde las sustancias que se vierten – los conceptos – mantienen su individualidad y coexisten sin choques destructivos, aunque con ciertos movimientos de oscilación, y, en todo caso, sin que jamás un solo componente pueda imponerse o eliminar a los demás. […] El único contenido solido que la ciencia de una Constitución pluralista debería defender rigurosa y decididamente contra las agresiones de sus enemigos es el de la pluralidad de valores y principios. El único valor simple es el de la atemperación necesaria y el único contenido constitucional que no se presta a ser integrado en otros más comprensivos y que, por consiguiente, puede asumir la dureza de un concepto constitucional combatiente es el de necesaria coexistencia de los contenidos.” (ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos e justicia. 7. ed. Trad. Marina Gascón. Madrid: Trotta, 2007, pp. 14-18). 164 FERRARESE, Maria Rosaria. La governance tra política e diritto. Bologna: Il Mulino, 2010, pp. 36-49.

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Ainda no contexto do Estado Intervencionista, Bobbio já constatava que, ao lado da

imagem tradicional do direito protetor-repressivo (que poderíamos chamar de “hard law”),

surgia uma nova imagem: a do direito promocional. Enquanto o primeiro modelo de direito

estaria centrado nos comportamentos socialmente indesejados e no impedimento da sua

prática, o segundo se voltaria aos comportamentos desejáveis e à sua realização165. O

advento da discussão acerca da função promocional do direito levaria à percepção de que o

direito é responsável pela “organização social” não apenas do poder coativo, do uso da

força (“função repressivo-protetiva”), mas também do poder econômico (“função

promocional”). O ordenamento jurídico, por um lado, teria a função tradicional de

controlar os comportamentos dos indivíduos, por meio de técnicas como a das sanções

negativas (“ordenamento coativo”), por outro lado, teria a função de direcionar os

comportamentos no sentido de determinados objetivos, mediante técnicas como a das

sanções positivas e a dos incentivos (“ordenamento diretivo”)166.

Como apontado no Capítulo 2 deste trabalho, a noção de “direito da regulação”,

que tem sido utilizada para sintetizar as novas características adquiridas

contemporaneamente pelo direito, está ligada à interação entre atores políticos e

econômicos. Trata-se de um direito que se desenvolve em um contexto de diluição das

fronteiras entre Estados e mercados e de emergência de comunidades de regulação,

compostas por atores governamentais e não-governamentais, que compartilham a

autoridade de tomar decisões. Novas formas de regulação jurídica se desenvolvem para

atender às demandas geradas pelas mudanças no relacionamento “Estado-mercado” (ou

seja, na relação “política-economia”), revertendo, assim, as fronteiras do Estado

Intervencionista. Desenvolvem-se várias formas de “desregulação” do Estado

Intervencionista, abrindo-se espaço para uma nova regulação estatal, não associada ao

incentivo de dispêndios públicos, mas às agências reguladoras independentes e à

preocupação com a conformidade do exercício de poderes públicos com a racionalidade de

165 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri, SP: Manole, 2007, pp. 13-15. 166 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri, SP: Manole, 2007, pp. 75-79.

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mercado, expressa pelos princípios da eficiência, efetividade e economicidade167. Assim,

em paralelo ao desenvolvimento de um Estado Regulador, o direito sofre profundas

transformações na contemporaneidade.

Este novo direito pode ser caracterizado também como um “direito responsivo”. Há

o surgimento de uma espécie de direito de caráter “responsivo”, que assume o risco e a

necessidade da promoção de adaptações responsáveis. Conforme Nonet e Selznick, “[u]ma

instituição responsiva conserva a capacidade de compreender o que é essencial à sua

integridade e ao mesmo tempo leva em consideração as novas forças do ambiente social”.

O direito responsivo tem como base a sustentação mútua entre “integridade”/“fechamento”

e “adaptação”/“abertura”, mesmo quando conflitantes. As pressões sociais servem como

fontes de conhecimento e oportunidades de autocorreção deste direito, o que deixa claro

que a transição para o sistema jurídico responsivo é uma estratégia evolutiva que pode ser

considerada de “alto risco”168.

O “ideal maior” do direito responsivo continua sendo o da legalidade, mas despido

de “formalismos” e voltado para a “justiça substancial”. Neste contexto, surge a regulação

como uma função paradigmática deste direito, enquanto processo de elaboração e correção

de “políticas necessárias à concretização de uma finalidade jurídica”, isto é, como “um

mecanismo de clarificação do interesse público”169.

Embora as linhas arquitetônicas do novo modelo de direito ainda estejam em

processo de consolidação ou mesmo de gestação, já é possível apontar para alguns dos seus

contornos. Muitas das suas características estão associadas aos atributos do novo modelo

de Estado que tem se desenvolvido nas últimas décadas. Trata-se de um modelo de direito

“heterárquico”: “em cujo âmbito não há vértice nem centro, motivo pelo qual ninguém tem

condição de pretender ser o gestor único e exclusivo de toda a sociedade”. A ordem 167 LANGE, Bettina. Regulatory spaces and interactions: an introduction. Social & Legal Studies, v. 12, n. 4, p. 411-423, dez. 2003, pp. 412-413. 168 NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, pp. 124-127. 169 NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, pp. 163-165. A noção de “responsividade” desenvolvida por Nonet e Selznick será retomada no Capítulo 4 deste trabalho, quando abordarmos a hipótese do administrador/julgador eficiente e a necessidade do desenvolvimento de uma dogmática jurídica responsiva.

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jurídica “heterárquica” é caracterizada por decisões que “tendem a se desdobrar numa

pluralidade seqüencial de outras decisões decorrentes das primeiras ou atreladas a elas,

conforme o curso dos acontecimentos”. O modelo se destaca por suas feições pluralistas: a

produção normativa se dá, cada vez mais, através de decisões não-governamentais e de

instâncias não-legislativas. Surgem espécies de “redes de legalidade justapostas ou

paralelas”170.

Este novo modelo de direito está diretamente ligado à emergência de uma

governança global, analisada no Capítulo 2 desta dissertação. A característica heterárquica

da chamada “governança de rede” gera a desestabilização da hierarquia normativa

tradicional. O surgimento de diversas formas de direito infranacional e supranacional cria

interações complexas por meio de uma variedade de instâncias regulatórias e

adjudicatórias, em diferentes níveis. Essa “característica caleidoscópica” traz consigo a

dificuldade de se estabelecer a coerência de um direito que se produz, ao mesmo tempo,

em competição e em coordenação. Outra característica típica desta governança é a

confusão ou a diluição dos limites entre as diferentes categorias de normas, especialmente

entre o “hard law” e o “soft law” e entre o direito público e o direito privado. A

emergência da regulação leva a uma mistura dessas formas de direito. Esta governança

multinível está associada, ainda, à fragmentação e à tecnicização das funções estatais171.

A regulação jurídica da sociedade já não compete apenas ao Estado. O Estado

Regulador convive com diversos outros centros de decisão e de produção de regulação

jurídica, “que se encontram acima, abaixo, e até além ou à margem do Estado”172. O

pluralismo jurídico é um elemento importante para a compreensão deste Estado, que vê

surgir formas alternativas ou informais de solução de conflitos. Trata-se do

desenvolvimento progressivo de uma regulação jurídica à margem do direito oficial173. Os

outros atores e as outras formas de regulação estão “em uma relação de

complementaridade, de imbricação, mesmo de substituição com a regulação estatal”. A

170 FARIA, José Eduardo. Sociologia jurídica: direito e conjuntura. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 7. 171 PICCIOTTO, Sol. Law and legitimacy in multi-level governance. Centre for Globalisation & Regionalisation, University of Warwick, Maio 2007, pp. 4-5. 172 ARNAUD, André-Jean. Governar sem fronteiras – entre globalização e pós-globalização. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 145. 173 ARNAUD, André-Jean. From Limited Realism to Plural Law. Normative Approach versus Cultural Perspective. Ratio Juris, v. 11, n. 3, September, pp. 246-258, 1998, p. 252.

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autorregulação, fundada na auto-organização e na autodisciplina dos grupos profissionais,

e a corregulação, baseada na intervenção conjunta de atores públicos e privados, convivem

com a regulação estatal174.

Essas transformações explicitam que a validade jurídica apresenta uma forma

assimétrica, que apenas pode ser descrita mediante o recurso à ideia de círculo. Consoante

Luhmann, a validade jurídica é o símbolo da unidade do direito e as decisões jurídicas

aplicáveis transportam-na, sejam elas decisões de legisladores ou tribunais, sejam elas

conformações de corporações ou produções de contratos, que também são responsáveis por

modificações de situações jurídicas. A realização recursiva das operações próprias do

sistema jurídico resulta neste valor distintivo do direito, que não pode ser utilizado em

outros âmbitos da sociedade. A validade é um símbolo que circula no interior do sistema

jurídico e que não pode ser adequadamente descrito por meio das teorias clássicas da

hierarquia da validade. As ideias de “hierarquia” e de “norma superior”, que eram

mobilizadas para oferecer uma fundamentação normativa para a validade, são substituídas

pela noção de tempo, já que a única prova da validade se encontra na própria modificação

do estado de validade do sistema, na permanente produção de operações do sistema

jurídico com base nas próprias operações deste sistema, ou seja, na autopoiese do direito.

A busca pela fundamentação normativa da validade apenas resultaria no regresso ao

infinito, já que a única base para a validade está na noção de tempo175.

O novo modelo de direito que se desenvolve no final do século XX e no início do

século XXI é compatível com a descrição da teoria dos sistemas, segundo a qual, o direito

não estaria determinado “hierarquicamente”, mas sim “heterarquicamente”, isto é, através

de uma “autoafirmação circular”: em forma colateral e em forma de redes. O principal

processo do sistema de organização das decisões do sistema jurídico, por exemplo, está na

“reprodução circular e recursiva das decisões jurídicas”, e não na descrição que este

sistema tradicionalmente faz de si mesmo como hierarquia de órgãos ou de normas176.

174 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 73. 175 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 154-167. 176 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 200-207.

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Diante deste complexo quadro de transformações no Estado e no direito, não se

pode negar que ocorreram também profundas mudanças no modo de interpretar o direito.

Mas, antes de abordar os principais aspectos da metamorfose desta operação comunicativa

na contemporaneidade, o que será levado a cabo no Capítulo 4 deste trabalho, cumpre-nos

investigar como as novas facetas do direito se manifestam no Brasil, inclusive para

exemplificar melhor as mudanças na política e no direito descritas por este trabalho.

3.3 O caso do direito brasileiro

O direito brasileiro não escapa às transformações sociais até aqui descritas. Muitos

são os campos em que seria possível a constatação das mudanças no perfil do Estado e do

direito brasileiro contemporâneo. O setor da saúde é uma das áreas que permitem

interessantes reflexões na atualidade acerca dos novos modelos de Estado e de direito que

tomam forma na realidade contemporânea, inclusive em países economicamente

periféricos como o Brasil177.

No segundo semestre de 2014, um surto do vírus Ebola em países da África

Ocidental – Libéria, Guiné e Serra Leoa – chamou a atenção da Organização Mundial de

Saúde (OMS) e de países como o Brasil, que tomaram medidas para evitar que o vírus se

espalhasse através de viajantes. O Ministério da Saúde, a Agência Nacional de Vigilância

Sanitária (ANVISA) e os serviços locais de vigilância sanitária editaram portarias, notas

técnicas e protocolos para regular os atendimentos dos casos suspeitos da doença causada

pelo vírus178.

177 Não nos referimos aqui à noção de “modernidade periférica” desenvolvida por Neves (NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, pp. 140-148), mas à ideia de “periferia econômica e tecnológica” sustentada por Campilongo (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 165-174). A sociedade moderna, consoante Luhmann, não é compatível com o antigo “esquema centro/periferia”, “[...] a no ser que la sociedad se defina exclusivamente bajo la óptica del desarrollo económico y tecnológico (aun en ese caso se hace referencia a la poca estabilidad geográfica de tales centros) [...]”: “Todo habla a favor de que la división de la sociedad mundial en centros y periferias se rige (y se ordena) por la forma dominante de la diferenciación por funciones.” (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 395). 178 WHO (OMS). World Health Organization (Organização Mundial de Saúde). Doença do Vírus Ébola – Lista de Verificação Consolidada da Preparação. Revisão 1. 15 de Janeiro de 2015. Disponível em: <http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/137096/14/WHO_EVD_Preparedness_14_por.pdf>. Acesso em: 01 dez. 2015. O Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 1.271, de 06 de junho de 2014, incluiu a doença

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A facilidade e a rapidez das viagens internacionais trazem consigo riscos. A

Administração Pública não poderia ficar inerte diante da necessidade de uma rápida

resposta à situação classificada pela OMS como emergência de saúde pública de interesse

internacional. O setor hospitalar precisou, em poucas semanas, tomar conhecimento das

medidas de biossegurança e dos procedimentos de notificação compulsória e de

encaminhamento dos casos de suspeita da doença para os centros referenciados179.

causada pelo vírus Ebola no rol de doenças que devem ser imediatamente objeto de notificação direcionada ao Ministério da Saúde, à Secretaria Estadual de Saúde e à Secretaria Municipal de Saúde. Consoante o Informe Técnico disponibilizado pelo Ministério da Saúde, “[o] vírus Ebola foi identificado pela primeira vez em 1976, no Zaire (atual República Democrática do Congo), e, desde então, tem produzido vários surtos no continente africano. Esse vírus foi transmitido para seres humanos que tiveram contato com sangue, órgãos ou fluidos corporais de animais infectados, como chimpanzés, gorilas, morcegos-gigantes, antílopes e porcos-espinhos. Em seres humanos o período de incubação pode variar de 2 a 21 dias. Existem cinco espécies de vírus Ebola (Zaire ebolavirus, Sudão ebolavirus, Bundibugyoebolavirus, Restonebolavirus e Tai Forest ebolavirus), sendo o Zaire ebolavirus o que apresenta a maior letalidade, geralmente acima de 60% dos casos diagnosticados.” (BRASIL. Ministério da Saúde. Ebola: Informe técnico e orientações para as ações de vigilância e serviços de saúde de referência. Disponível em: <http://portalsaude.saude.gov.br/>. Acesso em: 08 jan. 2016). 179 WHO (OMS). World Health Organization (Organização Mundial de Saúde). Doença do Vírus Ébola – Lista de Verificação Consolidada da Preparação. Revisão 1. 15 de Janeiro de 2015. Disponível em: <http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/137096/14/WHO_EVD_Preparedness_14_por.pdf>. Acesso em: 01 dez. 2015. A ANVISA elaborou a Nota Técnica nº 03/2014 acerca do tema, estabelecendo medidas de precaução padrão, diretrizes para o isolamento do paciente, orientações sobre o uso de equipamentos de proteção individual na assistência ao paciente, informações sobre a técnica e a preparação necessária para a higienização das mãos dos profissionais e orientações referentes a processamentos de produtos e equipamentos, limpeza e desinfecção de superfícies, descarte de roupas utilizadas, manejo de resíduos e procedimentos pós-óbito (BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nota Técnica Ebola nº 03/2014 – GGTES/ANVISA – Medidas de prevenção e controle a serem adotadas na assistência a pacientes suspeitos de infecção pelo Vírus Ebola. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/>. Acesso em: 06 jan. 2016). Ademais, levando em consideração o “cenário de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional pelo vírus Ebola em alguns países da África Ocidental”, a ANVISA editou também a Nota Técnica nº 02/2014, que dispôs sobre a prevenção e o controle do vírus Ebola em “Pontos de Estrada” (portos, aeroportos e fronteiras), estabelecendo protocolos e procedimentos para os casos suspeitos ou prováveis de Ebola identificados em áreas aeroportuárias, aeronaves, embarcações e fronteiras (BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nota Técnica 02/2014 – Prevenção e Controle do Ebola em Pontos de Entrada. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/>. Acesso em: 06 jan. 2016). Já o Centro de Vigilância Epidemológica da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo editou Informe Técnico estabelecendo que os serviços de saúde devem disponibilizar equipamentos de proteção individual específicos para os profissionais (de saúde e de serviço de higiene e limpeza). Estes profissionais, por sua vez, devem entrar em contato com casos suspeitos de doença pelo vírus Ebola seguindo uma sequência de medidas de precaução estabelecida no Informe Técnico. O Informe Técnico também dispõe sobre os procedimentos de: i) notificação do Centro de Vigilância Epidemológica do Estado acerca de casos de suspeita da doença; e ii) remoção dos pacientes, que devem ser encaminhados para o Hospital de Referência para atendimento dos casos de suspeita da doença no Estado (SÃO PAULO. Centro de Vigilância Epidemológica - Secretaria de Estado da Saúde – Governo do Estado de São Paulo. Vigilância da Doença pelo Vírus Ebola (DVE) – Informe Técnico. Atualizado em 26/11/2014. Disponível em: <http://www.cve.saude.sp.gov.br/>. Acesso em: 06 jan. 2016).

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O episódio deixou claro para as assessorias jurídicas de direito regulatório dos

hospitais de grandes centros urbanos como São Paulo que o direito vem, em grande

medida, a reboque dos fatos. À medida que a situação se agravava, sucessivas

recomendações dos órgãos de vigilância sanitária eram editadas e revisadas. O

planejamento e as políticas de saúde foram surgindo enquanto iam sendo noticiadas as

diversas mortes na África e alguns casos de contágio de viajantes em outros continentes.

Caso o mapa da doença fosse outro, com casos registrados no país, o Brasil provavelmente

teria adotado protocolos de segurança ainda mais rígidos em seus hospitais, aeroportos,

portos e fronteiras.

Casos como este requerem apoio e cooperação internacional, não apenas

envolvendo a enérgica atuação dos Estados e dos organismos internacionais, mas também

a participação ativa de entidades privadas, trazendo impactos nos setores econômicos da

saúde e dos transportes. Mas, afinal, estamos diante de comunicação jurídica? Uma opção

seria identificar a produção de portarias, notas técnicas e protocolos como operações de

outros sistemas sociais (economia, ciência, saúde). Mas como negar que estes instrumentos

modificaram a situação jurídica de setores específicos da economia, de viajantes, de

pacientes e de profissionais de saúde? A desobediência às “recomendações”, por exemplo,

poderia ensejar a aplicação de sanções de natureza sanitária, civil e penal180. Trata-se de

direito, ainda que diferente dos padrões tradicionais: um direito “fático-intensivo”, que,

ainda que sob o pretexto de “orientar” e “recomendar”, prescreve, impõe, determina, isto é,

180 A Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977, por exemplo, em seu artigo 10, inciso XXXII, dispõe que se trata de infração sanitária o “[...] descumprimento de normas legais e regulamentares, medidas, formalidades, outras exigências sanitárias, por pessoas física ou jurídica, que operem a prestação de serviços de interesse da saúde pública em embarcações, aeronaves, veículos terrestres, terminais alfandegados, terminais aeroportuários ou portuários, estações e passagens de fronteira e pontos de apoio de veículos terrestres: Pena - advertência, interdição, cancelamento da autorização de funcionamento e/ou multa.” O Código Penal, por sua vez, prevê, em seu artigo 268, no Capítulo “Dos crimes contra a saúde pública”, a chamada “infração de medida sanitária preventiva”: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.” Neste mesmo Capítulo há, ainda, no artigo 269, a previsão da intitulada “omissão de notificação de doença”: “Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.” Ademais, o Código Civil, em seu artigo 927, parágrafo único, estabelece a obrigação de reparar danos, independentemente de culpa, “quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.” Ademais, o caput deste artigo dispõe que “[a]quele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.” Já o artigo 186 do Código Civil disciplina os atos considerados ilícitos: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

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possibilita a estabilização de expectativas normativas, com base no código lícito/ilícito. Há

uma espécie de diálogo entre as “fontes tradicionais” de direito e essas “novas fontes” de

produção jurídica, que permite que essas normas aparentemente “descritivas” obriguem,

prescrevam181.

As autoridades reguladoras de saúde enfrentam dificuldades similares àquelas de

outros setores econômicos, como: i) a especificidade das matérias reguladas e a

dependência em relação aos conhecimentos técnicos e científicos; ii) a velocidade das

transformações socioeconômicas e das evoluções tecnológicas; iii) a vinculação às

atuações e cooperações internacionais, já que lidam com matérias sensíveis, que costumam

ser objeto não apenas de leis nacionais, mas também de acordos bilaterais, acordos

multilaterais e decisões de organismos supranacionais; e iv) a proximidade em relação às

empresas do setor regulado e a necessidade de produção de decisões em constante diálogo

com estes agentes econômicos, mediante convocações de audiências e consultas públicas.

Essas dificuldades enfrentadas pelas autoridades responsáveis pela regulação

desafiam também os intérpretes do direito, já que nem sempre permitem a segurança, a

certeza e a racionalidade tipicamente buscadas pelos aplicadores e dogmáticos do direito.

Este novo modelo de direito é caracterizado pela acentuação do aspecto da mutabilidade e

da flexibilidade, em razão da necessidade de adaptações às rápidas mudanças das

realidades técnica, científica, econômica e social, bem como às pressões internacionais e às

demandas dos próprios setores regulados.

A ANVISA é um exemplo de agência responsável por atividades de regulação que

permite reflexões sobre as mencionadas dificuldades. Essa “autarquia sob regime

especial”, criada pela Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, está vinculada ao Ministério

da Saúde e atua nos setores relacionados a produtos e serviços que tenham o potencial de

afetar a saúde da população brasileira. A Casa Civil da Presidência da República brasileira

escolheu a ANVISA como a “agência-piloto” para a implantação da chamada Análise de

181 A metáfora das “fontes do direito” é utilizada aqui apenas com o objetivo de não nos afastarmos muito da semântica tradicionalmente adotada pelo próprio sistema jurídico, uma vez que “[e]n la lógica de los sistemas autopoiéticos habría que decir que la única ‘fuente’ de operación de un sistema es el sistema mismo.” (NAFARRATE, Javier Torres. Luhmann: la política como sistema. Universidade Iberoamericana; Faculdad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, FCE, 2004, p. 265).

