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A “maldição das freiras”: a construção da memória coletiva de uma lenda urbana RENAN BAPTISTIN DANTAS 1 Resumo: O presente trabalho observa uma lenda popular existente na cidade de Ribeirão Preto (SP), chamada localmente de “maldição das freiras”. A lenda surgiu entre 1996 e 1999, quando o prédio do antigo “Colégio Santa Úrsula” – primeiro colégio católico da cidade construído em 1912 pelas irmãs ursulinas foi demolido e se iniciaram as construções do “Shopping Santa Úrsula”, empreendimento comercial que manteve parte da memória histórica do lugar primeiro por meio de seu nome, da exposição de fotografias do antigo prédio em sua parte externa e da instalação de uma capela dedicada a Santa. Segundo boatos, durante a construção foram encontradas ossadas de recém-nascidos, supostamente enterrados por freiras que haviam quebrado o voto de castidade, engravidado, e temendo as represálias teriam agido dessa forma. De tal forma, observa- se a maneira como é construída e vivida a memória coletiva desta lenda urbana pelos habitantes do lugar, assim como sua relação com o passado do mesmo. Passado, em parte formado por uma controvérsia coletivamente ignorada, mas publicamente materializada na manchete da Revista Revide de maio de 1997: “Cidade dever perder patrimônio histórico”. Introdução Esta comunicação é resultado de uma pesquisa realizada no final de 2018, e teve como foco etnográfico um shopping center da cidade de Ribeirão Preto (interior de São Paulo), chamado Santa Úrsula. A motivação inicial desta pesquisa voltava-se a analisar o contexto que circunda a “Capela de Santa Úrsula”, espaço religioso dedicado a Santa Úrsula localizado dentro do shopping. 2 A localização daquele espaço dentro de um lugar que, apesar de ser gerenciado por uma empresa privada, pode ser considerado um espaço público, causava um certo estranhamento. Ao pensarmos no cenário tradicional que compõe a imagem que temos de um “shopping center” é bem provável que um espa ço religioso fique de fora, porém empiricamente este casamento é uma tendência consolidada em diferentes locais do mundo. Capelas, igrejas e espaços ecumênicos dentro de shopping centers são encontrados em diferentes lugares do mundo, como nos Estados 1 UNICAMP, mestrando em Antropologia Social. 2 Parte das considerações referentes a esta pesquisa foram apresentadas sob o título de “O Shopping da Santa” durante a 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, no Grupo de Trabalho: Performances e marcas da religião na cidade (2018).

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A “maldição das freiras”: a construção da memória coletiva de uma lenda urbana

RENAN BAPTISTIN DANTAS1

Resumo: O presente trabalho observa uma lenda popular existente na cidade de Ribeirão

Preto (SP), chamada localmente de “maldição das freiras”. A lenda surgiu entre 1996 e

1999, quando o prédio do antigo “Colégio Santa Úrsula” – primeiro colégio católico da

cidade construído em 1912 pelas irmãs ursulinas – foi demolido e se iniciaram as

construções do “Shopping Santa Úrsula”, empreendimento comercial que manteve parte

da memória histórica do lugar primeiro por meio de seu nome, da exposição de fotografias

do antigo prédio em sua parte externa e da instalação de uma capela dedicada a Santa.

Segundo boatos, durante a construção foram encontradas ossadas de recém-nascidos,

supostamente enterrados por freiras que haviam quebrado o voto de castidade,

engravidado, e temendo as represálias teriam agido dessa forma. De tal forma, observa-

se a maneira como é construída e vivida a memória coletiva desta lenda urbana pelos

habitantes do lugar, assim como sua relação com o passado do mesmo. Passado, em parte

formado por uma controvérsia coletivamente ignorada, mas publicamente materializada

na manchete da Revista Revide de maio de 1997: “Cidade dever perder patrimônio

histórico”.

