projeto avá canoeiro

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F CEGA, FACA AMOLADA: PROJETO AV-CANOEIRO. RELATO DASATIVIDADES DE LETRAMENTO E SISTEMATIZAO DE AQUISIO DA ESCRITA/LEITURA ALFABTICA*

SILVIA LUCIA BIGONJAL BRAGGIO**

RESUMO Neste artigo apresento as atividades de educao escolar realizadas de 26 a 30 de agosto, na ltima visita da 1a Etapa do Projeto Av-Canoeiro, realizada por mim e pelo bolsista e meu orientando Jos Estevo Rocha Arantes, com parte do grupo dos seis Av-Canoeiro residentes na rea indgena Av-Canoeiro, Minau, Gois, considerado em perigo de extino. Nele, fao uma descrio do processo de aquisio da leitura/escrita alfabtica nesta ltima visita. Nesta visita foi instaurada a sistematizao do processo de aquisio da escrita/leitura alfabtica (que distingo da fase inicial de letramento) em um sentido bastante amplo, que perdura por toda a vida. A fim de contextualizar as atividades de aquisio, discuto primeiramente o percurso histrico do grupo Av-Canoeiro no seu contato com a sociedade envolvente, focalizando a lngua e o atual estado sociolingstico do grupo, os quais iluminam a educao escolar do grupo. PALAVRAS-CHAVE: Av-Canoeiro, educao escolar e aquisio de lngua escrita.

GUISA DE INTRODUO A histria da escrita, desde tempos imemoriais, tem sido privilgio de uns poucos, seja ela em que funo seja usada. Dois teros da* A 1 a Etapa desse Projeto foi resultado de um convnio FURNAS/FUNAPE/FUNAI, financiado por FURNAS e realizado por membros do Museu Antropolgico, da Faculdade de Letras e do Departamento de Cincias Sociais da UFG: o antroplogo Marco Antonio Lazarin, a lingista Mnica Veloso Borges, a educadora Rosani Moreira Leito e o bolsista Jos Estevo Rocha Arantes. Esta Etapa do projeto foi de 1/10/2001 a 30/9/ 2002. Exceto Lazarin, todos atuaram na pesquisa e educao escolar. Lazarin foi o primeiro coordenador e, posteriormente, consultor antropolgico. * * Doutora em Lingstica Educacional pela University of New Mexico (USA). Professora de Lingstica da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Gois. E-mail: [email protected]

Recebido em 25 de setembro de 2003 Aceito em 18 de dezembro de 2003

humanidade vive na misria, e analfabetos funcionais aterrorizam-nos pela sua quantidade (65% no Brasil no sabem ler um texto simples e interpret-lo). Curiosamente (!), so os pases mais pobres e com maior diversidade botnica, racial, tnica, cultural e lingstica, que constituem a base da pirmide dos despossudos dos bens culturais, sociais, cientficos, tecnolgicos, acumulados atravs de sculos pela escrita. Se a escrita poder e um dos instrumentos da cidadania (GNERRE, 1985), curioso que, s em fins sculo XX, os marginalizados e excludos, estejam tendo acesso escrita. Eu digo, acesso, porque ainda no sabemos, e no saberemos a curto prazo, a influncia da escrita nas sociedades indgenas. Como afirmei em artigos anteriores, tanto ela pode ser instrumento de conflito, como de resistncia, ou como me afirmou um professor Kaingang em 1984: a educao uma faca de dois gumes (BRAGGIO, 1986). Se tratada como instrumento de libertao (FREIRE, 1981), os objetivos dos povos indgenas podero ser alcanados. Se no, como diz Milton Nascimento, f cega, faca amolada. Nos prximos itens tratamos da instaurao da escrita alfabtica entre os Av-Canoeiro de Minau/GO, em uma tentativa de mostrar, de forma simples, a complexidade da aquisio da leitura e da escrita em uma sociedade no letrada. A fim de iluminar nosso percurso, parto do contato desse povo com a sociedade envolvente, procura de subsdios que me dem suporte para as aes ali efetuadas. O CONTATO DOS AV-CANOEIRO COM A SOCIEDADE ENVOLVENTE Os Av-Canoeiro, um grupo de seis pessoas1 vivendo na rea Indgena Av-Canoeiro, no estado de Gois, com 38.000 hectares, demarcada, mas ainda no homologada e registrada, pertencem famlia lingstica Tupi- Guarani (RODRIGUES, 1986). Como a histria nos tem mostrado o contato dos povos indgenas com os no-indgenas um fator relevante na sua constituio e sobrevivncia fsica, lingstica e cultural. A histria de contato do povo Av-Canoeiro com os no272 BRAGGIO, Silvia L. Bigonjal. F CEGA, FACA AMOLADA: PROJETO AV-CANOEIRO...

indgenas foi, segundo minhas leituras principalmente de Pedroso (1994), Tosta (1997), Toral (1986), Rocha (1998), bastante complexa. Os dados lingsticos do contato so quase inexistentes, mas h pistas que me levam a formular algumas hipteses de trabalho. H trs termos que definem o contato entre os Av e a sociedade envolvente, que do suporte atual situao sociolingstica dos Av de Minau: conflito, disperso e resistncia. Segundo Pedroso os Av-Canoeiro habitavam as margens do rio Tocantins e Maranho. A hiptese mais provvel a de que tenham vindo do norte, subindo o rio Tocantins e estabelecendo-se em seu alto curso. J antes da poca da colonizao do Centro-Oeste (sculo XVIII) estavam estabelecidos s margens desses rios e seus afluentes. Da leitura dos mapas de Pedroso pude observar que estavam mais agrupados entre 1760-1798 e bem mais dispersos, entre 1860 e 1889, em pequenos grupos. importante notar que essa disperso comea a ficar bem visvel a partir de 1840, uma estratgia dos Av para garantir sua sobrevivncia fsica, cultural de modo autnomo, no conflito estabelecido com os colonizadores que estavam invadindo suas terras. Em meados do sculo XVIII os conflitos passaram a ser intensos, mas como afirma Pedroso (1994, p. 42) os Av eram avessos ao contato no admitindo fala nem com o colonizador nem com os ndios j contatados (meus grifos), recusando-se terminantemente ao contato pacfico e, pelo contrrio, atacando os colonizadores e mostrando seu carter de resistncia. Considerados, ento, como altamente perigosos e um entrave tomada da regio pelos brancos, os Av-Canoeiro foram sendo paulatinamente massacrados e erradicados por bandeiras punitivas que possuam instrumentos de ataque mais poderosos. Quando aprisionados em presdios militares (a partir de 1860) preferiam a morte, o que desconcertava a populao de ento. Nunca foram aldeados nos termos de Rocha (1998), o que ocorreu com outros povos indgenas da regio. Estima-se que eram em nmero de 5.000 pessoas. Aps ataques/ massacres, que duraram dois sculos, por fazendeiros, mineiros, posseiros, jagunos, por volta de 1960 (portanto, dois sculos depois), os AvSIGNTICA, v. 15, n. 2, p. 271-302, jul./dez. 2003 273