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Impacto Regulatório (AIR) no âmbito do governo federal brasileiro. Por isso, desde 2007,

as práticas regulatórias da agencia têm buscado discutir e incorporar, gradativamente, a

AIR, que “é uma ferramenta que examina e avalia os prováveis benefícios, custos e efeitos

no contexto do desenvolvimento e implementação de políticas públicas ou no contexto da

atuação regulatória.” Trata-se de um “processo de gestão de riscos regulatórios com foco

em resultados, orientado por princípios, ferramentas e mecanismos de transparência,

participação e accountability.”182

Para colocar em prática esse “conjunto de procedimentos que antecede e subsidia o

processo de tomada de decisão”, a ANVISA, a Casa Civil e os Ministérios da Fazenda e do

Planejamento, Orçamento e Gestão têm organizado uma agenda de debates, eventos e

estudos relacionados ao tema. Um dos focos principais dessas discussões está relacionado

à necessidade de reflexão sobre as experiências internacionais ligadas a esses processos de

tomada de decisão regulatória, que requerem disponibilização de dados empíricos,

avaliação das opções existentes e das possíveis consequências e promoção de consultas

públicas183.

Essas iniciativas em torno da “melhoria regulatória” no Brasil seguem as linhas da

busca por “regulação mais eficiente no domínio econômico” que vêm sendo discutidas por

países economicamente centrais, como os Estados Unidos e os países europeus, e por

organismos internacionais, como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento

Econômico (OCDE). Busca-se evitar que a regulação resulte em “custos desnecessários à

atividade econômica”, por exemplo, mediante o estabelecimento de “parâmetros

fundamentais de uma boa prática regulatória”, como os princípios gerais de boa

governança regulatória: “accountability”, “transparência”, “eficiência/efetividade”,

“responsividade”, “visão de futuro” e “império da lei”.184

182 BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Análise de Impacto Regulatório. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/Anvisa+Portal/Anvisa/regulacao+sanitaria/Assuntos+de+interesse/Analise+de+Impacto+Regulatorio/Assuntos+de+interesse/Analise+de+Impacto+Regulatorio>. Acesso em: 07 jan. 2016. 183 BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Análise de Impacto Regulatório. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/Anvisa+Portal/Anvisa/regulacao+sanitaria/Assuntos+de+interesse/Analise+de+Impacto+Regulatorio/Assuntos+de+interesse/Analise+de+Impacto+Regulatorio>. Acesso em: 07 jan. 2016. 184 A AIR, consoante Ramos, pode ser baseada, por exemplo, em técnicas comparativas: “análise de custo-benefício”, “análise de custo-efetividade”, “análise de impacto nos negócios” etc. (RAMOS, Marcelo.

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A complexidade e a velocidade das mudanças deste novo modelo de direito

representam dificuldades para a consolidação de uma dogmática jurídica adaptada a esta

nova realidade social e normativa, mas que não dispense o rigor na produção de conceitos

jurídicos. Estamos, aparentemente, no ápice da imposição da orientação do direito para o

futuro, que, segundo Luhmann, seria uma etapa do “curso da autorealização da sociedade

burguesa”, marcada por “uma mudança da orientação social básica do passado ao futuro, o

que conduz a que as decisões jurídicas em última análise apenas possam justificar-se por

suas consequências, e não a partir do acervo de dados de tipo normativo e fático.”185

A intensificação da produção deste tipo de direito leva ao questionamento de se os

modelos de interpretação jurídica desenvolvidos no contexto do Estado Liberal e do Estado

Intervencionista seriam capazes de fornecer respostas adequadas à nova realidade jurídica

que se desenvolve em paralelo à configuração de um novo modelo estatal.

Vivemos tempos de “normas narrativas”, que trazem valores, orientações e ajudas e

que indicam outros textos para aplicação: “soft law”, “códigos de conduta”, “códigos

deontológicos”, “normas criadas por cientistas”, “notas técnicas”, “protocolos” etc. Essas

normas de caráter diretivo, típicas de uma sociedade altamente complexa, exigem,

consoante Jayme, o chamado “diálogo das fontes”, isto é, o recurso à Constituição, aos

direitos humanos, aos direitos supranacionais e ao direito nacional. Há uma

complementaridade entre os novos textos jurídicos e os textos jurídicos tradicionais, que

permite suprir as imprecisões de um direito que brota à margem dos códigos supostamente

claros, mas também preencher as necessárias lacunas destas codificações186.

Essa complementaridade, por exemplo, está claramente presente na interpretação

jurídica relacionada à área da saúde no Brasil. A ANVISA é responsável não apenas pela

Governança regulatória: experiências e contribuições para uma melhor qualidade regulatória. In: RAMALHO, Pedro Ivo Sebba (Org.). Regulação e Agências Reguladoras: governança e análise de impacto regulatório. Brasília: Anvisa, 2009, pp. 197-201). 185 LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. 21-23. 186 JAYME, Erik. Entrevista com o Prof. Erik Jayme. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, Porto Alegre, v. 1, n. 1, nov. 2013. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/ppgdir/article/view/43484/27363>. Acesso em: 30 nov. 2015, pp. 65-66.

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produção de regulação econômica, mas também regulação sanitária, já que, consoante o

artigo 6º da Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, deve realizar o “controle sanitário da

produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária”

(inclusive dos ambientes, processos, insumos e tecnologias relacionados a tais produtos e

serviços) e “o controle de portos, aeroportos e de fronteiras”. O intérprete dos textos

jurídicos produzidos por esta autarquia se depara com a necessidade de confrontá-los, por

exemplo, com a legislação relacionada ao direito da saúde, direito do consumidor, direito

da concorrência, direito penal, direito administrativo, bem como com os textos produzidos

por outras agências reguladoras, como a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS),

Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Agência Nacional de Transportes

Terrestres (ANTT) etc.

A interpretação jurídica dos textos produzidos pela ANVISA acerca da adequação

dos hospitais e demais serviços de saúde às normas relacionadas ao vírus Ebola, por

exemplo, enfrenta o obstáculo de ter que se dirigir a uma produção normativa desordenada,

fragmentada, em diferentes níveis (local, estatal e global) e associada a conhecimentos

específicos (médicos, técnicos e científicos).

A cooperação regulatória internacional em torno do vírus Ebola evidencia o caráter

global de problemas relacionados à saúde. Não são apenas as questões financeiras,

econômicas e ambientais que podem desenvolver problemas sistêmicos internacionais, mas

também as questões de saúde, de transportes, de consumo etc. Com frequência, a regulação

é desenvolvida para dar resposta a um risco percebido, como, por exemplo, o de que

doenças com altas taxas de letalidade se espalhem pelo planeta. Por isso, a OCDE

recomenda que “[o]s governos devem desenvolver sistemas para a aplicação de princípios

científicos de estimação de riscos”, já que a redução de risco em uma área pode aumentar o

risco em outras áreas. A regulação deve aproveitar as experiências passadas e tentar evitar

eventos catastróficos no futuro187.

187 O Conselho sobre Política Regulatória e Governança da OCDE recomenda aos membros deste organismo internacional que apliquem “[...] conforme apropriado, a avaliação de riscos, gestão de riscos e estratégias de comunicação de risco para a concepção e implementação das regulações para garantir que a regulação seja direcionada e efetiva. Os reguladores devem avaliar os efeitos da regulação e devem elaborar estratégias para implementação responsiva e enforcement.” Ademais, o referido Conselho defende que “[e]m uma economia cada vez mais globalizada, a cooperação internacional na área da regulação deve tornar-se parte integrante da

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Em termos sistêmicos, o risco pode ser considerado uma das formas possíveis de

vincular o tempo (ao lado da norma jurídica e da propriedade): decisões presentes

objetivam vincular o futuro. No entanto, o futuro não está à disposição no presente, razão

pela qual a regulação orientada pela preocupação com os riscos, em verdade, avalia o

passado, com o objetivo de evitar ou de não causar danos futuros188. Embora não seja

possível eliminar a possibilidade de consequências negativas e o sistema deva “operar em

condições de incerteza”, a perspectiva do risco permite uma construção do futuro, ainda

que esta construção requeira constantes revisões e, portanto, reconstruções189.

Os riscos relacionados ao sistema da saúde (especializado no tratamento das

doenças), segundo De Giorgi, tornaram-se “riscos econômicos”. As doenças, como a

relacionada ao vírus Ebola, converteram-se, por meio de decisões políticas, em “problemas

econômicos”, cujos custos são calculáveis190. Mas elas também são “problemas jurídicos”,

que carecem de interpretação, em razão, igualmente, de decisões políticas.

Grande parte da produção jurídica brasileira continua fortemente ligada às leis e aos

códigos, mas surge uma parcela considerável do direito que assume um caráter bastante

diverso daquela parcela tradicional. Ainda que haja um necessário diálogo com as “fontes

tradicionais” do direito (leis e códigos), as “novas fontes” lançam desafios aos teóricos do

gestão de risco sistêmico e de planejamento de longo prazo da política.” (OECD (OCDE). Organisation for Economic Co-operation and Development (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Recomendação do Conselho sobre Política Regulatória e Governança. 2012. Disponível em: <http://www.regulacao.gov.br/acompanhe-o-pro-reg/documentos/portugues/recomendacoes-do-conselho-sobre-politica-regulatoria-e-governanca/view>. Acesso em: 08 jan. 2016). Embora o Brasil não seja membro da OCDE, esta organização internacional tem reforçado a cooperação com o país (OECD (OCDE). Organisation for Economic Co-operation and Development (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Chair's summary of the OECD Council at Ministerial Level, Paris, 15-16 May 2007 - Innovation: Advancing the OECD Agenda for Growth and Equity . Disponível em: <http://www.oecd.org/newsroom/chairssummaryoftheoecdcouncilatministeriallevelparis15-16may2007-innovationadvancingtheoecdagendaforgrowthandequity.htm>. Acesso em: 08 jan. 2016). 188 ESPOSITO, Elena. Riesgo/peligro. In: CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Claudio. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. Tradução de Miguel Romero Pérez e Carlos Villalobos. México: Universidad Iberoamericana; Guadalajara: Iteso; Barcelona: Anthropos, 1996, pp. 141-143. 189 DE GIORGI, Raffaele. O risco na sociedade contemporânea. Tradução de Cristiano Paixão, Daniela Nicola e Samantha Dobrowolski. In: DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco – vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pp. 197-199. 190 DE GIORGI, Raffaele. O risco na sociedade contemporânea. Revista de Direito Sanitário, Brasil, v. 9, n. 1, p. 37-49, jun. 2008. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/13100>. Acesso em: 08 jan. 2016, pp. 48-49.

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direito, empresários, cidadãos, legisladores, administradores e julgadores, que, mais do que

nunca, encontram dificuldade para conhecer, interpretar e aplicar o direito brasileiro.

Deste modo, a realidade jurídica brasileira não está muito distante daquelas de

países economicamente centrais. O direito brasileiro, a nosso ver, acompanha as

transformações do modelo de direito que se desenvolve na maior parte dos países. O

exemplo da regulação do setor da saúde do Brasil nos parece ser representativo deste

acompanhamento da tendência global em direção a um direito pragmático, brando e

heterárquico.

A constatação dessas mudanças no caráter de boa parte do direito brasileiro nos

lança algumas dúvidas importantes acerca da interpretação jurídica. Como lidar com a

figura retórica do legislador racional quando grande parte do direito não é mais produzida

por legisladores? De que modo interpretar um direito que não assume as conhecidas

características da abstração em face dos fatos e da generalidade em face dos indivíduos?

De que maneira manter a racionalidade jurídica da interpretação do direito quando são

positivadas normas que parecem mais relacionadas a outros sistemas e a outras

racionalidades sociais? Como o sentido dos códigos depende do sentido dos novos textos

jurídicos e como o sentido dos novos textos jurídicos depende do sentido dos códigos?

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4. HIPÓTESE DO ADMINISTRADOR/JULGADOR EFICIENTE

A interpretação jurídica tem um ponto de partida claro: os textos normativos.

Contudo, a busca de sentido válido ou razoavelmente adequado destes textos pode ser

entendida como apenas uma das facetas desta complexa operação comunicativa. Interpreta-

se o direito com uma finalidade: permitir a decisão de conflitos jurídicos (potenciais ou

efetivos).

As transformações sociais descritas ao longo deste trabalho permitem que se

conclua que há uma tendência geral no discurso jurídico contemporâneo: o cálculo da

racionalidade jurídica passa a enfatizar aspectos ligados aos fins e aos efeitos do direito. A

preocupação com a autonomia e a segurança do direito, que centralizava o debate jurídico

em torno da forma, do texto normativo, do fechamento operacional, da legalidade, da

estatalidade, passa a dividir maior espaço com o levantamento de questões relacionadas à

eficiência e às interconexões do direito. O conteúdo, a finalidade, a abertura cognitiva, a

argumentação e o pluralismo passam a compartilhar espaço com as antigas preocupações

de um modelo jurídico liberal.

O presente trabalho não tem o objetivo de afirmar que as transformações ocorridas

no Estado, no direito e na interpretação jurídica tenham resultado em aquisições evolutivas

superiores ou inferiores, melhores ou priores, mas apenas a intenção de tentar compreender

as vantagens e desvantagens dessas mudanças e as implicações, positivas e negativas, que

trazem para a interpretação jurídica.

O recurso à ficção do legislador racional serviu de base racional para a

fundamentação metodológica da atividade de interpretação jurídica sob a égide do

paradigma das leis e dos códigos191. Trata-se de um instrumento teórico e operacional que

se revelou útil para juristas dogmáticos e aplicadores do direito, ajudando a esconder

alguns paradoxos do direito que poderiam levar à perplexidade, à hesitação e à indecisão.

191 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2010, p. 247.

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No entanto, diante do desgaste enfrentado por este paradigma, marcado pela

passagem da centralidade da lei e do código à centralidade da jurisdição (em sentido

amplo) dos tribunais judiciais, das câmaras de arbitragem, das agências administrativas e

dos órgãos da administração direta192, surge o questionamento acerca da conveniência da

manutenção do instrumento retórico do legislador racional, que ainda serve à ideologia

política da clássica separação dos poderes, “segundo a qual somente ao poder legislativo,

como representante do povo, cabe a determinação das soluções prévias para os conflitos

dentro de uma comunidade, não sendo dado nem ao juiz, muito menos ao jurista (com

função meramente teórica) modificá-las.”193

Assim, o presente Capítulo buscará uma resposta para a seguinte questão: diante

das recentes transformações do Estado e do direito, a pressuposição dogmática da

racionalidade do legislador seria suficiente como base racional para a interpretação

jurídica? Algum outro modelo dogmático hermenêutico estaria se desenvolvendo no

imaginário dos juristas do final do século XX e do início do século XXI?

Se ainda não é possível afirmar que a dogmática jurídica tenha abandonado a

hipótese do legislador racional, pode-se ao menos sustentar que uma nova figura começa a

ganhar espaço no discurso jurídico contemporâneo: a do “administrador/julgador

eficiente”. Obviamente, esta não é uma hipótese livre de opção ideológica: ao invés de

centrar o debate acerca da interpretação jurídica na ficção da unidade codificadora da

vontade do legislador, procura associá-lo aos ideais de administração e jurisdição

eficientes, de gestão e decisão eficazes.

Mas antes de analisar o possível novo modelo dogmático hermenêutico do

administrador/julgador eficiente, o presente Capítulo analisará a figura retórica que se

desenvolveu principalmente nos países de tradição romano-germânica: a do legislador

racional.

192 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Prefácio de um Posfácio. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O Direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, pp. XIV-XVI. 193 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 298-299.

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4.1 Interpretação jurídica e legislador racional

A figura do legislador racional surge como um dos importantes instrumentos da

teoria jurídica que se desenvolve nos países da família romano-germânica, cujo caráter é

eminentemente dogmático. A tradição jurídica brasileira está associada a esta família e a

este modo dogmático de lidar com o conhecimento jurídico, razão pela qual uma tentativa

de compreensão da interpretação jurídica produzida no Brasil exige reflexões orientadas

para a tradição do direito codificado, da dogmática jurídica e do legislador racional.

Os juristas dos países que integram o chamado “direito continental europeu”, como

a França, a Alemanha, a Itália e a Espanha, bem como da maior parte dos países latino-

americanos, apresentam, historicamente, uma atitude formalista ante as normas jurídicas.

Esses países contam com uma ampla codificação do direito, o que deu margem para que os

juristas imputassem aos seus sistemas jurídicos, e às normas que os compõem,

propriedades formais, que nem sempre possuem realmente: precisão, univocidade,

coerência, completude etc. Como os juristas da denominada common law não tiveram

historicamente códigos à sua disposição, não costumam prestar esta profissão de fé em face

dos seus sistemas jurídicos, cuja maior parte das normas não é produto do ato de

deliberação de um legislador, mas dos fundamentos das decisões judiciais, dos

precedentes. Há nestes países, ao contrário daqueles do direito continental europeu e do

direito latino-americano, uma tendência à atitude cética dos juristas diante das normas

jurídicas194.

A teoria jurídica que se desenvolve atualmente nos países de tradição jurídica

ligada à Europa Continental costuma ser chamada de “dogmática jurídica”. Esta teoria é

típica dos países de predomínio do direito legislado e codificado, como é o caso do

Brasil195. A configuração dessa concepção teórica foi fortemente influenciada pelos

pressupostos e métodos do jusnaturalismo racionalista, cujos teóricos buscavam formular

detalhados sistemas de direito natural, inferindo logicamente as normas de supostos

194 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, p. 44. 195 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, pp. 320-321.

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axiomas autoevidentes para a razão humana196. Outra perspectiva teórica que influenciou

consideravelmente esse tipo de teoria de caráter dogmático foi o formalismo jurídico,

segundo o qual: i) o direito seria composto exclusiva ou preponderantemente por normas

legislativas, e não consuetudinárias ou jurisprudenciais; ii) a ordem jurídica seria sempre

completa (sem lacunas), consistente (sem contradições) e precisa (sem vaguezas ou

ambiguidades)197.

A dogmática jurídica, consoante Santiago Nino, seria uma modalidade de ciência198

que se caracterizaria por certas atitudes ideológicas e ideais racionais acerca do direito

positivo, pelas funções que cumpriria em relação a este direito e pelas técnicas de

justificação de soluções que proporia. A primeira dessas características seria a adesão

dogmática ao direito positivo, isto é, a atitude típica desta modalidade de ciência do direito

seria a aceitação dogmática da força obrigatória do direito positivo. No entanto, apesar

dessa atitude de adesão dogmática ao direito posto, a dogmática jurídica também cumpriria

a importante função de reformular esse direito, precisando termos vagos, preenchendo

lacunas, solucionando incoerências e ajustando as normas a determinados valores199.

A subtração à crítica dos pontos de partida arbitrários (“proibição da negação”,

“não-negabilidade dos pontos de partida”) é normalmente considerada a característica mais

importante da dogmática jurídica. No entanto, embora essa disciplina realmente abandone

o postulado da investigação independente, o mais importante, consoante Luhmann, não

seria esta limitação, mas as suas consequências: os “resultados de abstração” e as

“liberdades de interpretação”. A dogmática tem a função positiva de permitir um nível

adequado de flexibilidade na utilização de textos e experiências. Em verdade, a imunização

196 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, p. 29. 197 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, pp. 36-37. 198 Como já foi pontuado neste trabalho, embora seja comum tratar a ciência do direito como um saber de caráter dogmático (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 24-25), autores como Luhmann discordam das tentativas de identificação da dogmática jurídica com o sistema científico, situando este modo de sistematização e de conhecimento do material jurídico no interior do próprio sistema jurídico (LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. 20-21). 199 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, pp. 321-326.

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à crítica dos pontos de partida não indica em que consiste a dogmática jurídica, mas apenas

do que depende a sua função. Esta função estaria ligada ao “aumento nas liberdades de

lidar com experiências e textos”, à “tomada de distância também e precisamente ali onde a

sociedade espera vinculação”, ao “aumento das inseguranças suportáveis”. Este aumento

das inseguranças, no caso da dogmática jurídica (em oposição, por exemplo, à dogmática

teológica), deve ser compatível com “duas exigências centrais do sistema jurídico: com a

vinculação às normas jurídicas e com a necessidade de tomar uma decisão em caso de

conflitos jurídicos.”200

A reformulação do direito positivo pela dogmática jurídica, assim como ocorre no

caso da reformulação judicial deste direito, não é realizada de forma aberta, mas encoberta.

Adota-se um aparato conceitual retoricamente efetivo, que faz com que as soluções

originais propostas pareçam derivar de algum modo do próprio direito positivo. Com isso,

o direito é ajustado a certos ideais racionais e axiológicos, uma vez que se transmite a

sensação de que a segurança jurídica está sendo preservada, sob a crença de que as

soluções propostas derivam, ao menos implicitamente, do direito positivo, sem modificá-

lo201.

A atribuição ao legislador de determinadas propriedades racionais é uma das

técnicas que permitem à dogmática jurídica reformular o direito positivo. O discurso

jurídico trata do legislador racional como se este fosse: i) um único indivíduo que ditasse

todas as normas do ordenamento jurídico; ii) dotado de uma vontade imperecível; iii)

consciente das normas que edita; iv) operativo, como se ditasse normas que tivessem

sempre alguma aplicabilidade; v) justo, como se imputasse as soluções axiologicamente

mais adequadas; vi) munido de uma vontade coerente; vii) onicompreensivo, como se não

200 LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 27-31. 201 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, pp. 326-327. Não se pode deixar de notar a estreita relação entre o desenvolvimento da dogmática jurídica como uma teoria autônoma e a neutralização do Poder Judiciário no século XIX, sob a égide da teoria clássica da divisão dos poderes, que, consoante Ferraz Junior, “irá garantir de certa forma uma progressiva separação entre Política e Direito, regulando a legitimidade da influência política na administração, que se torna totalmente aceitável no legislativo, parcialmente aceita no executivo e é fortemente neutralizada no judiciário, dentro dos quadros ideológicos do Estado de Direito.” (FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 63-64).

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deixasse situações jurídicas sem regulação; e viii) provido de uma vontade

precisa/unívoca202.

Essas propriedades confirmam dois princípios fundamentais da hermenêutica

dogmática: o da inegabilidade dos pontos de partida e o da proibição do non liquet. A

figura do legislador racional está assentada na ideia de que deve haver um sentido básico

ou um padrão mínimo de racionalidade do direito e de que não deve haver conflitos sem

decisão203. Com isso, a hermenêutica possibilita uma espécie de domesticação ou

neutralização dos conflitos sociais, projetando-os em uma dimensão harmoniosa, em que

se tornam decidíveis: o mundo do legislador racional204.