Introdução

Esta comunicação é resultado de uma pesquisa realizada no final de 2018, e teve

como foco etnográfico um shopping center da cidade de Ribeirão Preto (interior de São

Paulo), chamado Santa Úrsula. A motivação inicial desta pesquisa voltava-se a analisar o

contexto que circunda a “Capela de Santa Úrsula”, espaço religioso dedicado a Santa

Úrsula localizado dentro do shopping.2 A localização daquele espaço dentro de um lugar

que, apesar de ser gerenciado por uma empresa privada, pode ser considerado um espaço

público, causava um certo estranhamento. Ao pensarmos no cenário tradicional que

compõe a imagem que temos de um “shopping center” é bem provável que um espaço

religioso fique de fora, porém empiricamente este casamento é uma tendência

consolidada em diferentes locais do mundo. Capelas, igrejas e espaços ecumênicos dentro

de shopping centers são encontrados em diferentes lugares do mundo, como nos Estados

1 UNICAMP, mestrando em Antropologia Social. 2 Parte das considerações referentes a esta pesquisa foram apresentadas sob o título de “O Shopping da

Santa” durante a 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, no Grupo de Trabalho: Performances e marcas

da religião na cidade (2018).

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Unidos e Canadá. No Brasil, a propagação de capelas ou centros ecumênicos em shopping

centers trata-se de um fenômeno já identificado por outros autores como Emerson

Giumbelli (2013) e Marcelo Camurça (2016), mas que carece de um mapeamento

sistemático.

Esse estranhamento teria a ver, dentre outras coisas, com a questão da laicidade.

Mas mais ainda pois, diferente de outras experiencias compostas pela construção de

espaços religiosos em instituições públicas que seguem um processo de

“descatolicização” do espaço público, operado na chave do ecumenismo e dos “espaços

de espiritualidade”, como observado por Emerson Giumbelli (2013) na cidade de Porto

Alegre (RS), na capela do Shopping Santa Úrsula, o apelo ao cristianismo e a suas

imagens é o que reina. formada por com um quadro em uma das paredes com uma imagem

de Santa Úrsula, uma placa a baixo com uma breve biografia de Santa Ângela Mérici –

fundadora em 1535 na Ítalia da primeira ordem de “irmãs usulinas”, da UROSU (União

Romana da Ordem Santa Úrsula) – dois bancos e a frente ainda uma imagem de Nossa

Senhora Aparecida à cima de flores ornamentais. Assim, discutindo a questão da laicidade

e o espaço público a partir do caso e dos agentes envolvidos que por ali transitam, acentua-

se o caráter especial de "catolicização do espaço público”, ou melhor de permanência

católica no espaço público brasileiro. Nada de novo sob o sol deste país.

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Foto da “Capela Santa Úrsula”

Falar em permanência do catolicismo, em especial neste caso, não é banal. Já que

o passado histórico deste lugar (o shopping) de fato foi marcado pela presença de uma

instituição católica. Como será abordado mais à frente, antes de vir a ser habitado por um

shopping center, o lugar, endereçado no centro da cidade de Ribeirão Preto, rua São José,

número 933, era de 1914 a 1996, habitado por um colégio católico, comandado pelas

irmãs ursulinas.

Durante as incursões etnográficas feitas no lugar, buscou-se vivenciar e refletir

um pouco sobre a dinâmica de seu fluxo de seres, buscando questionar e interrogar quem

ou o que pudesse informar sobre as impressões e memórias dos habitantes quanto aos

aspectos religiosos envolvidos ali: a história do lugar – seu passado como colégio católico

de freiras – e sua herança, o seu atual nome (Shopping Santa Úrsula) e a “Capela Santa

Úrsula”. Algumas das pessoas foram formalmente abordadas – aquelas as quais quem vos

escreve apresentou-se como pesquisador. Outras foram apenas observadas em suas trilhas

sem de fato serem interceptadas. Foram cerca de 15 pessoas interceptadas. Na maior parte

das abordagens buscou-se seguir um roteiro de questionamentos:1º questionando qual a

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frequência do habitante naquele lugar, 2º questionando se já havia notado a presença da

capela ali naquele shopping, 3º se tinha alguma religião e 4º o que pensava a respeito da

capela ali localizada. Geralmente os diálogos seguiam outros rumos e outras questões não

programadas se sobressaiam.

