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993 REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS, LIDERANÇAS NEGRAS E OS LUGARES SOCIAIS DOS AFRO-DESCENDENTES NO PERÍODO PÓS- ABOLIÇÃO SARAH CALVI AMARAL SILVA Doutoranda em História – PPG/HIST UFRGS [email protected] Resumo Este artigo pretende discutir um aspecto pouco explorado em minha dissertação de mestrado, cuja problemática consistiu em desvelar os lugares sociais de africanos e seus descendentes nos textos de autores brasileiros atuantes nos anos 1930 e 40. Através do método das redes sociais, concluímos que o estabelecimento de relações entre intelectuais brasileiros, e entre intelectuais brasileiros e estrangeiros, permitiu a construção de temas e conceitos manipulados na elaboração de interpretações sobre a história, cultura e sociedade brasileira. Tais interpretações foram concebidas, em maior ou menor grau, no âmbito da emergência do campo de estudos africanos e de relações raciais no país. Neste trabalho, será brevemente abordada a importância das relações constituídas entre intelectuais e lideranças negras no contexto em questão. Palavras-chave: Lideranças negras – Intelectuais - Campo de estudos africanos e relações raciais * * * A discussão proposta neste artigo é parte da problemática de pesquisa desenvolvida em minha dissertação de mestrado (SILVA, 2010). Para perceber os lugares sociais destinados a africanos e afro-descendentes em interpretações sobre a formação histórico-social do Brasil, examinamos parte da produção escrita de intelectuais que se apropriaram de noções de raça, com o objetivo de explicar as especificidades econômicas, sociais e culturais do país e suas regiões, considerando a composição dos contingentes populacionais brasileiros. A partir de uma metodologia que uniu análises conceituais a perspectivas da História Social e das Ciências Sociais, foram estudadas algumas comunicações apresentadas ao II Congresso Afro- Brasileiro de Salvador (1937) e ao III Congresso Sul-Rio-Grandense de História e Geografia do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (1940). Para tanto, privilegiamos as orientações teóricas disponíveis aos autores durante a realização dos eventos, por nós apreendidas através da remontagem parcial das redes de relações sociais estabelecidas por: Arthur Ramos, médico psiquiatra alagoano e um dos protagonistas da recepção e difusão da Antropologia Cultural no Brasil; Dante de Laytano, historiador polígrafo, folclorista e escritor sul-rio-grandense, responsável pela divulgação, no Rio Grande do Sul, dos estudos de Gilberto Freyre, Arthur Ramos, entre outros; Alfredo Ellis Junior, historiador polígrafo paulista e primeiro catedrático da cadeira de História da Civilização Brasileira da Universidade de São Paulo (USP); e Emílio Fernandes de Souza Docca, militar e historiador polígrafo sul-rio-grandense, cuja obra demonstrou os principais

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REFLEXÕES SOBRE INTELECTUAIS, LIDERANÇAS NEGRAS E OS LUGARES SOCIAIS DOS AFRO-DESCENDENTES NO PERÍODO PÓS-

ABOLIÇÃO

Sarah Calvi amaral Silva

Doutoranda em História – PPG/HIST [email protected]

Resumo

Este artigo pretende discutir um aspecto pouco explorado em minha dissertação de mestrado, cuja problemática consistiu em desvelar os lugares sociais de africanos e seus descendentes nos textos de autores brasileiros atuantes nos anos 1930 e 40. Através do método das redes sociais, concluímos que o estabelecimento de relações entre intelectuais brasileiros, e entre intelectuais brasileiros e estrangeiros, permitiu a construção de temas e conceitos manipulados na elaboração de interpretações sobre a história, cultura e sociedade brasileira. Tais interpretações foram concebidas, em maior ou menor grau, no âmbito da emergência do campo de estudos africanos e de relações raciais no país. Neste trabalho, será brevemente abordada a importância das relações constituídas entre intelectuais e lideranças negras no contexto em questão.

Palavras-chave: Lideranças negras – Intelectuais - Campo de estudos africanos e relações raciais

* * *

A discussão proposta neste artigo é parte da problemática de pesquisa desenvolvida em minha dissertação de mestrado (SILVA, 2010). Para perceber os lugares sociais destinados a africanos e afro-descendentes em interpretações sobre a formação histórico-social do Brasil, examinamos parte da produção escrita de intelectuais que se apropriaram de noções de raça, com o objetivo de explicar as especificidades econômicas, sociais e culturais do país e suas regiões, considerando a composição dos contingentes populacionais brasileiros. A partir de uma metodologia que uniu análises conceituais a perspectivas da História Social e das Ciências Sociais, foram estudadas algumas comunicações apresentadas ao II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador (1937) e ao III Congresso Sul-Rio-Grandense de História e Geografia do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (1940).

Para tanto, privilegiamos as orientações teóricas disponíveis aos autores durante a realização dos eventos, por nós apreendidas através da remontagem parcial das redes de relações sociais estabelecidas por: Arthur Ramos, médico psiquiatra alagoano e um dos protagonistas da recepção e difusão da Antropologia Cultural no Brasil; Dante de Laytano, historiador polígrafo, folclorista e escritor sul-rio-grandense, responsável pela divulgação, no Rio Grande do Sul, dos estudos de Gilberto Freyre, Arthur Ramos, entre outros; Alfredo Ellis Junior, historiador polígrafo paulista e primeiro catedrático da cadeira de História da Civilização Brasileira da Universidade de São Paulo (USP); e Emílio Fernandes de Souza Docca, militar e historiador polígrafo sul-rio-grandense, cuja obra demonstrou os principais

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pontos de tensão da produção historiográfica sulina. Com base nesse procedimento, tornou-se claro que os conceitos de raça, instrumentalizados

nas comunicações dos autores, resultaram de escopos em elaboração, circulação e disputa na própria montagem dos programas de trabalho desenvolvidos na Bahia e no Rio Grande do Sul, bem como nos múltiplos locais de produção escrita dos quais os intelectuais faziam parte. Igualmente, percebemos que esses escopos foram construídos e resignificadas de acordo com contextos sociais e políticos específicos, cujos contornos buscamos considerar.

Para dar conta das diversas dimensões de nossa problemática, três conjuntos de fontes foram escolhidos e interpretados, sendo suas informações cruzadas, quando possível e necessário. O primeiro conjunto refere-se aos anais completos do I Congresso Afro-Brasileiro de Recife (1934), do II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador (1937) e do III Congresso Sul-Rio-Grandense de História e Geografia do IHGRS (1940). Além de as comunicações analisadas na dissertação pertencerem a esses anais (afora o evento de Recife), os discursos e debates contidos em suas páginas iluminaram aspectos importantes da estruturação do campo de estudos africanos e de relações raciais no Brasil. Campo este, materializado, justamente, nos eventos de Recife e Salvador (SANSONE, 2001). Ainda, os anais possibilitaram o estudo dos desdobramentos da agenda de pesquisa das nascentes Ciências Sociais em lugares considerados, por muitos, carentes de elementos de brasilidade – à época, também definida pela presença cultural, social e biológica afro-descendente -, tais como o Rio Grande do Sul.