estavam reduzidos a 100 pessoas. E a um nmero menor ainda com os massacres seguintes. As circunstncias de reduo do grupo como um todo, grupos bem menores, disperso, nomadismo, mudana das margens de rios para altas montanhas, constituram transformaes que levaram reduo dos bens materiais e [] capacidade de reproduo fsica da prpria sociedade (PEDROSO,1994, p. 81- 82). Constatou-se, porm, que o grupo Av contatado em 1983 possui uma vida religiosa intensa, utilizando o fumo e o marac em seus rituais de pajelana. Esse grupo, constitudo por Matxa, Tuia, Nakwatxa e Iawi, sobrevivente de um desses massacres, perambulou durante 12 anos vivendo em cavernas, como nmades, fugindo do homem branco. Bastante doentes os quatro Av se entregaram a um fazendeiro em Minau, em 1983, que contatou a FUNAI. Foram levados para viver na regio onde estava sendo construda a Usina Hidreltrica da Serra da Mesa e a viveram por volta de um ano. Em seguida foram transferidos pela FUNAI para um posto a apenas oito quilmetros da usina, onde nasceram Trumak e Putdjwa, filhos de Iawi e Tuia, e mais tarde para o atual local onde vivem (que ser descrito posteriormente). Para Toral (1985) os Av-Canoeiro, como grupo tnico diferenciado, esto em extino. J para Granado possvel que isso no acontea (1998). Os primeiros contatos e a lngua nativa Diferentemente de outros povos indgenas que perderam sua lngua no contato, os quatro Av-Canoeiro sobreviventes mantiveram sua lngua. H vrios fatores que afetam a manuteno ou a mudana da lngua e podem ser os mesmos em ambos os casos (GROSJEAN, 1983). No que diz respeito ao Av de Minau podem ser levantadas as seguintes hipteses, que esto inter-relacionadas, dada a singular situao de contato que viveram at 1983: (i) o isolamento do grupo em relao ao homem branco, sem ter com ele estabelecido relaes amistosas (pelo contrrio, como vimos, eram considerados perigosos e invisveis (PEDROSO, 1994); (ii) o constante carter de migrao/mobilidade/disperso, o que tambm274 BRAGGIO, Silvia L. Bigonjal. F CEGA, FACA AMOLADA: PROJETO AV-CANOEIRO...

os isolou, mas os tornou mais integrados entre si, mais solidrios. Ambos os fatores e (iii) o grau de solidariedade/identidade do grupo sua lngua e cultura, e sua resistncia, dificultaram o contato permanente com o homem branco, no permitindo, assim, a aquisio do Portugus nesse perodo. Seguramente, nessa poca, a lngua Av tinha grande vitalidade, sendo utilizada em todas as funes a ela pertinentes. A lealdade lingstica certamente se apoiou na solidariedade/integrao e no carter de resistncia dos membros do grupo. O contato a partir de 1983 A situao de contato permanente dos Av de Minau com o homem branco foi extremamente conflituosa (TOSTA, 1997). Como vimos, eles foram colocados para viver em local prximo construo, em sua prprias terras, da Usina Hidreltrica da Serra da Mesa (FURNAS). Este provavelmente o perodo em que comearam a ter mais contato com o Portugus por meio dos trabalhadores locais. Inevitavelmente a lngua de contato, a lngua franca, tinha de ser o Portugus. Um grupo muito maior de trabalhadores no teria interesse nenhum em adquirir a lngua de quatro indgenas. Trata-se, sem dvida, de uma situao assimtrica, de um grupo dominante exercendo seu poder sobre um grupo extremamente fragilizado. Seguramente, a segunda lngua dos Av, o Portugus, deve ter sido adquirida a duras penas. Este um fato confirmado entre outros povos indgenas, conforme anlises correntes na literatura sobre o assunto, j que os povos indgenas estavam fadados a desaparecer, fato este de forte impacto sobre esses povos. Este foi um perodo bastante difcil para os Av de Minau. Mais tarde, como vimos, foram deslocados para um posto da FUNAI a apenas oito quilmetros da Usina, o agora chamado Posto Velho. Este foi o perodo em que nasceram Trumak e Putdjwa. Povos indgenas altamente ameaados deixam de ter filhos, a fim de no legar a eles a sua prpria sina. So vrios os povos que seguiram essa conduta, o que, entre outros motivos, causou a depopulao dos povos indgenas no Brasil at osSIGNTICA, v. 15, n. 2, p. 271-302, jul./dez. 2003 275

anos 80 (RICARDO, 2000).2 As notcias da poca no desmentem esse fato com respeito aos Av de Minau (TOSTA, 1997, p. 28). Eles no queriam, mas tiveram esses filhos e passaram a essa nova gerao a sua lngua, Av-Canoeiro, que chamam de lngua, o que, de acordo com os estudos sociolingsticos, indica uma atitude positiva com relao prpria lngua e aos seus valores culturais. Tambm deve ter sido nesse perodo que o seu Portugus continou a desenvolver-se atravs do contato com agentes da FUNAI, usuais trabalhadores nos postos indgenas e outros brancos que haviam invadido suas terras, principalmente o de Iawi. Neste perodo tambm se deu o incio da aquisio dessa lngua por Trumak e Putdjwa. A fim de contextualizar o processo de educao escolar, devemos antes coloc-los no cenrio atual onde esto inseridos. Nesse cenrio, a vrios quilmetros de Minau, havia antes posseiros que tinham invadido a rea a eles reservada. O contato com esses posseiros foi longe de harmonioso, pois eles estavam invadindo e explorando terras demarcadas aos Av e os prprios Av. S recentemente foram retirados da reserva (ainda h quatro deles no local, emperrando na justia a homologao e o registro das terras dos Av-Canoeiro) o que, de meu ponto de vista, teve implicaes para a mudana de casa dos Av e para a configurao do local. Como parte das obrigaes da Usina com os Av, foram construdas quatro casas de tijolo vista, em uma rea circundada por morros altos, rios, cachoeiras, muitos pssaros, peixes, animais, e muitas rvores naturais do cerrado. Uma delas foi alocada aos Av, a outra aos caseiros, uma outra enfermaria e uma ao chefe do posto. No momento de minhas visitas os Av tinham contato cotidiano somente com os dois caseiros, Magna e Geraldo Ribeiro, e com Walter Sanches, chefe do posto. Walter Sanches, indigenista que est com os Av h 12 anos, tem trabalhado em conjunto com eles, para a mudana de uma situao altamente conflituosa para uma em que os Av fazem planos para as suas vidas, com sua nova casa no alto do morro e suas roas ao lado desta casa. Tem sido nessa rea que os Av tm criado seus filhos e foi276 BRAGGIO, Silvia L. Bigonjal. F CEGA, FACA AMOLADA: PROJETO AV-CANOEIRO...

