processos na comunicaÇÃo mÉdico-paciente

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Pontifícia Universidade Católica De São Paulo PUC SP Janaína Gomes Loureiro de Oliveira PROCESSOS NA COMUNICAÇÃO MÉDICO-PACIENTE: Perspectivas para a construção de diálogos efetivos Mestrado em Comunicação e Semiótica São Paulo 2016

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Pontifícia Universidade Católica De São Paulo

PUC – SP

Janaína Gomes Loureiro de Oliveira

PROCESSOS NA COMUNICAÇÃO MÉDICO-PACIENTE:

Perspectivas para a construção de diálogos efetivos

Mestrado em Comunicação e Semiótica

São Paulo

2016

Janaína Gomes Loureiro de Oliveira

PROCESSOS NA COMUNICAÇÃO MÉDICO-PACIENTE:

Perspectivas para a construção de diálogos efetivos

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob orientação da Profª. Drª Lucia Isaltina Clemente Leão.

Mestrado em Comunicação e Semiótica

São Paulo

2016

BANCA EXAMINADORA

_________________________

_________________________

_________________________

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a todas as pessoas que, em algum momento, já

trabalharam comigo, por me ensinarem que a multiplicidade de olhar e de

experiências é fundamental na construção de uma medicina humana e de qualidade.

A vivencia no trabalho em equipes multidisciplinares foi e é muito enriquecedora

para minha vida profissional e pessoal.

Muito obrigada aos meus colegas do grupo de pesquisa CCM, que fazem das

tardes de quinta-feira um tempo de trocar conhecimento e afeto, em especial aos

amigos Thiago Silva e Bernardo Queiroz pela amizade, paciência, conversas, e por

segurarem minha mão nos momentos de dúvida e falta de inspiração.

Agradeço aos meus professores da pós-graduação que sempre tiveram muita

paciência com minhas perguntas, uma outsider que resolveu viver o real sentido da

Universidade, de ser transdisciplinar e de expandir os horizontes do meu

conhecimento, em especial ao professor Rogério Costa, pelos debates biopolíticos e

à professora Lucia Leão por me acolher e orientar nessa trajetória em campos

desconhecidos.

Aos meus amigos por entenderem minhas ausências, em especial à Flávia

Gasi, que me motivou a começar essa caminhada e é fonte de inspiração, pelo

carinho que sempre teve comigo.

Aos meus pais por me fazerem acreditar que posso sonhar qualquer sonho e

por terem me dado as ferramentas para torná-los realidade.

Muito obrigada à Simone Mozzilli por dividir comigo sua experiência e permitir

que eu mencionasse seu projeto neste trabalho. Que seu exemplo seja seguido por

muitas outras pessoas e que continue servindo de inspiração, como foi para mim.

E em especial ao Pablo Franco, meu companheiro de vida, marido que foi

editor, psicólogo, cozinheiro; que aguentou as dores e delícias do processo que se

materializa com esse texto. Que sempre se preocupou e acreditou em mim. Pelo

amor, pelo carinho, pela amizade, pelo café.

OLIVEIRA, Janaína Gomes Loureiro de. Processos na Comunicação Médico-Paciente: Perspectivas para a Construção de Diálogos Efetivos. 2016. Dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bolsa CAPES. Orientadora: Lucia Isaltina Clemente Leão, 71p.

RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo estudar a problematização dos discursos e diálogos

na comunicação entre paciente e médico. Queremos nos atentar ao processo de

construção de uma relação calcada em poder e autoridade, por isso, verticalizada,

entre médico e paciente. Como a disseminação da informação por meios de

comunicação, ao empoderar os pacientes, põe essa autoridade em discussão e

quais os efeitos disso na relação médico-paciente? Vamos observar como a

mudança no discurso usada por médicos midiatizados aproxima a linguagem técnica

e não-técnica e um trabalho de tradução feito por uma ONG para explicar termos

médicos a crianças em tratamento de câncer. Buscaremos fazer uma arqueologia da

ampliação da importância da medicina com a biopolítica, além de fazer proposições

de possíveis diálogos que estejam inseridos em uma relação complexa e

horizontalizada. Dessa forma, podemos estudar os diferentes vínculos criados na

relação médico-paciente, na vivência da doença. Para tal, propomos uma revisão

dos estudos de Foucault, Leão e Morin no tocante de comunicação e semiótica; de

Rose, Rabinow, Kumar, Illich e Latour, na pesquisa sociológica; e de Serson, Edler,

Castiel e Caprara, para as vivências médicas e de relação com os pacientes. A partir

de um método de arqueologia do nascimento da medicina como ciência e da

construção da autoridade médica, baseada na biopolítica; da cartografia da evolução

da relação entre médicos-pacientes-mídia; e do trabalho de tradução feito por uma

ONG, pretendemos estabelecer as bases para a criação de um futuro método que

poderá ser aplicado por médicos no tratar de seus pacientes.

Palavras-chave: comunicação médico-paciente; tradução médica; tradução;

comunicação.

ABSTRACT

The objective of this research is to study the problematization of speeches and

dialogs in the medic-patient communication. We want to focus on the building of the

relationship process based on power and authority, whence, verticalized, between

medic and patient. How the information dissemination across the media, to empower

the patient, put this authority under discussion and which's their effects in this

relationship? Let's look at how changes on the speech of mediatized doctors brings

the technical language closer to the non-technical language and a translation work

made by an NGO to explain medical terms to children undergoing cancer treatment.

We will search for an archeology of the enlargement of medicine and biopolitics

importance, in addition to making propositions of possible dialogs that are inserted in

a complex and horizontalized relationship. This way, we could study the different

connections made at the doctor-patient relationship, at the disease experience. For

such, we propose a review of Foucalt, Leão and Morin studies, with respect to the

semiotics and communication; Rose, Rabinow, Kumar, Illich and Latour, on the

sociological research, and Serson, Edler, Castiel and Caprara, for the medical

experience and the relationship with the patients. From an archeological method to

the birth of medicine as science and the building of medical authority, based on

biopolitics; the cartography of the evolution of the relationship between medic-

patient-media; and the translation work made by a NGO, we intend to lay the

foundation for the creation of a future method wich could be applied by medics in

dealing with their patients.

Key Words: doctor-pacient communication; medical translation; translation;

communication.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Logomarca da ONG Beaba ............................................................... 58

Figura 2: Capa da cartilha Beaba do Câncer .................................................... 59

Figura 3: Exemplo de busca no Google e da tradução realizada pelo Beaba .. 60

Figura 4: Exemplo extraído da cartilha ............................................................. 61

Figura 5: Exemplo de verbete da cartilha ......................................................... 61

Figura 6: Outros verbetes da cartilha ................................................................ 62

Figura 7: Processo de criação da cartilha Beaba do Câncer ............................ 63

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 09

1 A CONSTRUÇÃO DA AUTORIDADE MÉDICA ............................................ 19

1.1 Origem da medicina e seu estabelecimento como ciência moderna... 19

1.2 Contextualização para a realidade brasileira ......................................... 30

2 A SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO E O DESAFIO AO PODER DO

MÉDICO ............................................................................................................

41

2.1 Sociedade de informação ......................................................................... 41

2.2 Medicina e poder ....................................................................................... 43

2.3 Médicos e pacientes experts .................................................................... 48

3 MIDIATIZAÇÃO E TRADUÇÃO .................................................................... 53

3.1 Médicos que se apropriam das mídias ................................................... 53

3.2 A linguagem médica em tradução – Beaba ............................................ 58

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 65

REFERÊNCIAS ……………………………………………………………………... 67

9

INTRODUÇÃO

No ano de 1998 ingressamos no curso de medicina na Universidade Federal

do Mato Grosso com obtenção do título de bacharel em medicina em janeiro de

2004. Iniciamos a atividade médica no interior do Mato Grosso no final do mesmo

ano, atuando com saúde da família durante um ano e meio em três cidade diferentes

que apresentavam perfis populacionais semelhantes, com variação de 5 a 28 mil

habitantes que apresentavam problemas comuns a habitantes de regiões

interioranas: recursos limitados, serviços de referência distantes e pouco apoio do

município e do estado para a solução de problemas de fácil resolução.

Após nossa experiência com atendimento médico nas cidades do interior do

estado, retornamos para Cuiabá onde demos continuidade à atividade médica com

saúde da família em uma comunidade rural. Nessa mesma época atuamos como

plantonista em um pronto atendimento pediátrico e em um hospital psiquiátrico na

capital.

No fim do ano de 2009, com a mudança para a cidade de São Paulo,

mantivemos nosso trabalho de saúde de família na região do Tremembé, pela Santa

Casa de Misericórdia de São Paulo, e também atuamos como plantonista do pronto

socorro adulto e, no município de Osasco, da UTI adulto.

Apesar de não termos iniciado o processo de especialização ou residência

médica, as diferentes realidades que enfrentamos em nossa atividade profissional

associadas às várias áreas em que atuamos, nos deram uma visão complexa do

paciente com o qual tivemos contato e da qual percebemos ser diferente da que

colegas de profissão costuma ter.

Entendemos que pessoas adoecem em um contexto sócio-econômico-

cultural e essa posição contextual dá a cada um ferramentas individuais para

enfrentar o adoecer e o tratar-se. Isso nos levou à questionamentos sobre a relação

entre os médicos e seus pacientes, sobre como convencer uma pessoa a aceitar

uma nova condição de vida e como isso transforma seu meio social.

Os questionamentos que surgiram nos levaram ao programa de pós-

graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, pois cremos que se houver uma sensibilização dos médicos a olhar de uma

outra forma seus pacientes, diversos problemas que enfrentamos nos consultórios

10

como por exemplo a baixa adesão ao tratamento, processos judiciais por “erros

médicos” e promoção eficaz à saúde, podem ser mitigados.

Tradicionalmente, o ensino de disciplinas relacionadas à comunicação não é

parte do currículo de ensino da medicina. Os alunos são apresentados à relação

com os pacientes no exato momento em que são apresentados ao paciente, durante

atendimentos supervisionados e visitas na beira do leito com preceptores. Nesse

momento as doenças são separadas dos pacientes. Acreditamos que essa

negligência na formação de médicos-comunicadores pode ser um dos fatores

contribuintes para o não entendimento entre médicos e pacientes.

Diante dos problemas que permeiam as relações entre médico e paciente, a

presente pesquisa busca analisar os sistemas comunicacionais desenvolvidos pela

ONG “Beaba“, que propõe alternativas criativas aos modelos de processos

comunicacionais vigentes. A ONG em questão foi fundada por uma publicitária que

adoeceu e teve experiências ruins com a forma como seus médicos se

comunicavam com ela, por conta disso, iniciou um trabalho com crianças em

tratamento de câncer para explicar-lhes de forma humanizada sobre a doença e seu

tratamento.

As diferenças sócio-culturais-educacionais entre médicos e pacientes,

dificuldade em traduzir a linguagem técnica para o coloquial, o estresse causado

pela doença e a falta de capacitação para ouvir são elementos que parecem

atrapalhar esse entendimento. Este trabalho busca identificar essa “rede complexa e

multilinear que compreende diversos elementos: das perguntas norteadoras do fazer

às escolhas de suportes, técnicas e mídias” (LEÃO, 2011, p.3) presentes no

discurso que permeia a relação médico-paciente.

Problema de pesquisa

Quais são os problemas na comunicação entre médicos e pacientes? Existe

apenas dificuldades nos processos de tradução dos conhecimentos médicos para

uma linguagem coloquial? Qual o processo de criação dos modelos de um discurso

médico acessível às pessoas não familiarizadas à terminologia médica? É possível

construir uma relação entre médico e paciente de forma menos hierarquizada?

No dia-a-dia da clínica, a Medicina ainda não conseguiu digerir toda a

mudança ocorrida nos últimos 60 anos, com a massificação da informação advinda

11

do surgimento do rádio, televisão, revistas e a internet. Os médicos que se

consideravam detentores de um conhecimento inacessível ao resto do mundo, viram

surgir mudanças na comunicação com seus pacientes. De que forma podemos

integrar novas fontes de informação para melhorar a relação entre médicos e

pacientes? Os médicos que tem um canal efetivo de comunicação têm uma

abordagem diferente do “habitual, corriqueiro” com seus pacientes?

Ouvir o paciente pode se tornar um ato doloroso, na medida que provoca

envolvimento. Deixar-se afetar pelo paciente é algo que somos ensinados durante

nosso processo de formação a não deixar acontecer para que não sejamos tocados

pela sua dor. Ora, como um médico pode afetar um paciente, se, em sua formação,

esse médico aprendeu a não ser afetado?

Justificativa

Causa estranheza que a “comunicação médico-paciente” não tenha merecido

atenção das disciplinas ligadas à Comunicação. Preencher esta lacuna é um dos

objetivos desta pesquisa, para que, com esta nova visão, essa relação, naturalmente

tensa, possa ser menos turbulenta, com menos mal-entendidos.

Este trabalho se mostra relevante na medida em que pretende estudar o

processo de criação do modelo de discurso dos médicos, com sua dificuldade em

estabelecer vínculo, ouvir realmente o paciente, sem tirá-lo de seu contexto. Com

enfoque na diversidade de representações do simbólico do adoecer, do hospital, do

remédio, com viés da Semiótica/Comunicação.

Também quer entender a comunicação como tríade, como objeto complexo e

não necessariamente material, atualizando, dentro da medicina, a visão dualista que

recebe nas discussões sobre o tema (já citadas), dando nova perspectiva e

buscando novas abordagens para os médicos construírem com seus pacientes

vínculos mais positivos e consistentes.

Objetivos

Estudar o fenômeno comunicacional nas relações médico-pacientes, sob o

ponto de vista da complexidade;

Propor considerações para a construção de diálogos efetivos;

12

Estabelecer as bases epistemológicas para um futuro método em que o

processo comunicacional seja relevante às vivências do paciente, bem como

fornecendo as bases para a criação de um discurso médico plural.

Fundamentação

Olhar para o exercício da medicina como é praticado hoje pode parecer um

desafio, mas dada a nossa experiência particular no desempenho de nossa função

profissional, nos vemos na posição de questionar o lugar da comunicação entre

médico e paciente de acordo com seus fins vitais. A prática médica nos parece

guiada por conceitos dogmáticos que excluem a importância da comunicação sendo

que para nós ela possui importância vital para o cumprimento do ciclo que se inicia

com a queixa feita pelo paciente, que devemos destacar que é feita ao seu modo de

se expressar, ao processo de exame feito pelo médico e sua forma de comunicar o

diagnóstico e o tratamento ao enfermo. Nossa pesquisa buscará uma arqueologia

dos processos comunicacionais que ocorrem nessa relação entre médico e paciente.

Em “O Nascimento da Clínica”, Foucault descreve como a medicina se

inventa como ciência moderna, através da adoção do método cartesiano, positivista,

e da sua união com outras disciplinas, como a estatística. Dessa junção, além da

medicina moderna que se ocupa de taxas de natalidade e mortalidade, vigilância

sanitária e cuidados que temos que ter conosco, como alimentação e exercícios,

também nasce a autoridade médica.

Munidos dessa autoridade e do poder do seu discurso, os médicos se

mostram insensíveis a seus pacientes: os descontextualizam e os desmembram. O

corpo doente não comporta um espírito que sofre com sua doença, os médicos se

esquecem do mito de Quíron - o curador ferido - e mantém distância de seus

pacientes através de um discurso - e uma relação - hierarquizados. Esquecemos

que a “ciência é, intrínseca, histórica, sociológica e eticamente, complexa” (MORIN,

2014b, p. 9). Como se nosso, e aqui me incluo como médica, conhecimento fosse

inacessível aos pacientes, que devem permanecer passivos e apenas receber as

orientações recebidas. Essa visão dual (receptor-emissor) é como a comunicação é

assimilada pela medicina (SIQUEIRA, 2004). As

[...] normas que guiam os sentimentos dos médicos são fortes. Idealmente os médicos são encorajados a sentir uma simpatia moderada pelo paciente,

13

mas preocupação excessiva e todos os sentimentos baseados na individualidade do paciente ou do médico são proscritos. (SMITH; KLEINMAN, 1989, p.1, tradução nossa)

Durante a década de 1950 um movimento surgiu em algumas escolas norte

americanas de Medicina, com a intenção de medir a satisfação dos pacientes com o

atendimento e o tratamento médico. Mas só medir satisfação não era o bastante e,

durante outros estudos para identificar os motivos da insatisfação, os pesquisadores

identificaram as falhas no processo de comunicação (BALINT, 1957, tradução

nossa).