Dessas discussões, fizeram parte os colaboradores do II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador – Arthur Ramos e Dante de Laytano -, e do III Congresso de História e Geografia do IHGRS - Laytano, Souza Docca e Ellis Junior1. Para além dos debates específicos ocorridos nos congressos, esses intelectuais há tempos vinham trilhando um longo caminho de estudos, influenciados e, ao mesmo tempo, representantes e construtores de campos de saber distintos. Nesse sentido, afora perceber o estado da arte das Ciências Sociais e da historiografia – delimitadas por fronteiras disciplinares incipientes – necessitamos considerar a diversidade de perspectivas analíticas presentes nas trajetórias de nossos autores.

Com este objetivo, acrescentamos aos anais um segundo conjunto de fontes, referente a textos de fases variadas da produção escrita de Ramos, Laytano, Souza Docca e Ellis Junior. O estudo de livros, artigos e ensaios, possibilitou a contextualização teórica, temática, institucional, política e, por vezes, social de conteúdos conceituais e metodológicos tocantes às relações raciais. Esses conteúdos informaram a elaboração das comunicações apresentadas na Bahia (1937) e no Rio Grande do Sul (1940), e se constituíram em objetos de disputa em torno da legitimidade para se falar sobre assuntos dominados por autoridades “científicas” de projeção nacional e internacional. Por fim, em alguns dos textos, percebemos em prefácios, agradecimentos e notas, pistas sobre as relações estabelecidas entre a intelectualidade, importantes para a composição de um quadro mais complexo de sua atuação.

Em parte, os anais e os textos permitiram a observação e análise dos lugares sociais de africanos e seus descendentes nas comunicações de Ramos, Laytano, Souza Docca e Ellis Junior. Porém, essas fontes, por si só, não deram conta da movimentação de categorias de análise, orientações disciplinares em construção e conversas privadas referentes aos congressos e outros assuntos a eles tangentes, fundamentais ao desenvolvimento de nossa

1 Em nossa dissertação optamos por trabalhar com o II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador em detrimento do I Congresso Afro-Brasileiro de Recife (1934), pois o conjunto dos debates sobre o campo de estudos africanos e de relações raciais tornaram-se mais inteligíveis no evento da Bahia. Já que, as questões temáticas e teóricas presentes no I Congresso, cuja influência perpassou a constituição do referido campo, foram contrapostas apenas em 1937. Além disso, para verificar os desdobramentos desses debates em outros contextos – como é o caso da historiografia sulina – o II Congresso Afro-Brasileiro ofereceu elementos mais consistentes, devido às relações de Arthur Ramos e Dante de Laytano, constituídas somente a partir de 1936, segundo as fontes consultadas. Contudo, a análise dos anais dos dois eventos tornou-se necessária, visto que ambos fizeram parte de um mesmo diálogo intelectual, metodologicamente inseparável.

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problemática. Assim, considerando a produção escrita como um produto social, procedemos à remontagem parcial das redes de relações constituídas entre os intelectuais, em suas tentativas de se afirmar frente a um contexto que exigia engajamento em pautas de pesquisa definidas como fundamentais para compreender a formação do Brasil. Desta pauta, faziam parte os estudos africanos e de relações raciais.

Para mapear as redes, utilizamos um terceiro conjunto de fontes, concernente a parte das correspondências pessoais de Arthur Ramos (cerca de cem cartas), trocadas entre este autor, Dante de Laytano e Edison Carneiro, principal articulador do II Congresso Afro-Brasileiro. As cartas estão organizadas no Arquivo Arthur Ramos, localizado na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, cujo catálogo encontra-se publicado (FAILLACE, 2004). A reconstituição das redes nos permitiu compreender os bastidores organizativos do evento soteropolitano, verificar alianças estratégicas entre intelectuais brasileiros, e entre brasileiros e estrangeiros, bem como perceber a correlação de forças e as posições, eventualmente, ocupadas pelos autores em esferas institucionais e profissionais pautadas pela produção escrita.

Sob essa perspectiva, as disputas travadas em torno de interpretações sobre a presença negra na sociedade e cultura brasileira, muito informaram a respeito de conceitos, métodos e temáticas escolhidos por figuras centrais ao desenvolvimento das Ciências Sociais e da historiografia. Por outro lado, as redes iluminaram a circulação de ideias e teorias que foram se construindo para além de demarcações institucionais, disciplinares e teóricas previamente estabelecidas. Em alguns casos, inclusive, essas mesmas demarcações estiveram implicadas nas tensões emergidas de situações de aliança e conflito características desse processo, cujos reflexos puderam ser, também, observados no III Congresso de História e Geografia do IHGRS.

Finalmente, o método das redes permitiu a abordagem comparativa dos congressos. Ao invés de localizá-los em unidades institucionais, regionais e nacionais encerradas em si mesmas, deslocamos nosso foco de observação para as relações constituídas entre personagens aparentemente distantes, porém, muito próximos em suas preocupações “acadêmicas”. Em se tratando, especificamente, dos estudos africanos e de relações raciais, essas redes foram conformadas em trânsitos domésticos e transnacionais, partícipes de um movimento de ideias e pessoas interessadas em desvelar as faces da Diáspora Africana nas Américas. Esta foi a perspectiva com a qual autores procedentes de vários países dedicados às “questões do negro”, passaram a trabalhar nas primeiras décadas do século XX (SEIGEL, 2005). Nesse período, o Brasil fora considerado um dos países onde seriam mais visíveis sobrevivências de traços de culturas africanas, ao mesmo tempo em que era convertido em modelo paradigmático de relações de raça mais amenas e menos desiguais, em comparação aos Estados Unidos.

Neste artigo, a relevância de categorias de análise manipuladas no bojo das dinâmicas acima descritas recai sobre dois aspectos que não correspondem, exatamente, à análise aprofundada de seus conteúdos. O primeiro consiste no fato de que o principal aliado eventual de Arthur Ramos e organizador do II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador, Edison Carneiro, se apropriou de instrumentos, então, circulantes para desenvolver estudos folclóricos sobre os candomblés de Salvador. O segundo aspecto, relacionado ao primeiro, refere-se à grande participação de lideranças afro-religiosas no evento que se pretendeu “eminentemente científico, mas também eminentemente popular” (CARNEIRO; BONFIM; FERRAZ, 1937: 16). Essas participações foram possibilitadas pelas boas relações cultivadas por Carneiro junto a autoridades do universo afro-religioso da Bahia, fato que pudemos constatar nas cartas trocadas entre Arthur e Edison, bem como ao longo da bibliografia utilizada em nossa pesquisa.