a que desenvolveram mais seu Portugus, em diferentes tipos de bilingismo. Em 2001 decidiram subir um dos morros e construir a uma casa de toras de madeira coberta com palha de buriti para nela viverem. A casa de tijolos foi abandonada (algumas vezes regressam para a casa do posto quando Matxa tem que fazer algum tratamento mdico, por exemplo). Essa diferente configurao me leva a classificar o local em dois ncleos: 1) aquele onde est a casa alta e, 2) aquele onde esto as casas do posto (exceto a deles). Esses ncleos apresentam diferentes situaes sociolingsticas que tm implicaes para a educao escolar. A situao sociolingstica na casa alta mostra que a lngua dominante no local a Av. Os fatos do contato e outros que aponto a seguir revelam que, na casa alta (e tambm quando estavam/esto sozinhos na sua casa do posto), a lngua mais usada entre eles, a Av-Canoeiro, em todos os domnios sociais, nos diferentes estilos, os da esfera do cotidiano e os da esfera privada (BAKHTIN, 1992), como rituais, msicas, mitos etc., por quatro razes principais: (i) a da lealdade lingstica, fator/valor a no ser subestimado, pois j foi historicamente demonstrado por eles. O grupo est, novamente, mais isolado e, certamente, mais integrado; (ii) ali no h brancos presentes que demandem alternncia de lnguas, um processo sociolingstico natural entre povos bilnges. Logo, no h necessidade de se usar Portugus. Alm do mais, (iii) a variedade tnica do Portugus dos mais velhos fortemente marcada por sua lngua (muito mais ainda a das mulheres), o que indica que a lngua dominante, a que mais usam, a Av. Iawi tem mais proficincia de uso do Portugus do que as mulheres em um continuum de proficincia entre os membros do grupo (e no comparado a um monolnge (ROMAINE, 1995)). Nakwatxa, por exemplo, apresenta, quando fala Portugus, inmeras alternncias (ou emprstimos) nos seus enunciados, oriundas de sua lngua, o que indica que a lngua base a Av, uma situao de manuteno e no de perda da lngua. Tuia acompanha sua fala com gestos e se expressa atravs de itens lexicais e pequenas expresses em Portugus. Alm do mais, grande parte dos

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emprstimos do Portugus aos quais tive acesso so criaes atravs da prpria lngua ou fonologizados e morfologizados pelo filtro da lngua e a ela integrados. Como a lngua dominante dos mais velhos a Av, no seria de esperar que Trumak e Putdjwa no sejam proficientes nessa lngua, embora ainda no se saiba sobre as diferenas da lngua entre os mais jovens e os mais velhos, levando-se em considerao o continuum bilnge proposto por Romaine (1995) e no as abordagens dicotmicas propostas por outros autores. No h dvidas, portanto, de que so bilnges. Por proficiente, entende-se que os falantes bilnges so capazes de fazer uso das duas lnguas nos diferentes contextos situacionais, de acordo com seu grau de proficincia. Ou seja, considera-se que h formas intermedirias de proficincia na lngua, em um continuum em que em um plo encontra-se o modo monolnge na L1 (primeira lngua) e no outro o monolnge na L2 (segunda lngua), nos mais variados graus, nas quais o falante mistura as lnguas ou empresta de uma lngua para a outra, faz transferncias etc. No que diz respeito ao Portugus, Trumak e Putdjwa o dominam bem. H vrias possibilidades para explicar a diferena do Portugus de Trumak e Putdjwa em relao aos outros membros do grupo: a aquisio de uma segunda lngua por crianas, no ambiente circundante informal, at por volta do princpio da adolescncia, por razes sociopsicolingsticas, se d de maneira mais natural do que para os adultos. At esse perodo a segunda lngua pode ser adquirida, inclusive sem sotaque. H tambm a possibilidade de que o contato mais intenso com falantes da lngua portuguesa os tenha tornado mais proficientes (no sentido j por mim explicado), pois o uso de uma ou outra lngua que faz com que para os falantes bilnges uma lngua predomine sobre a outra nos diferentes contextos. Todavia, a razo da escolha da lngua j um problema mais difcil de ser detectado (voltaremos ao assunto mais adiante). E ainda (iv) os Av mantm sua vida religiosa, como a cachimbada, em seus rituais de pajelana. Tosta (1997) relata que comum, principalmente entre as [mulheres] mais velhas, trancarem-se em suas casas278 BRAGGIO, Silvia L. Bigonjal. F CEGA, FACA AMOLADA: PROJETO AV-CANOEIRO...

por horas [...] em atividades de pajelana. A mesma autora informa que em 1996 Putdjwa estava sendo iniciada nos rituais Av. Seguramente eles se realizam no estilo de lngua mais formal do grupo. importante observar que sua vida religiosa no foi perdida apesar dos doze anos em que estiveram fugindo pela mata. Talvez outros rituais tenham sido perdidos, mas este um fato a ser observado pelo estudo antropolgico. A situao sociolingstica nas casas do posto mostra que nas cenas/eventos de fala observados neste local ocorre um cenrio bilnge, com dominncia do Portugus. Mas h espaos para o uso do Av, em situaes tpicas de bilingismo, de alternncia de lnguas e/ou emprstimos entre os Av e os brancos e entre eles mesmos. Nesse primeiro estudo o foco foi na alternncia de lnguas interpessoal, pois ela de significativa importncia para o desvelamento da vitalidade da lngua nativa. As regras sociolingsticas de uso de uma ou outra lngua entre povos bilnges em contato so vrias (GROSJEAN, 1983). A presena de falantes de Portugus uma regra forte entre grupos indgenas quando h brancos no evento falando Portugus, fala-se Portugus. H algumas situaes entre os Av em que usam o Portugus ao invs do Av para falar. H outras em que usam Av. Por exemplo, quando os mais velhos falam entre si, usam Av, mas quando Iawi fala com os filhos, ora usa Portugus, ora Av. Nesse ncleo 2, em nossa presena, Trumak e Putdjwa falam entre si em Portugus. Quanto atitude dos dois Av mais jovens com relao sua lngua, suas respostas s entrevistas semi-estruturadas feitas por mim mostram uma atitude positiva, seguramente herdada de seu grupo. Esta atitude um caminho que, se bem trabalhado, pode lev-los a falar Av entre si, em nossa presena. Putdjwa e Trumak demonstram alegria quando nos ensinam sua lngua. O fato de sua lngua estar sendo estudada e o interesse da equipe em aprend-la podem ajudar nesse processo. No estudo sociolingstico tentei mostrar as minhas primeiras impresses com a situao de contato da lngua Av-Canoeiro com o Portugus na rea indgena de Minau. O foco, a partir de meu olhar,SIGNTICA, v. 15, n. 2, p. 271-302, jul./dez. 2003 279

recaiu sobre o uso das lnguas, manuteno ou deslocamento, tomando as alternncias de lnguas interpessoais e vrias outras perguntas da tipologia de Edwards (1992) e Grenoble & Whaley (1998) e de autores que trabalham com codeswitching e lnguas em uso. Como se pde observar os Av de Minau no perderam sua lngua no contato, passaram-na para seus filhos e continuam usando-a. As alternncias de lngua ocorrem de forma natural, mas algumas das cenas observadas por mim indicam o uso do Portugus em detrimento do Av no ncleo 2. O uso do Portugus entre Trumak e Putdjwa no ncleo 2, deve ser cuidadosamente analisado, recorrendo-se a mais estudos e observaes, a fim de que se possa detectar que aes so mais urgentes para que se possa evitar o deslocamento do Av pelo Portugus, a extino da lngua, tambm as de ordem extra-lingsticas. As ameaas que me parecem mais contundentes nesse momento so a do tamanho do grupo, que tm dado origem ao argumento: por que tanta terra para to poucos ndios, o que os torna sempre vulnerveis invaso, j que a terra est apenas demarcada. Acredita-se que mudanas no ecossistema provocam mudanas na lngua e cultura, abruptas, e que grupos pequenos so menos resistentes s presses econmicas e tecnolgicas em um mundo globalizado que pretende homogeneizar todos sob um cdigo comum, com a conseqente eliminao das diferenas/dos diferentes. Recentemente, foi inaugurada a Usina de Cana Brava em parte de suas terras, o que pode levar alterao do ecossistema. E mais, a entrada do homem branco, madeireiros, caadores, mineradores, pescadores, fica facilitada, o que pode produzir contatos conflituosos. Uma outra ameaa a da passagem da lngua para a prxima gerao, j que Trumak e Putdjwa so seus ltimos descendentes. H questes a serem esclarecidas e mais estudos a serem emprendidos e, sem dvida, os sociolingistas tm um importante papel a desempenhar, a fim de evitar a extino da lngua Av-Canoeiro de Minau. E, claro, desse povo, enquanto etnia diferenciada, singular. A partir dessa minha leitura do contato, acredito que a educao escolar em andamento congruente