A partir da década de 1960, ocorrem mudanças culturais e sociais que

também afetam a relação entre médicos e pacientes. Hobsbawm descreve como

transformações sociais importantes: o declínio do campesinato, o crescimento de

ocupações que exigiam educação secundária e superior, com o consequente

aumento da população universitária, as transformações técnicas da produção que

reduziu a população operária, em especial nos países que se industrializaram mais

precocemente (seja pela mecanização das linhas de produção, seja pela

transferência dessas fábricas para países menos desenvolvidos, portanto com mão

de obra mais barata), o crescente papel das mulheres no mercado de trabalho, com

a mudança “nas expectativas das mulheres sobre elas mesmas e nas expectativas

do mundo sobre o lugar delas” (HOBSBAWM, 1995, p.307) como gatilhos para a

mudança cultural que ocorreria:

Os movimentos dos anos de 1960, seja na sua expressão mais propriamente política, seja na contracultura, ou mesmo nos modos em que combinaram essas expressividades, tiveram como traço característico a transgressão de padrões de valores estabelecidos. Transgressão não no sentido de uma pura negatividade, ou de uma negação absoluta dos limites estabelecidos, mas de um movimento que os atravessa afirmando novos limites. Em outros termos, um movimento que é de negação de valores estabelecidos, mas que na sua face positiva se lança no risco da afirmação de novos valores. (CARDOSO, 2005, p. 2)

Essa transgressão leva os pacientes a assumirem um novo lugar na avaliação

dos serviços de saúde e, em vez de ser receptáculo de recomendações, começam a

reivindicar o direito de ser ouvido e participar das decisões que envolvem seu

tratamento e fazem da relação médico-paciente um caminho de duas vias. Em 1973,

como símbolo da “rebelião” dos pacientes, a Associação Americana de Hospitais

aprova a “Carta de Direitos do Paciente”, que garante ao paciente o direito de

receber informação completa sobre seu quadro clinico e o compartilhamento de

14

decisões clinicas, resultado do descontentamento com a comunicação entre a

equipe médica e o paciente.

Essa mudança de postura é o início de uma nova abordagem na medicina, a

“medicina centrada no paciente” que é o componente principal de atenção à saúde

de alta qualidade, se baseia em três valores essenciais: (a) considerar as

necessidades, vontades, perspectivas e experiências individuais de cada paciente,

(b) oferecer aos pacientes oportunidades de opinar e participar do seu cuidado e (c)

aprimorar a parceria e o entendimento na relação médico-paciente (ASNANI, 2009,

tradução nossa), é a “resposta” médica a esse movimento dos pacientes. Mas ainda

insuficiente porque não sistematizado.

A partir dos anos 1990, a ideia de humanizar a saúde entra em foco, primeiro

criticando a impessoalidade e desumanização da assistência a saúde e, depois,

propondo novas práticas para modificar essa assistência, dando dimensão

individual, humana e ética ao atendimento.

Surge neste período, na Inglaterra, a primeira normalização de como o

médico deve se comunicar dentro do consultório, o Calgary-Cambridge Guide to the

Medical Interview 1 (KURTZ; SILVERMAN; DRAPER, 1998, tradução nossa) que

compreende 71 passos para orientar uma melhor forma de comunicação dentro do

consultório, publicado em 1998, sendo adotado por muitas escolas médicas

europeias e latino-americanas (menos no Brasil).

Nos EUA, o método britânico é adaptado em uma norma intitulada SEGUE2

que também serve para orientar médicos a estabelecer uma relação mais amigável

com seus pacientes (ASNANI, 2009, tradução nossa). De forma resumida, ambos os

métodos consistem em dividir a consulta em algumas etapas, para facilitar o

estabelecimento de uma relação.

No Brasil, no final de 2001, a Câmara de Educação Superior do Conselho

Nacional de Educação propõe novas diretrizes para o ensino médico brasileiro, que

em seu Art. 3º, define que:

O Curso de Graduação em Medicina tem como perfil do formando (...) o médico, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção,

1 Guia para a Entrevista Medica de Calgary-Cambridge, sem tradução para o português. 2 Set the Stage, Elicit Information, Give Information, Understand the Patient's Perspective, End the Encounter - criar o cenário, extrair informação, dar informação, entender a perspectiva do paciente, terminar o encontro - numa tradução nossa).

15

recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano. (CNE, 2001, p.1)

Em 2006, o Ministério da Saúde pública a “Carta de Direito dos Usuários da

Saúde” que preconiza o direito dos pacientes e familiares a receber informações

claras sobre a patologia, respeito às suas crenças e cultura, acesso ao prontuário e

liberdade de recusar tratamentos/procedimentos médicos. Ainda que adotada com

33 anos de atraso em comparação aos EUA, a medida levou algumas escolas

brasileiras a valorizarem o preparo da relação entre médicos e pacientes, adotando

carga horária em disciplinas da formação básica dos cursos de graduação, de forma

pontual em algumas universidades brasileiras, normalmente nas áreas de psicologia

ou de saúde coletiva. Mas ainda não de forma normativa e generalizada.

Não há, porém, um estudo especifico da Comunicação sobre o diálogo entre

médico e paciente, base sobre a qual se constrói o atendimento de saúde. A maioria

dos trabalhos apresentados se concentra nas áreas de psicologia e saúde coletiva e

analisam a visão do paciente (OSTERMANN; SOUZA, 2009; VAITSMAN;

ANDRADE, 2005), como se este fosse a única “vítima” de uma comunicação ruim.

Há vários movimentos de humanização e incremento da relação, todos visando os

pacientes. Esses estudos perpetuam a ideia de que o poder está centrado no

médico e que o paciente sempre é prejudicado, sempre é vítima do médico.

Observamos que, no processo de busca, enquanto a medicina se armava de

tecnologia, se desumanizava. Em seu pensamento complexo, Morin (2011) explica

que “a matematização e a formalização desintegraram os seres e os entes para só

considerar como únicas realidades as fórmulas e equações que governam as

entidades quantificadas”. Ao iniciar a construção da teoria da complexidade, discorre

sobre como a ciência hoje se engana quando separa o objeto de seu contexto.

Como a medicina faz ao separar a doença da pessoa que a carrega e quando divide

o corpo em setores desconectados. O médico também se desconecta de seu

paciente ao reduzi-lo a pedaços que podem adoecer e ao desnudá-lo de sua

história. De acordo com Caprara e Rodrigues:

A racionalização científica da medicina moderna é baseada numa mensuração objetiva e quantitativa e na visão dualista mente-corpo. Esse modelo cartesiano subestima a dimensão psicológica, social e cultural da relação saúde-doença, com os significados que a doença assume para o paciente e seus familiares. Os médicos e pacientes interpretam a relação saúde-doença de formas diferentes. Além dos aspectos culturais temos de

16

enfatizar que eles (médicos e pacientes) não se colocam no mesmo plano: trata-se de uma relação assimétrica em que o médico detém um corpo de conhecimentos do qual o paciente geralmente é excluído. (CAPRARA; RODRIGUES, 2004, p.3)

Morin trata do divórcio entre objeto e contexto nos estudos científicos “nós

vemos que os ‘objetos’ estudados pela ciência, e tratados pela ciência simplesmente

como objetos, de fato, são todos sistemas”3 (MORIN, 2014a, p.2, tradução nossa), e

propõe que consideremos a humanidade como trindade: somos seres espaciais,

individuais e inseridos na sociedade, de forma que cada um desses elementos

geram os outros e são regenerados pelos outros, “dessa forma uma pessoa é um

ciclo recursivo, e é somente para isso que a complexidade humana pode ser

reduzida”4 (MORIN, 2014a, p.4, tradução nossa), justamente o que a medicina deixa

de enxergar no nosso tempo.

Na leitura de Derrida, em Farmácia de Platão, a questão do phármakon

ressurge no contexto de que “Não há remédio inofensivo. O phármakon não pode

jamais ser simplesmente benéfico” (DERRIDA, 2005, p. 46). A ideia de phármakon,

vem do termo grego de sentido ambíguo, e significa ao mesmo tempo remédio e

veneno:

[...] participa ao mesmo tempo do bem e do mal, do agradável e do desagradável. Ou, antes, é no seu elemento que se desenham essas oposições. Depois, mais profundamente, para além da dor, o remédio farmacêutico é essencialmente nocivo porque artificial. (DERRIDA, 2005, p. 46)

Serson, por sua vez, retoma a ideia de phármakon para falar sobre a

necessidade da palavra do médico no tratamento do paciente, como ele explica: é a

"substância medicamentosa […] indissociada da palavra do médico que a prescreve”

(SERSON, 2007, p. 1). Não podemos ter um bom phármakon "sem as palavras de

orientação sobre dosagens, tempo de uso, efeitos colaterais, expectativas e riscos

do tratamento e sem que o paciente valide o diagnóstico e a conduta do médico”

(SERSON, 2007, p. 2). Essa validação só acontece com o estabelecimento de um

bom vínculo.

3 we see that the “objects” studied by science, and treated by science simply as objects in fact are all systems - Morin, 2014 4 in this way a person is a perpetual recursive loop, and it is only to this that the complexity of humanity can be reduced - Id.

17

Estabelecer vínculo implica, sim, em maior envolvimento, o que somos

ensinados a evitar a todo custo durante a formação, para que a emoção não

atrapalhe a razão, como se um existisse sem o outro.

[...] a ideologia da neutralidade é forte na medicina; ainda que nenhuma disciplina do currículo médico lide diretamente na mudança ou eliminação de sentimentos inapropriados. [...] a discussão dos sentimentos dos estudantes é tabu; seu desenvolvimento na direção da neutralidade emocional permanece parte de um currículo oculto. (SMITH, 1989, p.3, tradução nossa)

Também somos “maquinizados”, robotizados, viramos parte da tecnologia que

se faz tão necessária ao funcionamento das engrenagens da assistência à saúde

moderna. E deixamos nossa bagagem humana para trás. Para o graduando em

Medicina, os doentes são doenças, não pessoas (TURINI et al, 2008).

Caprara e Rodrigues (2004), conclui que: "é importante enfatizar a introdução

das 'humanidades médicas’ na formação universitária e na educação continuada”

(p.6). Por humanidades médicas entende-se:

[…] a incorporação de elementos das ciências humanas (filosofia, psicologia, antropologia, literatura) na formação e na prática dos profissionais de saúde […] como um espaço para repensar a prática em medicina, intervindo na qualidade da assistência com a personalização da relação, a humanização das atividades médicas, o direito à informação, o aperfeiçoamento da comunicação médico-paciente, diminuindo o sofrimento do paciente, repensando as finalidades da medicina, aumentando o grau de satisfação do usuário. Trata-se de um campo que precisa de investigações de novas elaborações conceituais e empíricas. (CAPRARA; RODRIGUES, p. 6, 2004)

E essa percepção de que é preciso humanizar essa relação, com melhora na

graduação para construir relações mais satisfatórias, está bem estabelecida nas

pesquisas conduzidas sobre o tema. O que não se tem é o viés da Comunicação,

como se o diálogo entre pacientes e médicos não fosse interessante às ciências

sociais aplicadas, em especial à Comunicação.

Esta pesquisa acredita que trará à luz as razões para essa comunicação

ineficaz entre médicos e pacientes, proporcionando debate sobre como os médicos

são educados na graduação para se comunicar. Espera entender a questão da

vivência da doença (e seus signos) como parte integrante do processo

comunicacional entre médicos e pacientes e como essa relação é afetada por esse

imaginário.

18

Materiais e Método

Através de um método arqueológico, a presente pesquisa prevê:

- Estudos teóricos sobre imaginário, semiótica e biopolítica, além do que já

existe estabelecido, dentro da medicina, sobre comunicação médico-paciente.

- Entrevistas com responsáveis da organização não-governamental Beaba, que

faz trabalho de tradução de linguagem médica para não técnicos, para

entender como o adoecer impacta o imaginário e como a oferta de informação

atinge o paciente.

- Estudos qualitativos dos médicos que tem canal de comunicação em mídias

tradicionais e digitais para verificar como a necessidade e a mudança da

comunicação impacta sua relação com os pacientes.

- Síntese do que foi estudado para estabelecer as bases para um futuro

método de criar diálogo complexo entre os médicos e seus pacientes que leve

em consideração o processo de criação complexo do discurso médico.

19

1 A CONSTRUÇÃO DA AUTORIDADE MÉDICA

Neste capítulo, o objetivo é apresentar um panorama sobre a origem da

medicina como ciência moderna para poder entender como o médico chega à

posição de poder e autoridade na nossa sociedade. O capítulo adota a perspectiva

da arqueologia e está fundamentado em Foucault, especificamente no texto “O

Nascimento da Clínica” escrito em 1963, em que discute as mudanças que o olhar

da medicina sofreu, e como essa mudança de olhar também mudou o objeto da

medicina, explica que a experiência clínica foi tomada como um confronto simples,

sem conceito, entre um olhar e um rosto, espécie de contato anterior a todo discurso

e livre dos embaraços da linguagem, pelo qual dois indivíduos vivos estão em uma

situação comum, mas não recíproca.

Discorro sobre como, nesse processo de mudança do objeto da medicina, ao

assumir um papel normatizador dado pelo estado, o médico passa a ser autoridade

e assume função mais ativa que expectativa sobre as doenças e sobre a saúde das

pessoas, mas também é transformado em engrenagem do poder na máquina social.

Há um panorama sobre o desenvolvimento da medicina no Brasil e como

esse poder sobre o biológico causou um conflito emblemático no país, a guerra da

vacina que marcou a história da cidade do Rio de Janeiro.

1.1 Origem da medicina e seu estabelecimento como ciência moderna

As doenças sempre ocuparam um lugar importante na história da

humanidade. Na sua origem, a preocupação da medicina era a doença e o processo

patológico (TUBINO; ALVES, 2009). A tentativa de explicar o adoecimento levou os

primeiros grupos humanos a associar a doença a punições divinas, por isso a figura

do curandeiro era mesclada à do líder religioso,

O homem primitivo achava que as doenças eram causadas por poderes sobrenaturais que precisavam ser apaziguados. Surgiram curadores, feiticeiros que alegavam conhecer as estrelas, as ervas curativas e os venenos; que diziam ter o poder de aplacar a fúria dos demônios. A medicina começava a partir de práticas instintivas e empíricas. Assim, a história da medicina sempre esteve muito ligada à da religião, pois ambas visavam a defesa do indivíduo contra as forças do mal. (TUBINO; ALVES, 2009, p. 3)

20

Se os regimes das estações, da caça, das plantações eram governado pelos

deuses, as doenças também eram, a medicina

[...] caracterizava-se pela associação de uma terapêutica sintomática, que procurava ser eficaz com práticas encantatórias, as quais provinham mais de tradições magicas e religiosas do que de princípios clínicos e racionais. A doença era vista como castigo ou pecado. (ZANCHI; ZUGNO, 2012, p. 20)

A partir do século VI a.C. os filósofos gregos passaram a propor um novo tipo

de conhecimento baseado no raciocínio, não na religião, e começaram a estudar de

fato como o corpo funciona, e qual a influência de medidas dietéticas, higiênicas, de

repouso e exercícios, do clima sobre esse corpo:

A medicina grega desenvolveu-se paralelamente à filosofia, disciplinada por um severo criticismo, tornando-se pela primeira vez uma ciência e uma arte praticada não pelos sacerdotes, mas por leigos que substituíram a magia pela investigação. (TUBINO; ALVES, 2009, p. 96)

Até a Idade Média, na Europa, a principal fonte de conhecimento médico

eram os escritos de Hipócrates, cujos textos discutiam desde assuntos básicos de

como o corpo funcionava e o que era doença, anotações sobre dados

meteorológicos e sua correlação com epidemias, diagnóstico e prognóstico,

tratamento de fraturas e feridas, como alimentar e confortar enfermos e o cuidado do

corpo para evitar adoecer (TUBINO; ALVES, 2009). Também há livros sobre

doenças onde trata de descrevê-las com seus sintomas, prognóstico e tratamentos,

cuidados das enfermidades femininas, infantis e do parto; trabalhos sobre ética,

princípios e comportamento dos médicos.

Em Roma, a medicina era praticada pelos gregos, que depois de terem sua

cidadania romana concedida por Júlio César, em 46 a.C., passaram a ter mais

prestigio na Corte. E deixaram como legado “progresso da saúde pública, do

desenvolvimento de uma higiene pessoal, da inspeção de alimentos do controle da

prostituição, de campanhas antimaláricas, etc.” (ZANCHI; ZUGNO, 2012, p. 22).

Um dos maiores desses médicos romanos é Galeno, muito importante para

os médicos medievais, que viveu entre os séculos I e II na Grécia e Itália. Estudou

filosofia e medicina, atuou como médico de gladiadores e de Cômodo (herdeiro de

Marco Aurélio, imperador romano), na corte de romana. É considerado o fundador

da fisiologia experimental e também escreveu sobre gramática, filosofia e literatura,

21

que foi traduzido para o árabe e, dessa forma, chegou até nós. Dizia que o médico

deveria ser um filósofo.

Galeno considera que o corpo é apenas um instrumento da alma e cada

organismo se constitui segundo um plano lógico estabelecido por um ser supremo,

arquiteto e guia do universo. Seus estudos de anatomia e fisiologia foram feitos em

dissecções de animais, uma vez que suas crenças religiosas não permitiam que

violasse o corpo humano. Assim, o conteúdo de seus escritos era bastante aceitável

para a crescente teologia da fé cristã (MELO, 1989). Suas ideias dominaram a

medicina europeia durante cerca de mil anos.

