repensando o papel da universidade

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PENSATA REPENSANDO O PAPEL DA UNIVERSIDADE 104 ©RAE VOL. 44 Nº 2 REPENSANDO O PAPEL DA UNIVERSIDADE Adolfo Ignacio Calderón UMC As mudanças econômicas e sociais ocorridas nas duas últimas décadas provocaram a obsolescência de cer- tas concepções acerca do papel da universidade. É preciso, por isso, desenvolver outros referenciais para se analisar tal tema. Neste ensaio, abordamos a crise do sistema uni- versitário à luz da emergência da universidade mercantil, novo mode- lo de universidade para o presente e para o futuro. O MERCADO UNIVERSITÁRIO Há cerca de 40 anos, intelectuais concebiam a universidade como um instrumento de resistência à domi- nação e opressão por parte das clas- ses dominantes. Havia entre eles aqueles que, visando à destruição do capitalismo, elaboravam estratégias para fazer dela uma trincheira da revolução socialista. Os tempos mudaram, tornando essas perspectivas anacrônicas. No entanto, não se pode ignorar o fato de que a universidade é ainda hoje um poderoso espaço de transmissão de ideologia, na medida em que é o lugar privilegiado para a formação no nível superior. Foi para ter do- mínio sobre ela que papas, prínci- pes, reis, legisladores, ditadores e governantes lutaram. É também por esse motivo que a UNESCO a con- sidera um espaço privilegiado para a construção de uma cultura de paz, baseada no respeito à diversidade cultural, aos direitos humanos, ao meio ambiente e à democracia. É raro encontrarmos hoje pessoas que acreditam ser a universidade uma ferramenta para a revolução socialista. Mas não é incomum en- contrarmos professores e alunos que, a partir da universidade, que- rem fazer sua própria revolução, sua própria mudança, e à sua maneira: é o jovem estudante da FGV-EAESP que desenvolve seu projeto de marketing social, em benefício de uma ONG; ou os estudantes do Ibmec que desenvolvem projetos comunitários como parte do Progra- ma Universidade Solidária; ou os estudantes da UMC que ensinam, aos carregadores da Ceagesp, ler e escrever; ou então os alunos da PUC que desenvolvem ações em prol do MST. Todas essas iniciativas fazem da universidade o palco de uma re- volução fragmentada, sem rumo cer- to, sem as grandes metanarrativas que orientavam os antigos projetos revolucionários utópicos, mas com o mesmo espírito humanista que os norteavam. O cenário da educação superior brasileira vem passando por profun- das mudanças desde a instituciona- lização do mercado universitário, que se caracteriza pela acirrada con- corrência entre as instituições para atrair clientes-consumidores. Desde o início da década de 1990, assiste-se ao impressionante cresci- mento quantitativo de universida- des particulares com fins lucrativos, geridas como empresas que ofere- cem produtos e serviços de acordo com a demanda do mercado. São essas universidades que possibilita- ram a democratização do acesso ao ensino superior, ampliando signifi- cativamente a oferta de produtos educacionais. As opções de consu- mo para os futuros estudantes foram ampliadas e diversificadas, como também o número de produtos e serviços educacionais e a procura de nichos e necessidades especiais. Diante desse cenário surgem con- ceitos e categorias que eram, até pouco tempo atrás, impensáveis para a compreensão do ensino su- perior, tais como “mercado de ensi- no”, “cliente-consumidor” e “pro- dutos e serviços na área da educa- ção”. É interessante constatar a re- jeição de amplos setores acadêmi- cos à possibilidade de compreen- der o aluno universitário como um cliente-consumidor e a aversão em considerar o ensino universitário como um produto ou serviço comer- cializável, ou seja, como uma mer- cadoria. O processo de mercantilização do ensino viola valores culturais forte- mente arraigados no país, segundo os quais o ensino é concebido como direito social, um serviço provido

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Neste artigo abordamos a crise do sistema universitário à luz da emergência da universidade mercantil, novo modelo de universidade para o presente e para o futuro.

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PENSATA • REPENSANDO O PAPEL DA UNIVERSIDADE

104 • ©RAE • VOL. 44 • Nº 2

REPENSANDO O PAPEL DA UNIVERSIDADE

Adolfo Ignacio CalderónUMC

As mudanças econômicas e sociaisocorridas nas duas últimas décadasprovocaram a obsolescência de cer-tas concepções acerca do papel dauniversidade. É preciso, por isso,desenvolver outros referenciais parase analisar tal tema. Neste ensaio,abordamos a crise do sistema uni-versitário à luz da emergência dauniversidade mercantil, novo mode-lo de universidade para o presentee para o futuro.