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com a situao sociolingstica e pode ser um instrumento de vitalizao da lngua Av-Canoeiro e de sua no-extino. PROPOSTA EDUCACIONAL Em 1999 fui procurada por Walter Sanches, indigenista da FUNAI e chefe do PI Av-Canoeiro de Minau, a fim de elaborar um projeto de educao escolar para os Av-Canoeiro. Aps muitos encontros com Sanches e seus relatos sobre os Av, leituras sobre esse povo e levando em conta minha experincia na rea (veja bibliografia), elaborei o Projeto Av-Canoeiro. Proposta de Educao: vitalizao de lngua e cultura, que foi aprovado por FURNAS em maio de 2000, em reunio em Goinia, com quatro membros dessa organizao, de So Paulo e do Rio de Janeiro. Uma quantidade razovel de tempo passou at o projeto ser assinado, um convnio FUNAI/FURNAS/FUNAPE , com o trabalho acadmico a cargo do Museu Antropolgico da UFG (membros da Seo de Etnolingstica do Museu e professores da Faculdade de Letras e de Cincias Sociais). As aes do projeto foram iniciadas em 1/10/2001, quando eu estava nos Estados Unidos para meu ps-doutorado, com a coordenao do ento diretor do Museu, o antroplogo Marco Antonio Lazarin. De comum acordo entre ambos, a coordenao seria por mim assumida quando de minha volta ao Brasil. O objetivo geral no projeto Av-Canoeiro : a) descrever e analisar a situao sociolingstica, b) descrever e analisar a lngua Av-Canoeiro, c) fazer uma anlise antropolgica e, concomitantemente, iniciar um processo de educao escolar prprio, de acordo com o estado sociolingstico, cultural e histrico do grupo e de seu contato com a escrita alfabtica at aquele momento. O objetivo especfico evitar o etnocdio desse povo, levandoo a manter no s seus direitos lingsticos, culturais e territoriais, mas tudo que o caracteriza como povo Av-Canoeiro. Dessa forma, minha proposta inicial foi dividida em etapas e em aes com vrios mdulos. Os mdulos so interdependentes e a realizao de cada um deles depende do que tinha sido feito anteriormente eSIGNTICA, v. 15, n. 2, p. 271-302, jul./dez. 2003 281

dos estudos em andamento. A Etapa I foi constituda por momentos diferenciados, mas concomitantes: o do conhecimento scio-histricolingstico-antropolgico e sociolingstico dos Av-Canoeiro, necessrios para o embasamento/andamento do processo de escolarizao. No se pretendeu, pois, em um primeiro momento, uma escolarizao nos moldes j conhecidos, mas a preparao para a escolarizao. A partir dessa primeira ao e de seus resultados, outras se seguiram (a primeira aconteceu no perodo apontado nesse artigo), levando a uma escolarizao originada da sistematizao de seus conhecimentos (matemticos, geogrficos, biolgicos etc., ou seja, dos modos como classificam as coisas de seu mundo), que lhes permita apropriar-se do conhecimento ocidental que vem sendo sistematizado h sculos, possibilitando um processo de interculturalidade em que seus conhecimentos sejam valorizados medida que adquirem os da sociedade envolvente em um processo dialgico, crtico, humanitrio, libertrio, no sentido de prepar-los melhor para o gerenciamento de suas prprias vidas e destinos, no que vem sendo chamado de literacy for empowerment (leitura e escrita para o fortalecimento) ou (letramento como prtica social) em McLaughlin (1982) e Street (1984), respectivamente, atravs da dialogia entre o Eu e o Outro (BAKHTIN, 1986, 1992; FREIRE, 1978, 1981; BRAGGIO, 1992, 1999), de resistncia libertria (GIROUX, 1983) e humanitria (GADOTTI, 1998). As atividades escolares Uma das premissas bsicas da teoria proposta para o trabalho com os Av-Canoeiro foi o da sua insero no mundo da escrita (leitura/ escritura) atravs da interao com esta nos seus mais diversos suportes e funes, gneros, estilos, pois s assim poderiam desenvolver todos os processos necessrios cognitivos, lingsticos, funcionais, significativos para a aquisio da leitura e escritura do tipo alfabtico (GOODMAN, 1987), aos quais tiveram acessos apenas espordicos, carecendo do processo necessrio aquisio da lngua escrita (BRAGGIO, 1992). A partir desse pressuposto, foram muitas e diversificadas as atividades desenvolvidas282 BRAGGIO, Silvia L. Bigonjal. F CEGA, FACA AMOLADA: PROJETO AV-CANOEIRO...

na Etapa I do projeto, trabalhando a lngua nos seus mais diferentes suportes, funes, significaes, estilos e gneros. No meu relatrio de fevereiro, ao analisar a leitura e escritura de Putdjwa e Trumak, apontei o carter incidental da leitura e a escrita espontnea na escritura, processos considerados de significativa importncia para a aquisio e o desenvolvimento da leitura/escrita alfabtica (BRAGGIO, 1990). Apontei tambm que eles estavam ativamente trabalhando com esses processos uma vez introduzida a leitura/escrita em seu ambiente cotidiano. Texto 1 Escrita espontnea de Trumak