Durante a Idade Média, a dissecação de cadáveres humanos era proibida

pela Igreja e autoridades governamentais e quem fosse apanhado dissecando

corpos poderia ser punido. Os estudos em cadáveres, nessa época, dependiam da

autorização expressa do rei, o que acontecia eventualmente, como em 1315 quando

Frederico II, imperador da Alemanha e das Sicílias, tornou obrigatório para os

cirurgiões o estudo da anatomia em cadáveres humanos (PETRUCELLI; LYONS,

1997).

No Renascimento, muitos artistas, aí incluídos Leonardo Da Vinci, Rafael e

Michelangelo Buonarotti, também estudaram anatomia em cadáveres humanos para

poder embasar sua criação artística e torná-la realista, buscando esse

conhecimento, numa relação entre arte e ciência, algumas vezes de forma

clandestina. Nessa época surge o primeiro livro de anatomia, o “De humani corporis

fabrica” (Da Organização do Corpo Humano) escrito por Andreas Vesalius em 1543.

Segundo Vesalius, grande parte da teoria de Galeno não era precisa, uma vez que

foi extrapolada por comparação em dissecações feitas em animais (GARDNER;

GRAY; O´RAHILLY, 1978). Nesta época, a anatomia deu um grande passo para

conquistar definitivamente o seu papel fundamental como “Ciência Básica” para a as

ciências medicas, e em especial, a prática cirúrgica.

Interessante assinalar que nesse período, a cirurgia não era considerada

como parte da clínica, que cuidava das enfermidades não-cirúrgicas como febres e

tosses, por exemplo; a cirurgia tratava de feridas e amputações; e os boticários

tratavam das crianças (FOUCAULT, 2014). Médicos respeitáveis não abriam

pessoas.

No período pré-urbanização, a medicina servia-se a classificar as doenças,

cartografando seu espectro de manifestação, situando um sintoma em uma doença,

22

uma doença em um conjunto específico e este conjunto em um lugar adequado

dentro do mundo patológico. Nas palavras de Foucault, “a medicina classificatória

supõe uma determinada ‘configuração’ da doença, que nunca foi, por si mesma,

formulada, mas de que se podem, posteriormente, definir os requisitos essenciais”.

(FOUCAULT, 2014, p. 3). A doença insere suas características próprias ao ser vivo,

não dependendo dele para evoluir. É como se fosse uma entidade separada do

corpo,

[...] os órgãos são os suportes sólidos da doença; jamais constituem suas condições indispensáveis. O sistema de pontos que define a relação da afecção com o organismo não é constante nem necessário. Não há espaço comum previamente definido. (FOUCAULT, 2014, p. 10),

e o médico é espectador desse processo, sem interferir para que a doença possa

florescer. Ainda não vemos a divisão do corpo em compartimentos que adoecem,

vemos a separação em o corpo e a doença, sendo o primeiro mero suporte para a

segunda, o que Foucault chama de medicina das espécies, em que a doença é

separada do doente, porque este atrapalha sua evolução:

[...] o doente acrescenta, como perturbações, suas disposições, sua idade, seu modo de vida e toda uma série de acontecimentos que figuram como acidentes em relação ao núcleo essencial. Para conhecer a verdade do fato patológico, o médico deve abstrair o doente. (FOUCAULT, 2014, p. 7)

Mudanças causadas pelo Iluminismo como as Revoluções francesa e

Industrial, provocam uma onda migratória para as cidades. O hospital que acolhe os

doentes, nesse momento, é um lugar artificial, em que a doença corre o risco de

perder sua essência, por contaminar-se com o contato com as outras enfermidades,

alterando sua natureza e a tornando mais difícil de ser lida, segundo Foucault,

nenhuma doença de hospital é pura,

[...] só, livre de intervenção, sem artificio médico, ela apresenta a nervura ordenada e quase vegetal de sua essência. Mas quanto mais complexo se torna o espaço social em que está situada, mais ela se desnaturaliza.” (FOUCAULT, 2014, p. 16)

Por isso, o médico do hospital só vê doenças distorcidas, alteradas; a

institucionalização oprime as doenças. O médico que atende em domicilio adquire,

de acordo com o pensamento da época, experiência verdadeira porque é fundada

na observação dos fenômenos naturais de todas as espécies de doenças. Ao

respeitar o processo natural de desenvolvimento patológico, o médico apresenta sua

vocação de ser, necessariamente, respeitoso. A evolução da enfermidade para a

23

cura, se possível, ou para a morte, se essa for sua lei, não é alterada pela

intervenção do médico. A doença deve “vegetar” em seu solo de origem, o lar,

espaço primitivo e natural das pessoas (FOUCAULT, 2014). Esse pensamento

coincide com o aspecto político do problema assistencial no século XVIII.

Os hospitais deveriam ser lugares de assistência generalizada de que a

sociedade é, ao mesmo tempo, administradora e beneficiária. Porém, a assistência

não deve ser baseada nem na riqueza produtora, o capital, nem na riqueza

produzida, a renda, mas sim no princípio que produz a riqueza: o trabalho. “Na

medida em que se faz com que os pobres trabalhem, eles serão assistidos, sem

empobrecer a nação” (FOUCAULT, 2014, p. 19). Quando cuidado pela sua família,

em sua casa, o doente apresenta custo zero para a sociedade e, apesar de o doente

deixar de produzir, sua família não ficará abandonada por ele. Na visão da medicina

das espécies, o hospital é lugar criador de doença por ser fechado e pestilento e por

ser, ele próprio, um problema social.

No final do século XVIII, a aglomeração das pessoas nas cidades, traz uma

nova forma de adoecer: a epidemia que, na visão de Foucault “é um modo

autônomo, coerente e suficiente de ver a doença.” (FOUCAULT, 2014, p. 23).

Doenças epidêmicas são aquelas que atacam grande número de pessoas, ao

mesmo tempo e da mesma forma, sendo diferentes da doença individual

qualitativamente. As formas patológicas familiares estão presentes, mas a rede que

tecem entre si, entre o tempo e o espaço, fazem com que sua apresentação seja

diferente das enfermidades na medicina das espécies descrita por Foucault: “a

doença específica sempre se repete mais ou menos, a epidemia nunca inteiramente”

(FOUCAULT, 2014, p. 25). Assim, a epidemia é um fenômeno coletivo que, mesmo

com essa trama complexa, guarda em si singularidade, imprevisão, fortuidade,

lembremos que neste momento, nada sabíamos sobre microrganismos e sobre

higiene. Para seu controle, o Estado deveria municiar os médicos de autoridade,

para que pudessem intervir, informar, controlar e coagir a população a adotar

medidas sanitárias que protegessem sua saúde. Manter as populações saudáveis

passa a ser de interesse governamental e corporativo: saúde passa a ser problema

do Capital. Nesse contexto,

[...] seria preciso conceber uma medicina suficientemente ligada ao Estado para que, de comum acordo com ele, fosse capaz de praticar uma política constante, geral, mas diferenciada de assistência; a medicina tornava-se tarefa nacional [...]. A boa medicina deverá receber do Estado testemunho

24

de validade e proteção legal; a ele cabe ‘estabelecer a existência de uma verdadeira arte de curar’. (FOUCAULT, 2014, p. 20-21)

Essa mudança para o espaço social mudará a medicina das espécies para a

medicina das epidemias, em que o foco sai da doença e passa para a saúde, com o

aval de um Estado que tem como funções manter a ordem, organizar seu

enriquecimento e o planejamento da sociedade como ambiente de bem-estar físico,

saúde ótima e longevidade (FOUCAULT, 2011). Funções exercidas pela polícia,

composta pela instituição policial e pelo conjunto de mecanismos que asseguravam

seu cumprimento:

Só poderia haver medicina das epidemias se acompanhada de uma polícia: [...] um corpo de inspetores de saúde, que se poderia ‘distribuir em diferentes províncias, confiando a cada um deles um departamento circunscrito’: neste lugar, ele faria observações sobre os domínios que dizem respeito à medicina, mas também à física, química, história natural, topografia e astronomia; prescreveria as medidas a serem tomadas e controlaria o trabalho do médico. (FOUCAULT, 2014, p. 26-27)

Para a medicina é atribuída um estatuto político quando o Estado adquire

uma consciência médica, cuja tarefa é exercer controle sobre a população e seus

atos. Na Inglaterra esse movimento de medicina assistencial, centrada no hospital

serve para manter a força de trabalho saudável, na Alemanha de Bismark, “foi

instituída por lei a ‘contribuição dos empregadores para a cobertura da saúde dos

trabalhadores’” (ZANCHI; ZUGNO, 2012, p. 63), também como forma de frear ideias

socialistas. Então o Estado se apropria de ferramentas para lidar com o aumento

demográfico que ocorre nesse período e cria mecanismos de controle dessa

população crescente mais adequados: A estatística, fornece os números de

repartição espacial e cronológica, de longevidade e saúde, delineando as

populações, facilitando sua análise, vigilância, intervenções (FOUCAULT, 2011).

Os traços biológicos de uma população tornam-se elementos pertinentes para uma gestão econômica, sendo necessário organizar à sua volta um dispositivo que garanta não apenas seu assujeitamento, mas a majoração constante de sua utilidade”. (FOUCAULT, 2011, p. 363)

Nesse momento, controlar as ações e formação dos médicos passa a ser

elemento chave para o Estado. Aparecem regulamentos sobre a criação dos cursos

médicos e do seu currículo, da regulamentação profissional, com a necessidade de

estabelecer as diferenças entre o trabalho médico, de práticos, de barbeiros, de

boticários com quais atribuições de cada modalidade de trabalho. Eis o processo do

Estado em definir o que é medicina e o que não é. São fundadas sociedades de

25

classe, para normalizar, fiscalizar e colocar em colocar médicos de várias partes do

estado em contato para troca de conhecimento e experiências. A normalização

profissional tinha duplo benefício: mantinha controle do estado e protegia os

integrantes da classe médica que não queriam ter seu trabalho ameaçado por

profissionais que não tinham a mesma formação, a exemplo do que acontece hoje

no Brasil com a Lei do Ato Médico, mantendo seus privilégios profissionais.

Pouco a pouco, essas associações se tornam lugar de centralização do saber

e instância de registro e de julgamento de toda atividade médica, e se torna o “órgão

oficial de uma consciência coletiva dos fenômenos patológicos” (FOUCAULT, 2014,

p. 29), justamente por ser o lugar onde é feita a padronização dos procedimentos

médicos. Hoje seguimos protocolos de atendimento e de terapêutica similares em

todo o mundo. Médicos europeus, sul americanos, asiáticos conseguem entender as

condutas uns dos outros porque há uma normatização do que fazer face às

patologias que se apresentam na prática média diária.

Ainda segundo Foucault (2014), há em todo esse processo descrito, uma

mudança na forma da percepção médica, que será fundamental para a constituição

da experiência clínica. Aparece para o olhar médico um sistema de coincidências

que indica uma trama causal que sugere novos encadeamentos e parentesco entre

as doenças. Esse cruzamento de informações em várias séries de acontecimentos

separados faz com que o encontro com o doente e o confronto de um saber com

uma percepção fique menos importante para o ato do conhecimento médico. O

julgamento médico é feito através de constatações imediatas e do confrontamento

com os conhecimentos constitucionais das doenças:

O que constitui agora a unidade do olhar médico não é o círculo do saber em que ele se completa, mas esta totalização aberta, infinita, móvel, sem cessar, deslocada e enriquecida pelo tempo, que ele percorre sem nunca poder detê-lo: uma espécie de registro clínico da série infinita e variável dos acontecimentos. Mas seu suporte não é a percepção do doente em sua singularidade, é uma consciência coletiva de todas as informações que se cruzam, crescendo em uma ramagem complexa e sempre abundante, ampliada finalmente até as dimensões de uma história, de uma geografia, de um Estado. (FOUCAULT, 2014, p. 31)

Os médicos são como vigilantes da saúde, a medicina se entrelaça com

novas formas de governar as pessoas, individual e coletivamente, “nas quais os

especialistas médicos aliados com autoridades políticas tentam gerir o modo de vida

para minimizar as doenças e promover a saúde individual e coletiva” (ROSE, 2007,

p.1, tradução nossa). O Estado passa a conceber uma presença generalizada dos

26

médicos para fazer uma teia de vigilância da saúde, de modo que a população seja

educada e que:

[...] a consciência de cada indivíduo esteja medicamente alerta; será preciso que cada cidadão esteja informado do que é necessário e possível saber em medicina [...] pois a melhor maneira de evitar que a doença se propague ainda é difundir a medicina. (FOUCAULT, 2014, p. 33)

No início do século XIX os médicos “foram envolvidos no mapeamento da

doença no espaço social” (ROSE, 2007, p. 2, tradução nossa). A princípio, com

imposição de obrigações às famílias, para garantir o bem-estar das crianças, de

forma que se tornassem adultos úteis e produtivos. Regras sobre como cuidar das

crianças: aleitamento materno, vestuário, alimentação, atividade física, vacinas, são

difundidas através de extensa literatura, não apenas para consumo técnico, mas

também endereçada às classes populares, a quem os médicos de vem ensinar

regras de higiene que deverão ser respeitadas para manter a sua saúde e a dos

outros, de modo que seja formado, “nas melhores condições possíveis, um ser

humano que consiga chegar ao estado de maturidade” (FOUCAULT, 2011, p. 364).

Depois, com dados estatísticos sobre “as doenças das populações, projetos de

redes de esgoto, planejamento urbano, regulamentos de produtos alimentares e

cemitérios e muito mais” (ROSE, 2007, p. 2, tradução nossa), se torna alvo do olhar

médico. A preocupação da medicina deixa aos poucos de ser a doença e passa a

ser a “saúde e tudo que é conducente a isso” (ROSE, 2007, p. 2, tradução nossa).

Os objetivos da medicina vão se transformando, em: (1) fazer desaparecer as

epidemias, (2) baixar as taxas de morbidade, doenças que incapacitam o indivíduo

para o trabalho e (3) o prolongamento da expectativa de vida da população. Para

alcançar esses objetivos intervenções autoritárias devem ser tomadas com a

reorganização do espaço urbano. Nesse contexto, observamos a formação de um

saber médico-administrativo que é parte da origem da economia social e da

sociologia do século XIX.

Entretanto, com toda essa mudança acontecendo no campo de aplicação da

medicina, seu ensino se mantinha alienado desse processo, com pouca

preocupação com o ensino prático. As universidades davam pouca importância aos

hospitais, que eram vistos pelo Estado como lugares insalubres que davam

assistência aos doentes, aos pobres, aos mendigos e aleijados. Assim,

27

[...] se as teorias médicas se modificaram muito [...], se novas observações foram feitas em grande número, o tipo do objeto a que se dirigia a medicina continuava o mesmo; a posição do sujeito cognoscente e perceptivo continuava a mesma; os conceitos se formavam seguindo as mesmas regras [...] das percepções individuais e concretas esquadrinhando segundo o quadro nosológico das espécies mórbidas; e o do registro contínuo, global e quantitativo de uma medicina dos climas e lugares. (FOUCAULT, 2014, p. 55)

A Revolução Francesa desestrutura as universidades e os professores levam

seus alunos para dentro dos hospitais, sem a pompa acadêmica, e estabelecem um

novo discurso com regras novas, em que o olhar deixa de constatar apenas, e passa

a descobrir. A medicina reconhece o valor do empirismo, a prática hospitalar

complementa o saber teórico, enriquecendo-o. O hospital articula o saber médico

com a terapêutica, e se torna um espaço privilegiado para transmissão de

conhecimento e formação dos profissionais de saúde. Essa discussão acerca do

ensino, na verdade, é a discussão do próprio sentido da profissão médica e da

definição da experiência como parte privilegiada desse ofício, uma vez que decidir

como serão formados os novos profissionais é decidir que tipo de profissionais

existirão (FOUCAULT, 2014).

Para a medicina social, o hospital deveria ser um elemento do espaço urbano,

onde seus efeitos pudessem ser medidos e controlados; deveria ser uma máquina

de curar, tornar-se eficaz como parte da estratégia terapêutica, os médicos estariam

presentes initerruptamente, seriam feitas observações e registros que permitiriam

ampliar o conhecimento dos diferentes casos, analisar sua evolução e ajustar a

terapêutica, “enquanto o interesse médico mudou do doente para a doença, o

hospital se tornou um museu da doença” (ILLICH, 1975, p. 59, tradução nossa),

tornando-se então parte fundamental da tecnologia médica, que permite curar, e não

somente ser um lugar para morrer (FOUCAULT, 2011). Ao se tornar centro de

ensino, a inovação do manejo da doença faz o hospital rentável. Os pobres

atendidos, ao “permitir” que sua enfermidade seja objeto de estudo, ao deixar seu

corpo ser manipulado pelo saber médico, de certa forma pagam seu atendimento

custeado pelo Estado, modelo até hoje vigente, uma vez que os centros de ensino

são hospitais públicos, cujo público são as camadas mais pobres da sociedade:

[...] visto que a doença só tem possibilidade de encontrar a cura se os outros intervêm com seu saber, seus recursos e sua piedade, pois só existe doente curado em sociedade, é justo que o mal de uns seja transformado em experiência para os outros; e que a dor receba assim o poder de se manifestar [...] delineia-se para o rico a utilidade de ajudar os pobres

28

hospitalizados: pagando para tratá-los, pagará de fato, inclusive, para que se conheçam melhor as doenças que podem também afetá-lo; o que é benevolência com respeito ao pobre se transforma em conhecimento aplicável ao rico. (FOUCAULT, 2014, p. 92)

O olhar da clínica se reorganiza pela remodelação do sujeito pensante, deixa

de ser um olhar que apenas observa e passa a ser o olhar respaldado e justificado

por uma instituição e pelo Estado, que tem poder de decisão e intervenção, que

procura por anormalidades, que calcula possibilidades.