Para refletir brevemente sobre os significados e circunstâncias das relações erigidas entre Edison Carneiro e lideranças negras, comentaremos, principalmente, a atuação direta

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e indireta do autor junto a pesquisadores estrangeiros e brasileiros envolvidos no processo de construção das Ciências Sociais nacionais. Os discursos expressos em determinados momentos do II Congresso Afro-Brasileiro, bem como em cartas e outros textos de Carneiro, nos ajudam a localizar as conversas empreendidas entre ele e o povo de santo, em seu próprio contexto “científico” e social. As próximas seções deste artigo serão dedicadas à discussão de ambos os contextos, respectivamente.

Lideranças negras no II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador (1937)

Ao pronunciar as “Palavras inaugurais do Congresso Afro-Brasileiro da Bahia”, Edison Carneiro, com o aval de seus confrades, informa ao público:

Eminentemente científico, mas também eminentemente popular, o Congresso não reúne apenas trabalhos de especialistas e intelectuais do Brasil e do estrangeiro, mas também interessa à massa popular, os elementos ligados, por tradições de cultura, por atavismo ou por quaisquer outras razões, à própria vida artística, econômica, religiosa do Negro no Brasil. Assim, no Congresso da Bahia, ao lado das teses de, por exemplo, Melville Herskovits, Arthur Ramos e Gilberto Freyre, serão discutidas as teses de Escholastica Nazareth, chefe do ‘terreiro’ de Gantois, de Silvino Manuel da Silva, tocador de tabaque nesse mesmo ‘terreiro’, e de Eugenia Anna Santos, chefe do Centro Cruz Santa do Aché Opô Afonjá. O Congresso Afro-Brasileiro tem, portanto, uma orientação democrática, todos os presentes podendo entrar nos debates, afim de melhor esclarecer os assuntos estudados. (1940a: 15)

Ocorrido em janeiro de 1937, nas dependências do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, do Instituto Nina Rodrigues, e itinerante entre festas oferecidas pelos “terreiros mais tradicionais de Salvador”, o II Congresso Afro-Brasileiro contou com a participação e o apoio de personalidades ilustres. O sociólogo Donald Pierson (Universidade de Chicago) apresentou duas comunicações sobre contatos raciais e relações entre raça e classe, respectivamente; o antropólogo cultural africanista Melville Herskovits (Northwestern University) enviou sua contribuição escrita publicada nos anais, acerca das crenças religiosas do negro no Novo Mundo; estudiosos de diversos países da América Latina, quando não ofereceram seus escritos ao público, incentivaram a organização e realização do certame. Quanto ao Brasil, além de Arthur Ramos e Gilberto Freyre, compareceram e prestaram solidariedade ao II Congresso, Jorge Amado, Mário de Andrade, Theodoro Sampaio, e os intelectuais sul-rio-grandenses, Dante de Laytano e Dario de Bittencourt.

Tal como colocado por Edison, ao lado de autoridades intelectuais, colaboraram de diversas formas, pais, mães e filhos de santo. Do ponto de vista estritamente “científico”, o sentido dessas participações pode ser articulado às crescentes preocupações concernentes à presença negra no Novo Mundo, demonstradas por alguns cientistas sociais e intelectuais. Por sua vez, em Salvador, os ângulos de análise acerca da influência dos negros sobre conformações culturais e sociológicas das Américas se fizeram presentes nas figuras de Pierson e Herskovits. Suas abordagens foram apropriadas, em maior ou menor grau, por autores brasileiros ligados aos estudos folclóricos, literários, filosóficos e historiográficos desenvolvidos nas letras nacionais com base em teorias e métodos, que não a Sociologia e Antropologia Cultural.

Estas apropriações, tão complexas, quanto controversas, marcaram o desenvolvimento das Ciências Sociais brasileiras, em diálogo com outras áreas de saber que passaram a incorporar conceitos e temas, até então, pouco explorados em suas respectivas tradições. Dessa forma, a atuação de cientistas sociais estrangeiros no Brasil junto a figuras de renome, como Arthur Ramos e Gilberto Freyre, fez parte do processo mais amplo de institucionalização

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das Ciências Sociais no país (PEIXOTO, 2001). Ainda, tais relações foram fundamentais para o acúmulo de prestígio por parte de intelectuais brasileiros influentes, manipulado para barganhar autoridade sobre a enunciação de interpretações das relações raciais e da cultura do Brasil. Os reflexos desta arena apareceram nos discursos, prefácios e homenagens proferidas nos Congressos Afro-Brasileiros de Recife e Salvador (SILVA, 2010).

Dentro deste quadro, a grade de trabalho do II Congresso Afro-Brasileiro adquire inteligibilidade: das vinte e três comunicações apresentadas, treze versaram majoritariamente sobre aspectos variados das culturas negras do Brasil (CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO 2, 1940). Com base neste dado, percebemos a significativa recepção, principalmente, do culturalismo estadunidense no Brasil, cujos pressupostos ajudaram a constituir o campo de estudos africanos. Nesse contexto, Edison Carneiro passou a estudar os candomblés. Estudos estes localizados entre o Folclore e a Antropologia Cultural, cujas exigências metodológicas ajudam a perceber os caminhos (ao menos, os formais) pelos quais o autor chegou às casas de religião. Sendo assim, cientes de que as relações estabelecidas entre lideranças afro-religiosas e Edison podem possuir significados diversos, dependendo do ângulo a partir do qual forem analisadas, primeiramente atentaremos para o lado “acadêmico” dessas relações.

Nascido em 1912, na cidade de Salvador, Edison Carneiro se formou em Direito pela Faculdade de Direito da Bahia (1936).2 Durante a década de 30, desempenhou múltiplos papéis profissionais, apresentando uma carreira bastante heterogênea em termos institucionais, mas quase sempre articulada às questões que envolviam a situação dos negros no Brasil em geral e na Bahia, em particular. Em 1930, o autor funda, juntamente com Jorge Amado, a Academia dos Rebeldes, iniciando, posteriormente, forte atuação na Comissão Nacional de Folclore, ligada à UNESCO. O principal objetivo da CNF era, justamente, coletar, registrar e divulgar as manifestações da cultura popular brasileira nacional e internacionalmente (VILHENA, 1997).