Ao elaborar a programao, minha expectativa com essa visita, em agosto, era a de que eles estariam aptos para comear, de formaSIGNTICA, v. 15, n. 2, p. 271-302, jul./dez. 2003 283

sistemtica, a ler e a escrever alfabeticamente. Parti do princpio da zona de desenvolvimento proximal (ZDP) de Vygotsky (1987, p. 112) a distncida entre o nvel de desenvolvimento real, que se costuma determinar atravs da soluo independente de problemas, e o nvel de desenvolvimento potencial, determinado atravs da soluo de problemas sob a orientao de um adulto , o que significa em termos de prtica pedaggica, o que uma pessoa capaz de fazer a partir da zona de desenvolvimento potencial com a mediao de um adulto, no caso da escrita, o(a) professor(a). Mas no ao acaso. Trabalhei com outro princpio norteador da proposta, que o trabalho com a sistematizao do conhecimento do aluno, da sua experincia com o mundo ao seu redor, do que ele traz como conhecimento prvio desse mundo. Foi nesse sentido que escolhi algumas unidades temticas, outra premissa bsica da proposta, que assume que a aquisio de nenhum conhecimento se d de forma isolada, fragmentada, mas que se d em seus diversos contextos de produo ou situacionais. Nesse sentido, de maneira integrada, com o propsito fundamental da aquisio da leitura/escrita alfabtica como prtica social, pudemos trabalhar histria, geografia humana e fsica, cincias, ecossistema, atravs da dialogia, da pesquisa do ambiente local e da concepo de uma pedagogia que no s informa, mas forma para o mundo atual.3 O livro de Gadotti (1998), atual diretor do Instituto Paulo Freire, tece importantes consideraes a esse respeito e d subsdios nossa proposta. DESCRIO DAS ATIVIDADES O espao fsico/histrico mundial e seus povos indgenas. O espao fsico/histrico dos Av-Canoeiro 26/8/2002 Comeamos por uma discusso geral do tema. A seguir foi utilizado o Mapa geogrfico mundial, publicado pela Folha de S.284 BRAGGIO, Silvia L. Bigonjal. F CEGA, FACA AMOLADA: PROJETO AV-CANOEIRO...

Paulo,1994. Nele foram localizados os continentes, os pases, as regies e os estados. Foram indicados os locais em que h povos indgenas e explicadas suas formas de vida, sempre partindo dos continentes para os estados. O livro Indios norte-americanos (North american indians, Random House, 1977) propiciou-lhes a oportunidade de verem como vivem esses ndios, suas casas, seus animais, o modo de se vestirem conforme o clima etc. Depois voltamos ao mapa do Brasil, foram apontados os estados, lidos mais de uma vez os povos indgenas que a vivem, como vivem e suas lnguas. Viram fotografias de outros povos indgenas brasileiros e estudaram o livro Atlas geogrfico indgena do Acre, elaborado pelos professores indgenas do Acre, MEC/SEF/CPI/AC,1998. Chegou-se, ento, s terras dos Av-Canoeiro. Fomos delimitando onde esto discutindose sobre a defesa desse espao, seus rios, suas plantas, seus animais etc. e sobre como a leitura/estudo pode prepar-los para isso. Decidimos fazer um mapa coletivo do local, at onde pudessem ver. Comearam a desenhar o mapa e saram vrias vezes para observar se o estavam fazendo corretamente, com suas estradas, rios, serras e casas. Aos rios chamaram de Rio Iaca (rio pequeno) e Rio Iaco (rio grande). Deram os nomes s casas e discutimos qual seria o nome desse primeiro mapa. Decidiram por Terra dos Av-Canoeiro. Iawi, que estava ali ajudando a discusso, fez um mapa da casa no alto do morro com as roas que ia comear a plantar em setembro. No fim da tarde, para uma integralizao do assunto tratado, li a histria Txopai e Ith escrita por Kantyo Patax e contada por Apinhaera Patax, em que se discute a histria dos Patax e o comeo de tudo, com os inmeros bichos que existiam na terra deles, o que proporcionou o mote para a atividade do dia seguinte: O que mais existe nas terras Av-Canoeiro (meu intuito era trabalhar com a fauna).

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Animais da terra dos Av-Canoeiro 27/8/2002 A fim de dar continuidade discusso anterior, li e discutimos parte de um texto por mim elaborado, em que aponto a chegada dos portugueses ao Brasil, o nmero de povos indgenas existentes, onde estavam, suas lnguas e as razes de sua extino. Acentuamos a importncia de conservar o uso da lngua nativa, da defesa do ecossistema, sobretudo, dos animais. O tema escolhido para ser trabalhado foi Os Animais da Terra dos Av-Canoeiro. Buscou-se o que Trumak e Putdjwa sabiam sobre isso (sistematizao do conhecimento a partir da prpria realidade do aluno). Retomou-se o mapa, e comeamos a discutir sobre o que mais existe na rea. Citaram pssaros, peixes e inmeros outros animais. Foram utilizados, ento, os livros: Os bichos, volumes 1 e 4, coleo da Abril Cultural, 1972; Aves brasileiras, Edies Melhoramentos, sem data; As aves, da Editorial Verbo, 1976; Animais em perigo, Editora Melhoramentos, 1973; Peixes da rea xerente e Cobras da rea xerente, Srie Natureza, de autoria dos professores indgenas Xerente, organizados por Lydia Poleck e publicados pelo CEGRAF-UFG,1997 e 1994. Viram, discutiram onde ficavam os bichos, como eram, levantaram o nome dos bichos que h em suas terras, que fomos anotando em uma lista bem grande. Da lista escolhi alguns para serem trabalhados na leitura e escrita alfabtica a partir da unidade temtica Animais da Terra dos Av-Canoeiro. So itens lexicais, semanticamente interrelacionados, ou seja, formando um composto de significados estruturados dentro de um tema animais e perfeitamente integrados nesse texto/tema mais amplo, sem se constiturem, portanto, em palavras soltas. No se preocupou tambm em delimitar este ou aquele grafema/letra: ema, tatu, pato, arara, rato, sapo, lobo, gamb, tapitxi (um tipo de coelho), jacar, jaracuu, jararaca, veado, ona, gavio, borboleta etc. Como ainda no sabemos como categorizam e classificam os animais, certamente de modo diferente da nossa classificao em

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mamferos, rpteis etc., usamos o nome genrico animais. Escrevi na lousa Animais da Terra dos Av-Canoeiro e coloquei os nomes que foram escolhidos em letra alfabtica maiscula, mais adequada a ser internalizada em um momento inicial de aquisio da escrita, j que esta a forma escolhida pelas crianas nas suas primeiras representaes da escrita alfabtica. Alm disso, grande a semelhana entre as letras alfabticas cursivas podendo acarretar confuses (SMITH,1982). Lemos de vrias formas: na ordem, fora da ordem, apontando aqui e ali, primeiro coletivamente e depois individualmente utilizando o mesmo processo: uma leitura holstica, sem nos determos em letras isoladas. Pedi a Putdjwa que lesse e, em seguida, a Trumak, segura do sucesso, pois o processo sistemtico que se estava iniciando havia tido um longo percurso, com a ZDP totalmente ativada. Ambos leram muito bem. Quando apontei aqui e ali no tive dvidas de que estavam lendo. Pedi a Estevo que fizesse o mesmo e, mais tarde, que me pedisse para ler. De propsito eu errava alguns nomes. Era imediatamente corrrigida por eles. Em seguida, foram escrever as palavras. Quando senti que Putdjwa estava segura do que estava fazendo (Estevo estava trabalhando com Trumak), disselhe que estava na hora de escrever de memria. Fui dizendo-lhe os nomes dos bichos e ela no hesitou em atender minha solicitao. Devagar, concentrada, corrigindo, escreveu todas as palavras pedidas. Mais, depois que as havia escrito, comeou a escrever sem eu pedir, creio eu, feliz com a descoberta dos mistrios da escrita alfabtica. Decidimos, ento, pela elaborao de um cartaz em que aparecessem alguns animais locais. Fizeram os desenhos, pintaram, recortaram, colaram e escreveram os nomes dos animais no cartaz. Para finalizar o dia Estevo leu do livro Krah Jarkwa, Grfica Rpida, 1988,os textos O uso do mel e Ona-vigilncia da rea krah, e eu li, do mesmo livro, Festa no cu, que conta a histria da desapario dos bichos da rea Krah em uma certa poca por causa das queimadas junto s nascentes dos rios e da fome que os Krah passaram. Depois do jantar chamaram Geraldo para v-los lendo. A alegria foi geral.SIGNTICA, v. 15, n. 2, p. 271-302, jul./dez. 2003 287