Com a presença do hospital como lugar de ensino, os médicos passam a ter à

sua disposição cadáveres mortos pela mesma causa que são dissecados em série,

para que se descobrisse todos os signos que a enfermidade deixava no corpo. No

entanto,

[...] os signos anatômicos indicam mal a intensidade do processo mórbido [...] relatando apenas o que é visível, e na forma simples, final e abstrata de sua coexistência espacial, a anatomia não pode dizer o que é encadeamento, processo e texto legível na ordem do tempo. (FOUCAULT, 2014, p. 147)

Por isso a clínica e a anatomia patológica se agregam:

[...] na experiência anatomoclínica, o olho médico deve ver o mal se expor e dispor diante dele à medida que penetra no corpo, avança por entre seus volumes, contorna ou levanta as massas e desce em sua profundidade. A doença não é mais um feixe de características disseminadas pela superfície do corpo e ligadas entre si por concomitâncias e sucessões estatísticas observáveis; é um conjunto de formas e deformações, figuras, acidentes, elementos deslocados, destruídos ou modificados que se encadeiam uns com os outros, segundo uma geografia que se pode seguir passo a passo. (FOUCAULT, 2014, p. 150)

A percepção anatomoclínica passa a ver a morte não mais como o fim

inevitável da doença, mas ponto de partida para esclarecer os fenômenos orgânicos

e seus distúrbios, esse ponto de vista sobre o patológico permite fixar suas formas

ou suas etapas, dando acesso à verdade da doença. O tempo da morte pode se

deslocar ao longo do processo patológico, e, ao interrompê-lo, serve como

instrumento que integra a duração da doença no espaço do corpo, do “alto da morte

que se podem ver e analisar as dependências orgânicas e as sequencias

patológicas” (FOUCAULT, 2014, p. 159). A morte muda o pensamento médico, ao

deixar de ser oposição, ao deixar de ser contra o que se luta, e se transformar em

uma das manifestações da essência do vivo. A integração da morte no conjunto

técnico e conceitual da medicina, é o corte na história médica em que a experiência

29

clínica torna-se o olhar anatomoclínico, “a partir dela [a morte], a doença toma corpo

em um espaço que coincide com o do organismo” (FOUCAULT, 2014, p. 175).

Mas a anatomia patológica tem um problema de difícil solução: que fazer com

doenças que não tem sede definida, como certos tipos de febre e de doenças

nervosas. Como explicar a ausência de núcleo de origem? Inicia-se um esforço para

descrever e definir a fisiologia do fenômeno mórbido. É introduzido o conceito de

inflamação, que seria causada pela irritação do órgão por algum agente externo ou

mudança do meio interno que alteram seu funcionamento ou sua anatomia. A sede

da doença passa a ser onde se fixa o agente irritante, sua capacidade irritante

determina a forma da doença, “o espaço local da doença é, ao mesmo tempo e

imediatamente, um espaço causal” (FOUCAULT, 2014, p. 209). A doença perde sua

condição de entidade, com uma história própria, que usa o corpo apenas como

suporte, e passa a ser simplesmente uma reação desse corpo ao estresse causado

por um agente irritante. Acontece a mudança do objeto, pela mudança do olhar.

Com essa visão que a medicina ganha no final do século XVIII sobre as

populações e com o nascimento da medicina social e da biopolítica, os médicos

passam a ter autoridade. Poder dado pelo Estado para o controle social, de modo

que são criados novos dispositivos para o manejo e gerência dos fenômenos

coletivos que as populações apresentam, com seus problemas econômicos,

científicos, biológicos e políticos. A medicina tem agora “a função maior da higiene

pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de

centralização da informação, de normalização de saber, e que adquire também o

aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de medicalização da população”

(FOUCAULT, 2010, p. 205), sendo o médico a autoridade que faz o aparelho

biopolítico funcionar. Como podemos ver com a ampliação do conceito de saúde

como construção social que engloba, além da “não-doença”:

[...] relações refratadas e resistidas, capacidades biológicas ou mentalidades culturais, alianças com amigos ou profissionais de saúde, lutas pelo controle sobre tratamento ou condições de vida. Saúde não é um absoluto (definido por qualquer disciplina) a ser aspirado, nem o resultado idealizado de ‘mente sobre a matéria’. É um processo de tornar-se pelo corpo-self, de mobilização de afetos e relações, opor-se à territorialização física ou social, e experimentação com o que é, e com o que pode vir a ser. (FOX, 2002, p. 360)

Esse conceito de saúde ampliado, como se fala no meio da medicina abre

espaço a críticas sociológicas, que cunham um novo termo: medicalização que

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“descreve um processo no qual problemas não-médicos se tornam definidos e

tratados como problemas médicos, usualmente em termos de doença ou desordem”

(CONRAD, 2007, p. 4, tradução nossa),

Medições clínicas foram difundidas na sociedade que se tornou uma clínica, e todos os cidadãos se tornaram pacientes que são observados e regulados para que se mantenham ‘dentro do normal’. Os problemas agudos de poder, dinheiro, acesso e controle que assaltam os hospitais em todos os lugares podem ser interpretados como sintomas de uma nova crise no conceito de doença. (ILLICH, 1976, p. 60, tradução nossa)

Porém a medicalização não deve ser atribuída somente aos profissionais de

saúde. O papel do consumismo, a expansão do conhecimento sobre saúde e o

posicionamento da indústria farmacêutica num espaço, antes pertencente aos

médicos, influenciam como esse processo acontece,

[...] um problema é definido em termos médicos, descrito usando linguagem médica, entendido através da adoção de uma estrutura médica, ou ‘tratado’ com uma intervenção médica [...] a medicalização descreve um processo. (CONRAD, 2007, p. 5, tradução nossa)

Rose descreve a transformação das escolas e das casas em

[...] máquinas higiênicas que inculcaram hábitos e costumes que se tornaram automáticos, desde modos à mesa até a escovação dos dentes [...] nos relacionamos conosco e com os outros, individualmente e coletivamente, através de uma ética e numa forma de vida que é inextricavelmente associada à medicina em todas as suas encarnações. Desse modo a medicina fez mais que definir, diagnosticar e tratar doenças – ela ajudou a nos tornar o tipo de criaturas vivas que nos tornamos no início do século XXI. (ROSE, 2007, p. 2, tradução nossa)

Conrad, porém, nos alerta que a apropriação de problemas não-médicos pela

medicina não acontece apenas por intervenção médica, a própria sociedade tem tido

cada vez menos tolerância com situações comuns à vida, como o luto pela perda de

alguém, o medo causado por um assalto, a senilidade e a limitação que vem com o

envelhecimento (CONRAD, 2007, tradução nossa), cada vez mais temos remédios

contra a tristeza, o envelhecimento, para ficar musculoso ou com melhor

performance sexual. Há a impressão de que para todas as aflições da vida um novo

tratamento nos salvará.

1.2 Contextualização para a realidade brasileira

Até o século XVIII, em cidades como Recife, Salvador e Rio de Janeiro,

31

somente três ou quatro físicos, como eram chamados os médicos em Portugal e

suas colônias, exerciam suas atividades. Atuavam como médicos da Coroa, da

Câmara e do exército. Deveriam examinar, diagnosticar e instituir a terapêutica aos

pacientes. Os cirurgiões eram considerados socialmente inferiores pois eram

responsáveis pelos

[...] ofícios manuais, que exigiam o uso de ferros, lancetas, tesouras, escalpelos, cautérios e agulhas. A atuação dos cirurgiões estava restrita às sangrias, à aplicação de ventosas, à cura de feridas e de fraturas, sendo-lhes vetada a administração de remédios internos, privilégio dos médicos formados em Coimbra, Portugal. (EDLER, 2010, p. 46)

No período colonial brasileiro por causa da proibição de Portugal à existência

de faculdades fora da metrópole, a população brasileira recorre à medicina indígena,

posteriormente à africana, e à fé católica trazida pelos portugueses para lidar com

suas enfermidades. Benzeduras, pajelanças e rezas a santos ligados à doenças

(Nossa Senhora das Dores, do Bom Parto, etc) são os caminhos para conseguir

manter a saúde (EDLER, 2010). A doença era resultado de castigo divino ou feitiço,

assim “a cura terapêutica e a neutralização de feitiços possuíam um mesmo

significado simbólico: a restauração de uma harmonia rompida” (EDLER, 2010, p.

26).

As ordens religiosas, em especial a jesuítica, também ofereciam serviços

médicos e foram aliadas fundamentais na afirmação do poder da medicina oficial, ao

denunciar as práticas curativas populares como demoníacas. Para os jesuítas, os

índios e os negros eram povos do demônio, que não possuíam razão por não

conhecer Deus. O processo colonizador funde os diferentes conceitos mágicos do

mundo

[...] partilhadas por índios, negros e brancos, de diferentes classes sociais, amalgamaram-se numa complexa fusão de crenças e práticas que resultou num catolicismo popular repleto de manifestações de sincretismo religioso, ora toleradas, ora incentivadas, ora combatidas pela elite colonial. (EDLER, 2010, p. 25)

Em 1521, através da Fisicatura, estabelece-se a designação de licenciados

para os cargos de físicos e cirurgiões no Brasil, que se reportariam,

hierarquicamente ao físico-mor e ao cirurgião-mor, de acordo com sua prática. Os

encarregados das artes de cura, nos locais onde não houvesse um físico

examinador, deveriam solicitar ao físico-mor uma licença que comprovasse seu

saber e sua experiência, que era obtida por meio de um exame e tinha tempo

32

determinado, assim como restrição à localidade de atuação. O físico-mor também

tinha por função fiscalizar a qualidade e os preços dos medicamentos preparados

pelos boticários autorizados.

A lei estabelecia que a separação entre físicos, cirurgiões e boticários era completa, cada qual com atribuições restritas ao seu domínio. A definição de limites ao exercício de cada atividade obedecia ao estabelecimento gradual de uma hierarquia de importância entre elas. Já um alvará do século XVI vedava aos físicos e boticários sociedade comercial nas boticas. (EDLER, 2010, p. 34)

A legislação da Fisicatura buscava fazê-la próxima e presente, por grande

burocracia, revela a importância que o Brasil ganhava em relação à sua metrópole,

além da preocupação arrecadatória, havia preocupação em punir os infratores do

código, entretanto, a infração a essas regras (EDLER, 2010; GALVÃO, 2007).

A relação entre saúde e sociedade, como na Europa, se dava principalmente

em relação à limpeza urbana, fiscalização do comércio de alimentos e inspeção

portuária. Em 1603, com a publicação das Ordenações Filipinas, um código de leis

assinado por Filipe I, mas colocado em vigor por seu filho, Filipe II, que atualizava as

Ordenações Manuelinas, a responsabilidade sobre essas funções é regulamentada

e dividida entre os governos municipais e das capitanias (GALVÃO, 2007). Nos

portos, ponto sensível pelo interesse militar e econômico, as câmaras de controle

empregavam médicos portugueses para o controle sanitário das embarcações pelo

medo de transmissão de doenças, principalmente a peste.

No final do século XVIII, há um aumento da preocupação com a saúde da

população, mas ainda com o conceito de que saúde é a ausência da doença. A

descoberta de ouro na colônia, faz com que a imigração para o Brasil aumente, e

junto com isso ocorre a interiorização de parte dessa população. Esse momento

coincide com o Iluminismo europeu, no entanto, Portugal ainda não havia absorvido

as inovações que se discutia na Europa central, particularmente na França, de modo

que a prática médica na corte portuguesa era ainda pouco científica (EDLER, 2008).

São criados os primeiros hospitais e leprosários no Brasil, mais para proteger

as cidades do contágio que para propiciar a cura dos enfermos; os mercados de

escravos são transferidos para locais periféricos, onde eram separados os doentes

dos sadios, e os primeiros permaneciam em quarentena (GALVÃO, 2007). Nessa

época as Santa Casas de Misericórdia são criadas e ofereciam assistência aos

“brancos pobres, a gente de cor, escrava ou forra, soldados, marinheiros, forasteiros

33

em geral, quando em estado de indigência, recebiam assistência espiritual e médica

nos hospitais da Irmandade da Misericórdia” (EDLER, 2010, p. 36).

Na sociedade colonial, no entanto, a hierarquia que deveria haver entre

físicos, cirurgiões e boticários praticamente não existia, pela falta de profissionais

dispostos a vir ao Novo Mundo trabalhar, pela quase inacessibilidade de algumas

regiões. Nessa época, físicos e cirurgiões eram atestados em sua habilidade pela

Fisicatura, órgão responsável pela fiscalização do exercício da medicina, dirigidos

pelo físico-mor e cirurgião-mor, que eram as autoridades médicas no Reino e só

passaram a ter mais controle a partir do século XVIII, com a presença de

comissários em mais vilas e cidades, não apenas nas capitais das capitanias

(EDLER, 2010).

A Câmara do Rio de Janeiro faz consulta aos médicos cariocas notáveis em

1798 para descobrir quais as razões da insalubridade da cidade, que sofria com

epidemias de “varíola, disenteria, malária, febres tifoide e paratifoide, boubas,

maculo (fístula anal), sífilis, lepra, elefantíase dos árabes (filariose) e opilação

(ancilostomíase) eram as mais presentes” (EDLER, 2010) e recebe relatório dos

problemas que vão desde o clima, a forma como a cidade cresceu, o desenho de

suas ruas, a alimentação popular, até a imoralidade da população (GALVÃO, 2007),

mas sem aplicação pratica das conclusões apontadas. No entanto, até o final do

século XIX, o Brasil não teria “uma política de atuação sistemática sobre a saúde da

população e agia apenas de modo emergencial nos casos de epidemia” (ZANCHI,

ZUGNO, 2012, p. 70).

A vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808, com a transferência

da corte, e consequentemente, da metrópole, muda o status da colônia e promove

seu desenvolvimento com medidas diversas de urbanização, como abertura de ruas

e estradas, construção de pontes e fontes, colocação de calçamento nas ruas e

drenagem de pântanos (GALVÃO, 2007). Nesse mesmo ano, D. João VI assina

decretos que criam a Escola de Cirurgia da Bahia em fevereiro, e a Escola de

Anatomia, Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro em novembro. Durante o reinado

de D. Pedro I, foram transformadas em Academia Médico-Cirúrgica em 1813, porém

só vieram a ser elevadas a Faculdades anos depois, durante a Regência Trina, em

1832, regulamentando e melhorando a formação de médicos brasileiros. A emissão

de diplomas por essas escolas de medicina, a partir de 1826, para a normatização

do exercício da medicina, tira parte da função da Fisicatura, que é extinta em 1828.

34

A exemplo do que acontecia na Europa, em 1829 é fundada a Sociedade de

Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, com o projeto de organização de uma

sociedade perfeita, ordenada e disciplinada (GALVÃO, 2007), através da discussão

de temas em política e urbanização. Lutavam em nome de uma saúde pública e uma

medicina social, com a reformulação de normas

[...] sanitárias e sua aplicação por médicos, mudanças de costumas, intervenção em hospitais, prisões e outros lugares públicos, pelo controle da venda de medicamentos, pelo estudo de epidemias, endemias e doenças contagiosas, etc. (GALVÃO, 2007, p. 16)

Apesar de objetivos tão abrangentes, a área em que obteve melhores resultados foi

na sua comissão de salubridade geral, com contribuições à Higiene Pública.

Em 1832, a Sociedade de Medicina e Cirurgia consegue a aprovação pela

Câmara Municipal do Rio de Janeiro de um código de posturas que retoma o

relatório feito em 1798, estabelecendo a Polícia Médica como parte da legislação

municipal, tendo por base o conceito de que “a ciência da teoria e prática da

administração pública (Polizeiwissenshaft) estabeleceria ordenações capazes de

assegurar condições para o crescimento da população, da produção e da riqueza

nacional. Aplicado à saúde, o conceito ‘polícia médica’ (Medizinalpolizei) legitima a

intervenção do Estado nos problemas de saúde na população (GIOVANELLA, et. al.,

2012, p. 712).