Bourdieu é muito preciso ao afirmar que, quando se está no jogo jurídico, não se

pode transgredir o direito sem reforçá-lo. A força específica do direito seria algo muito

paradoxal, que, segundo o sociólogo, remontaria à teoria da magia, desenvolvida por

Marcel Mauss. A magia apenas atua no campo da crença, em que os atores pensam que o

jogo que jogam deve ser jogado205. A pressuposição da ficção do legislador racional, por

exemplo, contribui para a criação de efeitos reais no discurso e na racionalidade jurídica:

não se pode modificar interpretativamente o direito positivo sem reforçá-lo. Assim, a

figura retórica do legislador racional tem sido uma das regras operativas importantes do

jogo jurídico.

O legislador racional apresenta fortes semelhanças com a figura religiosa do Deus

supremo. Ao descrever a religião, Luhmann aponta a figura de Deus como fórmula de

contingência deste subsistema social. As auto-observações e autodescrições do sistema

religioso encontram na figura de Deus o seu ponto de referência. As religiões monoteístas

têm situado na pessoa de um Deus supremo o cumprimento dos atributos totais da

transcendência, como a onipresença e a ausência de limites. Um observador externo

202 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, pp. 328-329. 203 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2010, p. 246. 204 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2010, p. 284. 205 BOURDIEU, Pierre. Los juristas, guardianes de la hipocresía colectiva. Tradução de J. R. Capella. Jueces para la democracia, Madrid, n. 47, pp. 3-5, jul. 2003, pp. 4-5.

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(observador de segunda ordem) pode ver que a função desta fórmula de contingência é a

construção da transcendência como pessoa, como observador206.

A doutrina da criação contínua explicita o alcance dos dogmas da onisciência e

onipotência do Deus observador. A subsistência do mundo em todos os seus detalhes e

momentos, segundo essa doutrina, depende da observação de Deus207. A doutrina da

criação contínua do mundo apresenta aspectos que permitem uma associação com a

doutrina da criação contínua do ordenamento jurídico pela figura onisciente e onipotente

do legislador racional. Assim como o Deus supremo, para o sistema religioso, apresentaria

os atributos totais da transcendência, o legislador racional, para o sistema jurídico,

apresentaria os atributos totais da justiça.

A comparação com o sistema religioso pode ajudar a compreender como funciona a

fórmula de contingência do sistema jurídico. Luhmann não identifica no ideal do legislador

racional a fórmula de contingência do direito, mas na noção de justiça. A justiça prescreve

que os casos sejam decididos de modo consistente com a dupla exigência de tratar de

maneira igual os casos iguais e de maneira desigual os casos desiguais. Esta fórmula de

contingência oferece o esquema de observação igual/desigual, que permite que se busquem

pontos de vista comparativos no sistema jurídico, ainda que não determine como é possível

encontrá-los208.

O sistema jurídico tende à orientação segundo decisões precedentes, isto é, à

repetição. Mas há mecanismos de correção para essa tendência, como a mudança no

fundamento de validade das decisões (leis e contratos). No entanto, esses mecanismos

dependem de pressupostos incertos sobre um futuro incerto, razão pela qual se faz

necessário que haja um modo de correção de maior alcance na tendência à repetição do

direito, encontrado justamente na fórmula de contingência justiça. Através do esquema

206 LUHMANN, Niklas. La religión de la sociedad. Tradução de Luciano Elizaincín. Madrid: Trotta, 2007, pp. 129-138. 207 LUHMANN, Niklas. La religión de la sociedad. Tradução de Luciano Elizaincín. Madrid: Trotta, 2007, pp. 140-141. 208 LUHMANN, Niklas. La religión de la sociedad. Tradução de Luciano Elizaincín. Madrid: Trotta, 2007, p. 131.

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igual/desigual, os casos concretos são situados no contexto dos casos já ocorridos, o que

permite a verificação da consistência das mudanças do direito209.

Essa noção de justiça pressupõe que todas as decisões jurídicas têm que situar a si

próprias no contexto de outras decisões, observando como o direito é observado por outros

observadores. A justiça passa a ser vista como uma observação de segunda ordem

produzida, sobretudo, pelos tribunais, que observam as observações de outros atores210.

A decisão de casos no interior do sistema jurídico passa inevitavelmente pela

interpretação. O ponto de referência desta operação comunicativa é a busca de solução

justa para os casos. A interpretação permite que se prove a consistência de uma resolução

de conflito ao examinar qual a compreensão de uma norma que cabe no contexto de outras

normas. Assim, a interpretação jurídica serve de apoio para a evolução do direito211.

O recurso ao legislador racional é o modo como o sistema jurídico consegue

promover, por meio da interpretação jurídica, a mudança no direito. O legislador racional,

nos países de tradição romano-germânica, representa, em grande medida, a própria

memória do sistema jurídico. A referência ao legislador racional permite que as mudanças

promovidas pelos tribunais e demais aplicadores do direito façam referência à consistência

da decisão. Assim, um dos modos tradicionais de recorrer à fórmula de contingência

209 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 298-299. 210 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 298-299. A participação de advogados, administradores e legisladores neste processo é compreendida tradicionalmente pela dogmática jurídica como sendo meramente auxiliar ao trabalho dos juízes (FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 79-80). A partir da teoria dos sistemas de Luhmann, pode-se afirmar que os tribunais funcionam como o centro do sistema jurídico, enquanto as demais atividades não judiciais deste sistema (como aquelas de advogados, administradores, legisladores e contratantes) operam na periferia deste sistema. Os tribunais estão diretamente submetidos à obrigatoriedade de decidir todos os casos que surgem (proibição da denegação de justiça) e possuem a tarefa de supervisionar a consistência das decisões jurídicas (leis, contratos, decisões judiciais). Já os legisladores, contratantes, administradores, advogados etc. não têm a obrigação de decidir, mas possuem o importante papel de permitir o contato do direito com outros sistemas, fornecendo-lhe irritações ambientais (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 372-389). Como será abordado na Seção 4.2 deste Capítulo, esse contato do sistema jurídico com o seu ambiente também é fundamental para a tarefa de busca da justiça, razão pela qual, a nosso ver, merece receber maior atenção da dogmática jurídica e da teoria do direito. 211 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 340.

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justiça, ao menos nos países de tradição romano-germânica, pode ser identificado no apelo

à figura do legislador racional.

A hipótese do legislador racional, implícita na atividade hermenêutica, serve

historicamente a uma ideologia estática, a uma visão de mundo que valoriza a certeza, a

segurança, a previsibilidade e a estabilidade normativa. No entanto, esta mesma figura

pode servir a uma ideologia dinâmica, favorecendo uma visão de mundo que não perca de

vista a adaptação das normas212. Caso sirva a uma ideologia dinâmica, a figura do

legislador racional favorecerá a justiça, não apenas enquanto privilégio dos aspectos mais

formais do sistema jurídico (isto é, da consistência jurídica), mas também enquanto busca

da adequação à complexidade social.

Evidentemente, o modelo dogmático do legislador racional é fictício (“heróico”,

“divino”, “mitológico”). Mas, através da pressuposição dessa figura retórica, os juristas

conseguem, com base em uma ideologia dinâmica, conciliar, em suas interpretações, a

consistência jurídica e a adequação à complexidade social, isto é, preencher lacunas,

eliminar contradições, precisar termos indeterminados ou vagos, sem que com isso deixem

de produzir comunicação jurídica, com base no código binário do sistema jurídico

(conforme ao direito/não conforme ao direito), estabilizando as expectativas normativas.

A noção de legislador racional caracterizou-se, ao longo da história, pelo reforço

ideológico da primazia do Poder Legislativo. É inegável a importância dos textos jurídicos

produzidos por esta instância de poder estatal para o direito e a interpretação jurídica. No

entanto, conforme abordado nos Capítulos anteriores deste trabalho, as profundas

transformações nos modelos de Estado e de direito permitem que se questione a suficiência

de um enfoque tão centrado na figura do Poder Legislativo.

A interpretação jurídica deixou de ser pensada apenas como uma reconexão com a

unidade codificadora do legislador racional. Há uma forte tendência contemporânea no

sentido de se buscar na interpretação jurídica algo mais do que a vontade da lei ou do

212 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O Direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, pp. 138-139.

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legislador. A referência ao administrador e ao julgador passa, gradativamente, a fazer mais

parte do discurso jurídico sobre a interpretação do direito.

A interpretação do direito carrega a peculiaridade de ser orientada a uma finalidade

prática, que transcende a mera compreensão de textos. O teórico ou prático do direito que

interpreta busca não apenas estabelecer o sentido dos textos normativos, mas também

determinar a sua força e alcance, confrontando-os com os dados de um problema atual ou

potencial. A interpretação jurídica tem a finalidade de decidir conflitos213.

Os problemas de interpretação jurídica já não se limitam à solução de possíveis

lacunas, contradições e ambiguidades da legislação. Como aponta Luhmann, a

interpretação é responsável não apenas pelas partes pouco claras, mas pela totalidade do

direito. Todo o direito escrito pode ser interpretado214.

Isso não significa que a hermenêutica jurídica perca o seu caráter dogmático, pois

continua partindo do dogma da norma positiva. No entanto, este ponto de partida pode ser

questionado não apenas do ponto de vista da sua justiça, mas também de outros ângulos,

como o da sua efetividade. Ao mesmo tempo em que há pontos de partida inegáveis para a

atividade interpretativa do direito, não deixa de existir também certa margem de liberdade

na apreciação dos dogmas jurídicos215.

A dogmática jurídica de estilo hermenêutico, segundo Ferraz Junior, ao contrário da

dogmática jurídica de estilo analítico, volta-se para as expectativas sociais em conflito e

busca os critérios de decisão não apenas nas premissas inegáveis, mas também nas

consequências da ação. Esta orientação para as consequências, que reflete um caráter

dominante do direito contemporâneo, representa “uma orientação para o futuro ainda

incerto”216.

213 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 73-74. 214 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 318. 215 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 72-73. 216 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 140-143.

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Desde o advento do Estado Intervencionista, a atividade jurisdicional deixa de ser

voltada apenas para o julgamento e a responsabilização de pessoas, pelo que fizeram no

passado, e passa também a avaliá-las e julgá-las prospectivamente, projetando o sentido do

direito para o futuro. A eficiência dos resultados e a elevada probabilidade da sua

realização se tornam os valores máximos das fórmulas de governo da “sociedade

tecnológica”217.

A justificação das decisões jurídicas passa a depender, em última análise, das

consequências, e não apenas do acervo de dados normativos ou fáticos. A orientação social

básica deixa de ser centrada apenas no passado, voltando-se agora também para o futuro218.

O direito, no contexto do Estado contemporâneo, passa a ter o seu quadro de

projeção de sentido direcionado “para a sua realizabilidade mais do que para a sua

consistência pré-constituída”219. Isso permite que se cogite a possibilidade de se estar

desenvolvendo no interior do sistema jurídico uma espécie de mudança na fórmula de

contingência justiça, que tradicionalmente tem sido associada à diferença

igualdade/desigualdade (orientada para o passado, para a redundância). Esta mudança no

ponto de referência do sistema jurídico pode estar ligada ao apelo à diferença

eficiência/ineficiência (orientada para o futuro, para a variação). Ao invés de servir como

217 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Prólogo. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Argumentação jurídica . Barueri, SP: Manole, 2014, pp. XVI-XVII. 218 LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 22. Essa constatação da mudança na orientação básica da sociedade para o futuro nos conduz ao questionamento, por exemplo, acerca da capacidade de a dogmática jurídica adotar as consequências das decisões jurídicas como critérios para as suas operações. Ao refletir sobre o tema na década de 1970, Luhmann concluiu que a dogmática jurídica encontraria dificuldades para lidar com uma orientação ao futuro incerto, aos efeitos da decisão jurídica: “Salta a la vista que la actual dogmática jurídica no está preparada para decisiones conceptuales de este tipo, entre otras razones porque le falta todo contacto con los problemas y con la conciencia de las dificultades que tiene la teoría económica. El paso del esquema regla/excepción hacia un empleo, más o menos libre, de predeterminaciones de las reglas de ponderación sólo puede llevarse a cabo con ojos vendados, en todo caso orientándose a «resultados» específicos a los que se quiere llegar en el caso singular. Se lleva a cabo sin control de la dogmática.” (LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. 61-68). Na Seção 4.2 deste Capítulo retomaremos a discussão sobre as dificuldades encontradas pela dogmática jurídica na execução da tarefa de lidar com as questões relacionadas às consequências, ao futuro e à eficiência do direito. As preocupações apresentadas por Luhmann na década de 1970 permanecem atuais e requerem reflexões no âmbito da teoria do direito e da própria dogmática jurídica. 219 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Prefácio. In: VIANA, Ulisses Schwarz. Direito e justiça em Niklas Luhmann: complexidade e contingência no sistema jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2015, p. 12.

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referência ao passado e à consistência do sistema jurídico, a ideia de eficiência seria

dirigida à complexidade social, ao futuro, à prospecção, às consequências e aos custos do

direito.

Diante das recentes remodelagens do Estado e do direito, que estremecem as bases

da ideologia política da clássica separação dos poderes e apontam para a insuficiência da

figura retórica do legislador racional, pode-se questionar: qual o outro recurso

metodológico que poderia servir de base racional para a interpretação jurídica? A resposta

poderá ser encontrada na figura do administrador/julgador eficiente, mas será necessário

investigar os riscos, limites e possibilidades desta auto-observação/autodescrição

“hercúlea”, “divina”, “mítica”, do sistema jurídico. Ademais, será preciso repensar a

própria atuação da dogmática jurídica e refletir sobre a sua eventual capacidade de se

tornar mais responsiva.

4.2 Interpretação jurídica e administrador/julgador eficiente

A figura do legislador racional, de modo geral, está ligada à tradição jurídica

romano-germânica, enquanto o ideal do administrador/julgador eficiente pode ser

associado ao mundo jurídico anglo-saxão (e, mais especificamente, ao direito norte-

americano). No entanto, na contemporaneidade, as fronteiras entre essas duas grandes

famílias do direito, em alguma medida, parecem estar se diluindo. Não se pode deixar de

notar também que há uma aproximação crescente entre os ideais aparentemente

contrapostos de segurança jurídica (ou de legalidade) e de eficiência.

Na atualidade, como aponta Ferraz Junior, “a tensão se desloca do

legislador/doutrina dogmática para juiz/doutrina dogmática”. A figura do legislador

racional, que está diretamente ligada à função social tradicionalmente desempenhada pela

dogmática jurídica (isto é, à tarefa de sistematização de normas com o objetivo de auxiliar

a subsunção judicial), já não cumpre satisfatoriamente o seu papel. Constata-se que

“julgadores (juízes, árbitros, administradores judicantes) não aplicam apenas a legislação,

mas fazem constantes referências a princípios jurídicos, cláusulas gerais etc.” e que

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possuem “uma liberdade muito maior para reconstruir e até construir o direito, que antes

era assumido como um dado”220.

A hipótese do administrador/julgador eficiente, a nosso ver, surge como

consequência desse movimento de passagem:

[...] da centralidade da lei para a centralidade da jurisdição, jurisdição entendida em sentido amplo: os tribunais judiciais, tribunais de arbitragem, agências administrativas com poder judicante (com tribunais e conselhos administrativos), órgãos da administração direta (que dizem o direito por meio de sentenças, acórdãos, decisões interlocutórias, resoluções, pareceres normativos).221

Embora outros adjetivos pudessem ser mobilizados para caracterizar

adequadamente este novo modelo de administrador/julgador, como “pragmático”,

“responsivo”, “racional” etc., o ideal de “eficiência” nos parece representativo das

transformações no Estado e no direito descritas por este trabalho. No entanto, essa opção

exige reflexões acerca da capacidade de uma noção originariamente econômica, como é o

caso da de eficiência, ser adequadamente adotada pelo sistema jurídico.

Ademais, o deslocamento da atenção da atividade do legislador para as operações

dos administradores e julgadores parece apontar para a necessidade de reformulações no

campo da dogmática jurídica, cuja função social, segundo Ferraz Junior, estaria em

processo de transformação:

[...] observa-se, afinal, uma progressiva substituição da antiga função dogmática de mediação ordenadora entre o passado e o presente, por uma espécie de ‘ função-prognóstico’, capaz de lidar com a necessidade de aumentar a variedade de pontos de vista surgidos do caso a decidir, legitimando a ponderação de benefícios, interesses, tendo em vista suas consequências.222

Apesar de a união entre legislador racional e administrador/julgador eficiente

apresentar inegável capacidade de operacionalização na prática jurídica e de oferecimento

220 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 203-204. 221 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 203-204. 222 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 205.

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de benefícios para os intérpretes (práticos e teóricos) do direito, não nos parece que venha

desacompanhada de preocupações ou que seja uma estratégia evolutiva de baixo risco. Por

isso, nesta Seção, refletiremos sobre essas preocupações, com a intenção de delinear os

limites e possibilidades da arriscada empreitada. Em primeiro lugar, buscaremos nos

aprofundar nas dificuldades de compatibilização entre os ideais do legislador racional e do

administrador julgador/eficiente, especialmente a partir da contraposição de duas noções:

segurança jurídica e eficiência. Em seguida, proporemos algumas reflexões que poderão

embasar o desenvolvimento de uma possível dogmática jurídica responsiva, que, sem

descuidar da autonomia do sistema jurídico e da racionalidade própria da dogmática

jurídica, seja compatível com a atual realidade social, cujas transformações foram

destacadas no Capítulo 2 e no Capítulo 3 deste trabalho.

4.2.1 Eficiência e segurança jurídica

A ideia de eficiência não faz parte da semântica tradicional do sistema jurídico, mas

sim do sistema econômico. A hermenêutica jurídica, ao contrário da interpretação

econômica, não se especializou na adoção de ideias como a de eficiência ou escassez, mas

na mobilização de noções como a de segurança jurídica e legalidade. Em razão disso, a

inclusão do administrador/julgador eficiente no arsenal metodológico da interpretação

jurídica exige reflexões acerca da sua compatibilização com o sistema e a racionalidade

jurídica. Em síntese, cumpre-nos questionar: a ideia de eficiência poderá ser

adequadamente adotada pelos intérpretes do direito?

A noção de eficiência, em uma acepção ampla, está ligada à realização de uma

tarefa “de acordo com as normas e padrões preestabelecidos”, isto é, refere-se “à forma de

realizar uma tarefa”223. Este conceito pode ser compreendido também a partir da ideia de

“relação entre meios e fins”, enquanto “efetividade dos meios empregados, em um dado

processo, para alcançar-se um objetivo ou gerar-se o resultado visado”.224 Ao menos nesta

acepção ampla, a ideia de eficiência parece ser plenamente compatível com a tradição

223 SANDRONI, Paulo. Eficiência. In: SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 284. 224 GAIGER, Luiz Inácio. Eficiência. In: CATTANI, Antonio David; LAVILLE, Jean-Louis; GAIGER, Luiz Inácio; HESPANHA, Pedro (Coord.). Dicionário internacional da outra economia. Coimbra: Almedina, 2009, p. 169.

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jurídica romano-germânica, bem como com as noções de segurança jurídica e de

legalidade, valorizadas pela hipótese do legislador racional.

Já em uma acepção mais específica, a ideia de eficiência simplesmente significa “a

melhor utilização dos recursos”. Transpondo a noção, por exemplo, para o campo da

atividade jurisdicional, pode-se afirmar que a eficiência exige que os tribunais solucionem

os litígios do modo mais “justo, rápido e barato”225. Este ideal, a princípio, também não

nos parece incompatível com os ideais de segurança jurídica e legalidade, que

historicamente têm sido privilegiados pela dogmática jurídica da Europa Continental e da

América Latina.

Estando a serviço de uma ideologia dinâmica, que enfatiza a adaptação

interpretativa das normas, o legislador racional pode ser associado à figura do

administrador/julgador eficiente. Não há razões para acreditar que estes dois ideais não

possam se sustentar mutuamente, inclusive na tradição jurídica romano-germânica. Aliás,

esta união pode trazer importantes contribuições para a dogmática jurídica brasileira, que,

movida pela busca de valores como o da segurança jurídica e pela preocupação com a

eficiência da decisão, poderá ser considerada uma dogmática jurídica mais responsiva.

A hipótese do administrador/julgador eficiente está comprometida com o ideal de

que a decisão jurídica transcende os limites da trama normativa dos textos legais. As

informações acerca do ambiente econômico do direito, por exemplo, são introduzidas na

racionalidade jurídica através da percepção de que a interpretação jurídica, em muitos

casos, depende do manejo de diversos elementos, como “[f]atos econômicos, normas

estabelecidas socialmente, regras extraídas da experiência, costumes e rotinas dos

mercados”226.

Por isso, o ideal do administrador/julgador eficiente, que representa a abertura do

sistema jurídico ao seu ambiente, pode ser identificado, esquematicamente, com a tradição

225 FIX-FIERRO, Héctor. Courts, Justice and Efficiency: A Socio-Legal Study of Economic Rationality in Adjudication. Oxford: Hart Publishing, 2003, p. 8. 226 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Concorrência: entre o Direito e a Economia. In: MOTTA, Massimo; SALGADO, Lúcia Helena. Política de concorrência: teoria e prática e sua aplicação no Brasil. Tradução de Lúcia Helena Salgado. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015, p. II.

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jurídica anglo-saxônica (e, mais especificamente, com o direito norte-americano), que,

historicamente, tem sido mais receptiva às abordagens interdisciplinares do direito. A

tendência à identificação da figura do legislador racional, que representa o fechamento

operacional do sistema jurídico, com a tradição romano-germânica, por sua vez, está ligada

à típica tarefa assumida pela dogmática jurídica europeia (e latino-americana), que “enfoca

a interpretação da lei e a tentativa de suavizar suas inconsistências progredindo no

entendimento sobre seu sistema e estrutura inerente” 227.