Destas observações destacou-se o já citado tema da laicidade, aqui entendida

segundo um duplo viés, tanto como posicionamento quanto configuração (GIUMBELLI,

2013). De tal forma, através das questões indicadas a cima, pode-se investigar como os

agentes envolvidos com o lugar (a instituição corporativa, funcionários de lojas,

seguranças, clientes, os “peregrinos”3, etc) compreendiam a presença do espaço religioso

dentro do shopping, em termos de percepção, frequência e opinião. Em síntese,

despontou-se no material coletado (observações e curtas entrevistas dirigidas) uma dupla

pluralidade quanto a posturas e valores referentes a laicidade e a presença do religioso

católico no espaço público: tanto por parte dos grupos institucionais, quanto dos

peregrinos habitantes do espaço público dirigido pela instituição. Assim, confirmando

que encontramos “configurações diferenciadas que expressam situações de laicidade

desiguais, mas convivendo entre si no país” (CAMURÇA, 2017), na mesma cidade, no

mesmo lugar, para diferentes pessoas.

Assim, notou-se que, se para alguns o aspecto religioso católico é quase que

“invisível”, passando desapercebido, sem estranhamento ou é visto positivamente; para

outros – geralmente informados pela fórmula do “Estado laico” – o aspecto religioso é

estranho. Institucionalmente, como já dito, seguir uma tendência oposta à observada

“descatolicização do espaço público” (GIUMBELLI, 2013), o caso comprova certa

primazia católica estruturalmente construída no imaginário e espaço público nacional

(MONTERO, 2009) ainda reinante em certos contextos sociais brasileiros.

Além desta questão mais civil, ligada a regulação do religioso dentro do shopping,

a vivencia etnográfica do lugar, observadora das linhas e movimentos imbricados em seu

contexto, conduziu a identificação de uma lenda urbana viva na memória coletiva do

3 Conceituação inspirada no antropólogo Tim Ingold (2015), que também mais à frente terá parte de sua

perspectiva teórica antropológica discutida neste trabalho. Trabalho que por sua vez, muito se inspira em

suas noções.

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lugar, e que foi caracterizada pelo Portal Revide, site virtual da Revista Revide, revista

de circulação municipal em Ribeirão Preto, como uma das sete lendas urbanas da cidade:

a da “maldição das freiras”. Esta lenda, notada no discurso popular sobre o espaço (no

discurso dos consumidores, lojistas e seguranças) nos faz pensar que, se o lugar não

reconhece a diversidade religiosa – ou seja, seja habitado predominantemente por

materiais católicos, não abarcando os símbolos de outras tradições religiosas e espirituais,

como das religiões mediúnicas: espiritismo, candomblé e umbanda – , a diversidade

religiosa, presente nos sistemas de crenças dos peregrinos reconhece o lugar. Neste

sentido, a presente comunicação visa pensar a construção da memória coletiva que

sustenta esta lenda, apelando centralmente para as contribuições teóricas de Maurice

Halbwachs (1990) e Tim Ingold (2015). O primeiro para pensar especificamente sobre a

memória coletiva e o segundo para pensarmos o lugar como sendo formado não apenas

por suas dimensões materiais atuais, mas também pelas histórias de vida que ali viveram

e passaram.

O “shopping da santa”: de colégio à shoppping

A história do shopping center localizado no centro da cidade de Ribeirão Preto

cunhado com o nome de “Santa Úrsula” remonta os primórdios do desenvolvimento

estrutural, hierárquico e burocrático da Igreja Católica na região. Ribeirão Preto foi

fundada por fazendeiros em 1856. Tornou-se paróquia em 1870. O bom clima e solo da

cidade contribuiriam para a plantação de café e incentivaram a construção de ferrovias.