Nesse dia Iawi, alm de participar das discusses, fez um desenho de lanternas, mostrando que uma delas estava quebrada, para pedir ao Walter uma nova por meio de escrita tambm no-pictogrfica. Na sua escrita no-pictogrfica, representao simblica com signos diversificados (inclusive algumas letras alfabticas), criada por ele para se comunicar com Walter por escrito, mostrou onde estava escrito Iawi, Av-Canoeiro. Seus bilhetes ao Walter e, mais recentemente, aos membros da equipe, mostram que Iawi est usando uma das funes vitais da escrita, a interacional, feita interpessoalmente atravs dessa modalidade da lngua, alm da funo instrumental e informacional (HALLIDAY, 1969). A escrita para Iawi j tem uma significao que ele decodifica para seu leitor. Esta escrita de Iawi tem sofrido mudanas, maior incluso de smbolos alfabticos, o que mostra que ele est elaborando, trabalhando sobre a escrita e o seu papel, sobre sua funo na interao humana (o que j vinha fazendo antes). Essa mudana, em princpio, mostra que, embora no participe sistematicamente das atividades de leitura/escrita, est passando por um processo de maior compreenso da mesma, extremamente rico e propcio para que desenvolva a escrita alfabtica. Isso certamente acontecer no momento em que perceber que a escrita alfabtica pode ser decodificada pelo leitor e no apenas por ele mesmo e que ela pode ter vrias funes em seu cotidiano. Basta que essa compreenso seja adequadamente constituda. H um mundo de mistrios na atividade escrita de Iawi, que pretendo estudar com cuidado durante a realizao desse projeto, a fim de favorecer um processo que foi iniciado por ele prprio, muito antes da atual equipe comear a trabalhar com o grupo. H muitas questes a serem desvendadas na histria da escrita de Iawi, as quais so um desafio para o pesquisador(a) de aquisio da lngua escrita (Nakwatxa tambm elaborou algumas escritas no-pictogrficas).

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Textos 2 e 3 de Putdjwa e Trumak

Continuidade do dia anterior com o mesmo tema 28/8/2002 Retomou-se a aula anterior, discutindo sobre os animais: como so, o que comem, os que podem ser comidos, os considerados como perigosos etc., mas no chegamos sua classificao pelos Av, tarefa prevista para a Etapa II, a ser feita por um especialista em cincias, assim como a geografia, a matemtica do grupo etc. (sistematizao do conhecimento global dos Av de seu mundo, com o grupo, j que esse conhecimento no est totalizado na cabea de um indivduo em particular). Por exemplo, Nakwatxa pode conhecer mais sobre o uso das plantas que atuam como remdios (cincias, biologia) do que Iawi, mas Iawi pode conhecer outras coisas sobre o uso das plantas que utilizou na construo da casa do alto da serra em termos de adequao aoSIGNTICA, v. 15, n. 2, p. 271-302, jul./dez. 2003 289

local, durabilidade, tamanho, proporo etc. (matemtica/geografia/ ecologia). H um mundo a descobrir sobre os Av. Essa descoberta permitir que esse conhecimento total se torne explicitamente posse do grupo e d suporte para as aulas do projeto. Como tinham listado outros animais, Putdjwa e Trumak escreveram seus nomes e leram. Iawi participou das discusses e fez questo de explicar coisas sobre eles. Nesse dia fez vrios trabalhos na sua escrita. Foi um dia bastante proveitoso, pois houve mais chances para as exploraes/elaboraes/ trabalho de Trumak e Putdjwa sobre a leitura e a escrita alfabtica. Trumak, excitado, ficava perguntando: Silvia, eu estou lendo mesmo? Texto 4 Escrita espontnea de Iawi

Para finalizar o dia li a A origem do tamandu bandeira, contada em Xerente por Raimundo Wakawe, na verso em Portugus por Edite290 BRAGGIO, Silvia L. Bigonjal. F CEGA, FACA AMOLADA: PROJETO AV-CANOEIRO...

Smikidi, coletada por mim quando de minha visita Aldeia Salto (BRAGGIO, 2000), no perodo em que orientava Edite no trabalho de alfabetizao das crianas Xerente. Plantas/rvores da terra dos Av-Canoeiro 29/8/2002 A fim de dar prosseguimento ao trabalho, dentro da proposta terico-pedaggica do projeto, voltamos ao mapa inicial e perguntamos a Trumak e Putdjwa o que mais havia na rea Av-Canoeiro. Apontamos as montanhas verdes e eles disseram que havia muitas rvores e foram mostrando no mapa onde elas estavam e seus nomes. Nesse momento no anotamos os nomes, pois o objetivo era fazer uma pesquisa de campo e, a sim, anotar. Do mapa passamos para o livro Flora dos Estados de Gois e Tocantins, de Jos Angelo Rizzo, Cegraf-UFG, 1996. Foram vistas as rvores do cerrado (ilustraes) e muitas foram reconhecidas por eles. Sugeriu-se, ento, que fossem reconhecer e mostrar as rvores. Estevo levou uma prancheta para anotar os nomes. A lista era grande e, com exceo de alguns, os nomes foram dados em Av. Disseram no saber o nome em Portugus. Conferi com eles o nome de cada rvore. Discutimos sobre as rvores, se davam frutos, se podiam comer esses frutos,4 o que faziam com elas, seu papel na natureza, a derrubada de rvores etc. Mais uma vez, por no se saber como categorizam a sua flora, foi usado o nome genrico plantas/rvores. Como na outra atividade escolhi alguns nomes para serem escritos e lidos a partir da unidade temtica rvores da terra dos Av-Canoeiro, portanto itens lexicais contextualizados: baru, buriti, peroba, mangaba, guariroba, caju, tacana piawia, aquimili, jatxitxia, timugna, amucaja e camajua (alguns desses nomes so de origem Tupi, j incorporados ao Portugus; outros so em Av). Como a escrita alfabtica dos nomes das rvores refere-se a itens lexicais, utilizei letras que j conheciam, inclusive em seus nomes, exceto o /k/ que foram representados como c e qu, por ser a letraSIGNTICA, v. 15, n. 2, p. 271-302, jul./dez. 2003 291

k fonte de conflito nas escritas indgenas, principalmente naquelas feitas pelos missionrios. Foi uma deciso coerente com o processo que se instaurou. Trata-se de uma ortografia transicional, de itens lexicais integrados, que dever passar por estudos da lngua, dever ser elaborada com o grupo, testada por seus membros e ser utilizada por eles. Vale lembrar que a ortografia Tapirap, criada h 20 anos, ainda est sofrendo mudanas. Isto o que tem ocorrido com todas as lnguas da humanidade que utilizam o cdigo alfabtico. Hallyday, grande estudioso das lnguas escritas no mundo, aponta em sua obra Spoken and written language (1989) esse carter transicional dos cdigos escritos.5 Tambm Diringer (1968), aponta que a escrita alfabtica levou milnios para estabelecer a forma que tem hoje.6 Textos 5 e 6 de Trumak e Putdjwa