O MERCADO UNIVERSITÁRIO

Há cerca de 40 anos, intelectuaisconcebiam a universidade como uminstrumento de resistência à domi-nação e opressão por parte das clas-ses dominantes. Havia entre elesaqueles que, visando à destruição docapitalismo, elaboravam estratégiaspara fazer dela uma trincheira darevolução socialista.

Os tempos mudaram, tornandoessas perspectivas anacrônicas. Noentanto, não se pode ignorar o fatode que a universidade é ainda hojeum poderoso espaço de transmissãode ideologia, na medida em que é olugar privilegiado para a formaçãono nível superior. Foi para ter do-mínio sobre ela que papas, prínci-pes, reis, legisladores, ditadores egovernantes lutaram. É também poresse motivo que a UNESCO a con-sidera um espaço privilegiado para

a construção de uma cultura de paz,baseada no respeito à diversidadecultural, aos direitos humanos, aomeio ambiente e à democracia.

É raro encontrarmos hoje pessoasque acreditam ser a universidadeuma ferramenta para a revoluçãosocialista. Mas não é incomum en-contrarmos professores e alunosque, a partir da universidade, que-rem fazer sua própria revolução, suaprópria mudança, e à sua maneira:é o jovem estudante da FGV-EAESPque desenvolve seu projeto demarketing social, em benefício deuma ONG; ou os estudantes doIbmec que desenvolvem projetoscomunitários como parte do Progra-ma Universidade Solidária; ou osestudantes da UMC que ensinam,aos carregadores da Ceagesp, ler eescrever; ou então os alunos da PUCque desenvolvem ações em prol doMST. Todas essas iniciativas fazemda universidade o palco de uma re-volução fragmentada, sem rumo cer-to, sem as grandes metanarrativasque orientavam os antigos projetosrevolucionários utópicos, mas como mesmo espírito humanista que osnorteavam.

O cenário da educação superiorbrasileira vem passando por profun-das mudanças desde a instituciona-lização do mercado universitário,que se caracteriza pela acirrada con-corrência entre as instituições paraatrair clientes-consumidores.

Desde o início da década de 1990,assiste-se ao impressionante cresci-mento quantitativo de universida-des particulares com fins lucrativos,geridas como empresas que ofere-cem produtos e serviços de acordocom a demanda do mercado. Sãoessas universidades que possibilita-ram a democratização do acesso aoensino superior, ampliando signifi-cativamente a oferta de produtoseducacionais. As opções de consu-mo para os futuros estudantes foramampliadas e diversificadas, comotambém o número de produtos eserviços educacionais e a procura denichos e necessidades especiais.

Diante desse cenário surgem con-ceitos e categorias que eram, atépouco tempo atrás, impensáveispara a compreensão do ensino su-perior, tais como “mercado de ensi-no”, “cliente-consumidor” e “pro-dutos e serviços na área da educa-ção”. É interessante constatar a re-jeição de amplos setores acadêmi-cos à possibilidade de compreen-der o aluno universitário como umcliente-consumidor e a aversão emconsiderar o ensino universitáriocomo um produto ou serviço comer-cializável, ou seja, como uma mer-cadoria.

O processo de mercantilização doensino viola valores culturais forte-mente arraigados no país, segundoos quais o ensino é concebido comodireito social, um serviço provido

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pelo Estado com objetivos essencial-mente públicos e não-lucrativos. Opreconceito apresentado pela maio-ria dos intelectuais é característicode uma geração apegada a modelosinterpretativos ancorados no para-digma social-universalista, fruto doEstado social emergente no pós-guerra. Tal perspectiva não aceita apossibilidade de universidades comperfis diversos. Pode-se tomar porhipótese que a recusa pode tambémnão passar de uma defesa cega deinteresses corporativos, que insis-tem em falar em “universidade bra-sileira” como sinônimo de univer-sidade pública, gratuita e de pesqui-sa, como se existisse somente umtipo de universidade, como se a uni-versidade fosse uma instituição mo-nolítica, com um único perfil.

AS MÚLTIPLAS UNIVERSIDADES

A heterogeneidade existente entre asuniversidades é tão grande e acen-tuada que a expressão “universida-de brasileira” perdeu seu sentido.Assim, é difícil aceitar afirmaçõescategóricas, idealizadoras, da uni-versidade como instituição social. Ameu ver, o único momento em quepodemos falar da universidade équando homogeneizamos essas ins-tituições na sua condição de órgãosvoltados basicamente para o ensino.