Em 1883 foram construídos os trilhos da Companhia Mogiana de Estrada de Ferro,

responsável pela forte transformação da cidade, que se torna a maior produtora de café

do mundo até os efeitos do crash da bolsa de Nova York em 1929.

Neste contexto de expansão, a província administrativa eclesiástica da cidade seria

elevado ao grau de Diocese anos mais tarde quando o então Papa Pio X cria de uma só

vez em 1908, através da bula "Dioecesium Nimiam Amplitudinem", mais cinco Dioceses

no estado de São Paulo além da única até então existente localizada na capital paulista:

em Botucatu, Campinas, São Carlos, Taubaté e Ribeirão Preto. Quatro anos mais tarde o

então primeiro bispo de Ribeirão, Dom Alberto José Gonçalves, que tomaria posse de seu

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cargo em 1909, com o intuito de estabelecer na cidade seu primeiro colégio católico,

convidou irmãs ursulinas da UROSU (União Romana da Ordem Santa Úrsula), fundada

em 1535 por Santa Ângela Mérici na Ítalia, para realizar tal feito.

Assim em fevereiro de 1912, nascia o Colégio Progresso, gerado inicialmente por

quatro irmãs: uma brasileira, duas portuguesas e uma italiana, num pequeno chalé na rua

São Sebastião. O colégio só viria a se chamar Santa Úrsula dois anos depois quando da

inauguração de um prédio novo na rua São José. A escola ali residiria até 1996 quando

foi transferida para um terreno maior na Zona Sul de Ribeirão Preto, dando lugar ao

“Shopping Santa Úrsula”, que após a demolição do antigo colégio e sua construção viria

a ser inaugurado em 1999.

A partir da trajetória deste lugar – o terreno da rua São José, 933, habitação do

atual shopping – e do depoimento de uma das irmãs ursulinas a respeito do nascimento

da escola e sua posterior mudança de endereço, vemos se delinear transformações que a

partir das reflexões que empreitamos, estariam ligadas sócio historicamente à processos

de urbanização e expansão da cidade, à “romanização” do catolicismo brasileiro

(OLIVEIRA, 1985) e a permanência simbólica e material do catolicismo na esfera pública

nacional – sendo que este último ponto será melhor discutido no próximo tópico

Segundo a irmã, ao habitarem a cidade de Ribeirão Preto a partir de 1912 as irmãs

ursulinas tiveram “muita visão de futuro”, pois naquela época Ribeirão ainda era uma

cidade muito pequena, mas devido à expansão cafeeira a cidade estava fadada ao

crescimento. De tal maneira que, intuindo este futuro, as irmãs da ordem decidiram

comprar terrenos, alguns muito distantes do centro da cidade, quando “tudo era estrada

de terra”, formando ao fim uma posse que contabilizava cerca de trezentos e oitenta e dois

mil metros quadrados.

Para sobreviver sem o apoio do Estado era indispensável ao aparelho religioso

reestruturar-se, restabelecendo a ligação entre a Igreja e as grandes massas. Pedro Ribeiro

(1985) ressalta que os principais líderes eclesiásticos da época colocam em evidencia o

tema da ignorância religiosa doutrinal do povo, que passa a ser combatida pelo aparelho

eclesiástico. Ainda segundo esse autor, os pontos de reforma apontados por D. Macedo

Costa seriam como a súmula do processo de romanização da Igreja brasileira.

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Imagem do antigo prédio do Colégio Santa Úrsula construído em 1914 e do Shopping Santa

Úrsula construído em 1999.

Se observa portanto a história do antigo Colégio Santa Úrsula, comandado pelas

irmãs freiras ursulinas, se desenvolver como parte deste processo de romanização,

empreitado pela Igreja Católica, no sentido de se realinhar com a burguesia nacional, no

caso com a burguesia paulista, principalmente ligada ao setor cafeeiro em ascendente

expansão no início do século XX.