Com base na tipologia desenvolvida por Nonet e Selznick sobre as formas de

ordenamento jurídico (“repressivo”, “autônomo” e “responsivo”), Kagan afirma que não

apenas “os sistemas judiciários da Europa Continental e da América Latina, com sua

tradição de civil law”, mas também “os da Inglaterra e suas antigas colônias, a Austrália e

o Canadá”, estariam “mais próximos do ideal do direito autônomo”, preocupado com a

independência da esfera jurídica em relação à esfera política. Já o sistema judiciário dos

Estados Unidos, embora consagrando “certos aspectos do direito autônomo”, incorporaria

“uma boa parcela de elementos do direito responsivo”, marcado pela preocupação com as

consequências das normas jurídicas e caracterizado como um “direito mais flexível e

político”.228

227 GRECHENING, Kristoffel; GELTER, Martin. A divergência transatlântica no pensamento jurídico: o direito e economia norte-americano vs o doutrinalismo alemão. In: SALAMA, Bruno Meyerhof (Org.). Direito e economia: textos escolhidos. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 328-333. 228 A “excepcionalidade estadunidense”, consoante Kagan, pode ser identificada a partir da análise do perfil da atividade jurisdicional deste país, que contrasta não apenas com a tradição do civil law, mas com a própria tradição dos demais países integrantes da common law: “Em comparação com os juízes estadunidenses, os judiciários da Europa Continental, com sua tradição de civil law baseada em leis e códigos promulgados pelo legislativo, reverenciam de modo mais constante o ‘compromisso histórico’ entre os legisladores políticos e os juízes que aplicam as leis. Mas isso também é verdade para o judiciário da Grã-Bretanha, berço da tradição do common law. Os juízes estadunidenses, porém, em virtude de seu estilo de emitir sentenças menos vinculadas a decisões precedentes e de invocar interpretações constitucionais, têm tido mais liberdade e maior propensão a inovar baseando-se em noções próprias de justiça e de boa política pública. [...] As ressonâncias entre o direito responsivo e a tradição jurídica dos Estados Unidos ajudam a explicar por que os juízes estadunidenses, de acordo com um estudo comparativo, são os mais ‘informais’ e criativos em sua interpretação das leis provenientes do poder legislativo. [...] Na Inglaterra, como na maioria dos países, a formação jurídica enfatiza o estudo das normas e princípios legais existentes. Os estudantes de Direito nos Estados Unidos, no entanto, são ensinados a questionar a equidade ou a sabedoria das leis e das opiniões judiciais – um reflexo da concepção do direito responsivo de que normas legais específicas devem ser consideradas válidas apenas condicionalmente, sujeitas a reavaliação à luz da análise de suas consequências sociais, econômicas e morais. As revistas estadunidenses de direito estão cheias de argumentos em favor de novos direitos e soluções jurídicas.” (KAGAN, Robert A. Introdução à edição da Transaction Publishers. In: NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, pp. 11-23).

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Os juristas, em geral, têm sido pouco sensíveis a uma análise dos problemas

jurídicos que parta do ponto de vista, por exemplo, das consequências, dos custos e da

eficiência. Privilegiou-se, historicamente, a ênfase nas discussões relativas aos problemas

internos dos ordenamentos jurídicos: incompatibilidades, ambiguidades, lacunas, conceitos

indeterminados, direitos fundamentais etc.229 Recorria-se à figura do legislador racional,

que servia à solução desses problemas, por meio de tarefas de compatibilização, precisão,

preenchimento, determinação e concretização dos sentidos jurídicos.

No entanto, atualmente, os juristas, teóricos e práticos, são levados, cada vez mais,

por exemplo, a um diálogo com os economistas: “De uma racionalidade jurídica debruçada

sobre os aspectos formais, lógicos, semânticos e gramaticais das palavras da lei e da

racionalidade do legislador, aos poucos nos dirigimos no sentido de uma racionalidade

jurídica material, sistêmica, pragmática e funcional” 230. Apesar de apresentar uma

intensidade maior nos Estados Unidos, essa tendência também tem se manifestado em

outros países, como o Brasil231.

Evidentemente, esta mudança paradigmática no modo de interpretar e pensar o

direito, associada às profundas transformações na política e no modelo estatal, tem sido

alvo de análises críticas, que apontam, por exemplo, para o prestígio de “uma hermenêutica

229 CALSAMIGLIA, Albert. Racionalidad y eficiencia del derecho. México: Fontamara, 2003, p. 57. 230 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Concorrência: entre o Direito e a Economia. In: MOTTA, Massimo; SALGADO, Lúcia Helena. Política de concorrência: teoria e prática e sua aplicação no Brasil. Tradução de Lúcia Helena Salgado. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015, p. II. 231 SALAMA, Bruno Meyerhof. Apresentação. In: SALAMA, Bruno Meyerhof (Org.). Direito e economia: textos escolhidos. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 9-17. Embora apontando para um colapso, em muitas disciplinas, do “monopólio da interpretação econômica” após a crise financeira de 2008, Teubner afirma que permanece indefinida “a questão de saber se essa catástrofe também marca o fim do imperialismo do pensamento econômico no direito”. As teorias econômicas, até então, vinham obtendo “uma expansão maciça em todas as áreas da vida, desde o direito, e passando pelas análises econômicas das relações amorosas e da fé religiosa”: “Por volta dos anos de 1970 e 1980, uma teoria social com pretensões de representação exclusiva, que já havia, há algum tempo, dominado todas as áreas do direito como uma ‘ciência guia’ nos Estados Unidos, desfrutando de apoio político enorme e um fluxo abundante de financiamento privado, entrou em cena também na Alemanha (Teles, 2008). A teoria dos custos de transação, a teoria dos direitos de propriedade, as teorias da escolha pública e da analise econômica do direito são vários movimentos na teoria econômica que visam a substituir o conceito desgastado de justiça pelo de eficiência econômica do direito. Esses movimentos reivindicam a inteira substituição da orientação anterior do direito na filosofia moral, não tolerando quaisquer outras teorias sociais. Com autoconfianca e de modo aberto, eles professam uma espécie de ‘imperialismo da teoria’, permitindo a interdisciplinaridade (por exemplo, na economia institucional), mas apenas em seus próprios termos.” (TEUBNER, Gunther. Direito e teoria social: três problemas. Tempo Social, Brasil, v. 27, n. 2, p. 75-101, dez. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/108177>. Acesso em: 01 jan. 2016, pp. 80-81).

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de mentalidade economicista cuja principal característica é o desprestígio à justiça como

fundamento justificador do Estado Social e Democrático de Direito”. Segundo esta

perspectiva, “a idéia-força da eficiência”, diante do sucesso ideológico do neoliberalismo,

seria a “algoz da mentalidade principiológica” e “comprometeria o caráter intervencionista

do Estado e sua promoção do bem-estar dos menos favorecidos [...] e dos direitos humanos

em geral”.232

Embora os riscos de uma justaposição sejam inegáveis, não é fácil avaliar com

precisão se a aproximação da racionalidade jurídica e do raciocínio econômico tem trazido

mais vantagens ou desvantagens para a sociedade. No entanto, pode-se afirmar, sem que

sejam necessários grandes estudos empíricos, que há uma forte tendência na economia e no

direito para a convergência de temas, reflexões e teorias, bem como que são necessários

estudos sobre os riscos, limites e possibilidades desta aproximação.

Uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ilustra bem a mudança

de postura dos intérpretes do direito em face dos aspectos econômicos relacionados ao

ordenamento e às decisões jurídicas.

Em 07 de abril de 2015, a Quarta Turma do STJ, por unanimidade, deu provimento

ao Recurso Especial nº 1.163.283 – RS (2009/0206657-6), nos termos do voto do Ministro

Relator, Luis Felipe Salomão. A Turma do STJ reconheceu o não cumprimento dos

requisitos procedimentais previstos no artigo 50 da Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004,

e determinou a anulação de todos os atos praticados e a abertura de prazo para a emenda à

petição inicial (da “ação de revisão de prestações do saldo devedor e repetição de indébito

em face do Banco do Estado do Rio Grande do Sul S.A.”), mediante a qual os autores

buscavam o “restabelecimento do equilíbrio contratual de financiamento habitacional, por

meio da revisão de cláusulas que consideram abusivas”233.

232 GABARDO, Emerson. Eficiência e Legitimidade do Estado: uma análise das estruturas simbólicas do direito político. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 107. 233 A Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004, em seu artigo 50, dispõe que: “Nas ações judiciais que tenham por objeto obrigação decorrente de empréstimo, financiamento ou alienação imobiliários, o autor deverá discriminar na petição inicial, dentre as obrigações contratuais, aquelas que pretende controverter, quantificando o valor incontroverso, sob pena de inépcia. § 1º O valor incontroverso deverá continuar sendo pago no tempo e modo contratados. § 2º A exigibilidade do valor controvertido poderá ser suspensa mediante depósito do montante correspondente, no tempo e modo contratados.” Ao contrário da decisão do STJ, o

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A questão principal em discussão no referido recurso dizia respeito à aplicabilidade

ou não da Lei nº 10.931/2004 aos contratos de financiamento imobiliário do Sistema de

Financiamento Habitacional, que seriam regidos por legislação específica. Ao enfrentar a

questão, o Ministro Relator situou o contexto econômico em que foi editada a Lei nº

10.931/2004, que, ao lado da Emenda Constitucional nº 45/2004, comporia uma importante

fase da reforma do Judiciário e colaboraria para o desenvolvimento econômico e social do

País. A referida Lei se compatibilizaria com o novo momento do direito processual civil,

marcado por “significativas inovações no ordenamento jurídico voltadas à eficiência e à

celeridade do processo judicial, que contribuem, de certa maneira, para o fortalecimento

das instituições jurídicas, dentre elas, e no caso da lei, do contrato.” 234

Na fundamentação do seu voto, o Ministro Relator se valeu da “doutrina da análise

econômica do direito” para afirmar que o direito contratual ofereceria ao mercado

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ-RS) havia decidido pela não aplicabilidade deste dispositivo aos contratos do Sistema Financeiro de Habitação, em razão de a mencionada lei não fazer referência expressa aos contratos deste Sistema, que é disciplinado por legislação específica. Com estes argumentos, o TJ-RS afastou a preliminar de inépcia da petição inicial (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.163.283 – RS (2009/0206657-6). Relator: Luis Felipe Salomão, 07 de abril de 2015. Disponível: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 01 dez. 2015). 234 Ao tratar do novo momento do direito processual civil, o Ministro Relator pontuou que já há estudos em torno de um ambicioso projeto de “uniformizar o direito transacional dos diversos sistemas processuais existentes no mundo”. Embora os estudos identifiquem “inúmeros obstáculos à uniformização pensada”, concluem que há alguns “princípios de processo civil que necessariamente devem estar uniformemente presentes em todos os sistemas estatais. Dentre os princípios eleitos, o dever das partes de agirem de forma cooperada, justa e de estimularem procedimentos eficientes e rápidos ocupou posição de destaque.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.163.283 – RS (2009/0206657-6). Relator: Luis Felipe Salomão, 07 de abril de 2015. Disponível: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 01 dez. 2015). O voto faz referência ao projeto de autoria de Geoffrey C. Hazard (Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Pensilvânia) e Michele Taruffo (Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Pavia) intitulado “Transnational Rules of Civil Procedure”. Em apresentação ao referido projeto, Antonio Gidi esclarece que “[a]s Normas Transnacionais são urna proposta a um só tempo mais ampla e mais restrita do que o Código Procesal Civil Modelo para Iberoamérica e o Approximation of judiciary Law in the European Union. Trata-se de urna proposta mais ampla, na medida em que a sua aplicação não está circunscrita a países situados em urna única região e ligados por urna história e cultura comuns. Porém, ao mesmo tempo, trata-se de um empreendimento mais restrito, na medida em que o seu escopo é limitado aos litígios considerados «transnacionais», não abrangendo os litígios domésticos, que continuarão a ser regidos exclusivamente pelo direito processual nacional. Ademais, vislumbra-se que o projeto possa ser utilizado como base para o procedimento a ser adotado em arbitragens transnacionais.” O projeto, segundo Gidi, “busca urna talvez ainda utópica ou ingênua harmonia entre o processo civil dos países de civil law e os países de common law [...]”. Embora os relatores tenham optado por “adotar o regime e a estrutura processual dos países de common law como ponto de partida”, procuraram, sempre que possível, “maximizar os aspectos positivos de cada sistema, minimizando os aspectos negativos” (GIDI, Antonio. Apresentação ao Projeto às Normas Transnacionais de Processo Civil. Derecho PUCP, n. 52, 1999. Disponível em: <http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/derechopucp/article/view/6423>. Acesso em: 17 jan. 2016, pp. 593-604).

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“segurança e previsibilidade nas operações econômicas e sociais”. O direito dos contratos

teria a capacidade de exercer o “papel institucional e social” de “proteger as expectativas

dos agentes econômicos”235.

O principal dispositivo da Lei nº 10.931/2004 discutido no voto do Ministro Relator

é o artigo 50, que teria “a clara intenção de garantir o cumprimento dos contratos de

financiamento de imóveis tal como pactuados, gerando segurança para os contratantes”. O

dispositivo teria o objetivo de garantir que, quando a execução do contrato se tornasse

controvertida e fosse necessária a intervenção judicial, a discussão fosse eficiente,

permitindo a discussão do ponto conflitante, mas sem impedir a execução de todas as

obrigações com as quais as partes concordassem236.

A Lei analisada estaria situada em um contexto de preocupação com o

desenvolvimento econômico e com a eficiência e a celeridade dos processos judiciais.

Assim, “a partir de uma interpretação teleológica da norma objeto de controvérsia”, o

Ministro Relator considerou “viável a incidência, nos contratos de financiamento do

235 Os doutrinadores das áreas do direito e da economia, consoante o Ministro Relator, identificariam na Lei nº 10.931/2004 e na Emenda Constitucional nº 45/2004 “[...] realizações das teorias desenvolvidas pela Análise Econômica do Direito – AED, [...]”, que “[...] tem como pressuposto o aumento do grau de previsibilidade e eficiência das relações intersubjetivas, próprias do Direito, a partir da utilização de postulados econômicos para aplicação e interpretação de princípios e paradigmas jurídicos. [...] a análise econômica do direito permite medir, sob certo aspecto, as externalidades do contrato (impactos econômicos) positivas e negativas, orientando o intérprete para o caminho que gere menos prejuízo à coletividade, ou mais eficiência social. [...] Dessa forma, a análise econômica do direito aposta no efetivo cumprimento dos contratos de financiamento de imóveis, por exemplo, como pressuposto para o sucesso do sistema como um todo. A satisfação de cada um dos pactos celebrados entre financiadores e financiados, individualmente considerados, é requisito para que o sistema evolua e garanta o beneficiamento de outros tantos sujeitos, de toda coletividade interessada. [...] Nesse ponto, e retomando o raciocínio para o caso concreto, cumpre observar que a Lei n. 10.931/2004, com fundamento no incentivo à economia, se mostrou apta a alcançar esse desiderato. Os institutos nela previstos, e aqui nos interessam as regras processuais dispostas na lei, especificamente as que se encontram no art. 50, apresentam, certamente, potencial para colaboração do desenvolvimento econômico e social almejados. [...] Nessa linha de raciocínio, penso que a Lei n. 10.931/2004, especificamente em seu art. 50, inspirou-se na efetividade, celeridade e boa-fé proclamados. O dispositivo da lei de 2004 expressa entendimento atual de que todo litígio a ser composto, dentre eles os de cunho econômico - tendo em vista a necessidade de solução célere e eficaz -, deve apresentar pedido objetivo e apontar precisa e claramente a espécie e o alcance do abuso contratual que fundamenta a ação de revisão do contrato.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Quarta Turma). Recurso Especial nº 1.163.283 – RS (2009/0206657-6). Relator: Luis Felipe Salomão, 07 de abril de 2015. Disponível: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 01 dez. 2015). 236 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Quarta Turma). Recurso Especial nº 1.163.283 – RS (2009/0206657-6). Relator: Luis Felipe Salomão, 07 de abril de 2015. Disponível: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 01 dez. 2015.

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Sistema Financeiro de Habitação, das regras processuais encartadas na Lei 10.931/2004,

mormente as referentes à ação revisional e os requisitos de procedibilidade”237.

A decisão da Quarta Turma do STJ, capitaneada pelo voto do Ministro Relator,

parece confirmar que a interpretação jurídica tem sido mais sensível aos fatos, técnicas,

teorias e análises econômicas. Evidentemente, a interface entre direito e economia não é

homogênea nos diversos ramos do direito, contudo, não se pode negar que noções típicas

do campo econômico, como é o caso da ideia de “eficiência”, estejam na ordem do dia de

muitos debates jurídicos e políticos brasileiros.

Na atualidade, o pensamento parece estar fortemente direcionado a uma

racionalidade pragmática. Os discursos jurídicos e políticos parecem se preocupar, cada

vez mais, com a “desburocratização”, a “modernização”, a “governabilidade”, a

“eficiência”, a “responsividade”.238

No fundo, consoante Calsamiglia, as transformações do Estado contemporâneo

conduziriam a uma remodelagem da legitimação das decisões públicas. As atividades 237 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Quarta Turma). Recurso Especial nº 1.163.283 – RS (2009/0206657-6). Relator: Luis Felipe Salomão, 07 de abril de 2015. Disponível: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 01 dez. 2015. 238 No entanto, deve-se notar que a teoria e a filosofia do direito não foram completamente insensíveis às análises das eficiências, das consequências e dos custos sociais. O movimento antiformalista do final do século XIX valorizava o tema dos fins do direito e da busca de resultados justos e eficientes para os conflitos jurídicos. Porém, carecia-se de instrumentos analíticos que permitissem um adequado tratamento dos temas dos custos, incentivos, consequências etc. (CALSAMIGLIA, Albert. Racionalidad y eficiencia del derecho. México: Fontamara, 2003, pp. 57-58). Uma construção teórica que pode ser identificada como sendo integrante deste movimento antiformalista é a chamada “jurisprudência dos interesses”, que, consoante Campilongo, colocando-se como antítese da “jurisprudência dos conceitos”, apresentou-se como uma “reação ao positivismo legalista” e como uma “concepção pragmática e teleológica do direito”: “Na integração de lacunas, na interpretação ou na resolução de antinomias o juiz deveria sempre considerar os interesses em questão e agir como servidor público que, embora submetido à lei, não a aplica cegamente. Não podia agir como uma máquina de subsunção: de um lado, coloca-se norma e fato e do outro lado sai a decisão. A valoração pessoal era necessária, de modo que o juiz é sempre, em parte, criador das normas que aplica. Atua como auxiliar do legislador, subordinado a este. A lei, considerada objetivamente, poderia ser comparada a um balão desgovernado, levado pelo vento. A interpretação dos comandos, guiada pelos interesses, asseguraria a dirigibilidade desse veículo. As consequências desse pensamento para a dogmática são claras: ao invés de um raciocínio formalista, puramente lógico, tende-se a considerar o escopo do direito e os conflitos sociais; em lugar da concepção do direito como uma totalidade acabada, a aceitação de que a ausência de lacunas é apenas uma ficção jurídica necessária. [...] Redescrita a partir do aparato conceitual sistêmico, pode-se dizer que a jurisprudência dos interesses valorizava mais a abertura cognitiva do direito que o seu fechamento operativo.” (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, pp. 147-157). Percebe-se, portanto, que os discursos contemporâneos que valorizam a “abertura cognitiva” do sistema jurídico apresentam similaridades em relação às antigas construções teóricas da chamada “jurisprudência dos interesses”.

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administrativas encontrariam a sua justificação em critérios relacionados à intervenção, à

agilidade, à tecnologia e à eficiência dos poderes públicos. A legitimação da atividade

administrativa através do recurso ao critério da eficiência tornaria necessária a observação

dos critérios de valoração do sistema econômico, destacadamente do conceito de

eficiência. Um dos componentes essenciais de uma sociedade justa, consoante o autor,

seria a eficiência, pois não basta haver o respeito, por exemplo, à igualdade, sem que haja

também o uso correto dos recursos. A eficiência seria entendida, assim, como a obtenção

do maior benefício com o menor custo possível. Mas, a seu ver, a eficiência também pode

estar em relação inversa a outros componentes fundamentais à ideia de justiça, razão pela

qual as decisões públicas podem ter que enfrentar conflitos entre eficiência e direitos

individuais, produção e distribuição etc.239

Do ponto de vista econômico, a solução, de modo geral, deve ser a que traga menos

custos sociais. Já de acordo com a perspectiva jurídica tradicional, a preocupação dirige-se

à questão de saber quem tem o direito subjetivo e quem tem a obrigação, culpa ou

responsabilidade. A teoria econômica e a teoria jurídica observam os problemas e os

valores de perspectivas distintas. Mas as recentes transformações do Estado

contemporâneo, segundo Calsamiglia, trazem a discussão sobre um novo sistema de

legitimação. A capacidade de a administração estatal oferecer serviços públicos adequados

passaria a ser a justificativa para a intervenção do Estado na economia. Espera-se que a

administração ofereça o máximo bem-estar com o mínimo custo possível. O critério da

eficiência, segundo este ponto de vista, permite que sejam formuladas propostas

normativas de resolução de conflitos. Enquanto componente da justiça, a eficiência

legitimaria algumas leis e decisões240.

Em alguma medida, os modelos de ciência e de racionalidade jurídica tradicional -

que entre os séculos XIX e XX associavam a função dos juristas à estrita subordinação à

lei, à conservação das regras codificadas, à superioridade do legislador em racionalidade e

em conhecimento e à subordinação do jurista ao legislador - entram em colapso. Percebe-

se que o estabelecimento de pontes com outras disciplinas sociais, como a economia, a

estatística, a contabilidade e a administração, contribui para a teoria e a prática jurídica, 239 CALSAMIGLIA, Albert. Racionalidad y eficiencia del derecho. México: Fontamara, 2003, pp. 27-29. 240 CALSAMIGLIA, Albert. Racionalidad y eficiencia del derecho. México: Fontamara, 2003, pp. 29-34.

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sobretudo diante da complexidade do direito atual, que tem levado à passagem da

responsabilidade do Legislativo ao Executivo e ao Judiciário e à tendência ao recurso a

argumentos de oportunidade, agilidade ou finalidade. Ao mesmo tempo, intensificam-se as

preocupações relacionadas: i) à não conversão de juristas em economistas, contadores,

estatísticos ou administradores; ii) à tendência ao casuísmo e ao ativismo; e iii) à

dissolução de valores importantes para o direito, como a previsibilidade, a certeza e a

segurança jurídica241.

A eficiência chega a ser considerada o valor por excelência de um sistema

econômico. Há uma tendência da teoria econômica no sentido de considerar a eficiência

como o único critério de julgamento de um sistema econômico. Afinal, uma sociedade que

desperdice recursos escassos tende a ser considerada injusta. Mas se, por um lado, os

economistas costumam se preocupar com o problema da eficiência como critério mais

importante de justificação do sistema econômico, por outro lado, diferentes pontos de vista

podem não considerar a eficiência como critério de justiça fundamental ou decisivo242.