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A atividade de ler e escrever foi ento utilizada. Escrevi na lousa, leram, escreveram de memria, leram novamente. Estudaram O livro das rvores, elaborado pelos professores Ticuna e organizado por Jussara Gruber, Hamburg Grfica Editora, 1997. Decidimos ento fazer um outro cartaz representando algumas das rvores que haviam identificado. Para tanto, foram colher folhas de algumas delas (estudo no campo) as quais foram colocadas em envelopes com seus nomes. Para finalizar, foi lido o texto A produo de alimentos, do livro Krah anteriormente apontado e discutiu-se sobre a preservao das rvores para o equilbrio do ecossistema e da vida na terra. Visita casa dos Av-Canoeiro no alto do morro. Finalizao das atividades sobres as plantas 30/8/2002 A fim de estabelecer relaes de confiana com todos os Av, (MCDERMOTT, 1982), fui visitar sua casa. Foi, pois, no meu ltimo dia l, pela manh, que Walter, Estevo, Trumak, Putdjwa e eu subimos o morro. No levei gravador, mquina fotogrfica, filmadora, caderno de anotaes. Eu os estava visitando, e por isso tentando me despojar do meu papel de pesquisadora (coisa difcil, seno impossvel). Receberamnos com alegria. Trumak e Putdjwa foram conversar com Tuia. Iawi ficou procurando e falando sobre uma fita que Walter havia lhe dado. Sentei-me na rede de Iawi, ao lado da de Matxa, para ficar em frente dela e conversar. Ela estava com dor no brao e tinha um tipo de tipia para apoi-lo. Falamos sobre isso e ela deixou-me fazer uma massagem em seu brao. Continuamos conversando por um tempo. Nakwatxa mostrou-nos como fia o algodo com um instrumento de madeira feito por ela mesma. Matxa pediu a Putdjwa para mostrar-nos o cavalo, que ela chamou de cawaru e Putdjwa traduziu a frase que ela lhe disse em Av, mas o emprstimo ficou bem perceptvel. Ficamos mais um tempinho e depois nos despedimos. A imagem de tudo aquilo ficou emSIGNTICA, v. 15, n. 2, p. 271-302, jul./dez. 2003 293

minha mente e mais tarde me fiz vrias questes que comentarei no final desse artigo. tarde voltamos s atividades iniciadas no dia anterior. Como havamos combinado de fazer um cartaz com as plantas, releram seus nomes e em seguida fomos tirando as folhas das rvores escolhidas dos envelopes em que tinham sido guardadas. Colaram as folhas, escreveram o nome das rvores a que pertenciam, e o nome escolhido para o cartaz foi Plantas da terra dos Av-Canoeiro. Discutimos o que tinham feito na semana e falamos da importncia de continuarem a ler e a escrever. Deixamos tudo organizado e separado na sala: jornais, revistas, livros, papel, lpis de cor a fim de que pudessem continuar as atividades, dando prosseguimento ao que chamado de scaffolding (palavra de traduo ainda no resolvida em Portugus), ou seja, a explorao do conhecimento adquirido pelo aluno que serve de fundamento para a aquisio de novos conhecimentos, sem a presena do professor. No fim do dia fomos para a casa de Walter. Em um ambiente bem informal, sentados no cho da sala, fiz a Trumak e Putdjwa algumas perguntas (questionrio semiestruturado) sobre o uso das lnguas na comunidade e suas atitudes em relao a elas, com base em Agar (1980) e na tipologia sociolingstica que estou utilizando. O material foi gravado em fitas, das quais trato no relatrio do levantamento sociolingstico. Nakwatxa esteve l por algum tempo e propiciou um momento de interlocuo com Putdjwa em Av, o que deu subsdios para as hipteses que levanto no primeiro relatrio do levantamento sociolingstico.

CONSIDERAES FINAIS Depois de uma fase em que se utilizaram as vrias possibilidades de escritura/leitura nos seus mais diferentes suportes, gneros, funes, estruturas, tipos de letras, a fim de que pudessem interagir com estas modalidades de lngua, cruciais para o desenvolvimento da leitura e escrita alfabtica, comeamos nessa visita a trabalhar sistematicamente com a294 BRAGGIO, Silvia L. Bigonjal. F CEGA, FACA AMOLADA: PROJETO AV-CANOEIRO...

leitura/escritura desse tipo de escrita pelas razes apontadas nas consideraes iniciais, ou seja, pelas premissas bsicas da teoria adotada nesse projeto. As atividades foram pensadas e elaboradas levando-se em conta essas premissas e, claro, implicitamente outras, decisivas para a aquisio da leitura e da escritura (BRAGGIO, 1992). Dada a minha experincia nessa rea, com crianas 7 e adultos no-indgenas e indgenas, no tive dvidas de que era o momento da passagem da leitura incidental e escrita espontnea para a leitura holstica e a escrita convencional na sua forma alfabtica. Trumak e Putdjwa, embora em ritmos diferentes, atenderam a todas as minhas expectativas e, certamente, as deles. Agora dar continuidade ao processo, ampliando o que foi iniciado, com os olhos voltados para os prximos passos, pois ambos esto ativamente elaborando processos sobre a leitura/escritura, os quais no tm mais volta. Segundo Vygotsky (1987), h idas e vindas nesses processos, mas sempre como suporte para a aquisio de novos conhecimentos. Por isso, o que era visto antes como erro, visto hoje como tentativa de acerto, como elaborao, como trabalho sobre a escrita (ABAURRE et al., 1997). Dentro de nossa abordagem analisam-se essas elaboraes como feedbak para as atividades a serem desenvolvidas, em uma seqncia qualitativa em que no analisado o produto, mas sim os processos. Certamente no qualquer professor de alfabetizao (que geralmente s domina mtodos prontos e acabados) que pode dar conta de tarefa to complexa como mediar a aquisio da leitura e da escritura, principalmente com alunos indgenas, que requerem outros postulados, como os apontados, em parte, no corpo desse artigo. Saber onde o aluno est em seu processo de aquisio tarefa primordial para quem trabalha e pesquisa o processo de aquisio da leitura e da escritura, numa rea que, obviamente, no se restringe ao campo especfico da lingstica pura. preciso dominar outras de suas reas, principalmente a psicolingstica, e mais, a lingstica educacional (no confundir com lingstica aplicada), a sociolingstica, etnolingstica, lingstica textual, alm de outras reas do conhecimento como a psicologia cognitiva