Ao observarmos a realidade,deparamo-nos com terreno hetero-gêneo e diversificado, no qual todaforma de generalização torna-se di-fícil. Por exemplo: será que todauniversidade produz novos conhe-cimentos por meio da realização depesquisas? Será que toda universi-dade realiza atividades de prestaçãode serviços à comunidade? Será quetoda universidade professa clara-mente um forte compromisso social?Será que toda universidade está pre-

ocupada com a questão da qua-lidade? Ou com a questão de formarcidadãos autônomos, críticos, poli-valentes e criativos?

Desde sua origem, no século XII,a universidade teve uma vocaçãofortemente unifuncional: oferecerformação no nível superior paraquem podia pagar por ela. Está emsua origem ser uma instituição mer-cantil, visto que historicamente osserviços oferecidos apresentam cus-to elevado e alguém sempre teve quepagar por ele: o próprio aluno, aIgreja, o Estado, as empresas ou en-tidades filantrópicas. Aliás, os regis-tros históricos apontam que as uni-versidades surgiram, entre outrosmotivos, para regular as instáveisrelações mercantis existentes entremestres e alunos.

Porém essa vocação unifuncionalfoi sendo reduzida com o passar dotempo, e as universidades foram setornando mais complexas, atenden-do a demandas cada vez mais diver-sificadas, provenientes de diversossetores da sociedade. Paralelamen-te, foram sendo criadas, em relaçãoà universidade, uma série de expec-tativas; entre elas: formar profissio-nais; desenvolver pesquisa científi-ca; contribuir para o desenvolvi-mento econômico, social e tecnoló-gico do país; melhorar a qualidadede vida da população; incentivar acultura e a arte, assessorar o poderpúblico; prestar serviços e consul-torias para o aprimoramento dasempresas; fornecer informações eanálises sobre a economia; contri-buir para erradicar a fome, o anal-fabetismo, a pobreza; aprimorar oserviço de saúde; assessorar na for-mulação de políticas públicas; eatender à população pobre nos hos-pitais universitários e clínicas odon-tológicas e psicológicas.

Dada a complexidade e diversi-dade dessas demandas e expectati-

vas, dificilmente as universidadesconseguiriam atendê-las em sua ple-nitude, tendo de optar por focarmissões específicas, e assim aten-dendo a algumas demandas e não aoutras.

Mas foi procurando responder aestas pressões que a universidade semanteve até hoje, processando eequacionando conflitos que surgemao atender demandas procedentesde atores com interesses eventual-mente opostos. O processamento dedemandas e tensões intra e extra-institucionais foi e ainda é possívelporque as universidades possuemdiversas frentes de atuação, bemcomo setores com interesses diver-sificados e relativa autonomia paraa tomada de decisões. Diante disso,a idéia de universidade como umcorpo de professores e estudantesunidos por um mesmo objetivo ouinteresse comum é sensivelmenteenfraquecida.

Dentro dessa nova lógica de uni-versidade como filtro que seleciona asdiversas demandas dos vários agen-tes sociais, ganha força a idéia de“multiversidade”, desenvolvida porClark Kerr – ex-presidente da Univer-sidade da Califórnia –, para quem auniversidade não é apenas uma comu-nidade, mas várias comunidades de-fendendo os mais diversos, e às vezesconflitantes, interesses.

Assim, uma característica da uni-versidade contemporânea é a defi-nição de suas funções não somentea partir da opinião de seus membros,mas, principalmente, a partir dasdemandas dos diversos setores dasociedade. A universidade seria de-terminada não por fatores endóge-nos, mas principalmente por fato-res exógenos. Ela seria pautada porseu caráter pragmático e utilitárioem relação às demandas externas. Auniversidade somente redefine suamissão quando atua em função da

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sociedade; mais especificamente,quando atua em função do merca-do. Agindo dessa forma, ela passapor um processo de renovação per-manente, oxigenando sua existênciae função.

A idéia de universidade guiada edefinida pela demanda, isto é, a uni-versidade como agência de presta-ção de serviços que atende a diver-sificadas demandas da sociedade edo mercado, é duramente criticadapelos defensores de um modelo so-cial-universalista de ensino. Combase nesse modelo, argumenta-seque a universidade não pode perderseu caráter público, tornando-seuma instituição restrita àqueles quepodem pagar por seus serviços.Aceitar a mercantilização do ensinosuperior equivale a aceitar a destrui-ção da universidade e de sua auto-nomia, o que representaria seu fimcomo espaço crítico de produção li-vre, desinteressado e autônomo deconhecimentos. Segundo esta pers-pectiva, a autonomia universitáriaconfere à universidade autoridadepara definir seus próprios caminhose a coloca acima do mercado e dasociedade civil, sem nenhum tipo decompromisso e responsabilidadecom seus financiadores.