A preocupação do sistema econômico com a eficiência está ligada à própria função

que este sistema desempenha na sociedade, que é a produção e regulação da escassez, com

o objetivo de permitir uma futura satisfação de necessidades. A escassez orienta a

economia. Em uma economia totalmente monetarizada, há uma dupla escassez: i) uma

escassez natural de bens e serviços; e ii) uma escassez artificial de dinheiro243. Por isso, a

eficiência se torna uma preocupação do sistema econômico, que precisa lidar com a

escassez de recursos (presente e futura).

A teoria econômica propõe a utilização do critério da eficiência para o estudo de

problemas jurídicos. A adoção desta perspectiva, segundo Calsamiglia, pode contribuir

para a ampliação do universo do discurso jurídico, evitando o reducionismo normativista.

As legislações não deveriam se reduzir a declarações de boas intenções, mas, sim,

incentivar o seu cumprimento na realidade social (eficácia), buscar a adequação dos meios

241 CALSAMIGLIA, Albert. Racionalidad y eficiencia del derecho. México: Fontamara, 2003, pp. 29-34. 242 CALSAMIGLIA, Albert. Racionalidad y eficiencia del derecho. México: Fontamara, 2003, pp. 41-42. 243 LUHMANN, Niklas. La economía de la sociedad como sistema autopoiético. Revista Mad – Universidad de Chile, n. 29, Sep. 2013, p. 12.

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aos fins pretendidos (efetividade) e protagonizar a escolha dos meios menos custosos

(eficiência). A partir desta perspectiva, pode-se afirmar que a lei não deveria ter apenas um

valor simbólico244.

Algumas áreas do direito têm sido mais sensíveis ao discurso acerca da eficiência,

como aquelas que lidam mais diretamente com questões relacionadas à propriedade e ao

contrato, como o direito da concorrência, o direito dos contratos, o direito de propriedade,

o direito das obrigações etc.

No caso do direito dos contratos, por exemplo, autores alinhados ao movimento de

Law and Economics245 têm defendido uma teoria jurídica dos contratos baseada na

“eficiência de Pareto”. Uma teoria do direito que partisse dessa noção de eficiência

econômica seria menos dogmática e mais responsiva, permitindo, em geral, a maximização

do bem-estar das pessoas. A partir desta perspectiva, que adota premissas da teoria dos

jogos, uma das importantes finalidades do direito contratual seria possibilitar a cooperação

dos atores sociais, contribuindo para que jogos com soluções não cooperativas

(ineficientes) sejam convertidos em jogos com soluções cooperativas (eficientes).246

Contudo, embora a propriedade e o contrato possam ser apontados, a partir de uma

descrição guiada pela teoria dos sistemas, como os mecanismos que permitem a abertura

cognitiva recíproca entre o direito e a economia, isso não permitirá que se fale em uma

transposição automática da ótica econômica para o direito (ou da perspectiva jurídica para

a economia). Se, por um lado, pode-se apontar para a existência de mecanismos de

irritação/aprendizagem mútua entre o direito e a economia, por outro lado, deve-se

244 CALSAMIGLIA, Albert. Racionalidad y eficiencia del derecho. México: Fontamara, 2003, pp. 64-65. 245 O movimento Law and Economics, que surgiu e se desenvolveu inicialmente nos Estados Unidos, originou-se a partir das tradições intelectuais da economia política e do realismo jurídico. O movimento abrange diversas e heterogêneas vertentes, como a Escola de Chicago, a Escola de New Haven, a Escola Austríaca, a Escola Institucionalista, a Escola Neo-institucionalista, bem com o campo do Direito, Economia e Desenvolvimento, o campo do Direito, Economia e Antropologia, a Teoria dos Jogos aplicada ao Direito, o Direito e Economia Comparado, o Direito e Economia Experimental, o Direito e Economia Comportamental etc. Nos países de tradição romano-germânica, o movimento começou a ganhar um progressivo destaque especialmente a partir da década de 1980 (SALAMA, Bruno Meyerhof. Apresentação. In: SALAMA, Bruno Meyerhof (Org.). Direito e economia: textos escolhidos. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 10-17). 246 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law & Economics. 6. ed. Boston: Pearson Education, 2012, pp. 282-286.

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registrar a importância da diferenciação funcional e do fechamento operacional destes

subsistemas sociais247.

Uma mesma realidade social, como uma regulação de mercado, é observada e

descrita de modo completamente diferente pelo sistema jurídico e pelo sistema econômico.

Os discursos jurídicos, apoiados “em hipóteses normativas (fattispecies), teorias

dogmáticas e finalidades estabelecidas por lei”, constroem “uma imagem da economia”,

que tomam como base para realizar suas “operações regulativas”, com o objetivo de

minimizar a diferença entre norma jurídica e comportamento desviante. Os discursos

econômicos, por sua vez, reconstroem “o mesmo processo por meio de diferenciações e

conceitos econômicos próprios”, tratando as normas jurídicas como encargos a serem

levados em consideração nos cálculos econômicos. Por isso, em geral, os “juristas zangam-

se com a violação da lei ou com a fuga de sua incidência, ao passo que os economistas a

exaltam como comportamento economicamente eficiente”, como “violação eficiente”248.

O direito e a economia, segundo Faria, representam “duas posições diametralmente

antagônicas”, que poderiam ser descritas de modo genérico e esquemático do seguinte

modo: i) “a preocupação com o enquadramento legal-racional do poder, por parte dos

juristas, principalmente aqueles cujo saber profissional e cuja visão de mundo foram

forjados a partir de um modelo legalista-liberal de direito e Estado”, que aponta para “as

leis e os códigos como instrumentos de certeza e calculabilidade das expectativas”; ii) “a

procura da eficiência alocativa, por parte dos economistas, especialmente aqueles que

tomam a economia de mercado e o modo capitalista de produção como base institucional

para seus diagnósticos, suas análises e suas políticas”, que se preocupam permanentemente

com os resultados, com o sucesso dos programas e com a eficácia das decisões, muitas

vezes, sem “dar a devida importância às leis e aos códigos249.

247 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 521-535. 248 TEUBNER, Gunther. Direito Regulatório: crônica de uma morte anunciada. In: TEUBNER, Gunther. Direito, Sistema e Policontexturalidade. Tradução de Rodrigo Octávio Broglia Mendes. Piracicaba: Editora Unimep, 2005, pp. 42-43. 249 FARIA, José Eduardo. Direito e economia na democratização brasileira. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 15-16.

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Este antagonismo entre juristas e economistas pode ser sintetizado por meio da

polarização entre duas noções importantes para os objetivos do presente trabalho: i)

segurança jurídica; e ii) eficiência. A primeira noção nos remete à figura do legislador

racional, enquanto a segunda ideia aponta para a figura do julgador/administrador

eficiente. Mas elas poderiam caminhar na mesma direção?

Para responder a esta questão podemos investigar o problema da chamada

“integração do direito”. Este é um tema típico da dogmática da interpretação e diz respeito

à “constatação de um possível descompasso” entre o direito positivo e as necessidades

sociais250 ou, em termos sistêmicos, entre o fechamento operacional (autorreferência) e a

abertura cognitiva (heterorreferência) do sistema jurídico.

A ordem jurídica, sob o manto da racionalidade formal, tendia a ser compreendida

como, logicamente, sem lacunas, pois tudo que não estaria juridicamente proibido ou

obrigado estaria juridicamente facultado. Mas, embora sob este ponto de vista tudo

estivesse juridicamente regulado, algumas perspectivas teóricas, como a do Culturalismo

Jurídico, apontaram para a existência de casos de “lacunas axiológicas”: “o modo como

alguma relação está regulada pode ser tal que, à maneira como atualmente a comunidade

está vivenciando os valores jurídicos, esse modo de regular possa aparecer como injusto”.

Haveria, por exemplo, casos em que a lei apenas proporcionaria critérios ou orientações

gerais (como boa fé, bons costumes etc.) e casos de omissões legislativas totais ou parciais.

Nesses casos, a matéria estaria regulada, mas a regulação seria considerada “insuficiente e

vivenciada como injusta”.251

Com o objetivo de solucionar este problema através do recurso à interpretação, a

doutrina criou uma série de meios de integração do direito. Os juristas passaram a contar

com “instrumentos quase-lógicos” (como analogia, indução amplificadora e interpretação

extensiva) e com “instrumentos institucionais” (como costumes, princípios gerais do

direito e equidade), que seriam mobilizados para “alargar o campo da positividade com

250 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2010, p. 275. 251 MACHADO NETO, Antônio Luís. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 224-226.

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base nele próprio”, isto é, com base “nos valores da certeza e da segurança”, que tenderiam

a estreitar “o campo de atuação do intérprete”:

Assim, embora a lacuna seja definida como omissão ou falta de norma no ordenamento, ela é na realidade, uma válvula pela qual entram no ordenamento os fatores extrapositivos, como os ideais de justiça, as exigências de eqüidade, os raciocínios quase-formais. Ou seja, embora o conceito designe falta, ele oculta a superabundância de normas, assegurando-se destarte, um dos princípios caracterizadores do legislador racional: a omnicompreensividade252.

O preenchimento de lacunas se faria, portanto, com base na referência ao próprio

sistema jurídico, neutralizando os conflitos sociais e projetando-os na “dimensão

harmoniosa” do “mundo do legislador racional”. Por meio dessa “astúcia da razão

dogmática” todos os conflitos se tornariam “juridicamente interpretáveis e decidíveis” 253.

Um exemplo recente desta “astúcia da razão dogmática” pode ser encontrado na

decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de duas ações julgadas conjuntamente: a

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132-RJ (conhecida

como ação direta de inconstitucionalidade) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)

nº 4.277-DF. Trata-se do paradigmático caso, julgado em 2011, do reconhecimento da

figura da “união estável homoafetiva”. O objetivo dos autores das ações era o de conferir

interpretação conforme a Constituição ao artigo 1.723 do Código Civil (segundo o qual,

“[é] reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher,

configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de

constituição de família”), excluindo do referido dispositivo “qualquer significado que

impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo

sexo como família”254.

Embora a própria Constituição brasileira, em seu artigo 226, § 3º, disponha que

“[p]ara efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a

252 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 275-283. 253 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2010, p. 284. 254 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ. Relator: Ministro Ayres Britto. Tribunal Pleno. 05 de maio 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2015.

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mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”, os

ministros do STF invocaram em seus votos os “princípios constitucionais”, o “espírito da

Constituição”, a “eficácia constitucional”, a “aceitação social”, a “evolução da sociedade e

do direito”, a “interpretação correta”, a “integração analógica”, a “leitura sistemática do

texto constitucional”, a “lacuna valorativa ou axiológica” etc., para, por votação unânime,

decidir favoravelmente ao reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo

como família “segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável

heteroafetiva”255.

Apesar de chegarem ao mesmo resultado prático, os votos dos ministros seguiram

linhas de raciocínio diferentes. Alguns votos, como o do Relator, Ministro Ayres Britto,

dispuseram que a própria Constituição, interpretada com atenção ao seu “espírito”, conteria

os elementos necessários para a conclusão pela paridade de situações jurídicas entre uniões

estáveis homoafetivas e heteroefetivas: não haveria lacuna. Outros votos, como o do

Ministro Ricardo Lewandowski, concluíram que haveria a necessidade de se preencher

uma lacuna existente na Constituição em relação à entidade familiar formada entre pessoas

do mesmo sexo, por meio de uma “integração analógica”256.

Contudo, nenhum ministro afirmou, por exemplo, que o STF estaria exercendo,

ainda que de modo oblíquo, uma espécie de controle de constitucionalidade de uma norma

constitucional originária (hipótese, em geral, rejeitada pela dogmática constitucional

brasileira257). Embora a vontade do legislador constituinte real (que de fato, historicamente,

positivou a norma) não fosse compatível com a vontade dos intérpretes, a crença na

racionalidade do legislador constituinte foi hermeneuticamente preservada. A Constituição

Originária foi “reprogramada”, mas de forma relativamente velada, por meio de

255 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ. Relator: Ministro Ayres Britto. Tribunal Pleno. 05 de maio 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2015. 256 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ. Relator: Ministro Ayres Britto. 05 de maio 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2015. 257 Ver, para uma análise crítica da aceitação implícita da hipótese da existência de normas constitucionais originárias inconstitucionais, STRECK, Lenio Luiz; BARRETTO, Vicente de Paulo; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Ulisses e o canto das sereias. Sobre ativismos judiciais e os perigos da instauração de um “terceiro turno da constituinte”. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, São Leopoldo, v. 1, n. 2, 2009. Disponível em: <http://revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/47>. Acesso em: 15 jan. 2016.

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argumentos retoricamente efetivos, utilizados pelos intérpretes não apenas para demonstrar

a racionalidade da interpretação produzida, mas também do próprio legislador constituinte.

Não se verifica nos argumentos dos ministros a intenção de colocar em cheque a

racionalidade da Constituição e do legislador constituinte. Antes o contrário: faz-se

referência, em geral, às mudanças nos valores da sociedade (isto é, ao surgimento de uma

“lacuna axiológica”), à inoperância das instâncias reais de decisão política (que não se

confundem com o legislador racional) e à necessidade de cumprimento da Constituição258.

Como aponta Ferraz Junior em uma das suas mais recentes obras, “[h]oje, a

sensação é de uma espécie de crise desse paradigma, o paradigma do direito legislado e

codificado, o que pode ser observado mediante algumas percepções do trabalho cotidiano

do jurista.” Recentemente, por exemplo, os livros de dogmática jurídica passaram a fazer

referências à jurisprudência, as pesquisas jurisprudenciais passaram a se sobrepor às

doutrinárias nas faculdades de direito e a noção de ponderação de princípios sobrepujou a

ideia da subsunção. Com isso, os princípios não são mais invocados apenas para integrar o

direito nos casos de lacunas, mas também para conferir uma liberdade muito maior para a

jurisdição (administrativa e judicial), que passa a “reconstruir e até construir o direito, que

antes era assumido como um dado”259.

Outro sintoma da contemporaneidade, segundo Ferraz Junior, em outra obra

recente, estaria no pressentimento:

[...] de que sentenças são produtos submetidos à avaliação por sua utilidade econômica, isto é, pelas vantagens e desvantagens que proporciona. E, ao mesmo tempo, a sensação de perda do sentido de justiça que as acompanha. Isso porque nem sempre a demonstração do melhor sentido prático de uma sentença (realização de uma utilidade econômica equilibrada, em que ocorra, em termos utilitaristas, a maximização da riqueza e a minimização da pobreza) coincide com os requisitos formais da sentença.260

258 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ. Relator: Ministro Ayres Britto. Tribunal Pleno. 05 de maio 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2015. Ver, para uma análise mais detida deste caso de “reprogramação judicial” da Constituição Originária, FONSECA, Gabriel Ferreira da. A reprogramação judicial da Constituição Originária pelo Supremo Tribunal Federal: uma análise à luz da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos de Niklas Luhmann. 2013. 77 f. Monografia (Bacharelado) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013. 259 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Prefácio de um Posfácio. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O Direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, pp. XIV-XV. 260 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Argumentação jurídica. Barueri, SP: Manole, 2014, p. 119.

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No campo do direito constitucional, surge uma vasta literatura baseada na “crítica

ao positivismo analítico e sua exclusão das justificações morais da argumentação jurídica”.

Desenvolve-se uma espécie de “constitucionalismo principialista e argumentativo, de clara

matriz anglo-saxônica”, que comumente recebe a alcunha de “neoconstitucionalista”. O

direito passa a ser visto “como uma prática social confiada aos juízes, uma prática de

interpretação e argumentação de que se devem dar conta todos os operadores do direito e

que põe em questão a distância entre ser e dever ser, o direito como fato e como norma.”

Ademais, os fatos se sobrepujam à validade: o domínio passa a ser o da “[...] efetividade

enquanto fato de tal modo adequado aos interesses econômicos e conforme os interesses

dos seus operadores que estes acabam por repeti-los e segui-los por sua força persuasiva

como uma alternativa à crise da lei e da legalidade [...]”261.

Assim, ao retomarmos a questão da possibilidade de convergência entre os valores

da segurança/certeza e da eficiência, isto é, do emparelhamento do legislador racional com

o julgador/administrador eficiente, podemos concluir que, em diversas situações, esta

confluência é não apenas possível, mas também necessária. Há casos em que, embora não

haja dificuldades em relação à linguagem adotada na formulação da regra, esta pode ser

“vista como injusta, para uma determinada atribuição de intenção ao legislador e para uma

determinada análise econômica das consequências” da conduta regulada262. Não basta o

recurso ao passado e à segurança, mediante a observação do legislador racional, faz-se

necessário também recorrer ao futuro e à eficiência, através da observação do

administrador/julgador eficiente.

Como se pode depreender da leitura da Lei de Introdução às Normas do Direito

Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942), em seus artigos 4º e 5º, o

juiz deve não apenas decidir os casos em que a lei for omissa (“de acordo com a analogia,

os costumes e os princípios gerais do direito”), mas também atender, na aplicação da lei,

“aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. No processo de

integração do direito, mediante a reconstrução da racionalidade do legislador, o intérprete

assume papel de destaque, o que já permitia que se pudesse pensar na figura retórica do 261 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Argumentação jurídica. Barueri, SP: Manole, 2014, pp. 73-74. 262 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Argumentação jurídica. Barueri, SP: Manole, 2014, p. 67.

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julgador/administrador eficiente antes mesmo do desenvolvimento dos novos modelos de

Estado e de direito analisados por este trabalho. Contudo, embora esta figura sempre

estivesse mais ou menos implícita na atividade dos teóricos e práticos do direito, não se

pode negar que cresce a sua importância contemporaneamente, em razão das

transformações políticas e jurídicas apontadas, respectivamente, no Capítulo 2 e no

Capítulo 3 desta dissertação.

Nas últimas décadas, o direito positivo brasileiro tem intensificado a acolhida à

noção de eficiência. Esse fato, por si só, já é suficiente para que se perceba a importância

de investigações teóricas, por exemplo, nos campos da política, do direito e da sociologia,

que busquem compreender essa ideia tão ligada ao sistema econômico e tentem

compatibilizá-la com as estruturas dos sistemas sociais em que ela passa a circular

ativamente: os sistemas da política e do direito.

A Constituição brasileira de 1988 inicialmente não abrigava expressamente o

princípio da eficiência. Apenas em 1998, com a edição da Emenda Constitucional nº 19, o

texto constitucional brasileiro passou a prevê-lo, ao lado dos princípios da legalidade, da

impessoalidade, da moralidade e da publicidade. Segundo o artigo 37 da Constituição

brasileira, a “administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” deve obedecer a tais princípios no exercício

das suas funções.

Na administração do Poder Judiciário, por exemplo, a eficiência tem sido

mensurada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) através do cálculo do Índice de

Produtividade Comparada da Justiça (IPC-Jus), que mede anualmente a eficiência relativa

dos tribunais brasileiros. A técnica adotada, “Data Envelopment Analysis” (Análise

Envoltória de Dados), compara o que cada tribunal produz (“output”) com os recursos que

utiliza (“inputs”), permitindo que sejam estimados dados quantitativos sobre a necessidade

de aumento de produtividade de cada unidade, em face da sua capacidade produtiva. Na

análise da eficiência dos tribunais brasileiros, adota-se um modelo de análise orientado

para os “outputs”: o intuito do levantamento é o de maximizar os resultados (total de

processos baixados), já que reduções de recursos financeiros e humanos, muitas vezes, não

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seriam viáveis; e demandas judiciais (processos em tramitação) representam, a princípio,

uma variável não controlável263.

Assim, o discurso da eficiência tem sido acolhido não apenas na prática e na

literatura jurídica, mas também nas normas do direito brasileiro. Este princípio foi

positivado não apenas em sede constitucional e no âmbito do direito administrativo, mas

também na legislação processual brasileira. O novo Código de Processo Civil brasileiro

(Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015), em seu artigo 8º, prevê que, na aplicação do

ordenamento jurídico, “[...] o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum,

resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a

proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.” Com isso, a

eficiência passa a ser incluída expressamente no bojo das normas fundamentais do

processo civil brasileiro.

Em comentário à redação do dispositivo, Didier Jr. defende que, em verdade, o

princípio da eficiência já era um corolário da cláusula geral do devido processo legal

(artigo 5º, LIV, da Constituição brasileira): “O processo, para ser devido, há de ser

eficiente.” O “princípio do processo eficiente” resultaria, ainda, da incidência do artigo 37,

caput, da Constituição brasileira, que indica, em sua literalidade, ser dirigido a “qualquer

dos Poderes”. O princípio repercutiria “sobre a atuação do Poder Judiciário em duas

dimensões: a) Administração Judiciária; b) a gestão de um determinado processo.” Em

relação a este último sentido, pode-se afirmar que o órgão jurisdicional seria visto como

“administrador de um determinado processo”. Os “poderes de condução (gestão) do

processo” deveriam “ser exercidos de modo a dar o máximo de eficiência ao processo”, já

que o serviço jurisdicional é considerado como “uma espécie de serviço público”264.

263 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Justiça em números 2015: ano-base 2014. Brasília: CNJ, 2015, pp. 20-22. Embora tenha sido objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 5221), ajuizada pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), a Resolução nº 184/2013, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), define atualmente o IPC-Jus como índice de aplicação obrigatória em anteprojetos de lei que versem sobre a criação de cargos, funções e unidades judiciárias no âmbito do Poder Judiciário. A Resolução exige, ainda, parecer de mérito do CNJ nesses anteprojetos (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Associações questionam resolução do CNJ sobre criação de cargos no Judiciário. Notícias STF, 19 de janeiro de 2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=283704>. Acesso em: 01 dez. 2015). 264 A eficiência, segundo Didier Jr., seria “o resultado de uma atuação que observou dois deveres: a) o de obter o máximo de um fim com o mínimo de recursos (efficiency); b) o de, com um meio, atingir um fim ao

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O novo marco legal do processo civil brasileiro traz, ainda, inovações relacionadas

à aproximação com a tradição anglo-saxônica do direito, como as expressas previsões

acerca da fundamentação de decisões judiciais com base em precedentes (artigo 489, § 1º,

V e VI), da uniformização da jurisprudência dos tribunais com atenção às circunstâncias

fáticas dos precedentes (artigo 926, § 2º), da publicização dos precedentes dos tribunais

(artigo 927, § 5º), do cabimento de reclamação da parte interessada ou do Ministério

Público para garantir a observância de precedente proferido em julgamento de casos

repetitivos ou em incidente de assunção de competência (artigo 988, IV) e da

demonstração, para o conhecimento de agravo em recurso especial e em recurso

extraordinário, da existência de distinção entre o caso em análise e o precedente invocado

para inadmitir o recurso (artigo 1.042, § 1, II).