Ao mesmo tempo em que desempenhava suas tarefas na Comissão e nos demais espaços dos quais participava, Edison integrava um grupo de jovens intelectuais baianos que, eventualmente, se correspondia com Arthur Ramos, um dos idealizadores da chamada Escola Nina Rodrigues (CORRÊA, 1998). Além de Carneiro, este grupo era composto por Aydano do Couto Ferraz - membro da Comissão Executiva do II Congresso Afro-Brasileiro - e pelo escritor Jorge Amado, cujo trabalho apresentado ao evento (1937) consistiu em homenagem a Martiniano do Bonfim, respeitadíssimo líder negro de comunidades afro-religiosas soteropolitanas.

Em nossa pesquisa verificamos um envio significativo de cartas de Carneiro para Ramos durante os preparativos do II Congresso. De um total de onze correspondências intercambiadas entre 1936 e 1940, três são de 1936 e seis de 1937, todas remetidas de Edison para Arthur. O teor das correspondências perpassou, majoritariamente, questões tangenciadas pela necessidade de afirmação da Escola Nina Rodrigues (por parte de Arthur), pelas pretensões de Carneiro em ascender entre a elite intelectual nacional, mas também pela atuação concreta de Edison no sentido de garantir a participação de lideranças negras no II Congresso Afro-Brasileiro. De qualquer forma, a partir desses diálogos, houve uma troca significativa de informações entre Carneiro e Ramos, relativas à troca, bem como à importância da coleta dados sobre a cultura de comunidades afro-religiosas, para o desenvolvimento de estudos antropológicos e folclóricos. Tais conversas, por ocasião do II Congresso, perpassaram a atuação da Escola Nina Rodrigues, então, legitimada pela adesão de autores estrangeiros ao evento, amplamente divulgada por Edison Carneiro.

A Escola Nina Rodrigues surgiu na década de 30 quando um grupo de intelectuais formados na Bahia decidiu migrar para o Rio de Janeiro. Visando fazer frente à hegemonia

2 As informações biográficas de Edison Carneiro foram retiradas, principalmente, de Waldir Freitas de Oliveira (1980).

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de Gilberto Freyre nas nascentes ciências sociais brasileiras, os médicos Afrânio Peixoto e Arthur Ramos, juntamente com o educador Anísio Teixeira, passaram a disputar colocações no aparelho burocrático estatal, assim como em universidades e editoras importantes (CORRÊA, 1998). Auto-intitulados discípulos do mestre em “africanologia”, Raymundo Nina Rodrigues, os idealizadores de sua Escola revisitaram os materiais empíricos por ele deixados, coletados nos candomblés de Salvador na virada do século XIX para o XX. Com isso, Ramos, Peixoto e Teixeira tiveram por objetivo legitimar os seus próprios trabalhos, a partir da reivindicação de uma filiação ancestral aos estudos do médico maranhense.

Segundo Mariza Corrêa (1998), do ponto de vista teórico, Arthur Ramos esteve à frente de uma intensa revisão crítica das teses de Nina Rodrigues, devido à presença de postulados provenientes do racismo científico nos trabalhos de seu mestre. Mesmo que Nina tenha sido um dos primeiros letrados brasileiros a realizar pesquisas de campo nas comunidades negras de Salvador – o que, metodologicamente, se aproximava muito das etnografias culturalistas -, as teorias por ele manipuladas na interpretação dos dados coletados foram buscadas nas hierarquias raciais biológicas. Nesse sentido, o objetivo de Nina Rodrigues ao estudar os candomblés era perceber manifestações sociais e culturais de substrato patológico, como a propensão ao crime e à loucura. As raças negras – por conta de suas determinações raciais inferiores – seriam as populações que mais expressariam este estado de doença.

As críticas de Ramos à noção biológica de raça vinham, ao mesmo tempo, acompanhadas da exaltação das observações feitas por Nina Rodrigues nos terreiros de Salvador, consideradas pelos membros da Escola os primórdios dos estudos africanos no Brasil. No contexto dos anos 30, ambas as dimensões significaram, justamente, a afirmação conceitual e metodológica de categorias analíticas trazidas pelo culturalismo boasiano. Ao mesmo tempo em que o conceito de cultura subvertia a noção biológica evolucionista de raça, a metodologia empregada pelos antropólogos culturalistas era a etnografia, vista como o método adequado para compreender as características particulares de conformações culturais diferentes - nunca desiguais - umas das outras.

Quanto às pesquisas realizadas pelos integrantes da “Escola de Nina”, Arthur Ramos e Edison Carneiro, a Antropologia Cultural fora, então, apreendida e manipulada, através de diálogos estabelecidos com Melville Herskovits, membro da terceira geração de antropólogos formados por Franz Boas na Universidade de Columbia (ERIKSSEN E NIELSEN, 2007). Herskovits buscava nas sobrevivências de traços das culturas africanas na América as chaves para o entendimento da presença negra no Novo Mundo, em suas dimensões culturais materiais e imateriais. Essas sobrevivências, quando encontradas, através da observação etnográfica eram chamadas africanismos. As quinze cartas trocadas entre Ramos e Herskovits de 1935 a 1940 demonstraram, em nossa dissertação, o quanto a rede de diálogos constituída entre os autores contribuiu para a recepção do culturalismo no Brasil. Sobre esse aspecto, é Antônio Sergio Guimarães (2005) quem chama a atenção para o fato de que as portas do mundo afro-baiano foram abertas para Herskovits por Arthur Ramos, justamente através de trocas intelectuais epistolares e colaborações institucionais.

Sobre esse aspecto, Micol Seigel fala, igualmente, da importância da colaboração transnacional angariada por Arthur Ramos para realizar suas investigações sobre o negro (2005:77-80). Segundo a autora, esse movimento significou um importante marco para a participação brasileira nos estudos sobre a Diáspora Africana, quando o candomblé passou a ser frequentemente citado como uma prova de que a cultura Africana teria sobrevivido nas Américas (2005:79).

Nesse contexto, as tensões instituídas entre a Escola Nina Rodrigues e Gilberto Freyre, assumiram nuances variadas, perpassando múltiplos espaços e culminando numa série de pronunciamentos em torno da “questão do negro”. Do ponto de vista teórico-metodológico, os seguidores eventuais de Nina Rodrigues, influenciados pela Antropologia africanista de Herskovits, defendiam que a observação e análise das heranças culturais preservadas desde

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África no Brasil seriam adequadas para compreender a presença negra no país. Já Gilberto Freyre apostou na miscigenação biológica e cultural para explicar as relações sociais racializadas características da formação social brasileira. De um lado, a negritude; de outro a mestiçagem.

Sob o olhar das sobrevivências africanas, Ramos, Carneiro e outros estudiosos, passaram a valorizar as manifestações culturais consideradas mais “puras” e, portanto, mais próximas de heranças conservadas desde África. Este é, portanto, o sentido “acadêmico” das relações estabelecidas entre Edison Carneiro e lideranças afro-religiosas, quando dos preparativos e realização do II Congresso Afro-Brasileiro, onde não foram poupadas homenagens a Nina Rodrigues, publicamente reconhecido como o pioneiro dos estudos africanos no Brasil. Nos trabalhos apresentados por Carneiro, algumas passagens indicam claramente suas incursões nos terreiros.