Os anos passaram e o colégio, que fica a poucas quadras de outro colégio católico

da cidade, dirigido pelos Irmãos Marista, começou a ficar pequeno demais para a

quantidade de alunos, o que por sua vez contribuía com constantes engarrafamentos do

trânsito de carros nos horários de saída e chegada dos alunos. Tudo isso é o que é contado

pelas freiras ursulinas que viveram este período4.

Segundo a dissertação de mestrado na área de arquitetura, defendida na

Universidade de São Paulo (USP) em 2002, escrita por Fernando Garrefa, sobre a

arquitetura do comércio varejista ribeirão-pretano, em especial sobre a expansão dos

shopping centers, o Shopping Santa Úrsula foi fruto de uma permuta entre o “tradicional”

Colégio Santa Úrsula e o Grupo Empresarial Almeida Jr. Ele aponta para algo que talvez

tende a se esquecer cada vez mais, quando se pensa em termos de memória coletiva da

cidade, que seria a polêmica causada pela implantação do shopping na cidade, já que seu

edifício foi construído às custas da demolição do antigo colégio, cujo prédio era tido como

um dos marcos históricos e arquitetônicos da cidade de Ribeirão Preto – primeiro colégio

4 Seus depoimentos estão disponíveis no site do colégio:< www.colegiosantaursula.com.br/fundacao>.

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católico da cidade, erigido em 1914. Apesar disso, segundo Garrefa (2002) comenta, sua

demolição teria passado praticamente desapercebido pela sociedade ribeirão-pretana,

com exceção de um grupo de ex-alunas pertencentes a uma das quatro gerações formadas

pelo colégio das Irmãs Ursulinas e da revista Revide, de abrangência municipal, que

praticamente um ano após o início da demolição fez uma matéria abordando o assunto5.

Dentre os aspectos arquitetônicos que chamam atenção no edifício do shopping,

destaca-se sua verticalidade. Que por sua vez, infelizmente facilitou uma série de

suicídios – cinco desde a fundação do shopping – naquele lugar. Esta sequência de

suicídios é um ponto que, devido às limitações momentâneas deste trabalho, não será

explorada no momento. Por hora, vale ressaltar sua contribuição para formação da

memória coletiva da cidade, em especial sobre a memória formada sobre o lugar. Esta

recorrência de suicídios irá se somar com a lenda urbana da “maldição das freiras”, para

compor uma espécie de “mística sombria” do lugar, um espectro de sentimentos que

impacta a vida, o corpo e os sentimentos de seus habitantes.

Mas afinal de contas, o que diz essa lenda urbana? Segundo boatos, durante a

construção do shopping foram encontradas ossadas de recém-nascidos, supostamente

enterrados por freiras que haviam quebrado o voto de castidade, engravidado, e temendo

as represálias teriam agido dessa forma, enterrando os corpos de seus bebês no subsolo

do colégio. Este boato é reafirmado até hoje entre os habitantes do shopping. Das

observações etnográficas ali realizadas, uma interlocutora privilegiada, funcionária em

uma loja de sapatos no shopping, relatou como estes rumores vieram à tona entre os que

ali habitam, após o último suicídio realizado no local, no ano passado. Segundo ela, os

5Fazendo um paralelo com outro shopping inaugurado no mesmo ano que o Santa Úrsula, Garrefa diz que:

“Ao contrário do Ribeirão Shopping e do Novoshopping, que possuem localização periférica, o Santa

Úrsula apostou no centro da cidade, especialmente na população de alta renda que vive no entorno do

empreendimento. Nesse sentido, nasceu como um shopping de vizinhança. O sistema viário estreito e o

tráfego constantemente lento em seu entorno, confirmam seu direcionamento primordialmente voltado à

sua vizinhança, uma vez que a acessibilidade a seus espaços não encoraja a ida de consumidores de bairros

mais distantes e mesmo de outras cidades. As opções de acesso passam sempre pelas avenidas

Independência, Nove de Julho ou Francisco Junqueira, e em todas elas o consumidor motorizado não

encontra caminho livre de descomplicações” (GARREFA, 2002, p. 135-136).