Essas recentes modificações legislativas demonstram o agigantamento das funções

jurisdicionais e administrativas, o que traz consigo, sem dúvida, o risco do excesso de

poder e a necessidade de reflexões acerca dos limites deste poder.

A eficiência pode e deve ser um valor perseguido pelos teóricos e práticos do

direito, porém faz parte, não apenas da “tradição do constitucionalismo francês”, mas

também da tradição do “devido processo legal do direito anglo-saxão”, a preocupação com

a “segurança jurídica como direito fundamental capaz de balizar a aplicação do direito”. A

segurança jurídica é entendida pela cultura ocidental como “um complexo normativo de

exigências” estreitamente relacionado “com a noção de Estado de Direito”: “exigência da

durabilidade das normas, da anterioridade das leis e de sua irretroatividade, da igualdade

máximo (effectiveness).” O princípio da eficiência, conforme o autor, exerceria uma verdadeira função interpretativa: “Os enunciados normativos da legislação processual devem ser interpretados de modo a observar a eficiência.”. Ademais, este princípio fundamentaria a possibilidade da “adoção, pelo órgão jurisdicional, de técnicas atípicas (porque não previstas expressamente na lei) de gestão do processo, como o calendário processual [...] ou outros acordos processuais com as partes, em que se promovam certas alterações procedimentais”, como, por exemplo, a ampliação de prazos e a inversão da ordem de produção de provas (DIDIER JR., Fredie. Apontamentos para a concretização do princípio da eficiência do processo. Disponível em: <http://www.editorajuspodivm.com.br/i/f/soltas%20novas%20tendencias%20do%20processo%20civil.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2015, pp. 433-439).

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na lei e perante a lei, em suma, de instituições estatais dotadas de competência delimitada,

sujeitas ao princípio da legalidade.”265

No Estado Regulador, o modelo hermenêutico não pode ser reduzido mais ao da

“interpretação de bloqueio”, típica do Estado Liberal do século XIX, nem ao da

“interpretação de legitimação”, característica do Estado Intervencionista do século XX.

Segundo Campilongo, desenvolve-se, na contemporaneidade, uma espécie de

“interpretação reflexiva”, que “percebe o sistema jurídico particularmente como um

sistema ao mesmo tempo aberto e fechado, um paradoxo em si mesmo.” Visto por meio

deste novo modelo hermenêutico, o sistema jurídico passa a ser compreendido como “um

sistema aberto ao conhecimento produzido fora dele mesmo” (isto é, cognitivamente

aberto), mas, ao mesmo tempo, como um sistema operativamente fechado, que “processa

esses conhecimentos com critérios próprios, particulares, exclusivos do próprio

sistema”266. As informações oriundas de outros sistemas, como o sistema econômico, o

sistema científico e o sistema político, a partir deste modelo de interpretação, apenas serão

processadas no interior do sistema jurídico através dos critérios próprios deste sistema.

O arsenal conceitual dos economistas pode ajudar no alcance de um direito bem

feito do ponto de vista da eficiência. Ainda que não seja o único critério para se avaliar a

qualidade do direito, a eficiência é um dos critérios básicos para o cumprimento desta

tarefa. No entanto, a noção econômica de eficiência não deve ser automaticamente

transposta para o direito, pois, no sistema jurídico, este valor convive com outros

igualmente importantes, como a legalidade, a previsibilidade, a segurança jurídica etc.

Ademais, o direito funciona como um sistema social autônomo em relação à economia,

razão pela qual a recepção da noção de eficiência pelo sistema jurídico deve ser realizada

com cautela e a partir de uma filtragem realizada no interior deste sistema social. A

ressalva é necessária, pois uma perspectiva demasiadamente voltada para a eficiência, com

descuido em relação à autonomia do sistema jurídico, pode criar diversos problemas, já

que, no sistema jurídico, mais eficiência nem sempre resulta em mais justiça.267

265 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O Direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, pp. 115-116. 266 CAMPILONGO, Celso Fernandes. A observação sociológica da interpretação jurídica. In: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e diferenciação social. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 96-98. 267 CALSAMIGLIA, Albert. Racionalidad y eficiencia del derecho. México: Fontamara, 2003, pp. 68-71.

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Assim, a eficiência não deve ser compreendida como um critério interpretativo

exterior ao direito, já que a abertura cognitiva do direito à economia, à ciência, à política

etc. não anula o fechamento operacional do sistema jurídico. A interpretação jurídica que

considera a eficiência como critério não deixa de ser uma comunicação produzida no

interior do sistema jurídico, sob pena de não poder ser qualificada como jurídica.

Há, sem dúvida, mudanças relacionadas ao modo como se lida com a segurança

jurídica e a legalidade na realidade jurídica atual: i) o poder político, que outrora restava

centralizado nas mãos do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, passa a ser

descentralizado; ii) a crença no processo de subsunção é substituída pela ideia de uma

aplicação mais flexível, menos rigorosa, baseada na técnica de ponderação de princípios;

iii) a neutralização política do Poder Judiciário sofre uma espécie de processo de

mitigação; iv) a atividade dos tribunais deixa de se ocupar apenas do passado, dirigindo o

sentido do direito, em grande medida, para o futuro, para a sua realização; v) o princípio

da divisão dos poderes passa a ser relativizado, ao menos em sua configuração mais

tradicional (ligada à obra de Montesquieu) 268.

A partir do advento do Estado Intervencionista, desenvolve-se uma progressiva

“desneutralização política” do Poder Judiciário, que passa a ser considerado responsável

pela consecução das finalidades impostas aos demais Poderes. A neutralização política do

juiz, que decorria da teoria clássica da separação dos poderes e que servia de base para o

Estado Liberal, passa a ser relativizada no contexto da “complexa sociedade tecnológica”.

As atividades do Poder Judiciário deixam de se orientar apenas para o passado, voltando-

se, também, para as questões futuras a serem realizadas, o que representa a repolitização

deste Poder269.

268 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O Direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, pp. 117-129. 269 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Prólogo. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Argumentação jurídica . Barueri, SP: Manole, 2014, pp. XIV-XX. Ao abordar o tema da “politização da magistratura”, mediante o recurso à teoria dos sistemas, Campilongo afirma que “[...] a legislação e sua aplicação pela magistratura estão sempre expostas a uma constante irritação proveniente do sistema político. A função política do magistrado resulta desse paradoxo: o juiz deve, necessariamente, decidir e fundamentar sua decisão em conformidade com o direito vigente; mas deve, igualmente, interpretar, construir, formular novas regras, acomodar a legislação em face das influências do sistema político. Nesse sentido, sem romper com a clausura operativa do sistema (imparcialidade, legalismo e papel constitucional preciso) a magistratura e o

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A mencionada repolitização do Poder Judiciário pode ser vislumbrada, por

exemplo, em uma recente decisão proferida pelo Juiz da 5ª Vara de Fazenda Pública da

Capital do Estado de São Paulo. Em 16 de novembro de 2015, o magistrado decidiu pela

suspensão das ordens de reintegração de posse anteriormente concedidas nos autos do

Interdito Proibitório nº 1045195-07.2015.8.26.0053, proposto pela Fazenda Pública do

Estado de São Paulo contra o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de

São Paulo (APEOESP) e “pessoas indeterminadas” (que estariam ocupando escolas

públicas estaduais de São Paulo). A decisão considerou, em perspectiva “não tão

estritamente apegado à frieza do processo”, que as ocupações se revestiriam “de caráter

eminentemente protestante”, e não apresentariam o objetivo de “inversão da posse”270.

Segundo a decisão, embora, objetivamente, se estivesse diante de “esbulho de um

bem público”, a solução da questão fugiria muito “da simples tutela possessória”. A

questão seria “mais ampla e profunda” e mereceria “melhor atenção do Executivo”, pois os

ocupantes eram, em sua maioria, estudantes das próprias escolas insatisfeitos com a

política pública educacional do Poder Executivo do Estado de São Paulo, consubstanciada

em programa de reestruturação escolar271.

A manutenção das ordens de reintegração de posse, segundo o magistrado, não

seria medida apta à solução do problema, já que o caso, em verdade, seria de reivindicação

por “maior participação da comunidade no processo decisória da gestão escolar”:

Ora, de que adianta a jurisdição, nesse caso, se não estará a promover a solução do caso concreto, com a pacificação social? Permanecerá tratando um problema com comandos dissonantes aos necessários, até porque não há como se proteger, com policiais, o conjunto todo de escolas, evitando novas invasões.

sistema jurídico são cognitivamente abertos ao sistema político. Politização da magistratura, nesses precisos termos, é algo inevitável.” (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 57-63). 270 SÃO PAULO. 5ª Vara de Fazenda Pública da Capital do Estado de São Paulo. Interdito Proibitório nº 1045195-07.2015.8.26.0053. Juiz: Luis Felipe Ferrari Bedendi, 16 de novembro de 2015. Disponível em: <http://esaj.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 24 dez. 2015. 271 SÃO PAULO. 5ª Vara de Fazenda Pública da Capital do Estado de São Paulo. Interdito Proibitório nº 1045195-07.2015.8.26.0053. Juiz: Luis Felipe Ferrari Bedendi, 16 de novembro de 2015. Disponível em: <http://esaj.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 24 dez. 2015.

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Toda essa argumentação reforça a ideia de que não se está a tratar de posse, mas de uma questão de política pública272.

Ademais, como “a maior parcela dos ocupantes” seria composta por adolescentes

ou crianças, conforme a decisão, o tratamento adequado, com base nos artigos 18 e 18-A

do Estatuto da Criança e do Adolescente, seria o que privilegiasse a “boa formação de sua

personalidade e manutenção da integridade física e psicológica”:

Este Juízo, assim, ciente dos desdobramentos concretos que sua decisão produza, está buscando reduzir as chances de risco à integridade física das crianças e dos adolescentes, mesmo diante de eventual dano ao patrimônio das escolas e à perda de aulas. É que, no confronto entre os interesses prejudicados - o da regularidade da Administração e da prestação do serviço educacional e a integridade física de menores -, absolutamente adequado proteger-se o segundo, novamente devendo o Estado procurar uma solução amigável menos traumática que a reintegração273.

O caso ilustra não apenas uma mudança de postura do Poder Judiciário em relação

à interpretação do direito positivo mas também a expectativa por parte da população e do

juiz da causa de uma maior participação popular nas tomadas de decisão relativas às

políticas públicas, inclusive com a oitiva de movimentos sociais de protesto. Consoante o

magistrado, “[...] busca-se maior envolvimento da população nas decisões de

remanejamento de alunos, turnos escolares etc., o que se constitui num fundamento, em

princípio, razoável”274.

Embora inicialmente tenha deferido parcialmente o pedido liminar, com o objetivo

inicial de impedir a ocupação das escolas públicas estaduais da capital de São Paulo e, em

seguida, de reintegrar a sua posse275, o magistrado voltou atrás em sua decisão. Segundo a

272 SÃO PAULO. 5ª Vara de Fazenda Pública da Capital do Estado de São Paulo. Interdito Proibitório nº 1045195-07.2015.8.26.0053. Juiz: Luis Felipe Ferrari Bedendi, 16 de novembro de 2015. Disponível em: <http://esaj.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 24 dez. 2015. 273 SÃO PAULO. 5ª Vara de Fazenda Pública da Capital do Estado de São Paulo. Interdito Proibitório nº 1045195-07.2015.8.26.0053. Juiz: Luis Felipe Ferrari Bedendi, 16 de novembro de 2015. Disponível em: <http://esaj.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 24 dez. 2015. 274 SÃO PAULO. 5ª Vara de Fazenda Pública da Capital do Estado de São Paulo. Interdito Proibitório nº 1045195-07.2015.8.26.0053. Juiz: Luis Felipe Ferrari Bedendi, 16 de novembro de 2015. Disponível em: <http://esaj.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 24 dez. 2015. 275 Em 04 de novembro de 2015, o juiz da causa havia decidido, com base no artigo 932 do CPC, deferir parcialmente a liminar, para determinar que o APEOESP se abstivesse “[...] de promover qualquer invasão total ou parcial [esbulho ou turbação] nas dependências dos prédios das Diretorias de Ensino Estaduais e da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, bem como de obstaculizar o acesso a tais prédios e sua saída [...]” (SÃO PAULO. 5ª Vara de Fazenda Pública da Capital do Estado de São Paulo. Interdito Proibitório

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decisão posterior, a nova conclusão se justificaria em razão de o juiz ter tomado contato,

“na feliz reunião designada pelo Juiz Corregedor da Central de Mandados e pelas

manifestações ulteriores juntadas aos autos, com um panorama mais amplo e real” da

situação, e de ter sido o magistrado cientificado também “das notórias novas ocupações em

outras unidades escolares ao longo da semana”, as quais sequer já teriam sido “trazidas aos

autos”276.

A figura do legislador racional não deixa de ser um ponto de referência claro para a

referida decisão, mas se percebe também a preocupação com a atipicidade da situação e

com a necessidade de uma postura mais eficiente da jurisdição e da administração pública.

As mobilizações dos estudantes, dos professores e dos cidadãos, bem como as

decisões judiciais acerca do caso, resultaram na decisão do Governo estadual de adiar a

reorganização escolar “a fim de ampliar o diálogo com pais, alunos e comunidade

escolar.”277 Caso o magistrado tivesse optado por manter as ordens de reintegração de

posse, em uma perspectiva mais apegada à “frieza do processo”, o Governo do Estado de

São Paulo poderia não ter ampliado o diálogo com a comunidade escolar acerca das

propostas de mudanças na referida política pública278.

nº 1045195-07.2015.8.26.0053. Juiz: Luis Felipe Ferrari Bedendi, 04 de novembro de 2015. Disponível em: <http://esaj.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 24 dez. 2015). Em 11 de novembro de 2015, nova decisão foi proferida, deferindo parcialmente a liminar, para, em complemento à decisão anterior, com fundamento no artigo 920 do CPC, “[...] determinar a reintegração de posse da Escola Estadual Dias Paes Leme e estender a ordem de interdito proibitório em relação aos prédios das escolas estaduais da Capital [...]” (SÃO PAULO. 5ª Vara de Fazenda Pública da Capital do Estado de São Paulo. Interdito Proibitório nº 1045195-07.2015.8.26.0053. Juiz: Luis Felipe Ferrari Bedendi, 11 de novembro de 2015. Disponível em: <http://esaj.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 24 dez. 2015). 276 SÃO PAULO. 5ª Vara de Fazenda Pública da Capital do Estado de São Paulo. Interdito Proibitório nº 1045195-07.2015.8.26.0053. Juiz: Luis Felipe Ferrari Bedendi, 16 de novembro de 2015. Disponível em: <http://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=1H0008J760000&processo.foro=53>. Acesso em: 24 dez. 2015. 277 SÃO PAULO. Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Reorganização Escolar é adiada para garantir o diálogo com comunidade escolar em 2016. Disponível em: <http://www.educacao.sp.gov.br/reorganizacao/>. Acesso em: 07 dez. 2015. 278 Em verdade, não se pode deixar de notar, como aponta Campilongo, que, embora os movimentos sociais alimentem o direito e a sociedade com “conflitos”, os resultados desse tipo de operação não são previsíveis: “Movimentos sociais são portadores de conflitos. Conflitos ‘fazem bem’ ao direito e à sociedade. Ativam o sistema imunológico da sociedade e criam estímulos à variação dos sistemas de função. No caso do direito, podem viabilizar o ‘uso criativo’ dos paradoxos constitutivos do sistema e alargar os horizontes de possibilidades interpretativas do direito. O resultado desse processo é sempre imprevisto. Pode ou não atender às expectativas dos movimentos sociais. Atendendo, é possível que desencadeie novas demandas e interpretações. Não atendendo, do mesmo modo, prepara condições para que novas interpretações amadureçam em breve e que do tronco nasçam os ramos. Isso é o que se pode esperar dos movimentos de

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Apesar de não termos qualquer pretensão de enfrentar o mérito deste processo

judicial específico ou de discutir a política pública nele referida, não podemos deixar de

notar os claros benefícios de uma perspectiva menos formal e mais flexível da

interpretação e do processo. Por outro lado, também não se pode deixar de observar os

notórios riscos de que este mesmo “desapego às formalidades” conduza a uma perspectiva

excessivamente politizada e eficientista do direito. A eficiência, para que sirva de apoio à

interpretação jurídica, deve ser compreendida a partir de uma ótica “interna” do sistema

jurídico, ainda que a sua origem seja “externa”, ligada ao sistema econômico. Do contrário,

no lugar da figura “divina” do legislador racional, teremos a figura “diabólica” do

administrador/julgador eficiente.

As transformações operadas nas ideias de segurança jurídica e de legalidade trazem

riscos notórios, que podem ser exemplificados, segundo Ferraz Junior, na possibilidade de

“rendição da Justiça à tecnologia do sucesso, com a transformação do direito em simples e

corriqueiro objeto de consumo”. A politização da Justiça retiraria do direito o seu sentido

de prudência e transferiria o fundamento da sua legitimidade para a “coerção da eficácia

funcional”: tudo passaria “a ser regido por relação de meio e fim”, exigindo “mais cálculo

do que sabedoria”. Isso tornaria “meramente pragmática” a relação do juiz com o mundo:

“Pois, vendo ele o mundo como um problema político, sente e transforma sua ação

decisória em uma opção técnica, mas que deve modificar-se de acordo com os resultados e

cuja validade repousa no seu bom funcionamento.”279

A nosso ver, uma das grandes preocupações relacionadas ao surgimento da figura

do administrador/julgador eficiente reside no risco da excessiva politização, midiatização,

cientificização ou economicização do direito, bem como da consequente perda de

autonomia funcional deste sistema da sociedade. A flexibilização da legalidade e da

segurança jurídica, em nome do ímpeto por eficiência, pode resultar em consequências tão

desintegração.” (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 165). 279 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O Direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, pp. 127-129.

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danosas para a sociedade quanto o excessivo apego a uma perspectiva rígida de legalidade

e de segurança jurídica (ou seja, quanto uma postura legalista).

O direito funciona como o sistema imunológico da sociedade, isto é, como o

sistema que protege a sociedade dos conflitos, mas isso pode nos levar a um problema que,

segundo Guerra Filho e Carnio, seria similar àquele “de um organismo que sofre de uma

disfunção autoimune. A autoimunidade é uma aporia: aquilo que tem por objetivo nos

proteger é o que nos destrói.”280 Ao tentar neutralizar os conflitos sociais e projetá-los no

mundo do legislador racional, o direito corre o risco de gerar mais problemas para a

sociedade e, consequentemente, para o próprio direito. Para evitar esta auto-agressão e para

manter o fechamento e a reprodução autopoiética, o sistema jurídico deve evitar, por

exemplo, uma excessiva politização, mas também a total perda de contato com o sistema

político, isto é, deve manter-se diferenciado, mas não isolado da política.

A nosso ver, este risco de uma auto-agressão, de uma disfunção autoimune, está

claramente presente no direito que se desenvolve na contemporaneidade. A manutenção

dos conflitos sociais na dimensão harmoniosa do legislador racional, por si só, não permite

uma solução jurídica adequada à complexidade social. A interpretação jurídica depende, na

atualidade, de uma nova figura: a do administrador/julgador eficiente. No entanto, a defesa

da possibilidade da busca de administradores, julgadores, legisladores e advogados por

eficiência não deve redundar na anulação da segurança jurídica e da legalidade, isto é, na

completa perda de confiança na racionalidade da legislação. Se, por um lado, pode-se

afirmar que a eficiência integra o quadro das preocupações relacionadas com a

racionalidade da interpretação jurídica, por outro lado, ela não pode ser vista como o

critério exclusivo de aferição de racionalidade das interpretações, nem como um critério

externo ao sistema jurídico.

O ideal do administrador/julgador eficiente deve ser tomado com cautela, pois, se,

por um lado, em alguns casos, o recurso apenas à figura do legislador racional parece

280 Ver, para uma discussão acerca da autoimunidade do direito, GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria política do direito: a expansão política do direito. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pp. 244-252. Para uma teoria imunológica do direito, verificar GUERRA FILHO, Willis Santiago. Immunological Theory of Law. Saarbrücken: Lambert, 2014.

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empobrecer o sentido jurídico, por outro lado, a adesão apenas à figura do

julgador/administrador eficiente pode resultar na completa perda deste sentido. A

convergência destes dois ideais parece ser uma estratégia evolutiva de alto risco, que,

embora já surja, direta ou indiretamente, na prática e na literatura jurídica, ainda carece de

maiores e mais aprofundadas investigações teóricas, para que seja possível compreender a

sua real dimensão e potencialidade.

Uma adequada recepção no sistema jurídico da ideia de eficiência e da figura do

administrador/julgador eficiente depende, a nosso ver, do desenvolvimento de uma nova

dogmática jurídica. A responsividade nos parece ser o aspecto que precisa ser incorporado

à dogmática jurídica, para que esta teoria tenha a capacidade de, sem perder a sua

autonomia, manter um diálogo proveitoso com teorias e racionalidades associadas a outros

sistemas sociais. Uma dogmática jurídica responsiva poderá, por exemplo, permitir que os

aplicadores do direito façam uso adequadamente de instrumentos, técnicas e teorias

econômicas, sem abrir mão da racionalidade própria do sistema jurídico e de uma teoria

dogmática do direito. Em outros termos, essa dogmática jurídica precisará refletir sobre os

aspectos operacionais da união entre as figuras do legislador racional e do

administrador/julgador eficiente.