Em Uma revisão da Etnografia Religiosa Afro-Brasileira, ao discutir algumas interpretações sobre o culto do orixá Olorun proferidas por Arthur Ramos e Nina Rodrigues, Carneiro afirma:

A observação direta, a que me venho entregado há alguns anos, vem revolucionado alguns pontos que se julgavam de uma vez por todas estabelecidas em etnografia religiosa afro-brasileira (...). Pude registrar, no candomblé de Paim, no Alto do Abacaxi, a presença de Ôlôrún, a grande força geradora do mundo. Noutros candomblés da Bahia, Reginaldo Guimarães pôde, posteriormente registrar o mesmo fato. (1940a: 61-62).

Já em O médico dos pobres, texto em que discorre sobre Omolu, orixá presente nos candomblés bantos da Bahia, Edison Carneiro atesta novamente suas idas ao “candomblé de Paim, no Alto do Abacaxi”:

De Omolu pode dizer-se que é um Orixá de classe, um orixá dos pobres. O pai de santo Paim, do Alto do Abacaxi, em quem Omolu desce para abençoar os seus filhos, nos confessou a mim e ao prof. Donald Pierson, da Universidade de Chicago, ter perdido um tempo enorme, confeccionando uma toalha branca bordada a lantejoulas – tudo inutilmente, porque o santo não a queria de maneira alguma... (1940b: 204).

Nessa passagem, além da dimensão metodológica dos trabalhos de Carneiro que o levaram a construir relações de reciprocidade com lideranças do mundo afro-religioso, a menção ao sociólogo Donald Pierson chama a atenção para a circulação de outras perspectivas de análise, que não o culturalismo. Assim, é importante registrar os diálogos estabelecidos entre Pierson e intelectuais brasileiros, quando realizou pesquisas sobre as relações de raça brasileiras, perpassadas por categorias, tais como preconceito de cor e raça, sendo esta última entendida como o resultado de lutas políticas pautadas pelo racismo e não, como um dado biológico.

Os estudos de Pierson culminaram em sua tese de doutorado defendida na Universidade de Chicago em 1942, e para empreendê-los, o sociólogo fez parte de um restrito grupo de pesquisadores que teve o privilégio de contatar pessoalmente mãe Aninha (LIMA, 2004), uma das mais importantes líderes afro-religiosas da capital baiana e presença marcante no II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador.

Ao lado de mãe Aninha, Edison Carneiro não deixou de mencionar em suas palavras iniciais ao evento, a contribuição direta dos pais-de-santo e de “outros aficcionados, como pesquisadores das suas próprias seitas: Bernardino, do Bate-Folha, Falefá, da Formiga, Vavá Pau-Brasil (...)” (1940:9). Igualmente, o autor anunciou em sua fala de abertura dos anais, as “toadas” e passos de “capoeira”, “samba” e “batuque” apresentadas por “Samuel Querido de Deus, Barbosa, Bugaia, Zeppelin, Abêrrê e pelas filhas-de-santo de João da

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Pedra Preta”. A presidência de honra do II Congresso Afro-Brasileiro foi concedida a pai Martiniano do Bonfim, babalaô filho de pai e mãe africanos procedentes da Nigéria. Afora estas personalidades, a Frente Negra de Pelotas e a All African Convention compareceram ao conclave.

A lista de participantes apresentada por Edison abre alguns caminhos para se pensar as relações erigidas entre intelectuais e lideranças negras que, no caso do II Congresso, integraram não só os setores afro-religiosos, como também organizações políticas de outra natureza, como a Frente Negra de Pelotas. Demonstrando que se, a intelectualidade necessitava de bons contatos para realizar suas pesquisas, esses mesmos “contatos” certamente estiveram interessados em comparecer, devido aos seus próprios motivos, em ambientes ocupados por homens de ciência.

Da parte do intelectual negro Edison Carneiro, parece ter havido uma preocupação real quanto à situação social e cultural discriminatória vivenciada pelas populações afro-descendentes da Bahia. Ao mesmo tempo, sob a perspectiva de pais, mães e filhos de santo, capoeiras, sambistas e batuqueiros, a valorização de suas culturas e modos de vida parecem ter sido fundamentais para amenizar a dura situação pela qual as religiões de matriz africana passavam naquele período. Sendo assim, a seguir, falaremos sobre o sentido social e, por que não, político da presença de lideranças negras no II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador.

Circunstâncias e significados das relações constituídas entre Edison Carneiro e lideranças afro-religiosas

Na coletânea de artigos intitulada Ladinos e Crioulos, os trâmites da articulação entre Edison Carneiro e algumas personalidades conhecidas no universo popular soteropolitano podem ser percebidos. Ao discorrer sobre a vida de Eugênia Anna Santos – a Mãe Aninha - por ocasião de sua morte em 1938, Carneiro afirma:

Foi decidido o seu apoio ao Congresso Afro-Brasileiro da Bahia. Eu e Aydano do Couto Ferraz, que havíamos tomado a tarefa de realizar o certame científico de janeiro de 1937, mesmos às vésperas do Congresso ainda não tínhamos podido procurar pessoalmente Aninha, de quem esperávamos conseguir uma festa aos congressistas. João Calazans, indo a São Gonçalo, encontrou-a em boa disposição para conosco. No dia seguinte, domingo, fomos finalmente vê-la. A recepção excedeu a expectativa, pois, em vez de uma simples mãe-de-santo que se mostra favorável ao Congresso, encontramos uma mulher inteligente, que acompanhava e compreendia os nossos propósitos, que lia os nossos estudos (...). Aninha se comprometeu a escrever, e escreveu, um trabalho sobre os quitutes trazidos pelo negro para a Bahia. E, em apenas três dias de prazo, o Opô Afonjá pôde oferecer aos congressistas uma das mais belas noites de que há memória nos fastos do candomblé no Brasil. (1964a: 208).

Os comentários de Edison, referentes aos contatos estabelecidos entre ele, Ferraz, Calazans e mãe Aninha, iluminam os possíveis significados das redes de relações alimentadas tanto pelos intelectuais, quanto pelas lideranças afro-religiosas. A esfera “científica” dessas redes é expressa na intenção dos autores em angariar a colaboração de Eugênia Anna Santos para o II Congresso Afro-Brasileiro. Afinal, para os interessados nos africanismos das culturas do Novo Mundo, bem como em manifestações folclóricas da cultura popular brasileira, a observação de uma festa no Axé Opô Afonjá renderia dados de pesquisa preciosos.