Devido aos grandes problemas de saúde pública na capital do império

brasileiro, que contava com cerca de 700 mil habitantes, graves problemas urbanos

como rede de água e esgotos precários, lixo nas ruas e cortiços superpovoados que

causavam surtos de tifo, sarampo, escarlatina, difteria, coqueluche, febre amarela,

peste bubônica e varíola, além da endemia de tuberculose e hanseníase, ganhou o

pouco lisonjeiro título de “túmulo de estrangeiros” (RIO DE JANEIRO, 2006, p. 26). A

regência, então, transforma a Sociedade de Medicina e Cirurgia em Academia

Imperial de Medicina, apesar dos médicos estarem bem longe de conseguir a

medicalização da vida social que desejavam em seus discursos, mas mostrando que

seu discurso a favor da ordem era aceito pelos Regentes. A Academia criticava a

incumbência municipal da higiene pública e da polícia médica porque as câmaras

municipais ainda eram muito fracas para obterem sucesso no cumprimento da

legislação sanitária (GALVÃO, 2007).

35

Em 1837 a vacinação contra varíola se torna obrigatória para as crianças e,

quase dez anos depois, em 1846, para os adultos, o que não era respeitado porque

grande parte da população desconhecia e temia os efeitos que ela poderia causar.

Existiam ainda argumentos mais curiosos, como o de que a vacinação era um

atentado ao pudor das mulheres, que teriam de desnudar os braços (ou, conforme

boatos mais radicais, de despir-se) para os vacinadores (RIO DE JANEIRO, 2006).

Nos anos seguintes, epidemias sucessivas levam à criação da Junta Central de

Higiene Pública em 1850 para unificar os serviços sanitários do Império (GALVÃO,

2007), mas, 35 anos depois, a situação sanitária ainda era precária, o que levou a

nova reforma desses serviços, com instituição de um Conselho Superior de Saúde

Pública, com função apenas normativa sobre higiene e salubridade. Galvão afirma

que essa ineficiência dos serviços de saúde no Brasil era devida ao fato de a

sociedade brasileira ser escravagista, o que explicaria a falta de preocupação com a

saúde da sua mão de obra e com as exigências do mercado internacional.

Na segunda metade do século XIX surgiu o movimento abolicionista e, com a

proibição do tráfico em 1850, ocorre a progressiva substituição da mão de obra

escrava pela dos imigrantes europeus nas lavouras do Sul e Sudeste. No Norte, a

troca dos engenhos primitivos por tecnologias mais avançadas, permitiu a redução

do número de escravos utilizados. Nos principais centros urbanos, uma indústria

incipiente demandava mão de obra mais qualificada, não encontrada nos escravos.

Esse movimento econômico justifica o movimento em direção ao controle da

população e de sua saúde, que vem aumentando no país, principalmente em São

Paulo, viabilizando as ações em saúde (GALVÃO, 2007). Assim, alguns médicos se

destacam no combate às epidemias, Oswaldo Cruz, Adolfo Lutz, Vital Brasil, Emilio

Ribas, realizando investigações epidemiológicas, com o suporte de recém-

inaugurados laboratórios, entre eles o Instituto Bacteriológico, criado em 1892,

dirigido por Adolfo Lutz. Em um surto de peste em Santos, Vital Brasil coordena a

produção de soros e vacinas em outro laboratório estatal.

Ainda no final desse século, com a abolição da escravatura e a proclamação

da república, é promulgado o novo código civil, em 1890, que, entre outras coisas,

criminaliza as práticas da medicina popular e

[...] sancionava a perseguição aos terapeutas populares, criminalizando as práticas do espiritismo, da magia e seus sortilégios, do uso de talismãs e das cartomancias, desde que empregadas para inculcar cura de moléstias curáveis e incuráveis. O exercício do ofício de curandeiro também era

36

formalmente proibido, cominando penas de prisão e multa. (EDLER, 2010, p. 45)

A medicina oficial, amparada pela máquina do estado reivindica para si o controle do

corpo do doente a fim de promover sua saúde e mantê-lo capaz para o trabalho.

Nesse contexto, a erradicação, ou pelo menos o controle, das doenças

endêmicas das cidades brasileiras, para que deixem de ser um dos lugares mais

insalubres dos trópicos, é fundamental para a consolidação econômica do país, seja

para poder atrair os estrangeiros, seja para fortalecer nosso comercio exterior

(GALVÃO, 2007). Essa necessidade mobiliza recursos para o controle sanitário e

indica mudanças importantes nas iniciativas governamentais, em 1893 é fundada a

Inspetoria Geral dos Portos e em 1894, o Instituto Sanitário Federal para estudar a

natureza, etiologia, tratamento e profilaxia das moléstias transmissíveis. O jogo

biopolítico passa a ser importante para o Brasil, e passamos a fazer parte dessa

engrenagem. O Estado procura intervir em tudo que pode ameaçar a produtividade

da população, mas por questões relacionadas à dificuldade de intervenção nas

moradias, em 1902 o Rio vive nova epidemia de peste bubônica. A legislação da

época também não obrigava os moradores de habitações insalubres a obedecer às

medidas determinadas palas autoridades.

Rodrigues Alves foi eleito presidente nesse ano, com a promessa de

remodelar o Rio de Janeiro. Quando governador de São Paulo já era sensível às

questões de saúde e sabia que a luta sanitária seria vital para o êxito econômico do

país (GALVÃO, 2007). Seu plano incluía a demolição de casas no centro para

construção de avenidas largas e belos prédios e implantação de redes de esgoto, a

exemplo de Paris. O presidente nomeou, então, dois assistentes, com poderes

quase ditatoriais, para a execução do projeto sanitário da capital: o engenheiro

Pereira Passos, como prefeito, e o médico sanitarista Oswaldo Cruz, como chefe da

Diretoria Geral de Saúde Pública do Rio de Janeiro.

Em nove meses, a reforma urbana derrubou cerca de 600 edifícios e 700

casas, desalojando perto de 14 mil pessoas, para abrir a avenida Central, hoje,

avenida Rio Branco, e seu entorno. A ação, conhecida como “bota-abaixo”, obrigou

parte da população mais pobre a se mudar para os morros e a periferia porque não

havia plano de construção de casas populares. Outros aspectos da urbanização

criticados eram o enterro de corpos nas igrejas, animais mortos nas ruas, lixo e

valas a céu aberto.

37

A primeira campanha de Cruz foi contra a febre amarela, em 1903; apoiado

por descobertas de Ribas em São Paulo e de pesquisadores de Cuba, combateu um

tipo de mosquito que seria o vetor da doença. Ruas e casas eram dedetizadas por

brigadas mata-mosquitos, mas a população que não recebia informações do

governo resistia por não acreditar que um mosquito podia transmitir doenças.

Ridicularizado pela imprensa, no ano seguinte iniciou o combate à peste bubônica,

com a remoção de lixo, colocação de veneno em lugares mais sensíveis e

compradores de ratos, que pagavam à população 300 réis por rato capturado.

Apesar de ter sucesso com essas doenças, não obstante os conflitos, uma vez que,

em muitos casos, os agentes entravam nas casas à força, houve queda nos índices

dessas doenças (RIO DE JANEIRO, 2006; GALVÃO, 2007). A invasão aos lares,

interditou, despejos e internações à força, foi chamado pela imprensa de “Código de

Torturas”. As medidas desagradaram também alguns positivistas, que reclamavam

da quebra dos direitos individuais.

Entretanto o combate à varíola dependia da vacinação para ter sucesso. A

vacina já era conhecida há cerca de 200 anos e sabia-se ser segura havia 100 anos.

Durante o combate à peste e à febre amarela houve novo surto de varíola. Em

meados de 1904, Cruz apresenta ao congresso um projeto de lei que reinstaura a

obrigatoriedade da vacinação e revacinação em todo o país, com previsão de multas

a quem não se vacinasse e exigência da vacinação para acesso a empregos

públicos, matrícula em escolas públicas, casamentos e viagens. A redação do

decreto era inábil, pois Oswaldo Cruz não era político, era também rígida e

autoritária e possuía cláusulas demasiadamente rigorosas. Os defensores do projeto

demonstravam que em outros lugares do mundo, como Alemanha, França e Itália

haviam programas semelhantes, com bons resultados na redução de transmissão da

doença. Grosso modo, os opositores à lei da vacina eram contra o caráter

obrigatório da vacinação e autoritário da lei, não contra a necessidade de proteger a

população (RIO DE JANEIRO, 2006).

Em 31 de outubro de 1904, após muita discussão, o governo conseguiu

aprovar a lei da vacinação. O texto é vazado para um jornal no dia 9 de novembro,

antes de sua promulgação e, no dia seguinte à sua publicação, começam as

agitações no centro da cidade. Uniram-se à população que protestava, monarquistas

que se reorganizavam, militares, republicanos mais radicais, pequenos

comerciantes, trabalhadores urbanos, funcionários públicos, profissionais

38

autônomos, locatários arruinados de imóveis. A insatisfação popular foi habilmente

explorada pela oposição a Alves, que não tardou a organizar um golpe de estado.

Entre os dias 10 e 18 de novembro, a cidade viveu ‘a mais terrível das revoltas

populares da República’ como a imprensa chamou, o que levou ao cancelamento do

desfile de 15 de novembro e à um golpe de estado frustrado.

Após quatro dias de insurgência, com confrontos em vários pontos da capital,

tiroteios, depredações, algumas prisões e mortes, a escola militar da Praia

Vermelha, sob o comando de Benjamim Constant, coligou-se aos altos escalões do

Exército, com quase 300 cadetes, ao lado dos revoltosos, e marchou para o Palácio

do Catete. O confronto destes cadetes com as tropas governamentais resultou em

baixas dos dois lados, sem vencedores. O governo reforçou a guarda do palácio. Na

madrugada seguinte, a Marinha bombardeou a Escola Militar e os cadetes se

renderam. No dia 16 de novembro, o governo revogou a obrigatoriedade da vacina,

mas continuaram ocorrendo conflitos isolados, nos bairros da Gamboa e da Saúde.

A rebelião foi esmagada pelas tropas armadas e a tentativa de golpe, frustrada

somente no dia 20 de novembro. Começou então na cidade a operação “limpeza”,

com cerca de mil detidos e 460 deportados.

A revolta repercutiu também no Recife e em Salvador, mas foi logo reprimida.

Os militares amotinados foram presos e exilados para regiões de fronteira, a escola

da Praia Vermelha é fechada, os cadetes desligados do exército, os líderes civis e

populares, processados e presos. Oswaldo Cruz permanece na chefia da Diretoria

Geral de Saúde Pública, mas a obrigatoriedade da vacina é revogada, embora

permaneça válida a exigência do atestado de vacinação para trabalho, viagem,

casamento, alistamento militar, matrícula em escolas públicas e hospedagem em

hotéis (RIO DE JANEIRO, 2006). Em 1904, cerca de 3.500 pessoas morreram de

varíola no Rio de Janeiro. Dois anos depois, esse número caía para nove. Sem a

obrigatoriedade da vacina, em 1908, ocorre novo surto que deixa 6.550 mortes.

Os problemas reais de saúde da população que não atendia aos interesses

do capital sempre tiveram pouca atenção das autoridades. Até o final dos anos de

1910 a atuação do estado em saúde pública se baseou em campanhas contra uma

ou outra doença até 1920, quando é criado o Departamento Nacional de Saúde,

responsável pelo “saneamento urbano e rural, propaganda sanitária, higiene infantil

e profissional, atividades de supervisão e fiscalização, saúde dos portos e combata

às endemias rurais” (ZANCHI; ZUGNO, 2012, p. 71). Mas a nacionalização da

39

agenda de saúde pública no Brasil emperrava na pauta não regionalizada dos

programas, que tinham como principal alvo os problemas da cidade do Rio de

Janeiro, então capital federal (GALVÃO, 2007).

Na era de Getúlio Vargas, foi criado o Ministério da Educação e Saúde

Pública, cuja principal atuação foi em campanhas sanitárias e interiorização dessas

ações, num modelo campanhista, que servia aos interesses de agroexportadores, a

fim de não prejudicar seus negócios (ZANCHI; ZUGNO, v2012). Nas grandes e

médias cidades haviam postos de saúde onde “se faziam vacinações, exames pré-

natal; davam-se orientações em puericultura; cuidava-se das endemias (ZANCHI;

ZUGNO, 2012, p. 97). O Ministério da Saúde é desmembrado do Ministério da

Educação apenas em 1953.

Os movimentos reformistas na saúde surgiram na década de 1960, a partir

dos movimentos sociais e reivindicavam a democratização da saúde, que era

garantida apenas a quem contribuía com os sistemas de saúde e previdência (o

INAMPS); um novo modelo de saúde, que nessa época era predominantemente

hospitalocêntrico; um novo papel do Estado na saúde e que suas ações fossem

voltadas ao bem-estar da população (ZANCHI; ZUGNO, 2012).

Contra os reformistas estavam os que desejavam a manutenção de um

modelo burocrático, com ênfase no sistema privado (que prestava serviços ao

Estado), assistencialista e tecnológico. Projetos piloto de medicina comunitária

surgiram na década de 1970 em Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo

e no processo da redemocratização, ajudam a desencadear a Reforma Sanitária,

que culmina com a criação do Sistema Único de Saúde em 1988, com a ampliação

do conceito de saúde, entendida como resultante das condições de vida,

alimentação, lazer, acesso e posse da terra, transporte, emprego e moradia

(ZANCHI; ZUGNO, 2012).

A Constituição de 1988, no seu artigo 196 diz que:

[...] a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução da doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988),

reconhecendo a mobilização de setores da sociedade e suas discussões iniciadas

na década de 1970, com as Conferências Nacionais de Saúde.

40

O médico mantém sua figura de autoridade, mas com a responsabilidade não

apenas de intervir na doença e sim no modo de vida das pessoas, amparado pelo

Estado, para que atinjam sua produtividade máxima através de sua saúde máxima,

ampliada pelo arcabouço social e econômico que as cercam.

41

2 A SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO E O DESAFIO AO PODER DO MÉDICO

Neste capítulo iremos nos concentrar na questão da influência das redes

comunicacionais no âmbito médico e como a difusão de informações médicas nos

meios de comunicação estão transformando as relações entre médicos e pacientes.

Algumas teorias pós-industriais dizem que a sociedades industriais do século

XIX evoluíram, durante o século XX para “sociedade de conhecimento” e uma

economia de serviço (KUMAR, 2006, p. 9), que provocaram mudanças sociais e

políticas como consequência,

[...] na revolução da informação, e da comunicação, na transformação do trabalho e das empresas que ocorrem na economia global, e na crise das ideologias políticas e crenças culturais, essas teorias identificam sinais de um momento decisivo na evolução das sociedades modernas. (KUMAR, 2006, p. 9)

Apesar de haver críticas à definição de “sociedade de informação” e ao “capitalismo

de informação” (FUCHS, 2012, p. 1 tradução nossa), usarei esses conceitos para

apoiar o entendimento de que a difusão de informações, com a consequente perda

do poder do discurso, nos moldes da sociedade de discurso de Foucault (2005), é

causa de tensão na relação médico-paciente, uma vez que altera a relação de forças

nessa relação, criada com o advento de médico como especialista do corpo, e

autoridade na manutenção da saúde como vimos no capítulo anterior. Nessa

sociedade de informação, emerge a figura do “paciente especialista”, como uma

forma de direcionar o cuidado sobre si e de gerenciar melhor sua saúde.

2.1 Sociedade de informação

De acordo com Kumar, o nascimento da informação se dá como conceito e

como ideologia e está “inextricavelmente ligado ao desenvolvimento do computador

durante os anos da guerra e no período imediatamente posterior” (2006, p. 46), no

qual a relação entre o computador e as necessidades militares de inteligência

crescentes levaram à evolução dos componentes dos computadores, e de sistemas

de tecnologia da informação cada vez mais sofisticados.

A guerra, com suas demandas de alta tecnologia, preparou vários processos revolucionários para posterior uso civil [...] radar, motor a jato e

42

várias ideias e técnicas que prepararam o terreno para a eletrônica e a tecnologia de informação do pós-guerra. (HOBSBAWN, 1995, p. 260)

Por sua vez, o desenvolvimento dessas tecnologias permitiu a expansão

empresarial, com a criação de multinacionais altamente dependentes de

computadores e satélites para sua operação em escala global, moldando a

sociedade do período pós-guerra.

Podemos, desse modo, falar em uma nova Revolução Industrial, baseada em

informação (as duas primeiras foram baseadas em energia, a primeira em vapor e a

segunda em eletricidade) (KUMAR, 2006, p. 47). McLuhan fala também em “Era da

Eletricidade” que modifica nossa forma de nos relacionar com os meios de

comunicação, transformando-os em extensões do nosso corpo (2007, p. 12), Morin

(2003) nos alerta que estamos mergulhados num oceano de informações.

Essa mudança amadureceu por mais de um século: começou com o telégrafo

elétrico, o telefone, o gramofone, o cinema, o rádio e a televisão.