4.2.2 Dogmática jurídica responsiva

As transformações operadas na sociedade contemporânea e descritas ao longo deste

trabalho conduzem à conclusão de que há uma progressiva difusão no mundo de alguns

aspectos da cultura jurídica norte-americana, que tem se destacado pela sua

responsividade. No entanto, não nos parece que a importação destas características por

países da tradição romano-germânica esteja conduzindo (ou deva conduzir) à perda do

caráter eminentemente dogmático do saber jurídico neles produzido. Por isso, entendemos

que se deve pensar na possibilidade do desenvolvimento de uma espécie de dogmática

jurídica responsiva, capaz de conciliar dogmaticidade e responsividade, fechamento

operacional e abertura cognitiva.

Uma dogmática jurídica responsiva poderá aliar: i) a preocupação com a aderência

da interpretação à consistência jurídica (referência ao legislador racional e à estabilidade);

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e ii) a busca da adequação da interpretação jurídica à complexidade social (referência ao

administrador/julgador eficiente e à flexibilidade)281. Esta dogmática jurídica tem o

potencial de responder satisfatoriamente às exigências sociais a que o direito se destina,

permitindo que o sistema jurídico se autodescreva como justo.

A fórmula de contingência “justiça”, já mencionada na Seção 4.1 deste Capítulo,

pode ser definida, a partir da teoria dos sistemas de Luhmann, como “complexidade

adequada do decidir consistente”282. Consoante Teubner, o aspecto decisivo desta noção de

justiça não seria simplesmente a “consistência interna”, a “consistência conceitual”, a

“consistência das decisões”, a “consistência formal” ou a “consistência dogmática”, mas “a

adequação social em sua relação com a consistência interna”. A fórmula de contingência

justiça “opera na fronteira entre o Direito e seu ambiente externo e se dirige

simultaneamente à variabilidade histórica da justiça e à sua dependência do ambiente.”283

281 Os intérpretes do direito, consoante Aarnio, são constantemente desafiados a alcançar um equilíbrio entre dois objetivos que apontam para direções opostas: “Por una parte, tienen que respetar la estabilidad y, por otra, tienen que procurar la flexibilidad requerida por las circunstancias. El primero de estos objetivos sirve a la continuidad, a la igualdad formal de los ciudadanos ante la ley, y permite que las relaciones sociales puedan ser anticipadas. Por otra parte, en la actualidad, la sociedad cambia aceleradamente. Si el derecho no se ajusta a su ritmo, actúa como un freno del desarrollo. Cuanto más rápido es el cambio, tanta mayor es la flexibilidad que se re quiere del sistema jurídico. Esta responsabilidad pesa sobre quienes tienen a su cargo la adaptación de la ley a las nuevas circunstancias y sobre la ciencia del derecho, que aclara los contenidos del sistema jurídico. La maquinaria legislativa es demasiado pesada y lenta como para poder responder con la suficiente celeridad a cada pedido de reforma. Por ello surge la tensión entre las normas y la realidad social existente. Sólo si se deja de lado la letra de la ley es posible reducir esta tensión. Es decir: interpretando las regulaciones jurídicas. En ello reside la tarea de adaptar - e investigar - el derecho, creándolo y desarrollándolo. Los artículos de una ley son como una banda de goma. El intérprete los estira o ajusta según las circunstancias.” (AARNIO, Auilis. Lo racional como razonable – Un tratado sobre la justificación jurídica. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pp. 32-33). 282 Atualmente, segundo Luhmann, a justiça apenas pode ser concebida “[...] como expresión para la complejidad adecuada del sistema jurídico, concretamente como mandato de aumentar la complejidad, siempre y cuando esto sea compaginable con el decidir consistente. Tal regla a su vez altera el punto de partida para la cuestión de los conceptos justos, de justas teorías y soluciones dogmáticas de problemas, de una dogmática justa.” (LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 42). Como esclarece Teubner, esta fórmula de contingência não é “um princípio interno ou externo ao Direito”, mas “uma auto-observação da unidade do Direito com base em seus programas, [...] um auto-controle jurídico, que, através da [...] ‘máquina histórica’ do Direito, encontra-se nas infinitas práticas dos tratamentos iguais ou desiguais.” (TEUBNER, Gunther. Justiça autosubversiva: fórmula de contingência ou de transcendência do Direito? Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas Serro, Belo Horizonte, n. 4, p. 17-54, out. 2011. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/2259>. Acesso em: 20 dez. 2015, p. 27). 283 A fórmula de contingência do direito, consoante Teubner, une consistência interna e responsividade em relação ao ambiente: “A intenção da justiça se dirige, não à maximização da consistência dogmática, mas a responder-se sensivelmente às mais divergentes demandas vindas de fora e, assim, a buscar-se a máxima consistência possível. A fórmula de contingência não se dirige a uma justiça imanente ao Direito, mas a uma

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Mas essa adequação do sistema jurídico ao seu ambiente (isto é, à sociedade, aos

homens e à natureza) ocorre dentro do próprio direito, e não em “um passeio do Direito

pelo mundo exterior”, pois o sistema jurídico “está preso nas correntes de suas operações

auto-referenciais, que decidem sobre a igualdade/desigualdade de casos individuais”.284

A justiça, “enquanto uma práxis de auto-observação dentro do Direito”, “apenas

lida com ficções sobre o mundo exterior” e as trata “como se elas fossem realidades”. As

demandas externas passam por um processo de “construção jurídica interna”: “a justiça dos

modernos media, de um modo horizontal-heterárquico, a normatividade própria do Direito

e a normatividade própria de seus ambientes social, humano e natural.” O direito moderno

“busca seus critérios da justiça em seus ambientes, em diferentes discursos da sociedade,

no discurso pedagógico, científico, médico, político ou econômico, e contribui, por meio

de um processo complicado de reconstrução jurídica, para a fixação de sua validez

jurídica.” Essa noção de justiça, por um lado, busca “a justiça em uma orientação vinda do

mundo exterior ao Direito”, no que se assemelha ao “jusnaturalismo”, por outro lado, não

encontra a origem da justiça em emanações de autoridades externas (Deus, natureza ou

razão natural), mas apenas no interior do próprio direito, aproximando-se, neste ponto, do

“juspositivismo”. Em verdade, a distinção “jusnaturalismo”/“juspositivismo” perde o

sentido diante dessa concepção de justiça:

A virada contra o direito natural consiste no fato de que autoridades externas não podem oferecer quaisquer critérios substanciais da justiça. A virada contra o positivismo, porém, consiste no fato de que a justiça não pode ser produzida a partir da mera recursão a decisões judiciais. O contrário é o caso: a justiça sabota as decisões jurídicas. Em oposição ao desejo do Direito pela certeza nas decisões, a justiça jurídica, como uma praxis discursiva, abre um novo espaço de incerteza e de indeterminação do Direito. A justiça mina a rotina da recursão a decisões judiciais e questiona insistentemente se, à luz das demandas externas dirigidas ao Direito, uma lide não deve ser decidida de outro modo. A justiça atua internamente ao Direito como uma força subversiva, com a qual o Direito

justiça transcendente do Direito. Consistência interna mais responsividade diante de demandas ecológicas – esta é a dupla fórmula da justiça jurídica.” (TEUBNER, Gunther. Justiça autosubversiva: fórmula de contingência ou de transcendência do Direito? Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas Serro, Belo Horizonte, n. 4, p. 17-54, out. 2011. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/2259>. Acesso em: 20 dez. 2015, p. 28). 284 TEUBNER, Gunther. Justiça autosubversiva: fórmula de contingência ou de transcendência do Direito? Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas Serro, Belo Horizonte, n. 4, p. 17-54, out. 2011. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/2259>. Acesso em: 20 dez. 2015, pp. 28-30.

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protesta contra si mesmo. A justiça protesta contra as tendências naturais do Direito de se vincular a precedentes, rotina, segurança, estabilidade, autoridade e tradição. Contra as tendências de auto-continuidade bem-ordenada embutidas no Direito, a justiça exibe sua preferência pela desordem, revolta, divergência, variabilidade e mudança. Ela protesta em nome da sociedade, dos homens e da natureza – entretanto, ela o faz a partir do arcano interno do Direito. A justiça subversiva é o espinho na carne. Motim a bordo - é este o recado da Sociologia para a justiça jurídica285.

“Motim a bordo”, “insurreição interna”, e não “ataque externo”. A ideia de justiça

surge como resposta (interna) à “mais inquietante falha do Direito”, que “consiste no fato

de que ele não pode evitar a invasão da irracionalidade no mundo racional das decisões

orientadas por normas e da argumentação embasada na razão”. Mas a “justiça jurídica”

deve ser distinguida de outras justiças, como a “justiça moral”, a “justiça política” e a

“justiça econômica”:

Os critérios da justiça [jurídica] não são, então, encontrados em algum lugar fora do Direito mas, sim, o Direito só pode se auto-transcender de forma tal que ele diferencie de si mesmo, na reentrada auto-produzida, aqueles ambientes dos quais o conflito jurídico se origina – sociedade, natureza, homem, para, então, em relação a essas “enacted ecologies”, estabelecer critérios de justiça ambientalmente adequados. Com isso, recusa-se desde o início que o Direito possa importar tais critérios do mundo exterior; pelo contrário, ele deve construí-los automaticamente, com seu próprio conhecimento do mundo. Essa reentrada na praxis decisória do Direito estabelece a especialidade de uma justiça jurídica e sua diferença em relação a representações externas ao Direito sobre o que seria uma sociedade justa, uma justiça política das decisões coletivas ou uma justiça moral-filosófica da consideração mútua. A busca não pode externalizar seus critérios e, assim, não pode depositar suas esperanças nem na democracia, nem na moral ou na economia. Ao invés, ela é lançada de volta a si mesma. O Direito carrega, ele próprio, a responsabilidade por seus critérios da justiça286.

As reflexões de Teubner permitem o reforço à ideia desenvolvida na Seção 4.1

deste Capítulo: a noção de justiça está ligada à hipótese do legislador racional. “Justiça” e

“legislador racional” são ideias tradicionalmente mobilizadas no interior do sistema

jurídico para possibilitar a produção de interpretações e de decisões adequadas à

complexidade social e juridicamente consistentes. Desde que não represente um “ataque

285 TEUBNER, Gunther. Justiça autosubversiva: fórmula de contingência ou de transcendência do Direito? Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas Serro, Belo Horizonte, n. 4, p. 17-54, out. 2011. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/2259>. Acesso em: 20 dez. 2015, pp. 30-33. 286 TEUBNER, Gunther. Justiça autosubversiva: fórmula de contingência ou de transcendência do Direito? Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas Serro, Belo Horizonte, n. 4, p. 17-54, out. 2011. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/2259>. Acesso em: 20 dez. 2015, pp. 23-39.

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externo”, a hipótese do administrador/julgador eficiente também pode servir como apoio

ao “motim abordo” (à “insurreição interna”) do direito, que metaforicamente representa a

busca da interpretação e da decisão jurídica justas.

Essas reflexões acerca da ideia de justiça permitem que se conclua que a associação

dos ideais do legislador racional e do administrador/julgador eficiente não deve representar

uma anulação do primeiro em nome do segundo, mas um reforço mútuo. Os conceitos

jurídicos não devem ser substituídos por conceitos econômicos, científicos, políticos etc. O

conhecimento, a interpretação e a aplicação do direito continuam lidando principalmente

com textos e conceitos jurídicos, ainda que referências externas ao direito sejam

necessárias.

Ao refletir acerca da exigência contemporânea de orientação do direito para o

futuro, para as consequências das decisões, Luhmann afirmou que esta exigência não

poderia ser “a de uma otimização ou a de uma comparação de utilidade mais ou menos

ampla”, mas apenas poderia “consistir em uma comparação de possibilidades de decisão

que resultam de determinadas interpretações normativas para casos heterogêneos.”287

Segundo Luhmann, não haveria “nenhuma possibilidade convincente de recomendar uma

dogmática jurídica que empregue as consequências como critérios do lícito e do ilícito.” A

dogmática jurídica, a seu ver, deve “ser capaz de formular conceitos socialmente

adequados”, que, ao contrário das simples considerações acerca das consequências,

poderão servir-lhe como um ponto de apoio.288

No entanto, dessa constatação não se deve concluir que as consequências sejam

inúteis ou desimportantes para a dogmática jurídica, mas apenas que não devem

representar uma subversão nos critérios próprios do sistema jurídico. As consequências

apenas têm relevância para a dogmática quando permitem a adequação à complexidade

social, mas sem resultar no desprestígio à consistência jurídica.

287 LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 83. 288 LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. 90-113.

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Os juristas, segundo Luhmann, prestam “atenção às consequências de suas

decisões” e avaliam “de maneira distinta segundo sirvam ou prejudiquem interesses”.

Distinções como “útil/inútil/prejudicial” não definem “a forma do direito no sentido de um

objeto de observação e descrição” (isto é, “não são distinções constituintes do direito”),

mas se originam no exercício do próprio direito e servem de orientação para suas

operações289.

No interior do sistema jurídico, a teoria do direito, a dogmática jurídica, os

princípios e os conceitos de direito representam um esforço no sentido de se “alcançar

consistência conceitual”, de se “chegar à comprovação da universalidade dos princípios,

dos conceitos, das regras de decisão”. Trata-se de um “esforço de ‘amplificação’ e, mais do

que nada, um afã de corrigir as generalizações demasiado extensas por meio do esquema

regra/exceção. No interior do sistema jurídico isto pode entender-se como trabalho em

torno à justiça [...]”. Estas construções teóricas são o resultado de interpretações jurídicas,

isto é, das auto-observações do sistema jurídico, que fornecem consolidações de

expectativas290.

Em dissertação de mestrado defendida em 1983, na PUC-SP, Silvia Diniz abordou

o tema do legislador racional e a sua relação com o direito tributário. Nesta oportunidade, a

289 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 84. Como aponta Ferraz Junior, fazendo referência às reflexões de Luhmann acerca da orientação do direito para o futuro, “[...] o sistema jurídico transforma as interdependências externas, que são futuras e abertas, em interdependências internas, que são passadas e fechadas. Isso se obtém pelo estabelecimento de alternativas de decisão através de construções dogmáticas, ligando às alternativas certas consequências possíveis. Desse modo, o critério para a determinação do jurídico e do antijurídico não está nas consequências reais, mas nos efeitos jurídicos das decisões juridicamente fixadas. A isso podemos chamar de uma astúcia da razão dogmática, pois, socialmente, criamos a impressão de que houve, de fato, aumento controlado das incertezas, embora, na verdade, as consequências da decisão só estejam sendo consideradas na medida em que foram previamente avaliadas.” Chegando à mesma conclusão de Luhmann, Ferraz Junior afirma que a função da dogmática reside “[...] na construção das condições do juridicamente possível, em termos de decidibilidade, ou seja, na determinação das possibilidades de construção jurídica de casos jurídicos.” Embora a dogmática jurídica não seja “[...] um instrumento da efetividade [...]”, ela “[...] pode usar a efetividade como corretivo das abstrações com o auxílio das quais ela orienta as decisões [...]”. No entanto, a efetividade “[...] não pode fundar a identidade do sistema jurídico. Mesmo as Dogmáticas sociologizantes, como aquelas propostas pelo realismo americano ou pelo escandinavo – onde a orientação pelas consequências é mais evidente –, não fazem das consequências reais, mas apenas das jurídicas, um verdadeiro critério – ou, mais claramente, elas não se guiam, por exemplo, pelo fato de que, dada uma decisão, alguém ficará pobre e outro rico, ou uma família ficará desagregada, mas pelas avaliações generalizantes que suas construções permitem.” (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 144-154). 290 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 63-64.

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autora manifestou a sua preocupação com o fato de que grande parte da “linguagem

utilizada pelo Direito Tributário tem na sua origem um significado essencialmente

econômico”, o que trouxe para este campo “teses doutrinárias em que os dogmáticos do

Direito Tributário” passaram a defender “a interpretação das normas tributárias segundo a

realidade econômica”. Isso, segundo a autora, significaria a negação de pontos importantes

da “teoria do legislador racional”. Para os adeptos desta “teoria” (“cuja utilização é de tal

forma disseminada em todos os estudos normativos ou de aplicação e integração das

normas jurídicas que é como se já fizesse parte do sistema jurídico”), expressões como

“contribuinte”, “tributo”, “imposto”, “taxa” e “capacidade contributiva” teriam um

significado “essencialmente jurídico”, que seria “acrescido ao termo ao chegar ao mundo

jurídico, uma transformação, uma transfiguração no seu significado econômico, original,

pré-jurídico”291.

No início da década de 1980, portanto, uma perspectiva economicista do direito já

estimulava reflexões teóricas no Brasil acerca dos riscos da perda de consistência jurídica

dos conceitos dogmáticos do direito. De lá para cá, em razão das transformações no Estado

e no direito descritas nos Capítulos anteriores do presente trabalho, os riscos da perda de

precisão no labor dogmático-jurídico apenas se acentuaram. Essa possibilidade de perda de

consistência jurídica da dogmática exige que se reflita sobre o processo de filtragem

jurídica, por exemplo, de conceitos e teorias originariamente econômicos.

Uma possível solução para o problema da transposição de conceitos externos para o

sistema jurídico pode ser encontrada na ideia de tradução. Quando o sistema jurídico, por

exemplo, interpreta a ideia de “eficiência”, que é uma noção típica do sistema econômico,

essa operação comunicativa exige “[...] ‘tradutores’ ou ‘dicionários’ que validem as

interpretações de um sistema para o outro. [...] esses ‘dicionários’ dizem respeito aos

critérios de validação e consistência interna do direito.” No sistema econômico, as ideias

de eficiência e de escassez “dão sentido à interpretação econômica”, mas, no sistema

jurídico, estas noções não estão associadas aos “tradutores” da interpretação jurídica. O

291 DINIZ, Silvia. Linguagem jurídica e interpretação dogmática. 1983. 164 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1983, pp.101-105.

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“tradutor” do sistema jurídico está ligado à ideia de validade292, cuja transferência (“nas

cadeias recursivas de decisões judiciais, atos legislativos e contratuais”) ocorre “com base

no código binário jurídico/antijurídico”293.

A noção de tradução também pode ser mobilizada para solucionar a questão da

adoção de teorias externas no interior do sistema jurídico. Ao discutir a relação entre

direito e teoria social, Teubner afirma que o direito precisa “ser exposto à influência de

teorias sociais”, mas que esse contato exige uma “abordagem distanciada”, relacionada a

“um complexo processo de tradução” das teorias sociais pelo direito. Para tanto, o autor se

vale de três conceitos, que podem contribuir para a solução de três “problemas

espinhosos”: i) “transversalidade”, para o problema da concorrência entre as teorias

sociais; ii) “responsividade”, para o problema da transferência de conhecimento das teorias

sociais para o direito; iii) “autonormatividade”, para o problema da normatividade das

teorias sociais294.

A ideia de “transversalidade” pode ser utilizada para conciliar o “alto nível de

autonomia” com as “interdependências recíprocas de diferentes racionalidades sociais”.

Por um lado, o direito da sociedade moderna (funcionalmente diferenciada) tende a se

defender das pretensões de totalidade de qualquer teoria social, como as relacionadas a

perspectivas unilaterais de “economicização”, “politização”, “sociologização”,

“cientificização” ou “moralização”. Por outro lado, o direito “se abre para sua influência

quando elas [as várias teorias sociais] postulam afirmações que são válidas para seus

campos de atuação”295.

292 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 162. 293 TEUBNER, Gunther. Justiça autosubversiva: fórmula de contingência ou de transcendência do Direito? Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas Serro, Belo Horizonte, n. 4, p. 17-54, out. 2011. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/2259>. Acesso em: 20 dez. 2015, p. 29. 294 TEUBNER, Gunther. Direito e teoria social: três problemas. Tempo Social, Brasil, v. 27, n. 2, p. 75-101, dez. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/108177>. Acesso em: 01 jan. 2016, pp. 75-77. 295 Com base na ideia de “transversalidade”, Teubner afirma que o direito não aceita “[...] o domínio de qualquer racionalidade social parcial [...]”, não reconhece o monopólio de qualquer teoria social: “A razão transversal no direito rejeitaria categoricamente a pretensão de totalidade afirmada atualmente pelas teorias econômicas; ao mesmo tempo, as reconheceria como autodescrições do sistema econômico. A autonomia e a simultânea interligação de muitas teorias sociais parciais seriam adequadamente consideradas se a relevância primaria da expertise econômica fosse reconhecida no direito econômico, o que, contudo, poderia, ao mesmo

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A noção de “responsividade”, por sua vez, pode ser mobilizada para, sem descuidar

da autonomia de ambos os lados, interligar teoria social e doutrina jurídica. As tarefas

assumidas pelas teorias sociais e pela doutrina jurídica são autônomas, mas, desde que

“desenvolva normas independentes”, esta teoria pode se conectar com aquelas: i)

“diacronicamente, na dependência da trajetória dos conceitos jurídicos historicamente

desenvolvidos”; e ii) “sincronicamente, no contexto do código legal e dos programas

jurídicos existentes”. A doutrina jurídica pode se beneficiar dos “desafios externos”

propostos pelas teorias sociais, mas, para tanto, estas precisam ser “traduzidas”

(“reconstruídas”) na doutrina, de modo que os conceitos e normas sejam produzidos de

forma autônoma. Esse “valor doutrinal agregado” não seria alcançado com a

“autoimunização da doutrina jurídica” em relação às teorias sociais, nem com a

“transferência direta de construções teóricas sociais para o direito.”296

tempo, significar que dentro do direito econômico outras teorias sociais são, pois, juridicamente relevantes em um sentido secundário. [...] Mesmo a teoria dos sistemas (com a qual, em especial, simpatizo-me) não pode reivindicar para si tornar-se uma nova ‘superteoria’ e, assim, uma ciência guia para o direito, visto que é, por sua vez, apenas uma teoria parcial da comunicação social, suas diferenciações e suas interdependências – uma especialista do geral, por assim dizer – que não expressa preferências por quaisquer das racionalidades parciais da idade moderna e seguramente não desenvolve quaisquer dessas racionalidades com uma pretensão de representação única, mas, em vez disso, toma como tema central a validade igualitária de diferentes racionalidades sociais.” (TEUBNER, Gunther. Direito e teoria social: três problemas. Tempo Social, Brasil, v. 27, n. 2, p. 75-101, dez. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/108177>. Acesso em: 01 jan. 2016, pp. 81-85). 296 A noção de “responsividade”, consoante Teubner, representa a capacidade do direito de, sem perder a sua autonomia, abrir-se aos desafios lançados pelas teorias sociais: “A responsividade do direito não deve ser julgada perante um fórum das ciências sociais que pudesse garantir o uso autêntico do termo, ou perante um fórum de uma terceira instância superordenadora que agiria como intermediária entre o direito e a teoria social, mas apenas perante o forum internum do próprio direito. Em um exame complexo, o direito deixa-se desafiar pelas análises externas de problemas das teorias sociais, mas isso apenas se elas são passíveis de utilização conforme os próprios critérios de seleção do direito; então, ele as reconstrói internamente em sua própria língua, na qual ele pode, assim, conciliar problemas e soluções entre si. Somente quando esse processo de reconstrução coloca a argumentação jurídica em uma posição na qual ela possa distinguir dentro do direito entre normas e fatos, entre conceitos jurídicos e interesses sociais, é que se alcança um ponto no qual o direito é capaz de levantar a questão da adequação social, em outras palavras, a questão de saber se as decisões judiciais fazem justiça a esses aspectos do mundo exterior, tal como estes foram reconstruídos internamente. [...] Por isso, a recepção legal de teorias sociais nunca é uma tomada de poder autêntica, mas sempre uma re-entry (reentrada) da diferença sistema/ambiente, por meio da qual um espaço imaginário surge no direito, ou seja, é sempre uma reconstrução jurídica interna de demandas externas feitas pela sociedade, pelas pessoas e pela natureza. Responsividade, como uma capacidade do direito de ser desafiado por teorias sociais, não é de modo algum uma ‘comporta’ através da qual – conforme coloca Niklas Luhmann – ‘o conhecimento social poderia cada vez mais e, por assim dizer, sem constrangimentos, fluir para o direito. Pelo contrário, a tensão está na subjetividade do sistema, caso se possa formular assim, e, por conseguinte, na relatividade inevitável de todas as perspectivas do sistema’ [...].” (TEUBNER, Gunther. Direito e teoria social: três problemas. Tempo Social, Brasil, v. 27, n. 2, p. 75-101, dez. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/108177>. Acesso em: 01 jan. 2016, pp. 85-90).