Porém, a boa recepção oferecida por mãe Aninha aos intelectuais pode ser analisada pelo ângulo das possibilidades de afirmação positiva do candomblé, frente a um contexto extremamente desfavorável para as religiões de matriz africana no Brasil. Aqueles eram

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tempos de perseguição policial aos cultos afro que, apesar de presente ao longo de todo o período republicano, recrudesceu durante a era Vargas, contexto político no qual o II Congresso Afro-Brasileiro fora realizado. Naquele período as restrições legais à prática afro-religiosa aumentaram consideravelmente (DE SÁ SILVA, 2010:3), aliadas aos estigmas preconceituosos difundidos por setores das elites brasileiras, quanto aos cultos aos orixás.

Discutindo a atuação de mãe Aninha e pai Martiniano do Bonfim junto a setores das elites políticas e intelectuais, Vivaldo da Costa Lima afirma que a líder do Axé Opô Afonjá era “acessível ao questionamento, à curiosidade científica ou jornalística dos profissionais que a procuravam” (2004:216). Ao mesmo tempo, segundo Lima, sua abertura para o mundo externo ao candomblé esteve sempre circunscrita aos fundamentos da casa por ela comandada, postura esta verificada pelo autor no trabalho escrito por mãe Aninha para o II Congresso Afro-Brasileiro. Atendendo ao pedido de Edison Carneiro, a mãe de santo ofereceu ao evento “uma lista quase sinótica de comidas africanas, sem de nenhuma maneira relacioná-las com os sacrifícios e as oferendas votivas aos orixás” (LIMA, 2004: 216). Ou seja, apesar de disposta a dialogar com pesquisadores interessados nos candomblés, Aninha guardava “o rigoroso preceito do segredo ritual, da doutrina e dos mitos essenciais de sua religião, como também o sentido exato das ‘conveniências sociais’ – cortesia e reserva” (LIMA, 2004:216).

Para ela, assim como para muitas pessoas pertencentes ao mundo afro-religioso, as convivências sociais eram, eventualmente, pautadas pela necessidade de existir numa sociedade hostil à presença de manifestações culturais “incivilizadas”. Quanto a Aninha, tornaram-se conhecidas suas relações com pessoas alocadas em Governos da República, diplomatas, Ministros e Chefes de Polícia. Até mesmo uma “obrigação” em favor da recuperação de Getúlio Vargas, por conta de um acidente sofrido pelo, então, presidente, fora por ela cumprida (LIMA, 2004:217). Precisamente quando as condições de sobrevivência dos candomblés pioravam, Aninha parecia se mostrar disposta a pleitear, ao menos para a sua casa, um lugar social menos duro e conturbado. A melhor arma para esta empreitada seria sua própria condição de mãe de santo.

Nesse contexto, Edison Carneiro exerceu um papel importante nos debates travados entre a elite letrada brasileira acerca das religiões de matriz africana. Como colaborador e redator do jornal O Estado da Bahia (1936-1939), e redator do Bahia Jornal (1937), Edison passou a publicar na imprensa escrita sucessivas notícias sobre o II Congresso Afro-Brasileiro, no sentido de divulgar positivamente o caráter cultural africano que o evento ia, aos poucos, assumindo. Simultaneamente, Carneiro não deixou de informar aos seus pares colaboradores, o esforço por ele depositado em abrir espaços onde lideranças religiosas pudessem se expressar. Pelas palavras do intelectual a respeito dos locais onde ocorreriam as atividades do evento, Arthur Ramos tomou conhecimento do trânsito de personalidades afro-descendentes nos meios de comunicação convencionais:

As sessões vão ser no Instituto Histórico. O Club Itapagipe vai nos ceder o ‘court’ de tênis pros jogos de capoeira. Temos já duas festas prometidas, uma no candomblé do Gantois, outra no da Goméa. No dia 15 deste, vou falar pela Rádio Comercial, sobre o Congresso, antes de que o João da Pedra Preta comece, with his orchestra, a cantar cânticos de candomblé. Se você quiser ouvir, sintonise PRF 8, às 7,30 da noite. (FBN – I 35, 25, 880 – Carta de Edison de Souza Carneiro a Arthur Ramos. Bahia, 12 de dezembro de 1936)

Nos jornais de maior circulação da capital baiana apareciam notícias sobre os embates travados entre a Polícia e os terreiros. Essas notícias eram, por vezes, acompanhadas de argumentos de intelectuais, acerca dos malefícios que a preservação de traços africanos na cultura brasileira poderia causar ao progresso e à modernização. Este é o debate apresentado por Ângela Lühning (1996) em artigo no qual a autora discute a perseguição policial aos

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candomblés em Salvador, entre 1920 e 1942. Analisando sessenta e quatro artigos de jornal, publicações diversas e entrevistas feitas

com pessoas ligadas ou não aos candomblés, Lühning identifica nos registros sobre a repressão policial, traços de teorias raciais evolucionistas (1996: 208), a partir das quais personalidades conhecidas no mundo letrado e repressivo emitiam suas opiniões sobre o culto aos orixás. Tais perspectivas teóricas estiveram em xeque no II Congresso Afro-Brasileiro, onde, conforme comentamos anteriormente, a Antropologia Cultural e a Sociologia de Chicago trouxeram alternativas ao racismo científico – e, portanto, às hierarquias raciais que inferiorizavam cientificamente as pessoas negras - para se pensar a conformação social, cultural e histórica do Brasil.

No momento em que as definições da brasilidade tornaram-se não só uma discussão intelectual central ao desenvolvimento da historiografia e das Ciências Sociais, como também um assunto de Estado, Edison Carneiro atuou tanto em âmbito “acadêmico”, quanto político-social, respectivamente como organizador do II Congresso Afro-Brasileiro, e divulgador dos candomblés na imprensa oficial. Nesse sentido, Ângela Lühning chama a atenção para o fato de que os artigos por ele publicados em O Estado da Bahia foram centrais para as sensíveis mudanças ocorridas, a partir de 1936, nas maneiras de se encarar a cultura negra na Bahia (1996: 206).