Mas o computador foi o ponto culminante [...] [pela] sua capacidade de manipular e transformar informação e, portanto, desempenhar, automaticamente e sem intervenção humana, funções que antes haviam sido realizadas apenas pelo cérebro do homem. (KUMAR, 2006, p. 47)

A evolução para uma sociedade produtora de serviços e o rápido crescimento

de oportunidades de emprego para profissionais liberais e de nível técnico leva Bell

a afirmar que “a sociedade pós-industrial é uma sociedade de informação, como a

sociedade industrial é uma sociedade produtora de bens” (BELL, 1973, p. 467) e que

[...] conhecimento e informação estão se tornando os recursos estratégicos e os agentes transformadores da sociedade pós-industrial... da mesma maneira que a combinação de energias, recursos e tecnologia mecânica forma os instrumentos transformadores da sociedade industrial. (BELL, 1980, p. 531)

Mas, Kumar e Bell apontam que apenas o computador não é responsável

pelo surgimento da sociedade de informação, mas “a convergência explosiva de

computador e telecomunicações [...] [que] acabou com a antiga distinção entre

processamento e disseminação de conhecimentos” (BELL, 1980, p. 513) e “a

combinação de satélites, televisão, cabo de fibra ótica e microcomputadores

enfeixou o mundo num sistema unificado de conhecimento” (KUMAR, 2006, p. 49).

Através dos novos meios de comunicação, “a informação pode ser processada,

selecionada e recuperada para satisfazer as necessidades mais especializadas e

individualizadas” (KUMAR, 2006, p. 49). Médicos brasileiros podem discutir casos e

43

realizar cirurgias com orientação de outros médicos mais experientes que podem

estar em centros de pesquisa em Londres, Ottawa ou Chicago. Pacientes vítimas de

doenças raras podem saber mais sobre sua doença e tratamentos de ponta

consultando fóruns de discussão e grupos de apoio online de várias partes do

mundo. Não foi a televisão que criou a aldeia global, como acreditava McLuhan,

foram os computadores e a internet (KUMAR, 2006).

Essa nova esfera de informação, que opera em contexto global pode ser

trazida para qualquer lugar, não mais temos necessidade de ir buscar essas

informações. Qualquer telefone celular com acesso à internet pode acessar o banco

de dados da Biblioteca do Congresso Nacional Norte Americano, ou as obras do

Museu do Louvre, ou fazer um passeio virtual nas ruas de Nova Déli. “A revolução

da tecnologia da informação comprime espaço e tempo em um novo ‘oikoumene

mundial’ orientado para o futuro” (KUMAR, 2006, p. 49), num “mundo que podia

levar a cada residência, todos os dias, a qualquer hora, mais informação e diversão

do que dispunham os imperadores em 1914” (HOBSBAWN, 1995, p. 22). Uma

pessoa faz um exame, pega o resultado e imediatamente procura numa página de

buscas da rede mundial a interpretação do resultado desse exame, já chegando no

consultório do médico que o pediu, sabendo qual seu diagnóstico e tratamento, só

esperando a confirmação do médico para poder assinar aquilo que a internet lhe

mostrou.

2.2 Medicina e poder

De acordo com Rabinow e Rose, numa releitura de Foucault, “a medicina é

talvez o lugar mais antigo onde se pode observar o jogo da verdade, do poder e da

ética em relação ao sujeito” (RABINOW; ROSE, 2006, p. 6) e Deleuze assinala que

passamos de uma “sociedade disciplinar”, com seu espaço delimitado das prisões,

escolas, hospitais, para uma “sociedade de controle” na qual os espaços de clausura

da sociedade disciplinar não são mais necessários: “clausuras são moldes, de

moldagens distintas, mas controles são modulação, como uma forma que se auto

deforma e continuamente muda de um momento a outro” (DELEUZE, 1992, p.2

tradução nossa).

Na nossa sociedade que preza a saúde e o manter-se saudável, e que

enxerga o médico como especialista do corpo, não apenas a figura responsável por

44

curar as doenças que nos afligem, usarei o conceito de biopoder de acordo com o

pensamento de Rabinow e Rose que se apoiam, por sua vez nas ideias de Foucault:

Sugerimos que o conceito de biopoder procura individualizar estratégias e configurações que combinam três dimensões ou planos: uma forma de discurso de verdade sobre os seres vivos; um conjunto de autoridades consideradas competentes para falar aquela verdade; estratégias de intervenção sobre a existência coletiva em nome da vida e da morte; e modos de subjetivação, nos quais os indivíduos podem ser levados a atuar sobre si próprios, sob certas formas de autoridade, em relação a estes discursos de verdade, por meio de práticas do self, em nome da vida ou da saúde individual ou coletiva. (RABINOW; ROSE, 2006, p. 11)

Esse “discurso da verdade” sobre os seres vivos não é apenas com o caráter

biológico sobre a vida, engloba também ligações sociológicas, estatísticas e

demográficas (RABINOW; ROSE, 2006) e permitiu o surgimento de uma nova forma

de clinicar, a “medicina baseada em evidências”, em substituição à medicina

centrada na doença vigente no modelo hospitalocêntrico que vigorou até o meados

do século XX, que apareceu durante o período industrial quando os hospitais se

tornaram um dispositivo importante de normatização e normalização e foi reformado

em 1910, com base no Relatório Flexner, escrito por Abrahan Flexner, que foi

alicerce da mudança no ensino médico no início do século passado. Entre outras

coisas, esse relatório propõe:

[...] um rigoroso controle de admissão; o currículo de quatro anos; divisão do currículo em um ciclo básico de dois anos, realizado no laboratório, seguido de um ciclo clínico de mais dois anos, realizado no hospital; exigência de laboratórios e instalações adequadas. O ciclo clínico deve-se dar fundamentalmente no hospital, pois ali se encontra o local privilegiado para estudar as doenças. Nas palavras do próprio Flexner: ‘O estudo da medicina deve ser centrado na doença de forma individual e concreta’. A doença é considerada um processo natural, biológico. O social, o coletivo, o público e a comunidade não contam para o ensino médico e não são considerados implicados no processo de saúde-doença. Os hospitais se transformam na principal instituição de transmissão do conhecimento médico durante todo o século XX. Às faculdades resta o ensino de laboratório nas áreas básicas (anatomia, fisiologia, patologia) e a parte teórica das especialidades. (PAGLIOSA; DA ROS, 2008, p. 5)

Sabemos que esse modelo foi amplamente questionado no período pós-

guerra, em especial a partir dos anos de 1960, em que “o descompromisso [da

medicina] com a realidade e as necessidades da população” (PAGLIOSA; DA ROS,

2008, p.5), ficaram evidentes. A paulatina medicalização da sociedade, os custos

elevados desse modelo tecnicista e a falta de uma abordagem mais humana dos

profissionais de saúde, em especial os médicos, são as principais causas do

esgotamento do modelo (ILLICH, 1976).

45

Apenas durante a década de 1980, é que o debate sobre a necessidade de

mudança do modelo médico vigente realmente provocou reformas no sistema de

saúde de vários países (PAGLIOSA; DA ROS, 2008), no Brasil a partir da constituição

de 1988, com a incorporação do conceito de saúde ampliado como direito dos

brasileiros, resultado de intenso debate e participação popular com várias

conferências nacionais de saúde é que essa mudança começou a ocorrer. Mas,

O setor educacional continuou desvinculado da reorganização dos serviços, da redefinição das práticas de atenção e dos processos de reforma. No Brasil, até o final da década de 1990, praticamente não se avançou nas discussões sobre a necessidade do desenvolvimento do trabalho em saúde.

(PAGLIOSA; DA ROS, 2008, p.6)

Outro aspecto do biopoder, de acordo com Rabinow e Rose é fundamentado

em

[...] estratégias de intervenção sobre a existência coletiva em nome da vida e da morte, inicialmente endereçadas a populações que poderiam ou não ser territorializadas em termos de nação, sociedade ou comunidades pré-dadas, mas que também poderiam ser especificadas em termos de coletividades biossociais emergentes, algumas vezes especificadas em termos de categorias de raça, etnicidade, gênero ou religião, como nas formas recentemente surgidas de cidadania genética ou biológica. (RABINOW; ROSE, 2006, p. 3)

vemos esse controle quando populações são perseguidas e eliminadas em conflitos

armados ou não, quando pesquisas genéticas podem levar à escolha de embriões

sem certos genes que podem causar algumas doenças. Foi o motivador de políticas

de eugenia na primeira metade do século passado, sendo esse seu aspecto mais

radical.

Um terceiro aspecto do biopoder, esse muito mais fácil de enxergar na nossa

sociedade, é a influência nos modos de subjetivação dos indivíduos: os discursos

sobre alimentação, exercícios físicos, sobre o corpo saudável. Podemos ver o

processo de formação de novas coletividades, o que Rabinow e Rose chama de

“biossocialidade” e de um novo tipo de sujeito, que Rose examina como

“individualidade somática”.

Leão também examina a questão do biopoder:

[...] concebe uma lista de variáveis que exprimem uma relação de forças e que constituem ações sobre ações. Na lista temos: incitar, induzir, desviar, tornar fácil ou difícil, ampliar ou limitar... Mais adiante, Deleuze sintetiza as três rubricas: 1) à medida que pode ativar, incitar, suscitar, produzir, o poder não é essencialmente repressivo; 2) o poder é exercido antes de se possuir; 3) o poder perpassa tanto os dominados como os dominantes. (LEÃO,

46

2010, p.3)

claro que na relação médico-paciente existe uma relação de poder,

[...] baseada na autoridade do primeiro em relação ao segundo. Esta autoridade deriva do conhecimento que o primeiro tem sobre o problema que o segundo vive. Como este conhecimento é aplicado e resolve, em geral, os problemas do segundo, o paciente se submete a esta autoridade. (GARBIN; PEREIRA NETO; GUILAM, 2008, p. 3)

Interessante observar que para Foucault, o biopoder “não emerge, ou serve

para dar suporte, a um único bloco de poder, grupo dominante, ou conjunto de

interesses” (RABINOW; ROSE, 2006, p. 6), embora na sua origem tenha sido uma

ferramenta do Estado para o controle populacional, seu desenvolvimento serviu a

uma série de “institutos do sub-Estado, tais como instituições médicas, fundos de

bem-estar, segurança, etc” (FOUCAULT, 2010, p. 250). Rabinow e Rose assinalam

como ponto de partida para o desenvolvimento do conceito de ‘governamentalidade’,

cujo propósito

[...] era apreender o surgimento e as características de toda uma variedade de modos de problematizar e agir sobre a conduta individual e coletiva em nome de certos objetivos que não têm o Estado como sua origem ou ponto de referência. (RABINOW; ROSE, 2006, p. 6)

Assim, podemos observar que o campo biopolítico abrange vários aspectos,

desde o controle coletivo até as “intervenções clínicas no corpo da pessoa doente

em nome da saúde” (RABINOW; ROSE, 2006). Planos e seguros de saúde, check-

ups anuais (muitas vezes, na minha prática clínica, mesmo com populações

carentes, ouvi que a consulta havia sido agendada para a realização de check-up),

orientações sobre alimentação e atividade física, são medidas de controle

largamente aplicados pela medicina contemporânea, como dispositivos para

incremento da qualidade de vida e longevidade.

A população, por sua vez, orientada pelos meios de comunicação, aceita

esse controle porque é levada a acreditar que realmente está cuidando de si:

O mundo presenciou, nos últimos vinte anos, uma intensa e radical transformação tecnológica que, entre outras consequências, tem proporcionado um crescimento acentuado do acesso à informação. Há mais informação disponível e ela é, cada vez mais, fácil e rapidamente acessível. Dois exemplos podem ser dados neste sentido: a televisão e a internet. (GARBIN; PEREIRA NETO; GUILAM, 2008, p. 1)

Programas de televisão dedicados à saúde, sites na internet, canais do

Youtube, páginas no Facebook, temos várias fontes de informação sobre saúde e

47

medicina disponíveis e de fácil acesso, “os tipos de imperativo moral que podem ser

vistas dentro do novo discurso de promoção de saúde pública são agora uma

característica regular da mídia contemporânea” (MIAH; RICH, 2008, p. 2). Há, no

entanto, preocupação quanto à qualidade dessa informação. Enquanto que em

meios tradicionais existe uma edição do conteúdo apresentado, na internet a

facilidade de qualquer pessoa poder criar seu website e colocar qualquer informação

à disposição de todo o mundo gera problemas de desinformação:

Em termos globais, as preocupações quanto as qualidades da informação estão voltadas para: educar o consumidor, estimular a regulação dos emissores de informação em saúde, possuir instâncias não comprometidas para avaliar a informação e estabelecer sanções em casos de disseminação nociva ou fraudulenta de informação. (CASTIEL, VASCONCELLOS-SILVA, 2002, p. 14)

Em sua pesquisa, Cotten e Gupta enumeram também as desvantagens da

pesquisa online, entre elas a obtenção de dados pessoais, como e-mail e

informações médicas; dificuldades na pesquisa nos websites por causa de

sobrecarga de informação, desorganização geral, uso excessivo de linguagem

técnica, falta de amabilidade com o usuário e constante mudanças; dúvidas quanto à

credibilidade das informações, principalmente nos fóruns de discussão devido a

maior parte de seus dados serem

[...] baseados em experiência pessoal e que geralmente não possuem a perspectiva crítica dos profissionais de saúde, que são requeridos para discernir entre recursos e determinar a qualidade das informações. (COTTEN; GUPTA, 2004, p. 4, tradução nossa)

Essa preocupação surge do conceito de que “a criação de uma suposta auto-

expertise do consumidor que, a priori , teria como propósito funcionar como

instrumento para escolhas mais informadas” (CASTIEL, VASCONCELLOS-SILVA,

2002, p. 11), é consequência da visão de que os pacientes são clientes do sistema

de saúde e, como consumidores, devem ser bem informados para tomar decisões

melhores com relação ao seu tratamento e autocuidado (CASTIEL,

VASCONCELLOS-SILVA, 2002), e “se justifica na medida em que a saúde tornou-

se, nos últimos anos, uma das principais preocupações do homem, adquirindo um

valor inédito na história da humanidade” (GARBIN; PEREIRA NETO; GUILAM, 2008,

p. 2).

48

2.3 Médicos e pacientes experts

Um tipo de paciente que busca informação nas redes melhor informados

formam a figura do “paciente expert”, que surgiu como um programa educacional,

voltado aos pacientes, desenvolvido pelo sistema de saúde britânico em 1998 para

“modernizar o serviço de saúde, ligando a expertise do paciente a ideias de

empoderamento, uma melhor qualidade de vida [e] auto estima” (FOX; WARD;

O´ROURKE, 2005, p. 3, tradução nossa). Esses pacientes seriam capazes de

melhorar o gerenciamento de suas doenças pelo desenvolvimento de conhecimento

sobre suas próprias doenças e sobre saúde. É preciso considerar que de uma certa

forma,

[...] todos os pacientes e seus cuidadores são experts, independentemente de quanto conhecimento médico eles possam ter. Isso porque [possuem] a experiência de viver com sua condição e suas próprias crenças, prioridades, e atitudes de risco. (SHAW; BAKER, 2000, p. 3, tradução nossa)

Há dois aspectos principais que devem ser discutidos sobre o paciente

expert: o primeiro que diz respeito a forma como essas informações são dadas, se

realmente a informação oferecida ao paciente serve para que ele tome decisões

sobre seu tratamento com mais responsabilidade ou se essas informações servem

como um dispositivo de controle que mantém um modelo normativo da vida dessas

pessoas. O segundo aspecto é como a relação médico-paciente é impactada com a

presença de pacientes mais informados e como as decisões clínicas são

negociadas.

Fox, Ward e O´Rourke, argumentam que

[...] há uma lógica em desenvolver a expertise do paciente numa era onde uma em cada três pessoas tem uma doença crônica ou incapacidade, e intervenções médicas mais gerenciam que curam essas condições. (FOX; WARD; O´ROURKE, 2005, p. 4),

para que os pacientes possam estabelecer uma parceria com seus médicos,

“melhorando a comunicação e o entendimento entre os dois grupos” (FOX; WARD;

O´ROURKE, 2005, p. 3). SHAW e BAKER completam que com o

[...] desenvolvimento da confiança e habilidades para aumentar a qualidade de vida e o trabalho em parceria com os profissionais de saúde (...) [os pacientes] fazem menos e melhor uso do time de profissionais de saúde, ao invés do cenário oposto, temido por muitos médicos. (SHAW; BAKER, 2000, p.1, tradução nossa)

Além da busca simples pelo nome da doença ou sintoma, existe um outro

49

movimento online que é o das comunidades virtuais, onde ocorrem trocas de

experiências, informações sobre os tratamentos e busca de apoio, nem sempre

encontrado nos serviços de saúde (GARBIN; PEREIRA NETO; GUILAM, 2008;

COTTEN; GUPTA, 2004; FOX; WARD; O´ROURKE, 2005), que “reúne doentes

portadores de diversas patologias, em especial doenças crônicas, raras ou

estigmatizantes” (GARBIN; PEREIRA NETO; GUILAM; 2008, p. 2),

[...] outros participantes sentiam que seus médicos não estavam lhes dando informação suficiente e usavam o fórum para obter informações suplementares e trocar experiência e questões para obter mais conhecimentos sobre suas condições e tratamento. (FOX; WARD; O´ROURKE, 2005, p. 2, tradução nossa).