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Já a expressão “autonormatividade” pode contribuir para que, sem que se proponha

uma unidade entre teoria e prática, o direito possa recorrer à “autonormatividade das

práticas sociais”, que se forma “nos procedimentos externos ao direito”. Além da

autonormatividade jurídica, que se forma “nos procedimentos internos ao direito”, as

demais práticas sociais complementam “a produção interna de normas, na medida em que

o direito recorre” às autonormatividades externas. No entanto, estas apenas se tornam

“juridicamente relevantes” após “passar pelo filtro jurídico da teoria do direito, da doutrina

legal e da prática de tomada de decisão judicial”297.

A partir dessa perspectiva de tradução, portanto, pode-se pensar, por exemplo, na

busca do direito por uma importante contribuição da prática econômica: os critérios de

eficiência. Consoante Teubner, Richard Posner, que seria o “principal representante da

teoria do direito econômica”, defende a substituição da “orientação moral-política

obsoleta” pelos “critérios de eficiência econômica”. No entanto, essa posição deveria ser

“vigorosamente” contestada, pois “nega qualquer contribuição autônoma da doutrina

jurídica para o estabelecimento racional de normas”. Na sociedade diferenciada

funcionalmente, o direito opera com um código binário próprio (diferente dos demais

códigos da sociedade), que “constitui a base da autonomia inevitável da doutrina jurídica, a

qual exclui categoricamente qualquer tomada de poder unilateral por parte das teorias

sociais.” A interligação entre teoria social e doutrina jurídica é necessária, mas exige a

manutenção da “autonomia de ambos os lados”298.

297 A normatividade jurídica, conforme Teubner, “[...] sempre se desenvolve em contato [...]” com a “autonormatividade” desenvolvida pelas dogmáticas de reflexão de outros sistemas sociais: “Neste ponto, torna-se claro que o motivo condutor para um encontro interdisciplinar entre o direito e as teorias sociais não é, com segurança, primeiramente um contato com a academia, mas o contato com a sociedade. Para além da sua autonormatividade, o direito procura orientação normativa em diferentes ambientes e em suas normas locais e, além disso, pede ajuda às teorias sociais. No entanto, após uma inspeção mais exata, verifica-se que grande parte do que leva o nome de teoria social não é uma teoria cientifica em sentido estrito, mas uma prática de reflexão sobre diferentes mundos sociais ou, talvez mais precisamente, uma ‘dogmática de reflexão’, similar à teologia e à dogmática jurídica, o que gera orientações normativas nas práticas sociais.” (TEUBNER, Gunther. Direito e teoria social: três problemas. Tempo Social, Brasil, v. 27, n. 2, p. 75-101, dez. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/108177>. Acesso em: 01 jan. 2016, pp. 90-94). 298 TEUBNER, Gunther. Direito e teoria social: três problemas. Tempo Social, Brasil, v. 27, n. 2, p. 75-101, dez. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/108177>. Acesso em: 01 jan. 2016, p. 86. Teubner sintetiza do seguinte modo as três dimensões em que “[...] a relação precária entre a autonomia e a interdependência [...]” deve ser respeitada, para que o encontro entre teoria social e direito gere “[...] um valor agregado em termos de doutrina jurídica [...]”: “1. A transversalidade tira conclusões a partir da autonomia das diferentes e incomensuráveis teorias sociais e de sua interconexão mútua. O direito nega qualquer pretensão de monopólio e seleciona os pontos de contato em uma exploração transversal. 2. A

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A nosso ver, filtrada pela teoria do direito, pela dogmática jurídica e pela prática do

direito, a noção de eficiência e diversas outras contribuições das teorias econômicas podem

ser adotadas pelo sistema jurídico. Desconsiderar determinadas contribuições da prática

econômica não nos parece adequado à realidade social e jurídica contemporânea, assim

como seria inapropriado recepcioná-las automaticamente, desconsiderando a autonomia do

sistema jurídico.

Dentre as noções trabalhadas por Teubner, a de “responsividade” nos parece central

para os fins do presente trabalho e merece mais algumas considerações. A figura do

administrador/julgador eficiente carece de reflexões situadas no âmbito da chamada teoria

do direito, como as produzidas por este trabalho, mas também de desenvolvimentos no

campo da própria dogmática jurídica. Assim como a hipótese do legislador racional está

diretamente ligada à dogmática jurídica desenvolvida historicamente nos países de tradição

romano-germânica, a hipótese do administrador/julgador eficiente pode ser associada a

uma doutrina jurídica responsiva, cuja origem está relacionada à tradição do direito norte-

americano. A convergência dessas tradições jurídicas pode resultar em uma proposta de

dogmática jurídica responsiva, que alie “dogmaticidade” e “responsividade”,

autorreferência e heterroferência, teorias jurídicas e teorias sociais (sociológicas,

econômicas, políticas etc.), sem que isso represente uma perda de autonomia da dogmática

e do sistema jurídicos.

A ideia de uma dogmática jurídica responsiva requer algumas breves

considerações sobre a já mencionada tipologia desenvolvida por Nonet e Selznick acerca

das formas de ordenamento jurídico (“repressivo”, “autônomo” e “responsivo”). Em

primeiro lugar, é preciso apontar para o fato de que estes teóricos partem de pressuposto

diametralmente oposto ao de autores como Luhmann quanto à relação entre teorias

responsividade insiste na autonomia da doutrina jurídica em relação às teorias sociais e justifica sua interligação com elas na medida em que o direito se abre aos desafios que tais teorias colocam, deixa-se inspirar por elas para a inovação normativa e observa seus efeitos sobre o mundo social. 3. Autonormatividade: o direito não alcança a orientação normativa a partir da teoria social, mas unicamente de processos internos a ele e, ao mesmo tempo, a partir da autonormatividade desenvolvida pelas dogmáticas de reflexão de outros sistemas sociais.” (TEUBNER, Gunther. Direito e teoria social: três problemas. Tempo Social, Brasil, v. 27, n. 2, p. 75-101, dez. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/108177>. Acesso em: 01 jan. 2016, pp. 94-95).

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jurídicas e teorias sociológicas, pois, segundo eles: “Para tornar o estudo do direito mais

relevante e mais vivo, é preciso que haja uma reintegração das teorias sociológica, política

e jurídica. Caminhando nessa direção, tentamos reformular as questões de jurisprudência

de uma perspectiva sociológica.”299 Por outro lado, assim como Luhmann, Nonet e

Selznick chamam atenção para o aspecto evolutivo do direito e da sociedade, sem defender

que “a etapa ‘avançada’ seja ‘melhor’ ou mais ‘adaptada’, ou mais estável”300.

A partir desta perspectiva “integradora” e “evolutiva”, os autores distinguem “três

modalidades ou ‘estados’ básicos do direito-na-sociedade: (1) o direito como servidor do

poder repressivo; (2) o direito como instituição diferenciada capaz de controlar a repressão

e proteger sua própria integridade; (3) o direito como facilitador do atendimento às

necessidades e aspirações sociais.” Embora os ordenamentos jurídicos, na prática, tendam

a incorporar aspectos dos três tipos, é possível identificar ordens jurídicas que destacam

mais um tipo do que outro. Também é possível identificar similaridades entre esses três

tipos de modelo e os paradigmas clássicos da teoria do direito. A preocupação com um

direito responsivo, por exemplo, seria “o tema principal de todos os que compartilham do

ânimo funcional, pragmático e orientado a fins de Roscoe Pound, dos realistas jurídicos e

dos críticos contemporâneos do modelo de normas.”301

Embora a ideia de “responsividade” pareça, à primeira vista, incompatível com a

teoria dos sistemas desenvolvida por autores como Luhmann, entendemos que, com as

cautelas e ressalvas necessárias, a noção pode ser recepcionada pela teoria. Há autores

como Krawietz, por exemplo, que partem de uma “perspectiva do realismo jurídico com

sentido crítico” e propõem que a teoria dos sistemas coopere para a “construção de uma

299 NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, pp. 39-42. 300 NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, pp. 60-69. 301 NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, pp. 47-59. Em relação ao aspecto evolutivo do modelo, Nonet e Selznick esclarecem que: “[...] o direito repressivo é ‘anterior’ no sentido de resolver o problema fundamental de instaurar a ordem política, condição sem a qual o sistema político e o sistema jurídico não podem desenvolver aspirações ‘superiores’. O direito autônomo pressupõe, e avança em relação ao repressivo, assim como o direito responsivo avança em relação aos pilares constitucionais, mais limitados, ainda que fundamentais, da etapa do ‘império da lei’ [direito autônomo]” (NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 67).

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teoria estrutural do direito”302. A nosso ver, a ideia de se desenvolver uma proposta de

dogmática jurídica responsiva pode ser uma das possibilidades desta agenda teórica de

diálogo entre a “teoria do direito” e a “teoria sociológica dos sistemas”.

A interpretação jurídica, repensada por uma dogmática jurídica responsiva, poderá

manter em suas bases metodológicas a figura do legislador racional (representante da

dogmaticidade, da autorreferência, da estabilidade, da consistência jurídica), mas associá-

la a uma nova figura: a do administrador/julgador eficiente (representante da

responsividade, da heterorreferência, da flexibilidade, da adequação social). O perfil dos

novos modelos de Estado e de direito que se desenvolvem na contemporaneidade exige

não apenas uma preocupação com a manutenção da integridade/autonomia da dogmática

jurídica, mas também com a adaptação desta teoria às novas realidades sociais, para que

possa desempenhar satisfatoriamente a sua função na sociedade.

O caráter “pragmático”, “flexível”, “brando”, “responsivo”, “dúctil”,

“heterárquico”, do direito contemporâneo demanda interpretações jurídicas capazes de

lidar com uma elevada complexidade social e jurídica. A redução de complexidade

produzida pela dogmática jurídica já não pode se resumir à simplificação de emaranhados

de textos jurídicos. Esta tarefa, inegavelmente importante, deve ser associada à necessidade

de “tradução jurídica” de informações, conhecimentos e teorias provenientes da economia,

da ciência, da política etc. Aqui ganha importância a figura do administrador/julgador

eficiente, que poderá contribuir para uma abertura responsável do direito às contribuições

de outras racionalidades e teorias sociais.

Embora este trabalho tenha enfocado a abertura do direito em relação à economia,

que nos parece essencial para uma adequada compreensão dos riscos, limites e

possibilidades da figura do administrador/julgador eficiente, esta hipótese não está ligada

apenas às interconexões entre direito e economia, mas também entre direito e ciência,

direito e política, direito e educação, direito e saúde etc. A racionalidade oferecida à

302 KRAWIETZ, Werner. Direito e racionalidade na moderna Teoria do Direito. Tradução de Sérgio Cademartori e José Luis Bolzan de Moraes. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 30-44, jan. 1994. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15872>. Acesso em: 29 dez. 2015, pp. 35-38.

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interpretação jurídica pela figura do administrador/julgador eficiente, que está associada à

adequação das decisões jurídicas à complexidade social, complementa a racionalidade

fornecida à interpretação jurídica pela hipótese do legislador racional, relacionada com a

consistência jurídicas dessas decisões.

A dogmática jurídica responsiva, sem descuidar das propriedades “racionais” do

legislador racional, apresentadas na Seção 4.1 deste Capítulo, poderá tratar o

administrador/julgador eficiente como sendo: i) uma pluralidade de indivíduos que ditam a

interpretação dos textos jurídicos que compõem o ordenamento; ii) pragmático/flexível, já

que se adapta aos diversos e cambiantes contextos de interpretação; iii) consciente das

interpretações que produz, inclusive em relação às suas consequências; iv) operativo, pois

não interpreta com o objetivo de se autoiluminar, mas sim para decidir conflitos (potenciais

ou efetivos); v) justo, pois interpreta os textos de modo a alcançar, ao mesmo tempo,

consistência jurídica e adequação à complexidade social; vi) responsivo, já que se

preocupa com a jurisdição e a administração eficientes, mas sem descuidar da legalidade e

da segurança jurídica (isto é, da “autonomia”, do “império da lei”, do “Estado de Direito”);

vii) especializado, uma vez que precisa estar familiarizado com as especificidades da área

do direito e do setor econômico ou social objeto da interpretação; e viii) cético, pois,

embora saiba da importância dos textos jurídico (redundância), tem consciência de que a

interpretação confere sentido aos textos, produzindo novos textos (variação).

Essas propriedades não são incompatíveis com os princípios fundamentais da

hermenêutica dogmática (inegabilidade dos pontos de partida e proibição do non liquet) e

são plenamente conciliáveis com a função da dogmática jurídica (que, como visto na Seção

4.1 deste Capítulo, pode ser identificada na tarefa relacionada ao aumento da liberdade

aceitável no trabalho com experiências e textos). Não se abre mão do direito positivo e da

decidibilidade de conflitos (isto é, da dogmaticidade), pois a característica da

responsividade pressupõe não apenas a abertura cognitiva, mas também o fechamento

operacional.

A figura do administrador/julgador eficiente assume uma função corretiva em face

do legislador racional. Ela lança um novo olhar sobre a interpretação jurídica, tornando

esta operação comunicativa mais complexa. Com isso, evita-se um reducionismo legalista,

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que desprestigie os problemas práticos e a abertura cognitiva do direito ao seu ambiente.

No entanto, o contrário também é verdadeiro: o ideal do legislador racional controla o

administrador/julgador eficiente. Ele exige que a interpretação jurídica não perca a sua

integridade (autonomia) e que o direito mantenha o seu fechamento operacional em face do

ambiente. Portanto, ambos são importantes para o direito e a interpretação jurídica.

Em algum sentido, esse trabalho, ao tentar simplificar a realidade com modelos

como o do administrador/julgador eficiente, pode parecer ingênuo. No entanto, a proposta

de redução de complexidade através do recurso aos modelos tem justamente o objetivo de

ampliar a capacidade de compreensão da realidade e, portanto, de elevar a própria

complexidade investigada. Afinal, como lembra Luhmann: “[...] como devemos começar

senão ingenuamente?” O conhecimento se constrói a partir de diferenciações e

designações, que, ao mesmo tempo, definem o seu “ponto cego”303. As limitações

autoimpostas desta pesquisa conduziram à sua própria condição de possibilidade. A

descrição aqui apresentada, sem dúvida, apresenta pontos cegos, mas o que foi possível

observar e descrever poderá ser reobservado no futuro e, de algum modo, contribuir para a

rede recursiva das comunicações jurídicas.

303 LUHMANN, Niklas. Conhecimento como construção. In: NEVES, Clarissa Eckert Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa. Niklas Luhmann: a nova Teoria dos Sistemas. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, Goethe-Institut/ICBA, 1997, pp. 94-97.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As recentes remodelagens do Estado e do direito encontram claros reflexos na

interpretação jurídica. A base racional para a fundamentação metodológica da atividade de

interpretação jurídica passa, gradativamente, a não ser mais encontrada apenas na figura

retórica do legislador racional. Um novo ideal, que pode ser chamado de

administrador/julgador eficiente, passa a ganhar espaço nos países de tradição romano-

germânica, como o Brasil. Esta nova figura (igualmente retórica) sugere que a

racionalidade da hermenêutica jurídica depende não apenas da adesão dogmática ao direito

positivo (fechamento operacional do sistema jurídico), mas também da abertura responsiva

aos aspectos fáticos relacionados ao direito objeto da interpretação (abertura cognitiva do

sistema jurídico).

A teoria do direito, conforme defendido no Capítulo 1 desta dissertação, tem a

capacidade de oferecer significativas contribuições para a descrição do sistema jurídico se

promover o entrelaçamento de observações internas do sistema jurídico, como aquelas

produzidas pela própria teoria do direito, pelas teorias da dogmática jurídica e pelos

aplicadores do direito, com observações externas do direito, como as que são oferecidas

pela sociologia jurídica. Essa foi uma das principais opções metodológicas deste trabalho,

que, sem deixar de atentar para a preocupação do direito com a decidibilidade de conflitos,

buscou compreender a interpretação jurídica a partir das lentes da teoria dos sistemas

sociais e situar esta operação comunicativa no contexto de recentes mudanças do Estado e

do direito.

A regulação econômica, como indicado no Capítulo 2 deste trabalho, pode ser

apontada como um dos principais atributos do Estado Regulador. Embora conviva com

características marcantes do Estado Liberal e do Estado Intervencionista, o Estado

Regulador enfatiza as políticas voltadas para a intervenção do Estado no domínio

econômico mediante a produção de regulação econômica. Este atributo do novo modelo de

Estado está diretamente ligado à preocupação com os limites da atuação política, com o

recuo do intervencionismo estatal e, em última instância, com o aumento da eficiência

política e administrativa.

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O direito que se desenvolve neste contexto, como buscamos descrever no Capítulo

3 da dissertação, apresenta características diversas daquelas típicas do modelo tradicional.

Ainda que parcela considerável do direito positivo mantenha aspectos como generalidade,

abstração, unilateralidade, coerção, estatalidade, surge também um novo estilo de direito,

que se caracteriza pela concretude, especificidade, cooperação, efetividade, flexibilidade,

interatividade, pluralismo, inclusão e adesão dos destinatários. A metáfora do ordenamento

jurídico piramidal, paulatinamente, cede espaço para a descrição de um ordenamento

circular, heterárquico ou em rede. A preocupação com a legalidade e com a segurança

jurídica passa a conviver com a busca pela eficiência jurídica.

No entanto, conforme procuramos apontar no Capítulo 4 do trabalho, a busca da

realização dos ideais de administração e jurisdição eficientes, de gestão e decisão eficazes,

não deve representar o esquecimento dos valores que historicamente foram privilegiados

pela figura do legislador racional, como segurança jurídica e legalidade. Não há qualquer

elemento empírico que indique que o administrador/julgador eficiente esteja substituindo

ou deva substituir o legislador racional. Se, por um lado, pode-se afirmar que o aumento da

complexidade social tem conduzido à busca de reforços para a figura do legislador

racional, por outro lado, esse mesmo incremento de complexidade não permite que se abra

mão desta figura, que representa uma importante conquista evolutiva do sistema jurídico,

diretamente associada ao fechamento operacional, à autonomia e à diferenciação funcional

do direito.

Espera-se que o presente trabalho, de algum modo, estimule novas pesquisas acerca

da insuficiente figura do legislador racional e da capacidade de operacionalização pela

dogmática jurídica e pelos intérpretes do direito de uma possível nova figura, como a do

administrador/julgador eficiente. Dentre as diversas possibilidades de investigação que se

abrem, podemos destacar: i) estudos relacionados à recepção da ideia de eficiência pela

interpretação jurídica produzida pelos tribunais judiciais e administrativos, bem como

pelos demais espaços de produção jurídica da sociedade (contratos, leis, regulações etc.),

destacando as especificidades da interpretação jurídica produzida em cada um desses

espaços; ii) pesquisas associadas às mudanças no perfil da atuação de atores sociais

tradicionais, como advogados, administradores públicos, juízes e políticos, em razão da

difusão do ideal da eficiência; iii) estudos ligados à adaptação da dogmática jurídica à nova

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realidade do direito, que se orienta, cada vez mais, para os contatos interdisciplinares com

outras áreas do conhecimento, como economia, administração, psicologia, estatística,

contabilidade, sociologia e medicina; iv) pesquisas voltadas para a verificação das

especificidades da recepção de teorias, instrumentos e ideias econômicas nas diferentes

áreas do direito, como direito dos contratos, direito de propriedade, direito da concorrência,

direito administrativo, direito de família, direito penal etc.; e v) estudos ligados à

necessidade de adaptação do ensino jurídico ao novo perfil de Estado e de direito que se

desenvolve contemporaneamente, comparando o modelo de ensino tradicionalmente

adotado com outros modelos de ensino, como o norte-americano.

Não negamos as inúmeras dificuldades relacionadas ao enfrentamento de questões

tão espinhosas quanto as que foram abordadas por este trabalho. No entanto, acreditamos

que os discursos jurídicos que desconsideram as profundas transformações, ocorridas nas

últimas décadas, na sociedade, no Estado, no direito e na interpretação jurídica assumem

“[e]ssa tonalidade amarelada/ Dos cartazes que o tempo descolora... Sim, desses cartazes

ante os quais/ Nós às vezes paramos, indecisos.../ Mas para quê?... Se não adiantam

mais!...”304.

304 QUINTANA, Mario. É a mesma ruazinha sossegada. In: QUINTANA, Mario. A rua dos cataventos. 2. ed. São Paulo: Globo, 2005, p. 27.

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