Em Ladinos e Crioulos, Edison apresenta sua interpretação dos dispositivos constitucionais que passaram a regular as manifestações religiosas do Brasil na Carta Constitucional de 1937. Criticando o “princípio democrático” que serviu de base para a formalização do artigo 141 parágrafo 7°, o autor questiona as brechas deixadas na lei para a interpretação dos setores repressivos, já que a regra era garantir o exercício da liberdade religiosa, desde que os cultos não atentassem “contra a ordem pública e os bons costumes” (CARNEIRO, 1964b:186). Ao discordar veementemente da intervenção estatal e policial nas casas de religião de matriz africana, diz Carneiro:

Esse desrespeito a uma liberdade tão elementar atinge apenas as religiões chamadas inferiores. E, quanto mais inferiores, mais perseguidas. A Igreja Católica não se vê incomodada pelas autoridades policiais, ainda que interrompa o tráfego, numa cidade sem ruas como o Rio de Janeiro, com as suas morosas procissões. Nem as seitas protestantes. Outras religiões mais discretas, de menor número de aderentes, como a budista e a muçulmana, escapam somente porque a sua própria discrição as resguarda. Já as religiões mais populares, mais ao agrado da massa – o espiritismo e a macumba – são vítimas quase cotidianas da influência moralizadora – a depredação, as borrachadas e os bofetões – da polícia. De segunda a sábado, as folhas diárias, numa inconsciência criminosa dos perigos a que expõem todos os brasileiros, incitam a polícia a invadir esta ou aquela casa de culto, cobrindo de ridículo as cerimônias que ali se realizam. (1964b:185-186)

Os sentidos das críticas de Edison Carneiro à legislação brasileira podem ser interpretados à luz de ângulos diversos: como membro do Partido Comunista do Brasil, possivelmente a oposição ao governo de Getúlio Vargas fosse um vetor constituinte de seus posicionamentos públicos acerca das diretrizes políticas e ideológicas do poder central; como jurista (lembremos que o autor era formado em Direito), suas concepções de lei, liberdade, cidadania, etc., talvez entrassem em conflito com aquelas dos homens de Estado alocados no aparelho burocrático, administrativo e repressivo de Vargas.

Porém, como intelectual negro, folclorista, jornalista e escritor, suas convicções de que a influência africana na cultura da Bahia era algo positivo a ser respeitado, parecem adquirir certo destaque no conjunto de suas críticas e atuação política. Nesse contexto, os contatos cultivados pelo autor junto a lideranças afro-religiosas, devido aos estudos folclóricos e antropológicos por ele realizados, se localizam, igualmente, num quadro mais amplo, entrecortado por lutas sociais protagonizadas por segmentos negros específicos. Este é o significado do caráter “eminentemente popular” do II Congresso Afro-Brasileiro, expresso

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nas palavras de Edison:

O nosso intento foi o de que melhor se compreendesse a necessidade da liberdade dos cultos afro-negro-ameríndios como a necessidade de reabilitação social do negro brasileiro. Se, já o conseguimos, ao menos em parte, que o diga a União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, uma das realizações concretas resultantes do Congresso, fundada em setembro de 1937. Nesta sociedade, que pleiteia a liberdade religiosa dos negros, já se acham inscritos mais de setenta candomblés (...) (CARNEIRO e FERRAZ, 1940b: 11)

A fundação da União das Seitas Afro-Brasileiras, integrando lideranças de diversas casas de religião de Salvador, refletiu o esforço de Edison e outros intelectuais para reabilitar os candomblés na sociedade republicana brasileira. Dessa forma, para Jeferson Bacelar, o II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador significou a decadência da política de exclusão cultural da africanidade em âmbitos oficiais (2001:129), onde a atuação de uma intelectualidade imersa nos problemas de seu tempo desempenhou papel fundamental. Através das discussões “científicas” ocorridas em torno dos africanismos constatados na cultura soteropolitana, a intelectualidade baiana contestava, simultaneamente, a sociologia assimilacionista das relações raciais de Gilberto Freyre (e, com isso, a democracia racial) (BACELAR: 2001,130) e o preconceito direcionado às manifestações culturais de matriz africana. Segundo a avaliação de Edison Carneiro, o evento reunido na capital baiana:

(...) acabou com o espantalho que ainda eram, para as classes chamadas superiores da Bahia, os candomblés. Muita gente graúda, que se inscrevera como congressista, ficou sabendo que os negros não comiam gente nem praticavam indecências durante as cerimônias religiosas. A publicidade do Congresso nos jornais e pelo rádio, contribuiu para criar um ambiente de maior tolerância em torno dessas caluniadas religiões do homem de cor. (1964c: 100)

Em tempos anteriores ao Brasil republicano, as levas de escravos aportadas na Bahia desde o século XVI foram reforçadas pelo grande contingente negro africano desembarcado em Salvador em finais do século XIX, procedente da região do Sudão (BACELAR, 2001). Desde então, jejes e nagôs passaram a exercer grande influência entre as demais culturas africanas da capital baiana, estabelecendo vínculos com a costa da África. Sobre esse aspecto, Bacelar afirma que, especialmente os últimos africanos trazidos para Salvador, souberam “com astúcia” preservar e transmitir suas práticas culturais religiosas, bem como alimentar trânsitos comerciais transatlânticos motivados pela “religião de sua terra de origem” (2001: 127). Dessa forma, conforme aponta o autor, o processo de revalorização da cultura africana da Bahia nos anos 30 se deu numa sociedade pautada pela africanização social e cultural de grupos que haviam lá “firmado um mundo negro-africano” (2001: 128). Ou seja, aquilo que foi definido por antropólogos e especialistas como africanismos, não consistia num construto meramente “científico” ou “acadêmico”. A matriz africana na organização social e cultural de Salvador fazia parte da realidade de muitas pessoas que lá viviam, independentemente de pesquisas folclóricas, antropológicas e sociológicas.

Dessa forma, a união circunstancial de pais e mães de santo numa agremiação que, certamente, não possuía os mesmos códigos sociais, culturais e rituais das casas de religião, indica a tentativa dessas pessoas de se integrar em ambientes dos quais não faziam parte. Já que, esses ambientes parecem ter se tornado fundamentais para a sobrevivência dos terreiros. Assim, a inscrição de setenta candomblés na União das Seitas Afro-Brasileiras, mencionada anteriormente na citação de Edison Carneiro, deve ser percebida não só como um empreendimento circunstancial liderado por intelectuais, como também uma estratégia de resistência e negociação elaborada por setores afro-descendentes bastante conscientes do

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lugar extremamente desfavorável que ocupavam nas hierarquias sociais, culturais e raciais brasileiras.

Sob essas circunstâncias, segundo aponta Renato da Silveira para o caso da Bahia, desde meados do século XIX a estratégia adotada por muitas lideranças afro-religiosas foi a constituição de uma religião integrada à vida social local, o que gerou uma reestruturação muito complexa dos cultos africanos (1988:179). Dentro desta reestruturação, o autor destaca dois aspectos: a abertura de posições para os santos católicos; e a concessão de lugares especiais para pessoas de fora do candomblé, consideradas importantes para a manutenção das casas, os ogans brancos.