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principais agentes propagadores da lenda são os seguranças noturnos, que em seus turnos

de trabalho, dizem ouvir o choro dos bebês e o vulto dos fantasmas das freiras.6

Outro aspecto observado em campo, se refere aos impactos físicos, corporais e

afetivos causados por toda a “mística” que envolve o lugar – formada por seu passado

religioso, a lenda urbana e a recorrência de suicídios. Cita-se dois exemplos: primeiro

uma mulher interpelada se dizia católica, porém com uma “fé ampla”, e que gostava de

“tudo que tem de bom nas outras religiões”. Segundo ela, ao visitar aquele shopping, ela

seguia um ritual pessoal de rezar quando entra e de rezar quando vai sair do

estabelecimento. Ainda mais devido aos “acidentes estranhos” que ali aconteciam, que

chocam a sociedade ribeirão-pretana principalmente através da divulgação da mídia.

O segundo, um caso interessante de contato, se deu com uma mulher adulta, que

se demonstrou apressada de início, um pouco nervosa inclusive, dizendo que aguardava

seu marido que já estava pra chegar após comprar um presente de natal para seu filho.

Porém no decorrer da interlocução revelou que sofria de síndrome do pânico e

claustrofobia e que estar ali naquele espaço lhe era incomodo, por isso vinha pouco ao

shopping, principalmente devido ao histórico do lugar. Quando lhe questionei se ela já

havia notado a existência da capela no interior do shopping, a interlocutora rapidamente

se emocionou, vindo a cair lágrimas de seu rosto. Se disse “arrepiada” e mostrou com

orgulho a correntinha de Nossa Senhora que carregava no pescoço. Caracterizou-se como

“super católica” e disse que a capela descoberta iria motiva-la a frequentar o shopping

mais vezes.

Noção ingoldiana de lugar

Tim Ingold conduz a antropologia a uma discussão epistemológica ao mesmo

tempo que a uma auto-critica. Cada vez mais fragmentada em subáreas (como

“antropologia da religião”, “antropologia médica”, “antropologia econômica”,

6Por ser um lugar onde predomina a circulação, pergunta-se em que medida ela auxilia na propagação de

boatos.

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“antropologia política”, etc)7, Ingold convida a antropologia de volta “à vida” e as grandes

questões, ao concebe-la como uma indagação sobre as formas e possibilidades de vida no

mundo. Seu trabalho, assim como a de outros antropólogos ligados a chamada “virada

material”, se contrapõe a uma tradição antropológica interpretativista e simbólica,

encabeçada por Clifford Geertz (1989), para quem a cultura é uma “rede de significados

e sentidos” que precisam ser interpretados. Tal visão hermenêutica se esquece do humano,

pois presa na busca do que “está sendo dito” e do que “significa”, não é pragmática a

ponto levar em conta os materiais e suas conexões por trás do “texto”, essa teia de

significados que só tem sentido à medida em que é comunicável e comunicada.

Na virada epistemológica operada por Ingold, a agenda antropológica se dirige a

compreensão dos materiais e correntes de consciência sensorial nos quais ideias e coisas

tomam forma. E o conjunto de relações entre os materiais é chamado de malha

(meshwork) “linhas emaranhadas de vida, crescimento e movimento” (INGOLD, 2015,

p. 111). Ele ainda conclui “este é mundo que habitamos” (Idem). Assim, a vida dos

organismos se estende ao longo de várias trilhas, saídas de uma mesma fonte. Avançando,

crescendo e se desenvolvendo por diferentes lugares. Nós em um tecido de nós, cujos fios

que os constituem se entrelaçam a outros fios, a outros nós, compondo a malha.

Tendo em vista esta perspectiva da malha, que metaforicamente, se assemelha a

uma teia de aranha, Ingold concebe a ideia de lugar como algo não formado por seu limite

externo, mas sim pelo movimento que o delineia, através da ação dos que ali habitam.