ESSÊNCIA QUESTIONADA

Na metade da década passada, umahipó tese formulada por Si lvioBotomé no livro “Pesquisa alienadae ensino alienante: equívoco da ex-tensão universitária” (Editora Vo-zes), foi bastante aplaudida entrepesquisadores e gestores atuantesna área de ensino superior. Para oautor, a multiplicidade de papéisque a universidade vem desempe-nhando tem feito com que ela sedescaracterize, fato que determi-nou sua crise de identidade e a ur-

gente redefinição de seus papéis nasociedade. Diante das inúmeras de-mandas a ela direcionadas, a uni-versidade assumiu funções própriasde ONG’s, de órgãos públicos, deempresas de assessoria financeira econtábil ou de entidades assisten-ciais.

Botomé argumenta que existeuma confusão entre “funções” e“atividades” da universidade; ouseja, se acredita que o ensino, a pes-quisa e a extensão seriam as “fun-ções” da universidade, enquantoque na verdade não passariam demeras atividades universitárias.Nessa análise, a função da universi-dade, sua coluna vertebral, seriaproduzir conhecimento e torná-loacessível. É essa função que deveriaorientar todas as atividades univer-sitárias. Em outras palavras, a uni-versidade somente deveria atenderaquelas demandas que se enqua-drassem nessa função.

Cumpre mencionar que a funçãoatribuída por Botomé à universida-de, amplamente aceita no meio aca-dêmico brasileiro, representa umaverdadeira camisa-de-força que im-pede o desenvolvimento natural dauniversidade contemporânea, tor-nando-a cada vez mais distante dasreais necessidades da sociedade edo mercado; isto é, dos cidadãosque a financiam e que dela preci-sam. Sob essa óptica, a universida-de continua sendo condenada a seruma instituição anacrônica, distan-te de seu tempo.

Aceitando-se que a função dauniversidade se define a partir doatendimento das demandas advin-das do mercado, torna-se evidenteque a demanda por ensino é muitomaior do que a demanda por pes-quisa. As pessoas procuram a uni-versidade porque querem ser treina-das e capacitadas para se inseriremno mercado de trabalho, e não para

fazerem pesquisa. É ilusório pensarque a geração de conhecimentos sejaa função principal da universidade.Sem dúvida alguma, podem e devemexistir universidades que façam pes-quisa científica de ponta, mas noBrasil tais instituições são raras,uma vez que fazer pesquisa séria ecompetitiva exige muita dedicação,pesquisadores altamente qualifica-dos e pesados investimentos. Mas aessência da universidade não é pes-quisar, e sim ensinar e formar osrecursos humanos de que a socie-dade e o mercado necessitam para oseu desenvolvimento. Apostar quea função principal da universidadeé fazer pesquisa é criar obstáculos àexistência de um mercado altamen-te diversificado em termos de insti-tuições, produtos e serviços educa-cionais.

A missão determinada por Boto-mé para a universidade enquadra-se em uma tradição universitáriaatualmente hegemônica, surgidacom a instauração da universidademoderna, isto é, o modelo alemãode universidade de pesquisa. Im-plantado no início do século XIX, omodelo de universidade como ins-tituição voltada principalmente paraa pesquisa e a produção de conhe-cimento coloca o ensino na depen-dência da pesquisa, tornando-o umcomplemento da atividade principalda universidade, que seria o desen-volvimento da ciência.

O modelo da universidade de pes-quisa expandiu-se rapidamente pelomundo, tornando-se o modelo idealpara todas as universidades. No Bra-sil, foi impulsionado pelo regimemilitar e pela reforma universitáriade 1968, permeando, pelo menosteoricamente, todo o sistema públi-co. Sob a influência desse modeloforam sendo gerados argumentoscomo os de que “não é possível ha-ver universidade sem pesquisa”, “a

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pesquisa evita o ensino repetitivo deidéias ultrapassadas”, “o professorleciona e pesquisa, aplica em suasaulas as conclusões da pesquisa eretira das aulas questões, temas esugestões para investigar”, e “a au-sência da pesquisa impossibilita areflexão crítica sobre a sociedade”.A função de tais argumentos é sem-pre realçar o caráter assessório doensino em relação às práticas depesquisa.