Nesse sentido, Silveira explica que, sendo o terreiro simbolicamente uma “reprodução reduzida da estrutura do mundo, natureza e sociedade indissoluvelmente imbricada, (...) nada é deixado ao acaso, dentro do seu espaço” (1988:185). Ou seja, assim como a organização dos cultos nos terreiros não poderia designar um lugar qualquer à exibição de santos católicos, a presença de ogans brancos dentro das casas de religião, não fora consentida, por assim dizer, aleatoriamente. A interpretação oferecida por Renato da Silveira para ambas as dimensões se dá nessas bases. A “penetração do candomblé pela religião dominante” é vista como uma “violação consentida”, a partir da qual o povo de candomblé define o seu lugar na sociedade mais ampla, reconhecendo o poder da religião dominante. A aceitação de ogans brancos é, por sua vez, entendida como o “reconhecimento de um poder sócio-político que ultrapassa o candomblé, do qual ele depende” (1988:185).

Sendo os ogans “os membros masculinos do candomblé que nunca entram em transe e se encarregam tanto de tarefas administrativas e diplomáticas, como da música e dos sacrifícios” (SILVEIRA, 1988:182), a aceitação de personalidades intelectuais e políticas nos terreiros adquirem inteligibilidade. Pois, as mesmas poderiam colaborar financeira e politicamente com a manutenção das casas, dentro do contexto de reestruturação dos cultos, imersos numa sociedade desigual.

Historicamente, os terreiros de Salvador possuíram ogans de lugar social e político prestigioso, como por exemplo, Nina Rodrigues (SILVEIRA,1988). Nos primórdios do período republicano, Nina ocupava cargos públicos e posições de destaque centrais a lideranças religiosas atentas às possibilidades de escape de leis repressivas calcadas no racismo. É sabido, por exemplo, que Nina defendia a elaboração de leis diferenciadas para camadas sociais, supostamente, dotadas de capacidades desiguais por conta de sua raça. Nesse caso, os brancos seriam mais capazes de realizar a liberdade e a cidadania do que os negos. Apesar de, obviamente, as comunidades e lideranças afro não corroborarem esta prerrogativa, a defesa do médico maranhense em aplicar normativas legais mais “amenas” para os “menos capazes” foram, estrategicamente, bem vistas pelo povo de santo.

Edison Carneiro, apesar de não ser branco - tal como outros pesquisadores aceitos nesta mesma condição naquele período - também figurou dentre aqueles que foram convidados a ocupar o posto de ogan em importantes terreiros. Por ter sido convertido em protetor de culto, o autor foi recebido no Axé Opô Afonjá, bem como no Gantois, terreiro comandado por Escholastica Nazaré, citada nas palavras inaugurais ao II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador.

Considerando os significados que as relações estabelecidas com pessoas de fora dos terreiros adquiriram para o povo de santo, compreende-se melhor a movimentação de mãe Aninha ao se relacionar com as altas cúpulas da política brasileira, bem como com intelectuais e “cientistas” curiosos por descobrir os “elementos culturais” dos candomblés. Entende-se, igualmente, a presença do babalaô Martiniano do Bonfim no II Congresso Afro-Brasileiro e as colaborações por ele prestadas a Nina Rodrigues, ainda no final do século XIX. Provavelmente, as adesões de demais lideranças religiosas reunidas na União das Seitas Afro-Brasileiras estiveram, de alguma forma, inscritas neste contexto. Isso sem considerar, as negociações que possivelmente foram empreendidas entre as próprias lideranças afro-

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religiosas para participar da agremiação. Enfim, as redes de relações constituídas entre Edison Carneiro e lideranças negras

possuíram múltiplos sentidos e significados, inscritos em contextos intelectuais, “científicos”, sociais, culturais e políticos. Fizeram parte desse contexto de relações, os próprios “cientistas” e seus “objetos” de pesquisa, partícipes de um mesmo processo histórico, a partir do qual as relações de raça e a cultura brasileira foram teorizadas.

Considerações finais

Na década de 30 a Bahia passou a ser conhecida no universo social e intelectual referente à diáspora africana, como a Roma Negra das Américas. Este rótulo fora forjado no intercâmbio transnacional de culturas, pessoas e ideias, estas últimas pensadas e operadas com o objetivo de desvelar o que havia ocorrido com os negros procedentes da África no continente americano. Por um lado, o sistema de relações raciais do Brasil acabou sendo amplamente comparado com o dos Estados Unidos, momento em que ambos os sistemas foram convertidos em paradigmas contrários de relações raciais (SEIGEL:2005). Por outro, os africanismos procurados nas manifestações culturais afro-brasileiras serviram como base empírica para a constatação de que o país esteve atrelado aos trânsitos atlânticos que conformaram a sociedade e a história do chamado Novo Mundo.

Em se tratando, especificamente dos estudos africanos e de relações raciais, tal dinâmica pressupõe que a história das relações de raça no Brasil, bem como a inserção e atuação de intelectuais no circuito acima descrito, devem ser analisadas sob um ângulo diaspórico. Ou seja, a dimensão transnacional da construção de quadros interpretativos sobre realidades marcadas pela escravidão e pelo racismo, é intrínseca à própria compreensão de como e por que a intelectualidade elaborou teses e conceitos sobre os assuntos em questão. Dessa forma, especialistas e pesquisadores que buscaram desvelar o que se passava nas Américas, quanto às populações afro-descendentes, foram, igualmente, sujeitos da constituição das relações raciais brasileiras. O campo de estudos africanos e de relações raciais foi, portanto, concebido numa sociedade racialmente hierarquizada e desigual, cujos reflexos se fizeram presentes na própria construção deste campo, conforme já apontaram Ângela Figueiredo e Osmundo Araújo (2002).

Por fim, a perseguição policial às religiões de matriz africana no Brasil, recrudescida justamente num período em que os elementos da brasilidade e da pertença à nação estavam na ordem do dia, indica a fragilidade do exercício da cidadania das populações negras no período pós-abolição. Se, as questões candentes na pauta de pesquisa de cientistas sociais e intelectuais renomados, muitas vezes, se remetiam a preocupações “acadêmicas” mais imediatas, o certo é que tais questões não fariam sentido se, no Brasil, não existissem tensões e conflitos políticos e sociais calcados em desigualdades raciais e culturais.

Para nós, resta o desafio de buscar compreender os lugares sociais de africanos e afro-descendentes no conturbado pós-abolição, tarefa que desempenharemos daqui para frente, ao estudarmos a perseguição policial aos batuques de Porto Alegre nos anos 30 e 40. Tarefa a ser empreendida em múltiplas direções, desde a construção científica e racializada de perfiz criminais específicos aos praticantes de batuque, passando pela operação prática desses perfis por determinados setores da Polícia Civil, e culminando, finalmente, nas relações de negociação e resistência operadas pelos próprios praticantes, frente às contingências adversas.

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Correspondências

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