Essa habitação é linear, o oposto de ocupação, leva a pessoa ao longo dos caminhos entre

um lugar e outro. Por vezes, os movimentos dos agentes, das “coisas” (INGOLD, 2008),

formam emaranhados de linhas de vida. Um lugar, seguindo essa perspectiva seria um

“nó”, formado pelo feixe de relações que o habitam e habitaram, deixando ali seus rastros,

por mais que não se possa ver.

Memória coletiva para Halbawchs

7 “Hoje, a maioria dos antropólogos escolheu reorientar seus trabalhos na direção de uma pluralidade de

problemas fragmentados – políticos, econômicos, domésticos, rituais, etc. – em contextos de “pequena

escala”, encontrando nesse estado de fragmentação o sentido de direção intelectual oferecido por

‘disciplinas cognatas’” (ASAD, 2017, p. 319).

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Maurice Halbawchs é um dos principais autores que trabalha com a noção de

memória coletiva. Recorre-se a ele pois dentre outras coisas ele aponta que um dos pontos

de referência estruturantes da memória, são os monumentos e suas dimensões

arquitetônicas, não isentas de significados e símbolos. Assim como as lendas populares,

o folclore, as trajetórias nacionais, etc. Estes pontos seriam indicadores empíricos da

memória coletiva. São fundamentais e fundantes na formação de sentimentos de pertença.

Halbawchs também enfatiza os aspectos positivos da memória, que contribuem para a

“coesão social”, não pela coerção, mas pela adesão afetiva. De tal forma que, as memorias

sociais estão atreladas às emoções, geralmente compartilhadas pela comunidade.

“Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos

tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de

concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre

um fundamento comum. Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem

de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário

que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se

encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam

incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se

fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade” (HALBWACHS,

1990, p. 34)

Como pode se ver, para este autor, a memória coletiva só se viabiliza a partir do

compartilhamento de noções comuns, encontradas no “espírito”. Ele ressalta ainda a

seletividade de toda memória, assim como o processo de negociação entre memórias

individuais e coletivas. Ambas só coincidem quando o elemento afetivo se faz presente

no interior das individualidades pessoais.

Considerações

Como considerações finais desta comunicação, pontua-se algumas coisas.

Primeiro quanto ao aspecto relacional da lenda urbana, que se entrelaça a outros pontos

estruturantes da memória do lugar – seu passado histórico e arquitetônico gravado no

nome do shopping, na capela que permaneceu ali devido à antiga função do lugar, as fotos

do antigo colégio expostas nas paredes externas do shopping, à lenda das freiras

compartilhada por seus habitantes e peregrinos, os casos de suicídio, a repercussão

midiática, etc.

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Tudo isso, segundo uma visão ingoldiana, pode ser considerado como linhas,

trajetórias de vida, gravadas em distintos materiais e que compõem o lugar, que de tal

forma não se limita a seus limites físicos e contornos externos. Ou ainda em uma

linguagem arquitetônica, não se limita a seus “equipamentos”. São fontes, materiais que

contribuem para a manutenção de uma memória coletiva sobre o passado do lugar,

absorvidas pela diversidade religiosa da sociedade, que aciona uma linguagem comum

composta por uma outra “dimensão encantada”, de seres sobrenaturais que interferem a

todo momento na realidade. Para tanto, contribuem os sentimentos e afetividades dos

habitantes que ali vivem e viveram, deixaram marcas, ao mesmo tempo em que foram

marcados, em seus corpos, gestos, sentimentos e memórias.

Bibliografia

CAMURÇA, Marcelo Ayres. A questão da laicidade no Brasil: mosaico de configurações

e arena de controvérsias. HORIZONTE-Revista de Estudos de Teologia e Ciências da

Religião, v. 15, n. 47, p. 855-886, 2017.

GARREFA, Fernando. Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto: a

emergência e a expansão dos shopping centers. 2002. Tese de Doutorado.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara

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GIUMBELLI, Emerson Alessandro. O que é um ambiente laico?: espaços (inter)

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