No entanto, diante da chamadaautonomia universitária – que nadamais é do que purismo acadêmicona definição dos temas de pesquisadiante do temor de serem instru-mentalizados pelo mercado e pelosetor produtivo – a universidadevem deixando de ser um lugar depesquisa e inovação de ponta. Sur-gem desta forma novos espaços den-tro das empresas; o Estado cria oufortalece determinados centros depesquisa e os próprios pesquisado-res universitários saem das univer-sidades para atuar em instituiçõesque apresentam melhores condiçõespara a pesquisa científica.

A partir disso, pode-se afirmarque, se a universidade contemporâ-nea atravessa uma crise de identi-dade, esta se deve de certa forma àcrise vivida pelo modelo de univer-sidade de pesquisa como modeloúnico e ainda hegemônico, modeloesse que não tem condições de so-brevivência institucional em temposde crise fiscal, abertura econômicae hegemonia neoliberal. Outro pro-blema desse modelo de universida-de está no fato de que a maioria dosEstados nacionais, seus grandesmentores e financiadores, tem suacapacidade de ação limitada por sé-rias crises fiscais, o que os tornamais criteriosos e restritivos quan-to aos investimentos a serem feitosem instituições científicas. Por fim,esse modelo de universidade apre-

senta um custo demasiadamente ele-vado para que se possa generalizá-lo para o sistema universitário comoum todo, fazendo com que poucossetores da sociedade estejam dispos-tos a financiá-lo.

O que os críticos do modelo deuniversidade de pesquisa propõemé que, em vez de a pesquisa ser acoluna vertebral da universidade eo ensino ser uma atividade comple-mentar, que seja o inverso: que oensino e a formação humana te-nham o papel que lhes foi conferi-do historicamente; isto é, a funçãocentral, a coluna vertebral, sendoa pesquisa uma atividade comple-mentar. Entre os motivos alegadospara essa inversão, pode-se desta-car: primeiro, o fato de o ensino ea pesquisa serem atividades com-pletamente diferentes; segundo, ofato de o ensino dever ser coloca-do em plano de destaque; terceiro,o fato de ser preciso recuperar adimensão formativa do ensino ereconhecer o mérito dos bons edu-cadores; e terceiro, o fato de a pes-quisa não ser realmente um pré-re-quisito essencial para o ensino dequalidade e excelência.

MODELO FALIDO

No Brasil, as discussões em torno dauniversidade de pesquisa se inseremem uma discussão maior, que dizrespeito ao fracasso de um modelouniversitário financiado pelo Esta-do, que instituiu uma política dedesperdício de recursos públicos apartir da generalização do contratode docente-pesquisador, em perío-do integral, com dedicação exclusi-va, em todo o sistema federal. O pro-blema está no fato de que a maioriados professores ganha seu saláriosem desenvolver pesquisas. Confi-gurou-se assim um sistema público

em que um número restrito de ins-tituições realmente faz pesquisa cien-tífica, ao passo que grande parte dosdocentes finge ser pesquisador.

Se o Estado realmente quer in-vestir em pesquisa sólida e com-petitiva, por que então continuajogando fora os recursos públicosem vez de focalizá-los somente naspoucas instituições que realmentefazem pesquisa? Considerando-sea crise fiscal do Estado, até quan-do vai se desperdiçar os recursospúblicos? Por que não se adotamsalários diferenciados, de acordocom a produtividade de cada do-cente ou pesquisador? Por que oprofessor-pesquisador que temuma produção irrelevante deveganhar o mesmo que aquele queproduz, cria e inova?

Todas essas questões estão nocerne da chamada reforma univer-sitária e da chamada crise da uni-versidade pública. O que amplossetores universitários sabem, masnão querem aceitar, é que o mode-lo de universidade de pesquisa, ecom ele o sistema universitáriopúblico, está totalmente falido e emruínas: não existem recursos finan-ceiros para cobrir os custos dos ati-vos e inativos de uma estrutura gi-gantesca e salarialmente injusta,criada sob a ideologia do Estado debem-estar.