Seria como os grupos de ajuda nos moldes dos Alcoólicos Anônimos ou Narcóticos

Anônimos, mas sem a necessidade de esperar até o dia da reunião.

A internet como fonte de informação em saúde possui várias vantagens sobre

outras mídias:

[...] ela permite aos os usuários acesso imediato a uma quantidade incrível de informação relacionada à saúde que é dirigida diretamente a ambos, profissionais de saúde e o público em geral. Ela permite aos indivíduos privacidade, instantaneidade, conveniência, anonimato, uma grande variedade de informação, e uma variedade de perspectivas sobre o mesmo tópico. O manto da confidencialidade garantido pela natureza anônima da internet é vantajosa em permitir que os usuários possam perguntar sobre questões constrangedoras, sensíveis ou detalhadas sem o risco de enfrentar julgamento, escrutínio, ou estigma, e ser de acordo com sua conveniência. (COTTEN, GUPTA, 2004, p. 3, tradução nossa)

No entanto, alguns desses fóruns e comunidades são patrocinados por

indústrias farmacêuticas e podem servir para

[...] dentro de um contexto cultural no qual ideias normativas sobre forma do corpo, ginástica e saúde são refletidos em imagens midiáticas e artigos sobre o ‘bom’ e o ‘mau’ peso e forma, em moda e consumismo, e em discursos médicos dominantes sobre saúde e doença. (FOX; WARD; O´ROURKE, 2005, p. 18, tradução nossa),

servindo como aparato de governamentabilidade dos indivíduos. Assim,

[...] a regulação e disciplinização está voltada para os indivíduos autonomizados, que se autovigiam em busca de otimizar seus supostos interesses de melhorar na vida. Dentre eles, está a saúde, mas sobretudo do ponto de vista da aptidão, em uma curiosa mescla de meio e finalidade. Indiscutivelmente, surgem novas questões éticas e repercussões socioculturais referentes ao campo dos cuidados em saúde e também ao autocuidado (aspecto essencial da promoção da saúde), em função das mediações entre meios informáticos, profissionais de saúde e clientelas que, por sua vez, são transformadas em agentes consumidores. (CASTIEL; VASCONCELLOS-SILVA, 2002, p. 8)

50

Outro ponto a ser discutido na busca por informações online é que as

referências encontradas podem não ser tão amigáveis assim, existindo

[...] dificuldades encontradas por pacientes leigos com a linguagem médica e com a incerteza advinda da multiplicidade de informações. Somam-se a isso os problemas decorrentes do estímulo à automedicação. (GARBIN; PEREIRA NETO; GUILAM, 2008, p.3)

Essa preocupação promove discussões e algumas organizações de saúde

criaram seus próprios sites para informação a esses pacientes, caso da Organização

Mundial de Saúde, do Ministério da Saúde brasileiro, das sociedades médicas; todos

tem áreas que oferecem informações sobre uma miríade de doenças e cuidados

com a saúde para não-profissionais de saúde, além das informações aos próprios

profissionais, inclusive com o desenvolvimento de manuais sobre como interpretar,

acessar e usar informações oriundas da internet (FOX; WARD; O´ROURKE, 2005,

tradução nossa). Percebemos que essas organizações, em geral, e em todo o

mundo, que se preocupam com a

[...] qualidade da informação estão voltadas para: educar o consumidor, estimular a regulação dos emissores de informação em saúde, possuir instâncias não comprometidas para avaliar a informação e estabelecer sanções em casos de disseminação nociva ou fraudulenta de informação. (CASTIEL; VASCONCELLOS-SILVA, 2002, p. 14)

A consulta médica passa a ser então uma “reunião entre especialistas”,

“baseados no encontro entre a expertise profissional baseada num modelo médico

de doença e a expertise do paciente, fundada em experiências subjetivas de

personificação (embodiement), saúde e doença” (FOX; WARD; O´ROURKE, 2005,

p. 19). Essa reunião teria como resultado uma perfeita troca de saberes, com a

melhor decisão clínica de um lado e o entendimento total de outro. Entretanto, os

médicos ainda se mostram resistentes a essa expertise de seus pacientes,

acreditam que seriam mais solicitantes e que demandariam mais tempo em

consulta, em uma agenda escassa em tempo. SHAW e BAKER descrevem:

[...] para esses médicos ansiosos e sobrecarregados, o paciente expert é o paciente exigente, o paciente insensato, o paciente que consome tempo, ou o paciente que sabe tudo. E quem, em seu juízo perfeito, desejaria um desses no seu consultório numa segunda-feira de manhã, com dez outras pessoas pacientemente esperando para ser atendidas? (SHAW; BAKER, 2000, p.1)

Castiel faz uma caricatura dessa relação, explicando todas as formas

51

possíveis, segundo ele, de como seria a relação entre os médicos e os pacientes:

[...] [na relação centrada na doença] o clínico, na ‘terra sagrada dos conhecedores’ (holy land of the knowing), está ao lado de um ‘poço’ vazio (o buraco da ignorância) para onde lança o medicamento em pílulas para um paciente prosternado no fundo do poço, dizendo como o mesmo deve ser ministrado e ordenando que não sejam feitas perguntas; [na relação] educacional — onde o clínico anuncia que vai educar o paciente e lança para ele uma corda e este inicia uma subida pela parede (com a observação ‘ex ducere — conduzir para fora’); [na] era da internet — o médico olha estupefato pacientes subindo para sair do poço pela escada de madeira www, através de self-support, uns galgando os ombros dos outros ou alçando-se mediante um balão e-mail, e o que conseguiu sair joga fora a tabuleta; [na relação do paciente como] consumidor como parceiro — o médico recebe de mão estendida dizendo bem-vindo ao paciente que saiu pela sólida escada da educação do paciente via internet. (CASTIEL, 2002, p. 16-17)

Claro que a relação entre médicos e pacientes não pode ser reduzida de

forma tão simplista a essas formas descritas. Os médicos são ensinados a ter uma

visão científica reducionista e a parte do discurso do paciente que não se encaixa no

seu conhecimento técnico não é ouvida, “o conhecimento médico se baseia em

imagens, símbolos, ritos da ciência, cuja mitologia constrói a ideia de seu poder, de

se aproximar e, eventualmente, evidenciar as ‘verdades’” (CASTIEL, 2002, p. 17).

Quando a senhora X entra no consultório reclamando de uma dor no joelho, o

médico liga o botão “dor no joelho” dentro de seu conhecimento fisiopatológico;

então ela começa a contar a história de que essa dor começou quando ela caiu

dentro do ônibus, depois de uma freada brusca, porque ela estava em pé e isso é

falta de respeito com os mais velhos, e que ela tinha acordado muito cedo e estava

cansada, por isso não conseguiu se segurar a tempo (em toda essa narrativa o

médico não presta atenção), e depois da queda, seu joelho estalou (aqui o médico

volta a prestar atenção) e ficou inchado por alguns dias (ainda está atento), mas que

a vizinha emprestou uma pomada porque estava sem dinheiro para ir à farmácia, já

que não conseguiu ir trabalhar com o joelho machucado (médico desatento). Então,

cansado da história o médico a interrompe e começa a perguntar objetivamente,

quantos dias ficou inchado, ficou vermelho, doía mais na frente ou atrás? Toda a

experiência e o impacto da doença na vida da senhora X não é considerado

importante na coleta da história clínica, da anamnese. É importante observar, como

Marteleto e Stotz descrevem, que:

[...] as expectativas em termos de uma vida saudável (...) guardam sempre uma relação com os processos sociais vivenciados cotidianamente e constituem pressupostos da configuração de sentidos ou narrativas

52

construídas para dar conta das rupturas, bloqueios ou perturbações existentes em seu mundo vivido. (MARTELETO; STOTZ, 2009, p. 17)

A objetivação da entrevista é descrita por Waitzkin como reificação, e tem seu

papel no direcionamento da entrevista, para conseguir do paciente o maior número

de dados possível para a construção do raciocínio clínico. Mas a reificação também

[...] desloca para longe a atenção da totalidade das relações sociais e das questões sociais que eventualmente são a raiz dos problemas pessoais [...] ao reificar relações sociais problemáticas, a medicina reduz a potencialidade para efetivamente criticar essas relações. Sintomas, signos e tratamento ganham uma aura de fato cientifico, ao invés de manifestações subjetivas de uma realidade social turbulenta. (WAITZKIN, 1989, p. 4-5, tradução nossa)

Sobre compreender, Morin explica: “quanto mais desenvolvidos são os meios

de comunicação, menos há compreensão entre as pessoas. A compreensão não

está ligada à materialidade da comunicação, mas ao social, ao político, ao

existencial, a outras coisas” (MORIN, 2003, p. 2). Na literatura revista não há

consenso se o empoderamento do paciente abalaria a relação médico-paciente, há,

sim, o apontamento de inúmeros problemas, e uma percepção geral de que é

preciso impor um caráter mais humanizado a esse momento de conversa.

53

3 MIDIATIZAÇÃO E TRADUÇÃO

Neste capítulo, veremos um panorama de como os médicos se apropriam das

mídias, em especial a internet, para mudar a relação médico paciente, que deixa de

ser individual e passa a ser coletiva, passa a atingir mais pessoas ao mesmo tempo.

Se há tradução da linguagem técnica para linguagem coloquial, de forma que os

consumidores dessa informação consigam, de fato, entender o que está sendo

explicado pelos médicos.

Também faremos estudo sobre o projeto da ONG Beaba, que se propõe a

traduzir a linguagem médica para as crianças em tratamento contra o câncer,

através de uma cartilha que é organizada como um dicionário, em que os termos

técnicos são explicados através de linguagem gráfica e coloquial.

3.1 Médicos que se apropriam das mídias

A internet se apresenta como um espaço que pode “reconfigurar as relações

humanas” (MIAH; RICH, 2008, p. 26), uma vez que não há interação face a face e

“muitas formas de interações online são baseadas sobre o desempenho da auto-

representação” (MIAH; RICH, 2008, p. 27). Druckrey assinala que:

[...] a imersão do eu nas paisagens midiáticas da telecultura que deve gerar uma prática comunicativa cujas fronteiras não estão mapeadas no espaço físico. Em vez disso, as tecnologias da nova mídia mapeiam uma geografia de cognição, de recepção e de comunicação que surge em territórios cujo domínio sobre a matéria é efêmero, cuja posição no espaço é tênue, cuja temporalidade não está mapeada em momentos descontextualizados e cuja presença é medida antes em atos de participação que em coincidências de local. (DRUCKREY, 2005, p. 392)

O ambiente da internet é construído em rede, na qual uma “complexa malha

de informações se interligam, é a própria tecnologia hipertextual que permite os elos

entre os pontos diversos. Cada página, cada site, traz em si o potencial de se

intercomunicar com todos os outros pontos da rede” (LEÃO, 2005, p. 24) e “o caráter

interativo é elemento constitutivo do processo hipertextual” (LEÃO, 2005, p. 41), ou

seja, o usuário é quem define quais caminhos quer percorrer durante seu passeio

pelo mundo virtual, não há uma ordem pré-definida a ser seguida e inclusive há a

possibilidade de se criar outros nós nessa rede, com a publicação de informações “a

54

hipermídia é uma tecnologia que permite escrita e leitura não-linear” (LEÃO, 2005,

p.55).

A mudança na percepção espacial que experimentamos no ambiente online

provoca também uma mudança na forma de representarmos o corpo nesse

ambiente, “muitos dos ambientes online requerem um certo grau de imersão antes

de ficar claro qual o alcance das capacidades que eles facilitam” (MIAH; RICH, 2008,

p.33). Nesses vários locais online onde podemos nos situar, “cada um de nós é

formado por muitos selfs que estão disseminados, espalhados por muitas partes da

rede” (LEÃO, 2005, p. 109), assim sendo:

[...] processos de corporificação e descorporificação e efeitos perceptivos, psíquicos e cognitivos correspondentes, sem dúvida, ocorrem. Tanto isso é verdade que, para alguns, a ambivalência do corpo entre o real e o virtual constitui-se no dilema representacional do ciberespaço cujo clímax apresenta-se nas fronteiras corporais que se borram nas experiências de realidade virtual. Mas nem precisamos ir tão longe quanto na realidade virtual. Imersões menos profundas no ciberespaço, como aquelas que milhões de pessoas praticam cotidianamente quando surfam pelos reinos sem fronteiras da web, já provocam notórias recalibrações da fisicalidade do corpo e da matéria mental. (SANTAELLA, 2009, p.2)

Se usarmos uma ferramenta de busca online e procurarmos pelos termos

saúde, medicina, informação em saúde, médico, doutor, o que encontraremos é uma

lista de websites que ensinam a dieta da moda, como emagrecer sem fazer ginástica

ou dieta, empresas de planos de saúde, onde existem faculdades de medicina e

como se faz para passar no vestibular ou se inscrever no crédito educativo nessas

faculdades. Infelizmente, não há uma etiquetagem eficaz para se encontrar um blog

ou canal de médico online.

No entanto, se for digitado o nome de uma doença, é possível encontrar os

canais online de informação médica, ainda misturado às dietas e remédios, mas com

algum cuidado e alguma paciência se encontra informação confiável sobre a doença

em questão.

Observando esses canais, é possível notar como os médicos estão se

apropriando das mídias para se relacionarem com os pacientes. Na sociedade

medicalizada é natural que os médicos encontrem canais na mídia para poder dar

informações melhores aos seus pacientes, com a autoridade da expertise do corpo,

numa tentativa de melhorar a informação acessada pelos pacientes, “o discurso da

confiabilidade revela como a internet é enquadrada pela presunção de uma

hierarquia de conhecimento” (MIAH; RICH, 2008, p. 39), e os “pacientes podem ser

55

capazes de obter aconselhamento de especialistas mais rápido do que se

estivessem esperando por uma consulta com um expert em tempo real” (MIAH &

RICH, 2008, p. 40).

Na pesquisa que fizemos no Youtube, encontramos canais médicos que

podemos dividir em três tipos principais:

Canais de médicos em programas de televisão, a exemplo do Dr.

Dráuzio Varela, que contam com um orçamento maior e que apresentam

mais recursos visuais, com animações e gráficos para auxiliar a

explicação dada. Alguns com bons comunicadores, como Varela, que

faz isso há quase 30 anos e passou pelo rádio, televisão e agora pela

internet; outros não tão bons comunicadores, que mantém a postura do

consultório, com uso de linguagem técnica e “uniforme de médico”,

jaleco e estetoscópio no pescoço.

Canais que contam com estruturas melhores, como indústrias

farmacêuticas ou sites maiores, em que, na maioria das vezes, os

médicos se apresentam também com a postura do consultório. Esses

têm algum recurso visual e mais capricho no pós-produção, mas ainda

assim mantêm um discurso hierárquico.

Por último, os canais do tipo do it yourself, feitos com pouco orçamento,

expressando bem a intenção do Youtube, de broadcast yourself

(transmita-se). Normalmente apresenta tomadas com uma câmera, com

captação de áudio sem filtro, o médico fica sentado na sua mesa, de

jaleco e estetoscópio, conversando com a câmera de vídeo

pausadamente, com os jargões técnicos, como aprendeu a fazer por

toda a sua vida profissional.

Não é intenção dessa pesquisa fazer análise dos vídeos, por isso nos

fixaremos no discurso, na forma como a informação pretende ser passada. Sabemos

que

[...] a relação doente-médico é considerada como produtora de ansiedade, principalmente pelas classes populares, porque não possuíam critérios objetivos de avaliação, enfatizando as dificuldades com o padrão comunicacional (CAPRARA; FRANCO, 1999, p.3),

quando o paciente não entende ou não encontra um médico que possa passar

informações de uma forma que seja inteligível para si, ele irá procurar outras formas

de obter essa informação que está procurando.

56

Numa consulta que fiz, no posto de saúde onde trabalho, com um paciente

diabético há cerca de 15 anos, já com algumas complicações, insulino-dependente,

eu perguntei a ele o que ele sabia sobre diabetes. Sua resposta foi que “diabetes é

quando o açúcar do sangue sobe”, o que está certo. Entretanto, quando eu o

indaguei se ele sabia porque o açúcar subia em algumas pessoas e em outras não,

ele não soube dizer. Então, por meio de desenhos e metáforas (eu comparei a célula

a um tanque de combustível, o açúcar à gasolina e a insulina à chave que abre o

tanque de gasolina) expliquei a ele o porquê do uso da insulina, qual a necessidade

da dieta orientada, dos exames pedidos regularmente e até da necessidade da

frequência das consultas. Pude observar que ele havia compreendido grande parte

do que eu expliquei e ele me disse que em 15 anos nunca haviam lhe orientado

dessa forma e que agora ele realmente pôde entender sua doença e seu tratamento.