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(paradigma cognitivo) e a filosofia da linguagem de base dialtica, sciohistrica (paradigma indicirio, paradima dialgico). E muito, muito trabalho. Teria sido um desastre colocar o grupo Av nas mos de pedagogos que no dominam esses conhecimentos e, muito menos, no tm clareza de como trabalhar a alfabetizao com os povos indgenas. O pesquisador nesta tarefa no prescinde de uma integrao com outros especialistas, extremamente necessrios, para o trabalho com matemtica, geografia, cincias, histria oral, antropologia, os quais trabalhem com os povos indgenas, a fim de no desenvolver propostas que colidem com os seus valores, crenas, viso de mundo, com a forma como categorizam e classificam as coisas ao seu redor etc. At chegar viso cosmolgica dos ndios, por exemplo, no podemos dizer que a lua um satlite da terra. Eles podem ter outras concepes que envolvam a lua, conforme seus mitos, seu sistema de vida. Um outro exemplo de impropriedade seria apresentar-lhes um globo e dizer que a terra redonda. Para alguns povos indgenas a terra organizada em camadas, e cada camada tem sua significao. O que para alguns de ns pode significar cu, de onde viemos e para onde vamos, pode constituir para eles um mito de origem,8 completamente diferente desse e de outros que possumos nas diferentes culturas. A sistematizao do conhecimento de mundo Av urgente e necessria na Etapa II do projeto, para lhe dar prosseguimento, de forma adequada. A interculturalidade se apia no conhecimento indgena, para, a partir dele, propiciar o conhecimento sistematizado ocidental, acumulado atravs de milnios. Sem rupturas, mas atravs do dilogo entre os povos (GADOTTI, 1998). Isto ficou bem claro para mim, quando visitei a casa do alto do morro. A propsito da visita vieram vrias questes, que outros especialistas poderiam responder: com que critrios foi escolhido o local, como foi escolhido o tipo de madeira que serviu como toras para a construo da casa, como escolheram e tranaram as folhas de buriti para o telhado por onde no passa uma gota dgua, como decidiram as medidas, a proporo adequada para colocarem suas redes e seus outros pertences, que esto

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todos categorizados, que classificao deu ordem a essa categorizao, como se deu a localizao das redes, do fogo em um lugar e do fogo em outro, que critrios foram utilizados para a construo desse fogo? Enfim, estas e muitas outras perguntas, eu poderia fazer. Mas um especialista, estudioso do assunto, certamente no precisaria perguntar muitas coisas, pois a partir de um conhecimento especfico de sua rea poderia observar, analisar, esclarecer com eles eventuais dvidas. Iawi est a um passo da escrita alfabtica. Pode ser que esse processo demore, pode ser que no, na medida em que seu interesse por esta modalidade da lngua aumente. Quando ele perceber que pode escrever sem ter que decodificar para o seu leitor, que pode utilizar a escrita em outras funes da escrita no seu cotidiano. Nessa visita ele trabalhou muito com a escrita no-pictogrfica, a sua prpria e a alfabtica. No se pode esquecer que ele criou uma escrita prpria, caso raro, segundo meus conhecimentos, entre indgenas do mundo inteiro. Nesse artigo no analiso, ainda, a escrita alfabtica de Trumak e Putdjwa, mas como trabalhamos lado a lado, anotei vrios aspectos significativos cada apagamento, cada correo, cada sinal, refaco (paradigma indicirio) que sero tratados com o desenvolvimento da pesquisa. Para isso, preciso de mais dados, necessrios avaliao qualitativa dessa escrita. Todavia, com base nesses dados iniciais/ indicirios j h subsdios suficientes para elaborar a prxima etapa de atividades, na forma de um processo contnuo, ativando cada vez mais a zona de desenvolvimento proximal e o processo de scaffolding. A leitura holstica proporcionada a eles seguramente os levar, sem retorno, a trabalhar com a leitura em seu cotidiano, descobrindo cada vez mais, pois so imensos, os mistrios da leitura/escrita e seu poder (GNERRE, 1985).ABSTRACT From September of 2002 to August of 2003 was developped with the indigenous people Ava-Canoeiro of Minau/GO, a program of school education, dealing

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specifically with literacy, or better, their first approach to the alphabetic written language. During this process, they interacted with the written language in all of their functions, significations, supports, styles, genders etc., in order to be prepared to start a literacy program, initiated in this last visit of the first part of the the whole program that should be instaured through their own knowledge not only of the alphabetic written language, but mainly of their real world. In my view, by being proud of their culture and language, they will able to have more success and more critical awareness, to deal with two differents ways of thinking and consciously acting as citizens in their country. The history of the contact of the group with the whites and the tipological sociolinguistic situation gave a great support to the literacy program. KEY WORDS: Ava-Canoeiro, literacy, acquisition of written language.

NOTAS1. Vivem a Matxa, do sexo feminino por volta de 65 anos, Nakwatxa, tambm do sexo feminino, entre 45 e 50 anos, Iawi, do sexo masculino, por volta dos 40, e Tuia, no comeo dos 30, estes ltimos genitores de Trumak, do sexo masculino, 15 anos e Putdjwa, de 13, do sexo feminino. 2. Nos ltimos anos, segundo o ISA (RICARDO, 2000), a populao indgena vem aumentando consideravelmente. 3. A informtica, considerada por vrios autores como uma revoluo to grande, ou maior, quanto foi a da escrita, com mudanas imprevisveis para a humanidade, pode implicar uma educao mais humanitria, mais abrangente, em uma completude que abarque o todo e no somente as partes isoladas desse todo (GADOTTI, 1998). 4. Quando eu ainda morava em Campinas, em meados dos anos 70, depois de um evento sobre os povos indgenas, samos com Juruna para jantar. Fomos a uma churrascaria, famosa na poca por servir churrasco com salada de rcula. Observamos que ele no comeu a rcula e lhe perguntamos o porqu. Juruna disse: Eu no como capim. 5. Seus estudos foram retomados por mim para explicar os diversos tipos de escrita e para analisar a escrita alfabtica Xerente, em Sociedades Indgenas: a escrita alfabtica e o grafismo (BRAGGIO, 1999).

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6. Conforme notcias recentes, pensa-se hoje em um unicode, cdigo nico, para homogeneizar a escrita alfabtica em termos mundiais, principalmente depois do advento da informtica, o que certamente causar conflitos, pois nenhuma ortografia isenta de carter poltico e ideolgico (BRAGGIO,1999). Entre muitos outros aspectos, por exemplo, a letra h que representa ora uma fricativa /R/ como em house/casa em Ingls e em Xerente tp hirdu (tipo de peixe), ora /o/ (foneticamente no-motivada) como no Portugus em hoje. H outros casos em que sinais grficos convencionais como o acento, na realidade funcionam como diacrticos, isto , distinguindo fonemas diferentes como o caso de // e e /e/ em Xerente, e, portanto, distingue palavras, sendo usado diferentemente, por exemplo, do Portugus, no qual nem sempre a vogal aberta // diferenciada da vogal fechada /e/ com o acento, utilizado em nossa ortografia, como em mel, quero, selo (o ato de selar), o que leva as crianas Xerente a passarem por uma fase de transio at descobrirem as semelhanas e diferenas dos cdigos escritos. E outros problemas, com o y, com o w, com o k etc. Quando escrevi minha tese de doutorado nos anos 80 a escrita alfabtica usada para denominar o povo Caingangue era Kaingang. Hoje, depois de mudanas por eles requeridas, de ordem no-tcnica, mas socioculturais, ideolgicas e polticas, a primeira forma que usada. 7. Trumak e Putdjwa j no so crianas em sua cultura, mas o processo cognitivo de aquisio da leitura/escritura o mesmo para adultos, jovens e crianas. 8. Sobre mitos de origem consultar vrios nmeros do Porantim, jornal dedicado s questes indgenas, do CIMI.

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