Aceitar que a universidade públi-ca esteja em ruínas significa reco-nhecer o esgotamento de um padrãode universidade que foi hegemôni-co em determinado período da his-tória do ensino superior brasileiro.Diante disso, deve-se compreendero modelo emergente, bem como fo-car o desenho de um sistema uni-versitário que se adapte às necessi-dades da sociedade brasileira. Ad-mitir o esgotamento da universida-de pública implica em refletir a res-peito dos novos papéis do Estado e

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da universidade, e estabelecer sis-temas que possibilitem o melhorgerenciamento dos recursos públi-cos e privados, deixando de lado ocorporativismo em prol do ofereci-mento de ensino e pesquisa em es-paços nos quais possam ser realiza-dos de forma competitiva, com efi-ciência e qualidade.

UM NOVO MODELO:A UNIVERSIDADE MERCANTIL

Deve-se ter presente que vivemos ummomento privilegiado, na medida emque assistimos a um acelerado pro-cesso de extinção de um determina-do modelo de universidade, seme-lhante ao desaparecimento da univer-sidade medieval teocêntrica, mascom uma diferença marcante: en-quanto a universidade medieval de-morou quase três séculos para serextinta, o atual processo está ocor-rendo em apenas algumas décadas.

É nesse cenário que propomos odebate em torno da idéia de univer-sidade mercantil, uma espécie dematriz que poderá unificar todas asuniversidades que interagem nomercado de ensino universitário. Aproposta de universidade mercantilrepresenta o reencontro da univer-sidade com suas origens, quandocada instituição tinha um perfil di-ferenciado e as relações mercantiseram explícitas.

Ela é a base, a plataforma sobre aqual se poderá montar o sistema uni-versitário do futuro. A partir dela,cada universidade terá uma vocaçãoespecífica, bem como terá autonomia

para empregar da melhor forma suasreceitas. A universidade mercantilpoderá ter fins essencialmente lucra-tivos ou uma vocação mais pública;poderá ainda ser uma universidadeempreendedora, empresarialmentefalando, ou conservadora.

A universidade mercantil é umainstituição que preconiza a flexibi-lidade, a diversidade e a variedade.Trata-se de uma empresa – umaagência prestadora de serviços naárea da educação e do conhecimen-to – norteada pelo atendimento adiversas demandas da sociedade edo mercado, por meio de variados ediversificados produtos e serviços.É um modelo universitário contra-hegemônico que, ao agir dessa for-ma, vê sua missão e suas atividadespermanentemente moldadas, defini-das e renovadas.

Tendo como eixo norteador afunção de formar e capacitar os re-cursos humanos necessários para odesenvolvimento da sociedade e domercado, a universidade mercantilacena para um modelo que não des-carta atividades complementares,como a pesquisa pura ou aplicada,assessorias e consultorias. Sua exis-tência depende da demanda extra-institucional, da missão de cada or-ganização de ensino superior, dosnichos de mercado institucional-mente definidos e da viabilidade fi-nanceira de cada projeto.

A universidade mercantil é umainstituição flexível que não se fechaem modelos únicos e definidos, po-dendo assumir as mais variadas for-mas. Poderá ser uma instituição de-dicada somente ao ensino, uma uni-

versidade voltada somente para após-graduação e a pesquisa, umauniversidade especializada em umaárea do conhecimento, sem necessi-dade de preservar a universalidade decampo (humanas, exatas e biomédi-cas), ou uma universidade voltadaexclusivamente para o aperfeiçoa-mento de trabalhadores, graduadosou não. Os cursos, sua duração, asatividades de iniciação científica, aformação de pesquisadores nos cur-sos de mestrado e doutorado, os pro-jetos de pesquisa, pura ou aplicada,serão definidos pela missão institu-cional, pela demanda existente e pelaviabilidade financeira.

CONCLUSÃO

Por fim, deve-se ressaltar que a uni-versidade mercantil é uma empresadestinada a competir no mercado deensino universitário, sujeita arankings e sistemas de avaliação pró-prios de mercados transparentes,com informações que orientem aescolha dos consumidores.

Nesse processo, o Estado terá umpapel decisivo na criação de condi-ções para o fortalecimento do merca-do universitário e para a construçãode espaços para o exercício da cida-dania. Seu foco será estimular a ado-ção de mecanismos de avaliação quecontribuam para a construção de umasociedade de cidadãos-consumidoresconscientes e responsáveis, garantin-do espaços e instrumentos que possi-bilitem a defesa do consumidor, coi-bindo propagandas enganosas e prá-ticas de estelionato acadêmico.

Adolfo Ignacio CalderónProfessor da Universidade de Mogi das Cruzes. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP.E-mail: [email protected]

PENSATA • REPENSANDO O PAPEL DA UNIVERSIDADE

Pensata convidada. Aprovada em 08.03.2004.

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