Nesses casos podemos ver a importância da tradução para a linguagem coloquial,

usando exemplos que se aproximam da realidade das pessoas, ou como Freire

coloca:

[...] não podemos deixar de lado, desprezado como algo imprestável, o que educandos, sejam crianças chegando à escola ou jovens e adultos a centros de educação popular, trazem consigo de compreensão do mundo, nas mais variadas dimensões de sua prática na prática social de que fazem parte. Sua fala, sua forma de contar, de calcular, seus saberes em torno do chamado outro mundo, sua religiosidade, seus saberes em torno da saúde, do corpo, da sexualidade, da vida, da morte, da força dos santos, dos conjuros. [...] O respeito a esses saberes se insere no horizonte maior em que eles se geram – o horizonte do contexto cultural. [...] O respeito, então, ao saber popular implica necessariamente o respeito ao contexto cultural. A localidade dos educandos é o ponto de partida para o conhecimento que eles vão criando do mundo. ‘Seu’ mundo em última análise é a primeira e inevitável face do mundo mesmo. (FREIRE, 1997, p. 44)

No entanto, o que observamos é que, apesar da tentativa de se fazer

entender, na maioria das vezes, isso não acontece. Rossi e Batista fizeram um

estudo sobre o ensino de comunicação no curso de medicina e aponta algumas

coisas interessantes:

Na leitura das entrevistas com egressos e coordenadores de cursos de graduação em medicina, pudemos destacar a diversidade de olhares sobre o ensino/aprendizagem de comunicação na formação profissional. [...] Em algumas escolas, a comunicação não consta do programa pedagógico do curso, não havendo referências que possam identificar o propósito curricular no desenvolvimento dessa competência. [...] O ensino/aprendizagem da comunicação é considerado resultante do treinamento de procedimentos e não do estudo de uma habilidade específica. Os entrevistados sugerem que o aprendizado ocorre no contexto do currículo oculto, especialmente por

57

meio da observação de profissionais em atividade, seja como médicos ou professores. (ROSSI; BATISTA, 2006)

A falta de sensibilidade no olhar para o paciente e captar seu discurso e tudo

o que vem implícito nesse discurso se reflete na mesma insensibilidade na hora de

dizer ao paciente informações sobre sua condição ou doença. Como não há

treinamento formal em comunicação aos jovens médicos em treinamento, eles

aprendem com os médicos mais velhos, os comportamentos que, os próprios

médicos mais velhos assumem como ruins. Caprara e Franco completa:

[...] a interpretação pressupõe um campo semântico partilhado: vive-se um exercício de partilha e aquele que interpreta a si mesmo pode ser um ponto de vista possível para o campo semântico. Portanto, a interpretação não está acima do seu interpretado; antes, cada expressão concorre com sua interpretação. Esta consideração inclui uma chave para uma nova proposta para a relação paciente médico: o médico interpreta a queixa trazida inicialmente pelo paciente, mas experimenta um exercício de partilha do seu saber com a queixa daquele que busca ajuda, e sua interpretação tanto é influenciada pelo paciente como influencia a queixa. As perguntas feitas pelo médico modelam a queixa, visando a identificação de um caminho terapêutico. Talvez possamos dizer, a partir de Gadamer, que para o médico atender, ouvir realmente aquele que o procura com uma queixa, faz-se necessária a experiência da condição de submetido ao conhecimento científico e não somente de conhecedor. (CAPRARA; FRANCO, 1999, p. 6)

O recurso tecnológico usado pelos médicos para se inserir na internet, tem

então alcance limitado pela linguagem utilizada. A tentativa de se mostrar disponível

e acessível, só resulta em disponibilidade. Ainda sobre a pesquisa de Rossi e

Batista,

[...] depreende-se outra especificidade: a comunicação, para a maioria dos entrevistados, é um procedimento instrumental para execução do ato médico. Para que se chegue a um diagnóstico, é preciso inquirir, de modo a se levantarem dados suficientes para a análise de possibilidades. Saber se comunicar é entender o paciente e se fazer entender por ele. (ROSSI; BATISTA, 2006, p. 8)

A questão que se levanta é como se fazer entender pelo paciente se não se é

orientado sobre uma forma de se fazer isso, ou, como a linguagem utilizada

influencia na comunicação entre grupos sociais? “A leitura e a escrita das palavras,

contudo, passa pela leitura do mundo. Ler o mundo é um ato anterior à leitura da

palavra” (FREIRE, 1997, p. 41) e

[...] tanto o médico como o paciente encontram-se na condição de explicar e compreender a si mesmos e ao outro. Na medida em que o médico assimila e assume esta compreensão, se aproxima do paciente, recorre às várias fontes de explicação e compreensão da situação, inclusive a sua própria história. (CAPRARA; FRANCO, 1999, p. 6)

58

3.2 A linguagem médica em tradução – Beaba

A Organização Beaba 5 foi fundada em 2013, pela publicitária Simone

Lehwess Mozzilli, que é sua presidente, e “é uma entidade sem fins lucrativos com a

missão de desmistificar o câncer e informar de maneira clara, objetiva e otimista

sobre a doença e o tratamento para crianças, adolescentes e seus acompanhantes”

(BEABA, 2015). De acordo com Mozzilli6, “passado o choque inicial do diagnóstico,

no qual pacientes e familiares vivenciam a confusão de sentimentos, há a urgência

imediata pela busca de informações sobre a doença. Dependendo da qualidade da

informação, o retorno das buscas pode ser persuasivo, instruindo e engajando o

paciente, ou dissuasivo, aturdindo e esmorecendo-o”. Baseada em experiência

pessoal, Mozzilli complementa: “as pessoas acham que a informação é só

perfumaria, mas não é. Muitos acham que é só o tratamento que importa, quando na

verdade a informação é uma parte muito importante. A pessoa diagnosticada tem

uma jornada enorme pela frente e tem de saber lidar com isso”. SHAW e BAKER,

escrevem que o paciente informado “[...] é valioso porque, pelo entendimento da

visão e da situação do paciente, o médico está melhor equipado para identificar uma

solução que levará a um resultado positivo”. (SHAW; BAKER, 2000, p. 2, tradução

nossa ).

Figura 1: Logomarca da ONG Beaba Fonte: MOZZILLI, 2016.

Um dos projetos do instituto é a formulação da cartilha Beaba do Câncer. O

livro explica, por meio de imagens e textos simples e positivos cerca de 100 termos

relacionados ao tratamento do câncer, o público alvo da ONG é as crianças em

tratamento no Hospital A C Camargo. Não são utilizados termos técnicos, nem fotos

5 Site: www.beaba.org. 6 Entrevistas realizadas em outubro de 2015.

59

usadas em publicações direcionadas aos profissionais de saúde. De acordo com

Steiner, “o modelo esquemático da tradução é aquele no qual uma mensagem passa

de uma língua de saída para uma língua de chegada por meio de um processo

transformador” (STEINER, 1998, p.53), é o que a cartilha faz, como podemos ver

nas imagens abaixo:

Figura 2: Capa da cartilha Beaba do Câncer Fonte: MOZZILLI, 2016.

60

Figura 3: Exemplo de busca no Google e da tradução realizada pelo Beaba Fonte: MOZZILLI, 2016.

61

Figura 4: Exemplo extraído da cartilha Fonte: MOZZILLI, 2016. Figura 5: Exemplo de verbete da cartilha Fonte: MOZZILLI, 2016.

62

Figura 6: Outros verbetes da cartilha Fonte: MOZZILLI, 2016.

O processo de criação da cartilha envolveu os pacientes, pais, médicos e

enfermeiros, “criamos um documento aberto, e cada pessoa colocou sua sugestão.

Três médicos explicaram os verbetes de forma técnica, nós reescrevemos para a

linguagem adequada. Quando terminamos, a cartilha foi revisada por dois

oncologistas clínicos, um fisioterapeuta, um psiquiatra, estudantes de medicina e

enfermeiras”, explica Mozzilli (2015). Esse trabalho conjunto permitiu que as

informações ficassem com o teor técnico-explicativo, mas com uma linguagem de

fácil interpretação. A interpretação de um signo verbal ocorre de três formas, de

acordo com Jakobson: “ele pode ser traduzido para outros signos da mesma

linguagem, para outra linguagem, ou para outro sistema de símbolos não-verbais”

(JAKOBSON, 1959, p. 2, tradução nossa), nesse mesmo texto, o autor iguala o

processo de interpretação ao de tradução: “o nível cognitivo da linguagem não

somente admite, mas requer diretamente a interpretação de recodificação, i.e.,

tradução” (JAKOBSON, 1959, p. 3, tradução nossa), Steiner complementa que “uma

transferência interpretativa (algumas vezes descrita, de forma bastante inadequada,

63

como codificação e decodificação) deve ocorrer de modo a garantir que a

mensagem ‘passe’” (STEINER, 1998, p.53).

Figura 7: Processo de criação da cartilha Beaba do Câncer Fonte: MOZZILLI, 2016.

Entender diferenças de linguagem regionais é fator importante também, “em

muitas línguas importantes, diferenças dialetais se polarizaram a tal ponto que

estamos quase lidando com línguas diferentes” (STEINER, 1998, p. 57), esses

regionalismos fazem com que “a compreensão exi[ja] tradução muito semelhante

àquela que ocorre entre línguas” (STEINER, 1998, p.57). Durante o tempo que

trabalhamos no interior, entender e acostumar-se a expressões como: lançando

(vomitando), runheira (mal-estar), mãe-do-corpo (menstruação), cheiro (genital

feminino), entre outros, levou tempo e real disposição para ouvir o paciente. A

tradução ocorre incessantemente: o paciente traduz um sentimento em sintoma e o

traduz em fala, o médico traduz a fala do paciente em um signo de uma síndrome e

depois os vários signos em diagnóstico, novamente o médico traduz esse

diagnóstico em uma conduta terapêutica e traduz as orientações para uma

linguagem acessível ao paciente, que novamente fará tradução para seu sistema

sígnico interior. Em todo esse processo parte da mensagem pode se perder,

[...] os meios de entrada constituem um complexo agregado de conhecimentos, familiaridade e intuições recreativas. Em qualquer desses casos, há igualmente, como veremos, penumbras características e margens de insucesso. Certos elementos escapam da compreensão completa ou do reavivamento. (STEINER, 1998, p.54)

não podemos esquecer que

[...] tradução de uma linguagem para outra substitui mensagens em uma linguagem, não para unidades-código, mas para mensagens inteiras em

64

alguma outra linguagem. [...] Por conseguinte, tradução envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos diferentes. (JAKOBSON, 1959, p. 1, tradução nossa)

Mozzilli (2015) permitiu que a acompanhássemos a uma visita ao hospital

para visitar algumas crianças acompanhadas pelo projeto, o que pudemos perceber

é que, além do envolvimento que mantém com essas crianças e com a equipe de

trabalhadores do hospital, desde o porteiro até a enfermagem, há muita

preocupação com o trabalho desenvolvido: “o câncer, por ser considerado uma

doença crônica, cujo tratamento, em geral, demanda tempo significativo de

hospitalização, expõe a criança a procedimentos invasivos e incômodos afetando

seu desenvolvimento em termos físicos, cognitivos e emocionais, podendo

desencadear reações de estresse e ansiedade. A criança com câncer sente

necessidade de saber o que está acontecendo, mesmo quando a família se esforça

para ocultar o diagnóstico, pensando em protegê-la. Ela percebe que seus pais

estão angustiados e que algo grave e aparentemente sem controle ocorre em seu

corpo”, por isso justifica a cartilha, como uma forma de também diminuir o sofrimento

por que passam essas crianças, ao facilitar até conversas com seus pais, “o objetivo

é elucidar as principais dúvidas infantis, quase sempre mais fantasiosas que as

adultas”.

O acesso à informação por essas crianças transforma sua relação com o

câncer, Mozzilli (2015) relata dois exemplos dessa transformação: “Um menino de 5

anos, por exemplo, ficou bravo porque queria um cateter igual ao de um amiguinho,

expliquei que os casos eram diferentes, e ele se acalmou. Uma menina de 9 anos

passou a pedir para não ser mais tratada como coitadinha, além de aceitarem

melhor os procedimentos, as crianças se tornam mais otimistas”, contrariando a

tendência que nossa sociedade tem de “preservar as crianças”, como se elas não

entendessem o que se passa ao seu redor e consigo mesmas,

[...] a comunicação ocorre em situações concretas, acionando ruídos, culturas, bagagens diferentes e cruzando indivíduos diferentes. Ela é sempre multidimensional, complexa, feita de emissores e de receptores (cujo poder multidimensional não pode ser neutralizado por uma emissão de intencionalidade simples). O fenômeno comunicacional não se esgota na presunção de eficácia do emissor. Existe sempre um receptor dotado de inteligência na outra ponta da relação comunicacional. (MORIN, 2003, p. 6)

Nesse sentido, Mozzilli (2015) completa, “nosso sonho, nos hospitais, é fazer

com que as crianças com câncer não sejam estigmatizadas como ‘as sofredoras’”.

65

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa dissertação, através da arqueologia da clínica, buscou evidenciar os

processos de construção da autoridade médica e da relação médico-paciente, e

como a perda do poder do discurso, com a disseminação de informações médicas

pelos meios de comunicação em massa, altera essa relação. Discute também o

entendimento dessa informação, uma vez que as dificuldades de compreensão da

linguagem técnica dentro do consultório se mantém nas pesquisas por canais

médicos do Youtube, porque, na visão desta pesquisa, não há, na graduação,

momentos específicos para que as habilidades em comunicação sejam ensinadas.

Esperamos ter contribuído para a discussão sobre a necessidade de

transformar o modo como os médicos se comunicam com seus pacientes e como as

novas mídias podem impactar a relação entre médicos e pacientes. A arqueologia

feita no sentido de desvelar o aparecimento do médico como figura de autoridade e

fonte de poder se mostrou importante para poder fazer algumas reflexões sobre a

prática médica e o ensino médico.

Também questionamos a relevância do nosso papel como perpetuadores de

um modelo médico em que o controle do corpo é muito subliminar. Todas as

recomendações que eu dava no consultório acerca de alimentação, atividade física,

peso, fatores de risco para doenças, eu acreditava que eram para, de fato, melhorar

a qualidade de vida dos meus pacientes. Antes de entrar para o programa de pós-

graduação, eu nunca havia me perguntado quem controlava os fios, a quais

interesses eu servia com todas essas orientações. Penso que durante a graduação

é importante mostrar aos alunos que existem mais coisas em que pensar, além do

último consenso sobre a doença X ou a nova recomendação da sociedade da

especialidade Y. Somos parte de uma máquina biopolítica, mas não

necessariamente a controlamos.

Ainda somos treinados em comunicação de forma indireta e informal, apesar

de, em algumas escolas, as habilidades em comunicação serem dadas “no contexto

de disciplinas específicas, especialmente semiologia e psicologia médica” (ROSSI;

BATISTA, 2006, p. 7), é durante a

66

[...] observação de modelos, seja de professores ou outros médicos em atividade, na prática e em contato direto com o paciente, notadamente no internato, a principal responsável por esse processo” (ROSSI; BATISTA, 2006, p. 9)

O internato é o estágio em que somos “treinados em serviço” como uma

professora da ginecologia da minha graduação me disse uma vez. Ter discussões

sobre como se comunicar com os pacientes apenas nesse período da formação é

pouco e não sensibiliza os graduandos para a dimensão da comunicação na sua

vida profissional. Copiar modelos de médicos que se comunicam mal, não é treinar

habilidades em comunicação.

Acreditamos que um trabalho de tradução, como o feito pelo Beaba é um

modo de transmitir informações médicas com maior eficácia, porque durante minha

vida profissional foi como aprendi a me fazer entender, traduzindo a linguagem

técnica em exemplos próximos à realidade dos meus pacientes. Como Steiner

coloca, “um ser humano realiza um ato de tradução, no sentido completo da palavra,

quando recebe uma mensagem verbal de qualquer outro ser humano. O tempo, a

distância, disparidades de ponto de vista ou de referência pressuposta, tudo isso

torna esse ato mais ou menos difícil. Onde a dificuldade é suficientemente grande, o

processo passa do reflexo para a técnica consciente” (STEINER, 1998, P. 71).

Desenvolver essa técnica pode ser um desdobramento desta pesquisa, num projeto

de doutorado.

Como últimas palavras, citarei SHAW e BAKER, novamente:

[...] o envolvimento claramente requer ao menos duas partes, ao invés de sugerir que o papel do profissional de saúde é de alguma forma redundante ou substituível. Nem intimidador nem paternalista, o envolvimento é uma ampla igreja na qual muitos, se não todos nós ficaríamos felizes em encontrar um lar e onde nós esperamos que bons médicos sempre se sintam bem-vindos. (SHAW; BAKER, 2000, p. 2, tradução nossa)

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